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Jornal do Colégio JORNAL DO COLÉGIO ETAPA – 2017 • DE 28/04 A 11/05
CURSO – JORNALISMO
“Ter uma especialização faz diferença.” Fernanda Guimarães Maranha entrou na ECA em 2012 e no meio do ano passado formou-se em Jornalismo. Trabalha atualmente como freelancer e vai se especializar numa pós-graduação em administração e organização de eventos. Para ela a comunicação empresarial oferece amplas oportunidades profissionais.
Fernanda Guimarães Maranha
JC – Como se deu a escolha de Jornalismo? Fernanda – Eu sempre me interessei mais por Humanas, mas Direito não é minha cara, Letras também não. Até pensei em Administração, mas tem muita Matemática, não quis. Aí escolhi Jornalismo, que foi com o que eu me identifiquei mais. Decidi no meio do 3o ano. Além da Fuvest, você prestou outros vestibulares? Sim. Prestei também Cásper Líbero. E fiz o Enem. Como foi seu início na ECA? Entrar no curso noturno foi um susto para minha mãe. Mas eu achei legal, eu não trabalhava, tinha o dia inteiro livre, podia acordar tarde. Eu ia mais cedo para a ECA e a gente ficava lá conversando até a hora da aula. Com relação às matérias, como se desenvolveu o curso? Desde o começo tem bastante coisa prática, eu gostei. Tem o Jardim São Remo, que é o jornalzinho para a comunidade, tem a Agência Universitária de Notícias, em que a gente cobre institutos da USP. A agência é voltada para jornalismo científico. Cada um fica com um instituto. Tem o Jornal do Campus, que é quinzenal. Tem o Claro, um suplemento literário do Jornal do Campus. Tem a Babel, uma revista semestral que virou só site, com longas reportagens sobre um tema. Depois tem jornal laboratório, que produz um doENTREVISTA
Carreira – Jornalismo
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CONTO
Entre santos – Machado de Assis
cumentário por grupo. No total do curso você tem cinco ou seis matérias práticas.
E a parte teórica? Também tem muita teoria no início. Teoria da Comunicação, Ciências da Linguagem, Pensamentos Filosóficos, História do Jornalismo. No fim vão tirando a parte mais teórica e fica bastante laboratório. Aí tem Jornalismo On-line, junto com outra matéria que se chama Projetos de Televisão. Acaba sendo prático também. A partir do 2o ano a gente já não tem aula sexta-feira e fica mais tranquilo. Além das aulas, você fez outras atividades na faculdade? Participei da Empresa Júnior de Jornalismo. Foi bem legal. Treinei vôlei, mas acabei parando porque era muito cedo. No 1o ano fui praticamente a todas as festas e depois, um pouco menos. Na Empresa Júnior, quais eram suas atividades? No primeiro ano tem os núcleos de Jornalismo e da Empresa. Você fica nos dois núcleos. Na parte de Jornalismo tem cinema, esporte, eventos, comunicação visual, assessoria. Primeiro eu fiquei na Agência J. Press, que é vinculada à Empresa Júnior. Grandes reportagens. Passei pelo blog, mais cultural, que estava no começo quando entrei. Mas fiquei pouco tempo.
