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Jornal do Vestibulando
ENSINO, INFORMAÇÃO E CULTURA
JORNAL ETAPA – 2014 • DE 03/07 A 16/07
ENTREVISTA
“Pensei que seria meu primeiro ano de cursinho, de vários.” Graciella Calsolari Figueiredo resolveu fazer o cursinho junto com o 3o ano do Ensino Médio. Sua opção era a mais exigente – Medicina. Por isso ela contava que teria de fazer vários anos de preparação antes de conseguir sua aprovação. Superando sua própria expectativa, e transpondo todas as dificuldades, ela entrou na Pinheiros. Aqui ela fala sobre sua caminhada até ser bem-sucedida na Fuvest.
Graciella Calsolari Figueiredo Em 2013: Etapa Em 2014: Medicina USP/Pinheiros
JV – Quando você começou a pensar em Medicina como carreira? Graciella – Quando entrei no Ensino Médio. Tem algum médico em sua família? Não. Tenho uma prima que faz Pinheiros. Entrou no ano passado. No meio do ano ela me levou para conhecer a faculdade, tive um contato maior. Eu queria estudar lá também. Você se formou no Ensino Médio no ano passado? Sim. Fiz o último ano junto com o Extensivo no cursinho. Você estava confiante em relação às suas possibilidades de aprovação no vestibular para Medicina? Não estava nem um pouco confiante. Pensei que seria meu primeiro ano de cursinho, de vários. As pessoas falavam que entrar em Medicina é muito complicado, que a média de preparação no cursinho era de dois anos. Vim fazer o Extensivo junto com o colégio porque sabia que para entrar em Medicina eu tinha de estudar. E quanto antes começasse, melhor para mim. Eu não imaginava que, no final do ano, eu ia conseguir. Até me matriculei no cursinho este ano. O que motivou você a vir estudar no Etapa? Eu vim porque sabia que era muito bom, tinha ouvido falar bastante. Muita gente da minha escola [estadual] estudava aqui. Como era sua rotina de estudo? Eu moro em Carapicuíba. Acordava bem cedo, umas 5 da manhã, e ia para o Colégio. Entrava às 7, tinha aula até 11 e meia e vinha para cá. Geralmente chegava bem cedo. Aqui tinha aula das 2 até as 6 horas. Aí voltava para casa ou ia para o curso de inglês que fazia de terça e quin-
ENTREVISTA
Graciella Calsolari Figueiredo CONTO Um homem célebre – Machado de Assis ENTRE PARÊNTESIS
Quem é o pai?
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ta-feira. Quando ia direto para casa, começava a estudar mais ou menos às 9 horas. Quando tinha inglês, às 10. Eu tinha o costume de dormir bem tarde, às vezes à 1 hora da manhã. Como era seu método de estudo? Aqui no cursinho eu prestava muita atenção nas aulas, anotava tudo que os professores falavam e, em casa, fazia os exercícios. Pegava os do dia, um pouco de tudo. Tive um professor que deu essa dica e eu levei bastante a sério. Ele sugeriu que a gente fizesse um pouco de exercício de cada matéria, para não deixar nenhuma sem fazer nada. Seu método de estudo era o mesmo para todas as matérias? Dava prioridade para minhas matérias específicas. Geralmente fazia mais exercícios de Química, Física e Biologia. Nunca fui muito boa em Matemática, que não era prioritária na 2a fase, então não focava muito, mas se tivesse uma dúvida eu tirava. Eu gostava de fazer bastante coisa de Português, sabia que ia contar bastante na 2a fase. Gostava de fazer também os exercícios de História e Geografia – tinha um pouco de dificuldade em Geografia, mas focava as matérias específicas. Nessas, procurava fazer todos os exercícios, testes e escritos. E nas outras matérias? Fazia mais testes do que escritos. Nas matérias de Humanas eu costumava fazer os exercícios escritos, porque eu me exercitava mais. Em História, eu preferia fazer os escritos, porque numa resposta eu já lembrava de várias coisas. No domingo você estudava também? Sim. Eu acordava cedo e já estudava, fazia exer cícios. Principalmente à noite eu estudava bastante.
