Jornal do Vestibulando Nº 1488

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Jornal do Vestibulando

ENSINO, INFORMAÇÃO E CULTURA

JORNAL ETAPA  –  2015 •  DE 10/03 A 25/03

ENTREVISTA

1o lugar em Medicina: “Cheguei aqui no zero, fui para cima, cresci muito.” Maria Clara Lemos Santos está na Medicina mais desejada, a Pinheiros. Ela fez dois anos de Etapa. Nesta entrevista ela conta como enfrentou a não aprovação no primeiro ano e como se dedicou para superar as barreiras e ser tão bem-sucedida nos vestibulares – inclusive sendo a 1a colocada na escola de Medicina mais concorrida de São Paulo, a Unesp – além de ser a 1a na Famema e ter a maior média da PUC.

Maria Clara Lemos Santos Em 2014: Etapa Em 2015: Medicina – USP

JV – Desde quando você pensa em fazer Medicina? Maria Clara – Desde sempre. Meus pais são médicos, sempre tive um contato muito grande com a carreira. Eu ia visitar meus pais no hospital. Também tenho tios médicos, ia ao consultório deles, ficava de secretária. Sempre quis Medicina, sempre, sempre.

Como era seu método de estudo? Eu pegava matérias do dia. Saía da aula, almoçava rapidinho, quando abria a Sala de Estudos eu ficava lá o tempo todo. Tinha uma ordem de estudos para não me cansar. Eu alternava as matérias. No primeiro ano foi assim. No segundo ano foram exercícios e exercícios. Mais Redação, que eu achava que poderia melhorar.

Além da Fuvest, para a Pinheiros, onde se matriculou, você foi aprovada em quais outros vestibulares? Em Medicina passei na Unicamp, na UFSCar e peguei 1o lugar na Unesp e na Famema. Com a Famema [pelo vestibular unificado] fui a 1a na classificação geral da PUC.

No primeiro ano, você conseguiu se adaptar ao ritmo do cursinho em quanto tempo? Acho que foi um mês de adaptação. A partir de abril eu já estava pegando pesado.

Sua escolha ficou com a Pinheiros – qual o motivo? Eu queria Pinheiros, meus pais queriam que eu fizesse Pinheiros. Meu pai fica emocionado de uma filha dele estar na Pinheiros. Ele veio da roça, estudou na Federal do Paraná, depois fez Residência na USP Ribeirão. Ele está muito feliz com o resultado. Você fez o cursinho aqui em 2013 e 2014. Como foi no primeiro ano? Em 2013 foi um choque começar no cursinho. Eu não sabia que ia ter cinco professores em cada matéria. “Nossa, não vou nem decorar o nome de todos”. Foi um choque aquele monte de exercícios, aquela coisa. No primeiro ano de cursinho eu cheguei faltando muita coisa do Ensino Médio. Muita coisa eu não sabia, tinha de apanhar muita coisa da teoria. Cheguei aqui no zero, fui para cima, cresci muito.

ENTREVISTA

Maria Clara Lemos Santos CONTO

O ladrão – Mário de Andrade

Qual era sua rotina de estudos? Decidi ficar estudando no cursinho porque rendia mais. Ficava todo dia até 8 e meia, 9 horas da noite. Foi assim nos dois anos. Você fez as aulas para Medicina? Fiz e no começo também foi um choque porque a complexidade dos exercícios era muito grande, o que é bom porque você não sabe resolver, mas tenta ir além. Você aprende a lidar com provas. Você ganha aquela pegada de fazer provas e eu acho que fazer provas é o melhor jeito de estudar. Para mim funcionou muito. Em 2013, quais foram seus resultados nos vestibulares? Fui para a 2a fase da Unesp. Na Fuvest, fiz 69 pontos na 1a fase, o corte foi 70. Como avaliou esse resultado na Fuvest? Eu achava que estava preparada, tanto que em nível de conhecimento já estava bem em 2013. Acho que foi questão de maturidade. Obviamen-

POIS É, POESIA

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Gregório de Matos Guerra (1633-1696)

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ARTIGO Suplementação com taurina pode ajudar na prevenção da obesidade e na resistência à insulina

O legado da escravidão

te, em 2014 eu estudei mais. No segundo ano do cursinho eu cresci mais como pessoa.

Como foi o reinício no cursinho em 2014? Quando voltei para o cursinho eu estava muito triste. Em 2013 eu tinha certeza de que ia conseguir entrar em Medicina. Sei que não era para pensar assim, mas foi realmente uma sensação de fracasso. Eu até quero endereçar isso para as pessoas que estão na mesma situação, porque sei como é difícil. Os primeiros dois, três meses do reinício foram horríveis. Eu achava que merecia ter passado, achava que estava pronta. Mas não importa quantos anos de cursinho você tenha de fazer para passar no curso que você quer, para entrar na carreira em que você vai trabalhar 40 anos. Se você sabe o que quer, tem de lutar por isso.

No ano passado, como você se organizou para estudar? Foi bem difícil, eu ficava na Sala de Estudos, mas não conseguia me concentrar. Estava bem triste, mas falei com minha tutora e ela me ajudou bastante. E você começa a fazer os simulados e vê que cresceu bastante. No primeiro simulado em 2013 eu fiz 76, no primeiro simulado em 2014 fiz 85. Mesmo que ache que não teve crescimento, você sabe que está melhor. Fiz um ano de cursinho muito melhor em 2014 do que em 2013.

Como você ficava nos simulados? Eu ficava no A, basicamente. B foi muito raro. Nos da Fuvest tirei A em todos os de 1a fase. Nos de 2a fase também tirava A. Tinha algum B. Eu ia um pouquinho pior no 2o dia do Enem, mas ficava mais ou menos no A sempre.