ARTIGO Guia on-line apresenta aves da Caatinga brasileira
POIS É, POESIA
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ENTRE PARÊNTESIS
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More money
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Álvares de Azevedo (1831-1852) ESPECIAL Alunos recebem medalhas em cerimônia de premiação da OPF 2016
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CURSO – JORNALISMO
Você participou quanto tempo da Empresa Júnior? Dois anos. De um ano para outro passei a diretora de eventos. Na época tinha um evento principal e outros secundários. O principal era a Semana de Fotojornalismo, os secundários eram palestras, mais para o curso, mas abertas ao público também. Hoje tem mais um evento, que é a Semana de Jornalismo. Você fez estágio durante o curso? Ele é obrigatório? Não era obrigatório. O bom, principalmente para quem precisa de dinheiro, é que é possível estagiar desde o 1o ano. Mas a maioria faz a partir do 2o ano. Eu comecei no 2o ano no Instituto de Psicologia da USP, com notícias institucionais. Eram só 20 horas semanais. Fora da USP, você conseguiu estagiar? Sim, no 3o ano fui para a Abraji, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Entrei em abril e fiquei seis meses, até outubro de 2014. Como conseguiu esse estágio? A Empresa Júnior recebeu um e-mail avisando que a Abraji estava precisando de estagiário. Umas pessoas se candidataram e fui escolhida. O que você fez na Abraji? A principal coisa era organizar o Congresso de Jornalismo. É o maior congresso de jornalismo que tem no Brasil. Você saiu para outro trabalho? Não. Comecei a correr atrás de estágio. No fim do ano tem muitos processos seletivos. Em dezembro passei no processo seletivo do iG e comecei a trabalhar na segunda semana de janeiro de 2015. Fiquei até setembro como estagiária e aí fui efetivada. Continuei até fevereiro deste ano e agora saí. Qual era seu trabalho no iG? Era repórter. Tinha duas editoras e uma editora assistente, três repórteres e três estagiários. Trabalhei na área feminina. Com estilo de vida, turismo, saúde, bem-estar. No começo eu ficava mais com a parte de filhos, comportamento, amor e sexo. Fazia um pouco de saúde também. Gostei bastante. Nunca fui ligada a política, economia, não me interessa trabalhar cobrindo isso. No iG você conseguia cumprir o horário de estágio? Conseguia. Dava conta, sim. Eu entrei em janeiro, em maio teve demissões em massa, metade da redação foi embora. Em setembro teve demissão de altos salários. Efetivaram três pessoas e contrataram 12 estagiários. Foi uma mudança bem grande. Mudou minha editora chefe, mudou bastante coisa. Você disse que saiu desse emprego em fevereiro deste ano. O que está fazendo agora? Desde setembro, outubro de 2016 eu já estava fazendo um trabalho de freelancer. Geralmente chegava em casa e fazia os textos. Continuo fazendo.
Qual seu trabalho atual como freelancer? É um que encontrei pelo Facebook, para um site de decoração. Chama-se Homisy. Mandei currículo e textos que eu tinha feito, fui contratada. É novo no Brasil e tem versões para vários países. A versão brasileira está crescendo. Como é seu trabalho nesse site? É baseado em imagens, com textos. São textos simples. Eu faço cerca de oito por semana. No último semestre da faculdade, qual era sua maior preocupação? Fazer o TCC, o Trabalho de Conclusão de Curso. De quanto tempo os alunos dispõem para fazer esse trabalho? Eu fiz em um semestre porque já estava efetivada e queria terminar logo. Qual foi o tema do seu TCC? Fiz um documentário de 20 e poucos minutos sobre filhas que cuidam das mães na velhice. Como foi o processo de achar as entrevistadas? A primeira delas foi minha avó, foi meio por isso que fiz também. A segunda foi uma paciente de minha mãe, que é médica. A terceira foi uma amiga da família. Durante a faculdade você chegou a ter dúvida em relação à carreira que escolheu? A dúvida que eu sempre tive foi por causa do mercado de trabalho, mas eu não penso em fazer outra coisa. É uma carreira em que se ganha um pouco menos, não é como Engenharia, Medicina, mas eu gosto do que faço. E sou nova, posso muito bem começar outra graduação. Com uma segunda graduação, você vai ter mais conhecimento. Que curso você escolheria para essa nova graduação? Eu faria Relações Públicas, que é voltado para empresas. Agora vou começar um curso de pós-graduação. É no Senac, para administração e organização de eventos. Dura um ano e meio. Sempre achei que eu tinha que fazer uma pós-graduação. Ter uma especialização faz diferença. Então vou fazer e aproveitar que eu gosto de comunicação de empresas, uma área que tem mais vagas, mais oportunidades. Gostei das experiências que tive e acho que é uma coisa que tem amplitude. Posso ser mais autônoma e ter uma empresa de eventos. Hoje eu penso mais em fazer eventos para empresas. É mais amplo e dentro da comunicação. O que levou você para essa área? Perto do fim da graduação eu comecei a pensar que fazer mestrado geralmente vale mais se você quer ser acadêmico. Para entrar em uma redação vale mais o trabalho que você faz, seu portfólio, seu nome. A alternativa em que penso é comunicação em geral. Então estou tentando ir para esse lado.
