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Jornal do Vestibulando
ENSINO, INFORMAÇÃO E CULTURA
JORNAL ETAPA – 2013 • DE 12/12 A 26/12
de Lista os d a v apro PA A T E do
CONTO
Uns braços – Machado de Assis
ENTRE PARÊNTESIS
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Cesto de pães
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ARTIGO Linguagem, significado e comunicação em bebês
ARTIGO
Einstein sabia somar?
Desejamos a você um feliz Natal...
POIS É, POESIA
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Mário de Sá-Carneiro
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... e um excelente ano novo!!!
Jornal do Vestibulando
Jornal ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343
CONTO
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Uns braços Machado de Assis nácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco. – Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco! – Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura! D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens. Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870. Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado. Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo. Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe
I
lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro; nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos. Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil coisas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga. Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole, alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários, ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas e encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas; mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, – ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória. – Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador. Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde, jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada. “Deixe estar” – pensou ele um dia – “fujo daqui e não volto mais.” Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Aguentava toda a trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa. Rejeitou a ideia logo, uma criança! Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim. – Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa. – Não tenho nada. – Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos... E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redarguia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola; e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: – vadio, e o côvado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo. D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer. Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral, que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a ideia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas.
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CONTO
Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto. – Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias. Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma ideia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê. D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria. A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era. Um domingo, – nunca ele esqueceu esse domingo, – estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d’água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal. Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Es-
tava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma; eram os seus mesmos braços. É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até a porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez, cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal. Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude. D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dois, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. “Uma criança!” disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta ideia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos. “Uma criança!” E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas ideias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, – dormir e talvez sonhar. Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras
dela, que eram lindas, cálidas, principalmente novas, – ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas, três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor, com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que, inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca. Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na ideia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida, mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calefrio. Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída: – Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me. – Sim, senhor. A Sra. D. Severina... – Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela. Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera; não era outra coisa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana: – E foi um sonho! um simples sonho! Extraído de: Várias histórias.
ARTIGO
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Einstein sabia somar? Carlos Eduardo Bindi
m 1905, um jovem de 25 anos inaugurou uma das mais fantásticas realizações humanas. Desse jovem surgiram a explicação de onde vem a energia que sustenta a vida e a teoria que permitiu ao homem reproduzir em nosso planeta as fornalhas estelares. Além de chegar a mais algumas hipóteses estranhas (mas verdadeiras) que admitem a possibilidade de crianças nascidas gêmeas poderem vir a apresentar enormes diferenças entre suas idades biológicas. Basicamente tudo começou quando o nosso rapaz decidiu negar um dos mais bem estabelecidos conceitos da ciência, como iremos contar a seguir. Vejamos, pois, um pouco dessa história. Todo mundo sabe que se uma pessoa sobe um degrau por segundo numa escada rolante e se a própria escada sobe a 2 degraus por segundo, o resultado será alguém subindo a 3 degraus por segundo. Nem é preciso estudar Física para saber isso. É só ir às compras num shopping center. A lei da composição de movimentos (ou da adição de velocidades) generaliza esse fato simples: v = v1 + v2, etc. É esta a raiz do princípio da relatividade de Newton e Galileu, uma das leis mais básicas e fundamentais da chamada Física Clássica.
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Algo que havia sido estabelecido pouco depois da metade do século XIX, por um grande escocês ao qual muito devemos do nosso mundo cheio de comunicação sem fio. Vamos nos demorar um pouco neste escocês, para finalmente chegarmos ao estranho de nossa questão, quando juntando 1 e 2 não fazemos 3.
Coincidência?
O grande Newton Quando se fala em Física Clássica, o grande nome é Isaac Newton. Conhece? O que nasceu em 1642, ano em que morreu outro grande cientista, Galileu Galilei. Newton foi um físico que criou um dos mais magníficos livros já escritos, o Principia (como é conhecido seu Princípios matemáticos da Filosofia Natural), no qual deduziu como se movem objetos sob a ação de forças aceleradoras e gravitacionais. Explicou como calcular o movimento nos céus e na terra. As moderníssimas naves que cruzam o espaço podem atingir elegantemente um planeta distante bem no alvo pretendido depois de um balé executado sob o comando de fórmulas escritas por Newton há mais de 300 anos. Nem é preciso ressaltar que essa mecânica newtoniana tem qualidades enormes para conduzir um disparo de foguete com tamanha precisão. Não é de admirar que muitos consideram Newton o maior cientista de todos os tempos. E é muito fácil entender por que no começo do século XX todo mundo tirava o chapéu para o grande Newton sem ousar mexer em nenhum de seus pressupostos.
