Jornal do vestibulando - 1526

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Jornal do Vestibulando

ENSINO, INFORMAÇÃO E CULTURA

JORNAL ETAPA – 2017 • DE 13/03 A 22/03

CURSO – MEDICINA

“Foi uma experiência incrível... e foi tudo suficiente para que eu conseguisse a vaga.” Kleber Jessivaldo Gomes das Chagas começou pela área de Exatas antes de descobrir que queria mesmo fazer Medicina. Calouro da Pinheiros, aos 26 anos, aqui ele conta sua história, vindo da Paraíba e tendo de superar uma porção de obstáculos. Sobre a superação ele diz: “Não importa quantas e quais sejam as dificuldades, dá para vencê-las”.

Kleber Jessivaldo Gomes das Chagas Em 2016: Etapa Em 2017: Medicina – USP

JV – Como foi sua caminhada para a Medicina? Kleber – Eu me formei no Ensino Médio em 2006. Entrei em Engenharia Elétrica na Universidade Federal da Paraíba, mas em 2010 desisti do curso. Como chegou a São Paulo? Prestei concurso público e comecei a trabalhar na prefeitura da minha cidade. No final de 2011 voltei a prestar vestibular na Federal da Paraíba, para Matemática, que cursei em 2012. No começo de 2013 meu irmão sugeriu que eu fizesse concurso para controlador do tráfego aéreo. Vim para São Paulo fazer isso. Passei na parte escrita, mas fui eliminado por causa da miopia. Por que não voltou para a Paraíba? Como já tinha abandonado a faculdade de novo e pedido exoneração do meu cargo na prefeitura, fiquei em Jundiaí, onde já morava. Trabalhei em 2013 e 2014. Primeiro no escritório de uma transportadora para a Coca-Cola. Depois como encarregado de um dos setores de um cinema no Shopping de Jundiaí. Saí para trabalhar em uma farmácia. Como você foi morar em Jundiaí? Quando decidi prestar o concurso para controlador de voo minha mãe fez contato com um amigo dela que mora em Jundiaí

CONTO Vinte anos! Vinte anos! – Machado de Assis

Até quando você trabalhou em Jundiaí? No final de 2014 fui fazer um curso técnico de segurança do trabalho e lá conheci um professor de Matemática. Ele achou que eu sabia muito de Matemática para estar naquele curso. Aí comecei a dar aula particular. Passei 2015 todo dando aulas particulares. Em 2015 resolvi prestar vestibular de novo. O que você prestou? Fiz o Enem e consegui entrar em Nutrição na USP. No ano passado mudei para São Paulo. Por que Nutrição? Eu queria sair da área de Exatas e ir para a saúde. Já pensava em Medicina, mas não tinha estudado para o vestibular e sabia que não ia conseguir. O curso de Nutrição foi meu primeiro contato com um curso da área de Saúde. Deu para sentir como é que era, para ver se eu queria fazer Medicina ou não. Eu me apaixonei por Anatomia, Bioquímica e Fisiologia. Nunca tinha gostado tanto de estudar uma coisa como estava gostando daquele jeito. Conversando com veteranos e com professores, vi que o que eu queria mesmo era Medicina. ARTIGO

ENTREVISTA

Kleber Jessivaldo Gomes das Chagas

e pediu a ele para me hospedar durante o período de provas. Minha família não tinha condições de me manter aqui. Depois de ser eliminado do concurso fiquei trabalhando em Jundiaí.

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Camões e os descobrimentos

Como você se manteve em São Paulo? Vim morar numa república e falei com o pessoal que morava comigo que ia prestar Medicina, só que ia ser difícil estudar e trabalhar. Então eles me ajudaram durante o ano sem ter de pagar aluguel e também na questão de alimentação. Assim consegui fazer o cursinho e estudar em casa sem ter que trabalhar. Qual era sua expectativa quando começou o cursinho? Tinha bastante medo porque muitas coisas eu estava vendo pela primeira vez. A cada aula tinha mais coisas para estudar e não sabia se ia conseguir aprender aquilo tudo durante o ano. Como você se organizou para estudar? Meu foco era a USP e fiz imersão total em tudo relacionado à Fuvest. Fiz as provas dos 10 últimos anos da 1a fase e dos últimos cinco anos da 2a fase. Tinha dias que eu chegava a estudar 15 horas – incluindo as aulas daqui. POIS É, POESIA

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ENTRE PARÊNTESIS

Cesto de pães

Como você se sentia para enfrentar o vestibular de Medicina? Como me formei em 2006, estava com muita defasagem. Tinha de correr atrás de muita coisa; tinha muita coisa para estudar. No Enem de 2015, por exemplo, eu acertei só uma questão de Biologia. Há 10 anos eu não fazia uma redação.

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Gregório de Matos Guerra (1633-1696)

