Jornal do Vestibulando - 1506

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Jornal do Vestibulando

ENSINO, INFORMAÇÃO E CULTURA

JORNAL ETAPA – 2015 • DE 10/12 A 24/12

ESPECIAL

Desejamos aa você você um um Desejamos feliz Natal... Natal... feliz

CONTO

Missa do galo – Machado de Assis

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ARTIGO

Descobrimentos do Brasil

POIS É, POESIA

Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)

ENTRE PARÊNTESIS

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PARA TREINAR SEU INGLÊS

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ITA – Questões de vestibular

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Moedas SERVIÇO DE VESTIBULAR

Inscrições

8 8


... e um excelente Ano Novo!!!


CONTO

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Missa do galo Machado de Assis unca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa1; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça2; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito. Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenua­ do e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar. Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver a “missa do galo na Corte”. A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria a outra, a terceira ficava em casa.

N

– Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou a mãe de Conceição. – Leio, D. Inácia. Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo negro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição. – Ainda não foi? perguntou ela. – Não fui; parece que ainda não é meia-noite. – Que paciência! Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza: – Não! qual! Acordei por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa. – Mas a hora já há de estar próxima, disse eu. – Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. – Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo. – Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros. – Justamente: é muito bonito. – Gosta de romances? – Gosto. – Já leu A Moreninha? – Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.

– Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. “Talvez esteja aborrecida”, pensei eu. E logo alto: – D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu... – Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia? – Já tenho feito isso. – Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha. – Que velha o quê, D. Conceição? Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la. – É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. – Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio... Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e


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CONTO

menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis que, apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me: – Mais baixo! mamãe pode acordar. E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho: – Mamãe está longe, mas tem um sono leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono. – Eu também sou assim. – O quê? – perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves. – Há ocasiões em que sou como mamãe; acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada. – Foi o que lhe aconteceu hoje. – Não, não, atalhou ela. Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: – Mais baixo, mais baixo... Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante,

abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. – Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava “Cleópatra”; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios. – São bonitos, disse eu. – Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro. – De barbeiro? A senhora nunca foi à casa de barbeiro. – Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório. A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeios, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos. Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.

– Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo. Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo, – não posso dizer quanto, – inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela do lado de fora e uma voz que bradava: “Missa do galo! missa do galo!” – Aí está o companheiro, disse ela, levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus. – Já serão horas? perguntei. – Naturalmente. – Missa do galo! repetiram de fora, batendo. – Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus, até amanhã. E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor adentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja, sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia3. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido. Extraído de: Onze contos de Machado de Assis, Ed. Núcleo, 1994.

VOCABULÁRIO (1)  Locução adverbial, significa “furtiva­ men­te”, “disfarçadamente”. (2)  A amante do marido. (3)  Afecção cerebral que se manifesta inesperadamente, ocasionada por lesão vascular cerebral aguda, via de regra uma hemorragia. Na linguagem popular, der­ rame cerebral.


ARTIGO

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Descobrimentos do Brasil Rogério F. da Silva