O jovem Albert Bem, quase todo mundo. Um jovem que entrou no século XX com 20 anos tinha suas dúvidas. Albert era seu nome e seria lembrado depois pelo sobrenome e por uma foto indiscreta em sua velhice, com a língua de fora. Por que dúvidas? Rebeldia de jovem? Pura criatividade com ideias surgindo da mera genialidade? Na verdade, o que intrigava Albert era algo estranho que todo mundo conhecia na época.
das que na modalidade do infravermelho fazem funcionar nosso controle remoto. Ou que na forma dos raios X fazem a imagem de nossos pulmões e ossos ser gravada na radiografia. Que como ultravioleta produzem o bronzeamento da pele (e câncer também). E, finalmente, ondas eletromagnéticas que na forma de luz fazem-nos enxergar as cores das flores, o azul do céu, o brilhar do sol.
Maxwell: teoria que revela o invisível O físico, fantástico, a quem muito devemos hoje é James Clerk Maxwell. Ele nasceu em 1831, exatamente quando um grande experimentador chamado Michael Faraday descobria que ímãs em movimento dentro de fios enrolados podem induzir neles corrente elétrica. Faraday inventou a ideia de campos de forças, elétricos e magnéticos. Maxwell, um excelente matemático, primeiramente traduziu as ideias de campo criadas por Faraday em fórmulas (de um tipo chamado “equações diferenciais parciais”). Uma de suas fórmulas expressava que campos magnéticos variáveis no tempo se associavam a campos elétricos variáveis no espaço. Até aí não produziu nenhuma novidade, a não ser formas elegantes de cálculo para velhas ideias de Faraday e outros. Porém... tchan, tchan, tchan, tchannnn… Maxwell resolveu imaginar o que ocorreria se um campo elétrico variasse no tempo. Por volta de 1866 formulou uma outra lei, que não tirou de nenhuma experiência, que foi produto de suas considerações teóricas (de haver uma simetria entre fenômenos elétricos e magnéticos). Com esse passo ele chegou por dedução formal (por fórmulas) à hipótese da existência de algo que denominou ondas eletromagnéticas. Sim, as ondas eletromagnéticas que hoje transportam nossos programas de rádio e televisão. As on-
Ondas eletromagnéticas eram apenas hipótese, não uma percepção experimental do que havia. Em 1866, não se conheciam ondas de rádio, de raios X, do ultravioleta, do infravermelho. Embora existissem, essas ondas eram despercebidas na natureza. Delas, somente a luz era perceptível,tendojásidobemtrabalhadaporexperiências e com leis bem estabelecidas explicando dos espelhos às cores do arco-íris (Newton também havia cuidado disso). Maxwell tirou suas ondas a partir de algumas operações matemáticas. Concluiu-se que a luz é uma onda eletromagnética porque ao deduzir a velocidade dessas ondas (só com matemática e conhecimentos nada ligados à luz) chega-se a 300 mil quilômetros por segundo, aproximadamente. Do lápis surge um número que as experiências já haviam mostrado ser precisamente o da velocidade da luz no vácuo. E mais: ondas eletromagnéticas se movem, pelas equações de Maxwell, do jeitinho que a luz faz, com reflexões, refrações, difrações e interferências. Que a luz até pudesse ser uma onda eletromagnética não seria, portanto, estranho. Mas, na época da hipótese de Maxwell, muitos duvidaram que houvesse, com frequências diferentes da luz, outras ondas, não visíveis. Não demorou muito, entretanto, para essa dúvida ser eliminada. Em 1888, um alemão chamado Heinrich Hertz (adivinhe: por que frequência mede-se em Hertz?) conseguiu fazer osciladores que geravam ondas não visíveis do tipo de Maxwell. Conseguiu fazer detectores que as recebiam. E conseguiu medir a velocidade dessas ondas. Não deu outra. Elas avançavam nos mesmos impressionantes 300 mil quilômetros por segundo da luz, no vácuo. Como previra Maxwell. Fantástico. Pouco depois se descobririam os raios X e, menos de 50 anos após o papel ter antecipado aquilo que os olhos não percebiam, o homem passou a se comunicar com ajuda do invisível. Primeiro foi o rádio, depois a TV. Hoje o celular. E vivemos até assustados com tanta onda em nossa volta. Mas o mais fantástico não foi dito ainda.
