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Jornal do Vestibulando
ENSINO, INFORMAÇÃO E CULTURA
JORNAL ETAPA – 2013 • DE 14/11 A 27/11
ESPECIAL
Dicas para a 1ª fase da Fuvest O maior vestibular de São Paulo terá início no último domingo de novembro – dia 24 – com a prova da 1ª fase, composta de 90 questões em forma de teste. Para você começar bem as provas da Fuvest, os professores do Etapa prepararam algumas dicas que mostram o que pode ajudar na primeira e decisiva fase desse vestibular. Eis a grande prova! A 1ª fase da Fuvest é a grande prova, decisiva, que filtra candidatos para a 2ª fase. Filtro severo, porque retém cerca de 80% dos inscritos. No vestibular de 2013, foram chamados para a 2ª fase 28 943 candidatos efetivos para disputar as 11 082 vagas oferecidas na USP e na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (a relação candidatos/vaga na 2ª fase ficou em 2,61). Incluindo os treineiros, foram convocados 31 182 candidatos para a 2ª fase. O vestibular Fuvest 2014 oferece 75 vagas a mais do que no ano passado. São 11 157 vagas – 11 057 na USP e 100 na Santa Casa. Mas o número de candidatos inscritos aumentou 7,8%, de 159 609 para 172 001 (incluindo treineiros).
As características Durante mais de 30 anos a 1ª fase da Fuvest vem mantendo suas características conceituais: • Conhecimentos gerais são exigidos de todos os candidatos; • Nível básico e conceitual, sem pegadinhas. Desde 2012, as médias finais para preenchimento das vagas incluem não só as notas da 2ª fase como também as da 1ª. Assim, o importantíssimo exame da 1ª fase elimina e classifica.
Como abordar a prova? Para testar a melhor forma de abordar as questões, o Etapa fez uma experiência com
ESPECIAL
Dicas para a 1ª fase da Fuvest
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SERVIÇO DE VESTIBULAR
Inscrições
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tado estatístico vale para seu caso! Não podemos esquecer que pessoas são diferentes e podem responder diferentemente diante das mesmas situações.
Tenho medo de “dar um branco” Será que é só com muita calma que se faz um bom exame? Nada disso. Geralmente serão as cabeças mais quentes (sinal de intensa atividade intelectual) que irão perder os cabelos após o dia das listas de aprovados. Aflição, nervosismo e alto de-
POIS É, POESIA
ARTIGO
CONTO
A causa secreta – Machado de Assis
um grupo de alunos resolvendo as questões em sequência e outro grupo buscando primeiro as questões mais simples. Verificamos que resolver as questões na ordem em que aparecem no exame parece dar uma vantagem sobre quem faz uma leitura geral, superficial, para pré-selecionar o que responder primeiro, procurando “as mais fáceis”. A vantagem é que se gasta menos tempo seguindo a ordem proposta pelos examinadores (e, é claro, pulando aqui e ali as mais difíceis, para retornar depois). Mas cuidado sempre! Cabe a você conferir se esse resul-
Impactos e desequilíbrios
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Vírus da dengue é mais estável do que se pensava
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Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
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ENTRE PARÊNTESIS
A mais velha toca piano
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ESPECIAL
sempenho sempre combinam na hora da prova. Normalíssimo, pois 99,99% dos vestibulandos acabam passando por algum “branco”. O problema atinge, sem distinção, todo mundo – eis a boa notícia –, mas pode ser contornado com algumas técnicas. Um exemplo: se a resposta parece estar “na ponta da língua”, mas escapou, dê um tempo, passe para outra questão, varie um pouco de assunto. Fazer isso abre caminho para um “acesso lateral” à memória, que pode acabar trazendo à tona a resposta desejada. A técnica ajuda, mas não é infalível. O tal acesso lateral pode não acontecer. O que fazer, então, quando o “branco da memória” resiste? Desesperar? Claro que não. A resposta vai a seguir.