pedaço de terra começou a se configurar o decorrer do ano dois mil, ocorre­ entre os convidados. As comemorações se há pelo menos trezentos anos, numa época ram numerosas manifestações e, passavam como se o anfitrião, por intermé­ em que se ocorria na Europa a formação dos entre estas, a publicação de livros dio dos presentes que distribuía aos seus Estados Nacionais, que, de alguma forma, e artigos relativos às comemorações dos convidados, afirmasse: “Sou suficientemen­ servia como modelo a ser seguido. Como quinhentos anos do chamado Descobri­ te poderoso para presentear e dar de comer nação independente, no início do século mento do Brasil. Desde então tivemos a a todos vocês”. Ao término de um Potlatch, o XIX, o país afirma-se no contexto de uma oportunidade de dispor de textos dos mais anfitrião era socialmente reconhecido como onda de nacionalismo associado às ideias de renomados especialistas sobre as Grandes alguém muito poderoso ao qual os convida­ um grupo étnico coeso, com ancestrais co­ Navegações, de biografias dos navegado­ dos deviam alguma forma de obediência2. muns que remontam a um passado remoto. res que desbravaram mares até então des­ Assim, mudando o que deve ser mudado, e À falta destes elementos que remontam ao conhecidos, a análises primorosas sobre o guardadas as devidas proporções, é sempre passado como cavaleiros medievais, a um que alguns autores consideram a “certidão conveniente lembrar que uma festa, uma efe­ Carlos Magno, um Cid, um Ivanhoé, um Gui­ de nascimento”1 daquilo que viria a ser o méride, constitui-se também em uma mani­ lherme Tell, um Egmond, nosso romantismo festação de poder perante terceiros. Assim, Brasil (a carta de Pero Vaz de Caminha, o es­ foi buscar em um idílico indígena, em uma as comemorações não são apenas uma de­ crivão oficial da frota comandada por Pedro dócil mucama, em um bravo Zumbi, em um finição e afirmação de identidade, como tam­ Álvares Cabral). Cabe a eles o espaço que ousado bandeirante, os fundamentos e o ci­ bém se prestam a uma manifestação de for­ merecidamente conquistaram e, por nossa mento de uma nacionalidade, que, diga-se ça e, enquanto tal, podem ser utilizadas em parte, realizaremos algumas reflexões em de passagem, era fundada em paradigmas vários sentidos e com alvos diferenciados. torno da questão. étnicos europeus. À força Tal comemoração cor­ de tantas comemorações, res­ponde a uma efe­mé­ride, de tantas repetições, o que ou seja, um fato importante era uma alusão, uma remo­ ocorrido em uma determi­ ta memória, foi adquirindo nada data [em nos­so caso, contornos de verdade. A 22.04.1500] e, nesse senti­ história presta-se então a do, enquanto tal, é passível uma finalidade: ser a “bio­ de mais de uma interpreta­ grafia da nação”. ção. Gos­ taríamos de des­ Foi o pensador italiano tacar pelo menos duas que Antonio Gramsci (1891consideramos importantes: -1937), fazendo reflexões a a primeira, certamente, respeito do papel do “Ri­ associa-se à definição e sorgimento” na fundação afirmação de uma identida­ da “nação italiana”, que, de de, a segunda, como uma uma forma exemplar, apon­ demonstração de força, de tou para as mazelas de se poder. Comemora-se para Representação artística da chegada dos portugueses ao Brasil. considerar que uma nação trazer ou ressaltar à me­ estava adormecida num mória dos contemporâneos Representação artística da chegada dos portugueses ao Brasil. passado remoto, e, a partir daí, se construir um evento – um aniversário – que confere A afirmação de uma identidade traz con­ uma história como “biografia nacional”4. um sentido de coesão social e identida­ sigo especulações sobre o conteúdo desta de ao grupo que se sente envolvido afetiva Nessa tarefa, procuram-se juntar elementos, identidade. Em nosso caso, o que significa e emocionalmente com o aniversariante. eventos, sinais que sirvam de testemunho afirmar “somos brasileiros”? Ocupamos Por sua vez a dimensão festiva de come­ e justificariam a nacionalidade nascente. A um espaço, situamo-nos num determinado moração expressa também uma demons­ constituição desta biografia requer o esforço intervalo de tempo e etnicamente definimo­ tração de força, como se fosse um grande de gerações, de tal forma que, ao passar do -nos por um conjunto de negações: não so­ “Potlatch”. A cerimônia do Potlatch, comum tempo, à força de constante repetição, com mos indígenas, não somos africanos, não entre os indígenas da costa do Pacífico da graus variados de acuidade e sofisticação, somos europeus, não somos asiáticos e, ao América do Norte (na região que correspon­ forjam-se estereótipos e passa-se a dar con­ mesmo tempo, somos um pouco de cada de aos espaços entre os atuais estados de sistência a um corpo que há pouco inexistia. um destes grandes grupos étnicos3. Este Washington e Alasca), consistia basicamente Caio Prado Júnior (1907-1990), muito numa grande festa patrocinada pelo anfitrião, apropriadamente, chamou este procedi­ 2 Cf. Entre outros: 1) Ruth Benedict. Padrões preparada antecipadamente por um longo de cultura. Tradução de Alberto Candeias. Lisboa: mento de anacronismo. Conhecemos o Livros do Brasil, s/d. 2) Homer Garner Barnett. intervalo de tempo e que virtualmente con­ presente e então projetamos no passado “Potlatch”. In: Benedicto Silva (Org.). Dicionário sumia todo o trabalho do grupo ao qual o an­ tudo aquilo que de uma forma ou de ou­ de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Editora da fitrião pertencia. No dia da festa, todo o pro­ tra teria levado ao desenlace do presente. Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 949-950. duto do esforço era prodigamente distribuído Como se o presente estivesse há muito 3 Fernando Antonio Novais. “América, desco­ contido no passado5. berta, colonização e suas consequências nos John Copland/Shutterstock

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1 Fernando Antonio Novais. “A ‘certidão de nas­ cimento ou de batismo’ do Brasil”. In: Fernando Antônio Novais. Aproximações: estudos de his­ tória e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p. 237-244.

sistemas de comunicação”. In: Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho (Org.). Perturbador mundo novo: história, psicanálise e sociedade contemporâ­ nea, 1492, 1900, 1992. São Paulo: Escuta, 1994. p. 261-273.