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CURSO – MEDICINA

Como você estudava depois das aulas? Eu tinha que ver muitas coisas e preferia estudar em casa. À tarde estudava tudo que tinha sido dado no dia e à noite revisava as coisas em que tinha dificuldade. Estudava até 1 hora da manhã. Nunca deixei acumular matéria. Fazia todos os exercícios que eram passados. E se fosse algum assunto em que eu tinha dificuldade ou não tinha visto, eu pegava a teoria e fazia exercícios extras. Você estudava sábado e domingo também? Estudava. No sábado fazia os exercícios do Reforço. No domingo estudava Literatura, Português, Redação, coisas em que eu queria me aprofundar. Em quais matérias você tinha mais dificuldades? História, Geografia e Português. Biologia, apesar de não lembrar de muita coisa, acabei pegando fácil. Quais eram seus resultados nos simulados? Nos simulados da 1a fase da Fuvest acho que o mínimo de acertos que eu fiz foi 73. Só no simulado do 2o dia da 2a fase eu fiquei nas faixas B e C mais. Como você avaliava seu desempenho? Ficava feliz porque o meu esforço estava dando resultado. Eu via que estava evoluindo e isso me dava esperança. Você ia ao Plantão de Dúvidas? Eu ia para tirar dúvidas em Português, História e Geografia. Quando a dúvida persistia, eu olhava no site, na área do aluno. Depois de passar 10 anos sem fazer redação, como você fez para retomar a prática? Fiz todas as redações indicadas em aula. Fazia a redação das provas de outros anos. Trazia para o plantão. No começo não sabia nem como montar a estrutura de uma redação. Nas primeiras vezes que vim ao plantão era para me explicarem mesmo como era a estrutura. Eu não lembrava mais. Com qual frequência você fazia redações? Fazia, no mínimo, uma a cada 15 dias. Teve período de fazer duas por semana. Mas como tinha muita matéria para ver eu não tinha tanto tempo para dedicar à Redação. Eu sabia que para Medicina Redação contava bastante. Minha nota sempre ficava em 6, 6 e meio, C mais.

E em Literatura, você leu as obras obrigatórias? Li todas e também li o livro daqui com as análises e resumos. Você assistiu às palestras sobre os livros também? Assisti tanto no auditório, quanto na internet, quando chegou mais perto das provas. Você fazia algo especial para relaxar? Afora os estudos, assistia filmes. Pelo menos uma vez por mês eu saía sábado à noite. Nas férias, o que você fez? Eu estava em dia com a matéria e na primeira semana não fiz nada. Só que tinha muitas coisas que eu ainda precisava ver e na segunda semana eu estudei. No Enem, quantos acertos você teve? Fiz 153 de 180. Qual foi sua nota total? 776. Na 1a fase da Fuvest, qual foi sua pontuação? Fiz 72 pontos e o corte foi 69. Na prova eu travei – uma coisa que nunca tinha acontecido comigo. Houve um momento em que eu só olhava e olhava para a prova, sem conseguir pensar direito. Achei até que não iria para a 2a fase. E como focou seu estudo depois? Eu vi tudo de novo, porque tinha que ir bem nos três dias. Quais foram suas notas na 2a fase? No primeiro dia eu tirei 73 na Redação e 71 nas questões. Fiquei com média 72. No segundo dia, na prova geral, minha nota foi 90 e alguma coisa. No terceiro dia tirei só 77 e alguma coisa. Nesse dia quase perdi a prova. Quando cheguei no prédio, percebi que tinha esquecido a carteira. Fui buscar em casa correndo. Quando cheguei de volta o fiscal estava fechando o portão – quase não entrei. Por isso, nem consegui me concentrar direito na prova. Como ficou sabendo de sua aprovação? Acordei exatamente quando saiu a lista, às 10 horas. Eu estava muito ansioso. Fui pegar um copo d´água para ficar mais calmo e quando voltei já tinha mensagem de uma menina com quem eu tinha estudado falando que eu tinha passado. Não acreditei, fui para o computador, tinha que ver. Só acreditei mesmo quando vim aqui no Etapa e me mostraram na lista que eu tinha passado na Pinheiros.

O que você sentiu naquele momento? Um sentimento de gratidão muito grande porque não foi uma coisa que eu conquistei sozinho. O Etapa me ajudou me dando todo o suporte de que eu precisava, aulas, material, estrutura. Meus amigos me ajudaram com suporte financeiro, suporte emocional. Só passou um filme com todas as pessoas que me ajudaram. Como foi a matrícula? Fui sozinho. Eu via as outras pessoas com os familiares e senti um pouco a falta disso, de estar com alguma pessoa. A parte boa foi saber que eu consegui, eu cheguei. Quando a moça que pegou minha documentação falou: “Seja bem-vindo”, saiu um mundo das minhas costas. E aí conheci pessoas que vão estudar comigo, conheci veteranos. Fui conhecer as extensões e depois teve um churrasco, teve a bateria. Que área da Medicina você pretende seguir? Eu entrei querendo Neurologia, mas os veteranos falaram que a gente entra pensando uma coisa e depois muda. Então, agora estou aberto a qualquer possibilidade. Do que você mais gostou até agora? Os veteranos são extremamente receptivos, sente-se o carinho e a paixão pelo curso que eles têm e tentam transmitir isso para a gente. E da parte de estrutura não tenho nem o que falar: as possibilidades de estudo, de pesquisa, de inserção no meio médico, de conhecimento, biblioteca, Hospital das Clínicas, laboratórios, é um negócio grandioso. O que você pode dizer aos vestibulandos que estão querendo fazer Medicina? Eu diria para não desistir em momento algum. O que parece impossível pode se tornar possível. Basta se dedicar e acreditar. Mais dificuldades do que eu enfrentei, poucas pessoas têm. Não importa quantas e quais sejam, dá para vencê-las. Como fica marcado para você o ano passado? Foi um ano em que tive que me dedicar muito e tive de me colocar na mão de outras pessoas. Eu sempre fui muito independente e no ano passado tive que confiar e aceitar a ajuda de todos. Além de que o cursinho foi uma experiência totalmente nova. O ritmo das aulas, as amizades, as pessoas que eu conheci, os professores, as apostilas. Foi uma expe­ riência incrível porque tudo era novo, mas foi tudo necessário. E foi tudo suficiente para que eu conseguisse a vaga.


