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Jornal do Vestibulando
ENSINO, INFORMAÇÃO E CULTURA
JORNAL ETAPA – 2014 • DE 11/03 A 26/03
ENTREVISTA
“Saí menos com amigos. Deixei de ir a festas. Abri mão de bastante coisa. Este ano já estou treinando na Atlética. E agora tenho um monte de festas para ir.” Diana Quirino do Nascimento é uma das calouras da Medicina Pinheiros. Aqui ela conta como se preparou no cursinho, tendo de superar defasagens em diversas matérias, principalmente Física e Matemática. Dedicou-se a uma rotina intensa de estudos e hoje diz: “Você deve acreditar nos seus sonhos e saber que é possível alcançá-los”. É o que ela conseguiu.
Diana Quirino do Nascimento Em 2013: Etapa Em 2014: Medicina – USP/Pinheiros
JV – Desde quando você sonhava em ser médica?
Como foi seu início no cursinho?
Diana – Faz tempo, porque quando eu era pequena, tinha uns sete anos, minha mãe fez Enfermagem na USP de Ribeirão Preto. Moramos lá quatro anos. Então, eu sempre gostei muito de Biologia, adorava ficar olhando os livros. Eu acho uma profissão muito bonita.
No começo foi bem puxado, peguei pesado porque eu tinha bastante defasagem em várias matérias. Mas as aulas eram muito boas e eu gostava dos professores, o apoio que davam era muito bom. Fazia orientação também, me ajudou muito. O suporte aqui foi muito bom mesmo.
Além da Fuvest, você prestou quais vestibulares?
Em quais matérias você tinha defasagem? Principalmente em Física e Matemática.
Prestei o Enem, Unesp, Unifesp e Unicamp.
Em Matemática também? Mesmo participando de olimpíadas?
Em quais você foi aprovada? Fuvest e Unesp. Pelo Enem passei em Juiz de Fora.
Por que optou pela Pinheiros? Tradição, ela é a melhor do Brasil, a melhor da América Latina. Todo dia eu passava em frente, sempre foi um sonho, sempre foi o que eu queria. Mas, se não entrasse na Pinheiros, iria para a Unesp. Também é muito difícil passar na Unesp, não ia abrir mão.
Como conheceu o Etapa? Eu fiz dois anos do Ensino Fundamental em escola pública e participei da OBMEP (Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Publicas). Depois fiz aqui no Etapa, durante um ano, todos os sábados, aquele projeto de iniciação científica [Programa de Iniciação Científica Jr., destinado a alunos medalhistas da OBMEP]. Também fiz aqui aulas para a OBM (Olimpíada Brasileira de Matemática). Eu já conhecia e gostava bastante do Etapa.
Eu fiz olimpíada de Matemática, mas não gostava da matéria. Estudava bastante porque eu tive uma base muito ruim, principalmente quando estava no colégio público. Estudava Matemática por conta para tentar assentar as bases. Melhorei bastante no cursinho. E quando você começa a aprender as coisas, passa até a gostar.
De alguma outra matéria você não gostava muito e passou a gostar? Geografia. Geografia eu não conhecia mesmo. Mas até que gostei depois. Tive de estudar bastante porque era muito volume de matéria.
batalhei bastante. No meio do ano você acha que não vai dar, depois, mais perto da prova, fica ansiosa e tudo, não acredita muito mais. Dá aquele medo.
Como era sua rotina de estudos? Eu moro longe e acordava bem cedo. Saía de casa quase às 5, chegava no Etapa depois das 6 e meia. Assistia às aulas e ficava estudando aqui até umas 6 horas da tarde. Em casa estudava mais uma hora, uma hora e meia. Fiquei assim o ano todo.
Você tinha um método de estudo? Eu tentava pegar a matéria do dia. Começava com os exercícios. Para mim era mais importante do que só ler a teoria. Sempre começava por Física e Matemática, em que tinha mais dificuldade. Nelas, terminei todos os exercícios. Precisava pegar ritmo, porque eu era muito devagar para fazer provas. As aulas do Reforço ajudaram bastante. Tinha muita prova, ajudou a pegar ritmo. Os simulados também ajudaram muito, foi onde aprendi a controlar o tempo. No ano anterior não tinha terminado nenhuma prova.
No ano anterior, o que você tinha feito? Eu prestei Fuvest.
Não foi para a 2ª fase?
Em quais matérias você tinha mais base?
Não, não consegui terminar a prova.
Sempre gostei muito de estudar Biologia e de ler História, que é uma das matérias em que tinha mais facilidade. Química também.
Você fez qual Reforço? Fiz o Medicina Total. Era na quarta-feira e no sábado, de manhã e à tarde.
Você participou de outras olimpíadas?
No começo do ano você estava confiante em conseguir entrar na Pinheiros?
Qual a diferença das aulas do Medicina Total?
Fiz de Física e Astronomia. Cheguei a fazer a prova para ir para a Internacional de Astronomia.
Não sei se eu achava que ia passar na Pinheiros, mas tinha confiança que ia entrar em alguma. Eu realmente
As aulas do Reforço são mais focadas. Você tem de ter uma base da matéria. Eles explicam mais profun-
ENTRE PARÊNTESIS
ENTREVISTA
Diana Quirino do Nascimento
1
CONTO
A carteira – Machado de Assis
5
SOBRE AS PALAVRAS
3
ARTIGO
Pantanal
Com quantos paus se faz uma canoa
4
Tributo
ARTIGO Pesquisa investiga mudanças no jornalismo e no perfil do jornalista
6
POIS É, POESIA
5
Gregório de Matos Guerra
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2
ENTREVISTA
damente. As provas são mais difíceis. E, pelos resultados, você tem noção de como está em relação às pessoas que querem a mesma coisa que você.