SOBRE AS PALAVRAS
Fazer uma vaquinha ARTIGO Estudo identifica padrão de associação entre doenças crônicas em São Paulo
Impactos e desequilíbrios
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Quanto tempo você estudava no fim de semana? Quando estava em casa ficava estudando. Era uma coisa mais ou menos assim, se tinha um tempo livre, ia estudar. Enquanto tivesse disposição e coisas para fazer, ia estudando. Nesta rotina teve alguma época em que você ficou mais cansada ou menos animada? Sim. Eu consegui um ritmo bom até o final do primeiro semestre. No final do primeiro semestre eu não estava indo tão bem nos simulados, a matéria estava meio acumulada, tinha bastante coisa para terminar. Na primeira semana de férias eu descansei, estudei bem pouquinho, uma hora por dia. Na segunda semana estudei umas cinco horas por dia. No segundo semestre, voltei um pouco melhor, mas não estava no pique do primeiro semestre. Nos simulados, em que faixas você ficava? Nos primeiros simulados eu consegui ir bem, fiquei animada. Mas depois minhas notas caíram um pouco, porque começou a acumular matéria. Caíram para que faixa? Primeiro era mais B, depois comecei a tirar C mais e alguns C menos. Você fazia simulado sábado ou domingo? Sábado tinha o RPM. Quando tinha simulado do Enem, fazia sábado e domingo. Você fez Reforço? Fiz o RPM. No primeiro semestre eu vinha sempre. No segundo semestre não vim com tanta frequência. Era um pouco do cansaço, mas também porque eu gostava de usar o sábado para fazer exercícios. Como a gente tinha
POIS É, POESIA
Cruz e Sousa SERVIÇO DE VESTIBULAR
Inscrições
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as apostilas, preferia ficar em casa fazendo os exercícios. Para você, qual foi a importância do RPM? Os exercícios eram mais direcionados, um pouco mais difíceis, geralmente exigiam mais. Você ficava preocupada com isso? Eu não achava que precisava tirar só A para passar. Você demorava mais ou menos uma hora e meia da sua casa para cá. O que você fazia nesse tempo? Sempre estudava no trem. Principalmente na volta. Dava para ler a teoria e também fazer os exercícios? Uma vez encontrei no trem um colega daqui e ele ficou surpreso, eu lá sentada, fazendo exercícios. Exercícios de Português, de História, que eram mais leitura mesmo, eu fazia no trem. Quando tinha cálculos, deixava para fazer em casa. E em Biologia, como você fazia? Depende. Eu gostava de dar bastante prioridade para Biologia, então os testes, como os de Ecologia, eu tentava fazer no trem. Os de Genética, e de partes com um pouco mais de dificuldade, eu gostava de fazer em casa. Em quais matérias você sentia que tinha uma base mais forte? Eu costumava entender muitas coisas que os professores falavam nas aulas de Física, uma matéria em que, desde o 1o ano do Ensino Médio, eu tive muito estímulo. Foi uma matéria a que eu me dediquei bastante. Gostava também de História, os professores falavam e eu costumava lembrar bastante coisa. Em quais matérias você tinha uma defasagem maior? Geografia era uma matéria em que eu não costumava ir muito bem nos simulados, um índice de acertos mais baixo. Matemática tinha umas partes que exigiam um raciocínio mais específico, não ia tão bem. Em Química eu tinha um pouco de dificuldade, mas achava muito interessante e me dedicava. Melhorei bastante. Como você treinava Redação? Eu costumava fazer as redações do RPM e as dos simulados. Em casa fazia os temas que os professores passavam na aula, mas não sempre. Assistiu às palestras sobre as obras? Sim. Aquelas que não pude assistir ao vivo, vi pelo site. Qual foi a importância dessas palestras para você? Acho que as palestras direcionaram o que eu tinha de focar, o que tinha de lembrar, o que tinha de levar de cada livro para a prova. Qual foi sua pontuação na 1a fase da Fuvest? Na 1a fase, com o bônus de escola pública, a nota ficou em 81. Esse resultado era o esperado? Era bem o que eu tirava nos simulados. Nos simulados eu fazia geralmente 68, 67. Foi o que fiz na prova.