CONTO

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Vinte anos! Vinte anos! Machado de Assis

G

onçalves, despeitado, amarrotou o papel, e mordeu o beiço. Deu cinco ou seis passos no quarto, deitou-se na cama, de barriga para o ar, pensando; depois foi à janela, e esteve ali durante dez ou doze minutos, batendo o pé no chão e olhando para a rua, que era a rua detrás da Lapa. Não há leitor, menos ainda leitora, que não imagine logo que o papel é uma carta, e que a carta é de amores, alguma zanga de moça, ou notícia de que o pai os ameaçava, que a intimou a ir para fora, para a roça, por exemplo. Vãs conjeturas! Não se trata de amores, não é mesmo carta, posto que haja embaixo algumas palavras assinadas e datadas, com endereço a ele. Trata-se disto. Gonçalves é estudante, tem a família na província e um correspondente na corte, que lhe dá a mesada. Gonçalves recebe a mesada pontualmente; mas tão depressa a recebe como a dissipa. O que acontece é que a maior parte do tempo vive sem dinheiro; mas os vinte anos formam um dos primeiros bancos do mundo, e Gonçalves não dá pela falta. Por outro lado, os vinte anos são também confiados e cegos; Gonçalves escorrega aqui e ali, e cai em desmandos. Ultimamente, viu um sobretudo de peles, obra soberba, e uma linda bengala, não rica, mas de gosto; Gonçalves não tinha dinheiro, mas comprou-os fiado. Não queria, note-se; mas foi um colega que o animou. Lá se vão quatro meses; e instando o credor pelo dinheiro, Gonçalves lembrou-se de escrever uma carta ao correspondente, contando-lhe tudo, com tais maneiras de estilo, que enterneceriam a mais dura pedra do mundo. O correspondente não era pedra, mas também não era carne; era correspondente, aferrado à obrigação, rígido, e possuía cartas do pai de Gonçalves, dizendo-lhe que o filho tinha uma grande queda para gastador, e que o reprimisse. Entretanto, estava ali uma conta; era preciso pagá-la. Pagá-la era animar o moço a outras. Que fez o correspondente? Mandou dizer ao rapaz que não tinha dúvida em saldar a dívida, mas que ia primeiro escrever ao pai, e pedir-lhe ordens; dir-lhe-ia na mesma ocasião que pagara outras dívidas miúdas e dispensáveis. Tudo isso em duas ou três linhas embaixo da conta, que devolveu. Compreende-se o pesar do rapaz. Não só ficava a dívida em aberto, mas, o que era pior, ia notícia dela ao pai. Se fosse outra cousa, vá; mas um sobretudo de peles, luxuoso e desnecessário, uma cousa que realmente ele achou depois que era um trambo-

lho, pesado, enorme e quente... Gonçalves dava ao diabo o credor, e ainda mais o correspondente. Que necessidade era essa de ir contá-lo ao pai? E que carta que o pai havia de escrever! que carta! Gonçalves estava a lê-la de antemão. Já não era a primeira: a última ameaçava-o com a miséria. Depois de dizer o diabo do correspondente, de fazer e desfazer mil planos, Gonçalves assentou no que lhe pareceu melhor, que era ir à casa dele, na Rua do Hospício, descompô-lo, armado de bengala, e dar-lhe com ela, se ele replicasse alguma cousa. Era sumário, enérgico, um tanto fácil, e, segundo lhe dizia o coração, útil aos séculos. – Deixa estar, patife! quebro-te a cara. E, trêmulo, agitado, vestiu-se às carreiras, chegando ao extremo de não pôr a gravata; mas lembrou-se dela na escada, voltou ao quarto, e atou-a ao pescoço. Brandiu no ar a bengala para ver se estava boa; estava. Parece que deu três ou quatro pancadas nas cadeiras e no chão, – o que lhe mereceu não sei que palavra de um vizinho irritadiço. Afinal saiu. – Não, patife! não me pregas outra. Eram os vinte anos que irrompiam cálidos, férvidos, incapazes de engolir a afronta e dissimular. Gonçalves foi por ali fora, Rua do Passeio, Rua da Ajuda, Rua dos Ourives, até à Rua do Ouvidor. Depois lembrou-se que a casa do correspondente, na Rua do Hospício, ficava entre as de Uruguaiana e dos Andradas; subiu, pois, a do Ouvidor para ir tomar a primeira destas. Não via ninguém, nem as moças bonitas que passavam, nem os sujeitos que lhe diziam adeus com a mão. Ia andando à maneira de touro. Antes de chegar à Rua de Uruguaiana, alguém chamou por ele. – Gonçalves! Gonçalves! Não ouviu e foi andando. A voz era de dentro de um café. O dono dela veio à porta, chamou outra vez, depois saiu à rua, e pegou-o pelo ombro. – Onde vais? – Já volto... – Vem cá primeiro. E tomando-lhe o braço, voltou para o café, onde estavam mais três rapazes a uma mesa. Eram colegas dele, – todos da mesma idade. Perguntaram-lhe onde ia; Gonçalves respondeu que ia castigar um pelintra, donde os quatro colegas concluí­ ram que não se tratava de nenhum crime público, inconfidência ou sacrilégio, – mas de algum credor ou rival. Um deles chegou mesmo a dizer que deixasse o Brito em paz. – Que Brito? perguntou o Gonçalves.