CURSO – JORNALISMO
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Você quer ampliar seu leque profissional indo para eventos? Exatamente. Como já tenho um pouco de experiência em redação, se tiver oportunidade, sim. Conhecer outra área vai ser sempre benéfico. Vamos supor que amanhã eu ache um emprego em redação e continue fazendo essa pós, quando precisar eu tenho esse outro conhecimento.
fielmente de um professor do 1o ano, de História, ensinando as coisas dos incas.
Enquanto faz o freelancer você está procurando outro trabalho? Sim. Estou procurando vaga meio geral, estou aberta. É que está meio difícil. O Jornalismo está difícil. Todo mundo fala que é a crise, mas a do Jornalismo começou há mais tempo. Até mesmo na internet. Quando entrei no iG achei que não ia ter crise, porque nasceu como portal. Mas os portais também estão na crise.
Que recordações você tem do colégio? Até comento com os amigos, lembro da gente falando: “O 1o ano é assim”, e ouvia: “Meu Deus, você tem prova todo dia?” E pensava: “Meu Deus, preciso estudar todo dia, não posso mais fazer nada na minha vida”. Lembro que fui a um show no começo do 1o ano e da minha mãe falando: “Você vai ao show? Você tem prova no dia seguinte”. No 2o ano você fala: “Dá, dá para estudar”. Depende da matéria, em algumas você tem mais facilidade, em outras tem menos. Lembro muito que o 2o ano foi uma coisa mais tranquila. Chega no 3o ano, as provas diárias são as menores preocupações. Você tem outras provas gigantescas pela frente.
Quais são as áreas do jornalista? Acho que a maior divisão é um pouco por área mesmo, política, economia, ciências, estilo de vida, produção de conteúdo. Hoje é muito mais difícil falar: “Este aqui é jornalista de impresso, este é jornalista de internet”.Todas as revistas têm site. Como o Etapa foi importante para você na faculdade? Acho que a diferença maior do Etapa foi dar preparação como um todo, e ter prova todo dia. Com a disciplina de estudar, que você adquire, na faculdade foi mais tranquilo. Quanto a matérias específicas, acho que foram importantes para a vida. No ano passado fui para o Peru e me lembrava
Você ainda tem amigos da época do colégio? Tenho. Duas são minhas melhores amigas. Uma está fazendo Medicina, a outra fez Moda. Com alguns eu converso uma vez ou outra, a gente se fala pelas redes sociais.
O que você pode dizer a quem vai prestar vestibular neste ano e ainda está na dúvida sobre a carreira? Acho muito importante considerar tanto a faculdade quanto a profissão. Não pensar em uma isolada da outra. Por mais que a gente pesquise, só vai saber exatamente como é quando começar a conviver com o pessoal da área, começar a estagiar. Aí você vai conhecer um novo mundo da sua profissão, vai ver se funciona. Se não funcionar, não será o fim do mundo.
CONTO
Entre santos Machado de Assis
Q
uando eu era capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho) aconteceu-me uma aventura extraordinária. Morava ao pé da igreja, e recolhi-me tarde, uma noite. Nunca me recolhi tarde que não fosse ver primeiro se as portas do templo estavam bem fechadas. Achei-as bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. Corri assustado à procura da ronda; não a achei, tornei atrás e fiquei no adro, sem saber que fizesse. A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões; além disso notei que era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como seria a das velas ou lanternas de pessoas que estivessem roubando. O mistério arrastou-me; fui a casa buscar as chaves da sacristia (o sacristão tinha ido passar a noite em Niterói), benzi-me primeiro, abri a porta e entrei. O corredor estava escuro. Levava comigo uma lanterna e caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos. A primeira e a segunda porta que comunicam
