Jornal do vestibulando - 1498

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Jornal do Vestibulando

ENSINO, INFORMAÇÃO E CULTURA

JORNAL ETAPA – 2015 • DE 20/08 A 02/09

ENTREVISTA

“Pensava também em Ciências Sociais, Medicina, Psicologia, Filosofia.” Otávio Francisco da Cruz Martins entrou em Engenharia Química na Poli. Nesta entrevista ele conta como se preparou no cursinho após a decepção de não passar direto na Fuvest, no ano anterior, quando ficou na 1 502a posição na carreira. Agora subiu para a 83a colocação na Poli, que oferece 750 vagas em seus 17 cursos de Engenharia.

Otávio Francisco da Cruz Martins Em 2014: Etapa Em 2015: Engenharia Química – USP

JV – O que levou você a escolher Engenharia Química como carreira? Otávio – O primeiro curso em que pensei prestar foi Engenharia Química. Mas pensava também em Ciências Sociais, Medicina, Psicologia, Filosofia. Eu gosto um pouco de tudo, mas acho que Engenharia Química vai me servir muito bem. Na escola eu não era um bom aluno e quase fui reprovado no 1o ano do Ensino Médio. A única matéria de que eu gostava mesmo e em que ia bem era Química. E decidi por Engenharia porque tem um campo de atuação bem grande. Além da Fuvest, quais vestibulares você pres­ tou? Prestei Unicamp, Enem e Unesp. Fui aprovado em todos. No Sisu do meio do ano, mesmo estando na Poli, coloquei Medicina e fui aprovado na Federal Fluminense e na Federal de Pelotas. Você pretende mudar para Medicina? Preferi ficar na USP. Você prestou vestibular direto do 3o ano? Prestei. Na Fuvest eu passei para a 2a fase, mas não estava bem preparado, não deu. Nunca fui bem em Português, tive uma nota horrível no primeiro dia, 41. Mesmo tendo tirado 80 nas prioritárias do terceiro dia, não foi suficiente para passar. Minha colocação final foi 1 502. O que motivou você a vir estudar aqui? É meio natural você passar por aqui para ir para a Poli. Meus amigos que eram da mesma escola vieram para cá. Decidi vir também. Você estava animado no começo do ano pas­ sado? O começo do ano foi um pouco estressante porque eu estava meio triste. Achava realmente

ENTREVISTA

Otávio Francisco da Cruz Martins CONTO A Sereníssima República (Conferência do Cônego Vargas) – Machado de Assis

que fosse passar. Eu queria ter ido logo para a faculdade, não queria estar aqui, mas ao longo do ano fui me acostumando com o ambiente, conhecendo o pessoal, e gostei bastante da experiência.

Como era sua rotina durante o cursinho? Acordava às 5 horas da manhã todo dia e vinha para o Etapa. Chegava umas 6 e 50, mais ou menos. Terminada a aula, ia para casa de metrô, almoçava, dormia até umas 4, 5 horas. Depois estudava até umas 9, 10 horas da noite. Essa foi minha rotina até a Revisão.

Você estudava a matéria do dia? Costumava pegar sempre a matéria do dia e costumava focar nas coisas que eu tinha certeza de não ter visto na escola. Ou tentava pegar alguma matéria atrasada que eu não tinha entendido direito. Nas matérias em que eu tinha mais dificuldade, como Biologia, a parte de Citologia, tentava fazer um resumo. Também tentava fazer isso em algumas partes de História e Geografia que eu não tive. Mas normalmente eu estudava pelos testes da apostila. Fazia quase todos os testes. A parte de escritas eu tentava fazer mais as de Exatas. Um erro meu foi nunca ter dado muito foco a Português.

Em Português, o que você acha que poderia ter feito? Português era aquela matéria que em casa dava sono, não conseguia estudar. Você deixa de canto, mas uma hora você tem que recuperar. Eu tentava fazer as coisas de Português na aula ou no intervalo. Tentava rever toda a matéria, dar uma lida, pelo menos nas partes mais importantes, fazer um exercício ou outro. Interpretação de texto é que pegava mais.

PRA PENSAR

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Stonehenge

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POIS É, POESIA

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

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Em quais matérias você recorria mais ao Plantão de Dúvidas? Eu tinha a teimosia de achar um jeito de resolver as questões de Exatas. Acho que a persistência é que leva a acertar. Tentava fazer os exercícios de Exatas e nos que não achava o resultado, principalmente nos escritos, perguntava para os amigos. Se eles também não soubessem, ia ao plantão. Eu pedia ao plantonista para apontar meus erros conceituais nos exercícios. Também ia para resolver uns exercícios mais difíceis em que eu realmente travava. Usei um pouco também para Biologia. Para Português eu usei na Revisão Final, fiz algumas provas antigas da Fuvest e pedia à plantonista para corrigir as questões comigo. Isso me ajudou bastante na 2a fase. Como era seu desempenho no cursinho? Eu nunca fui mal no cursinho, sempre tive um desempenho mais ou menos constante. Sempre focava em fazer um simulado melhor que o outro, nunca deixar a média cair. Perto da Revisão decidi ficar um pouco mais no cursinho, porque precisava superar o atraso. Saía da aula e ficava aqui até umas 8 horas da noite, estudando com os amigos. Estudando no cursinho, sua preparação me­ lhorou? Estudando aqui o rendimento era maior. Eu tinha um foco melhor e conseguia me concentrar de verdade. Eu costumava ajudar bastante gente no cursinho em suas dificuldades. Sempre gostei de ajudar e costumava estudar ajudando as pessoas. E acho que isso me ajudou bastante. Quais eram seus resultados nos simulados? Na maioria deles eu fiquei no C mais, em um ou dois fiquei no C menos, no B umas quatro vezes

ARTIGO Estudo testa nova classe de drogas com potencial efeito antidepressivo SERVIÇO DE VESTIBULAR

Inscrições

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ENTREVISTA

e no A umas duas ou três. Nos da Fuvest ficava numa média de 70 e 80. Fui subindo de ponto em ponto. Mais ou menos isso.

