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Jornal do Colégio PRIMEIRA QUINZENA DE DEZEMBRO DE 2013 – NÚMERO 564
ENTREVISTA
Carreira – Direito
POIS É, POESIA
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CONTO
Missa do galo – Machado de Assis
ESPECIAL
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Seleta modernista
Descontração com arte e cultura
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ESPECIAL
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Os bastidores da Sétima Arte
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“Dificilmente faltam vagas na área do Direito. Há muita vaga, tem muita opção, muita coisa diferente.”
Alexandre Moron de Almeida
Alexandre Moron de Almeida estudou na Faculdade de Direito da USP e hoje, formado, prepara-se para prestar concurso para promotor público. Pretende também entrar em uma pós-graduação. Aqui ele faz um relato de seus anos na faculdade, dos estágios e das atividades que desenvolveu. Do tempo do colégio ele lembra que foi “muito, muito estudo” e completa observando que “vale a pena, porque depois tudo que você estudou vai ser útil”.
JC – Como você chegou à sua escolha por Direito como carreira? Alexandre – Minha irmã é advogada e eu sempre tive esse contato com a carreira. Vendo-a trabalhar, achei que eu me daria bem em Direito. Foi uma boa escolha. Além da Fuvest, você prestou outros vestibulares? Eu me inscrevi também na primeira turma que prestou vestibular para Direito na GV, mas desisti de lá quando saíram os resultados da 1a fase da Fuvest. Tirei uma nota boa e decidi que era a São Francisco mesmo que eu queria. Como você veio estudar no Etapa? Um amigo e as irmãs dele estudaram aqui. Gostaram muito. Por conta disso, optei por vir para cá. Como foi sua adaptação aqui? Foi rápida. Logo peguei o ritmo de estudos. Deu tudo certo, gostei das pessoas. No 3o ano, quando ia prestar vestibular, você mudou alguma coisa em seu método de estudo? Mantive mais ou menos meu ritmo de estudos. Sempre procurei estudar e tirar o máximo que eu conseguia das matérias. Os professores do Etapa são muito bons e me estimulavam a estudar. O que eu fiz de diferente foi a preparação especial para a GV. O que mudou foi decorrente das próprias atividades do colégio.
Você participou de alguma atividade extra no Etapa? Participava dos esportes, alguns campeonatos de handebol. E das gincanas. Como foi seu início na São Francisco? Um choque. Acho que todo aluno que sai do Etapa e vai para a Faculdade de Direito da USP, talvez outras faculdades, sente esse choque, porque você não tem aquela carga de aulas, não há obrigatoriedade de participar das aulas, não tem professores preocupados com o ensino. Na verdade, na São Francisco tem professores muito bons, e também professores que não são comprometidos com o ensino. No começo, minha reação foi um pouco de me distanciar. Ia com uma frequência menor para a faculdade. Eu fiquei desestimulado a estudar. Quanto tempo durou esse processo em que você esteve desestimulado? Foram dois meses no primeiro semestre e quase o segundo semestre todo. Nesse período você pensou em largar o curso, fazer outra faculdade? Não. Eu apenas fiquei um pouco mais tranquilo, mais voltado para projetos pessoais. Você começa a aprender a selecionar as aulas, a se matricular em outras disciplinas, conforme o professor. O que me empolgou e me deu a certeza de que
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ENTREVISTA
queria Direito mesmo foi quando me envolvi com algumas atividades na São Francisco e aí fui me interessando. Acho que o grande diferencial da Faculdade de Direito da USP é o enorme número de atividades que você tem para fazer.