ENTRE PARÊNTESIS

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Os mágicos

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ENTREVISTA

Como você usava os simulados para seus estudos? Não era: “Sou A, sou linda, maravilhosa”. Não era nem um pouco assim. Eu fazia aquela análise de simulado que os psicopedagogos davam para a gente. Eu via meus erros – não só errei 5, mas por que errei estas 5? Foi porque eu não sabia a matéria, porque eu me distraí, porque fiquei entre duas respostas? Sempre fazia essa análise de erros. Para mim era fundamental fazer os simulados. Todo mundo tem de fazer todos os simulados. Fale mais sobre a importância dos simulados para você. Eu acho que para aprender, o melhor jeito é fazer prova. No simulado você presta mais atenção na questão e se esforça para resolver o exercício. Você lida com o tempo, lida com a comida que vai trazer, quando vai ao banheiro, a ordem em que vai resolver as questões. Eu ficava treinando: “Vou começar pelo Inglês porque sou boa em Inglês. Depois vou para Biologia, que eu sei Biologia, depois para História”. Eu ia alternando para achar a melhor ordem para mim. Você conseguia resolver os simulados no tempo disponível? Sempre consegui fazer os simulados. Na prova de verdade, acho que demorava um pouco mais. Nos simulados estava mais relaxada. Mas sempre consegui terminar tanto os simulados quanto as provas para valer. Você fazia os simulados em que dia? Fazia domingo, para não perder dia de estudos. Estava todos os dias no cursinho. Eu estava sempre otimizando o que podia ter de resultado. Você treinava Redação? Tinha semana em que fazia até cinco redações. Tinha Redação do simulado, Redação do Fique Esperto, Redação do Reforço, Redação da apostila. Eu fazia a maioria. Não se pode ir bem em Química, Física e não ir tão bem em Português. Em Redação eu não estava entre as melhores e sabia que se investisse nisso ia ser um diferencial para mim. Fiz muitas redações e as levava ao Plantão, todas. Passava o mesmo texto por vários plantonistas, tentando reunir todo o conhecimento deles para ir cada vez melhor na Redação. Em quais matérias você mais ia ao Plantão de Dúvidas? Além de Português, em Matemática e Física. Em Química ia bastante. História e Geografia não ia muito porque nas resoluções estava tudo bem explicadinho. Você usava o Plantão Virtual? Sim, para os exercícios de Exatas. Passou a gostar de alguma matéria de que antes não gostava? Eu entrei no cursinho em 2013, muito ruim em Matemática e Física, muito ruim mesmo. Cresci nessas matérias fenomenalmente. Nos vestibulares foram até das minhas maiores notas. Física, principalmente, tem aquela coisa, você não gosta porque não entende. Aqui os professores eram muito bons, aprendi muito Física e

Matemática, principalmente Física, que agora eu adoro e até poderia dar aula.

Você leu todos os livros indicados pela Fuvest e Unicamp? Li todos os livros e assisti a todas as palestras. Depois, antes das provas, ficava revendo na Internet. Vi várias vezes, principalmente os que eu achava mais difíceis, A cidade e as serras, de Eça de Queirós, e Viagens na minha terra, de Almeida Garrett. Nas provas, você conseguiu resolver as questões de Literatura? Resolvi todas. As palestras ajudaram demais, porque quando você só lê o livro não tem a visão que o examinador tem para pedir as questões. Essa visão é apresentada nas palestras, que foram essenciais. Não conseguiria resolver as questões de Literatura sem as palestras. Do que você teve de abrir mão ano passado para se preparar para os vestibulares? Meus amigos me esqueceram. Eu brinco que morava no Etapa. Não tinha final de semana, de segunda a sexta-feira ficava no cursinho tendo aulas, estudando até 9 horas da noite. Sábado tinha Reforço, domingo tinha simulado. Estava aqui todos os dias. Não saía com minha família nem com os amigos. Quando você quer Medicina, tem de fazer sacrifício. Faria tudo de novo. Teve algum período no ano passado em que você estava mais tranquila? Ou uma época mais pesada? Logo depois das férias eu estava tranquila. Meus resultados eram satisfatórios, tirava A nos simulados. Nas férias estudei na primeira semana e descansei na outra. Voltei para o segundo semestre descansada e continuei indo bem nos simulados. Só fiquei cansada mesmo em novembro, com aquela maratona de vestibulares, um atrás do outro. Eu prestei vários e não corrigi nenhum. Como era um atrás do outro, não queria ver se tinha ido muito bem ou muito mal. Eu não queria que isso atrapalhasse meu desempenho em outras provas. Só corrigi o da Unesp quando fui para a 2a fase, nem corrigi o da Unicamp porque saiu no site que eu tirei 86. Também tirei 86 na Unesp. Você se preocupava mais com a 1a fase da Fuvest ou com a 2a? Sempre me preocupei com as duas. Na 1a fase da Fuvest, quantos pontos você fez? Fiz 81. Na 2a fase, como foi? No primeiro dia, prova de Português e Redação, tirei 73,25, um resultado satisfatório, mas acho que até poderia ter ido melhor. No segundo dia, na prova geral, minha nota foi 76,56, também achei que poderia ter ido melhor. Tinha uma questão em que ia colocar uma coisa que eu pensei que não estava certa, acabei não colocando. No final era aquilo mesmo. Por isso achei que poderia ir melhor. No terceiro dia, das matérias prioritárias para a carreira, tirei 91,67, mais ou menos o esperado, porque sempre tirava acima de 9 nos simulados.

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Você veio ao Etapa ver a lista da Fuvest? Eu estava muito ansiosa e vi em casa porque tinha medo de não passar. Vi meu nome, olhei de novo para confirmar, liguei para as pessoas e vim correndo para o Etapa. O pessoal da Atlética estava aqui, eles já fizeram aquela festa com cantoria, me deram camiseta. Entrei, me pintaram, dei entrevista, toda aquela loucura, todo mundo me ligando, querendo falar comigo. Saímos com os veteranos, fomos para a Atlética, tinha comida lá, salgadinhos, suco, a gente jogou vôlei, futebol. Depois da Atlética fizemos um tour pelo prédio da faculdade. Fiquei até umas 9 horas da noite. Foi muito legal. Você já conhecia a Pinheiros? Nunca tinha entrado lá. O prédio é muito lindo, tudo o que você espera, só que mais e melhor. Todo mundo nos recebeu muito bem. E na Unesp, com mais de 200 candidatos por vaga, que tal ficar em 1o lugar? 1o lugar. Inimaginável. Se não passasse na Pinheiros, qual você faria? Se eu não passasse eu faria qualquer uma que me aceitasse. Eu já tinha me matriculado na Famema, o resultado tinha saído primeiro. Depois saiu o da Unesp, e depois Pinheiros. O que você pode dizer a quem vai fazer um novo ano de cursinho, você que já passou por isso? O recomeço foi muito difícil, mas você precisa ser forte e precisa aguentar. O Etapa oferece estrutura para ajudar a lidar com isso, porque é muito desgastante física e mentalmente. Também não é o caso de achar que já sabe tudo, você tem de ser humilde, voltar a estudar como se não soubesse nada, fazer tudo de novo, todos os exercícios, todas as provas, vir a todas as aulas, porque só assim você tem resultado positivo. Você tem de estudar e estudar. Não há outro caminho. Como você avalia o ano passado? Como disse, o recomeço foi difícil, mas eu sabia mais, ia muito melhor nos simulados. Quando cheguei aqui, no primeiro ano, aconteceu a primeira prova que eu zerei na minha vida. No segundo ano eu conseguia resolver as provas do Reforço, que eram superdifíceis. Parece que você foi um fracasso por não ter sido aprovada no outro ano, mas você cresceu muito e está mais perto de realizar o seu sonho. Você tem saudade de alguma coisa do ano passado? Dos professores. Eram muito bons. Também gostava bastante dos plantonistas. O que você tira de lição dessa experiência tão bem-sucedida? Foi um período não só de aumentar o conhecimento das matérias para passar no vestibular, mas de autoconhecimento, de crescer, de maturidade mesmo. Quando não passa, você sabe quais são seus pontos fortes, pontos fracos. Sempre fui muito mal em Matemática e Física. Resolvi estudar essas matérias. Você tem de ter foco – tem de fazer o que é melhor para você.