Você leu os livros indicados pela Fuvest co­ mo obrigatórios? Tinha lido todos no Ensino Médio, menos Capitães da Areia, de Jorge Amado, que li nas férias do cursinho. Você assistiu às palestras sobre os livros? Fui a todas e, uma, Sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade, vi pela internet. Qual a diferença entre só ler o livro e ler e assistir à palestra? O livro, muitas vezes, tem aquele emaranhado de situações em que você perde detalhes. E, às vezes a beleza do livro está nesses detalhes. E tem também aquele livro com uma linguagem mais difícil, até pedante. As palestras resolvem bem esses pontos. Achei as palestras muito interessantes e muito importantes. O que você fez nas férias? Nas férias eu descansei. Só li Capitães da Areia porque foi relaxante. Gostava de ler, para mim era uma coisa boa. Você tinha alguma atividade para dar uma relaxada? Para relaxar eu simplesmente dormia. Na 1a fase da Fuvest, quantos pontos você fez? Fiz 72 pontos. Esperava mais. Fiquei decepcionado com minha nota porque tinha a expectativa de ficar na margem em que estava no cursinho. Eu fiz algumas provas antigas e estava acertando em média 85 questões. Na prova eu estava nervoso e acertei bem menos. Fazer 72 pontos foi uma coisa que eu achei que não estava condizente com o meu conhecimento naquele momento. O que aconteceu? O ar condicionado da sala estava quebrado, um calor danado. Lembro que estava pingando literalmente em cima da prova. Não estava con­ seguindo me concentrar. Foi uma coisa que acabou me prejudicando um pouco. O corte da Engenharia Química foi 61. Ape­ sar de decepcionado com sua nota, você fi­ cou tranquilo em relação à 2a fase? Como gosto de estatísticas, eu tinha visto qual era a média para passar em Engenharia Química. No ano retrasado tinha sido 730. Meu foco era ficar pelo menos por aí. Com 72 acertos, passando para a base de 100 eu teria 80. Eu teria que fazer uma prova razoável para conseguir alcançar a média. Mas, como eu tinha déficit em Português, não achei muito bom. No primeiro dia da 2a fase da Fuvest a pro­ va tem 10 questões de Português e Redação. Que nota você tirou? Eu fui melhor do que esperava, fiquei com 69 na média final. E tirei 73 na Redação. Na Redação, acho que ajudou bastante ter citado mui-

tos filósofos. Mas para isso é preciso ter uma base e citar com relação ao tema da Redação.

Como foi no segundo dia, na prova geral, com 16 questões de todas as matérias? Eu achei que foi a prova mais tranquila. Errei apenas duas questões. Fiquei com 87,5. Uma nota que eu não esperava também.

Qual foi sua nota no terceiro dia, com 12 questões das três matérias prioritárias para Engenharia – Física, Química e Matemática? Tirei 79,17. Achei a prova de Matemática bem mais difícil que no outro ano, mas acabei ficando com a mesma nota. Pelo nível da prova, foi condizente.

Você falou que na 1a fase esperava ir um pou­ co melhor. E da 2a fase, o que você achou? Como foquei bastante na qualidade de estudo no cursinho – foquei em conhecimento a longo prazo, não a curto prazo –, eu achava que tinha conhecimento para fazer uma prova boa na 2a fase. E foi o que aconteceu. Não foi muita surpresa. Apesar de eu achar que não tinha passado.

Por que você achava isso? Achei que tinha ido bem, mas na Redação não esperava muita coisa. Achava que no 2o dia tinha tirado 50 e pouco. No terceiro dia, porque teve aquela prova carrasco de Matemática e tinha passado erradamente o resultado de duas questões de Física.

Na escala de zero a 1 000, qual foi sua pon­ tuação na Fuvest? 789,2.

E sua classificação na carreira? 83o lugar na Poli.

Como soube de sua aprovação? Eu estava realmente achando que não ia passar na Fuvest, mas pelo Enem tinha sido aprovado pela Federal do Rio de Janeiro e me matriculei lá. Aí, no dia da lista, eu abri a página da Fuvest na internet, mas não carregava. A página do desempenho carregou mais rápido do que a da lista. Vi minha nota final e falei: “Nossa, passei!”. Minha mãe e meu pai estavam ao meu lado, mais tensos que eu, esperando minha nota. “Eu passei, eu passei!”. Dei um pulo, quase caí da cadeira. Eles ficaram muito felizes. Depois vim para o Etapa, para a festa dos aprovados, e comemorei com os amigos. Tomei um pré-trote da Poli. Até apareci no SPTV. Foi divertido.