A soma errada Falamos no começo da escada rolante. Vamos agora a uma estrada. Estamos indo para um sítio distante 120 km encontrar um amigo e caminhamos a 60 km/h. Se ele estiver parado, levaremos 2 horas para encontrá-lo. Mas se ele vier a 60 km/h em nossa direção, nós iremos achá-lo após 1 hora apenas. Em Física há muitos probleminhas com dados assim. Dizemos que a velocidade nossa relativa ao amigo que vem ao nosso encontro é de 60 + 60 =
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ARTIGO
= 120 km/h. Faz sentido, pois a distância nossa, de 120 km, reduziu-se a zero em 1 hora. Velocidades são algo relativo. Dependem do referencial que usamos. Em relação ao amigo andamos 120 km/h. Em relação ao sítio mantemos 60 km/h (para chegar ao sítio precisaremos ainda das 2 horas). Mas as equações de Maxwell pareciam fugir a este esquema. A velocidade de 300 mil quilômetros por segundo surgia de um cálculo em que entravam constantes experimentais da eletricidade e do magnetismo sem qualquer referencial. Era algo que podemos dizer absoluto 1 = 300 000 km/s, sendo (v = μ0 $ ε0 μ0 = constante de permeabilidade magnética do meio e ε0 = constante de permissividade elétrica do meio). Se Newton e Galileu estavam certos, isso estava errado. Pois pelas leis de Maxwell, se formos depressa ao encontro da luz, ela continuará chegando até nós do mesmo modo que se estivermos parados. Se corrermos para a luz com velocidade de 100 000 km/s e ela vier para nós com seus 300 000 km/s, o resultado será que ela continuará com os mesmos 300 000 km/s. A soma dos 100 com os 300 não vai a 400. Qual seria o erro de Maxwell? Como corrigir o problema?
Invertendo a solução No final do século XIX, algumas experiências mostravam que aparentemente a luz realmente exibia sempre a mesma velocidade, independentemente de medirmos essa velocidade nos movendo na sua direção ou em direção contrária a ela. Várias tentativas de explicar isso foram feitas. Uma delas, bem engenhosa, usava a ideia de que os objetos são feitos por cargas negativas esféricas que se achatavam na direção do movimento e que isso permitiria explicar, numericamente, a aparente falta de acerto na adição das velocidades. De fato, o que se tentava era manter as ideias poderosas sobre movimento de Newton e ajustar as coisas classicamente para não rejeitar Maxwell. É nesse ponto que o jovem Albert Einstein, de 25 anos, resolve parar de fazer o rabo balançar o cachorro.
de Newton deixa de se aplicar.
Pensa: Newton é grande porque inova fazendo uma sinfonia matemática para o movimento da natureza. Maxwell é fantástico, pois revela coisas mais incríveis ainda no mundo. Todas as tentativas de ajustar Maxwell a Newton são como o rabo que tenta mover o cachorro. Ele então ousa uma hipótese, que transforma em postulado de sua teoria: a luz tem velocidade constante e independe de qualquer referencial. Mas isso cria problemas para as leis da Física conhecidas. Einstein resolve os problemas mudando o princípio clássico da composição de velocidades para que, tudo ajustado, permita explicar como a soma das velocidades pode ser aquela que conhecemos na escada rolante do shopping ao mesmo tempo que nunca permita que cheguemos a somar mais de 300 mil quilômetros por segundo. Para isso ele precisa usar um referencial temporal e um referencial de distâncias que dependem do movimento relativo. Einstein cria assim, em 1905, a chamada Teoria da Relatividade Especial. Para ajustar a soma de velocidades, ele abandona ideias clássicas de movimento. Para preservar a constância da velocidade da luz, que na sua teoria torna-se uma hipótese de partida, ele relativiza os parâmetros mesmos que medem espaço e tempo. Einstein presta assim sua grande homenagem a Maxwell, cuja teoria fica completamente justificada. Para isso ele desmonta algumas hipóteses de Newton. Se Einstein tem razão, por que Newton teve e tem tanto sucesso na explicação do movimento?