– Que Brito? O preferido, o tal, o dos bigodes, não te lembras? Não te lembras mais da Chiquinha Coelho? Gonçalves deu de ombros, e pediu uma xícara de café. Tratava-se nem da Chiquinha Coelho nem do Brito! Há cousa muito séria. Veio o café, fez um cigarro, enquanto um dos colegas confessava que a tal Chiquinha era a pequena mais bonita que tinha visto desde que chegara. Gonçalves não disse nada; entrou a fumar e a beber o café, aos goles, curtos e demorados. Tinha os olhos na rua; no meio da conversa dos outros, declarou que efetivamente a pequena era bonita, mas não era a mais bonita; e citou outras, cinco ou seis. Uns concordaram em absoluto, outros em parte, alguns discordaram inteiramente. Nenhuma das moças citadas valia a Chiquinha Coelho. Debate longo, análise das belezas. – Mais café, disse Gonçalves. – Não quer cognac? – Traga... não... está bom, traga. Vieram ambas as cousas. Uma das belezas citadas passou justamente na rua, de braço com o pai, deputado. Daqui um prolongamento de debate, com desvio para a política. O pai estava prestes a ser ministro. – E o Gonçalves genro do ministro! – Deixa de graças, redarguiu rindo o Gonçalves. – Que tinha? – Não gosto de graças. Eu genro? Demais, vocês sabem as minhas opiniões políticas; há um abismo entre nós. Sou radical... – Sim, mas os radicais também se casam, observou um. – Com as radicais, emendou outro. – Justo. Com as radicais... – Mas você não sabe se ela é radical. – Ora bolas, o café está frio! exclamou Gonçalves. Olhe lá; outro café. Tens um cigarro? Mas então parece a vocês que eu chegue a ser genro do ***. Ora que caçoada! Vocês nunca leram Aristóteles? – Não. – Nem eu. – Deve ser um bom autor. – Excelente, insistiu Gonçalves. Ó Lamego, tu lembras-te daquele sujeito que uma vez quis ir ao baile de máscaras, e nós lhe pusemos um chapéu, dizendo que era de Aristóteles? E contou a anedota, que na verdade era alegre e estúrdia; todos riram, começando por ele, que dava umas gargalhadas sacudidas e longas, muito longas. Veio o café, que era quente, mas pouco; pediu terceira xícara, e outro cigarro. Um dos colegas contou então um caso análogo, e, como falasse


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CONTO

de passagem em Wagner, conversaram da revolução que o Wagner estava fazendo na Europa. Daí passaram naturalmente à ciên­ cia moderna; veio Darwin, veio Spencer, veio Büchner, veio Moleschott, veio tudo. Nota séria, nota graciosa, uma grave, outra aguda, e café, cigarro, troça, alegria geral, até que um relógio os surpreendeu batendo cinco horas. – Cinco horas! exclamaram dois ou três. – No meu estômago são sete, ponderou um dos outros. – Onde jantam vocês? Resolveram fazer uma revista de fundos e ir jantar juntos. Reuniram seis mil-réis; foram a um hotel modesto, e comeram bem,

sem perder de vista as adições e o total. Eram seis e meia, quando saíram. Caía a tarde, uma linda tarde de verão. Foram até o Largo de S. Francisco. De caminho, viram passar na Rua do Ouvidor algumas moças retardatárias; viram outras no ponto dos bonds de S. Cristóvão. Uma delas desafiou mesmo a curiosidade dos rapazes. Era alta e fina, recentemente viúva. Gonçalves achou que era muito parecida com a Chiquinha Coelho; os outros divergiram. Parecida ou não, Gonçalves ficou entusiasmado. Propôs irem todos no bond em que ela fosse; os outros ouviram rindo. Nisto a noite foi chegando; eles tornaram à Rua do Ouvidor. Às sete e meia cami-

nharam para um teatro, não para ver o espetáculo (tinham apenas cigarros e níqueis no bolso), mas para ver entrar as senhoras. Uma hora depois vamos achá-los, no Rocio, discutindo uma questão de física. Depois recitaram versos, deles e de outros. Vieram anedotas, trocadilhos, pachuchadas; muita alegria em todos, mas principalmente no Gonçalves que era o mais expansivo e ruidoso, alegre como quem não deve nada. Às nove horas tornou este à Rua do Ouvidor, e, não tendo charutos, comprou uma caixa por vinte e dois mil-réis, fiado. Vinte anos! Vinte anos! Extraído de: Outros contos.

ARTIGO

Camões e os descobrimentos Vasco Graça Moura

T

udo o que se sabe ao certo da vida de Luís de Camões pode ser dito em poucas linhas: ignora-se o ano e o lugar em que nasceu (provavelmente Lisboa, 1525), ignora-se que estudos fez e onde (talvez em Coimbra), praticamente desconhece-se quase tudo sobre a sua vida até partir para o Oriente, onde passou 17 anos, e pouco mais sabemos sobre a sua estada naquelas paragens. Há todavia fatos biográficos que, aqui e ali, podem deduzir-se dos seus textos. Pode-se supor, por exemplo, que teve uma vida amorosa agitada. Talvez por causa dessa vida, na juventude terá sido desterrado da corte, e tem-se como certo que serviu como militar no norte da África, em Ceuta, aí por 1547/48, onde perdeu o olho direito. Em 1552, passou vários meses na prisão, em Lisboa, depois de se ter envolvido numa desordem, tendo sido libertado para embarcar para a Índia, na primavera de 1553, a fim de prestar três anos de serviço, como era de regra. Na Índia participou de expedições militares. Depois, em data imprecisa, entre 1556 e 1558, Camões partiu para o Extremo Oriente, talvez provido nas funções de provedor “menor” dos bens dos defuntos, isto é, como funcionário incumbido de zelar pelos bens dos que morressem durante a viagem. Na ida ou na vinda, também não se sabe ao certo, naufragou na foz do rio Mekong, no Camboja, conseguindo salvar o manuscrito das suas obras. De volta a Goa, talvez tenha sido preso novamente. Entre 1567-69 encontrava-se na ilha de Moçambique, tendo regressado a Portugal em 1570, reduzido à miséria mais extrema, mas já com o texto da sua epopeia praticamente pronto para edição.