com a igreja estavam fechadas; mas via-se a mesma luz e, porventura, mais intensa que do lado da rua. Fui andando, até que dei com a terceira porta aberta. Pus a um canto a lanterna, com o meu lenço por cima, para que me não vissem de dentro, e aproximei-me a espiar o que era. Detive-me logo. Com efeito, só então adverti que viera inteiramente desarmado e que ia correr grande risco aparecendo na igreja sem mais defesa que as duas mãos. Correram ainda alguns minutos. Na igreja a luz era a mesma, igual e geral, e de uma cor de leite que não tinha a luz das velas. Ouvi também vozes, que ainda mais me atrapalharam, não cochichadas nem confusas, mas regulares, claras e tranquilas, à maneira de conversação. Não pude entender logo o que diziam. No meio disto, assaltou-me uma ideia que me fez recuar. Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que a conversação podia ser de defuntos. Recuei espavorido, e só passado algum tempo, é que pude reagir e chegar outra vez
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CONTO
à porta, dizendo a mim mesmo que semelhante ideia era um disparate. A realidade ia dar-me coisa mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar. Vi então uma coisa extraordinária. Dois dos três santos do outro lado, S. José e S. Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das próprias imagens, mas de homens. Falavam para o lado de cá, onde estão os altares de S. João Batista e S. Francisco de Sales. Não posso descrever o que senti. Durante algum tempo, que não chego a calcular, fiquei sem ir para diante nem para trás, arrepiado e trêmulo. Com certeza, andei beirando o abismo da loucura, e não caí nele por misericórdia divina. Que perdi a consciência de mim mesmo e de toda outra realidade que não fosse aquela, tão nova e tão única, posso afirmá-lo; só assim se explica a temeridade com que, dali a algum tempo, entrei mais pela igreja, a fim de olhar também para o lado oposto. Vi aí a mesma coisa: S. Francisco de Sales e S. João, descidos dos nichos, sentados nos altares e falando com os outros santos. Tinha sido tal a minha estupefação que eles continuaram a falar, creio eu, sem que eu sequer ouvisse o rumor das vozes. Pouco a pouco, adquiri a percepção delas e pude compreender que não tinham interrompido a conversação; distingui-as, ouvi claramente as palavras, mas não pude colher desde logo o sentido. Um dos santos, falando para o lado do altar-mor, fez-me voltar a cabeça, e vi então que S. Francisco de Paula, o orago da igreja, fizera a mesma coisa que os outros e falava para eles, como eles falavam entre si. As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão. Mas, se tudo isso era espantoso, não menos o era a luz, que não vinha de parte nenhuma, porque os lustres e castiçais estavam todos apagados; era como um luar, que ali penetrasse, sem que os olhos pudessem ver a lua; comparação tanto mais exata quanto que, se fosse realmente luar, teria deixado alguns lugares escuros, como ali acontecia, e foi num desses recantos que me refugiei. Já então procedia automaticamente. A vida que vivi durante esse tempo todo, não se pareceu com a outra vida anterior e posterior. Basta considerar que, diante de tão estranho espetáculo, fiquei absolutamente sem medo; perdi a reflexão, apenas sabia ouvir e contemplar. Compreendi, no fim de alguns instantes, que eles inventariavam e comentavam as orações e implorações daquele dia. Cada um notava alguma cousa. Todos eles, terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpelam um cadáver, S. João Batista e S. Francisco de Paula, duros ascetas, mostravam-se às vezes enfadados e absolutos. Não era assim S. Francisco de Sales; esse ouvia ou contava as cousas com a mesma indulgência que presidira ao seu famoso livro da Introdução à Vida Devota. Era assim, segundo o temperamento de cada um, que eles iam narrando e comentando. Tinham já contado casos de fé sincera e castiça, outros de indiferença, dissimulação e versatilidade; os dois ascetas estavam a mais e mais anojados, mas S. Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura; muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro. S. João abanava a cabeça.