Quem sabe nunca erra! Será? O número de candidatos da Fuvest que gabaritam a 1ª fase normalmente é zero. É mais do que óbvio que não é necessário acertar tudo para passar. Na faixa de candidatos com as notas mais altas da prova, o erro atinge 10% das questões. Até nas carreiras mais concorridas há aprovados que erram 25% (1 de cada 4 questões!) da 1ª fase. E há muitas carreiras da USP com nota de corte abaixo de 50%, isto é, seus candidatos podem ir para a 2ª fase errando mais do que acertando na prova. Portanto, errar no vestibular é comum, mesmo entre quem está muito bem preparado. Por isso, quem faz o exame a sério tem sua margem para falhas e erros. Não será um desastre esquecer algumas coisas na hora da prova. Mesmo que em algumas questões dê um ou outro “branco”, não será nenhum fim do mundo. Feitas essas observações, vale um alerta importante: não vá fazer a prova pensando em “mirar” apenas a nota de corte. Para ter boas chances de entrar, é necessário ter folga acima do corte.
– Oh, que linda questão!... e o tempo acabou. Controle com cuidado o tempo gasto com as questões durante o exame. Faça as contas: a 1ª fase tem duração de 5 horas. Como são 90 questões, você fica com 300 minutos/90 questões = 3 minutos e 20 segundos, em média, para cada um dos testes. Além disso, sendo muitas questões do tipo “leu-entendeu-respondeu”, para resolver em menos de 2 minutos, sobra mais tempo para as questões mais difíceis. Usando bem essas 5 horas, dá até para fazer uma boa revisão. A melhor maneira de conseguir isso é nunca emperrar em uma única questão. Nada de achar, no meio da prova, “uma linda questão”, do tipo que “desafia você a responder”, mas não cede tão fácil a solução. A coisa está
complicando além da conta? Passe para outra pergunta. Não fique “encantado” numa questão. Sempre observe o tempo que falta, lembrando que você também vai precisar passar tudo direitinho para a folha de respostas. Tem gente que erra nessa hora, na folha de respostas! Passar errado respostas pode parecer inacreditável, mas acontece.
O que nos faz errar no exame?
Cinco “dicas de mãe” – simples, mas valem muito As mães sempre dizem aquelas coisas óbvias: “– Não esqueça o agasalho, vai esfriar”; “– Vê se olha com cuidado quando atravessa a rua”; “– Vê se não come só porcariada!”. Nós também temos nossas próprias “dicas de mãe”, que todos já estão cansados de ouvir. Mas, como fazem as mães, achamos que sempre é bom repeti-las:
Serão as pegadinhas? Alguns acham que sim, mas estão errados. Exames sérios, como os da Fuvest, além de buscarem não aplicar pegadinhas, evitam produzi-las. Por isso, quando você olha uma questão e ela parece fácil, é porque deve ser fácil mesmo. Não fique caçando armadilhas, não fique procurando pelo em casca de ovo. Além disso, se algo parece ser uma pegadinha, vale a pena reler o enunciado, pois talvez você tenha entendido errado a pergunta. Uma grande fonte de erros no vestibular é não ler com atenção o que se pede. O problema, portanto, não está em descobrir o que está por trás do enunciado, mas sim entender exatamente o que está lá – claramente escrito – na sua frente. Todas as perguntas devem ser lidas e respondidas com extremo cuidado. Nunca trate as questões com pressa e desatenção, especialmente naqueles assuntos em que você se sente campeão. É assim que surgem os “erros de bobeira”, que podem ser evitados com um simples procedimento: cuidado ao ler e reler os enunciados.
Dica 1 – Local do exame
Para minha carreira qual matéria vale mais?
Deixe material, documento, inscrição, tudo pronto com antecedência e em lugar fácil de achar na hora de sair para a prova. Embora haja esquemas para quem perde o documento (ou não o leva), a coisa fica mais complicada e certamente deixa você muito mais inseguro.
Na 1ª fase não tem questão que vale mais. Ponto ganho é ponto ganho. A classificação final é feita a partir da soma simples dos acertos. A 1ª fase avalia seus conhecimentos gerais. Uma questão certa de Biologia vale o mesmo ponto para quem escolheu Medicina, Direito ou Engenharia. Preconceitos eventuais contra essa ou aquela matéria atrapalham. Achar que questões de Exatas não contam tanto para quem é de Humanas, ou vice-versa, é um erro. O mesmo vale com relação a Biológicas. Deixe a sua área de especialização para depois da matrícula na faculdade. Nas provas de Conhecimentos Gerais da 1ª fase, pular matéria não vai ajudar. Todas as matérias são muito importantes. Mantenha um bom equilíbrio e você chega lá!