Em Lisboa, publicou Os Lusíadas em 1572 e dois breves poemas em 1576. Ainda na primeira daquelas datas, o rei concedeu-lhe uma pequena tença ou pensão, cujo pagamento em atraso Camões veio a reclamar mais tarde.

Dos poucos retratos verdadeiramente fidedignos de Camões, este é, sem dúvida, o mais autêntico, já que se trata da cópia de um – cujo original se perdeu – realizado por um contemporâneo do poeta, o pintor Fernão Gomes.

Mas não se sabe mais nada da sua biografia tardia em Portugal, a partir de 1570. Parece que foi alvo de vários epigramas de autores bem-aceitos na corte, o que pode significar que era invejado, quer pela grandeza de sua obra, quer pelo fato de se beneficiar da tença. E é de crer que tenha entrado numa fase acentuadamente mística e “penitencial”, se são posteriores a Os Lusíadas, como suponho, as magníficas redondilhas “Sobre os rios que vão”, glosa do salmo 137. Em 1574 foi publicado um bre-

ve mas entusiástico juízo crítico das suas obras: “vede as obras de nosso famoso poeta Luís de Camões, de cuja fama o Tempo nunca triunfará”, escrevia então Pero de Magalhães Gândavo. Também se ignora a data exata da sua morte, entre 1579 e 1580, e a localização exata da sua campa na Igreja de Santa Ana, mais tarde destruída pelo terremoto de 1755. Não se conhecem quaisquer manuscritos do seu punho, e nem mesmo os retratos que dele foram feitos escapam à discussão. Depois, e para falar só do século XVI, temos ainda as duas traduções de Os Lusíadas em castelhano (1580), a recolha dos seus textos inéditos, a edição sucessiva da poesia lírica (1595 e 1598), as novas edições da epopeia (1584, esta com gravíssimas mutilações, e 1597). Datará dessa altura o início da fascinação de decifrar todos os enigmas que rodeiam a sua vida e a sua obra (...), e tudo o mais que está na origem de um processo complicado, que dura até os nossos dias. Camões viveu a fase terminal da expansão portuguesa e depois a da decadência e do desmoronamento político do seu país. A sua morte, um ou dois anos depois da derrota de Alcácer Quibir, coincide praticamente com a perda da independência portuguesa em favor da Espanha, situação que iria durar até 1640. Mas, ao mesmo tempo, Camões viveu um período intelectual singular da história sociocultural, econômica e política de Portugal, da Europa e do Mundo. Os valores do humanismo clássico do Renascimento, então espalhados pela Europa a partir da Itália de fins do século XV, misturavam-se aos ecos da doutrinação


ARTIGO erasmista e aos debates e conflitos de todo o gênero provocados pela Reforma e pela crescente consolidação teórica e prática do poder central. As descobertas geográficas, com toda a nova gama de informações e conhecimentos sobre a extensão do mundo e a sua imagem real, o encontro de muitos outros povos do globo, a profusão e variedade de culturas e de civilizações assim postas em contato, os produtos cobiçados e as riquezas novas que todos os dias aportavam à Europa, a abertura do universo e o seu desvendamento progressivo e a circulação crescente da informação impressa combinavam-se com uma inquietação cada vez mais angustiada, traduzida na arte pela passagem do classicismo ao maneirismo, na política por formas cada vez mais autoritárias de governo, na vida civil e intelectual pela censura, a repressão inquisitorial, a dissimulação do pensamento heterodoxo, o medo, e também a rápida transformação dos costumes, das mentalidades e das estruturas sociais, a cupidez, a descoberta de novas perspectivas de lucro fácil, a alteração dos padrões de consumo, o despovoamento das regiões do interior, devido à atração exercida pela vida mercantil da capital e do ultramar, etc. Quanto à ciência, começava a preocupar-se com os aspectos quantitativos e mensuráveis do mundo, bem como com a crítica dos dados imediatos da aparência ou da experiência, ao mesmo tempo que era sublinhada a importância dessa mesma experiência e das noções que ela permitia adquirir para mostrar até que ponto eram errôneas as doutrinas do saber antigo.

O umbral de uma nova era Com as navegações, os homens acabavam de adquirir novas dimensões, muitas vezes contraditórias, para o pensamento, e novos horizontes, muitas vezes alucinantes, para suas andanças, o que tornava possível a mistura de vontade e audácia, especulação e riqueza, viagem e perigo, livre-arbítrio e fatalismo. Tudo isso os levava a viver dramaticamente uma época em que os mais esclarecidos viam a aventura portuguesa como uma forma de expansão europeia sob o denominador comum que lhes era possível conceber: a propagação da fé cristã, mesmo que, como Camões, se vissem forçados a criticar a fragmentação e as dissensões dos cristãos e a reivindicar para Portugal o papel de agente privilegiado da propaganda católica fora da Europa. Camões foi seguramente o poeta de um sistema de valores que eram os da cultura e da civilização europeias do seu tempo. A ideologia dominante, consciente do alcance universal das descobertas portu-

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Frontispício e primeira página da edição princeps de Os Lusíadas, publicada em Lisboa em 1572 e conservada na Biblioteca Nacional de Lisboa.