Jornal ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343


CONTO

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O ladrão Mário de Andrade

–P

ega! O berro, seria pouco mais de meia-noite, crispou o silêncio no bairro dormido, acordou os de sono mais leve, botando em tudo um arrepio de susto. O rapaz veio na carreira desabalada pela rua. – Pega! Nos corpos entrecortados, ainda estremunhando na angústia indecisa, estalou nítida, sangrenta, a consciência do crime horroroso. O rapaz estacara numa estralada de pés forçando pra parar de repente, sacudiu o guarda estatelado: – Viu ele! O polícia inda sem nexo, puxando o revólver: – Viu ele? – P... Não perdeu tempo mais, disparou pela rua, porque lhe parecera ter divisado um vulto correndo na esquina de lá. O guarda ficou sem saber o que fazia, porém da mesma direção do moço já chegavam mais dois homens correndo. O guarda eletrizado gritou: – Ajuda! e foi numa volada ambiciosa na cola do rapaz. – Pega! Pega! os dois perseguidores novos secundaram sem parar. Alcançaram o moço na outra esquina, se informando com um retardatário que só àquelas horas recolhia. – ... é capaz que deu a volta lá em baixo... No cortiço, a única janela de frente se abriu, inundando de luz a esquina. O retardatário virou-se para os que chegavam: – Não! Voltem por aí mesmo! Ele dobrou a esquina lá de baixo! Fique você, moço, vigiando aqui! Seu guarda, vem comigo! Partiu correndo. Visivelmente era o mais expedito, e o grupo obedeceu, se dividindo na carreira. O rapaz desapontara muito por ter de ficar inativo, ele! justo ele que viera na frente!... No ar umedecido, o frio principiou caindo vagarento. Na janela do cortiço, depois de mandar pra cama o homem que aparecera atrás dela, uma preta satisfeita de gorda, assuntava. Viu que a porta do 26 rangia com meia luz e os dois Moreiras saíram por ela, afobados, enfiando os paletós. O Alfredinho até derrubou o chapéu, voltou pra pegar, hesitou, acabou tomando a direção do mano. O guarda com o retardatário, já tinham dobrado a esquina lá de baixo. Uma ou outra janela acordava numa cabeça inquieta, entre agasalhos. Também os dois perseguidores que tinham voltado caminho, já dobravam a outra esquina. Mas foi a preta, na calma, quem percebeu que o quarteirão fora cercado. – Então decerto ele escondeu no quarteirão mesmo. O rapaz que só esperava um pretexto pra seguir na perseguição, deitou na carreira. Parou. – A senhora então fique vigiando! Grite se ele vier! E se atirou na disparada, desprezando escutar o “Eu não! Deus te livre!” da preta, se

retirando pra dentro porque não queria história com o cortiço dela não. Pouco depois dos Moreiras, virada a esquina de baixo, o rapaz alcançou o grupo dos perseguidores, na algazarra. Um dos manos perguntava o que era. E o moço: – Pegaram! – Safado... ele... – Deixa de lero-lero, seu guarda! assim ele escapa! Aliás fora tudo um minuto. Vinha mais gente chegando. – O que foi? – Eu vou na esquina de lá, senão ele escapa outra vez! – Vá mesmo! Olha, vá com ele, você, para serem dois. Seu guarda! o senhor é que pode pular no jardim! – Mas é que... – Então bata na casa, p... O polícia inda hesitou um segundo, mas de repente encorajou: – Vam’lá! Foram. Foi todo o grupo, agora umas oito pessoas. Ficou só o velho que já não podia nem respirar da corridinha. Os dois manos, meio irritados com a insignificância deles a que ninguém esclarecera o que havia, ficaram também, castigando os perseguidores com ficarem. Lá no escuro do ser estavam desejando que o ladrão escapasse, só pra o grupo não conseguir nada. Um garoto de rua estava ali rente, se esfregando tremido em todos, abobalhado de frio. Um dos Moreiras se vingou: – Vai pra casa, guri!... de repente vem um tiro... – Será que ele atira mesmo! perguntou o baita que chegava. E o velho: – Tá claro! Quando o Salvini, aquele um que sufocou a mulher no Bom Retiro, ficou cercado... Mas de súbito o apito do guarda agarrou trilando nos peitos, em firmatas alucinantes. Todos recuaram, virados pro lado do apito. Várias janelas fecharam. O grupo estacara em frente de umas casas, quase no meio do quarteirão. Eram dois sobradinhos gêmeos, paredes-meias, na frente e nos lados opostos os canteiros de burguesia difícil. Os perseguidores trocavam palavras propositalmente em voz muito alta. O homem decerto ficava amedrontado com tanta gente... Se entregava, era inútil lutar... Em qual das casas bater? O que vira o fugitivo pular no jardinzinho, quem sabe um dos rapazes guardando a esquina, não estava ali pra indicar. Aliás ninguém pusera reparo em quem falara. Os mais cuidadosos, três, tinham se postado na calçada fronteira, junto ao portão entrea­ berto, bom pra esconder. Se miravam ressabiados, com um bocado de vergonha. Mas um sorrindo: – Tenho família. – Idem. – Pode vir alguma bala...