A fórmula mais famosa do mundo Maxwell só foi totalmente aceito quando se provou efetivamente existir aquilo que sua teoria antecipava. A relatividade de Einstein acabou mostrando sua força quando, num apêndice a seus cálculos, o grande cientista deduziu mais uma coisinha. Que energia e massa tinham uma tradução. E = m · c2 Por trás da enorme simplicidade dessa equação, a mais famosa de todas as fórmulas da Física, Einstein intuiu a possibilidade de se obter gigantescas quantidades de energia com mínimas quantidades de matéria. Observações posteriores foram confirmando sua hipótese. A bomba atômica foi a mais prática e trágica demonstração de seu acerto teórico. Einstein tinha pouco mais de 25 anos quando publicou seu artigo sobre aquilo que veio a se chamar de Teoria da Relatividade Especial. Ele fez mais dois outros artigos fundamentais no mesmo ano. Aos 36 anos, ele produz uma das mais magistrais teorias, hoje utilizada para explicar a origem e o desenvolvimento do universo. Ela foi a Teoria da Relatividade Geral, que substituiu a Teoria da Gravidade Clássica de Newton. Buracos negros e toda a moderna ciência do cosmos se apoiam nessa teoria. Experiências feitas em 1919 durante um eclipse solar, no Brasil e na África, ajudaram a comprovar a teoria geral de Einstein, que previa haver desvio da luz por campos gravitacionais. Um feito tão impressionante que Einstein foi aclamado como herói por todo mundo. As manchetes dos jornais saudaram o fato: “Teoria de Einstein triunfa”. Após 1920, Einstein passou o resto da vida tentando uma superteoria para unir todo o conhecimento físico do átomo às estrelas. Não chegou lá, mas aquilo que em sua juventude nos legou, mudou completamente o mundo (teórico e prático) em que vivemos. Ah... sim, e ele mostrou que sabia somar.
Verdade como aproximação A questão é que os problemas surgem para a mecânica clássica apenas quando usamos movimentos com velocidades extremamente altas. Nos casos comuns, tudo se resolve com o princípio clássico da relatividade, com suas somas bem-comportadas e simples. Nas velocidades comuns, o sistema clássico é muito adequado e bem aproximadamente correto. Mesmo foguetes muito rápidos não fogem do padrão clássico. A relatividade mostra sua força em extremos nos quais a mecânica
(ENTRE PARÊNTESIS)
Cesto de pães RESPOSTA O que implica x = 7. 8 Mas então os pães se acabaram. Logo
x−7
= 0. 4
Depois da 3ª freguesa, o garoto ficou com
x−3
no cesto. Depois da 2ª freguesa, o garoto ficou com
2 x−1
Depois da 1ª freguesa, o garoto ficou com x − d Seja x o número de pães que havia no cesto.
−f −f 2 x
4 2 x−3 2 2 x−1 2
+
+
1
+
2 1
2 1
8
p pães, isto é, com
x−7
pães.
4
p pães, isto é, com
n pães, isto é, com
x−3
2 x−1
pães.
pães
Um garoto saiu à rua com um cesto de pães para vender. Na primeira casa a freguesa lhe pediu: – Quero a metade do que você tem aí mais meio pão. Na segunda casa a freguesa também lhe pediu: – Quero a metade do que você tem aí mais meio pão. Na terceira casa a freguesa, para variar, lhe pediu: – Quero a metade do que você tem aí mais meio pão. Com isso os pães acabaram. Pergunta-se: Quantos pães havia no cesto?
ARTIGO
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Linguagem, significado e comunicação em bebês Karina Toledo
ser humano é um “ser da linguagem”. Desde o nascimento, e muito antes de aprender a falar, já é capaz de dialogar e de negociar com parceiros – sejam eles adultos ou outros bebês – por meio de olhares, gestos, posturas, vocalizações e outros recursos próprios da idade. Todo o seu corpo é meio de apreensão, expressão e significação. A análise é da especialista em Psicologia do Desenvolvimento Humano Kátia de Souza Amorim, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisadora coordenou um projeto de pesquisa apoiado pela FAPESP, cujo objetivo foi investigar se e como ocorriam processos de significação e de linguagem nos dois primeiros anos de vida. Amorim coordenou também outra pesquisa sobre corporeidade e significação em processos desenvolvimentais no primeiro ano de vida. “Usualmente, tem-se a ideia de que os bebês apenas dormem e mamam e, quando se expressam, tudo não passa de uma descarga emocional. Mas nossos estudos mostram que, na verdade, os bebês desde muito cedo já são capazes de se expressar de maneira culturalmente adequada”, disse Amorim. “Isso não quer dizer que eles entendam os significados das palavras pela cognição, pelo intelecto, mas apreendem seu significado nas relações, dentro do ambiente. Por meio de recursos particulares, percebem o meio e agem sobre ele, sendo capazes de dialogar com o outro, mesmo que em um diálogo mudo”, afirmou. Para chegar a essas conclusões, a pesquisadora e seus colaboradores acompanharam cerca de 40 crianças com até 13 meses em diferentes relações e contextos: casa, creche e instituição de acolhimento (abrigo). A interação dos bebês com familiares, cuidadores e com outras crianças, inclusive pares de idade, foi gravada e posteriormente analisada pelos cientistas. “O trabalho começou no âmbito de um Projeto Temático coordenado pela professora Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, da FFCLRP. Na época, acompanhamos um grupo de 21 crianças que tinham acabado de ingressar na creche mantida pela USP, no campus de Ribeirão Preto. Nosso objetivo era estudar o processo de adaptação dos bebês no ambiente da educação coletiva”, disse Amorim. Nesse período, foram realizadas cerca de três horas de gravações diárias mostrando a interação dos bebês com as mães, educadoras e com as outras crianças. Como os pesquisadores observaram indícios de processos de interação e de comunicação mesmo