guesas e comparando-as às narrativas fabulosas dos feitos heroicos da Antiguidade Clássica, concluía pela superioridade das expedições modernas e aspirava a vê-las cantadas sob o modelo clássico da epopeia. A viagem de Bartolomeu Dias (passagem do Cabo da Boa Esperança, em 1488), quatro anos antes de Colombo e muito mais longa do que a jornada deste, abriu novas perspectivas para a revolução da noção de espaço planetário, podendo por isso ser justamente considerada o limiar de uma nova era. Dez anos depois, a viagem de Vasco da Gama (1497/98) foi a que mais radicalmente contribuiu para a transformação da civilização europeia e da História do Mundo. E houve ainda, ao longo de décadas, muitas outras viagens portuguesas da maior importância. Mas faltava a dimensão da glorificação pela criação artística relativamente aos feitos de que provinha tão grande transformação.

coragem e de audácia, e tudo o que pode deitá-lo a perder se se torna o joguete das forças obscuras da natureza, da fortuna ou do destino:

Um poeta de seu tempo

“Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho

Foi sobre este pano de fundo que Camões viveu e escreveu a sua obra épica e lírica. Nele coexiste muita coisa: tradição e inovação, platonismo e aristotelismo, saber letrado e experiência vivida, mitologia e cristianismo, piedade e ferocidade, nostalgia feudal e noção de Estado moderno, sentido da ordem e da desordem, alegria e angústia, renascimento e maneirismo. Em Camões se assiste ao movimento contraditório entre uma concepção do Homem como “um bicho da terra tão pequeno” e a grandeza das suas realizações à escala do Universo, entre o microcosmo frágil que pode vencer os obstáculos, se ajudado pelo céu ou pelas suas qualidades de

“No mar tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte apercebida! Na terra tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade avorrecida! Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida, Que não se arme e se indigne o Céu [sereno Contra um bicho da terra tão pequeno?” (Os Lusíadas, I, 106.)

Mas essa tensão contraditória funciona também entre as coordenadas do seu orgulho nacional e a crítica áspera e dura dos aspectos negativos da própria realidade humana que ele cantava: Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o [engenho Não no dá pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e da rudeza Dua austera, apagada e vil tristeza.” (Os Lusíadas, X, 145.)

Na estrutura complexa de Os Lusíadas, essas concepções vão-se reiterando, ao longo de um texto cujo encadeamento simbólico de planos é uma obra singular e inovadora de “engenharia” literária.


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ARTIGO

Dir-se-á, pois, que a questão mais geral a respeito de Camões e dos descobrimentos decorre da relação que ele soube estabelecer entre a tradição da cultura clássica greco-latina, as formas literárias importadas da Itália, a renovação da língua literária e os acontecimentos históricos do seu tempo, muito em especial a informação acumulada sobre as navegações.

Retrato do navegador Vasco da Gama, herói do épico de Camões.

A consequência é uma nova e diferente utilização do gênero épico, de modo a solidarizar espaço conhecido e espaço mítico, tempo real ou contemporâneo e o tempo fabuloso ou absoluto, acontecimentos verdadeiros e um destino cósmico, em “contaminação” recíproca. O próprio herói, que na grande tradição da epopeia clássica personifica todo um povo, é, n’Os Lusíadas, menos Vasco da Gama do que uma multiplicidade de personagens, “o peito ilustre lusitano / a que Netuno e Marte obedeceram”, às quais vêm-se ligar sequências de acontecimentos, fatos e ações individuais e coletivos, tornados solidários ao longo do eixo da história de Portugal. Pode dizer-se que Camões viveu literária e literalmente a revolução planetária do seu tempo com olhos clássicos, o que, entre outras coisas, o levou a misturar o maravilhoso pagão com os dados da fé cristã e mesmo – suntuosa audácia! – a transferir as molas reais da intriga para o plano em que agem os deuses pagãos, encarnação dos grandes princípios das forças naturais, de que umas são favoráveis e outras nefastas à empresa dos portugueses. Mas, ao mesmo tempo, Camões viveu essa revolução planetária com olhos modernos, que lhe permitiram “desequilibrar” os modelos preexistentes para inaugurar um novo equilíbrio entre o que o seu

gênio podia ainda extrair deles e o que o seu tempo o obrigava a introduzir e a tratar de modo concreto e sem precedentes. Tratava-se de contrapor a verdade estrita da história recente ao caráter lendário das epopeias antigas e, assim, afirmar o papel de Portugal no desvendamento do globo (“e se mais mundo houvera lá chegara”), a pretexto da narração do mais importante desses feitos. É certo que ele viu essa revolução planetária à luz de uma concepção ainda geocêntrica da estrutura do universo, o que de resto lhe tornou possível construir um dos episódios mais comoventes de todo o poema, aquele em que os nautas de Vasco da Gama são acolhidos na ilha dos Amores pela deusa Tétis e em que é dado a Gama contemplar a “máquina do mundo” e conhecer o futuro, numa visão cosmogônica que constitui o clímax da apoteose magnífica do amor e da glória como prêmios reservados aos heróis: “Vês aqui a grande máquina do Mundo, Etérea e elemental, que fabricada Assi foi do Saber, alto e profundo, Que é sem princípio e meta limitada. Quem cerca em derredor este rotundo Globo e sua superfície tão limitada, É Deus: mas o que é Deus, ninguém o [entende, Que a tanto o engenho humano não se [estende.” (Os Lusíadas, X, 80.)