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– Eu tinha certeza de que a prova era aqui... Que é isso, perder um ano por ter errado o local do exame? Conheça onde será a prova com antecedência. Procure ver antes como se chega ao local da prova e verifique caminhos alternativos (congestionamentos acontecem). E não conte nunca com caronas duvidosas.
Dica 2 – Comidas – Ai, que dor de barriga! Você abusou? No dia da prova (e na véspera) cai bem aquela refeição saudável, leve, com líquidos e frutas. Não deixe de se alimentar adequadamente, mesmo com o nervosismo apertando o seu estômago.
Dica 3 – Imprevistos – Xiii, furou o pneu logo agora! Não adianta mostrar para o porteiro da escola em que você deveria fazer prova o prego que furou seu pneu. Saia mais cedo para ir fazer a prova. Conte com imprevistos. Lembre-se da Lei de Murphy – se algo pode dar errado, vai dar.
Dica 4 – Material – Manhêêê, onde deixei meu documento?
Dica 5 – Atenção em sala – Ué, eles mudaram a questão 15? Não faça a descoberta depois do exame. Na prova, você deve ficar atento a tudo o que for explicado. Leia com calma as instruções e ouça atentamente todas as recomendações dos fiscais. Às vezes alguma correção é feita na hora. Se o orientador da prova está explicando algo, pare e ouça. Se algo não estiver claro, não hesite em perguntar.
Agora é com você, vai lá e bola na rede!
Jornal ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343
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A causa secreta Machado de Assis arcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente – de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço. Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender, é preciso remontar a origem da situação. Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manuel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele. A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, Rua de S. José, até o Largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No Largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada. Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este, que alguns homens conduziam, escada acima, ensanguentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico. – Já aí vem um, acudiu alguém. Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição,
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desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina, pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara. – Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava, e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo. – Conhecia-o antes? perguntou Garcia. – Não, nunca o vi. Quem é? – É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouveia. – Não sei quem é. Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo, ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto. Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranquilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios. Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número. – Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente. Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as
borlas do chambre no joelho. Gouveia, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu. – Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se. O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples ideia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão. Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum. Tempos depois, estando já formado, e morando na rua de Mata-Cavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a frequência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi. – Sabe que estou casado? – Não sabia. – Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo. – Domingo? – Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo. Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido. – Não, respondeu a moça. – Vai ouvir uma ação bonita. – Não vale a pena, interrompeu Fortunato. – A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico. Contou o caso da rua de D. Manuel. A moça
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ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco. – Singular homem! pensou Garcia. Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo. – Valeu? perguntou Fortunato. – Valeu o quê? – Vamos fundar uma casa de saúde? – Não valeu nada; estou brincando. – Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve. Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a ideia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estreia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a ideia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas. Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua de D. Manuel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos. – Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele. A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo, para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada. No começo de outubro, deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os
doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências. – Mas a senhora mesma... Maria Luísa acudiu, sorrindo: – Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada. – Deixe ver o pulso. – Não tenho nada. Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo. Dois dias depois – exatamente o dia em que os vemos agora – Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita. – Que é? perguntou-lhe. – O rato! o rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se. Garcia lembrou-se que, na véspera, ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida, desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado. – Mate-o logo! disse-lhe. – Já vai. E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. Garcia, defronte, conseguira dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era
verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue. Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida. – Castiga sem raiva, pensou o médico, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem. Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula. Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente: – Fracalhona! E voltando-se para o médico: – Há de crer que quase desmaiou? Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar. Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal. Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só. De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco. – Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois. Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da sa-
CONTO leta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado. Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços. Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para
beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa. Extraído de: Onze contos de Machado de Assis, Ed. Núcleo, 1992.
VOCABULÁRIO algibeiras: bolsos. borbotões: jorros, jatos impetuosos. borlas do chambre: penduricalho do roupão. Calígula: imperador romano, nasceu no ano 12 da Era Cristã. Reinou de 37 a 41; para alguns, foi a personificação da incompetência e da
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crueldade. Costumava dizer aos seus súditos: “Que me odeiem, mas que me temam!”. cáusticos: queimados, feridos. compleição: temperamento, constituição física. espírito de vinho: produto alcoólico resultante da destilação do vinho. estúrdio: extravagância, esquisitice. fâmulos: criados, servidores. intrépidos: corajosos, audazes. malta de capoeiras: bando de negros que assalta e produz desordens. sui generis: expressão latina, significa o que não tem semelhança com nenhum outro; sem igual. tílburi: carro de duas rodas e dois assentos, sem boleia, com capota, e puxado por um só animal. tísica: tuberculose pulmonar.