– Eu me armei, por via das dúvidas! Quase todas as janelas estavam iluminadas, botando um ar de festa inédito na rua. Saía mais gente encapuçada nas portas, coleção morna de pijamas comprados feitos, transbordando pelos capotes mal vestidos. O guarda estava tonto, sustentando posição aos olhos do grupo que dependia dele. Mas lá vinham mais dois polícias correndo. Aí o guarda apitou com entusiasmo e foi pra bater numa das casas. Mas da janela da outra jorrou de chofre no grupo uma luz, todos recuaram. Era uma senhora, ainda se abotoando. – Que é! que foi que houve, meu Deus! – Dona, acho que entrou um homem na sua casa que... – Ai, meu Deus! – ... a gente veio... – Nossa Senhora! meus filhos! Desapareceu na casa. De repente escutou-se um choro horrível de criança lá dentro. Um segundo todos ficaram petrificados. Mas era preciso salvar o menino, e à noção de “menino” um ardor de generosidade inflamou todos. Avançaram, que pedir licença nem nada! uns pulando a gradinha, outros já se ajudando a subir pela janela mesmo, outros forçando a porta. Que se abriu. A senhora apareceu, visão de pavor, desgrenhada, com as três crianças. A menina, seus oito anos, grudada na saia da mãe, soltava gritos como se a tivessem matando. A decisão foi instantânea, a imagem da desgraça virilizara o grupo. A italiana de uma das casas operárias defronte, vira tudo, nem se resguardava: veio no camisolão, abriu com energia passagem pelos homens, agarrou a menina nos braços, escudando-a com os ombros contra tiros possíveis, fugira pra casa. Um dos homens imitando a decidida agarrara outra criança, e empurrando a senhora com o menorzinho no colo, levara tudo se esconder na casa da italiana. Os outros se dividiram. Barafustaram pela casa aberta, alguns forçaram num átimo a porta vizinha, tudo fácil de abrir, donos em viagem, a casa se iluminou toda. Veio um gritando na janela do sobrado: – Por trás não fugiu, o muro é alto! – Ói lá! Era a mocetona duma das casas operárias fronteiras, a “vanyti-case” de metalzinho esmaltado na mão, largara de se empoar, apontando. Toda a gente parou estarrecida, adivinhando um jeito de se resguardar do facínora. Olharam pra mocetona. Ela apontava no alto, aos gritos. Era no telhado. Um dos cautelosos, não se enxergava bem por causa das árvores, criou coragem, se abaixou e pôde ver. Deu um berro, avisando: – Está lá! E veio feito uma bala, atravessando a rua, se resguardar na casa onde empoleirara o ladrão. Os dois comparsas dele o imitaram. As janelas em frente se fecham rápidas, bateu uma escureza sufocante. E os polícias, o rapaz, todos tinham corrido pra junto do ho-


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CONTO

mem que vira, se escondendo com ele, sem saber do que, de quem, a evidência do perigo independendo já das vontades. Mas logo um dos polícias reagindo, sacudiu o horrorizado, fazendo-o voltar a si, perguntando gritado, com raiva. E a raiva contra o cauteloso dominou o grupo. Ele enfim respondeu: – Eu também vi... (mal podia falar) no telhado... – Dissesse logo! – Está no telhado! – Vá pra casa, medroso! – Medroso não! O rapaz atravessou a rua correndo, pra ver se enxergava ainda. O grupo estourou de novo pelas duas casas a dentro. – Ele não tem pra onde pular! – Coitado! – Que cuidado! ele que venha! – Falei “coitado”... Nos quintais dos fundos mais gente inspecionava o telhado único das casas gêmeas. Não havia por onde fugir. E a caça continuava sanhuda. Os dois sobrados foram esmiuçados, quarto por quarto, não houve guarda-roupa que não abrissem, examinaram tudo. Nada. – Mas não há nada! um falou. – Quem sabe se entrou no forro? – Entrou no forro! – Tem claraboia? O rapaz, do outro lado da rua, examinara bem. Na parte de frente do telhado, positivamente o homem não estava mais. Algumas janelas se entreabriram de novo, medrosas, riscando luzes nas calçadas. – Pegaram? – P... Mas alguém lhe segurara o braço, virou com defesa. – Meu filho! olhe a sua asma! Deixe, que os outros pegam! Está tão frio!... O rapaz, deu um desespero nele, a assombração medonha da asma... Foi vestindo maquinalmente o sobretudo que a mãe trouxera. – Olha!... ah, não é...Também não sei pra que o prefeito põe tanta árvore na rua! – Mas afinal o quê que foi, hein? perguntaram alguns, chegados tarde demais pra se apaixonarem pelo caso. – Eu nem não sei!... diz-que estão pegando um ladrão. – Vamos pra casa, filhinho!... ... aquele fantasma da sufocação, peito chiando noite inteira, nem podia mais nadar... Virou com ódio pro sabetudo: – Quem lhe contou que é ladrão? Brotou em todos a esperança de alguma coisa pior. – O que é, hein? A pergunta vinha da mulher sem nenhum prazer. O rapaz olhou-a, aquele demônio da asma... deu de ombros, nem respondeu. Ele mesmo nem sabia certo, entrara do trabalho, apenas despira o sobretudo, ainda estava falando com a mãe já na cama, pedindo a bênção, quando gritaram “Pega!” na rua. Saíra correndo, vira o guarda não muito longe, um vulto que fugia, fora ajudar. Mas aquele demônio medonho da asma... O anulou uma desesperança rancorosa. Entre os dentes: – Desgraçado...

Foi-se embora. De raiva. A mãe mal o pôde seguir, quase correndo, feliz! feliz por ganhar o filho àquela morte certa. Agora a maioria dos perseguidores saíra na rua. Nem no interior do telhado encontraram o homem. Como fazer? – Ficou gente no quintal, vigiando? – Chi! tem pra uns deiz decidido lá! Era preciso calma. Lá na janela da mocetona operária começara uma bulha desgraçada. Os irmãos mais novos estavam dando um baile nela, primeiro insultando, depois caçoando que ela nem não tinha visto nada, só medo. Ela jurava que sim, se apoiava no medroso que enxergara também, mas ele não estava mais ali, tinha ido embora, danado de o chamarem medroso, esses bestas! A mocetona gesticulava, com o metalzinho da “vanity-case” brilhando no ar. Afinal acabou atirando com a caixinha bem na cara do irmão próximo e feriu. Veio a mãe, veio o pai, precisou vir mais gente, que os irmãos cegados com a gota de sangue queriam massacrar a mocetona. Organizou-se uma batida em regra, eram uns vinte. As demais casas vizinhas estavam sendo varejadas também, quem sabe... Alguns foram-se embora que tinha muita gente, não eram necessários mais. Mas paravam pelas janelas, pelas portas, respondendo. Nascia aquela vontade de conversar, de comentar, lembrar casos. Era como se se conhecessem sempre. – Te lembra, João, aquele bebo no boteco da... – Nem me!... Não encontraram nada nas casas e todos vieram saindo para as calçadas outra vez. Ninguém desanimara, no entanto. Apenas despertara em todos uma vontade de alívio, todos certos que o ladrão fugira, estava longe, não havia mais perigo pra ninguém. O guarda conversava pabulagem, bem distraído num grupo, do outro lado da rua. Veio chegando, era a vergonha do quarteirão, a mulher do português das galinhas. Era uma rica, linda com aqueles beiços largos, enquanto o Fernandes quarentão lá partia no “Ford” passar três, quatro dias na granja de Santo André. Ela, quem disse ir com ele! Chegava o entregador da “Noite”, batia, entrava. Ela fazia questão de não ter criada, comia de pensão, tão rica! Vinha o mulato da marmita, pois entrava! E depois diz – que vivia sempre com doença, chamando cada vez era um médico novo, desses que ainda não têm automóvel. Até o padeirinho da tarde, que tinha só... quinze? dezesseis anos? entrava, ficava tempo lá dentro. O jornaleiro negava zangado, que era só pra conversar, senhora boa, mas o entregadorzinho do pão não dizia nada, ficava se rindo, com sangue até nos olhos, de vergonha gostosa. Foi um silêncio carregado, no grupo, assim que ela chegou. As duas operárias honestas se retiraram com fragor, facilitando os homens. Se espalhou um cheiro por todos, cheiro de cama quente, corpo ardente e perfumado recendente. Todos ficaram que até a noite perdera a umidade gélida. De fato, a neblininha se erguera, e a cada uma janela que fechava,