Na 2a fase da Fuvest, no primeiro dia, tem a prova de Português e Redação. Como foi seu desempenho? No primeiro dia eu tirei 61,9 na prova. Na Redação minha nota foi 68,75. Achei uma prova tranquila. Redação também foi um tema que achei legal [Envelhecimento populacional e cuidados médicos no fim da vida]. No segundo dia, na prova geral, quanto você tirou? Tirei 76,56. Foi uma prova de que eu gostei. Resolvi a prova toda e consegui fazer bastante coisa consciente, sabendo o que estava fazendo. No terceiro dia são as matérias prioritárias da carreira. Qual foi sua nota? 66,67. Foi a prova que achei mais difícil. Saí achando que tinha ido muito mal. Depois eu fui ver umas correções comentadas e sobre algumas coisas eu falei: “Legal, acertei”. Na 2a fase, alguma surpresa? Acho que me saí melhor nas matérias em que eu tinha mais dificuldades no começo do ano, que foram as que eu foquei mais. Tinha feito a prova como treineira no 2o ano, fui mal, tirei 37 no 3o dia. Na escala de zero a 1 000, qual foi sua pontua ção na Fuvest? 838,6. Na carreira Medicina, como você ficou classificada? 34o lugar. Como ficou sabendo de sua aprovação na Fuvest? Estava no carro com minha mãe, chegando em casa, e vi pelo celular. Achei que fosse Santa Casa. Só tive certeza quando minha prima que estuda na Pinheiros me mandou mensagem. O que sentiu quando confirmou que tinha entrado na Pinheiros? Fiquei muito, muito feliz. Como foi no dia da matrícula? Fui com minha irmã. É muito legal. Começa a cair a ficha. Você olha aquele prédio: “Caramba, vou estudar aqui”. O que chamou mais sua atenção nesse primeiro contato? Achei o pessoal de lá muito unido, os veteranos são muito receptivos. Desde o começo achei tudo muito completo, tudo muito bem feito. Foi tudo grandioso no começo. O que você tem de matérias neste primeiro semestre? Tem muitas aulas teóricas no estudo de Química, no estudo de Ciências Biomédicas, Fisiologia de Membranas, Bioquímica, Biologia Molecular, Biologia Celular, Atenção Primária à Saúde, Introdução à Medicina. Para você, qual é a matéria mais difícil? Eu tive bastante dificuldade em Fisiologia de Membranas. Ficava um pouco perdida nas aulas.
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De qual matéria você está gostando mais? Estou gostando bastante de Introdução à Medicina, tem aulas muito legais. Por exemplo, a gente tem Prática Médica, Noções de Enfermagem e BLS, que é uma aula bem prática. Das matérias mais teóricas eu gosto de Bioquímica. O que é BLS? Basic Life Support. É como primeiros socorros. Do que você mais gostou na Pinheiros até agora? A parte de estrutura é muito legal. Na parte humana eles dão um suporte muito bom para os alunos. Entrar na Pinheiros muda sua vida. Além das aulas da graduação, você está fazendo alguma outra atividade? Estou fazendo a EMA, que é a Extensão Médica Acadêmica. E dou plantão em Química e Biologia no MedEnsina, que é um curso pré-vestibular na faculdade [curso de natureza social, que usa material cedido pelo Etapa]. Na EMA, o que você faz? A gente tem reuniões semanais, aulas de anamnese, coisas de atendimento. Eu acompanhei um atendimento no SASP na Penha [Serviço Assistência Social da Penha]. Os veteranos atendem as pessoas que vão lá fazer exames de rotina. Eles explicam para a gente todo o procedimento que vão fazer. Você tem ideia da área que pretende seguir em Medicina? Ainda não. Quando comecei a fazer cursinho gostava muito de Oncologia. Mas agora, com as aulas, você vê que tem muita coisa interessante. O que você diria a quem está se preparando este ano para os vestibulares? A gente pensa que está pior do que está de verdade. Quando eu me via perto de pessoas que queriam Medicina ou ouvia as pessoas que tinham passado, eu achava que era uma coisa que nunca ia acontecer comigo. Mas, se dedicando, não perdendo o ritmo, continuando a fazer as tarefas, prestando atenção nas aulas, é possível. Como fica marcado para você o ano passado? Um ano muito difícil, mas também um ano muito feliz. Foi uma preparação para a faculdade. Você acha que está diferente de quando começou no cursinho? Bem diferente. Aprendi muito, amadureci bastante. Do que você tem saudade? Tenho muita saudade dos professores, eram aulas bem legais. Gostava também de estar num ambiente com todo mundo querendo uma coisa, sentia que o pessoal estava muito unido por conta disso. Sinto bastante saudade das amizades que fiz no cursinho. O que você tira de lição dessa experiência? A lição é que se você se dedicar, fizer o que estiver ao seu alcance para que dê certo, vai dar certo. A gente acha que nunca vai chegar a nossa vez, mas chega.