SERVIÇO DE VESTIBULAR Centro Universitário Belas Artes de São Paulo Período de inscrição: até 2 de dezembro de 2013. Presencial ou via Internet. Endereço da faculdade: Rua Dr. Álvaro Alvim, 90 – CEP 04018-010 – Vila Mariana – São Paulo – SP – Fone: (11) 5576-7300. Requisito: taxa de R$ 60,00 a 80,00. Cursos e vagas: consultar site www.belasartes.br Exames: dias 5 ou 7 de dezembro de 2013.
Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero Período de inscrição: até 25 de novembro de 2013. Somente via Internet. Endereço da faculdade: Av. Paulista, 900 – CEP 01310-940 – Bela Vista – São Paulo – SP – Fone: (11) 3170-5979. Requisito: taxa de R$ 140,00. Cursos e vagas: consultar site www.casperlibero.edu.br Exame: dia 15 de dezembro de 2013. Leituras obrigatórias: • Til – José de Alencar. • O fio das missangas – Mia Couto. • Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis. • Sentimento do mundo – Carlos Drummond de Andrade. • O cortiço – Aluísio Azevedo. • Leite derramado – Chico Buarque. Filmes obrigatórios: • A montanha dos sete abutres – Billy Wilder. • São Paulo S/A – Luiz Sérgio Person. • Sob a névoa da guerra – Errol Morris. • Jogo de cena – Eduardo Coutinho.
Centro Universitário FEI Período de inscrição: até 22 de novembro de 2013. Presencial ou via Internet. Endereço da faculdade: Av. Humberto de Alencar Castelo Branco, 3 972 – CEP 09850-901 – Bairro Assunção – São Bernardo do Campo – SP – Fone: (11) 4353-2900. Campus SP: Rua Tamandoré, 688 – CEP 01525-000 – São Paulo – SP – Fone: (11) 3274-5200.
Requisito: taxa de R$ 90,00 pela internet ou R$ 110,00 presencial. Cursos e vagas: consultar site www.fei.edu.br Exames: dias 30 de novembro e 1º dezembro de 2013.
Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-Sul) Período de inscrição: até 4 de dezembro de 2013. Presencial ou via Internet. Endereço da faculdade: Rua Guilherme Schell, 350 – CEP 90640-040 – Santo Antônio – Porto Alegre – RS – Fone: (51) 3218-1300/3218-1400. Requisito: taxa de R$ 80,00. Cursos e vagas: consultar site www.espm.br Exames: dia 7 de dezembro de 2013.
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) Período de inscrição: até 27 de novembro de 2013. Presencial ou via Internet. Endereço da faculdade: Av. Ipiranga, 6 681 – CEP 90619-900 – Partenon – Porto Alegre – RS – Fone: (51) 33203557 (a partir das 13h30). Requisito: taxa de R$ 95,00. Cursos e vagas: consultar site www.pucrs.br/vestibular Exames: dias 7 e 8 de dezembro de 2013.
Sociedade Universitária para o Ensino Médico Assistencial (Suprema) Período de inscrição: até 22 de novembro de 2013. Somente via Internet. Endereço da faculdade: Alameda Salvaterra, 200 – CEP 36033-003 – Salvaterra – Juiz de Fora – MG – Fone: (32) 2101-5000. Requisito: taxa de R$ 30,00 para enfermagem, fisioterapia, farmácia e odontologia; taxa de R$ 400,00 para medicina. Cursos e vagas: consultar site www.suprema.edu.br Exame: dia 1º de dezembro de 2013.
Universidade Católica de Pelotas (Ucpel) Período de inscrição: até 18 de novembro de 2013. Presencial ou via Internet. Endereço da faculdade: Félix da Cunha, 412 – CEP 96010-000 – Centro – Pelotas – RS – Fone: (53) 2128-8269. Requisito: taxa de R$ 80,00. Cursos e vagas: consultar site www.ucpel.edu.br Exame: dia 24 de novembro de 2013.