4 Antonio Gramsci. El Risorgimento. Buenos Ai­ res: Granica, 1974. p. 91. 5 Caio Prado Júnior. Formação do Brasil contem­ porâneo. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1963.


ARTIGO

Filipe Frazao/Shutterstock

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Aspecto do centro histórico de Salvador (Bahia).

Por todas estas razões, gostaríamos de salientar, nesse sentido, como soa no mínimo estranho a expressão “Desco­ brimento do Brasil”. Tudo se passa como se, em mil e quinhentos, já existisse um Brasil que bastava unicamente ser desco­ berto. Para aqueles que ainda acreditam nisso seguem-se, entre outros possíveis, alguns senões. Por um longo período – superior a cento e cinquenta anos (1621-1774), a metrópole criou neste espaço duas unida­ des político-administrativas, a saber: Estado do Maranhão e Grão Pará e Estado do Brasil. Um ato administrati­ vo do Marquês de Pombal, mi­nistro do rei D. José I, colocou um ponto final nesta divisão. Observa-se que se tivesse sido mantida esta divisão, Portugal teria duas colônias na América, o Brasil e o Mara­ nhão e Grão-Pará, cada um com suas respectivas histórias de descobrimento e independência. Deve-se lembrar também que, às vésperas da Independência, não se tinha claro o desfecho das desavenças entre a América Portuguesa e Portugal. De certa maneira, uma determinada polí­ tica das Cortes Gerais Constituintes Por­ tuguesas (1820-1822), de alguma forma, “inventou” o Brasil e os brasileiros. Para a maioria dos políticos de então, o conten­ cioso principal dizia respeito a uma política específica das Cortes Gerais Constituintes em relação ao status que o Brasil pos­ suía desde 1815 como um Reino Unido a Portugal. Influentes deputados portugue­ ses faziam questão de negar este status. Por sua vez, os próprios deputados que saíram da América Portuguesa para tomar assento nas Cortes, eles mesmos, não se

consideravam brasileiros. Eram oriundos de regiões que possuíam pouco contato entre si, possuíam problemas específicos e, não obstante, seus anfitriões portugue­ vam-nos como brasileiros. Veja­ ses trata­ -se, por exemplo, a famosa afirmação do deputado Diogo Antônio Feijó, represen­ tante da província de São Paulo nas Cortes Gerais em 1822: “Não somos deputados do Brasil (...), porque cada província se governa hoje independente”6. Observa­ -se que políticos da estatura de Diogo Feijó, àquela altura, não tinham consciên­ cia de que estavam representando um “Brasil”, e sim, no limite, uma província do Reino Unido. Nesse sentido, alguns maus-tratos sofridos pelos deputados oriundos deste lado do Atlântico deram-lhes consciência de que eram, afinal, bra­ sileiros e que, portanto, deveria existir al­ guma coisa chamada Brasil7. Talvez, desta forma, tenha mais sentido afirmar a exis­tência de “descobrimentos” do Brasil, do que propriamen­te “um des­ cobrimento”. Este plural é importante, pois nos sugere a ideia de que “descobrir que existia um Brasil” teria sido tarefa de mui­ tos, que aos poucos vieram conferir con­ teúdo ao que chamamos de Brasil. Desde 6 Sérgio Buarque de Holanda. “O novo des­ cobrimento do Brasil: a herança colonial – sua desagregação”. Apud Sérgio Buarque de Holan­ da (Org.). História geral da civilização brasileira. Tomo II. O Brasil monárquico. v. 1. O processo de emancipação. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1965. p. 16. 7 Manuel Emílio Gomes de Carvalho. Os depu­ tados brasileiros nas Cortes de Lisboa. Brasília: Senado Federal, 1979.