Como foi a semana de recepção na Poli? A semana de recepção também foi muito divertida. A parte do farol, pedir dinheiro, foi muito legal. Todo mundo que estava lá era porque queria, ninguém obrigou ninguém a nada. A gente ganhou uma festa da Atlética, foi bem legal. No dia do Grêmio conhecemos todos os centros acadêmicos da faculdade. Eu gostei bastante da Poli.

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O início do curso atendeu às suas expecta­ tivas? Na faculdade você descobre que não tem muita Química na Engenharia Química. É meio que um dos desafios de quem começa na faculdade achando que vai aprender Química. Mesmo mais para frente você não vê muito de Química no curso. Que matérias você teve no primeiro semes­ tre? Cálculo Diferencial Integral I, Álgebra Linear I, Introdução à Computação, Fundamentos das Transformações Químicas – esta tem a parte teórica e o laboratório –, Física I, Introdução à Engenharia Química e Representação Gráfica para Projeto. De qual matéria você gostou mais? Eu gostei bastante de Introdução à Compu­ tação. Gostei também bastante de Fundamentos das Transformações Químicas. Você chegou a fazer alguma atividade fora da sala de aula no primeiro semestre? No primeiro semestre eu só fiz aula de francês. Fiz num curso da FFLCH [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas]. O que você está pensando para o futuro pró­ ximo? Eu penso que os problemas que enfrentei no primeiro semestre na Engenharia Química talvez eu enfrentasse em outro curso, porque o início não é bem um parâmetro para o resto do curso. Conversando com os veteranos, vi que o curso pode ficar bem mais interessante lá para frente. Como fica marcado para você o ano passado? Foi um ano bem legal, porque eu tinha muitos amigos no cursinho. Acho que foi uma coisa muito importante não ficar sozinho, porque o cursinho demanda muito esforço, muita energia, tempo. Se ficar sozinho todo esse tempo você não vai conseguir ter uma experiência legal. Vai ficar muito mais cansado e propenso a desistir. Os amigos não deixam o seu psicológico ser afetado tanto. É muito importante manter seu psicológico de pé. E gostei bastante da dinâmica das aulas. Os professores, além das brincadeiras e tudo mais, despertam em você o interesse pela matéria. O que fica de lição para você dessa expe­ riência? Acho que todo mundo que faz o cursinho aprende que é muito importante ter foco no trabalho e não deixar o psicológico cair. É um período muito importante para você aprender a gerir seu tempo e aprender que quantidade não é qualidade. O que mais você quer dizer para nossos alu­ nos? Pensem bem no que vocês querem fazer. Não pensem só no que vão aprender na faculdade, pensem na carreira que vão seguir. A faculdade dura cinco, seis anos, a carreira vai durar o resto da vida.

Jornal ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343


CONTO

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A Sereníssima República (Conferência do Cônego Vargas) Machado de Assis

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eus senhores, Antes de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para o nosso país, deixai que vos agradeça a prontidão com que acudistes ao meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe aqui; mas não ignoro também, – e fora ingratidão ignorá-lo, – que um pouco de simpatia pessoal se mistura à vossa legítima curiosidade científica. Oxalá possa eu corresponder a ambas. Minha descoberta não é recente; data do fim do ano de 1876. Não a divulguei então, – e, a não ser o Globo, interessante diário desta capital, não a divulgaria ainda agora, – por uma razão que achará fácil entrada no vosso espírito. Esta obra de que venho falar-vos, carece de retoques últimos, de verificações e experiências complementares. Mas o Globo noticiou que um sábio inglês descobriu a linguagem fônica dos insetos, e cita o estudo feito com as moscas. Escrevi logo para a Europa e aguardo as respostas com ansiedade. Sendo certo, porém, que pela navegação aérea, invento do Padre Bartolomeu, é glorificado o nome estrangeiro, enquanto o do nosso patrício mal se pode dizer lembrado dos seus naturais, determinei evitar a sorte do insigne Voador, vindo a esta tribuna, proclamar alto e bom som, à face do universo, que muito antes daquele sábio, e fora das ilhas britânicas, um modesto naturalista descobriu coisa idêntica, e fez com ela obra superior. Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristóteles, se lhe perguntasse: Credes que se possa dar um regime social às aranhas? Aristóteles responderia negativamente, como vós todos, porque é impossível crer que jamais se chegasse a organizar socialmente esse articulado arisco, solitário, apenas disposto ao trabalho, e dificilmente ao amor. Pois bem, esse impossível fi-lo eu. Ouço um riso, no meio do sussurro de curiosidade. Senhores, cumpre vencer os preconceitos. A aranha parece-vos inferior, justamente porque não a conheceis. Amais o cão, prezais o gato e a galinha, e não advertis que a aranha não pula nem ladra como o cão, não mia como o gato, não cacareja como a galinha, não zune nem morde como o mosquito, não nos leva o sangue e o sono como a pulga. Todos esses bichos são o modelo acabado da vadiação e do parasitismo. A mesma formiga, tão gabada por certas qualidades boas, dá no nosso açúcar e nas nossas plantações, e funda a sua pro-