Essas suas outras atividades começaram quando? No final do 1o ano. Lá tem o Centro Acadêmico e tem uma representação interna dos alunos junto aos órgãos da faculdade, que ajudam a administração na tomada de algumas decisões. Pode-se dizer que é uma parte de política interna na faculdade, tendo contato com professores e funcionários e apresentando algumas demandas dos alunos. Essa foi uma atividade que me estimulou muito no 2o e no 3o ano. Foi muito interessante conhecer a faculdade, as pessoas, e tentar de alguma maneira contribuir. Acho que é uma das experiências que servem para sua carreira, permitem saber o que você quer no Direito. Você chegou a participar de mais alguma atividade? Participei de algumas monitorias, também no 2o e no 3o ano. Que matérias você teve em cada ano? De maneira geral, você tem na faculdade dois tipos de disciplinas: um, disciplinas mais abertas, em que se vai discutir o que foi o Direito, o que é o Direito, o que pode ser o Direito; dois, matérias que procuram passar conhecimento das normas jurídicas atuais. Você tem basicamente essas duas grandes divisões das disciplinas. Desde o 1o ano tem Direito Constitucional. Hoje, ao estudar normas jurídicas, você parte da Constituição. Depois tem Direito Administrativo, do Trabalho, Direito Civil, que vai do 1o ao 4o ano, Direito Penal. No 4o ano começa a ter maior faixa de optativas. Que optativas você escolheu? Aproveitei algumas disciplinas de cada área com base no professor que estava dando aquela disciplina. Peguei Processual, disciplinas do Direito Comercial, do Trabalho. Como você define cada ano do curso na São Francisco? No 1o ano você tem o impacto, fica um pouco assustado, e tem a novidade, começa a descobrir o que tem na faculdade. No 2o ano você escolhe o que quer fazer, de tudo que a faculdade oferece. No 3o ano você já começa a procurar alternativas profissionais, estágio. O 4o ano talvez seja de tomada de decisão sobre o rumo que você pretende seguir na área jurídica. E no 5o ano você está com o olhar menos para a faculdade e mais para fora.
No segundo semestre, qual foi sua preocupação? Foi ter certeza do que eu ia fazer dali para frente. Como a faculdade dá liberdade a você de se matricular nas optativas, eu fiz muitos créditos antes. No meu último semestre fiz poucas matérias. Ia para a faculdade três dias por semana. Desligava um pouco da faculdade e começava a pensar no dali para frente. Durante o curso, que estágios você fez? No início do 2o ano eu entrei como estagiário em um escritório de advocacia – Rocha e Barcelos Advogados. É um escritório de pequeno a médio porte, muito bem organizado, muito bem estruturado. Fiz entrevista e deu certo. Foi bom. O que você fazia nesse estágio? Trabalhava na parte de processos judiciais. O escritório tem processos em juízo para defender os clientes e você tem de acompanhar o dia a dia, o andamento do processo. O juiz dá uma decisão, você tem de recorrer. O papel do estagiário nesse momento é fazer esse acompanhamento. E, conforme vai adquirindo conhecimento, ao sair uma decisão contrária, você começa a esboçar o recurso e leva para o advogado. Você aprende muita coisa no dia a dia do fórum. Aprende muito de contencioso. Você ficou quanto tempo nesse escritório? Mais ou menos seis meses. Aí passei em um concurso para a parte administrativa da Defensoria Pública, onde fiquei os seis meses seguintes. Trabalhava perto da faculdade, foi bom para minhas atividades como representante discente, tinha uma facilidade maior de estar lá. Foi boa a experiência de conhecer um pouco a parte da Defensoria, ganhava mais que no estágio e estava perto da faculdade. Mas, por aquilo não estar me agregando nada do ponto de vista jurídico, optei por sair. Fui fazer estágio com um desembargador na Justiça Federal. Foi particularmente interessante porque ele trabalha numa seção no tribunal que tem processos cíveis, tributários, penais, um pouco de tudo. No 3o ano? Isso. Já tinha um pouco mais de base. A partir do 3o ano, você começa a procurar vagas que vão acrescentar conhecimento jurídico, não aquele dia a dia do fórum.
No último ano, qual era sua maior preocupação? No primeiro semestre foi concluir o que a gente chama de Tese de Láurea, o trabalho de conclusão do curso.
Durou quanto tempo esse estágio? Fiquei lá mais ou menos seis meses. Saí por minha conta. Você pode ficar mais tempo. Fui para um estágio em outro escritório. CSMG Advogados. Quatro sócios. Aí, já com mais conhecimento, pude trabalhar mais fazendo peças.
Qual foi sua tese? Minha tese foi sobre a necessidade ou não de motivação nas decisões do Tribunal do Júri. O juiz, hoje, quando decide, precisa explicar os motivos que o levaram a condenar ou não, no caso penal. E o jurado simplesmente vota, não se comunica com os demais como em alguns sistemas. Não se sabe por que o jurado condenou.
Você continuava indo ao fórum? Ia menos. Já tinha base para desenvolver um trabalho um pouco mais jurídico. Mas eu não descarto a importância de ir ao fórum. Depois de seis meses nesse escritório, saí para uma atividade que não tem a ver com a faculdade. Fui trabalhar na Disney durante três meses, dezembro, janeiro e fevereiro inteiros.
