Jornal do Vestibulando - 1534

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Jornal do Vestibulando

ENSINO, INFORMAÇÃO E CULTURA

JORNAL ETAPA – 2017 • DE 29/06 A 12/07

CURSO – ADMINISTRAÇÃO/USP

“Se estudar, você passa. É cansativo, é trabalhoso, é desgastante, mas não é difícil.” Luis Henrique Passos de Queiroz foi aprovado duas vezes na FEA-USP. Para Administração, com a nota do Enem, e para Economia, pela Fuvest. Optou por Administração. Aqui ele conta como se preparou arduamente no cursinho para conseguir realizar o sonho que sempre teve de estudar na USP. Luis Henrique Passos de Queiroz Em 2016: Etapa Em 2017: Administração – USP

JV – Como foi a escolha da carreira?

Como você conheceu o Etapa?

Luis – Sempre pensei em fazer Economia. Desde criança. Eu tinha nove anos, até menos, e quando ia ao shopping já comprava e vendia dólares em uma casa de câmbio. Via que estava baixo, comprava e depois vendia na própria casa de câmbio. Não ganhava muito, mas era uma experiência divertida. Para mim aquilo era Economia. Durante o Ensino Médio e o ano inteiro no cursinho eu estudei pensando em fazer Economia.

Na Etec, já no meu 1o ano, eu prestei o Enem. Do 2o ao 4o ano prestei Fuvest e sempre vim fazer os simulados do Etapa.

Mas acabou preferindo fazer Administração. Por quê? Eu fiz o Ensino Médio na Etec Parque da Juventude, em Santana, junto com o curso técnico em Administração. Achava que não valeria fazer uma faculdade porque eu já tinha algum conhecimento do técnico. Mas quando comparei a grade curricular de Administração com a do curso técnico vi que não tinham nada a ver. E aí resolvi optar por Administração.

Além da Fuvest e da seleção pelo Enem, você prestou para outras faculdades? Não, meu foco sempre foi entrar na USP. Se não entrasse, iria tentar de novo.

Você se formou no Ensino Médio e no técnico em Administração em que ano? Em 2015.

Você fez o cursinho só ano passado? Sim.

CONTO

No moinho – Eça de Queirós

Eu estava superconfiante, tinha aquele gás para conseguir o sonho de fazer USP. Eu estava muito focado. Se você tem um objetivo claro, fica mais fácil atingi-lo. Falava: “Vou pegar as matérias, vou resolver todos os exercícios”.

Como você estudava? Pegava a matéria do dia? Eu fui diversificando durante o ano, de acordo com a necessidade. Comecei estudando de maneira mais lenta, lia as matérias, principalmente as de Humanas, fazia anotações em um caderno e depois ia para os exercícios. Mas aí você percebe uma leve queda, seu ritmo diminui, você não consegue fazer todos os exercícios. Começou a acumular matéria e passei a não ler mais toda a apostila, só grifava. O caderno ficou bem um resumo mesmo, não era mais tão detalhado. Depois comecei a ir direto para os exercícios.

Como era sua participação nas aulas? Eu prestava muita atenção nas aulas para conseguir pegar o máximo possível. Se tinha alguma dúvida, olhava as anotações daquela aula no caderno. Montei uma planilha das aulas que já tinha revisto nas minhas anotações. O caderno eu lia toda hora. No primeiro caderno eu

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A era das explorações Aroma e sabor do café dependem de diferentes compostos químicos

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ENTRE PARÊNTESIS

More money

Em quais matérias você tinha mais dificuldade? Matemática. Gosto da matéria, entendia a matéria, mas Matemática é treino. Consegui passar porque estudei muito as outras matérias. Não sei quantas questões de Matemática eu errei, errei muitas, mas como gabaritei Biologia, História, então...

Você estudava no cursinho ou em casa? Em casa na maior parte do tempo. Nos últimos três meses passei a ficar aqui.

Você ia de metrô para sua casa. Aproveitava esse tempo para estudar também? Exatamente. Encontrava às vezes alunos do Etapa também lendo textos. É muito importante usar todo o tempo. Eu me matei de estudar. Cheguei a ficar cansado, um desgaste físico muito grande. Mas para mim era importante estudar sempre. Eu não descansei nas férias. Estudei durante as férias inteiras as matérias de que eu mais gostava, História e Geografia. Fiz um planejamento para não me atrasar. Deu aquela aliviada.

Como você enfrentava o desgaste natural de um esforço como o seu? O vestibular é cansativo. Até brinco, vestibular é um esporte, tem que treinar. Na equipe técnica estava minha família – eles estavam junto,

POIS É, POESIA

ARTIGO

ENTREVISTA

Luis Henrique Passos de Queiroz

Como estava sua confiança em ser aprovado ao entrar no cursinho?

escrevia tudo bonitinho. Quando passei a fazer só os exercícios, mudei para um caderno bem fininho e anotava só os pontos importantes.

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Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) SOBRE AS PALAVRAS

Entrar com o pé direito

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CURSO – ADMINISTRAÇÃO/USP

acordavam cedo, me preparavam um café. E vem as provas e depois com a prova final. São competições. Nos dias em que eu estava muito cansado dava umas pausas. Eu não estudava até tarde – só ia até umas 8 horas da noite. Parava para acordar bem no dia seguinte.

Você resolvia as dúvidas sozinho ou ia ao Plantão de Dúvidas? Durante o ano fui ao Plantão de Dúvidas ao menos uma vez na semana. Nesse dia eu tentava tirar todas as dúvidas acumuladas. E, com frequência, consultava as resoluções on-line.

Você fazia os simulados? Fiz todos os simulados.