Além do Medicina Total, o que mais você fazia no fim de semana? Sábado eu ficava no Etapa o dia inteiro estudando. Eu sempre trazia a apostila normal do Extensivo e entre as aulas do Reforço procurava fazer aqui o que não tinha conseguido fazer durante a semana. No domingo, estudava sempre. Tentava fazer uma redação, dava uma lida em algumas matérias. Pegava mais leve, mas sempre estudava no domingo.
Você leu as obras indicadas pela Fuvest e pela Unicamp como obrigatórias? Li todas as obras e vim a todas as palestras. Ajudou muito porque sozinha você não consegue identificar às vezes os pontos principais que eles perguntam. Na palestra, meio que casa a história que você leu com o que vai cair na prova. Os detalhes da obra, do autor, do período.
O que você fez nas duas semanas de férias, em julho? Eu estudei, mas muito menos do que antes. Tirei bastante tempo para relaxar.
Você treinava redação?
O que você fazia para relaxar ao longo do ano?
Sempre fiz todas as que eram para entregar. As do Fique Esperto e as que o professor passava na aula. Mas tentava fazer também algumas para levar para os plantonistas, porque eram boas as dicas que eles davam.
Eu gostava de às vezes conversar com os amigos, ouvir música, ler livros que não têm a ver com o vestibular. Fui algumas vezes ao cinema.
Quantas você fazia? Mais ou menos uma por semana. Às vezes era mais porque tinha os simulados.
Como foi seu crescimento em Redação? Comecei tirando C menos e fui crescendo. Melhorei muito em Redação. No fim cheguei a tirar 10.
Em geral, quais eram os seus resultados nos simulados? Nos simulados Fuvest comecei com B e depois tirei A na maioria deles.
E nos simulados específicos, como Física e Matemática? No começo tirei um pouco de C mais, mas depois fiquei em A e B. Eu gostava muito da parte escrita, é onde sempre fui melhor, sempre tirava notas bem altas.
Como você avaliava esses resultados, em relação aos seus estudos? Você vê que está funcionando o jeito como está fazendo as coisas, você sente que está realmente aprendendo.
No que mais os simulados ajudaram você? No começo eu fiquei testando a ordem em que resolvia as questões – uma fácil, uma difícil, uma fácil, uma difícil. Eu sabia que tinha de fazer tantas questões em determinado tempo e conseguia controlar se estava atrasada ou não. Até o lanche que comia na hora do simulado foi o mesmo que levei na prova. Fiz até esse teste. E a prática ajuda também a acalmar, porque na hora da prova você lembra quantos simulados fez, vê que é igual e se porta do mesmo jeito. Dá segurança na hora.
Bateu cansaço em alguma época? Cansaço sempre tem, mas quando você tem um sonho, vai atrás, meio que esquece das coisas.
Você ia ao Plantão de Dúvidas? Ia bastante.
Você abriu mão de alguma atividade para se preparar para os vestibulares? Antes eu fazia muita corrida de rua, a maioria das vezes no sábado e no domingo. Parei. Saí menos com amigos, deixei de ir a festas. Abri mão de bastante coisa.
Voltou a fazer corrida? Este ano já estou treinando na Atlética. E agora tenho um monte de festas para ir.
Teve uma época mais difícil?
Principalmente na parte de Exatas, Matemática e Física. De vez em quando, Geografia. E Português para mostrar as redações. Eram as que eu mais ia.
Vim ver a lista aqui.
O que sentiu ao ver seu nome na lista? É emocionante, você vê passar o ano inteiro na sua cabeça, todo o esforço que você fez. Quando vi meu nome já saí comemorando. Depois, calma, voltei para ver se era a Pinheiros mesmo.
Você já conhecia a Pinheiros? Nunca tinha entrado lá. Entrei no dia em que saiu a lista. Os veteranos de Medicina estavam aqui fora e levaram a gente para lá. Eles fizeram uma festa para a gente. Foram muito legais, mostravam como era tudo, contavam como ia ser.
No dia da matrícula, como foi? Os veteranos estavam todos lá, recepcionando e explicando direitinho o que podíamos fazer durante o curso. Depois levaram a gente para a Atlética, teve churrasco, festa.
Quais são as matérias deste primeiro semestre? Tem Anatomia Geral e do Aparelho Locomotor, Atenção Primária em Saúde, Fisiologia de Membranas, Biologia Celular e do Desenvolvimento, Introdução à Medicina e Suas Especialidades, Bioquímica e Biologia Molecular.
Tem alguma área que você já pensa em seguir na Medicina?
Setembro foi a época mais pesada. Você está mais sensível, não sabe se conseguiu ver tudo, fica naquela ansiedade. Vem a revisão, você vê o que sabe, vê o que tem de correr atrás. Eu tentei manter o mesmo ritmo de antes, mas, quando chegou perto das provas, comecei a apertar um pouco mais para dar tempo de ver tudo.
Eu sempre pensei muito na parte de neurologia. Mas falam que a gente muda muito na faculdade. No internato, a gente passa por todas as especialidades e acaba vendo com qual se identifica.
Você tinha mais preocupação com a 1ª ou com a 2ª fase da Fuvest?
Você tem de superar isso, usar como força até para conseguir ir mais longe. Tem de se dedicar, estudar e acreditar que é possível. Porque dá!