O
entre os próprios bebês, foram conduzidas outras pesquisas e construídos os demais bancos de dados e imagens. “Pudemos observar claramente que os bebês eram capazes de se expressar e, de alguma maneira, compreender o que se passava no entorno. Então, levantamos uma série de questões para estudar a comunicação e a significação antes da aquisição da linguagem oral”, disse Amorim. Dentro das competências comunicativas, acrescentou a pesquisadora, a emoção serve de diálogo sem palavra, representando uma forma de comunicação que abrange todo o corpo do bebê e não apenas o rosto e a voz. Essa emoção muito precocemente passa a ser carregada de intencionalidade, sendo dirigida aos parceiros, com aumento, diminuição e substituição de sinais e tons, além de transformações nos estilos e manifestações. “Se o choro fosse apenas uma descarga emocional, os bebês agiriam com todos da mesma forma. Mas observamos que eles não choram e não sorriem para todo mundo de maneira igual”, comentou Amorim.
Grupo da USP de Ribeirão Preto acompanhou cerca de crianças com até meses e verificou que, desde muito cedo, elas são capazes de interagir e expressar-se de forma culturalmente adequada (FFCLRP/USP). Segundo a pesquisadora, a análise dos vídeos mostra que, embora os bebês tenham uma relação preferencial com a mãe, também constroem ligações com outras pessoas – tanto adultos como pares de idade – presentes no contexto. E as relações se dão de forma bastante diferenciada. “Se há duas educadoras ou duas crianças, por exemplo, o bebê chega a claramente demonstrar preferência por uma delas. Não só interage mais com ela, como os recursos comunicativos são diversos, sendo usados com mais ou menos frequência, além de mudarem com o tempo e as diferentes situações”, disse. “Para nós, isso foi surpreendente, pois mostra o grau de refinamento das habilidades nas relações e a riqueza de competências comunicativas do bebê. De alguma ma-
neira o bebê diferencia não apenas o parceiro como apresenta também formas diversas de se comunicar com ele”, avaliou Amorim.
Interação de crianças De acordo com a pesquisadora da FFCLRP-USP, muitos gestos que hoje em dia são considerados como automáticos ou naturais – decorrentes de maturação biológica – evidenciaram ser, na verdade, construídos nas relações com os parceiros, servindo na regulação do comportamento do outro, constituindo o diálogo com o interlocutor. Nessas relações e comunicação, em que há troca de significados, verificou-se que há participação ativa da criança, apesar de ela não ser capaz de fazer uso das palavras. Os comportamentos enunciam problemas, que são dirigidos a alguém e inclusive chegam a antecipar uma possível resposta, desde muito precocemente. O gesto tem ainda uma forma diretamente relacionada à ação no mundo de onde deriva, construindo papéis e formas de ser e de estar no mundo. O tema é controverso, segundo Amorim, pois para a maioria dos autores a linguagem está relacionada à internalização de signos e à aquisição da fala. Em função disso, muitas pesquisas sobre a linguagem e a comunicação de crianças, segundo Amorim, centra seu foco em faixas etárias acima do final do primeiro ano de vida. “Porém, reconhecer as competências desde o nascimento permite que se veja o bebê para muito além daquilo que ele virá a ser – adulto oralizado –, destacando o que ele já é”, avaliou. Na opinião da pesquisadora, os resultados do estudo podem contribuir para reflexões sobre a forma como familiares, educadores e demais profissionais compreendem os bebês e como organizam a vida e as relações com a criança, por exemplo, nas creches. Para Amorim, é preciso favorecer ainda mais o encontro e a interação das crianças com seus pares de idade. “Temos enviado material de divulgação da pesquisa para congressos, creches, cursos de pedagogia e demais profissionais que trabalham com desenvolvimento infantil. Muitos professores se incomodam com o fato de terem de lidar com bebês. Dizem que não se formaram para trocar fraldas. Mas se houver a compreensão de que, na verdade, quando trocam a fralda estão ensinando, aprendendo e se relacionando com alguém que já é capaz de se comunicar, tudo muda”, avaliou Amorim. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica,out./2013.