Quais foram os seus resultados? Minhas notas começaram com C menos, de vez em quando tirava C mais. Na Redação tirei B. Tirei um D em Matemática no simulado do Enem. Quando comecei o ano as notas eram mais baixas, fui progredindo, vendo quais eram os meus erros. Acho que foi muito importante rever os simulados e as questões em que tinha dúvidas. Fui melhorando. Sempre fiquei acima da média.

Você estudava também no domingo? Normalmente, meu tempo era todo usado para os estudos. De segunda a segunda.

Na mesma intensidade ou você pegava mais leve? No domingo eu pegava mais leve. Estudava metade do dia. Mas continuava estudando até para não perder o ritmo.

Você treinava Redação? Fiz todas as redações que tinha que entregar e as de simulados. Umas duas por mês. Depois da 1a fase fiz umas oito por mês.

Por que você apertou o passo depois da 1a fase? Eu tinha medo de fazer Redação. Até achava que ia vir na hora o conhecimento: “Na hora eu escrevo”. Percebi que não é assim, Redação é treino. Eu sempre lia isso, mas não acreditava. A estrutura é fixa, só que tem o conhecimento envolvido. Eu sabia que para Redação eu ia precisar de uma base muito forte.

Você leu as obras literárias indicadas pela Fuvest como obrigatórias? Alguns livros eu li inteiros, outros li em parte. Não li alguns contos de Sagarana. As palestras, os resumos, o estudo dos livros são muito importantes. Se pudesse voltar no tempo eu leria todos, porque acho que algumas coisas me atrapalharam, principalmente na 2a fase, onde a leitura é muito forte, foram quatro questões sobre a leitura. Se você não leu algum livro, a dúvida pode ficar na sua cabeça.

Qual era seu modo de relaxar? Minha diversão era navegar na internet. Para descansar eu via séries de vez em quando. Fui ao cinema algumas vezes. Gostava muito de ver desenhos porque isso me relaxava. Vi vários filmes de História, o que também era um

bom divertimento. Como gosto muito de ler, sempre que podia lia livros do meu interesse.

Quer dizer, você realmente se dedicou aos estudos? Isso não foi um sacrifício. Quando você gosta, o estudo se torna uma coisa prazerosa. Para mim era legal fazer os exercícios, testar aquilo que estava aprendendo.

Ao longo do ano você se preocupava mais com a 1a ou com a 2a fase da Fuvest? Com a 1a fase. Acho que é a mais importante, 80% dos candidatos são eliminados na 1a fase. E a 1a fase era um desafio maior para mim, porque nos simulados com questões escritas eu conseguia ir bem. Nos últimos dias antes da Fuvest eu fiz as provas da 1a fase dos últimos 10 anos da Fuvest. E para a 2a fiz as provas dos últimos sete anos.

Quantos pontos você fez na 1a fase da Fuvest? Fiz 64, com a cota. Sem a cota, 57. O corte da FEA foi 49.

Você ficou 15 pontos acima da nota de corte. O que achou desse resultado? Era exatamente a nota que eu estava tirando nos simulados.

No primeiro dia da 2a fase, qual foi sua nota em Português e Redação? Tirei 60 na prova. Achei que Português seria muito tranquilo, mas não é assim, precisa de respostas bem elaboradas. Mas como a nota da Redação foi muito boa, compensou. Tirei 80 na Redação.

Na prova geral do segundo dia quanto você tirou? Minha nota foi 53,13.

E no terceiro dia, com as prioritárias da carreira? Tirei 56,25. Tinha História, Geografia e Matemática. Talvez Matemática tenha me prejudicado um pouco, mas consegui fazer, saí com a sensação de tranquilidade.

Qual foi sua pontuação geral, na escala de zero a 1 000? 651,6.

Pelo Sisu, você conseguiu vaga em Administração na FEA. Quais foram suas pontuações no Enem? Tirei 661,2 em Ciências da Natureza, 756,8 em Ciências Humanas, 609,1 em Linguagens, 722,6 em Matemática e 740 na Redação.

Com a nota do Enem você tentou vaga em outra faculdade além da FEA? Não. Vi que eu estava bem, que a nota daria para entrar e me inscrevi. Comecei numa posição alta, acho que era o 10o colocado. Depois foi descendo, mas ainda terminei em 27o.

São quantas vagas em Administração da FEA pelo Sisu? Trinta.

Aí você precisava escolher entre Administração e Economia. Como se deu essa decisão? Foi complicado. Queria muito passar em Economia, que era o meu sonho. Tive sete dias para escolher. Marquei a matrícula do Sisu, depois saiu a Fuvest. Tinha verificado como fazer e me falaram que se passasse na Fuvest também poderia trocar, porque a última opção é que iria valer. Fiquei pensando naquele intervalo, pesquisei, falei com vários professores e percebi que para trabalhar no mercado financeiro, que era uma coisa de meu interesse, não é preciso ser economista. O administrador pode fazer esse trabalho. Claro que em funções talvez diferentes. Conversei também com alunos da FEA e eles me disseram que o mercado de trabalho para o administrador é mais amplo. E eu me encantei com a grade curricular de Administração. Tem muitas matérias interessantes. Decidi fazer Administração.

Qual foi a sensação de ser calouro? É outro mundo. Você recebe os impressos, conversa com os veteranos, conhece as entidades. Eu me inscrevi na FEA Júnior, no cursinho da FEA e na liga do mercado financeiro, que me interessou muito. Tem muitos esportes.

Do que você gostou mais até agora na FEA? Além da possibilidade de fazer muitas atividades, gostei de conhecer pessoas. A proximidade de pessoas de outros espaços, a possibilidade que você tem de intercâmbio, de conhecer empresas, muitas coisas, é uma sensação boa. Além de ter entrado na faculdade em que sempre sonhei entrar.

Você pensa em fazer intercâmbio? Penso. Quero estudar fora. Entrei lá com essa mentalidade, quero ser um aluno muito bom, o melhor possível para conseguir o intercâmbio.