Universidade Católica do Salvador (Ucsal) Período de inscrição: até 29 de novembro de 2013, via Internet, ou pelo Enem até 14 de novembro. Endereço da faculdade: Av. Cardeal da Silva, 205 – CEP 40231-902 – Federação – Salvador – BA – Fone: (71) 3203-8902. Requisito: taxa de R$ 25,00. Cursos e vagas: consultar site www.ucsal.br Exame: dia 30 de novembro de 2013.
Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Período de inscrição: até 6 de dezembro de 2013. Somente via Internet. Endereço da faculdade: Rua do Príncipe, 526 – CEP 50050-900 – Boa Vista – Recife – PE – Fone: (81) 2119-4143. Requisito: taxa de R$ 100,00. Cursos e vagas: consultar site www.unicap.br Exame: dia 14 de dezembro de 2013.
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) Período de inscrição: até 16 de novembro de 2013. Presencial ou via Internet. Endereço da faculdade: Av. Sete de Setembro, 1 621 – CEP 99700-000 – Erechim – RS – Fone: (54) 3520-9000. Requisito: taxa de R$ 50,00; R$ 30,00 para treineiros. Cursos e vagas: consultar site www.vestibular.uri.br Exame: dia 23 de novembro de 2013.
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ARTIGO
Impactos e desequilíbrios Edson Alberto Carvalho Ferreira
Da aldeia à vila, do bairro ao município, da província ao país, das regiões aos continentes: qualquer impacto socioambiental estará sempre atingindo o sistema finito Terra como um todo. s marcantes transformações tecnológicas e socioeconômicas do século XX, principalmente após o término da Segunda Guerra Mundial, ampliaram não só as escalas dos impactos no meio ambiente como também intensificaram os problemas socioambientais em todas as dimensões da biosfera. A Revolução Científica e Tecnológica (com suas inovações nos processos de produção e distribuição e nos padrões de consumo), a “explosão demográfica” e a extensão mundial do crescimento urbano-industrial, bem como todas as transformações socioeconômicas relacionadas a esses fenômenos, implicaram um grande aumento dos processos de ocupação-valorização de terras, de utilização de recursos naturais e de fortes transformações dos ambientes fisiográficos e ecológicos.
A
O “improvável” se tornando uma incômoda realidade
A recente divulgação do chamado IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), órgão da ONU que reuniu em Paris renomados especialistas e pesquisadores das condições climáticas, tornou públicas e notórias duas hipóteses incômodas – até então passíveis de incertezas e contestações. A primeira é a de que o planeta está esquentando de forma intensa e crescente; a segunda é a de que a ação antrópica é a principal responsável por esse aquecimento.
Escalas e amplitudes dos impactos ambientais
Os chamados impactos socioambientais, com suas causas e efeitos, variam não só no tempo como também nos diversos espaços de suas ocorrências. Relacionados a fenômenos naturais, estão cada vez mais marcados pela interferência das atividades humanas, ou seja, a chamada ação antrópica. Isso não só aumenta a complexidade desses fenômenos, como complica ainda mais seu entendimento e, principalmente, as condições de sua previsibilidade e de seu controle. Assim, têm-se impactos de escala global como a intensificação do efeito estufa e a poluição dos oceanos. Há outros impactos que ocorrem, por sua vez, na amplitude de escalas mais regionais ou, mesmo, mais locais como a poluição dos mares e do ar, de rios e lagos, a chuva ácida, a devastação de biomassas e a destruição de biodiversidade, o avanço da desertificação, as enchentes, os deslizamentos, os fenômenos de inversão térmica e de formação de “ilhas de calor”, entre outros. Certamente há quem acredite que esses são problemas isolados, desvinculados. Há, no entanto, cada vez mais consenso nos meios científicos de que todos os fenômenos de impactos socioambientais, nas suas diferentes escalas de ocorrência, estão inter-relacionados nas suas causas e nos seus efeitos.