Jornal ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343
CONTO
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Um homem célebre Machado de Assis
–A
h! O senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: – Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor? Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, Rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular. – Diga, minha senhora. – É que nos toque agora aquela sua polca Não Bula Comigo, Nhonhô. Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna. Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que, alegando dor de cabeça, pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu. Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou, depois que dobrou a esquina da Rua
Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarineta. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na Rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens: um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa. Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear. – Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir. Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver. Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven. Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café. Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como
se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia, pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a ideia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais? Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de ideia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a ideia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma ideia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano. Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou. – Meu senhor quer a bengala ou o chapéu de sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram frequentes. – A bengala. – Mas parece que hoje chove. – Chove, repetiu Pestana maquinalmente. – Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro. Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente: – Espera aí. Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do com-
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CONTO
positor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene. Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar: mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda. – Vai fazer grande efeito. Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu este: Pingos de Sol. O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, – ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não Fazem Festa. – Mas que quer dizer Candongas Não Fazem Festa? perguntou o autor. – Não quer dizer nada, mas populariza-se logo. Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante. Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora Dona, Guarde o Seu Balaio. – E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor. Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a Rua do Aterrado. Essa lua de mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o
fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil... – As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se. Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa do Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar. – Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia. – Vai casar com uma viúva. – Velha? – Vinte e sete anos. – Bonita? – Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de S. Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica. Os escrivães não deviam ter espírito, – mau espírito, quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha de inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas. Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias. Desde logo, para comemorar o consórcio, teve ideia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; cousa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do
Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos. – Acaba, disse Maria; não é Chopin? Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. A ideia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de S. Cristóvão. – Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca! Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve ideia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa. Poucos dias depois, – uma clara e fresca manhã de maio de 1876, – eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado. Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-da-colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível. Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Requiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer cousa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda. Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Requiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar.
CONTO Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem ideia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Requiem não estava concluído. Redobrou os esforços; esqueceu as lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando. Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Requiem. “Para quê?” dizia ele a si mesmo. Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor. – Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar de sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito? – Nada. – Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar. Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.
– Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta! Não é política; é um bom título de ocasião. Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de cousas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem ideia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois. Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polca; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos
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violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio. Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu. – Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu. – Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana. Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se. – Adeus. – Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais. Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo. Extraído de: Várias histórias.
(ENTRE PARÊNTESIS)
Quem é o pai? Dois homens, Pedro e Paulo, acompanhados de seus filhos Jorge e João, compram livros. Cada livro tem um desconto, em reais, igual ao número de livros comprados. Cada família (pai e filho) teve um desconto de R$ 65,00. Pedro comprou 1 livro a mais do que Jorge, e João comprou apenas 1. Como se chama o pai de João?
RESPOSTA 1
1
João
(x − 1)2
x−1
Jorge
x2
x
Pedro
Desconto (R$)
No de livros comprados
Temos duas possibilidades (U = N): i) Pedro é pai de João. Assim, temos a equação: x2 + 1 = 65 ⇔ x2 = 64 ⇔ x = 8 V = {8} ii) Pedro é pai de Jorge. Então: x2 + (x – 1)2 = 65 ⇔ x2 – x – 32 = 0 V = Ø Logo x = 8 e Pedro é o pai de João.
SOBRE AS PALAVRAS
Fazer uma vaquinha A expressão surgiu no ano de 1920 e significa reunir pessoas e arrecadar dinheiro. Naquela época, os jogadores de futebol não recebiam salário, então a torcida juntava dinheiro para recompensá-los. O valor do prêmio era associado ao jogo do bicho e o valor máximo era de vinte e cinco mil-réis. O número 25 no jogo do bicho corresponde à vaca. Daí a expressão “fazer uma vaquinha”.