Como fica marcado o ano passado no Etapa? Como um ano de muita alegria, muito conhecimento, novas amizades, desafios. Foi um ano bem cansativo, de dedicação total, mas chegar ao fim do ano e falar: “Eu não podia ter feito mais”, é a melhor sensação.

O que mais você quer dizer para nossos alunos atuais? Descubra qual é o seu ponto fraco, o seu ponto forte, e não descuide de nenhum dos dois. Tente buscar o que você precisa, dedique-se às matérias em que tem mais dificuldade, faça as provas antigas nas últimas semanas – as questões se repetem muito. Procure resolver todas as questões que os professores passam. Quanto mais você estudar, melhor sua performance. Se estudar, você passa. É cansativo, é trabalhoso, é desgastante, mas não é difícil. O conhecimento vem naturalmente, conforme você estuda. A prova foi difícil, o estudo não.


CONTO

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No moinho Eça de Queirós

D.

Maria da Piedade era considerada em toda a vila como “uma senhora modelo”. O velho Nunes, diretor do Correio, sempre que se falava nela, dizia, acariciando com autoridade os quatro pelos da calva: – É uma santa! É o que ela é! A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria. Poucas vezes saía. O marido, mais velho que ela, era um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha; havia anos que não descia à rua; avistavam-no às vezes também à janela, murcho e trôpego, agarrado à bengala, encolhido no robe de chambre, com uma face macilenta, a barba desleixada e com um barretinho de seda enterrado melancolicamente até ao cachaço. Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. A casa, interiormente, parecia lúgubre. Andava-se em pontas dos pés, porque o senhor, na excitação nervosa que lhe davam as insônias, irritava-se com o menor rumor; havia sobre as cômodas alguma garrafada da botica, alguma malga com papas de linhaça; as mesmas flores com que ela, no seu arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas, depressa murchavam naquele ar abafado de febre, nunca renovado por causa das correntes de ar; e era uma tristeza ver sempre algum dos pequenos ou de amplastro sobre a orelha, ou a um canto do canapé, embrulhado em cobertores com uma amarelidão de hospital. Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua existência fora triste. A mãe era uma criatura desagradável e azeda; o pai, que se empenhara pelas tavernas e pelas batotas, já velho, sempre bêbedo, os dias que aparecia em casa passava-os à lareira, num silêncio sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. Todas as semanas desancava a mulher. E quando João Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação, quase com reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo telhado. Não amava o marido decerto; e mesmo na vila tinha-se lamentado que

aquele lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joãozinho Coutinho, que desde rapaz fora sempre entrevado. O Coutinho, por morte do pai, ficara rico; e ela, acostumada por fim àquele marido rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a alcova, ter-se-ia resignado, na sua natureza de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos. Mas aquela família que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências hesitantes, que depois pareciam apodrecer-lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam-na. Às vezes, só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela face: uma fadiga da vida invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a alma. Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos choramingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranquila, com alguma palavra consoladora, compondo a almofada a um, indo animar o outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e bem acarinhado. Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada a interessava na Terra senão as horas dos remédios e o sono dos seus doentes. Todo o esforço lhe era fácil quando era para os contentar: apesar de fraca, passeava horas trazendo ao colo o pequerrucho, que era o mais impertinente, com as feridas que faziam dos seus pobres beicinhos uma crosta escura: durante as insônias do marido não dormia também, sentada ao pé da cama, conversando, lendo-lhe as Vidas dos Santos, porque o pobre entrevado ia caindo em devoção. De manhã estava um pouco mais pálida, mas toda correta no seu vestido preto, fresca, com os bandós bem lustrosos, fazendo-se bonita para ir dar as sopas de leite aos pequerruchos. A sua única distração era à tarde sentar-se à janela com a sua costura, e a pequenada em roda aninhada no chão, brincando tristemente. A mesma paisagem que ela via da janela era tão monótona como a sua vida: embaixo a estrada, depois uma ondulação de campos, uma terra magra plantada aqui e além de oliveiras e, erguendo-se ao fundo, uma colina triste e nua, sem uma casa, uma árvore, um fumo de casal que pusesse naquela solidão de terreno pobre uma nota humana e viva. Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata: todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser ao domingo, com o pequerru­cho mais velho pela mão, todo pálido no seu vestido de veludo azul. Com efeito, a sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas. A sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir pelas preocupações do Céu; naquele dever de boa mãe,

cumprido com amor, encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava adorar santos ou enternecer-se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, todo o tempo gasto em se arrastar pelo confessionário ou aos pés do oratório, seria uma diminuição cruel no seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos: e aquele pobre marido pregado numa cama, todo dependente dela, tendo-a só a ela, parecia-lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa cruz, tendo para o amimar toda uma humanidade pronta. Além disso nunca tivera estas sentimentalidades de alma triste que levam à devoção. O seu longo hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser ela o centro, a força, o amparo daqueles inválidos tornara-a terna, mas prática: e assim era ela que administrava agora a casa do marido, com um bom-senso que a afeição dirigia, uma solicitude de mãe próvida. Tais ocupações bastavam para entreter o seu dia: o marido, de resto, detestava visitas, o aspecto de caras saudáveis, as comiserações de cerimônia; e passavam-se meses sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse outra voz estranha à família, a não ser a do Dr. Abílio – que a adorava, e que dizia dela com os olhos esgazeados: – É uma fada! É uma fada!... Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma carta de seu primo Adrião, que lhe anunciava que em duas ou três semanas ia chegar à vila. Adrião era um homem célebre, e o marido de Maria da Piedade tinha naquele parente um orgulho enfático. Assinara mesmo um jornal de Lisboa, só para ver o seu nome nas locais e na crítica. Adrião era um romancista: e o último livro, Madalena, um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, de uma análise delicada e sutil, consagrara-o como um mestre. A sua fama, que chegara até à vila, num vago de legenda, apresentava-o como uma personalidade interessante, um herói de Lisboa, amado das fidalgas, impetuoso e brilhante, destinado a uma alta situação no Estado. Mas realmente na vila era sobretudo notável por ser primo do João Coutinho. D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em confusão com a presença do hóspede extraordinário. Depois a necessidade de fazer mais toalete, de alterar a hora do jantar, de conversar com um literato, e tantos outros esforços cruéis!... E a brusca invasão daquele mundano, com as suas malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de são, na paz triste do seu hospital, dava-lhe a impressão apavorada de uma profanação. Foi por isso um alívio,