vinha pratear mais forte os paralelepípedos uma calma elevada de rua. Vários grupos já não tinham coesão possível, bastante gente ia dormir. Por uma das janelas agora, pouco além das duas casas, se via um moço magro, de cabelo frio escorrendo, num pijama azul, perdido o sono, repetindo o violino. Tocava uma valsa que era boa, deixando aquele gosto de tristeza no ar. Nisto a senhora não pudera mais consigo, muito inquieta com a casa aberta em que tantas pessoas tinham entrado, apareceu na porta da italiana. Esta insistia com a outra pra ficar dormindo com ela, a senhora hesitava, precisava ir ver a casa, mas tinha medo, sofria muito, olhos molhados, sem querer. A conversa vantajosa do grupo da portuguesa parou com a visão triste. E o guarda, sem saber que era mesmo ditado pela portuguesa, heroico se sacrificou. Destacou-se do grupo insaciável, foi acompanhar a senhora (a portuguesa bem que o estaria admirando), foi ajudar a senhora mais a italiana a fechar tudo. Até não havia necessidade dela dormir na casa da outra, ele ficava guardando, não arredava pé. E sem querer, dominado pelos desejos, virou a cara, olhou lá do outro lado da calçada a portuguesa fácil. Talvez ela ficasse ali conversando com ele, primeiro só conversando, até de-manhã... Alguns dos perseguidores, agrupados na porta da casa, tinham se esquecido, naquela conversa apaixonada, o futebol do sábado. Se afastaram, deixando a dona entrar com o guarda. Olharam-na com piedade mas sorrindo, animando a coitada. Nisto chegou com estalidos seu Nitinho e tudo se resolveu. Seu Nitinho era compadre da senhora, muito amigo da família, morava duas quadras longe. Viera logo com a espingarda passarinheira dos domingos, proteger a comadre. Dormiria na casa também, ela podia ficar no seu bem-bom com os filhinhos, salva com a proteção. E a senhora mais confiante entrou na casa. – É, não há nada. Foi um alívio em todos. A italiana já trazia as crianças se rindo, falando alto, gesticulando muito, insistindo na oferta do leite. Pois a italiana assim mesmo conseguiu vencer a reserva da outra, e invadiu a cozinha, preparando um café. A lembrança do café animou todos. Os perseguidores se convidaram logo, com felicidade. Só o pobre do guarda, mais uma vez sacrificado, não pôde com o sexo, foi se reunir ao grupo da portuguesa. Eis que a valsa triste acabou. Mas da sombra das árvores em frente, umas quatro ou cinco pessoas, paralisadas pela magnitude da música, tinham por alegria, só por pândega, pra desopilar, pra acabar com aquela angústia miúda que ficara, nem sabiam! tinham... enfim, pra fazer com que a vida fosse engraçada um segundo, tinham arrebentado em aplausos e bravos. E todos, com os aplausos, todos, o grupo da portuguesa, a mocetona com os manos já mansos, os perseguidores da porta, dois ou três mais longe, todos desataram na risada. Só o violinista não riu. Era a primeira consagração. E o peitinho curto dele até parou de bater. Soaram duas horas num relógio de parede. Os que tinham relógio, consultaram. Um


CONTO galo cantou. O canto firme lavou o ar e abriu o orfeão de toda a galaria do bairro, uma bulha encarnada radiando no céu lunar. O violinista reiniciara a valsa, porque tinham ido pedir mais música a ele. Mas o violino, bem correto, só sabia aquela valsa mesmo. E a valsa dançava queixosa outra vez, enchendo os corações. – Eu numa varsa dessa, mulher comigo, eu que mando! E olhou a portuguesa bem nos olhos. Ela baixou os dela, puros, umedecendo os lábios devagar. Os outros ficaram com ódio da declaração do guarda lindo, bem arranjado na farda. Se sentiram humilhados nos pijamas reles, nos capotes mal vestidos, nos rostos sujos de cama. Todos, acintosamente, por delicadeza, ocultando nas mãos cruzadas ou enfiadas nos bolsos, a indiscrição dos corpos. A portuguesa, em êxtase, divinizada, assim violentada altas horas, por sete homens, traindo pela primeira vez, sem querer, violentada, o marido da granja. Na porta da casa, a italiana triunfante distribuía o café. Um momento hesitou, olhando o guarda do outro lado da rua. Mas nisto fagulhou uma risadinha em todos lá no grupo, decerto alguma piada sem-vergonha, não! não dava café ao guarda! Pensou na última xícara, atravessou teatralmente a rua olhando o guarda, ele ainda imaginou que a xícara era pra

ele. E a italiana entrou na casa dela levando o café para o marido na cama, dormindo porque levantava às quatro, com o trabalho em Pirituba. Foi um primeiro mal-estar no grupo da portuguesa: todos ficaram com von­ tade de beber um café bem quentinho. Se ela convidasse... Ela bem queria mas não achava razão. O guarda se irritou, qual! não tinha futuro! assim com tanta gente ali... Perdera o café. Ainda inventou ir até a casa, saber se a senhora não precisava de nada. Mas a italiana olhara pra ele com tanta ofensa, a xícara bem agarrada na mão, que um pudor o esmagou. Ficou esmagado, desgostoso de si, com um princípio de raiva da portuguesa. De raiva, deu um trilo no apito e se foi, rondando os seus domínios. Os perseguidores tinham bebido o café, já agora perfeitamente repostos em suas cons­ ciências... Lhes coçava um pouco de vergonha na pele, tinham perseguido quem?... Mas ninguém não sabia. Uns tinham ido atrás dos outros, levados pelos outros, seria ladrão?... – Bem vou chegando. – É. Não tem mais nada. Boa-noite, boa-noite... E tudo se dispersou. Ainda dois mais corajosos acompanharam a portuguesa até a porta dela, na esperança nem sabiam do quê. Se despediram delicados, conhecedores de regras, se