já, deve-se frisar que, considerados os sé­ culos de colonização e de Estado indepen­ dente, estes “descobrimentos” do Brasil são rela­tivamente recentes. Os “descobri­ dores” do Brasil foram muitos, seria difícil constituir um elenco completo. No plano das ideias, destaquemos al­ guns daqueles que, por suas reflexões e seus respectivos trabalhos, na verda­ de mereceriam encontrar-se no rol de “descobridores” do Brasil. Um dos mais importantes, neste contexto, foi José Bo­ nifácio de Andrada e Silva (1763-1838), que possuía uma perspectiva de estadista não só no que diz respeito ao rompimento com Portugal, mas também como deveria configurar-se o novo estado exemplificado, por exemplo, em suas explícitas posições contra a escravidão8. João Capistrano de Abreu (1853-1927) foi o historiador que nos chamou a atenção de que existia um Bra­ sil para além do litoral, um imenso interior inexplorado9. Neste mesmo sentido, têm importância os trabalhos de Euclides da Cunha (1866-1909), chamando a atenção para a existência do mundo do Sertão para além da vida urbana em desenvolvimen­ to10. Gilberto Freyre (1900-1987), por sua vez, chamou-nos a atenção sobre a impor­ tância da miscigenação, que deu origem a uma nova sociabilidade, diferente daquela do europeu colonizador. Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), inquieto com as questões de identidade, procurou destacar as peculiaridades da colonização portugue­ sa, quando comparada a de outros povos na formação daquilo que chamamos de Bra­ sil11. Caio Prado Júnior (1907-1990), Celso Furtado (1920-2004) e Fernando Novais12, cada um à sua maneira vieram destacar a inserção deste pedaço do mundo na eco­ nomia mundial. Evidentemente, este rol é incompleto, mas, de forma sucinta, procura sugerir que o “descobrimento” é um tema aberto e que há ainda muito por “desco­ brir” quando nos pomos a refletir sobre este país-continente chamado Brasil. 8 José Bonifácio de Andrada e Silva. Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 9 João Capistrano de Abreu. Capítulos de his­ tória colonial, 1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963. 10 Euclides da Cunha. Os Sertões: campanha de Canudos. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963. 11 Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Bra­ sil. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963. 12 Caio Prado Júnior. Formação do Brasil con­ temporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011; Celso Furtado. Formação econômica do Brasil. Brasília: Editora da Universidade de Bra­ sília, 1963; Fernando A. Novais. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777--1808). São Paulo: Hucitec, 1981.


POIS É, POESIA

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Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) Dispersão

Perdi-me dentro de mim Porque eu era labirinto, E hoje, quando me sinto, É com saudades de mim. Passei pela minha vida Um astro doido a sonhar. Na ânsia de ultrapassar, Nem dei pela minha vida... Para mim é sempre ontem, Não tenho amanhã nem hoje: O tempo que aos outros foge Cai sobre mim feito ontem. (O Domingo de Paris Lembra-me o desaparecido Que sentia comovido Os Domingos de Paris: Porque um domingo é família, É bem-estar, é singeleza, E os que olham a beleza Não têm bem-estar nem família). O pobre moço das ânsias... Tu, sim, tu eras alguém! E foi por isso também Que te abismaste nas ânsias. A grande ave doirada Bateu asas para os céus, Mas fechou-as saciada Ao ver que ganhava os céus. Como se chora um amante, Assim me choro a mim mesmo: Eu fui amante inconstante Que se traiu a si mesmo.

A sua boca doirada E o seu corpo esmaecido, Em um hálito perdido Que vem na tarde doirada. (As minhas grandes saudades São do que nunca enlacei. Ai, como eu tenho saudades Dos sonhos que não sonhei!...) E sinto que a minha morte – Minha dispersão total – Existe lá longe, ao norte, Numa grande capital. Vejo o meu último dia Pintado em rolos de fumo, E todo azul-de-agonia Em sombra e além me sumo. Ternura feita saudade, Eu beijo as minhas mãos brancas... Sou amor e piedade Em face dessas mãos brancas... Tristes mãos longas e lindas Que eram feitas pra se dar... Ninguém mas quis apertar... Tristes mãos longas e lindas... Eu tenho pena de mim, Pobre menino ideal... Que me faltou afinal? Um elo? Um rastro?... Ai de mim!... Desceu-me n’alma o crepúsculo; Eu fui alguém que passou. Serei, mas já não me sou; Não vivo, durmo o crepúsculo.

Não sinto o espaço que encerro Nem as linhas que projeto: Se me olho a um espelho, erro – Não me acho no que projeto.

Álcool dum sono outonal Me penetrou vagamente A difundir-me dormente Em uma bruma outonal.

Regresso dentro de mim Mas nada me fala, nada! Tenho a alma amortalhada, Sequinha, dentro de mim.

Perdi a morte e a vida, E, louco, não enlouqueço... A hora foge vivida Eu sigo-a, mas permaneço...

Não perdi a minha alma, Fiquei com ela, perdida. Assim eu choro, da vida, A morte da minha alma.

Castelos desmantelados, Leões alados sem juba...