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CONTO

quase um reconhecimento, quando Adrião chegou, e muito simplesmente se instalou na antiga estalagem do Tio André, à outra extremidade da vila. João Coutinho escandalizou-se: tinha já o quarto do hóspede preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre a cômoda, e queria-o todo para si, o primo, o homem célebre, o grande autor... Adrião porém recusou: – Eu tenho os meus hábitos, vocês têm os seus... Não nos contrariemos, hem?... O que faço é vir cá jantar. De resto, não estou mal no Tio André... Vejo da janela um moinho e uma represa que são um quadrozinho delicioso... E ficamos amigos, não é verdade? Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por quem choravam mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um sujeito extremamente simples – muito menos complicado, menos espetaculoso que o filho do recebedor! Nem formoso era: e com o seu chapéu desabado sobre uma face cheia e barbuda, a quinzena de flanela caindo à larga num corpo robusto e pequeno, os seus sapatos enormes, parecia-lhe a ela um dos caçadores de aldeia que às vezes encontrava, quando de mês a mês ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava devorada, ou abominavelmente hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila, que andava além disso mal arrendada... O que ele desejava era vendê-la. Mas isso parecia-lhe a ele tão difícil como fazer a Ilíada!... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil sobre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos a dar com os proprietários da vila. Foi por isso, com grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe que a mulher era uma administradora de primeira ordem, e hábil nestas questões como um antigo rábula!... – Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo... E na questão de preço, deixa-a a ela!... – Mas que superioridade, prima! – exclamou Adrião maravilhado. – Um anjo que entende de cifras! Pela primeira vez na sua existência Maria da Piedade corou com a palavra de um homem. De resto prontificou-se logo a ser a procuradora do primo... No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de março fresco e claro, partiram a pé. Ao princípio, acanhada por aquela companhia de um leão, a pobre senhora caminhava junto dele com o ar de um pássaro assustado: apesar de ele ser tão simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos pequenos e luzidios alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava. Tinha-se-lhe prendido à orla do seu vestido um galho de silvado, e como ele se abaixara para o desprender delicadamente, o contato daquela mão branca e fina de artista na orla

da sua saia incomodou-a singularmente. Apressava o passo para chegar bem depressa à fazenda, aviar o negócio com o Teles, e voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento próprio, no ar abafado e triste do seu hospital. Mas a estrada estendia-se, branca e longa, sob o sol tépido – e a conversação de Adrião foi-a lentamente acostumando à sua presença. Ele parecia desolado daquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns bons conselhos: o que os pequenos necessitavam era ar, sol, uma outra vida que aquele abafamento de alcova... Ela também assim o julgava: mas quê!, o pobre João, sempre que se lhe falava de ir passar algum tempo à quinta, afligia-se terrivelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes horizontes: a Natureza forte fazia-o quase desmaiar; tornara-se um ser artificial, encafuado entre os cortinados da cama... Ele então lamentou-a. Decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão santamente cumprido... Mas enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo da doença... – Que hei de eu desejar mais? – disse ela. Adrião calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que ela desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, nas ambições do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela criatura virginal e séria – que falou da paisagem... – Já viu o moinho? – perguntou-lhe ela. – Tenho vontade de o ver, se mo quiser ir mostrar, prima. – Hoje é tarde. Combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que era o idílio da vila. Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e Maria da Piedade. Aquela venda, que ela discutia com uma astúcia de aldeã, punha entre eles como que um interesse comum. Ela falou-lhe já com menos reserva quando voltaram. Havia nas maneiras dele, de um respeito tocante, uma atração que a seu pesar a levava a revelar-se, a dar-lhe a sua confiança: nunca falara tanto a ninguém: a ninguém jamais deixara ver tanto da melancolia oculta que errava constantemente na sua alma. De resto as suas queixas eram sobre a mesma dor – a tristeza do seu interior, as doenças, tantos cuidados graves... E vinha-lhe por ele uma simpatia, como um indefinido desejo de o ter sempre presente, desde que ele se tornava assim depositário das suas tristezas. Adrião voltou para o seu quarto, na estalagem do André, impressionado, interessado por aquela criatura tão triste e tão doce. Ela destacava sobre o mundo de mulheres que até ali conhecera, como um perfil suave de anjo gótico entre fisionomias de mesa redonda. Tudo nele concordava deliciosamente: o ouro do cabelo, a doçura da voz, a modéstia na melancolia, a linha cas-