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ARTIGO
Estudo identifica padrão de associação entre doenças crônicas em São Paulo Karina Toledo
A
o analisar dados de entrevistas feitas com 5 037 moradores da Região Metropolitana de São Paulo, pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) identificaram de que forma fatores individuais, entre eles sexo, idade, condição socioeconômica e área de residência, influenciam no padrão de multimorbidade – termo que no jargão médico descreve a ocorrência concomitante de duas ou mais doenças crônicas em um mesmo indivíduo. De acordo com os resultados, a ocorrência simultânea de enxaqueca e outros quadros dolorosos, transtornos de ansiedade, depressão e insônia foi cerca de duas vezes mais frequente entre as mulheres. Já a associação entre artrite e doenças metabólicas, como as cardiovasculares e o diabetes, foi mais comum entre idosos e entre moradores de bairros com maior desigualdade de renda. A associação concomitante de problemas relacionados a drogas, álcool e tabaco foi mais frequente entre jovens, pessoas do sexo masculino e com maior poder econômico. Já o grupo de doenças composto por câncer e quadros neurológicos, entre eles Alzheimer, não evidenciou relação com nenhum dos fatores individuais e contextuais investigados. “Nossos resultados, assim como os de estudos internacionais, indicam que pessoas com duas ou mais doenças crônicas têm risco aumentado para desenvolver outros quadros crônicos associados. Quanto mais avançada é a idade e menor é o nível socioeconômico, maior é esse risco. E isso acaba criando clusters de morbidade físico-mental na população”, disse Wang Yuan Pang, pesquisador do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP e coordenador da pesquisa ao lado de Laura Helena Andrade, também da FMUSP. Os resultados foram apresentados por Wang no dia 8 de abril, durante o evento internacional World Health Summit – Regional Meeting Latin America, e serão publicados em uma edição especial da revista The Lancet prevista para ser lançada em outubro na cidade de Berlim, Alemanha. A análise é um desdobramento do São Paulo Megacity Mental Health Survey (leia mais em http://agencia.fapesp.br/15215),
levantamento concluído em 2009 no âmbito do Projeto Temático “Estudos epidemiológicos dos transtornos psiquiátricos na Região Metropolitana de São Paulo: prevalências, fatores de risco e sobrecarga social e econômica”, financiado pela FAPESP e coordenado por Andrade. As entrevistas foram realizadas entre os anos de 2005 e 2007 com uma amostra representativa da população da Região Metropolitana de São Paulo maior de 18 anos. O objetivo inicial era estimar em uma área altamente urbanizada a prevalência de transtornos mentais. O número encontrado foi próximo a 30% – o mais alto registrado entre os 24 países que integraram a Pesquisa Mundial sobre Saúde Mental, da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Ao analisar dados de 5 037 moradores da região metropolitana, pesquisadores da USP identificam de que forma fatores como sexo, idade, condição socioeconômica e área de residência influenciam os padrões de multimorbidade entre doenças crônicas. (foto: Wikimedia)
Os transtornos de ansiedade foram os mais comuns, afetando 19,9% dos entrevistados. Em seguida, destacam-se os transtornos de humor (11%), transtornos de controle de impulso (4,3%) e problemas relacionados ao uso de substâncias (3,6%). Cerca de 10% dos casos foram considerados graves. Desses, apenas 30% obtiveram acesso ao tratamento. “Em nosso questionário, havia uma seção sobre doenças crônicas. Perguntávamos se em algum momento a pessoa havia recebido o diagnóstico de um médico relativo a problemas cardiovasculares, hipertensão, diabetes, entre outras. E usamos escalas já validadas para avaliar condições como enxaqueca e insônia”, contou Andrade.