Saudosamente recordo Uma gentil companheira Que a minha vida inteira Eu nunca vi... mas recordo

O Lord

L ord que fui de Escócias doutra vida

Hoje arrasta por esta a sua decadência, Sem brilho e equipagens. Milord reduzido a viver de imagens,

Para às montras de joias de opulência Num desejo brumoso – em dúvida [iludida... (– Por isso a minha raiva mal contida, – Por isso a minha eterna impaciência.) Olha as Praças, rodeia-as... Quem sabe se ele outrora Teve Praças, como esta, e palácios e [colunas – Longas terras, quintas cheias, lates pelo mar fora, Montanhas e lagos, florestas e dunas... (– Por isso a sensação em mim fincada [há tanto Dum grande patrimônio algures haver [perdido; Por isso o meu desejo astral de luxo [desmedido – E a Cor na minha Obra o que ficou do [encanto...)

Aqueloutro

O dúbio mascarado, o mentiroso

Afinal, que passou na vida incógnito; O Rei-lua postiço, o falso atônito; Bem no fundo o covarde rigoroso... Em vez de Pajem bobo presunçoso... Sua alma de neve asco de um vômito... Seu ânimo cantado como indômito Um lacaio invertido e pressuroso... O sem nervos nem ânsia, o papa-açorda... (Seu coração talvez movido a corda...) Apesar de seus berros ao Ideal, O corrido, o raivoso, o desleal, O balofo arrotando Império astral, O mago sem condão, o Esfinge Gorda...

Fim

Q uando eu morrer batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes, Façam estalar no ar chicotes, Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro Ajaezado à andaluza... A um morto nada se recusa, E eu quero por força ir de burro! Extraído de: Poesias. Lisboa, Ática, 1946.


PARA TREINAR SEU INGLÊS

8

ITA As questões 01 e 02 referem-se aos cartuns abaixo. Leia-os e assinale a opção que melhor responde a cada uma das duas questões.

Questão 01

Questão 02

Das afirmações abaixo

Das afirmações abaixo

I. Garfield mostra-se insensível e rude.

I. “Skillet” é sinônimo de “frying pan”.

II. Garfield concorda com a afirmação de que dentes separados são indicativos de sensibilidade.

II. O adjetivo “self-centered” aplica-se bem ao comportamento exibido por Garfield.

III. Ambos os personagens “curtem” a beleza do amanhecer.

III. Os dois personagens assistem a diferentes canais de TV.

está(ão) condizente(s) com o texto:

está(ão) condizente(s) com o texto:

a) apenas a I.

a) apenas a I e a II.

b) apenas a II.

b) apenas a II e a III.

c) apenas a III.

c) apenas a I e a III.

d) apenas a II e a III.

d) nenhuma.

e) todas.

e) todas.

RESPOSTA Tradução dos textos: – Você não tem vergonha do espaço entre seus dentes? – É claro que não. É um sinal de sensibilidade. ­– Eu também ficaria sentido com isso. – Eu não sei o que eu vejo nele. 01. alternativa A

– Eu tenho a sensação de que estamos assistindo a dois canais diferentes. – O barulho de bacon na frigideira... O aroma de café fresco. – Você não adora o nascer do sol, Garfield? O canto dos pássaros... O ar fresco da manhã.

02. alternativa A

(ENTRE PARÊNTESIS)

Moedas Este é um dos mais fáceis problemas com balança e moedas. Temos uma balança de prato e 9 moedas, sendo que apenas uma delas é mais pesada que as outras, embora todas tenham a mesma aparência. Como, com duas pesagens, podemos identificar a moeda mais pesada?

RESPOSTA

Coloque três moedas em cada prato da balança. Se a balança estiver em equilíbrio, então a moeda diferente é uma das três que não foram usadas; caso contrário, um dos pratos estaria mais baixo. Estamos agora restritos a três moedas, digamos A, B e C. Pese A e B. Se a balança estiver em equilíbrio, então C é a moeda diferente; caso contrário, ela estará no prato que estiver mais baixo.

SERVIÇO DE VESTIBULAR Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Período de inscrição: até 20 de dezembro de 2015. Somente via internet. Endereço da fa­cul­dade: av. Transnordestina, s/no – Novo Horizonte – Feira de Santana – BA – Telefone: (75) 3161-8000/3161-8200.

Jornal do Vestibulando

Requisito: taxa de R$ 100,00. Cursos e vagas: consultar site www.uefs.br Exames: dias 20 e 21 de março de 2016.

Jornal ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP JORNALISTA RESPONSÁVEL: Egle M. Gallian – M.T. 15343


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