Com a 1ª fase. Nos testes, sempre fico em dúvida. Para mim era mais fácil a parte escrita, tinha um pouco mais de confiança.
Como fica marcado para você o ano passado?
Na 1ª fase da Fuvest, quantos pontos você fez? Fiz 78 pontos. O corte ficou em 70.
O que achou desse resultado? Gostei bastante da minha nota. Eu achava que podia ter ido um pouco melhor, até pelo que eu fazia nos simulados, mas a prova estava mais difícil que em outros anos.
O que você diria a quem prestou Medicina, foi para a 2ª fase e não passou?
Foi um ano muito puxado, mas nele você está batalhando pelo que quer e ganha uma disciplina que leva para a vida inteira. Aprende a estudar direitinho e conhece professores incríveis.
Você acha que hoje está diferente de quando começou o cursinho? Acho. Acho que você amadurece muito no cursinho. Aprende a ter mais responsabilidade, a ir atrás do que você quer, a se disciplinar. Você muda mesmo aqui.
Na 2ª fase, a prova do primeiro dia é de Português e Redação. Como foi?
O que vem à sua mente quando você pensa no cursinho?
Tirei 63,5 na prova. Na Redação, 62,5. Foi dentro do que eu esperava, ficar nos 60 e pouco.
Eu penso muito nos professores, eles foram muito importantes e me ajudaram muito. Fico lembrando das dicas que eles davam na hora de estudar, a força que eles deram. Lembro muito disso. Também dos amigos que você faz.
No segundo dia é a prova geral. Qual foi sua nota? Na segunda prova eu fui bem melhor, minha nota foi 73,8. Mas achei muito difícil a parte de Humanas, principalmente Geografia.
No terceiro dia, das matérias específicas da carreira, você tirou quanto? Eu me dei bem melhor nessa prova, tirei 93,75.
Em que matérias você ia mais?
Como soube de sua aprovação na Fuvest?
Na escala de zero a 1 000, qual foi sua pontuação na Fuvest? 794.
Jornal do Vestibulando
Você tem saudade de alguma coisa do ano passado? Já tenho saudade dos professores, dos meus amigos. Ainda falo com eles, mas é diferente de você estar todo dia aqui com eles.
O que fica de lição para você do ano passado? Fica que você deve acreditar realmente nos seus sonhos e saber que é possível alcançá-los.
Jornal ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343
CONTO
3
A carteira Machado de Assis e repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo: — Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez. — É verdade, concordou Honório envergonhado. Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem. — Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C ..., advogado e familiar da casa. — Agora vou, mentiu o Honório. A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais. D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política. Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era. – Nada, nada. Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A ideia de que os
...D
dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com trinta e quatro anos; era o princípio da carreira; todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou emprestado, para pagar mal, e a más horas. A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembleia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando. Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, — enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo. Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinquenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus: reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la. Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, nin-
guém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal. “Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro,” pensou ele. Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dous cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele. A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração, porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dous empurrões, mas ele resistiu. “Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer.” Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado, e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa. — Nada. — Nada? — Por quê? — Mete a mão no bolso; não te falta nada? — Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou? — Achei-a eu, disse Honório entregando-lha. Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas. — Mas conheceste-a? — Não; achei os teus bilhetes de visita. Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor. Extraído de: Outros contos.
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ARTIGO
Pantanal Prof. Omar F. Bumirgh
ocalizado no centro do continente sul-americano, entre Brasil, Paraguai e Bolívia, o Pantanal cobre aproximadamente 240 000 km2 do território brasileiro nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Possui características singulares que o individualizam e o tornam uma unidade fisiográfica e morfoestrutural única, como um prolongamento das planícies do Chaco e Pampeana que formam as planícies centrais sul-americanas. Além disso, possui a maior concentração faunística das Américas quanto ao número de indivíduos e variedade de espécies. A planície do Pantanal é de formação recente, pois seus sedimentos são do Quaternário; faz parte da grande depressão interior do continente sul-americano, situada entre o relevo pré-andino a oeste, o planalto basáltico a leste e as chapadas sedimentares ao norte; e formou-se por volta de 69 milhões de anos atrás. O Pantanal Mato-Grossense, ao contrário do que seu nome sugere, não se assemelha a um pântano, mas sim a uma imensa região parcial e periodicamente alagável, por ocasião das cheias, quando os rios da bacia do Paraguai extravasam seus leitos e provocam inundações. Nessa época, surgem pequenas lagoas, e as já existentes se ampliam. Essas lagoas, de formas circulares ou elípticas, são chamadas de “baías”, e por ocasião da estiagem, quando as águas descem, a intensa evaporação provoca a formação das salinas, locais para onde aflui o gado para beber. Quando as cheias são mais violentas, as “baías” ampliam-se e ligam-se umas às outras através de canais denominados “corichos”. Entre uma “baía” e outra existe um sistema de elevações, “as cordilheiras”, cuja altitude varia de 3 a 6 metros acima do nível da planície, e que são os locais preferidos pelos fazendeiros para instalarem fazendas de gado, porque nelas o gado está protegido das inundações.