priedade roubando a alheia. A aranha, senhores, não nos aflige nem defrauda; apanha as moscas, nossas inimigas, fia, tece, trabalha e morre. Que melhor exemplo de paciência, de ordem, de previsão, de respeito e de humanidade? Quanto aos seus talentos, não há duas opiniões. Desde Plínio até Darwin, os naturalistas do mundo inteiro formam um só coro de admiração em torno desse bichinho, cuja maravilhosa teia a vassoura inconsciente do vosso criado destrói em menos de um minuto. Eu repetiria agora esses juízos, se me sobrasse tempo; a matéria, porém, excede o prazo, sou constrangido a abreviá-la. Tenho-os aqui, não todos, mas quase todos; tenho, entre eles, esta excelente monografia de Büchner, que com tanta sutileza estudou a vida psíquica dos animais. Citando Darwin e Büchner, é claro que me restrinjo à homenagem cabida a dois sábios de primeira ordem, sem de nenhum modo absolver (e as minhas vestes o proclamam) as teorias gratuitas e errôneas do materialismo. Sim, senhores, descobri uma espécie araneída que dispõe do uso da fala; coligi alguns, depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azuis, transversais, tão rápida nos movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-as longamente; achei-as admiráveis. Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que me causou a descoberta do idioma araneída, uma língua, senhores, nada menos que uma língua rica e variada, com a sua estrutura sintática, os seus verbos, conjugações, declinações, casos latinos e formas onomatopaicas, uma língua que estou gramaticando para uso das academias, como o fiz sumariamente para meu próprio uso. E fi-lo, notai bem, vencendo dificuldades aspérrimas com uma paciência extraordinária. Vinte vezes desanimei; mas o amor da ciência dava-me forças para arremeter a um trabalho, que hoje declaro, não chegaria a ser feito duas vezes na vida do mesmo homem. Guardo para outro recinto a descrição técnica do meu aracnídeo, e a análise da língua. O objeto desta conferência é, como disse, ressalvar os direitos da ciência brasileira, por meio de um protesto em tempo; e,

isto feito, dizer-vos a parte em que reputo a minha obra superior à do sábio de Inglaterra. Devo demonstrá-lo, e para este ponto chamo a vossa atenção. Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinquenta e cinco; em março de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas forças serviram principalmente à empresa de as congregar: – o emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhe crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus pecados, e fortaleceram-se ainda mais na prática das virtudes. A flauta também foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por música. Não bastava associá-las; era preciso dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvitre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto. Obsoleto, sem nenhuma analogia, em suas feições gerais, com qualquer outro governo vivo, cabia-lhe ainda a vantagem de um mecanismo complicado, – o que era meter à prova as aptidões políticas da jovem sociedade. Outro motivo determinou a minha escolha. Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tratando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena.


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CONTO

A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular. Não direi, senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas na prática. O que posso afirmar-vos é que, não obstante as incertezas da idade, eles caminham, dispondo de algumas virtudes, que presumo, essenciais à duração de um Estado. Uma delas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciência de Penélope, segundo vou mostrar-vos. Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da vida pública, trataram de o exercer com a maior atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era um saco de cinco polegadas de altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra sólida e espessa. Para compô-lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam o título de mães da república, além de outros privilégios e foros. Uma obra-prima, podeis crê-lo. O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que provarem certas condições, e são escritas por um oficial público, denominado “das inscrições”. No dia da eleição, as bolas são metidas no saco e tiradas pelo oficial das extrações, até perfazer o número dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos os cargos. A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembleia verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. Aconteceu, porém, que na eleição seguinte, um candidato deixou de ser inscrito na competente bola, não se sabe se por descuido ou intenção do oficial público. Este declarou que não se lembrava de ter visto o ilustre candidato, mas acrescentou nobremente que não era impossível que ele lhe tivesse dado o nome; neste caso não houve exclusão, mas distração. A assembleia, diante de um fenômeno psicológico inelutável, como é a distração, não pôde castigar o oficial; mas, considerando que a estreiteza do saco podia dar lugar a exclusões odiosas, revogou a lei anterior e restaurou as três polegadas.

Nesse ínterim, senhores, faleceu o primeiro magistrado, e três cidadãos apresentaram-se candidatos ao posto, mas só dois importantes, Hazeroth e Magog, os próprios chefes do partido retilíneo e do partido curvilíneo. Devo explicar-vos estas denominações. Como eles são principalmente geômetras, é a geometria que os divide em política. Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos, é o partido retilíneo; – outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, – é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido misto e central, com este postulado: as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido retocurvilíneo; e finalmente, uma quarta divisão política, o partido antirretocurvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar a apaixoná-los, adotaram uma simbólica. Para uns, a linha reta exprime bons sentimentos, a justiça, a probidade, a inteireza, a constância, etc., ao passo que os sentimentos ruins ou inferiores, como a bajulação, a fraude, a deslealdade, a perfídia, são perfeitamente curvos. Os adversários respondem que não, que a linha curva é a da virtude e do saber, porque é a expressão da modéstia e da humildade; ao contrário, a ignorância, a presunção, a toleima, a parlapatice, são retas duramente retas. O terceiro partido, menos anguloso, menos exclusivista, desbastou a exageração de uns e outros, combinou os contrastes, e proclamou a simultaneidade das linhas como a exata cópia do mundo físico e moral. O quarto limita-se a negar tudo. Nem Hazeroth nem Magog foram eleitos. As suas bolas saíram do saco, é verdade, mas foram inutilizadas, a do primeiro por faltar a primeira letra do nome, a do segundo por lhe faltar a última. O nome restante e triunfante era o de um argentário ambicioso, político obscuro, que subiu logo à poltrona ducal, com espanto geral da república. Mas os vencidos não se contentaram de dormir sobre os louros do vencedor; requereram uma devassa. A devassa mostrou que o oficial das inscrições intencionalmente viciara a ortografia de seus nomes. O oficial confessou o defeito e a intenção; mas explicou-os dizendo que se tratava de uma simples elipse; delito, se o era, puramente literário. Não sendo possível perseguir ninguém por defeitos de ortografia ou figuras de retórica, pareceu acertado rever a lei. Nesse mesmo dia ficou decretado que o saco seria feito de um tecido de malhas, através das quais as bolas pudessem ser lidas pelo público, e, ipso facto, pelos mesmos candidatos, que assim teriam tempo de corrigir as inscrições.