ta, fazendo um ser delicado e tocante, a que mesmo o seu pequenino espírito burguês, certo fundo rústico de aldeã e uma leve vulgaridade de hábitos davam um encanto: era um anjo que vivia há muito tempo numa vilota grosseira e estava por muitos lados preso às trivialidades do sítio: mas bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimentalidade... Achava absurdo e infame fazer a corte à prima... Mas involuntariamente pensava no delicioso prazer de fazer bater aquele coração que não estava deformado pelo espartilho, e de pôr enfim os seus lábios numa face onde não houvesse pós de arroz... E o que o tentava sobretudo era pensar que poderia percorrer toda a província em Portugal, sem encontrar nem aquela linha de corpo, nem aquela virgindade tocante de alma adormecida... Era uma ocasião que não voltava. O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot, sobretudo à hora do meio-dia em que eles lá foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e toda a sorte de murmúrios de água corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras, levando e espalhando no ar o frio da folhagem, da relva, por onde corriam cantando. O moinho era de um alto pitoresco, com a sua velha edificação de pedra secular, a sua roda enorme, quase podre, coberta de ervas, imóvel sobre a gelada limpidez da água escura. Adrião achou-o digno de uma cena de romance, ou, melhor, da morada de uma fada. Maria da Piedade não dizia nada, achando extraordinária aquela admiração pelo moinho abandonado do Tio Costa. Como ela vinha um pouco cansada, sentaram-se numa escada desconjuntada de pedra, que mergulhava na água da represa os últimos degraus: e ali ficaram um momento calados, no encanto daquela frescura murmurosa, ouvindo as aves piarem nas ramas. Adrião via-a de perfil, um pouco curvada, esburacando com a ponteira do guarda-sol as ervas bravas que invadiam os degraus: era deliciosa assim, tão branca, tão loura, de uma linha tão pura sobre o fundo azul do ar: o seu chapéu era de mau gosto, o seu mantelete antiquado, mas ele achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silêncio dos campos em redor isolava-os – e, insensivelmente, ele começou a falar-lhe baixo. Era ainda a mesma compaixão pela melancolia da sua existência naquela triste vila, pelo seu destino de enfermeira... Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se achar ali tão só com aquele homem tão robusto, toda receosa e achando um sabor delicioso ao seu receio... Houve um momento em que ele falou do encanto de ficar ali para sempre na vila. – Ficar aqui? Para quê? – perguntou ela, sorrindo. – Para quê? Para isto, para estar sempre ao pé de si...


CONTO Ela cobriu-se de um rubor, o guarda-solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la ofendido, e acrescentou logo rindo: – Pois não era delicioso?... Eu podia alugar este moinho, fazer-me moleiro... A prima havia de me dar a sua freguesia... Isto fê-la rir; era mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a cor do cabelo. Ele continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro, e de ir pela estrada tocando o burro, carregado de sacas de farinha. – E eu venho ajudá-lo, primo! – disse ela, animada pelo seu próprio riso, pela alegria daquele homem a seu lado. – Vem? – exclamou ele. – Juro-lhe que me faço moleiro! Que Paraíso, nós aqui ambos no moinho, ganhando alegremente a nossa vida, e ouvindo cantar estes melros! Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já arrebatá-la para o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela ideia, pintava-lhe na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura: de manhã, a pé cedo, para o trabalho; depois o jantar na relva à beira de água; e à noite as boas palestras ali sentados, à claridade das estrelas ou sob a sombra cálida dos céus negros de verão... E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os lábios, de um só beijo, profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como morta: e duas lágrimas corriam-lhe ao comprido da face. Era assim tão dolorosa e fraca, que ele soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o guarda-solinho e ficou diante dele, com o beicinho a tremer, murmurando: – É malfeito... É malfeito... Ele mesmo estava tão perturbado – que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento seguiam ambos calados para a vila. Foi só na estalagem que ele pensou: “Fui um tolo!” Mas no fundo estava contente da sua generosidade. À noite foi à casa dela: encontrou-a com o pequerrucho no colo, lavando-lhe em água de malvas as feridas que ele tinha na perna. E então pareceu-lhe odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. De resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe... A venda da fazenda estava concluída. Por isso, no dia seguinte, apareceu de tarde, a dizer-lhe adeus: partia à noitinha na diligência; encontrou-a na sala, à janela costumada, com a pequenada doente aninhada contra as suas saias... Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a cor, sem lhe arfar o peito. Mas Adrião achou-lhe a palma da mão tão fria como um mármore: e quando ele saiu, Maria da Piedade ficou voltada para a janela, escondendo a face dos pequenos, olhando abstratamente a paisagem que escurecia, com as lágrimas, quatro a quatro, caindo-lhe na costura...

Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus olhos luzidios, toda a virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado da imaginação. O que a encantava nele não era o seu talento, nem a sua celebridade em Lisboa, nem as mulheres que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago e pouco compreensível: o que a fascinava era aquela seriedade, aquele ar honesto e são, aquela robustez de vida, aquela voz tão grave e tão rica: e antevia, para além da sua existência ligada a um inválido, outras existências possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda, em que as noites se não passam a esperar as horas dos remédios... Era como uma rajada de ar impregnado de todas as forças vivas da Natureza, que atravessava, subitamente, a sua alcova abafada: e respirava-a deliciosamente... Depois, tinha ouvido aquelas conversas em que ele se mostrava tão bom, tão sério, tão delicado: e à força do seu corpo, que admirava, juntava-se agora um coração terno, de uma ternura varonil e forte, para a cativar... Este amor latente invadiu-a, apoderou-se dela uma noite que lhe apareceu esta ideia, esta visão: “Se ele fosse meu marido!” Toda ela estremeceu, apertou desesperadamente os braços contra o peito, como confundindo-se com a sua imagem evocada, prendendo-se a ela, refugiando-se na sua força... Depois ele deu-lhe aquele beijo no moinho. E partira! Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo de repente em volta dela – a doença do marido, os achaques dos filhos, as tristezas do seu dia, a sua costura – lhe pareceu lúgubre. Os seus deveres, agora que não punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardos injustos. A sua vida representava-se-lhe como desgraça excepcional: não se revoltava ainda, mas tinha desses abatimentos, dessas súbitas fadigas de todo o seu ser, em que caía sobre a cadeira, com os braços pendentes, murmurando: – Quando se acabará isto? Refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa. Julgando-o todo puro, todo de alma, deixava-se penetrar dele e da sua lenta influência. Adrião tornara-se, na sua imaginação, como um ser de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e que dá razão à vida. Não quis que nada do que era dele ou vinha dele lhe fosse alheio. Leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que também amara, e morrera de um abandono. Estas leituras calmavam-na, davam-lhe como uma vaga satisfação ao desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio às suas. Lentamente, esta necessidade de encher a imaginação desses lances de amor, de dramas infelizes, apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia-se assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado. A realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele