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contando os nomes próprios, seu criado. Ela, fechava a porta, perdidos os últimos passos além, se apoiou no batente, engolindo silêncio. Ainda viria algum, pegava nela, agarrava... Amarrou violentamente o corpo nos braços, duas lágrimas rolaram insuspeitas. Foi deitar sem ninguém. A rua estava de novo quase morta, janelas fechadas. A valsa acabara o bis. Sem ninguém. Só o violinista estava ali, fumando, fumegando muito, olhando sem ver, totalmente desamparado, sem nenhum sono, agarrado a não sei que esperança de que alguém, uma garota linda, um fotógrafo, um milionário disfarçado, lhe pedisse pra tocar mais uma vez. Acabou fechando a janela também. Lá na outra esquina do outro quarteirão, ficara um último grupinho de três, conversando. Mas é que lá passava bonde. (1930 – 1941 – 1942)

Nota: este conto é desenvolvimento de uma das croniquetas historiadas que, sob os pseudônimos de Luís Pinho e Luís Antônio Marques, publiquei no “Diário Nacional” de São Paulo em 1931. Extraído de: Contos novos.

POIS É, POESIA

Gregório de Matos Guerra (1633-1696) Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem

A rdor em firme coração nascido;

Pranto por belos olhos derramado; Incêndio em mares de água disfarçado; Rio de neve em fogo convertido: Tu, que em um peito abrasas escondido; Tu, que em um rosto corres desatado; Quando fogo, em cristais aprisionado; Quando cristal em chamas derretido. Se és fogo como passas brandamente, Se és neve, como queimas com porfia? Mas ai, que andou Amor em ti prudente! Pois para temperar a tirania, Como quis que aqui fosse a neve ardente, Permitiu parecesse a chama fria.

Ao mesmo assunto e na mesma ocasião

C orrente, que do peito destilada

Sois por dois belos olhos despedida; E por carmim correndo dividida Deixais o ser, levais a cor mudada.

Não sei, quando caís precipitada, Às flores que regais tão parecida, Se sois neves por rosa derretida, Ou se rosa por neve desfolhada.

Que quem podia, e não quis viver gozando Confesse, que esta pena merecia, E morra, quando menos confessado.

Essa enchente gentil de prata fina, Que de rubi por conchas se dilata, Faz troca tão diversa e peregrina,

Vagava o poeta por aqueles retiros filosofando em sua desdita sem poder desapegar as harpias de seu justo sentimento

Que no objeto, que mostra, ou que retrata, Mesclando a cor purpúrea, à cristalina, Não sei quando é rubi, ou quando é prata.

Chora um bem perdido, porque o desconheceu na posse

Porque não merecia o que lograva,

Deixei como ignorante o bem que tinha, Vim sem considerar aonde vinha, Deixei sem atender o que deixava: Suspiro agora em vão o que gozava, Quando não me aproveita a pena minha, Que quem errou sem ver o que convinha, Ou entendia pouco, ou pouco amava. Padeça agora, e morra suspirando O mal, que passo, o bem que possuía; Pague no mal presente o bem passado.

Q uem viu mal como o meu, sem meio ativo? Pois no que me sustenta, e me maltrata, É fero quando a morte me dilata, Quando a vida me tira é compassivo! Oh do meu padecer alto motivo! Mas oh do meu martírio pena ingrata! Uma vez inconstante, pois me mata; Muitas vezes cruel, pois me tem vivo. Já não há não remédio, confianças; Que a Morte a destruir não tem alentos; Quando a Vida em penar não tem mudanças: E quer meu mal, dobrando os meus tormentos, Que esteja morto para as esperanças, E que ande vivo para os sentimentos. Extraído de: “Poesia lírico-amorosa”, Poemas escolhidos, Cultrix, 1976.


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Suplementação com taurina pode ajudar na prevenção da obesidade e na resistência à insulina Karina Toledo

A

pós suplementar a água de camunpela célula alfa também estimula a célula açúcar pelo fígado. Os resultados foram dongos obesos com o aminoácido beta, sua vizinha, a secretar insulina. divulgados no The Journal of Nutritional taurina durante dois meses, pes­ Há três tipos principais de células nas Biochemistry. quisadores da Universidade Estadual de ilhotas pancreáticas: a alfa, a beta e a del“Parece que a taurina – não sabemos Campinas (Unicamp) observaram que os ta. A célula alfa estimula a célula beta a ainda se de forma direta ou indireta – animais não apenas perde­ ram peso de produzir insulina e a célula beta inibe a induz a expressão de certas proteínas, forma significativa como apresentaram secreção de glucagon pela célula alfa. Já como a fosfolipase-C, a PKAα e a PKC, diver­sos benefícios no controle da glicea delta produz o hormônio somatostatina, na célula beta. E isso culmina com uma mia. Os dados sugerem que o tratamento capaz de inibir tanto a secreção de insumaior secreção de insulina. Decidimos poderia proteger os roedores de desen­ lina quanto de glucagon, dependendo da então investigar se isso também acontevolver complicações como o diabetes. necessidade. ceria em um modelo de obesidade induOs resultados da pesquisa, realizada “Parece que, de alguma forma, a tauzida por dieta”, disse Carneiro. no Departamento de Biologia Estrutural rina modula esse controle parácrino (no Homeostase glicêmica e Funcional do Instituto de Biologia (IB) qual um hormônio produzido por uma céda Unicamp, com apoio da FAPESP, lula controla a atividade da célula vizinha) Para induzir o sobrepeso nos camun­ foram apresentados pelo professor da insulina, favorecendo maior ou menor don­ gos, os pesquisadores ofereceram Everardo Magalhães Carneiro durante a secreção do hormônio dependendo do uma dieta contendo 31% de gordura de 29a Reu­ nião Anual da Federação de caso”, explicou Carneiro. porco a partir do desmame. Por volta de Sociedades de Biologia Expe3 ou 4 me­ses de vida, os anirimental (FeSBE), realizada em mais já eram considera­ dos agosto em Caxambu (MG). obesos e pré-diabéticos, ou “A taurina é um aminoácido seja, apre­sentavam intolerânque não é incorporado nas procia à glicose (demora para a teínas de nosso organismo e paremoção do nutriente da correce ter um papel im­portante na rente sanguínea) e resistência sinalização celular. Nossos dados à insulina. mostram que ela regula a produ“À medida que o tecido adiAnimais obesos e pré-diabéticos que receberam o aminoácido na água ção intracelular de peróxido de apresentaram perda de peso e melhora no metabolismo da glicose. poso aumenta, a demanda por hidrogênio (H2O2) – ou água oxi- (Imagem: Unicamp). insulina aumenta e a célula genada – e isso se correlaciona beta acaba ficando hipertrocom a melhor ação da insulina nos teciEm estudos anteriores, os pesquisafiada. Por outro lado, esse tecido adiposo dos periféricos”, disse Carneiro. dores da Unicamp observaram que, em aumentado produz substâncias inflamaO pesquisador explicou que a taurina é camundongos com peso normal, a sutórias e pequenos hormônios que atrapasintetizada naturalmente pelo organismo, plementação com taurina a 2% na água lham a ligação da insulina com seus reprincipalmente nas células do fígado e do aumentava a secreção de insulina pelas ceptores nas células-alvo”, disse Carneiro. tecido adiposo. Também pode ser adquicélulas beta, fazendo com que as ilhotas “Então, mesmo o organismo produrida pela ingestão de alimentos como carde Langerhans do animal ficassem mais zindo mais insulina, sua ação fica menos ne, peixe, mariscos e, em menor quantiresponsivas à glicose. eficiente e isso sinaliza para o pâncreas dade, vegetais. Experimentos in vitro feitos com as produzir ainda mais insulina e vira um cír“A taurina se concentra nas células alfa ilhotas dos animais que receberam a culo vicioso que acaba levando à falência do pâncreas, exercendo um papel que suplementação com taurina revelaram das células beta e, consequentemente, ainda estamos tentando descobrir qual é que as células expressavam mais a forao diabetes”, disse. exatamente”, disse Carneiro. ma ativa da proteína PDX-1, um fator de Paralelamente, acrescentou o pesquiA célula alfa, explicou o pesquisador, transcrição essencial para a síntese de sador, a resistência à insulina e a conseé a responsável pela secreção do hormôinsulina. quente dificuldade de levar o nutriente nio glucagon – cuja função é mobilizar a Mostraram também que os receptopara dentro das células acaba resultando energia estocada na forma de glicogênio res de insulina nos tecidos periféricos em maior produção de glucagon pelas no fígado durante períodos de jejum prodos animais também ficavam mais aticélulas alfa, fazendo aumentar ainda mais longado para prevenir a hipoglicemia, que vados após a suplementação de taurina, os níveis de glicose no sangue. pode ser fatal. Além disso, dados da litefavorecendo a captação de glicose no teNo mesmo estudo, parte dos camunratura mostram que o glucagon produzido cido muscular e menor produção desse dongos recebeu suplementação com