ENTREVISTA Você saiu daqui já empregado? Sim. É um programa da Disney bem estruturado. Você vai para lá já sabendo onde vai trabalhar, o local onde vai ficar. Eu trabalhei no restaurante de um hotel. Conheci esse programa por um amigo que faz curso de Turismo. Decidi ir porque tinha sido um ano um pouco estressante, com muitas atividades ao mesmo tempo. Precisei sair um pouco. Isso não prejudicou você na faculdade? Não. As aulas começaram no final de fevereiro, não chegou a afetar. Teve mais alguma experiência de estágio? Voltei para o escritório CSMG e trabalhei mais um tempo, até o meio do ano, quando passei num concurso. Trabalho com desembargador estadual. Entrei como funcionário público de nível médio, porque não tinha me formado. É onde estou desde julho do meu 4o ano. O trabalho com o desembargador estadual é diferente do que você fazia com o desembargador federal? Agora é diferente, não trabalho com Direito Penal, é só área civil, direito de família e tal. Está sendo uma experiência muito interessante. Depois de ver vários processos você começa a entender a ordem das coisas, como funciona. É fácil conseguir estágio? É fácil. Tem muita necessidade porque hoje os escritórios de advocacia, em vez de contratar advogados, contratam estagiários. Do 3o ano para frente. Como você tem o nome da Faculdade de Direito USP, que no fundo é um carimbo que atesta que você tem algum diferencial, é relativamente fácil. Qual é a importância do estágio? Eu acho que é essencial. Na sala de aula você aprende um pouco do que é Direito, mas só na prática vai compreender muita coisa que vê na sala de aula. Você prestou o exame da OAB? Prestei no início do meu 5o ano. Tenho a aprovação no Exame, mas como concursado eu não posso ter a carteira da OAB. Prestei para ver como é a prova e tudo mais. Acho que foi importante prestar. Se um dia quiser, posso tirar. O resultado do exame continua válido. Você fez alguma preparação especial para o exame? Estudei provas anteriores. Você acompanha o mercado de trabalho para o pessoal de Direito? Um pouco. Dificilmente faltam vagas na área do Direito. Há muita vaga, tem muita opção, muita coisa diferente. Eu, por
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exemplo, tudo que falei até agora envolve a parte do contencioso, a parte do processo, mas tem a parte consultiva, que não envolve processo, acaba só elaborando contrato. O Direito abarca muitos gostos e por isso tem muitas vagas, muitas áreas diferentes.
Além de advogado, quais são as outras áreas que o profissional de Direito pode seguir? A maioria dos cargos que envolvem a administração pública, a função de magistrado, a função de promotor, a função de defensor público. O que diferencia um candidato em uma entrevista para emprego ou estágio? Em primeiro lugar, a faculdade em que você estuda. Claro, domínio de línguas. E a experiência de intercâmbio é importante. Quanto mais perto do fim do curso, o que mais conta é a experiência acumulada. Como você se imagina profissionalmente daqui a 10 anos? Eu tenho 23 anos, penso em prestar concurso do Ministério Público do Estado de São Paulo para promotor de justiça. É meu foco, comecei a estudar para isso, a me preparar para o concurso. Profissionalmente é assim que me vejo. Isso implica talvez morar no interior. Eu tenho vontade de continuar os estudos e fazer uma pós-graduação, mas a ideia é primeiro estudar para o concurso. Como você vê sua carreira até aqui? Não tenho dúvidas hoje e vejo isso como resultado da própria caminhada. Trabalhando, aos poucos você vai vendo o que é o Direito. Realmente era isso que eu queria fazer. O que, de seu tempo no Colégio, foi importante na faculdade e no trabalho e continua a ser valorizado por você, em seu projeto de carreira? Muitas coisas que os professores falavam aqui acabam ecoando. O principal fator, a parte em que o Etapa mais me impactou, foi sua organização geral dos estudos, sua preocupação com os detalhes. Isso é uma coisa que eu guardo. A organização, a estrutura, tudo voltado para o ensino. É muito, muito estudo e vale a pena, porque depois tudo que você estudou vai ser útil. Você quer dizer mais alguma coisa para o pessoal? Eu sugeriria que, além de continuarem se esforçando nos estudos, que antes de escolher uma carreira procurassem o maior número de pessoas que trabalham na área para ter uma ideia de como é efetivamente a atuação nela. E que visitem as faculdades que escolherem.
Jornal do Colégio ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343
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CONTO
Missa do galo Machado de Assis unca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa1; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça2; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito. Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar. Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver a “missa do galo na Corte”. A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria a outra, a terceira ficava em casa. – Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? – perguntou a mãe de Conceição. – Leio, D. Inácia. Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução, creio, do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo negro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição. – Ainda não foi? perguntou ela. – Não fui; parece que ainda não é meia-noite. – Que paciência. Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza: – Não! qual! Acordei por acordar.