E, porque cantava coisas verdadeiras em vez de “vãs façanhas / fantásticas, fingidas, mentirosas”, o poeta deu a maior importância às narrativas históricas e a outros testemunhos autênticos, quer sobre a viagem de Vasco da Gama ou pormenores respeitantes à navegação, às técnicas, ao calendário, ao regime dos ventos, aos climas, aos fenômenos naturais, às populações encontradas e seus costumes, quer sobre outros aspectos da História de Portugal. Assim, e para além do seu imenso valor literário e estético, Os Lusíadas constituem uma espécie de enciclopédia ou suma de grande parte dos conhecimentos, livrescos ou práticos, do tempo do autor: históricos e geográficos, antropológicos, técnicos e científicos (da fauna e da flora, até a astronomia), sobretudo de quanto as navegações e as descobertas tornaram evidente. Mesmo quanto aos fenômenos naturais, tais como a tromba-d’água e o fogo de Santelmo, pode supor-se que os menciona porque eles figuram no roteiro de D. João de Castro. Assim, pode-se dizer que a descrição das populações encontradas, as paisagens, a geografia, o lado exótico da África e do Oriente, os incidentes da viagem de Vasco da Gama são quase sempre aludidos quan-

do existe um texto de base, crônica ou diário de viagem, numa vontade de rigor combinada com as transposições mitológicas de que já falei. Camões, cantor dos descobrimentos e da epopeia do homem moderno, não esqueceu as duas molas principais da expansão marítima: a da propagação da fé, o que não deve apenas se ler como ideal de cruzada determinado pela ameaça otomana às portas orientais da Europa, mas também como princípio de difusão de uma cultura própria, do nosso continente; a do comércio organizado à escala mundial e para proveito de todos os povos. Camões soube ser um poeta europeu, quer pelo sentido temporal da revalorização, utilização e criação a partir do patrimônio transecular da cultura ao seu alcance (e essa era toda a cultura europeia ocidental acumulada), quer pelo sentido espacial, geopolítico e econômico, se quisermos, de diferenciação da Europa como área de solidariedades e interesses específicos. É por isso que ele concebe a viagem de Vasco da Gama sob esse duplo ângulo: não apenas como uma jornada ad majorem Dei gloriam, mas ainda como uma expedição ou empresa comercial, em cujo seguimento são propostas trocas comerciais pacíficas pelo navegador ao soberano de Calicute, para proveito comum do rei de Portugal e daquele: “E se queres, com pactos e lianças De paz e de amizade, sacra e nua, Comércio consentir das abundanças Das fazendas da terra sua e tua, Por que cresçam as rendas e abastanças (Por quem a gente mais trabalha e sua) De vossos Reinos, será certamente De ti proveito, e dele glória ingente.” (Os Lusíadas, VII, 62.)

Aqui se encontra bem expressa a ideia de comércio e de trocas comerciais entre povos distantes, como fonte de riqueza, abastança, proveito e glória. E também nisto Camões é de uma extrema modernidade de concepção, ao exaltar a capacidade e dignidade do enriquecimento mercantil assente num princípio de reciprocidade (sem no entanto perder de vista a tentativa do enquadramento ético dessa atividade). Vasco da Gama é alguém que executa, com firmeza e disciplina, as instruções recebidas do seu rei, fadado para depois se tornar um dos maiores mercadores do mundo, quando ficou definitivamente aberta essa era de grandes circuitos de troca. Camões fez portanto todo o percurso: durante 17 anos viveu as peripécias de uma viagem à Índia, fez a guerra, foi ao Extremo Oriente, conheceu o exílio, as dificuldades, os perigos, as desgraças, o sofrimento, o


ARTIGO desespero, enfim, ele próprio viveu e exprimiu o preço humano e material dos descobrimentos. É por isso que, se procuramos n’Os Lusíadas vestígios da sua experiência pessoal, facilmente os encontramos em alguns planos principais: ora ele torna evidente o modelo humano de quem maneja com idêntica destreza a espada e a pena, enquanto faz amargas lamentações, mais ou menos moralizadoras, sobre o esquecimento ou a injustiça de que se sente vítima; ora evoca o naufrágio que sofreu; ora alude

aos seus dramas amorosos personificados na figura patética do gigante Adamastor e na perseguição das ninfas pelo soldado Leonardo Ribeiro, na ilha dos Amores; ora, enfim, afirma a consciência do seu gênio, das suas aptidões e da sua disponibilidade para continuar a cantar as glórias presentes e futuras da sua pátria. Toda a obra de Camões (centenas de poemas líricos de todos os gêneros, cartas e algumas peças de teatro) põe em evidência as contradições do seu ser, dilacerado entre a nostalgia de uma harmonia supre-

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ma e um sentido muito agudo do absurdo e do desconcerto do mundo, entre uma afirmação dos valores da liberdade humana e do livre-arbítrio e a consciência revoltada de não passar de um joguete nas mãos do destino, entre a permanência inelutável da desventura e a fugacidade efêmera da vida e da felicidade humanas, desembocando na oposição “mal presente / bem passado” que inspirou alguns dos acentos mais dramáticos e pungentes de uma obra que é um dos cumes mais altos da criação cultural da humanidade.

Lisboa no século XVI. Ilustração de Civitates Orbis Terrarum (1577, As cidades do mundo), publicada por Georgio Brannius e Franz Hagenberg.

Nota sobre o autor Vasco Graça Moura, escritor português, dedicou numerosos estudos a Luís de Camões, dos quais destaca-se Os penhascos e a serpente e outros ensaios camonianos (Lisboa, 1987). Em 1992 foi nomeado comissário de Portugal para a Exposição de Sevilha e comissário-geral para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses.

(ENTRE PARÊNTESIS)

Cesto de pães Um garoto saiu à rua com um cesto de pães para vender. Na primeira casa a freguesa lhe pediu: – Quero a metade do que você tem aí mais meio pão. Na segunda casa a freguesa também lhe pediu:

– Quero a metade do que você tem aí mais meio pão. Na terceira casa a freguesa, para variar, lhe pediu: – Quero a metade do que você tem aí mais meio pão. Com isso os pães acabaram. Pergunta-se: quantos pães havia no cesto?