Infelizmente, senhores, o comentário da lei é a eterna malícia. A mesma porta aberta à lealdade serviu à astúcia de um certo Nabiga, que se conchavou com o oficial das extrações, para haver um lugar na assembleia. A vaga era uma, os candidatos três; o oficial extraiu as bolas com os olhos no cúmplice, que só deixou de abanar negativamente a cabeça, quando a bola pegada foi a sua. Não era preciso mais para condenar a ideia das malhas. A assembleia, com exemplar paciência, restaurou o tecido espesso do regime anterior, mas, para evitar outras elipses, decretou a validação das bolas cuja inscrição estivesse incorreta, uma vez que cinco pessoas jurassem ser o nome inscrito o próprio nome do candidato. Este novo estatuto deu lugar a um caso novo e imprevisto, como ides ver. Tratou-se de eleger um coletor de espórtulas, funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas, sob a forma de espórtulas voluntárias. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram, nos termos da lei, que o eleito era o próprio e único Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando o candidato Caneca requereu provar que a bola extraída não trazia o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz de paz deferiu ao peticionário. Veio então um grande filólogo, – talvez o primeiro da república, além de bom metafísico, e não vulgar matemático, – o qual provou a coisa nestes termos: – Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é fortuita a ausência da última letra do nome Nebraska. Por que motivo foi ele inscrito incompletamente? Não se pode dizer que por fadiga ou amor da brevidade, pois só falta a última letra, um simples a. Carência de espaço? Também não; vede; há ainda espaço para duas ou três sílabas. Logo, a falta é intencional, e a intenção não pode ser outra senão chamar a atenção do leitor para a letra k, última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um efeito mental, que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a forma gráfica, e a forma sônica; k e ca. O defeito, pois, no nome escrito, chamando os olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro esta primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é ler o nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebrask, – Cane. – Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a demonstrarei, visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da significação espiritual ou filosófica da sílaba, suas origens e feitos, fases, modificações, consequências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas, simbólicas e outras.


CONTO Mas, suposta a demonstração, aí fica a última prova, evidente, clara, da minha afirmação primeira pela anexação da sílaba ca às duas Cane, dando este nome Caneca. A lei emendou-se, senhores, ficando abolida a faculdade da prova testemunhal e interpretativa dos textos, e introduzindo-se uma inovação, o corte simultâneo de meia polegada na altura e outra meia na largura do saco. Esta emenda não evitou um pequeno abuso na eleição dos alcaides, e o saco foi restituído às dimensões primitivas, dando-se-lhe, todavia, a forma triangular. Compreendeis que esta forma trazia consi-

go uma consequência: ficavam muitas bolas no fundo. Daí a mudança para a forma cilíndrica; mais tarde deu-se-lhe o aspecto de uma ampulheta, cujo inconveniente se reconheceu ser igual ao triângulo, e então adotou-se a forma de um crescente, etc. Muitos abusos, descuidos e lacunas tendem a desaparecer, e o restante terá igual destino, não inteiramente, decerto, pois a perfeição não é deste mundo, mas na medida e nos termos do conselho de um dos mais circunspectos cidadãos da minha república, Erasmus, cujo último discurso sinto não poder dar-vos integralmente. Encarregado

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de notificar a última resolução legislativa às dez damas, incumbidas de urdir o saco eleitoral, Erasmus contou-lhes a fábula de Penélope, que fazia e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses. – Vós sois a Penélope da nossa república, disse ele ao terminar; tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco até que Ulisses, cansado de dar às pernas venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a Sapiência. Extraído de: Machado de Assis – Contos escolhidos, Ed. Núcleo, 1994.