São Paulo Megacity De acordo com Wang, a análise do banco de dados do São Paulo Megacity
permitiu separar as 14 condições crônicas referidas pelos entrevistados em quatro padrões de doenças que se correlacionam fortemente, ou multimorbidade: um de doenças dolorosas, ansiedade e depressão; outro de doenças metabólicas e artrite; um terceiro relacionado a abuso de substâncias; e um quarto, mais biológico, que inclui câncer e quadros neurológicos. “Decidimos então investigar o que determinava esse padrão de concentração de doenças. Para isso, usamos uma técnica estatística chamada análise fatorial. Criamos um indicador, que é um coeficiente de regressão, e testamos vários modelos de análise multinível para avaliar o quanto cada um dos fatores individuais e contextuais influenciam em cada um dos quatro padrões de multimorbidade”, disse Wang. Os resultados mostraram também que as doenças cardiovasculares, os transtornos de ansiedade e a depressão foram as doenças que apresentaram maior associação com outras condições crônicas. Os pesquisadores estimam que sejam as que impactam mais fortemente a qualidade de vida dos afetados. Esses resultados confirmam as informações recentes do estudo Carga Global de Doenças 2010 para o Brasil. Na opinião dos pesquisadores, os dados apontam para a importância de reformular o treinamento médico de forma a oferecer aos pacientes um tratamento mais integrado. “No Brasil, a medicina está muito especializada. O cardiologista cuida do coração, o pneumologista, do pulmão, e assim por diante. Mas, na realidade, o cardiologista também deve estar preocupado com a depressão, ansiedade ou dor, pois essas condições muitas vezes estão associadas”, opinou Wang. “Transtornos mentais são muito prevalentes e costumam ocorrer junto com as demais doenças crônicas. É necessário, portanto, incluir a psiquiatria no planejamento de estratégias de prevenção e de tratamento”, ressaltou Andrade. A pesquisa também contou com apoio da FAPESP por meio do projeto “Identificação dos diferentes subgrupos de usuários de álcool e fatores associados na região metropolitana de São Paulo: diferenças entre gêneros, dados sociodemográficos e comorbidades psiquiátricas”, recentemente concluído. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, maio/2014.
ARTIGO
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Impactos e desequilíbrios Edson Alberto Carvalho Ferreira
Da aldeia à vila, do bairro ao município, da província ao país, das regiões aos continentes: qualquer impacto socioambiental estará sempre atingindo o sistema finito Terra como um todo.
A
s marcantes transformações tecnológicas e socioeconômicas do século XX, principalmente após o término da Segunda Guerra Mundial, ampliaram não só as escalas dos impactos no meio ambiente como também intensificaram os problemas socioambientais em todas as dimensões da biosfera. A Revolução Científica e Tecnológica (com suas inovações nos processos de produção e distribuição e nos padrões de consumo), a “explosão demográfica” e a extensão mundial do crescimento urbano-industrial, bem como todas as transformações socioeconômicas relacionadas a esses fenômenos, implicaram um grande aumento dos processos de ocupação-valorização de terras, de utilização de recursos naturais e de fortes transformações dos ambientes fisiográficos e ecológicos.
cioambientais, nas suas diferentes escalas de ocorrência, estão inter-relacionados nas suas causas e nos seus efeitos.
O “improvável” se tornando uma incômoda realidade A recente divulgação do chamado IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), órgão da ONU que reuniu em Paris renomados especialistas e pesquisadores das condições climáticas, tornou públicas e notórias duas hipóteses incômodas – até então passíveis de incertezas e contestações. A primeira é a de que o planeta está esquentando de forma intensa e crescente; a segunda é a de que a ação antrópica é a principal responsável por esse aquecimento.
Escalas e amplitudes dos impactos ambientais Os impactos socioambientais, com suas causas e efeitos, variam não só no tempo como também nos diversos espaços de suas ocorrências. Relacionados a fenômenos naturais, estão cada vez mais marcados pela interferência das atividades humanas, ou seja, a chamada ação antrópica. Isso não só aumenta a complexidade desses fenômenos, como complica ainda mais seu entendimento e, principalmente, as condições de sua previsibilidade e de seu controle. Assim, têm-se impactos de escala global como a intensificação do efeito estufa e a poluição dos oceanos. Há outros impactos que ocorrem, por sua vez, na amplitude de escalas mais regionais ou, mesmo, mais locais como a poluição dos mares e do ar, de rios e lagos, a chuva ácida, a devastação de biomassas e a destruição de biodiversidade, o avanço da desertificação, as enchentes, os deslizamentos, os fenômenos de inversão térmica e de formação de “ilhas de calor”, entre outros. Certamente há quem acredite que esses são problemas isolados, desvinculados. Há, no entanto, cada vez mais consenso nos meios científicos de que todos os fenômenos de impactos so-
O relatório do IPCC de fevereiro de 2007 mostra de maneira inequívoca que aquilo que parecia improvável é agora certo: está se intensificando o efeito estufa e, consequentemente, o aquecimento global da Terra. Sem dúvida, isso se deve ao alarmante aumento da produção e à liberação de gases do efeito estufa. Dentre os principais, o destaque é para o CO2 (dióxido de carbono) e o CH4 (metano), resultantes do grande aumento da atividade industrial, da circulação de veículos automotores, das queimadas, da expansão da agropecuária e, no geral, dos padrões de produção e de consumo da população.