RESPOSTA x−3 pães no cesto. 4

x−1 f Depois da 2a freguesa, o garoto ficou com − 2

x 1 x−1 pães. Depois da 1a freguesa, o garoto ficou com x − d + n pães, isto é, com 2 2 2 x−1 2 + 1 p pães, isto é, com 2 2 Seja x o número de pães que havia no cesto.

O que implica x = 7. Mas então os pães se acabaram. Logo

x−7 = 0. 8

pães. Depois da 3a freguesa, o garoto ficou com

x−3 f − 4

x−3 4 + 1 p pães, isto é, com x − 7 2 2 8


POIS É, POESIA

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Gregório de Matos Guerra (1633-1696) A uma saudade

E

m o horror desta muda soledade, Onde voando os ares a porfia, Apenas solta a luz a aurora fria, Quando a prende da noite a escuridade. Ah cruel apreensão de uma saudade! De uma falsa esperança fantasia, Que faz que de um momento passe a um dia, E que de um dia passe à eternidade! São da dor os espaços sem medida, E a medida das horas tão pequena, Que não sei como a dor é tão crescida. Mas é troca cruel, que o fado ordena; Porque a pena me cresça para a vida, Quando a vida me falta para a pena.

Pergunta-se neste problema qual é maior, se o bem perdido na posse, ou o que se perde antes de se lograr? Defende o bem já possuído

Q uem perde o bem, que teve possuído,

Rompe o poeta com a primeira impaciência querendo declarar-se e temendo perder por ousado

A uma dama dormindo junto a uma fonte

A njo no nome, Angélica na cara!

Lira doce dos pássaros cantores A bela ocasião das minhas dores Dormindo estava ao despertar do dia.

Isso é ser flor, e Anjo juntamente: Ser Angélica flor, e Anjo florente, Em quem, senão em vós, se uniformara: Quem vira uma tal flor, que a não cortara, De verde pé, da rama florescente; E quem um Anjo vira tão luzente, Que por seu Deus o não idolatrara? Se pois como Anjo sois dos meus altares, Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda, Livrara eu de diabólicos azares. Mas vejo, que por bela, e por galharda, Posto que os Anjos nunca dão pesares, Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

A um penhasco vertendo água

C omo exalas, penhasco, o licor puro,

À margem de uma fonte, que corria,

Mas como dorme Sílvia, não vestia O céu seus horizontes de mil cores; Dominava o silêncio entre as flores, Calava o mar, e rio não se ouvia. Não dão o parabém à nova Aurora Flores canoras, pássaros fragrantes, Nem seu âmbar respira a rica Flora. Porém abrindo Sílvia os dois diamantes, Tudo a Sílvia festeja, tudo adora Aves cheirosas, flores ressonantes.

Defende-se o bem que se perdeu na esperança pelos mesmos consoantes

O

Lacrimante a floresta lisonjeando? Se choras por ser duro, isso é ser brando, Se choras por ser brando, isso é ser duro.

bem que não chegou ser possuído Perdido causa tanto sentimento, Que faltando-lhe a causa do tormento Faz ser maior tormento o padecido.

Quem perde o bem logrado, tem perdido O discurso, a razão, o entendimento, Porque caber não pode em pensamento A esperança de ser restituído.

Eu, que o rigor lisonjear procuro, No mal me rio, dura penha, amando; Tu, penha, sentimentos ostentando, Que enterneces a selva, te asseguro.

Sentir o bem logrado, e já perdido, Mágoa será do próprio entendimento; Porém o bem, que perde um pensamento Não o deixa outro bem restituído.

Quando fosse a esperança alento à vida, Té nas faltas do bem seria engano O presumir melhoras desta sorte.

Se a desmentir afetos me desvio, Prantos, que o peito banham, corroboro, De teu brotado humor, regato frio.

Se o logro satisfaz a mesma vida E depois de logrado fica engano A falta, que o bem faz em qualquer sorte

Porque, onde falta o bem é homicida A memória, que atalha o próprio dano, O refúgio, que priva a mesma morte.

Chora festivo já, cristal sonoro; Que quanto choras se converte em rio, E quanto eu rio, se converte em choro.

Infalível será ser homicida; O bem, que sem ser mal motiva o dano, O mal, que sem ser bem apressa a morte.

A morte não dilate ao sentimento, Que esta dor, esta mágoa, este tormento Não pode ter tormento parecido.

Extraído de: “Poesia lírico-amorosa”. In: Poemas escolhidos, Ed. Cultrix, 1976.

Nota sobre o autor Gregório de Matos Guerra nasceu em Salvador, Bahia, e morreu no Recife, um ano depois de haver voltado do exílio em Angola. Estudou no Colégio dos Jesuítas e mais tarde em Coimbra, onde se formou. Na permanência entre Brasil e Portugal, Gregório de Matos começa a ser notado como poeta satírico e boêmio. Sua sátira, em versos cortantes, atinge grandes e pequenos, e acaba sendo perseguido e destituído de suas funções de vigário-geral e tesoureiro-mor, nomeações que havia conseguido por meio de D. Gaspar Barata. Sua fama, inicialmente, foi de caráter local, com a obra inédita ou espalhada por inúmeras publicações, inclusive alguns poemas sem assinatura. O poeta foi sepultado no Hospício de Nossa Senhora da Penha dos Capuchinhos. Obra: Seis volumes, editados por Afrânio Peixoto para a Academia Brasileira de Letras (1923-1933); Obras completas de Gregório de Matos, em sete volumes, pesquisa e organização de James Amado e Maria da Conceição Paranhos (1969).

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