VOCABULÁRIO alcaides: antigos governadores de castelo ou província. alvião: enxadão, picareta. alvitre: sugestão, opinião, proposta, parecer. amesquinhá-la: do verbo amesquinhar – tornar mesquinho, humilhar. argentário: homem muito rico. coligi: do verbo coligir – reunir em coleção, ajuntar (o que está esparso). conchavou: do verbo conchavar – unir, juntar, combinar. desazos: falta de jeito, inaptidões. discerni-la: do verbo discernir – analisar, distinguir, discriminar. epíteto: cognome, alcunha.

espórtulas: gorjetas, gratificações. No texto, significa donativos. filólogo: especialista no estudo da língua em toda a sua amplitude e dos documentos escritos que servem para documentá-la. geômetras: especialistas em geometria. inelutável: invencível, indiscutível. ipso facto: expressão latina que significa por isso mesmo. lustre: o mesmo que lustro, brilho. No texto, (fig.) honra, glória, fama. monografia: dissertação ou estudo minucioso que se propõe a esgotar determinado tema relativamente restrito. parlapatice: vaidade.

pasmo: admiração, assombro, espanto. roçagante: que faz ruído suave, como o vestido de seda; alusão à sonoridade do título. Sapiência: sabedoria. solários: terraços ou outros lugares onde se tomam banhos de sol. tábua rasa: literalmente significa uma superfície plana preparada para receber uma inscrição, porém onde nada se gravou. No texto, fazer tábua rasa significa apagar, eliminar, destruir. talares: que descem até os calcanhares. toleima: tolice.

PARA PENSAR Digital Stock

Texto 1 “Monólitos de Stonehenge, monumental assentamento circular pré-histórico que consiste em enormes blocos de pedra dispostos em círculo no centro de uma área também circular e terraplenada, cercado por um fosso. Situa-se a 13 km de Salisbury, no condado de Wiltshire, Inglaterra. O início de sua construção se deu por volta de 3 100 a.C. Embora não haja consenso entre os estudiosos, há quem acredite que se tratava de um sofis­ticado relógio solar da época.” Fonte: Nova enciclopédia Barsa.

Texto 2 FRANK & ERNEST/Bob Thaves

1. Qual o conhecimento prévio necessário para se compreender devidamente a tira? 2. De que modo o texto 2 se vale das informações do texto 1?

Folha de S.Paulo, 25.02.2007.


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POIS É, POESIA

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) I

E u nunca guardei rebanhos, Mas é como se os guardasse. Minha alma é como um pastor, Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar. Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação, Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela. Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por [isso. Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada, Os meus pensamentos são contentes. Só tenho pena de saber que eles são [contentes, Porque, se o não soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que [chove mais. Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho. E se desejo às vezes Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), É só porque sinto o que escrevo ao pôr do [sol, Ou quando uma nuvem passa a mão por [cima da luz E corre um silêncio pela erva fora. Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos [atalhos, Escrevo versos num papel que está no [meu pensamento, Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro,

Olhando para o meu rebanho e vendo as [minhas ideias, Ou olhando para as minhas ideias e [vendo o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem não [compreende o que se diz E quer fingir que compreende. Saúdo todos os que me lerem, Tirando-lhes o chapéu largo Quando me veem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do [outeiro. Saúdo-os e desejo-lhes sol, E chuva, quando a chuva é precisa, E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predileta Onde se sentem, lendo os meus versos. E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural – Por exemplo, a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque, cansados de [brincar, E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado.

Que dá personalidade às cousas, E impõe nome às cousas. Mas as cousas não têm nome nem [personalidade: Existem, e o céu é grande a terra larga, E o nosso coração do tamanho de um [punho fechado... Bendito seja eu por tudo quanto sei. Gozo tudo isso como quem sabe que há o [sol.

XLVIII

Da mais alta janela da minha casa

Com um lenço branco digo adeus Aos meus versos que partem para a [Humanidade. E não estou alegre nem triste. Esse é o destino dos versos. Escrevi-os e devo mostrá-los a todos Porque não posso fazer o contrário Como a flor não pode esconder a cor, Nem o rio esconder que corre, Nem a árvore esconder que dá fruto. Ei-los que vão já longe como que na [diligência E eu sem querer sinto pena Como uma dor no corpo.

X

“O lá, guardador de rebanhos, Aí à beira da estrada, Que te diz o vento que passa?”

Quem sabe quem os lerá? Quem sabe a que mãos irão?

“Que é vento, e que passa, E que já passou antes, E que passará depois. E a ti o que te diz?” “Muita cousa mais do que isso. Fala-me de muitas outras cousas. De memórias e de saudades E de cousas que nunca foram.” “Nunca ouviste passar o vento. O vento só fala do vento. O que lhe ouviste foi mentira, E a mentira está em ti.”

XXVII

S ó a Natureza é divina, e ela não é

[divina...

Se falo dela como de um ente É que para falar dela preciso usar da [linguagem dos homens

Flor, colheu-me o meu destino para os [olhos. Árvore, arrancaram-me os frutos para as [bocas. Rio, o destino da minha água era não [ficar em mim . Submeto-me e sinto-me quase alegre, Quase alegre como quem se cansa de [estar triste. Ide, ide de mim! Passa a árvore e fica dispersa pela [Natureza. Murcha a flor e o seu pó dura sempre. Corre o rio e entra no mar e a sua água é [sempre a que foi sua. Passo e fico, como o Universo. Extraído de: Poemas completos de Alberto Caeiro. In: Obra poética. Ed. Aguilar. 1965.