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aspecto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se impaciente e áspera. Não suportava ser arrancada aos episódios sentimentais do seu livro, para ir ajudar a voltar o marido e sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos emplastros, das feridas dos pequenos a lavar. Começou a ler versos. Passava horas só, num mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de virgem loura toda a rebelião de uma apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões, entre o canto dos rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério de noite romântica... O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se, estendeu-se a um ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela; era um ente meio príncipe e meio facínora, que tinha, sobretudo, a força. Porque era isto que admirava, que queria, por que ansiava nas noites cálidas em que não podia dormir – dois braços fortes como aço, que a apertassem num abraço mortal, dois lábios de fogo que, num beijo, lhe chupassem a alma. Estava uma histérica. Às vezes, ao pé do leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico, numa imobilidade de entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe apressar a morte... E no meio desta excitação mórbida do temperamento irritado, eram fraquezas súbitas, sustos de ave que pousa, um grito ao ouvir bater uma porta, uma palidez de desmaio se havia na sala flores muito cheirosas... À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol, enchiam-na de um desejo intenso, de uma ânsia voluptuosa, cortada de crises de choro... A santa tornava-se Vênus. E o romanticismo mórbido tinha penetrado tanto naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços, – e foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica. Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe – para andar atrás do homem, um maganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo; cheira a suor; e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a Bola de Unto. Extraído de: Obra completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1970. v. 2.


ARTIGO

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A era das explorações Rogério F. da Silva

N

Corbis Corporation

zelo religioso, avan­ços téc­ni­cos, iniciativas os dias de hoje, ao presenciarmos o empreendedoras – em que o ensaio e o erro desenvolvimento acelerado da teces­tiveram muito mais pre­sentes do que um nologia a serviço do homem e a re“pla­no” propriamente considerado. lação cada vez mais íntima entre os centros de pesquisa e o consumo quase que imeNeste contexto destaca-se o pioneirisdiato dos avanços tecnológicos, corremos mo de Portugal na história das explorações o risco de acreditar que tal procedimento deste período, que se inicia ainda no século sempre existiu e que a teoria e a prática XV (1415) quando uma frota portuguesa cosempre caminharam juntas. Todavia, isso mandada pelos filhos do rei D. João I – Dom está bem longe da verdade, sobretudo se Pedro, Dom Duarte e Dom Henrique tomam procurarmos conhecer como se processou Ceuta, na costa do Marrocos, inaugurando a época das Grandes Descobertas nos séaquilo que foi conhecido como o “Périplo Africulos XV e XVI. cano”, ou seja, a rota que explorando a costa africana viria resultar na ultrapassagem do Durante muito tempo, a Europa Ocidental Cabo das Tormentas (1488) pela expedição de manteve contatos frequentes com o Norte Bartolomeu Dias, no sul da África [teve seu da África e com a Ásia, sobretudo na região nome mudado para Cabo da Boa Esperança] do Oriente Médio. No entanto, o avanço dos e que culminou com a expedição de Vasco da turcos otomanos convertidos ao islamismo – Gama (1498) que atingiu Calicute, na Índia. avessos a contatos com os cristãos – e o conDois anos depois, a frota de Pedro Álvares trole muçulmano do Norte da África e sul da Cabral (1500) atingia as costas daquilo que península Ibérica, em certo sentido, provocaconhecemos hoje por Brasil. ram um isolamento da Europa Ocidental em relação a outras regiões. Acrescente-se a esse quadro a Peste Negra (1347-1351) que, segundo estima­tivas, fez 25 milhões de vítimas apenas na Europa. A peste, explicada como um castigo de Deus, fez crescer o temor em relação ao que estava fora de seus horizontes. Para alguns, existiam zonas tórridas (ou seja, lugares que por serem tão quentes tornavam impossível a existência humana) e monstros marinhos que devoravam os eventuais aventureiros; para outros, o mundo era plano como uma mesa e, a partir de um determinado ponto, cheMonumento aos Descobrimentos, Lisboa, Portugal. gar-se-ia ao “fim do mundo”. Os conhecimentos geográficos eram ruVale a pena conhecer o documento datadimentares e aquilo que se estudava nas do de 1508, transcrito a seguir, que ilustra universidades não possuía aplicação prática. como o comércio dos venezianos [interEntretanto, tal isolamento levou a um recrumediários que monopolizavam as relações descimento da necessidade de produtos entre o Oriente muçulmano e o Ocidente que vinham de fora da Europa e, em certo europeu] foi dura­mente afetado pelas iniciasentido, empurrou os europeus para além tivas portuguesas. de seus limitados horizontes. Quando somos informados pelos meios Lisboa, rival de Veneza de comunicação sobre os projetos espaciais e suas realizações, podemos ser induzidos A descoberta da rota para as Índias pelos a acreditar, por analogia, que tenha existido portugueses fez Veneza perder seu monoum “projeto” ou “plano” que levou às Granpólio na venda de especiarias na Europa. des Descobertas. Na verdade, esse “projeEsse acontecimento foi duramente sentido to” é uma construção intelectual que os hispelos seus mercadores. toriadores fazem, hoje, para tornar inteligível Em Veneza, um mercador anota no mês aquele passado. É muito provável que a emde junho de 1508: “E aproximava-se o tempresa dos descobrimentos te­nha se tornapo da espera das notícias de Portugal a resdo possível graças a uma certa conju­gação de elementos – necessidades econômi­cas, peito da chegada de suas caravelas (das Ín-