O relatório do IPCC de fevereiro de 2007 mostra de maneira inequívoca que aquilo que parecia improvável é agora certo: está se intensificando o chamado efeito estufa e, consequentemente, o aquecimento global da Terra. Sem dúvida, isso se deve ao alarmante aumento da produção e à liberação de gases do chamado efeito estufa. Dentre os principais, o destaque é para o CO 2 (dióxido de carbono) e o CH4 (metano), resultantes do grande aumento da atividade industrial, da circulação de veículos automotores, das queimadas, da expansão da agropecuária e, no geral, dos padrões de produção e de consumo da população. Algumas dúvidas diante de indesejáveis certezas
Por trás das perguntas a seguir, há questões antigas que permanecem; há também indagações novas que estão exigindo respostas mais adequadas a problemas atuais e futuros cada vez
mais complexos e difíceis de enfrentar e solucionar: • Quais são os limites das possibilidades da biosfera do planeta Terra, mantendo os atuais padrões de produção e de consumo que, segundo muitos especialistas, já estão consumindo 20% além da capacidade de reposição da biosfera e, o que é pior, com o deficit crescendo anualmente? • Como manter e, sobretudo, ampliar para toda a humanidade os padrões de consumo e os estilos de vida (a tal “partilha igualitária do ter”) de menos de 10% da população mundial e que concentra 80% da renda e do consumo na Terra? • Como enfrentar e superar os impasses para viabilização de um efetivo “desenvolvimento sustentável” com a manutenção de padrões de produção e de consumo, vinculados a uma matriz energética baseada em fontes não renováveis de energia, com a expansão da agropecuária com enormes desperdícios, com o processo de urbanização desmesurado e, sobretudo, com a fragilidade das instituições locais, regionais e, principalmente, globais para o ordenamento dos processos de crescimento e desenvolvimento econômico? • Diante dos, cada vez mais evidentes, efeitos desastrosos do aquecimento global, das mudanças climáticas e da falta de políticas locais e globais de reparação, não estaríamos frente ao dilema: mitigar os efeitos ou se adaptar para sobreviver? Segundo a conclusão do último relatório do IPCC de maio de 2007 (lançado na reunião de Bangcoc, Tailândia), intitulado “Mitigação da mudança climática” e que lista as principais soluções para o problema de como reduzir as emissões globais de gases do efeito estufa, é possível mitigar os problemas com estratégias de ação e tecnologias. Para tanto, recomenda a urgência na ampliação do uso de tecnologias já disponíveis e de novas tecnologias que reduzam não só o consumo geral da energia, bem como, e principalmente, a emissão de gases do efeito estufa em todos os setores da economia.
ARTIGO
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Vírus da dengue é mais estável do que se pensava Karina Toledo
E
hospedeiros muito diferentes – mosquito e homem – para completar seu ciclo de transmissão. “Do ponto de vista evolutivo, essa alternância entre um vertebrado e um invertebrado exerce uma pressão muito forte para que o DENV não mude muito. Se ele acumular muitas mutações, pode perder a adaptação que o torna capaz de se replicar tanto no homem quanto no mosquito. Esse tipo de mecanismo evolutivo já foi demonstrado para o vírus causador da febre amarela”, disse Romano. UCSC
m um artigo publicado em agosto na revista PLoS One, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) descrevem que o vírus da dengue (DENV) sofre mutações em um ritmo muito mais lento do que se imaginava – o que aumenta as chances de se encontrar uma vacina eficaz contra a doença. Para chegar a tal conclusão, os cientistas sequenciaram o genoma completo de milhares de partículas virais encontradas em dez amostras de sangue de pacientes diagnosticados durante a epidemia que atingiu a Baixada Santista em 2010. Na ocasião, foram notificados 33 mil casos de dengue tipo 2 na região, ainda que os especialistas estimem que o número real de infectados seja pelo menos cinco vezes maior. De acordo com os resultados, a variabilidade genética do vírus encontrada dentro de um mesmo indivíduo (intra-hospedeiro) foi de aproximadamente 0,002% – muito menor do que a apontada em estudos anteriores, contou Camila Malta Romano, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, da USP, e autora da pesquisa que contou com apoio da FAPESP. “Os trabalhos anteriores usaram métodos tradicionais de sequenciamento, bem mais trabalhosos e caros. Por isso, apenas uma determinada região do genoma era analisada e nem todas as partículas virais eram amostradas. Em nossa pesquisa, graças às técnicas de