ARTIGO taurina a 5% na água durante o tratamento com a dieta rica em gordura. Após cinco meses de tratamento, as análises revelaram que as ilhotas pancreáticas dos animais haviam diminuído de tamanho, ficando com aspecto semelhante às do grupo controle não obeso. Também foram reduzidos em 45% os níveis de secreção de insulina, que foram acompanhados de melhoria parcial da intolerância à glicose e da resistência à insulina. Além disso, houve uma melhora parcial de 20% e 4% na glicose e colesterol plasmáticos, respectivamente. Isso foi associado com um aumento de 75% na atividade de uma proteína intermediária da cascata de sinalização da insulina no fígado, mas não nos músculos. Parte dos resultados foi publicada na revista Amino Acids.

Obesidade genética Em seguida, os pesquisadores realizaram o mesmo experimento com um grupo de camundongos portadores de obe-

sidade genética. Nesse caso, o acúmulo de gordura é causado por uma mutação no gene que codifica o hormônio leptina no tecido adi­poso. “A leptina é um hormônio importante para o controle do apetite. Ele atua no hipotálamo e sinaliza para o organismo que é hora de parar de comer. Nos portadores dessa mutação, o organismo não produz leptina – o que acaba levando a uma ingestão descontrolada de alimento”, explicou Carneiro. Nesse protocolo de estudo, os camun­ dongos obesos receberam suplementação com 5% de taurina na água durante 60 dias. As análises mostraram uma redução do peso no grupo tratado, em torno de 16%. A intolerância à glicose diminuiu 35%, a resistência à insulina, 30% e a produção he­ pática de glicose, 28% – ainda significativa­ mente superiores aos camundongos não obesos. “Outro teste interessante que fizemos com o animal obeso é o de tolerância ao

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glucagon, que consiste em administrar esse hormônio e observar o quanto ele consegue mobilizar de glicose no fígado. No obeso, a produção hepática de glicose é altíssima em relação ao controle – 94% maior. Já no obeso tratado com taurina esse valor cai para 39%”, disse Carneiro. No momento, os pesquisadores estudam mudanças no padrão de expressão de mais de 11 mil genes no hipotálamo induzidas pelas intervenções realizadas nos experimentos. “Os dados preliminares mostram que a taurina modula a expressão de vários genes de forma a promover uma melhor adaptação dos animais com relação ao comportamento alimentar, que reflete em melhor controle glicêmico. Também parece proteger as células do hipotálamo contra o estresse de retículo endoplasmático, que é um fenômeno envolvido na morte de diversos tipos celulares, entre eles os neurônios”, disse Carneiro. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, set./2014.

O legado da escravidão Emília Viotti da Costa

O impacto da escravidão A escravidão marcou os destinos da nossa sociedade. Seus traços ficaram indeléveis na herança que nos legaram a cultura negra e as condições sociais nascidas do regime da escravidão. Passada esta fase, restaram, além do legado cultural, a concentração de negros e mestiços e os problemas da integração do escravo emancipado no status de homem livre e na sociedade do branco, sua assimilação, sua aceitação pelo grupo branco e a necessária reformulação das atitudes recíprocas forjadas durante o período da escravidão.

O que a abolição não extinguiu A conduta e a mentalidade dos negros e mestiços, seus valores dominantes, seu comportamento social, só podem ser entendidos hoje quando se tem em conta o fenômeno escravidão-abolição. A abolição exigia a elaboração de uma nova autoconcepção de status e papéis sociais por parte dos negros e mestiços, a formação de novos ideais e padrões de comportamento. Ela implicava também a mudança de

comportamento do homem livre e branco diante do liberto, do negro não mais escravo. Impunha-se um novo ajustamento inter-racial. A súbita equiparação legal entre negros e brancos, em 1888, não destruiu de imediato o conjunto de valores que se elaborara durante todo o Período Colonial. Econômica, social e psicologicamente, os ajustamentos foram lentos. O negro permaneceu na situação de dependência econômica e as atitudes e representações sociais que regulavam as relações entre as raças só, muito vagarosamente, foram modificadas.

O papel do escravo (...) Subsistiram representações e es­ tereótipos associados à cor e às diferen­ ças raciais forjadas no tempo da escravi­ dão, como, por exemplo, a afirmação da inferioridade mental, moral ou social do negro em relação ao branco. “Negro quan­do não suja na entrada, suja na saída”, “isso é papel de negro”, “negro não presta”, “negro é assim mesmo” e outras expressões equivalentes, igualmente pejorativas, refletem as atitudes mentais dos brancos (ou pelo menos da maioria) para com o negro.