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Estudo testa nova classe de drogas com potencial efeito antidepressivo Karina Toledo

tes para a resiliência ao estresse. A dife­ rença, segundo indicam os resultados dos experimentos feitos em Ribeirão Preto, é que o segundo grupo de drogas induz esse efeito mais rapidamente. “Quando somos expostos a uma situa­ ção estressante, nosso organismo libera uma série de mediadores endógenos, como glutamato e cortisol, necessários para ativar circuitos importantes para a resposta aguda ao estresse. Mas, quando a liberação desses mediadores se torna crônica e excessiva, pode causar atrofia ou morte de neurônios, prejudicando o funcionamento adequado de circuitos importantes para a regulação do humor, do afeto ou da cognição”, disse a pesquisadora. Reprodução

S

ituações de estresse prolongado e momentos repetidos de raiva, medo ou ansiedade podem induzir modificações estruturais e funcionais no cérebro que predispõem ao desenvolvimento de doenças como a depressão. Os antidepressivos convencionais são capazes de reverter essas alterações cerebrais, mas levam pelo menos 15 dias para começar a surtir efeito e apenas 60% dos pacientes respondem ao tratamento. Desses, apenas 50% atingem a remissão completa dos sintomas. Em busca de terapias mais eficazes e com ação mais imediata, pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FCFRP-USP), testam, em modelos animais, novas classes de drogas que têm como mecanismo de ação inibir a enzima DNAmetiltransferase (DNMT), cujo papel é catalisar uma reação química conhecida como metilação do DNA (adição de um grupo metil à molécula de DNA). A metilação do DNA é considerada uma modificação epigenética, ou seja, que altera o funcionamento do genoma sem alterar o código genético em si. Pode ser induzida por diferentes estímulos biológicos e ambientais, entre eles o estresse, promovendo o silenciamento de genes e, consequentemente, a diminuição da expressão de proteínas. Resultados recentes do projeto apoiado pela FAPESP foram publicados este ano na revista Acta Neuropsychiatrica e apresentados pela pesquisadora Sâmia Joca durante a nona edição do Congresso Mundial do Cérebro, realizado no Rio de Janeiro entre os dias 7 e 11 de julho. “Experimentos com camundongos mos­ traram que diferentes classes de drogas inibidoras da enzima DNMT apresentam efeito tipo-antidepressivo agudo. Quando combinamos esses inibidores com antidepressivos convencionais, tam­bém de diferentes classes farmacológicas, observamos um efeito sinérgico entre os compostos”, contou Joca em entrevista à Agência FAPESP. Conforme explicou a pesquisadora, tanto os antidepressivos convencionais como os inibidores de DNMT parecem favo­recer a expressão de genes importan-

Apenas 60% dos pacientes respondem ao tratamento com antidepressivos convencionais (detalhe do quadro Sorrowing Old Man, Vicent van Gogh/Wikimedia Commons)

Evidências da literatura científica indicam que o estresse também reduz a formação de sinapses, a neurogênese e a proliferação celular em determinadas partes do cérebro, comprometendo a plasticidade neuronal, ou seja, a capacidade cerebral de se modificar para se adaptar aos estímulos ambientais. Algumas proteínas, porém, atuam protegendo os neurônios contra os danos causados pelo estresse – entre elas a mais conhecida é a BDNF (fator neurotrófico derivado do cérebro, na sigla em inglês).

“Evidências indicam, no entanto, que a metilação do DNA induzida pelo estresse, por fazer a cromatina ficar mais condensada no núcleo das células, dificulta a expressão do gene do BDNF e possivelmente de outros fatores importantes para a sobrevivência dos neurônios. Acreditamos que, no longo prazo, esse prejuízo ao mecanismo de plasticidade neuronal importante para a resiliência ao estresse possa predispor ao desenvolvimento de transtornos psiquiá­ tricos”, disse Joca. Estudos de outros grupos, contou a pesquisadora, haviam mostrado que um dos efeitos do tratamento crônico com antidepressivos convencionais é o aumento na expressão de BDNF, principalmente no córtex e no hipocampo – as regiões do cérebro mais afetadas pelo estresse. Mostraram ainda que, se a expressão de BDNF for bloqueada, os antidepressivos não surtem efeito. “Acreditamos que os antidepressivos convencionais, ao aumentar a liberação de neurotransmissores como serotonina ou noradrenalina, induzem uma cascata de efeitos intracelulares que, em última instância, interferem no padrão de metilação do DNA. Mas, como é um efeito indireto, acaba sendo necessário um tratamento crônico para que ele apareça. Imaginamos então que drogas capazes de interferir diretamente no padrão de metilação do DNA poderiam ter um efeito antidepressivo agudo”, contou a pesquisadora. Para testar a hipótese, o grupo de Ribeirão Preto realizou um tipo de experimento com ratos, utilizado há mais de 30 anos, para triar o efeito de fármacos candidatos a antidepressivos. O modelo consiste em colocar o roedor durante 15 minutos em um tanque com água, de onde por mais que ele se esforce não consegue sair. No dia seguinte, o experimento é repetido durante 5 minutos. “Os antidepressivos de maneira geral, mas não outras classes de drogas com efeito central, fazem aumentar no segundo dia do experimento o tempo que o animal fica nadando para tentar escapar. É como se a droga não o deixasse desistir facilmente. Portanto, esse efeito