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O meio ambiente pantaneiro O clima e a circulação atmosférica local O Pantanal Mato-Grossense, em função de sua tropicalidade, conhece apenas duas estações climáticas bem definidas, o inverno e o verão, caracterizadas pelo regime pluviométrico. Dada a sua localização geográfica, os efeitos da continentalidade e da atuação das massas de ar, o regime das chuvas e dos condicionantes térmicos apresenta situações muito particulares. No verão, de outubro a março, é a massa equatorial continental (mEc), originária da região noroeste da Amazônia, que atua no Pantanal, trazendo fortes chuvas (em geral de convecção) e baixas pressões atmosféricas. Nesses meses, as temperaturas médias oscilam entre 26ºC e 27ºC,
atingindo médias máximas de até 33ºC e médias mínimas raramente inferiores a 20ºC; as chuvas, em função da mEc, ocorrem de forma torrencial, acompanhadas de trovoadas. Em geral, os totais de chuva representam entre 70% e 80% do total anual. No período de abril a setembro, denominado “inverno”, prevalece o domínio da massa tropical atlântica (mTa), originária da célula de alta pressão do Atlântico Sul, que penetra na região através da costa oriental do Brasil e, em função das condições de relevo do planalto brasileiro, acaba perdendo boa parte de sua umidade devido a uma certa uniformidade topográfica, favorecendo o aparecimento de dias claros e de pouca nebulosidade, acentuando a amplitude térmica diária, fazendo com que nesse período as madrugadas e as manhãs sejam um tanto frias. É nesse momento, mais notadamente em julho, que as ondas de frio invadem o Pantanal, provocando, não raras vezes, o fenômeno da “friagem”, ocasionado pela entrada da massa polar atlântica (mPa) na região, o que provoca um resfriamento noturno, baixando as temperaturas a níveis inferiores a 10ºC. A temperatura média no inverno permanece elevada, em torno dos 22ºC a 24ºC, e as máximas pouco decrescem (29ºC a 32ºC); porém, são as mínimas que mais caracterizam a noção de inverno na região, oscilando entre 15ºC e 18ºC, registrando ainda mínimas absolutas muitas vezes inferiores a 5ºC e mesmo abaixo de 10ºC. As chuvas, menos frequentes nessa época do ano, ocorrem apenas quando há penetração da massa polar atlântica (mPa) favorecida pela “calha” do rio Paraguai, provocando chuvas finas e nevoeiro. Mesmo assim, não chegam a representar mais que 30% de toda a precipitação anual.
getais, que levam a denominação de Complexo do Pantanal para o conjunto vegetacional característico desta parte da região Centro-Oeste. Como as inundações periódicas, provocadas pelo rio Paraguai e seus afluentes, não afetam toda a planície, resultam em áreas sempre alagadas, outras que o são temporariamente e outras a salvo das inundações. Esse ambiente diverso propicia grande variedade na vegetação: vários tipos de palmeiras (buriti), campos (capim-mimoso), matas-galerias (ao longo dos vales dos rios), bosques charqueados, vegetação arbustiva (cerrado-quebracho). Tal variedade favorece as atividades econômicas ligadas ao extrativismo vegetal (quebracho e seu subproduto, o tanino), que é utilizado nos “cortumes” e na pecuária extensiva de corte.
Os problemas do Pantanal Mato-Grossense Devido à crescente ocupação das atividades humanas de seu espaço e de sua utilização, o Pantanal vem sofrendo constante e violenta alteração do seu equilíbrio ecológico. A construção de rodovias (Transpantaneira) e hidrovias (hidrovia Paraná-Paraguai), o desmatamento, as queimadas, a substituição da vegetação natural por pastagem e cultivos agrícolas (soja) e a atuação dos “coureiros” vêm conjuntamente contribuindo para o desequilíbrio ambiental da região.
A importância das chuvas no equilíbrio do hábitat do Pantanal Com as fortes chuvas do verão pantaneiro, os rios que descem as encostas das serras que bordeiam o Pantanal lançam suas águas sobre a região, ocasionando o regime das cheias do rio Paraguai e seus afluentes, que transbordam, resultando em enchente que ocupa toda a parte baixa da planície do Pantanal. Quando, no inverno, o índice pluviométrico diminui, levando a volta do regime normal da bacia do Paraguai, começa a se definir a época da seca. Percebe-se a importância do clima, principalmente das chuvas, na manutenção e compreensão do equilíbrio do hábitat do Pantanal. A vegetação Na Baixada do Paraguai, conhecida genericamente como Pantanal Mato-Grossense, ocorrem diversos tipos de associações ve-
No Pantanal, os rios são os grandes transportadores e fornecedores dos nutrientes que garantem o crescimento da vegetação e a incrível variedade de peixes, jacarés e aves aquáticas que povoam a região. Provenientes de regiões ricas em elementos químicos minerais, esses rios inundam periodicamente imensas planícies, fertilizando o solo e garantindo a sobrevivência de arbustos, relvas e da fauna, riquíssima e espetacular. Os riscos de alteração desse riquíssimo ecossistema são decorrentes sobretudo da
ARTIGO ação do homem visando à conquista de terras para o plantio, mineração e ocupação. Os grandes rios que percorrem a planície do Pantanal não têm leito fixo, mudando continuamente seu curso, dada a total planura da região. Mas a barragem e o desvio intencional desses rios causam enormes inundações e transporte de terras, o que provoca o assoreamento, isto é, o aterramento de seus leitos, tornando-os cada vez mais rasos, diminuindo a velocidade de suas águas, o que dificulta a sua utilização para a navegação, e provocando novas e maiores inundações. Esse transporte de terras é ainda intensificado pelo desmatamento às margens dos rios, para o cultivo da soja, o que intensifica a erosão dos solos pelas chuvas. O impacto das chuvas nos meses de verão provoca um intenso processo de lavagem dos solos e o assoreamento nas cabeceiras dos rios tributários da bacia do rio Paraguai, notadamente os rios Miranda, Aquidauana e Taquari. Erosões ainda maiores, sucedidas de enorme transporte de terra, são causadas pelas atividades de mineração. Como os solos da região são particularmente ricos em minérios, o garimpo e a extração de minerais vêm sendo intensificados sem quaisquer cuidados de evitar a erosão e o assoreamento.