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Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa. – Mas a hora já há de estar próxima, disse eu. – Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. – Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo. – Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros. – Justamente: é muito bonito. – Gosta de romances? – Gosto. – Já leu A Moreninha? – Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. – Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. “Talvez esteja aborrecida”, pensei eu. E logo alto: – D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu... – Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia? – Já tenho feito isso. – Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha. – Que velha o quê, D. Conceição! Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la. – É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. – Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio... Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naque-
CONTO le momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis que, apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me: – Mais baixo! mamãe pode acordar. E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho: – Mamãe está longe, mas tem um sono leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono. – Eu também sou assim. – O quê? – perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves. – Há ocasiões em que sou como mamãe; acordando custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada. – Foi o que lhe aconteceu hoje. – Não, não, atalhou ela. Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: – Mais baixo, mais baixo... Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. – Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava “Cleópatra”; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios. – São bonitos, disse eu. – Bonitos são; mas estão manchados. E depois, francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
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– De barbeiro? A senhora nunca foi à casa de barbeiro. – Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório. A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeios, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos. Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes. – Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo. Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo, – não posso dizer quanto – inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela do lado de fora e uma voz que bradava: “Missa do galo! missa do galo!” – Aí está o companheiro, disse ela, levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus. – Já serão horas? perguntei. – Naturalmente. – Missa do galo! repetiram de fora, batendo. – Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus, até amanhã. E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor adentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja, sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia3. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido. Extraído de: Onze contos de Machado de Assis, Ed. Núcleo, 1994.
VOCABULÁRIO (1) Locução adverbial, significa “furtivamente”, “disfarçadamente”. (2) A amante do marido. (3) Afecção cerebral que se manifesta inesperadamente, ocasionada por lesão vascular cerebral aguda, via de regra uma hemorragia. Na linguagem popular, derrame cerebral.
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POIS É, POESIA
Seleta modernista Poemas da amiga
Estrela da manhã a Jorge de Lima
I A tarde se deitava nos meus olhos E a fuga da hora me entregava abril, Um sabor familiar de até-logo criava Um ar, e, não sei por que, te percebi. Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança. Estavas longe, doce amiga; e só vi no perfil da cidade O arcanjo forte do arranha-céu cor-de-rosa Mexendo asas azuis dentro da tarde. II Se acaso a gente se beijasse uma vez só... Ontem você estava tão linda Que o meu corpo chegou. Sei que era um riacho e duas horas de sede, Me debrucei, não bebi. Mas estou até agora desse jeito, Olhando quatro ou cinco borboletas amarelas, Dessas comuns, brincabrincando no ar. Sinto um rumor... III Agora é abril, oh minha doce amiga, Te reclinaste sobre mim, como a verdade, Fui virar, fundeei o rosto no teu corpo.
Eu quero a estrela da manhã Onde está a estrela da manhã? Meus amigos meus inimigos Procurem a estrela da manhã Ela desapareceu ia nua Desapareceu com quem? Procurem por toda parte Digam que sou um homem sem orgulho Um homem que aceita tudo Que me importa? Eu quero a estrela da manhã Três dias e três noites Fui assassino e suicida Ladrão, pulha, falsário Virgem mal-sexuada Atribuladora dos aflitos Girafa de duas cabeças Pecai por todos pecai com todos Pecai com os malandros Pecai com os sargentos Pecai com os fuzileiros navais Pecai de todas as maneiras
Nos dominamos pondo tudo no lugar. O céu voltou a ser por sobre a terra, As laranjeiras ergueram-se todas de-pé E nelas fizemos cantar um primeiro sabiá.
Com os gregos e com os troianos Com o padre e com o sacristão Com o leproso de Pouso Alto
Mas a paisagem logo foi-se embora Batendo a porta, escandalizadíssima.
Depois comigo 1929/1930 (Mário de Andrade)
Fotógrafo ambulante
Fixador de corações Debaixo de blusas Álbum de dedicatórias Maquereau Tua objetiva pisca-pisca Namora Os sorrisos contidos És a glória Oferenda de poesia às dúzias Tripeça nos logradouros públicos Bicho debaixo da árvore Canhão silencioso do sol
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e [direi coisas de uma ternura tão simples Que tu desfalecerás Procurem por toda parte Pura ou degradada até a última baixeza Eu quero a estrela da manhã (Manuel Bandeira)
Ocaso
No anfiteatro de montanhas
(Oswald de Andrade)
Noturno
Lá fora o luar continua
Os profetas do Aleijadinho Monumentalizam a paisagem As cúpulas brancas dos Passos E os cocares revirados das palmeiras São degraus da arte de meu país Onde ninguém mais subiu Bíblia de pedra-sabão Banhada no ouro das minas (Oswald de Andrade)
E o trem divide o Brasil Como num meridiano (Oswald de Andrade)
Extraído de: Mário da Silva Brito, Poesia do Modernismo.