– Francisco de Sales, digo-te que vou criando um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens. – Exageras tudo, João Batista, atalhou o santo bispo, não exageremos nada. Olha – ainda hoje aconteceu aqui uma coisa que me fez sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. Os homens não são piores do que eram em outros séculos; descontemos o que há neles ruim, e ficará muita coisa boa. Crê isto e hás de sorrir ouvindo o meu caso. – Eu? – Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e todos vós haveis de sorrir comigo: e, pela minha parte, posso fazê-lo, pois já intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa. – Que pessoa? – Uma pessoa mais interessante que o teu escrivão, José, e que o teu lojista, Miguel... – Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais interessante que a adúltera que aqui veio hoje prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria. Brigara ontem mesmo com o namorado, que a injuriou torpemente, e passou a noite em lágrimas. De manhã, determinou abandoná-lo e veio buscar aqui a força precisa para sair das garras do demônio. Começou rezando bem cordialmente; mas pouco a pouco vi que o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites. As palavras, paralelamente, iam ficando sem vida. Já a oração era morna, depois fria, depois inconsciente; os lábios, afeitos à reza, iam rezando: mas a alma, que eu espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro. Afinal persignou-se, levantou-se e saiu sem pedir nada. – Melhor é o meu caso. – Melhor que isto? perguntou S. José curioso. – Muito melhor, respondeu S. Francisco de Sales, e não é triste como o dessa pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor ainda pode salvar. E por que não salvará também a esta outra? Lá vai o que é. Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos, esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que veem tudo o que se passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos, intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum pecado ou gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales começou a falar. – Tem cinquenta anos o meu homem, disse ele; a mulher está de cama, doente de uma erisipela na perna esquerda. Há cinco dias vive aflito porque o mal agrava-se e a ciência não responde pela cura. Vede, porém, até onde pode ir um preconceito público. Ninguém acredita na dor do Sales (ele tem o meu nome), ninguém acredita que ele ame outra coisa que não seja dinheiro, e logo que houve notícia da sua aflição desabou em todo o bairro um aguaceiro de motes e dichotes; nem faltou quem acreditasse que ele gemia antecipadamente pelos gastos da sepultura. – Bem podia ser que sim, ponderou S. João. – Mas não era. Que ele é usurário e avaro não o nego; usurário, como a vida, e avaro, como a morte. Ninguém extraiu nunca tão implacavelmente da algibeira dos outros o ouro, a prata, o papel e o cobre; ninguém os amuou com mais zelo e prontidão. Moeda que lhe cai na mão dificilmente torna a sair; e tudo o que lhe sobra das casas mora dentro de um armário de ferro, fechado a sete chaves. Abre-o às vezes, por horas mortas,
CONTO contempla o dinheiro alguns minutos, e fecha-o outra vez depressa; mas nessas noites não dorme, ou dorme mal. Não tem filhos. A vida que leva é sórdida; come para não morrer, pouco e ruim. A família compõe-se da mulher e de uma preta escrava, comprada com outra, há muitos anos, e às escondidas, por serem de contrabando. Dizem até que nem as pagou, porque o vendedor faleceu logo sem deixar nada escrito. A outra preta morreu há pouco tempo; e aqui vereis se este homem tem ou não o gênio da economia; Sales libertou o cadáver... E o santo bispo calou-se para saborear o espanto dos outros. – O cadáver? – Sim, o cadáver. Fez enterrar a escrava como pessoa livre e miserável para não acudir às despesas da sepultura. Pouco embora, era alguma cousa. E para ele não há pouco; com pingos d’água é que se alagam as ruas. Nenhum desejo de representação, nenhum gosto nobiliário; tudo isso custa dinheiro, e ele diz que o dinheiro não lhe cai do céu. Pouca sociedade, nenhuma recreação de família. Ouve e conta anedotas da vida alheia, que é regalo gratuito. – Compreende-se a incredulidade pública, ponderou S. Miguel. – Não digo que não, porque o mundo não vai além da superfície das cousas. O mundo não vê que, além de caseira eminente, educada por ele, e sua confidente de mais de vinte anos, a mulher deste Sales é amada deveras pelo marido. Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor. A botânica sentimental tem dessas anomalias. Sales ama a esposa; está abatido e desvairado com a ideia de a perder. Hoje de manhã, muito cedo, não tendo dormido mais de duas horas, entrou a cogitar no desastre próximo. Desesperando da terra, voltou-se para Deus; pensou em nós, e especialmente em mim que sou o santo do seu nome. Só um milagre podia salvá-la; determinou vir aqui. Mora perto, e veio correndo. Quando entrou trazia o olhar brilhante e esperançado; podia ser a luz da fé, mas era outra cousa muito particular, que vou dizer. Aqui peço-vos que redobreis de atenção. Vi os bustos inclinarem-se ainda mais; eu próprio não pude esquivar-me ao movimento e dei um passo para diante. A narração do santo foi tão longa e miúda, a análise tão complicada, que não as ponho aqui integralmente, mas em substância. – Quando pensou em vir pedir-me que intercedesse pela vida da esposa, Sales teve uma ideia específica de usurário, a de prometer-me uma perna de cera. Não foi o crente, que simboliza desta maneira a lembrança do benefício; foi o usurário que pensou em forçar a graça divina pela expectação do lucro. E não foi só a usura que falou, mas também a avareza; porque em verdade, dispondo-se à promessa, mostrava ele querer deveras a vida da mulher – intuição de avaro; – despender é documentar: só se quer de coração aquilo que se paga a dinheiro, disse-lho a consciência pela mesma boca escura. Sabeis que pensamentos tais não se formulam como outros, nascem das entranhas do caráter e ficam na penumbra da consciência. Mas eu li tudo nele logo que aqui entrou alvoroçado, com o olhar fúlgido de esperança; li tudo e esperei que acabasse de benzer-se e rezar. – Ao menos, tem alguma religião, ponderou S. José. – Alguma tem, mas vaga e econômica. Não entrou nunca em irmandades e ordens terceiras, porque nelas se rouba o que pertence ao Senhor; é o que ele diz para conciliar a devoção com a algibeira. Mas não se pode ter tudo; é certo que ele teme a Deus e crê na doutrina. – Bem, ajoelhou-se e rezou.