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a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de degradação ecológica, estudo prévio do impacto ambiental. • Declara que a floresta Amazônica, a mata Atlântica, a serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a zona costeira como patrimônios nacionais. • Define que a localização de usinas nucleares deve ser definida pelo Poder Legislativo. • Qualquer cidadão pode propor ação popular visando à anulação de ato lesivo ao meio ambiente. Além disso, existem artigos de interesse ambiental dispostos em outros capítulos, como o artigo 23, que relaciona, entre as atividades “de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, a proteção ao meio ambiente, o combate à poluição em qualquer de suas formas e a preservação das florestas, da fauna e da flora. Porém, os grupos ambientalistas vêm alertando sobre a distância entre a retórica e a prática governamental no setor ambiental, principalmente no que diz respeito à infraestrutura dos órgãos federais, responsáveis pelo efetivo cumprimento da lei.
Além do mais, a destruição do Pantanal tem sido acelerada pela aplicação de agrotóxicos nas áreas agrícolas e também pelo transporte de metais tóxicos da mineração, principalmente o mercúrio empregado na extração do ouro, acarretando a poluição dos rios e lençóis freáticos, levando ao envenenamento das águas e morte de milhares de toneladas de peixes. Outro problema da região é a caça predatória, feita pelos coureiros, caçadores clandestinos que têm sido responsáveis pela matança de jacarés, além de dizimarem as reservas de onças-pintadas, veados, cotias, ariranhas e outras espécies.
A Constituição e a questão ambiental no Brasil O capítulo específico sobre o meio ambiente incluído na Constituição brasileira de 1988 foi considerado, pela ONU, um dos textos constitucionais sobre a questão ambiental mais avançados do mundo, tendo como principais tópicos: • O poder público está obrigado a proteger a fauna e a flora, promover a educação ambiental, controlar a produção, o comércio e o emprego de substâncias que podem comprometer a qualidade de vida, definir os locais que serão preservados e exigir, para
ENTRE PARÊNTESIS
Com quantos paus se faz uma canoa Numa indústria constroem-se canoas com paus obtidos de pedaços de madeira de igual comprimento. Pedaços de madeira cortados num comprimento-padrão, sejam emendados ou não, são chamados “paus” na indústria. Sabe-se que, cortando cada pedaço de madeira, forma-se um pau e sobra uma ponta. Com 3 pontas emendadas, obtém-se novo pedaço de madeira. Num dia de trabalho, são construídas 3 canoas e consumidos 21 pedaços de madeira inteiros (sobrando sem uso apenas uma ponta). Com quantos paus se faz uma canoa?
RESPOSTA (31 paus e uma ponta). Logo, como com 31 paus são feitas três canoas, uma canoa se faz com Com um pedaço de madeira faz-se um pau, sobrando ainda
3 1
. Logo, um pau =
3 2
3 31
paus.
de um pedaço de madeira. Em 21 pedaços de madeira teremos então
2/3 21
paus =
2 63
paus = 31,5 paus
SOBRE AS PALAVRAS
Tributo A palavra “tributo” origina-se das palavras latinas tributum e tributus, i, e é usada tanto para designar um imposto (taxa exigida pelo poder público), como, por exemplo: “Dados do governo revelaram que a proposta de orçamento para o próximo ano prevê uma arrecadação maior com tributos”, quanto para designar uma homenagem, uma consagração, um louvor, como na frase: “Os alunos prestaram um tributo aos professores durante a formatura”.
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ARTIGO
Pesquisa investiga mudanças no jornalismo e no perfil do jornalista Jussara Mangini
s transformações ocorridas nos meios de comunicação, por meio das novas tecnologias e da cultura de convergência midiática, impactaram profundamente os processos de produção do jornalismo e, consequentemente, o perfil do jornalista. A conclusão é de uma pesquisa que avaliou o perfil do jornalista e as mudanças em trabalho. “Os produtos jornalísticos impressos, televisivos ou radiofônicos são feitos de maneira completamente diferente do que há cerca de 20 anos”, disse Roseli Fígaro, coordenadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Responsável pela pesquisa “O perfil do jornalista e os discursos sobre o jornalismo: um estudo das mudanças no mundo do trabalho do jornalista profissional em São Paulo”, que teve apoio da FAPESP, Fígaro destaca que uma série de funções desapareceu da rotina do métier do jornalista. “O tempo e o espaço, comprimidos pelas possibilidades das tecnologias de comunicação e de informação, foram assimilados nos processos de produção de modo a reduzir o tempo para a reflexão, a apuração e a pesquisa no trabalho jornalístico. O espaço de trabalho encolheu e ao mesmo tempo diversificou-se, transformando as grandes redações em células de produção que podem ser instaladas em qualquer lugar com internet e computador. O jornalismo on-line, em tempo real, os blogs e as ferramentas das redes sociais são inovações nas rotinas profissionais”, disse à Agência FAPESP. No estudo, concluído em 2013, um grupo de pesquisadores do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho, orientado por Fígaro, buscou saber o que essas transformações representam em termos de mudanças no perfil do profissional e o que o jornalista pensa sobre o próprio trabalho e sobre o jornalismo. O trabalho é resultado da análise das respostas de 538 jornalistas. Os dados também estão no e-book As mudanças no mundo do trabalho do jornalista (Editora Salta), lançado no segundo semestre de 2013. Os 538 jornalistas pesquisados são de São Paulo – estado que abriga mais de 30% dos profissionais brasileiros da categoria – e foram consultados em duas fases metodológicas: a quantitativa, com o uso de um questionário fechado de múltipla
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escolha, e a qualitativa, com entrevista face a face com roteiro de perguntas abertas, e grupo de discussão, com roteiro dos temas mais polêmicos encontrados pelos instrumentos anteriores. Quatro grupos amostrais responderam os questionários em diferentes períodos: dois grupos em 2009 – um formado com 30 jornalistas de diferentes mídias e vínculos empregatícios, selecionados de maneira aleatória via rede social, e outro constituído por 340 associados do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, também de diferentes mídias, vínculos e funções. Um grupo de 90 jornalistas freelancers (sem vínculo empregatício), trabalhando em diferentes mídias, foi consultado em 2010. E um outro grupo de 82 jornalistas de uma grande empresa editorial da capital paulista também compôs a amostra, como fruto de uma pesquisa anterior, realizada em 2007. Para a fase qualitativa – com entrevista individual de 20 jornalistas e discussão em focus groups, em duas sessões, com 16 jornalistas no total – foram selecionados 36 dos 538 jornalistas que responderam os questionários na fase quantitativa.