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POIS É, POESIA
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) Dispersão
Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto, E hoje, quando me sinto, É com saudades de mim. Passei pela minha vida Um astro doido a sonhar. Na ânsia de ultrapassar, Nem dei pela minha vida... Para mim é sempre ontem, Não tenho amanhã nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sobre mim feito ontem. (O Domingo de Paris Lembra-me o desaparecido Que sentia comovido Os Domingos de Paris: Porque um domingo é família, É bem-estar, é singeleza, E os que olham a beleza Não têm bem-estar nem família). O pobre moço das ânsias... Tu, sim, tu eras alguém! E foi por isso também Que te abismaste nas ânsias. A grande ave doirada Bateu asas para os céus, Mas fechou-as saciada Ao ver que ganhava os céus. Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo: Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo. Não sinto o espaço que encerro Nem as linhas que projeto: Se me olho a um espelho, erro – Não me acho no que projeto. Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada! Tenho a alma amortalhada, Sequinha, dentro de mim. Não perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida, A morte da minha alma. Saudosamente recordo Uma gentil companheira Que a minha vida inteira Eu nunca vi... mas recordo
A sua boca doirada E o seu corpo esmaecido, Em um hálito perdido Que vem na tarde doirada. (As minhas grandes saudades São do que nunca enlacei. Ai, como eu tenho saudades Dos sonhos que não sonhei!...) E sinto que a minha morte – Minha dispersão total – Existe lá longe, ao norte, Numa grande capital. Vejo o meu último dia Pintado em rolos de fumo, E todo azul-de-agonia Em sombra e além me sumo. Ternura feita saudade, Eu beijo as minhas mãos brancas... Sou amor e piedade Em face dessas mãos brancas... Tristes mãos longas e lindas Que eram feitas pra se dar... Ninguém mas quis apertar... Tristes mãos longas e lindas... Eu tenho pena de mim, Pobre menino ideal... Que me faltou afinal? Um elo? Um rastro?... Ai de mim!... Desceu-me n’alma o crepúsculo; Eu fui alguém que passou. Serei, mas já não me sou; Não vivo, durmo o crepúsculo. Álcool dum sono outonal Me penetrou vagamente A difundir-me dormente Em uma bruma outonal. Perdi a morte e a vida, E, louco, não enlouqueço... A hora foge vivida Eu sigo-a, mas permaneço... Castelos desmantelados, Leões alados sem juba... O Lord
Lord que fui de Escócias doutra vida Hoje arrasta por esta a sua decadência, Sem brilho e equipagens. Milord reduzido a viver de imagens,
Para às montras de joias de opulência Num desejo brumoso – em dúvida [iludida... (– Por isso a minha raiva mal contida, – Por isso a minha eterna impaciência.) Olha as Praças, rodeia-as... Quem sabe se ele outrora Teve Praças, como esta, e palácios e [colunas – Longas terras, quintas cheias, lates pelo mar fora, Montanhas e lagos, florestas e dunas... (– Por isso a sensação em mim fincada [há tanto Dum grande patrimônio algures haver [perdido; Por isso o meu desejo astral de luxo [desmedido – E a Cor na minha Obra o que ficou do [encanto...) Aqueloutro
O dúbio mascarado, o mentiroso Afinal, que passou na vida incógnito; O Rei-lua postiço, o falso atônito; Bem no fundo o covarde rigoroso... Em vez de Pajem bobo presunçoso... Sua alma de neve asco de um vômito... Seu ânimo cantado como indômito Um lacaio invertido e pressuroso... O sem nervos nem ânsia, o papa-açorda... (Seu coração talvez movido a corda...) Apesar de seus berros ao Ideal, O corrido, o raivoso, o desleal, O balofo arrotando Império astral, O mago sem condão, o Esfinge Gorda... Fim
Quando eu morrer batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes, Façam estalar no ar chicotes, Chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um burro Ajaezado à andaluza... A um morto nada se recusa, E eu quero por força ir de burro! Extraído de: Poesias. Lisboa, Ática, 1946