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– Rezou. Enquanto rezava, via eu a pobre alma, que padecia deveras, conquanto a esperança começasse a trocar-se em certeza intuitiva. Deus tinha de salvar a doente, por força, graças à minha intervenção, e eu ia interceder; é o que ele pensava, enquanto os lábios repetiam as palavras da oração. Acabando a oração, ficou Sales algum tempo olhando, com as mãos postas; afinal falou a boca do homem, falou para confessar a dor, para jurar que nenhuma outra mão, além da do Senhor, podia atalhar o golpe. A mulher ia morrer... ia morrer... ia morrer... E repetia a palavra, sem sair dela. A mulher ia morrer. Não passava adiante. Prestes a formular o pedido e a promessa não achava palavras idôneas, nem aproximativas, nem sequer dúbias, não achava nada, tão longo era o descostume de dar alguma coisa. Afinal saiu o pedido; a mulher ia morrer, ele rogava-me que a salvasse, que pedisse por ela ao Senhor. A promessa, porém, é que não acabava de sair. No momento em que a boca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as entranhas e não deixava sair nada. Que a salvasse... que intercedesse por ela... No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe, e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho. Era ela mesma, velha amiga de longos anos, companheira do dia e da noite, era ela que ali estava no ar, girando, às tontas: era ela que descia do teto, ou subia do chão, ou rolava no altar, indo da Epístola ao Evangelho, ou tilintava nos pingentes do lustre. Agora a súplica dos olhos e a melancolia deles eram mais intensas e puramente voluntárias. Vi-os alongarem-se para mim, cheios de contrição, de humilhação, de desamparo; e a boca ia dizendo algumas cousas soltas, – Deus, – os anjos do Senhor, – as bentas chagas, – palavras lacrimosas e trêmulas, como para pintar por elas a sinceridade da fé e a imensidade da dor. Só a promessa da perna é que não saía. Às vezes, a alma, como pessoa que recolhe as forças, a fim de saltar um valo, fitava longamente a morte da mulher e rebolcava-se no desespero que ela lhe havia de trazer: mas, à beira do valo, quando ia a dar o salto, recuava. A moeda emergia dele e a promessa ficava no coração do homem. O tempo ia passando. A alucinação crescia, porque a moeda, acelerando e multiplicando os saltos, multiplicava-se a si mesma e parecia uma infinidade delas; e o conflito era cada vez mais trágico. De repente, o receio de que a mulher podia estar expirando, gelou o sangue ao pobre homem e ele quis precipitar-se. Podia estar expirando... Pedia-me que intercedesse por ela, que a salvasse... Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas. E o Sales, curvo, contrito, com as mãos postas, o olhar submisso, desamparado, resignado, pedia-me que lhe salvasse a mulher. Que lhe salvasse a mulher, e prometia-me trezentos – não menos, – trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. E repetia enfático: trezentos, trezentas, trezentos... Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil padre-nossos e mil ave-marias. Não via esta soma escrita por letras do alfabeto, mas em alga-
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CONTO
rismos, como se ficasse assim mais viva, mais exata, e a obrigação maior, e maior também a sedução. Mil padre-nossos, mil ave-marias. E voltaram as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do Senhor... 1 000 – 1 000 – 1 000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto, que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem, e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada, mil, mil, mil, mil... Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu S. Francisco de Sales.