Feito na ECA/USP, estudo indica que o profissional de hoje é jovem, multiplataforma e tem visão mercadológica do jornalismo (USP Imagens) De forma geral, a maioria dos jornalistas tem um perfil socioeconômico de classe média, é jovem (até 30 anos), branca, do sexo feminino, não tem filho, atua em multiplataformas e tem curso superior completo e especialização em nível de pós-graduação. Outras características comuns são a carga horária de trabalho – de oito a dez horas por dia – e a faixa salarial de R$ 2 mil a R$ 6 mil. O predomínio feminino coincide com os dados divulgados pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) que, no fim de 2012, registrou que os jornalistas brasilei-
ros eram majoritariamente mulheres brancas, solteiras, com até 30 anos. Apenas no grupo dos sindicalizados, que reúne os profissionais com a faixa etária mais elevada e maior tempo de profissão, observou-se predomínio masculino.
Precarização dos vínculos empregatícios A reestruturação produtiva ocorrida no mundo do trabalho, principalmente a partir dos anos 1990, transformou as relações de trabalho, afirma a pesquisadora na introdução de seu livro. Foi a partir dessa década que aumentou o número de jornalistas contratados sem registro em carteira profissional, abrindo caminho para novas formas de contratação, como a terceirização, contratos de trabalho por tempo determinado, contrato de pessoa jurídica (PJ), cooperados e freelancers, entre outros. A chamada “flexibilidade” acaba por transferir aos trabalhadores o peso das incertezas do mercado. “Como mão de obra maleável seja em termos de horário, de jornada de trabalho ou de um vínculo empregatício, esses profissionais não podem planejar suas vidas em termos econômicos nem em termos afetivos”, disse Fígaro. Os freelancers trabalham em período integral, para vários lugares, sozinhos em casa. Começam a pensar como empreendedores, aplicam os conhecimentos do jornalismo em outras atividades, como na revisão de trabalho acadêmico ou até na venda de pacotes de assessoria de comunicação para políticos. Os mais jovens e os freelancers são os que menos conseguem planejar sua vida pessoal em relação à profissional fora do curto prazo, de acordo com a pesquisadora. “Trabalham hoje, para consumir hoje e não sabem como será seu trabalho no ano seguinte. Imagino que isso cause grande parte do estresse na vida do indivíduo”, afirmou Fígaro. A pesquisa também verificou que as novas gerações se sindicalizam menos. Uma possível explicação para isso, segundo Fígaro, é que os profissionais que vivem instabilidade financeira e têm dificuldade em se relacionar com o mundo do trabalho não vislumbram soluções coletivas – como sindicalizar-se ou organizar-se para pleitear melhores condições de trabalho –, mas sempre em saídas individuais como, por exemplo, arrumar mais um emprego. “Possuem um perfil profissional deslocado de valores coletivos, são individualis-
ARTIGO tas e muito preocupados com o negócio. Vão em busca do cliente e consideram a informação um produto.” Ela ressalta, no entanto, que isso não quer dizer que o jornalista não esteja preocupado com causas da coletividade ou da sociedade, mas que há uma busca individual de soluções. Os profissionais da área sabem que uma característica comum é a alta rotatividade de emprego: muda-se muito de uma empresa ou veículo de comunicação para outro. Na avaliação de Fígaro, “se por um lado, a experiência pode enriquecer o profissional, por outro é sempre um começar de novo, um novo que não é tão novo, porque se fica no mesmo nível hierárquico”. De acordo com ela, é exigida hoje do jornalista atualização constante no uso de ferramentas digitais de prospecção, apuração e edição de informações. É fundamental ter habilidades e competências que permitam a atuação em diversas plataformas – impressa, tevê, rádio, internet – e em diferentes linguagens – verbal, escrita, sonora, fotográfica, audiovisual, hipertextual. “Exigem-se ainda noções de marketing e de administração, visto que se prioriza a visão de negócio/mercadoria já inserida no produto cultural, por meio do tratamento dado às pautas e à segmentação de públicos”, disse Fígaro.