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observado no teste em resposta a um tratamento novo é considerado preditivo de potencial antidepressivo”, contou Joca. Nesse modelo de estresse agudo, o grupo testou dois diferentes inibidores de DNMT: uma droga experimental conhecida como RG108 e uma droga já usada na clínica como quimioterápico, a decitabina. Os primeiros resultados dos experimentos, feitos apenas com a decitabina, foram divulgados em 2012 no British Journal of Pharmacology. “Tanto a decitabina como o RG108 interferem na metilação do DNA, mas por mecanismos completamente diferentes, e ambos apresentaram nesse modelo de estresse agudo o mesmo efeito dos antidepressivos convencionais fluoxetina e desipramina, porém mais rapidamente”, disse Joca. Em um novo experimento, o grupo combinou as quatro classes de drogas entre si (fluoxetina, desipramina, decitabina e RG108) em doses subefetivas – abaixo do necessário para obter efeito terapêutico quando usadas de maneira isolada. Em todas as combinações foi observado efeito antidepressivo significativo. “Se apenas uma ou duas combinações tivesse funcionado, poderia ser algo específico de uma determinada droga. Mas como todas tiveram efeito, isso sugere um sinergismo entre os inibidores de DNMT e os antidepressivos convencionais, ou seja, os efeitos se somam. Tal abordagem seria interessante na clínica, pois, ao reduzir as doses dos tratamentos isolados, os efeitos adversos também seriam, em tese, reduzidos”, comentou Joca.

O grupo vem estudando atualmente como os inibidores de DNMT alteram o padrão de expressão gênica no córtex e no hipocampo – particularmente a expressão de BDNF – e devem publicar os resultados em breve. “O que temos observado é que os inibidores de DNMT não diminuem a metilação do DNA em todas as regiões cerebrais. Eles parecem modular o efeito que o estresse provoca no cérebro”, disse Joca.

Modelo de estresse crônico Após as primeiras evidências positivas com a decitabina, o grupo decidiu testar os inibidores de DNMT em um modelo de estresse crônico, capaz de induzir em ratos alterações comportamentais e endocrinológicas semelhantes às observadas em humanos deprimidos. O modelo consiste em expor os roedores a 30 sessões de estresse intenso. Após sete dias, o animal é colocado no mesmo ambiente do teste anterior, mas numa condição em que é capaz de controlar sua exposição ao estresse. “Quando comparamos os ratos submetidos às sessões iniciais de estresse com um grupo controle [não estressado], vemos que eles têm mais dificuldade de aprender a controlar a exposição ao estresse no dia do teste”, explicou Joca. Observou-se nesse modelo que o tratamento com antidepressivos convencionais demora cerca de sete dias para alterar a expressão gênica no córtex e apresentar efeito sobre o comportamento dos animais. Os inibidores de DNMT, por outro lado, promoveram efeito após administração

aguda. Uma única injeção da droga dada após o primeiro dia de estresse foi suficiente para promover efeito tipo-antidepressivo (evidenciado por atenuação do efeito induzido pela pré-exposição ao estresse) e tornar o padrão de metilação no córtex e o comportamento dos animais mais semelhante ao do grupo controle. A pesquisadora ressalta, no entanto, que a ideia neste momento não é propor o uso de inibidores de DNMT como um tratamento clínico para depressão e sim entender os mecanismos intracelulares induzidos por esses compostos e gerar conhecimentos sobre vias que possam ser exploradas farmacologicamente. “A relação risco-benefício do uso da decitabina poderia ser avaliada no caso de um paciente em estado grave, com risco de suicídio, pois já é uma droga aprovada para uso em humanos”, avaliou Joca. Em casos desse tipo, contou a pesquisadora, tem sido usada uma droga conhecida como cetamina – aprovada para uso humano como anestésico local e que também demonstrou efeito antidepressivo agudo e sustentado, de até 14 dias com uma única dose. “Está descrito na literatura que a cetamina regula a expressão de vários genes e estamos estudando por qual mecanismo ela induz esse efeito antidepressivo agudo. O problema é que a cetamina é uma droga de abuso e há risco de o paciente se tornar dependente ou sofrer overdose. Por isso há necessidade de encontrar novas opções com ação semelhante e menor risco de dependência”, disse a pesquisadora. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, ago./2015.

SERVIÇO DE VESTIBULAR Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Período de inscrição: até 03 de setembro de 2015. Somente via internet. Endereço da faculdade: Campus Universitário Zeferino Vaz – Barão Geraldo – Campinas – SP – CEP: 13083-970 – Telefone: (19) 3521-7000. Requisito: taxa de R$ 150,00. Cursos e vagas: consultar site www.comvest.unicamp.br Exames: • 1a fase – dia 22 de novembro de 2015. • 2a fase – dias 17, 18 e 19 de janeiro de 2016. Leituras obrigatórias: • Sentimento do mundo – Carlos Drummond de Andrade.

• Sonetos – Luís de Camões. • “Amor”, do livro Laços de família – Clarice Lispector. • “A hora e a vez de Augusto Matraga”, do livro Sagarana – Guimarães Rosa. • “Negrinha”, do livro Negrinha – Monteiro Lobato. • Lisbela e o prisioneiro – Osman Lins. • Viagens na minha terra – Almeida Garret. • O cortiço – Aluísio Azevedo. • Capitães da Areia – Jorge Amado. • Til – José de Alencar. • Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis. • Terra sonâmbula – Mia Couto.

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) Período de inscrição: até 14 de setembro de 2015. Somente via internet. Endereço da faculdade: Rua Marquês de São Vicente, 225 – Gávea – Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22451-900 – Telefone: (21) 3527-1001. Requisito: taxa de R$ 170,00. Cursos e vagas: consultar site www.puc-rio.br Exames: dias 11 e 12 de outubro de 2015.


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