E os outros santos riram efetivamente, não daquele grande riso descomposto dos deuses de Homero, quando viram o coxo Vulcano servir à mesa, mas de um riso modesto, tranquilo, beato e católico. Depois, não pude ouvir mais nada. Caí redondamente no chão. Quando dei por mim era dia claro... Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos. Extraído de: Várias histórias.
ARTIGO
Guia on-line apresenta aves da Caatinga brasileira
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gaviãozinho (Gampsonyx swainsonii), a garça-moura (Ardea cocoi) e o beija-flor-de-veste-preta (Anthracothorax nigricollis) são algumas das 34 espécies de aves identificadas nos últimos quatro anos no Seridó, região na divisa do Rio Grande do Norte com a Paraíba. Considerada uma das regiões mais secas do país, o Seridó abriga 202 espécies de aves, catalogadas agora no Guia de Aves da Estação Ecológica do Seridó, disponível para download. O guia traz o registro fotográfico e uma breve descrição biológica de 102 das 202 espécies. As demais estão organizadas em uma lista por família, nome científico e nome popular. A publicação é resultado do projeto “Dinâmica populacional, demografia e conservação de aves da Estação Ecológica do Seridó” e teve apoio do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O material foi preparado com o auxílio dos professores da UFRN e estudantes de ensino médio da rede pública local. O objetivo do trabalho é ampliar o acesso às informações sobre as aves que habitam a região e demonstrar a importância dessas espécies para a preservação da Caatinga, o único
ecossistema exclusivamente brasileiro. Coberta por uma vegetação adaptada ao clima quente e seco, a Caatinga ocupa cerca de 11% do território nacional, distribuída pelos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí, Sergipe e norte de Minas Gerais. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA) o bioma abriga uma população estimada de 27 milhões de pessoas, a maioria dependente dos recursos naturais desse ecossistema. Além de levar conhecimento aos moradores e estudantes do Seridó, o guia é uma ferramenta para profissionais como biólogos, ecólogos e educadores. Para os organizadores do guia, os pesquisadores Guilherme Toledo-Lima, João Damasceno e Mauro Pichorim, da UFRN, “se as pessoas compreenderem um pouco mais a importância das aves que as cercam, certamente contribuirão para a conservação delas, pois entenderão o papel ambiental que elas desempenham”. As declarações foram concedidas à Agência de Notícias do ICMBio. A Estação Ecológica do Seridó é uma unidade de conservação de proteção integral que fica no município de Serra Negra do Norte, no interior do Rio Grande do Norte, distante 300 km de Natal. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, mar./2017.
(ENTRE PARÊNTESIS)
More money O problema consiste em substituir letras por números e descobrir quanto o rapaz está pedindo.
RESPOSTA 9 5 67 + 1 085 10 652
O pai matemático de um filho americano recebeu o telegrama ao lado:
POIS É, POESIA
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Álvares de Azevedo (1831-1852) Soneto
Lágrimas da vida
Os quinze anos de uma alma transparente
On pouvait à vingt ans le clouer dans la bière – Cadavre sans illusions...
O cabelo castanho, a face pura, Uns olhos onde pinta-se a candura De um coração que dorme, inda inocente.
(Théoph, Gautier)
Je me suis assis en blasphémant sur le bord du chemin. Et je me suis dit: je n’irai pas plus loin. Mais je suis bien jeune encore pour mourir, n’est-ce pas, Jane?
Um seio que estremece de repente Do mimoso vestido na brancura, A linda mão na mágica cintura, E uma voz que inebria docemente.
(George Sand, Aldo)
S e tu souberas que lembrança amarga,
Que pensamento desflorou meus dias, Oh! tu não creras meu sorrir leviano Nem minhas insensatas alegrias!
Um sorrir tão angélico! tão santo E nos olhos azuis cheios de vida Lânguido véu de involuntário pranto!
Quando junto de ti eu sinto às vezes Em doce enleio desvairar-me o siso, Nos meus olhos incertos sinto lágrimas... Mas da lágrima em troco eu temo um riso!
É esse o talismã, é essa a Armida, O condão de meus últimos encantos, A visão de minh’alma distraída!