Diferenças entre gerações Enquanto os mais jovens estão fora das redações, em trabalhos precarizados, os mais velhos migram para a coordenação das assessorias de comunicação. A coordenadora do estudo comentou que há casos muito conflituosos de desrespeito e intolerância tanto em relação ao profissional mais velho, quanto em relação ao jovem muito tecnológico, sem experiência. “As empresas, no afã de mudar sua cultura e dinamizar os interesses de seu negócio, quebram uma regra muito importante no mundo do trabalho: a transferência de saberes profissionais de uma geração para outra. Isso traz danos não só para a empresa, mas para toda a sociedade. Há um custo social a pagar por isso”, avaliou Fígaro. Há diferença entre o que significa ser um bom jornalista hoje em relação a 20 anos atrás?“Jornalistas trabalham com os discursos da sociedade. Devem, portanto, compreender as implicações disso: discurso é produção de sentido; e produção de sentido é tomar posição, é editar o mundo e disponibilizar essa edição para quem estiver interessado nela.” De acordo com a pesquisadora, hoje é preciso maior destreza com tecnologias que não existiam. Os jornalistas tinham menor destreza anteriormente? Não, na opinião de Fígaro. “Ser multitarefa e multiplataforma são exigências que colocam em ação habilidades humanas diferentes; e trazem implicações profissionais diferentes.”
Sob esse aspecto, os profissionais apresentam no discurso preocupação com a ética jornalística, com a apuração, com o texto, com a qualidade e a idoneidade das fontes. “Mas eles também têm claro que o tempo da racionalidade produtiva da mídia é o algoz do bom jornalismo. Destaco que esse tempo não é o tempo da vida cotidiana. É o tempo da produção comercial do produto notícia”, ressaltou Fígaro.
Formação profissional Da amostra total, cerca de 5% não têm ou não concluíram o ensino superior. A absoluta maioria possui nível superior e, em média, 65% deles têm curso de especialização em nível de pós-graduação. A mudança operacional é tão evidente que os cursos de jornalismo ganharam na última década teor ainda mais técnico-prático e operacional; fato que, na opinião da pesquisadora, não deveria se contrapor à preocupação com a ampla formação cultural e humanística do futuro profissional. “No entanto, é isso que vem acontecendo, inclusive com o aval do cliente/aluno, visto que a maioria dos jornalistas da pesquisa se formou em faculdades privadas”. Outra característica marcante é que o jornalista começa a trabalhar muito cedo. Antes mesmo de concluir a faculdade, é incentivado a conquistar logo um posto de trabalho na área. Fígaro percebeu que há até um certo desprezo pela faculdade, como se o necessário fosse somente a formação técnica conquistada no âmbito do trabalho. “Essa discussão é complexa. O trabalho nunca é só técnica, norma, prescrição de uma empresa para a produção de determinado produto. Para o trabalho mobiliza-se um conjunto de saberes amplos que vão da gestão de si próprio e suas habilidades, à gestão das normas, dos relacionamentos, das linguagens etc.” Na avaliação dos pesquisadores, parte dos profissionais da amostra teve uma formação “débil” no que diz respeito à capacidade de inter-relacionar fatos, dados e acontecimentos de maneira contextualizada política, social e historicamente. “Na verdade, é essa capacidade que considero como conhecimento fundamental para o desempenho da profissão”, disse Fígaro.
Produção de conteúdo Os autores da pesquisa destacam o quanto o processo de seleção, análise e interpretação das informações, que são de fácil acesso hoje, ficou mais complexo e exige maturidade intelectual, profundo compromisso com a ética jornalística e com os fundamentos da produção do discurso jornalístico. Porém, lamentam que “o limite e a separação entre as orientações da redação de um veículo de comunicação e a área comercial da empresa, antes tão fundamentais para a credibilidade do exer-
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cício profissional, hoje sequer fazem parte do repertório das novas gerações”. Os jornalistas da empresa editorial pesquisada consideram os meios de comunicação o negócio mais promissor do mundo globalizado e um negócio como outro qualquer. O grupo de jornalistas selecionado nas redes sociais se divide sobre o papel dos meios de comunicação – para uns, é um instrumento de fazer política, cultura e educação e, para outros, trata-se de um negócio como outro qualquer. Os sindicalizados e os freelancers consideram os meios de comunicação um instrumento de informação, cultura e educação. No que diz respeito à opinião dos jornalistas sobre o “valor” da informação, apenas os profissionais do grupo dos sindicalizados a veem como um direito do cidadão. Os demais a consideram um produto fundamental da sociedade. Dessas questões derivam outras em relação ao tipo de jornalismo que o cidadão deseja e daí qual o engajamento profissional necessário. “Está em jogo que tipo de democracia se quer construir, pois o direito à informação é o alicerce de uma sociedade democrática”, disse Fígaro. Para a pesquisadora, falta a compreensão de que o jornalista é o profissional que trabalha com os discursos das diferentes instituições e agentes sociais para devolvê-los aos cidadãos, de maneira compreensível. “A informação é um direito humano, consagrado pela nossa Constituição e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hoje, grande parte dos jornalistas encara a informação como uma mercadoria como outra qualquer e, em minha opinião, aí está o problema.”