dias) e esperava-se essa notícia com muito medo e apreensão; e, por causa disso, não havia trocas nem que fosse por um ducado.” A 10 de agosto escreve: “Na feira alemã em Veneza, não há muitos negócios. E isto pelo fato de que os alemães não queriam fazer compras pelos altos preços correntes e os venezianos não queriam baixar os preços, devido à pouquíssima quantidade de especiarias que havia em Veneza. Estimava-se que na cidade não havia 250 cargas de pimenta-do-reino, 800 milheiros* de gengibre, 15 de noz-moscada e 15 de cravos-da-índia, e de todas as outras especiarias ninguém se lembrava de ter existido tão pouco. E na verdade havia tão poucas trocas que jamais se poderia ter previsto. E isso provinha do fato de que os alemães não compravam o que precisavam naquele momento, pois não sabiam o que as caravelas portuguesas das Índias trariam de especiarias...”. A 6 de outubro do mesmo ano, chega à Veneza a notícia de que, em Lisboa, das 22 caravelas portuguesas que foram às Índias, uma não havia voltado. Essa notícia, relata o mesmo mercador, “... fez baixar muito os preços de todas as especiarias, assim como das outras mercadorias complementares desse comércio, deixando os mercadores desesperados, pois não sabiam mais como agir, visto que os árabes, para favorecer o seu comércio, espalhavam falsas notícias a respeito de pretensas vitórias contra os portugueses, ao passo que as notícias de Portugal davam conta de que havia sido tomado um navio árabe carregado com especiarias e tendo a bordo vários mercadores ricos.” No ano seguinte, no mês de agosto de 1509, a notícia da chegada em Lisboa das caravelas portuguesas carregadas de pimenta-do-reino e de outras especiarias não fez baixar os preços. Nosso mercador escreve então: “Na cidade, havia pouquíssima quantidade de todas as especiarias, de sorte que seu preço não poderia baixar. No entanto, se não tivesse havido a notícia destas chegadas em Lisboa, todas as especiarias teriam alcançado preços altíssimos e a cidade de Veneza teria feito um tesouro. Na verdade, os nobres e os mercadores venezianos ficaram como que atordoados com essas notícias, com pouca esperança de retomar o seu tráfico de especiarias e de mau humor”. * Um milheiro é igual a 1 000 libras venezianas, ou seja, 480 kg. P. Sardella. Nouvelles, et spéculations à Venise au début du XVI o siècle. Paris: Armand Colin, 1948. p. 34-36.


ARTIGO

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Aroma e sabor do café dependem de diferentes compostos químicos Elton Alisson

A

lém da cafeína, o aroma e o sabor do café podem depender de uma série de outros compostos químicos encontrados em diferentes partes da planta, que não apenas nos grãos. Um grupo de pesquisadores do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), em colaboração com colegas das universidades Estadual de Londrina (UEL), do Oeste Paulista (Unoeste) e da Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, além da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Café) e do Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique Pour le Développement (Cirad), da França, mediu as concentrações de dois desses compostos químicos – o caveol e o cafestol – nas folhas, raízes, flores e frutos de uma variedade de café arábica. Os resultados do estudo foram publicados na revista Plant Physiology and Biochemistry e foram destacados pela Science. “Foi a primeira vez que foram quantificados esses dois compostos que acreditamos ter relação com o sabor e o aroma do café em outros órgãos da planta, que não apenas os grãos”, disse Douglas Silva Domingues, professor do Departamento de Botânica da Unesp de Rio Claro, um dos autores do estudo, que realiza pesquisa sobre o café arábica apoiada pela Fapesp na modalidade Apoio a Jovens Pesquisadores. “Uma vez que temos agora informações sobre quais órgãos da planta podem produzir esses compostos pretendemos comparar a produção deles em diferentes variedades de café arábica e identificar quais genes são responsáveis por produzi-los”, afirmou. De acordo com Domingues, o caveol e o cafestol são lipídeos e fazem parte de uma classe de compostos químicos chamados terpenoides, que conferem o sabor da menta e o aroma do sândalo, por exemplo. Produzidas por diferentes partes do ca­ feeiro para repelir insetos herbívoros ou para atrair animais polinizadores, essas duas substâncias estão presentes em grandes concentrações no óleo da planta. Estudos realizados a partir dos anos 1980 mostraram que esses compostos têm propriedades antioxidantes, o que motivou seu uso pela indústria de cosméticos. E nos anos 1990 foi descoberto que também possuem propriedades antitumorais, o que despertou o interesse da indústria farmacêutica.

Os estudos sobre a quantificação dessas substâncias no cafeeiro, realizados por pesquisadores das áreas de Química e de Engenharia de Alimentos, contudo, focalizaram apenas o grão da planta, onde os dois compostos estão presentes em concentrações que variam entre 10% e 15%, apontou Domingues. “Partindo do princípio de que esses dois compostos representam uma fração importante do grão e que substâncias da mesma classe química têm influência no sabor da menta e no aroma do sândalo, decidimos quantificá-los em outras partes da planta”, explicou.