Algumas dúvidas diante de indesejáveis certezas Por trás das perguntas a seguir, há questões antigas que permanecem; há também indagações novas que estão
exigindo respostas mais adequadas a problemas atuais e futuros cada vez mais complexos e difíceis de enfrentar e solucionar: • Quais são os limites das possibilidades da biosfera do planeta Terra, mantendo os atuais padrões de produção e de consumo que, segundo muitos especialistas, já estão consumindo 20% além da capacidade de reposição da biosfera e, o que é pior, com o deficit crescendo anual mente? • Como manter e, sobretudo, ampliar para toda a humanidade os padrões de consumo e os estilos de vida (a tal “partilha igualitária do ter”) de menos de 10% da população mundial e que concentra 80% da renda e do consumo na Terra? • Como enfrentar e superar os impasses para viabilização de um efetivo “desenvolvimento sustentável” com a manutenção de padrões de produção e de consumo, vinculados a uma matriz energética baseada em fontes não renováveis de energia, com a expansão da agropecuária com enormes desperdícios, com o processo de urbanização desmesurado e, sobretudo, com a fragilidade das instituições locais, regionais e, principalmente, globais para o ordenamento dos processos de crescimento e desenvolvimento econômico? • Diante dos, cada vez mais evidentes, efeitos desastrosos do aquecimento global, das mudanças climáticas e da falta de políticas locais e globais de reparação, não estaríamos frente ao dilema: mitigar os efeitos ou se adaptar para sobreviver? Segundo a conclusão do último relatório do IPCC de maio de 2007 (lançado na reunião de Bangcoc, Tailândia), intitulado “Mitigação da mudança climática” e que lista as principais soluções para o problema de como reduzir as emissões globais de gases do efeito estufa, é possível mitigar os problemas com estratégias de ação e tecnologias. Para tanto, recomenda a urgência na ampliação do uso de tecnologias já disponíveis e de novas tecnologias que reduzam não só o consumo geral da energia, bem como, e principalmente, a emissão de gases do efeito estufa em todos os setores da economia.
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POIS É, POESIA
Cruz e Sousa (1861-1898)
Cristais
Mais claro e fino do que as finas pratas o som da tua voz deliciava... Na dolência velada das sonatas como um perfume a tudo perfumava. Era um som feito luz, eram volatas em lânguida espiral que iluminava, brancas sonoridades de cascatas... Tanta harmonia melancolizava. Filtros sutis de melodias, de ondas de cantos volutuosos como rondas de silfos leves, sensuais, lascivos... Como que anseios invisíveis, mudos, da brancura das sedas e veludos, das virgindades, dos pudores vivos.
Incensos
Dentre o chorar dos trêmulos violinos,
por entre os sons dos órgãos soluçantes sobem nas catedrais os neblinantes incensos vagos, que recordam hinos... Rolos d’incensos alvadios, finos e transparentes, fúlgidos, radiantes, que elevam-se aos espaços, ondulantes, em Quimeras e Sonhos diamantinos. Relembrando turíbulos de prata incensos aromáticos desata teu corpo ebúrneo, de sedosos flancos. Claros incensos imortais que exalam, que lânguidas e límpidas trescalam as luas virgens dos teus seios brancos.
Deusa serena
Espiritualizante Formosura gerada nas Estrelas impassíveis, deusa de formas bíblicas, flexíveis, dos eflúvios da graça e da ternura. Açucena dos vales da Escritura, da alvura das magnólias marcessíveis, branca Via Láctea das indefiníveis brancuras, fonte da imortal brancura. Não veio, é certo, dos pauis da terra tanta beleza que o teu corpo encerra, tanta luz de luar e paz saudosa...