Consumo cultural A maioria dos jornalistas pesquisados lê jornais todos os dias; quem menos lê, no entanto, são os freelancers. Todos os grupos afirmam assistir à televisão todos os dias. Parte da mostra também ouve rádio todos os dias. A internet, mais do que outros meios de comunicação ou de comunicação interpessoal, é o meio pelo qual todos ficam sabendo das notícias mais importantes, fazem compras, estudam, trabalham e pesquisam. Ainda assim, o que o jornalista mais segue nas mídias sociais é a mídia tradicional e grandes veículos de comunicação e a busca, geralmente, está mais ligada ao trabalho do que à obtenção de informação em si. Todos os grupos gostam de ler, ir ao cinema, boa parte vai ao teatro. Nas horas vagas, alguns vão à academia de ginástica e outros não vão a lugar algum. Para os autores da pesquisa, o maior crédito que atribuem ao estudo e ao e-book, além dos dados levantados, é provocar nos jornalistas um debate sobre a profissão. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, jan./2014.
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POIS É, POESIA
Gregório de Matos Guerra (1633-1696) A uma saudade
Rompe o poeta com a primeira impaciência querendo declarar-se e temendo perder por ousado
A uma dama dormindo junto a uma fonte
Apenas solta a luz a aurora fria,
Anjo no nome, Angélica na cara!
Lira doce dos pássaros cantores
Quando a prende da noite a escuridade.
Isso é ser flor, e Anjo juntamente:
A bela ocasião das minhas dores
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Dormindo estava ao despertar do dia.
Em o horror desta muda soledade, Onde voando os ares a porfia,
Ah cruel apreensão de uma saudade!
Em quem, senão em vós, se uniformara: Mas como dorme Sílvia, não vestia
De uma falsa esperança fantasia, Que faz que de um momento passe a um dia,
Quem vira uma tal flor, que a não cortara,
E que de um dia passe à eternidade!
De verde pé, da rama florescente; E quem um Anjo vira tão luzente,
São da dor os espaços sem medida,
Que por seu Deus o não idolatrara?
E a medida das horas tão pequena, Que não sei como a dor é tão crescida. Mas é troca cruel, que o fado ordena; Porque a pena me cresça para a vida, Quando a vida me falta para a pena.
À margem de uma fonte, que corria,
O céu seus horizontes de mil cores; Dominava o silêncio entre as flores, Calava o mar, e rio não se ouvia. Não dão o parabém à nova Aurora Flores canoras, pássaros fragrantes,
Se pois como Anjo sois dos meus altares,
Nem seu âmbar respira a rica Flora.
Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda, Livrara eu de diabólicos azares.
Porém abrindo Sílvia os dois diamantes, Tudo a Sílvia festeja, tudo adora
Mas vejo, que por bela, e por galharda,
Aves cheirosas, flores ressonantes.
Posto que os Anjos nunca dão pesares, Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
Pergunta-se neste problema qual é maior, se o bem perdido na posse, ou o que se perde antes de se lograr? Defende o bem já possuído
Quem perde o bem, que teve possuído, A morte não dilate ao sentimento, Que esta dor, esta mágoa, este tormento Não pode ter tormento parecido.
Defende-se o bem que se perdeu na esperança pelos mesmos consoantes A um penhasco vertendo água
O bem que não chegou ser possuído
Como exalas, penhasco, o licor puro,
Perdido causa tanto sentimento,
Lacrimante a floresta lisonjeando?
Que faltando-lhe a causa do tormento
Se choras por ser duro, isso é ser brando,
Faz ser maior tormento o padecido.
Se choras por ser brando, isso é ser duro. Sentir o bem logrado, e já perdido,
Quem perde o bem logrado, tem perdido
Eu, que o rigor lisonjear procuro,
O discurso, a razão, o entendimento,
No mal me rio, dura penha, amando;
Porque caber não pode em pensamento
Tu, penha, sentimentos ostentando,
A esperança de ser restituído.
Que enterneces a selva, te asseguro.
Quando fosse a esperança alento à vida,
Se a desmentir afetos me desvio,
Té nas faltas do bem seria engano
Prantos, que o peito banham, corroboro,
O presumir melhoras desta sorte.
De teu brotado humor, regato frio.
Porque, onde falta o bem é homicida
Chora festivo já, cristal sonoro;
A memória, que atalha o próprio dano,
Que quanto choras se converte em rio,
O refúgio, que priva a mesma morte.
E quanto eu rio, se converte em choro.
Mágoa será do próprio entendimento; Porém o bem, que perde um pensamento Não o deixa outro bem restituído. Se o logro satisfaz a mesma vida E depois de logrado fica engano A falta, que o bem faz em qualquer sorte Infalível será ser homicida; O bem, que sem ser mal motiva o dano, O mal, que sem ser bem apressa a morte. Extraído de: “Poesia lírico-amorosa”. In: Poemas escolhidos, Ed. Cultrix, 1976.
Gregório de Matos Guerra nasceu em Salvador, Bahia, e morreu no Recife, um ano depois de haver voltado do exílio em Angola. Estudou no Colégio dos Jesuítas e mais tarde em Coimbra, onde se formou. Na permanência entre Brasil e Portugal, Gregório de Matos começa a ser notado como poeta satírico e boêmio. Sua sátira, em versos cortantes, atinge grandes e pequenos, e acaba sendo perseguido e destituído de suas funções de vigário-geral e tesoureiro-mor, nomeações que havia conseguido por meio de D. Gaspar Barata. Sua fama, inicialmente, foi de caráter local, com a obra inédita ou espalhada por inúmeras publicações, inclusive alguns poemas sem assinatura. O poeta foi sepultado no Hospício de Nossa Senhora da Penha dos Capuchinhos. Obra: Seis volumes, editados por Afrânio Peixoto para a Academia Brasileira de Letras (1923-1933); Obras completas de Gregório de Matos, em sete volumes, pesquisa e organização de James Amado e Maria da Conceição Paranhos (1969).