Amor Quand la mort est si belle, Il est doux de mourir. (V. Hugo)
A memos! quero de amor Viver no teu coração! Sofrer e amar essa dor Que desmaia de paixão! Na tu’alma, em teus encantos E na tua palidez E nos teus ardentes prantos Suspirar de languidez! Quero em teus lábios beber Os teus amores do céu, Quero em teu seio morrer No enlevo do seio teu! Quero viver d’esperança, Quero tremer e sentir! Na tua cheirosa trança Quero sonhar e dormir! Vem, anjo, minha donzela, Minh’alma, meu coração! Que noite, que noite bela! Como é doce a viração! E entre os suspiros do vento Da noite ao mole frescor, Quero viver um momento, Morrer contigo de amor!
O meu peito era um templo – ergui nas aras Tua imagem que a sombra perfumava... Mas ah! emurcheceste as minhas flores, Apagaste a ilusão que aviventava! E por te amar, por teu desdém – perdi-me... Tresnoitei-me em orgias macilento, Brindei blasfemo ao vício e da minh’alma Tentei me suicidar no esquecimento! Como um corcel abate-se na sombra, Minha crença agoniza e desespera... O peito e a lira se estalaram juntos E morro sem ter tido primavera! Como o perfume de uma flor aberta Da manhã entre as nuvens se mistura, A minh’alma podia em teus amores Como um anjo de Deus sonhar ventura! Não peço o teu amor... eu quero apenas A flor que beijas para a ter no seio, E teus cabelos respirar medroso E a teus joelhos suspirar d’enleio! E quando eu durmo, e o coração ainda Procura na ilusão tua lembrança, Anjo da vida passa nos meus sonhos E meus lábios orvalha d’esperança! Extraído de: “Lira dos vinte anos”. In: Poesias completas.
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ESPECIAL
Alunos recebem medalhas em cerimônia de premiação da OPF 2016
O
Colégio Etapa conquistou 45 das 147 medalhas distribuí das pela Olimpíada Paulista de Física 2016. A cerimônia de premiação da OPF aconteceu no dia 25 de março, no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos. Os alunos foram acompanhados por professores e familiares. Ao todo, os estudantes do Etapa de Valinhos e de São Paulo conquistaram 19 medalhas de ouro, 17 de prata e 9 de bronze. Além do ouro, o aluno Gabriel Quintas Rippel, do 8o ano, levou o prêmio Shigueo Watanabe, de melhor nota do Ensino Fundamental. A OPF aceita a participação de estudantes entre o 6o ano do Ensino Fundamental e o 3o ano do Ensino Médio. Segundo o professor de Física Fred Basso, o número de participantes dos treinamentos no Etapa tem aumentado todos os anos. Para ele, a importância dessas competições está em, principalmente, despertar o interesse dos jovens pelos estudos além da sala de aula. Em 2016, a seletiva regional da OPF foi no mês de junho, e a fase estadual, quando foram definidos os medalhistas, aconteceu em outubro. O professor Fred lembra que as aulas de preparação ficam disponíveis na área exclusiva do aluno, e todos os interessados podem participar.
AGENDA CULTURAL
Gabriel Quintas Rippel – Prêmio Shigueo Watanabe
Jornal do Colégio
São Paulo – Clube de Cinema (quintas, das 19h às 21h, sala 66) 04.05 – Capitão Fantástico (Matt Ross: 2016) 11.05 – O homem irracional (Wood Allen: 2015) São Paulo – Clube de Debate (quinzenal, das 19h às 22h, sala 60) 08.05 – “O papel da argumentação nas redes sociais” São Paulo – Clube do Livro (terça, das 19h às 21h, sala 63) 09.05 – A morte de Ivan Ilitch (Liev Tolstói) Valinhos – Clube de Cinema (quintas, das 14h05min às 16h05min, sala 209) 04.05 – Dogville (Lars von Trier: 2003) 11.05 – As bruxas de Salém (Nicholas Hytner: 1996) Valinhos – Clube de Debate (quinzenal, das 14h05min às 17h45min, sala 215) 11.05 – “O papel da argumentação nas redes sociais” Valinhos – Clube do Livro (quinta, das 14h05min às 15h45min, sala 216) 18.05 – Mariana (Pedro Bandeira)
Jornal do Colégio ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343