O significado que a cor e as diferenças raciais adquiriram sob o regime escravo ajudou a elaborar certos padrões de ajustamento inter-racial que, em muitos casos, persistiram. Tipos de controle das relações sociais, aplicáveis às situações de contato entre os vários componentes da sociedade, que só tinham sentido naquela ordem social, continuaram a ter plena vigência mesmo depois da superação da ordem social escravista e senhorial. A consecução da meta inaugurada em 13 de maio, transformação dos ex-escravos em homens livres e cidadãos responsáveis, equiparados de fato nos seus direitos a estes, exigiu tempo e marcou, como ainda marca, o panorama social do Brasil.

O que foi esquecido: o legado das condições sociais criadas com o sistema escravista O escravo negro foi, em algumas regiões, a mão de obra exclusiva desde os primórdios da Colônia. Durante todo esse período, a história do trabalho é, sobretudo, a história do escravo. Primeiro nos canaviais, mais tarde nas minas de ouro,


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nas cidades ou nas fazendas, era ele o grande instrumento de trabalho. Derrubando matas, roçando as plantações, nas catas de ouro, nos engenhos, na estiva, carregando sacos de mercadorias ou passageiros, o escravo foi figura familiar na paisagem colonial. Foi mais do que mão de obra, foi sinal de abastança. Época houve em que a importância do cidadão era avaliada pelo séquito de escravos que o acompanhava à rua. A legislação e o costume consagravam esse significado. Concediam-se datas e sesmarias a quem tivesse certo número de pretos. A posse de escravos conferia distinção social: ele representava o capital investido, a possibilidade de produzir. A convivência deixava marcas nos brancos e nos negros. Com sua experiên­cia do mundo tropical, os escravos facilitavam a adaptação do português à vida colonial. Hábitos alimentares, modismos linguísticos suavizando a pronúncia, modificando a língua portuguesa, introduzindo vocábulos novos; crenças religiosas adulterando o cristianismo, superstições contagiando a credulidade do branco, suas lendas e seu sentido musical, transformando-se por sua vez no contato com a tradição indígena e portuguesa, foram incorporados à nova sociedade forjada nesse íntimo convívio.

O trabalho manual “é degradante” Talvez a mais importante de todas as influências e a menos estudada seja a que derivou não propriamente da tradição africana, mas das condições sociais criadas com o sistema escravista. A existência de dominadores e dominados numa relação de senhores e escravos propiciou situações particulares, específicas, marcando a mentalidade nacional. Um dos efeitos mais típicos dessa situa­

ção foi a desmoralização do trabalho. O trabalho, que se dignifica à medida que se resume no esforço do homem para dominar a natureza na luta pela sobrevivência, corrompe-se com o regime da escravidão, quando se torna resultado de opressão, de exploração. Neste caso, ele se degrada aos olhos dos homens. O trabalho, que deveria ser o elemento de distinção e diferenciação na sociedade, embora unindo os homens na colaboração, na ação comum, torna-se no sistema escravista dissociador e aviltante. A sociedade não se organiza em termos de cooperação, mas de espoliação. Por isso, para o branco, o trabalho, principalmente o trabalho manual, era visto como obrigação de negro, de escravo. “Trabalho é pra negro.” A ideia de trabalho trazia consigo uma sugestão de degradação. Também para o negro, o trabalho, fruto da escravidão, aparecia como obrigação penosa, confundia-se com o cativeiro, associava-se às torturas do eito. A liberdade deveria, necessariamente, aparecer-lhe como promessa de ausência de obrigações e de trabalho. Dessa forma, a escravidão ultrajava a ideia de trabalho e, o que é ainda mais grave, degradava as relações entre os homens. Num regime escravista, o respeito mútuo necessário à verdadeira coesão social não existe. A lei consagra as distinções sociais, legitima-as e, quando excepcionalmente procura garantir a classe oprimida, torna-se letra morta, ineficaz, burlada pelos interesses dominantes.

Escravidão e vida familiar Ao mesmo tempo em que degradou o trabalho e corrompeu as relações entre os brancos, a escravidão desorganizou a vida familiar. O intercâmbio sexual entre senhor e escrava deu margem a que se fixassem preferências por certos vícios e anomalias sexuais (masoquismo – sadismo),

estimuladas pela situação que a escravidão criara. De um lado, havia a família branca, aparentemente monógama, de outro, a promiscuidade das senzalas a incitar e favorecer a poligamia do senhor. Por sua vez, a situação do escravo também não contribuía para estreitar laços familiares: a desorganização das tradições africanas, o interesse dos senhores, que preferiam para os escravos as ligações passageiras a relações consolidadas pelo casamento, – que poderiam criar obstáculos à venda – o número relativamente pequeno de mulheres em relação a homens, tudo contribuiu para conferir precariedade e instabilidade àqueles laços. A escravidão contribuiu também para que a população negra e mestiça permanecesse, via de regra, na maior ignorância. Não lhe foi dada instrução nem senso de responsabilidade, pois esta só existe quando é possível escolha e ação. As populações escravas emancipadas tiveram diante de si o problema de seu ajustamento ao novo estado. Dos séculos da convivência, das influências trocadas, do caldeamento das duas raças, resultou a população de mestiços e mulatos que hoje ainda povoa o país. As marcas que nos ficaram como um legado do regime servil, e que transcenderam sua época chegando até nós, imprimiram aspectos peculiares à nossa sociedade. A concentração de negros e mestiços, os problemas de sua marginalidade, a questão do preconceito racial, as dificuldades para integração e adaptação dos descendentes de escravos, os baixos níveis culturais da grande maioria, certos aspectos do comportamento do branco, tudo isso deriva do passado próximo cujo conhecimento é essencial para a com­ preensão de fenômenos atuais. Extraído de: Da senzala à colônia.

(ENTRE PARÊNTESIS)

Os mágicos Um indivíduo encontrou três mágicos. Ao primeiro ele propôs: “Se você duplicar o dinheiro que eu tenho comigo, eu lhe dou R$ 100,00”. O mágico o fez e ganhou R$ 100,00. Com os outros dois mágicos tudo se passou do mesmo modo. Ao fim das três operações, o indivíduo notou que estava sem dinheiro. Quanto ele tinha no início do processo?

RESPOSTA Quando encontrou o primeiro mágico, o indivíduo, que tinha x reais, acabou ficando com 2x − 100 reais. Depois de encontrar o segundo mágico, ficou com 2(2x −100) − 100 reais. Com o terceiro mágico, acabou ficando sem nada, isto é: 2[2(2x −100) − 100] − 100 = 0. Resolvendo a equação, temos: x = R$ 87,50.


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