Vem das constelações, do Azul do Oriente, para triunfar maravilhosamente da beleza mortal e dolorosa!
Lua
Clâmides frescas, de brancuras frias, finíssimas dalmáticas de neve vestem as longas árvores sombrias, surgindo a Lua nebulosa e leve...
Névoas e névoas frígidas ondulam... Alagam lácteos e fulgentes rios que na enluarada refração tremulam dentre fosforescências, calafrios... E ondulam névoas, cetinosas rendas de virginais, de prônubas alvuras... Vagam baladas e visões e lendas no flórido noivado das Alturas... E fria, fluente, frouxa claridade flutua como as brumas de um letargo... E erra no espaço, em toda a imensidade, um sonho doente, cilicioso, amargo... Da vastidão dos páramos serenos, das siderais abóbadas cerúleas cai a luz em antífonas, em trenos, em misticismos, orações e dúlias... E entre os marfins e as pratas diluídas dos lânguidos clarões tristes e enfermos, com grinaldas de roxas margaridas vagam as Virgens de cismares ermos... Cabelos torrenciais e dolorosos boiam nas ondas dos etéreos gelos. E os corpos passam níveos, luminosos, nas ondas do luar e dos cabelos... Vagam sombras gentis de mortas, vagam em grandes procissões, em grandes alas, dentre as auréolas, os clarões que alagam, opulências de pérolas e opalas. E a Lua vai clorótica fulgindo nos seus alperces etereais e brancos, a luz gelada e pálida diluindo das serranias pelos largos flancos...
Quando ressurges, quando brilhas e amas, quando de luzes a amplidão constelas, com os fulgores glaciais que tu derramas dás febre e frio, dás nevrose, gelas... A tua dor cristalizou-se outrora na dor profunda mais dilacerada e das dores estranhas, ó Astro, agora, és a suprema Dor cristalizada!...
Braços
Braços nervosos, brancas opulências, brumais brancuras, fúlgidas brancuras, alvuras castas, virginais alvuras, latescências das raras latescências. As fascinantes, mórbidas dormências dos teus abraços de letais flexuras, produzem sensações de agres torturas, dos desejos as mornas florescências. Braços nervosos, tentadoras serpes que prendem, tetanizam como os herpes, dos delírios na trêmula coorte... Pompa de carnes lépidas e flóreas, braços de estranhas correções marmóreas, abertos para o Amor e para a Morte!
Clamando...
Bárbaros vãos, dementes e terríveis bonzos tremendos de ferrenho aspeto, ah! deste ser todo o clarão secreto jamais pôde inflamar-vos, Impassíveis! Tantas guerras bizarras e incoercíveis no tempo e tanto, tanto imenso afeto, são para vós menos que um verme e inseto na corrente vital pouco sensíveis. No entanto nessas guerras mais bizarras de sol, clarins e rútilas fanfarras, nessas radiantes e profundas guerras... As minhas carnes se dilaceraram E vão, das Ilusões que flamejaram, com o próprio sangue fecundando as [terras...
Ó Lua das magnólias e dos lírios! Geleira sideral entre as geleiras! Tens a tristeza mórbida dos círios e a lividez da chama das poncheiras!
Extraído de: Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1961.
SERVIÇO DE VESTIBULAR Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) Período de inscrição: até 14 de julho de 2014. Somente via internet. Endereço da faculdade: Rua Padre Salvador, 875 – CEP 85015-430 – Santa Cruz – Guarapuava – PR – Fone: (42) 3621-1000. Requisito: taxa de R$ 100,00. Cursos e vagas: consultar site www.unicentro.br/vestibular Exames: dias 24 e 25 de agosto de 2014. Leituras obrigatórias: • Laços de família – Clarice Lispector. • O primo Basílio – Eça de Queirós. • A falecida – Nelson Rodrigues. • Memorial de Aires – Machado de Assis. • Primeiras estórias – João Guimarães Rosa. • Capitães da Areia – Jorge Amado. • Memórias de um sargento de milícias – Manuel • Toda poesia – Paulo Leminski. • Então você quer ser escritor? – Miguel Sanches Neto. Antônio de Almeida. • Vidas secas – Graciliano Ramos.