sequenciamento em larga escala, geramos praticamente uma sequência completa para cada partícula de vírus existente na amostra, o que dá uma profundidade de análise muito maior”, contou. Como as amostras foram coletadas em diferentes momentos da epidemia, entre fevereiro e junho, também foi possível observar que o vírus se manteve praticamente estável durante todo o surto, acrescentou Romano. “Acreditava-se que a variabilidade genética do DENV fosse muito mais alta pelo fato de ele ser um vírus de RNA, assim como o HIV (causador da Aids) e o HCV (causador da hepatite C). Ao contrário dos vírus de DNA, que usam o maquinário celular do hospedeiro para se replicar, os vírus de RNA se replicam por conta própria. Isso significa que não há mecanismos de correção de erros no processo e, por conta disso, é esperada pelo menos uma mutação a cada progênie”, explicou a pesquisadora. Uma das hipóteses dos cientistas para explicar a menor variabilidade genética do DENV em relação aos outros vírus de RNA é o fato de ele ter de se alternar entre dois
Em estudo publicado na PLoS One, cientistas da USP apresentam os resultados do sequenciamento do genoma completo de milhares de partículas virais encontradas em amostras de pacientes. Outra possível explicação para a maior estabilidade do DENV está relacionada ao fato de a dengue ser uma infecção aguda – que dura entre 5 e 10 dias. “O organismo não tem tempo para montar uma resposta imunológica específica contra o vírus. É diferente do HIV, por exemplo, que causa uma doença crônica, está em constante briga com o sistema imune e precisa se modificar o tempo todo para driblar as defesas do organismo. No caso do DENV, essa pressão seletiva é menor”, afirmou Romano.
Implicações Segundo o infectologista e imunologista Esper Georges Kallás, professor da disciplina de Imunologia Clínica e Alergia da Faculdade de Medicina da USP e coautor do estudo, as informações detalhadas sobre o genoma do DENV obtidas no estudo poderão ajudar a identificar regiões do vírus capazes de ativar uma resposta imunológica – o que abre caminho para o desenvolvimento de uma vacina. “Como o vírus da dengue é menos diverso do que se imaginava, aumentam as chances de um imunizante funcionar. Embora tenhamos estudado apenas o sorotipo 2, temos uma forte suspeita de que essa pouca variabilidade deve ocorrer também
nos demais sorotipos”, afirmou Kallás. O grande desafio, segundo o pesquisador, é encontrar a combinação certa de antígenos capazes de induzir uma resposta imunológica eficaz contra os quatro sorotipos da dengue ao mesmo tempo. “Sabemos que as manifestações mais graves da doença estão associadas a uma segunda infecção. Se você fizer uma vacina que protege apenas parcialmente, pode, portanto, estar dando um tiro no pé. A pessoa imunizada, caso seja infectada pelo sorotipo contra o qual a vacina não é eficaz, vai correr maior risco de desenvolver a forma hemorrágica do que uma pessoa não vacinada e que nunca teve dengue”, explicou Kallás. A análise das amostras coletadas durante a epidemia da Baixada Santista renderam outro artigo publicado em 2010 também na PLoS One. Na ocasião, os pesquisadores mostraram que o surto no litoral paulista estava sendo causado por uma linhagem do sorotipo 2 do vírus oriunda do Caribe. Por meio de análises filogenéticas, o grupo revelou também que a introdução dessa linhagem no Estado de São Paulo ocorreu muito antes de a epidemia acontecer – algum momento entre 2003 e 2005. “Esse resultado serve de alerta para a necessidade de aumentar a vigilância epidemiológica. O vírus entra em uma determinada região e pode ficar um tempo despercebido, mas fatalmente vai acabar explodindo e causando uma epidemia”, avaliou Romano. No momento, a pesquisadora coordena um outro projeto de pesquisa apoiado pela FAPESP que tem como objetivo descobrir como ocorrem as mutações adaptativas do DENV. “O vírus está se adaptando e em algumas regiões ele já é capaz de infectar outros mosquitos do gênero Aedes – além do A. aegypti. Queremos entender como isso acontece, uma vez que acabamos de mostrar que o vírus muda pouco. Entender o que pode e o que não pode mudar quando ele salta de um hospedeiro para outro”, contou. Para alcançar esse objetivo, os pesquisadores estão infectando mosquitos do gênero Aedes e – assim como fizeram com as amostras de sangue humano – analisando o genoma dos milhares de frações virais presentes nos insetos. Além disso, o grupo acaba de iniciar uma nova linha de pesquisa que tem como objetivo desenvolver uma droga antiviral eficaz contra o DENV. Extraído de: Agência Fapesp – Divulgando a cultura científica, ago./2013.