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Os bastidores da Sétima Arte Produtor executivo de Tomates verdes fritos falou sobre as suas experiências na indústria cinematográfica a área cinematográfica, o produtor executivo participa de todo o processo de um filme, do planejamento à distribuição. No dia 17 de outubro, Andrew Meyer, produtor executivo de Clube dos Cinco (The Breakfast Club, 1985) e Tomates verdes fritos (Fried green tomatoes, 1991), veio ao Colégio Etapa conversar com os alunos do Ensino Médio sobre as suas experiências na indústria do cinema. Ele iniciou a palestra apontando as oportunidades e vantagens criadas pela internet e suas ferramentas. “Pela primeira vez não há nada impedindo que você crie algo, coloque on-line e distribua o seu trabalho no mundo inteiro”, disse. Para exemplificar as possibilidades que podem surgir, ele contou um pouco sobre os filmes Clube dos Cinco e Tomates verdes fritos, ambos muito bem recebidos pelo público e pela crítica especializada. Mas nem John Hughes, diretor de Clube dos Cinco, e nem Jon Avnet, responsável por Tomates verdes fritos, eram nomes conhecidos na época. Clube dos Cinco mostra um grupo de adolescentes que passa o sábado na detenção. Fazendo uso de um roteiro simples, John Hughes encontrou uma solução eficaz para introduzir o enredo logo no início do filme: por meio da narração, o espectador conhece a história; com os pequenos diálogos e linguagem corporal dos atores, ele identifica os personagens. “John fez em duas páginas o que muitos roteiristas profissionais levam de 25 a 30 páginas para fazer”, afirmou Meyer. “E eu achei isso incrível.” São elementos assim que o fazem se interessar pela produção. No caso de Tomates verdes fritos, foi a determinação mostrada por Jon Avnet. Ele sabia exatamente como transformaria o livro escrito por Fannie Flag no longa-metragem, o que convenceu Meyer a embarcar no projeto. Durante a palestra no Etapa, o produtor executivo ainda propôs uma brincadeira: ele mostrou algumas cenas de Tomates verdes fritos e os estudantes precisavam desvendar qual o truque utilizado ali. Foi uma conversa muito interessante. Afinal, os alunos puderam conhecer mais sobre o universo do cinema e suas possibilidades a partir de uma pessoa que está inserida neste contexto. “Eu conto essas histórias porque são pessoas que estavam apenas fazendo seus trabalhos e foram capazes de realizar tudo isso”, disse. “Não há motivo para vocês não conseguirem”, incentivou.
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AGENDA CULTURAL → São Paulo – Clube de Cinema (quintas, das 19 h às 21 h, sala 65) 28.11 – Morangos silvestres (Ingmar Bergman: 1957) → Valinhos – Clube de Cinema (sábados, das 10h15min às 11h55min, sala 40) 30.11 – O poderoso chefão – Trilogia (Francis Ford Coppola: 1972/1974/1990)
Fique ligado: todas as terças-feiras acontecem as Palestras de Profissões para os alunos de 2º e 3º anos do Ensino Médio!
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ESPECIAL
Descontração com arte e cultura Gincana Cultural do 2o semestre teve os Anos 80 como tema Gincana Cultural é um evento que mistura arte e cultura em uma divertida competição entre os alunos do Ensino Médio. É um momento muito aguardado, em que eles podem compartilhar as suas habilidades e talentos. Música Brasileira, Música Internacional, Solo com Piano, Dança – as categorias são várias e as apresentações não deixam a desejar! Desta vez, a Gincana aconteceu no dia 19 de outubro e o tema foi “Anos 80”! Como de costume, os professores de Educação Física Mariana e Alex comandaram a festa, que também contou com performances do Grupo Vocal e da banda dos professores. Nas tarefas, os alunos foram bastante criativos – fosse criando música a partir de copos de plástico ou misturando balé e street dance em uma mesma apresentação de dança. Um dos destaques do evento foram os recados dados pelo corpo docente aos vestibulandos, sempre com mensagens de incentivo e apoio. Afinal, para os alunos da 3a série, uma fase importante se aproxima. Mas, na Gincana Cultural, o que realmente importou foi o momento de descontração e de espírito de equipe em uma manhã muito divertida!
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