Níveis desiguais Os pesquisadores mediram as concentrações de caveol e cafestol nas folhas, raízes, flores e frutos de uma variedade de café arábica em sete estágios de desenvolvimento (entre 30 e 240 dias após a floração) por meio de cromatografia líquida de alta eficiência (HPLC, na sigla em inglês) – um método que permite separar os compostos químicos de uma solução. Os resultados das análises indicaram que nos botões florais houve um maior nível de cafestol e nas raízes uma maior concentração de caveol em comparação com os frutos, respectivamente. Em contrapartida, a concentração de cafestol aumentou ao longo do desenvolvimento do fruto, atingindo um pico após 120 dias da floração. Entretanto, não foram detectados caveol e cafestol em folhas. “Uma das hipóteses para explicar a presença desses compostos em algumas partes da planta e a ausência em outras é a de que, como algumas de suas funções são repelir insetos e atrair polinizadores, talvez seja mais interessante para a planta usá-los contra organismos que interajam com seus frutos e raízes do que para afastar os insetos que atacam suas folhas”, estimou Domingues. Os pesquisadores ainda não sabem se esses níveis desiguais dos compostos em diferentes partes da planta se aplicam a todas as variedades de café arábica, uma vez que avaliaram apenas uma variedade. Mas, uma vez que se sabe agora quais órgãos da planta podem produzir esses compostos, eles pretendem comparar a produção deles entre variedades de café.

“Com base na constatação que fizemos de que as raízes do cafeeiro apresentam níveis de caveol similares aos encontrados nos grãos pretendemos comparar agora durante o projeto apoiado pela Fapesp os padrões de atividades de genes nessas duas partes da planta para tentar identificar quais deles estão relacionados à produção desse composto e do cafestol”, disse Domingues. A fim de elucidar essa questão, eles pretendem sequenciar o transcriptoma de duas variedades de cafés com histórico de melhoramento distinto para tentar identificar quais genes estão presentes em diferentes tecidos das plantas. Para isso, irão usar uma técnica, chamada de inferência de redes, que é utilizada pelo Facebook para identificar quais assuntos uma pessoa gosta e quem são seus amigos mais próximos, por exemplo. “Sabendo que um determinado gene não é ativo na folha, mas é ativo na raiz e em outras partes da planta, por inferência podemos testar a hipótese de ele ser o responsável pela produção de caveol e cafestol”, detalhou Domingues. De acordo com o pesquisador, que participa do consórcio internacional para o sequenciamento do genoma do café arábica, a prioridade, agora, é entender a base genética do café e as razões moleculares das diferenças de concentração de caveol e cafestol nas partes da planta. Posteriormente, a ideia é utilizar esse conhecimento para aumentar a resistência, auxiliar o melhoramento genético da planta e produzir esses compostos utilizando estratégias de biotecnologia, apontou. “Hoje é possível produzir aroma de menta usando estratégias biotecnológicas. Sabendo quais os genes são responsáveis pela produção do caveol e cafestol seria possível usar essa mesma estratégia para produzir esses compostos em laboratório”, afirmou. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, mar./2017.


(ENTRE PARÊNTESIS)

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More money RESPOSTA

O pai matemático de um filho americano recebeu o telegrama ao lado.

9 5 67 + 1 085 10 652

O problema consiste em substituir letras por números e descobrir quanto o rapaz está pedindo.

POIS É, POESIA

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) XXIV

XXIX

O que nós vemos das cousas são as cousas.

Por que veríamos nós uma cousa se houvesse [outra? Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos Se ver e ouvir são ver e ouvir? O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê Nem ver quando se pensa. Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma [vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender E uma sequestração na liberdade daquele [convento De que os poetas dizem que as estrelas são as [freiras eternas E as flores as penitentes convictas de um só dia, Mas onde afinal as estrelas não são senão [estrelas Nem as flores senão flores, Sendo por isso que lhes chamamos estrelas [e flores.

N

em sempre sou igual no que digo e escrevo. Mudo, mas não mudo muito. A cor das flores não é a mesma ao sol De que quando uma nuvem passa Ou quando entra a noite E as flores são cor da sombra. Mas quem olha bem vê que são as mesmas [flores. Por isso quando pareço não concordar [comigo, Reparem bem para mim: Se estava virado para a direita, Voltei-me agora para a esquerda, Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos [pés – O mesmo sempre, graças ao céu e à terra E aos meus olhos e ouvidos atentos E à minha clara simplicidade de alma...

XXI

S e eu pudesse trincar a terra toda

E sentir-lhe uma paladar, Seria mais feliz um momento... Mas eu nem sempre quero ser feliz. É preciso ser de vez em quando infeliz Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol, E a chuva, quando falta muito, pede-se. Por isso tomo a infelicidade com a felicidade Naturalmente, como quem não estranha Que haja montanhas e planícies E que haja rochedos e erva... O que é preciso é ser-se natural e calmo Na felicidade ou na infelicidade, Sentir como quem olha, Pensar como quem anda, E quando se vai morrer, lembrar-se de que o [dia morre, E que o poente é belo e é bela a noite que fica... Assim é e assim seja...

XIV

N

ão me importo com as rimas. Raras vezes Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra. Penso e escrevo como as flores têm cor Mas com menos perfeição no meu modo de [exprimir-me Porque me falta a simplicidade divina De ser todo só o meu exterior Olho e comovo-me, Comovo-me como a água corre quando o [chão é inclinado, E a minha poesia é natural como o levantar-se [vento...

Extraído de: Poemas completos de Alberto Caeiro. In: Obra poética, Ed. Nova Aguilar, 1986.

SOBRE AS PALAVRAS

Entrar com o pé direito A expressão “entrar com o pé direito” surgiu no Império Romano e significa começar bem, ter sorte. Na ocasião de grandes festas, os romanos acreditavam que se entrassem com o pé direito evitariam o agouro. A palavra esquerdo significa, em latim, sinistro. Foi a partir daí que a crença se espalhou por todo o mundo.

Jornal do Vestibulando

Jornal ETAPA, editado por Etapa Ensino e Cultura REDAÇÃO: Rua Vergueiro, 1 987 – CEP 04101-000 – Paraíso – São Paulo – SP


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