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POIS É, POESIA
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) Ainda assim, sou alguém.
A tarde suave e os ranchos que passam
Sou o Descobridor da Natureza.
Fitados com interesse da janela,
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
Conforme calha ou não calha,
Trago ao Universo um novo Universo
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Podendo às vezes dizer o que penso,
Porque trago ao Universo ele-próprio.
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
XLVI
Deste modo ou daquele modo, E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Isto sinto e isto escrevo
Como se escrever não fosse uma cousa feita de
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
[gestos, Como se escrever fosse uma cousa que me [acontecesse Como dar-me o sol de fora.
[leito, E lá fora um grande silêncio como um deus que
Que são cinco horas do amanhecer
[dorme.
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça Por cima do muro do horizonte,
XLV
Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos Agarrando o cimo do muro
Procuro dizer o que sinto
Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Do horizonte cheio de montes baixos.
Sem pensar em que o sinto.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores
Procuro encostar as palavras à ideia
[apenas.
XLIII
E não precisar dum corredor Do pensamento para as palavras. Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. O meu pensamento só muito devagar atravessa o
Renque e o plural árvores não são cousas, são
Que a passagem do animal, que fica lembrada no [chão.
[rio a nado Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
[nomes.
Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Tristes das almas humanas, que põem tudo em [ordem,
A ave passa e esquece, e assim deve ser. O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Que traçam linhas de cousa a cousa.
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
Que põem letreiros com nomes nas árvores
A recordação é uma traição à Natureza,
E desenham paralelos de latitude e longitude
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
Sobre a própria terra inocente e mais verde e
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Procuro despir-me do que aprendi,
[absolutamente reais,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me [ensinaram,
[florida do que isso!
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, Mas um animal humano que a Natureza produziu.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem
Leve, leve, muito leve,
XLIX
[sequer como um homem,
XIII
Um vento muito leve passa,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E eu não sei o que penso
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Nem procuro sabê-lo.
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
Mas indo sempre no meu caminho como um cego [teimoso.
O dia cheio de sol, ou suave de chuva, Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
E vai-se, sempre muito leve.
Extraído de: Poemas completos de Alberto Caeiro. In: Obra poética, Ed. Aguilar, 1965.
(ENTRE PARÊNTESIS)
A mais velha toca piano RESPOSTA Observe que o visitante sabia o número da casa e disse que, sabendo disso e que o produto é 36, ainda não dava para descobrir as idades. Isto significava que o número da casa era 13, pois é a única soma de três inteiros positivos cujo produto é 36 para qual há mais de uma possibilidade (as possibilidades 5 e 6). Com a informação adicional de que a mais velha toca piano, ficou claro que há uma mais velha, o que exclui a possibilidade 6. Logo, as idades são 9, 2 e 2. 4, 3, 3
8
6, 3, 2
7
10
6, 6, 1
6
9, 2, 2
5
9, 4, 1
4
12, 3, 1
3
18, 2, 1
2
38
36, 1, 1
1
Soma
Possibilidades
11 13 13 14 16 21
As possibilidades para que o produto das idades seja 36, com a respectiva soma, são:
Dois amigos reencontram-se, depois de muitos anos, na casa de um deles. O visitante, após os cumprimentos usuais, inicia o seguinte diálogo: – Soube que você se casou, mas não sei se tem filhos. – Sim, tenho três filhas. Infelizmente não estão aqui para que eu possa apresentá-las. – Posso saber a idade delas? – Para lembrar nossos velhos tempos, vou apresentar-lhe um problema, pois sei que você gosta deles: o produto das idades das minhas três filhas é 36 e a soma das idades delas é o número de minha casa. – Sei o número da sua casa, mas mesmo assim ainda não dá para saber as idades. – Mais um dado: a mais velha toca piano. – Então fica fácil. As idades são... (Para o leitor, o problema consiste em dizer a idade das três filhas.)