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Jornal do Vestibulando
ENSINO, INFORMAÇÃO E CULTURA
JORNAL ETAPA – 2017 • DE 03/08 A 16/08
CURSO – DIREITO/USP
“A gente tem o direito de recomeçar. Se você não for o primeiro a acreditar em si mesmo, ninguém vai acreditar.” Aos 33 anos, Karen Regina Cury fez o Curso Extensivo Noite 10. Muitos anos depois de formada em Propaganda e Marketing e com pós-graduação em Administração, ela decidiu mudar de área. Para realizar essa mudança, ela sabia que precisaria voltar ao banco escolar. Ela voltou e hoje é aluna de Direito na USP, na São Francisco.
Karen Regina Cury Em 2016: Etapa Em 2017: Direito – USP
JV – O que levou você a mudar para Direito? Karen – Eu comecei a me sentir insatisfeita nos meus trabalhos, tanto na parte técnica quanto na pessoal. Não sentia mais realização. Comecei a pesquisar para ver o que gostaria de fazer. Eu gosto da parte de Economia, até por isso trabalhei bastante tempo no mercado financeiro, mas sempre gostei muito da parte jurídica. Acabava sempre atraída por áreas que tinham assuntos jurídicos como referência.
Como você via concorrer novamente pela vaga na faculdade? Bom, a mudança implicava voltar para o banco da escola. Não é fácil tomar essa decisão depois dos 30 anos. Mas eu tive um superapoio da minha família e, no final de 2015, decidi comprar essa briga. Aí vim para o Etapa.
Quais vestibulares você prestou, além da Fuvest? Prestei todos os vestibulares que eu considerava difíceis. Passei na São Francisco, no Mackenzie, que era minha 2a opção, passei na PUC, na Unesp, nas Federais de Minas e da Bahia e tinha nota para Coimbra, pelo Enem. E teria ido para a 2a fase da Unicamp, onde prestei para Economia, mas desisti. Lá não tem Direito, fiz a 1a fase para treinar.
Você estava confiante? Eu nunca fiquei muito tempo sem estudar, mas há uma diferença enorme em estudar para sua profissão e estudar para o vestibular. Eu vim decidida a aprender.
Como foi seu início no cursinho, depois de tantos anos fora das salas de aulas? Quando me matriculei eu procurei a coordenação do cursinho e falei dos meus medos. Tive
CONTO
A cozinheira – Artur Azevedo
Como você manteve-se animada? Estava determinada. Meu nível de determinação implicou uma disciplina ferrenha. Eu decidi que ia acompanhar o curso do começo ao fim. Eu segui o manual de instruções do Etapa à risca. Tinha muita confiança na equipe do Etapa. Veio o cansaço ao longo do ano, mas fui ganhando confiança e ampliando meus conhecimentos. Tudo isso vai dando certa paz de espírito e o que você ouve do professor não está mais parecendo grego.
Como era sua rotina de estudos? Eu priorizava matérias em que tinha mais dificuldade. Primeiro Física, depois Química, depois Biologia, aí eu ia para Matemática. Eu tinha mais dificuldade em Matemática do que em Biologia e Química. Mas continuei nessa ordem porque eu demoro para fazer Matemática e sabia que era melhor garantir duas, três questões de Química e Biologia do que ficar em uma só de Matemática. Às vezes não dava para estudar todas as matérias num dia só, mas durante a semana eu cobria o conteúdo inteiro e também estudava Humanas. Pelo menos um dia por semana eu ficava mais horas só estudando Humanas. Você não pode deixar nada de lado.
Você teve mais alguma dificuldade? Eu entrei com uma dificuldade gigante em Física. Saí daqui sabendo Física. Realmente aprendi Física, não só para o vestibular. Mas nada que consegui foi sem ajuda, nada. Os professores de Física perderam durante um ano vários
ARTIGO
ENTREVISTA
Karen Regina Cury
apoio da coordenação e dos próprios professores. Todos são incríveis, tenho certeza de que não encontraria tanto apoio em nenhum outro lugar, jamais. Fui muito acolhida aqui.
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4 Inventário de fauna e flora em São Paulo 7 surpreende pela alta biodiversidade A bomba atômica
intervalos deles. Não foi uma conquista solitária. Isso não existe.
Em quais matérias você tinha mais base? Português e Inglês. Eu morei fora e mesmo assim estudei Inglês aqui. Na Fuvest, se você tem fluência, você consegue ler a matéria e responder. Mas eu também estava prestando Mackenzie, que faz perguntas de regra gramatical. Aí é como o Português, você é falante, mas não sabe todas as regras gramaticais. Por isso estudei Inglês também.
Você fazia os simulados? Fiz todos.
Nos simulados, como você se saía? Fui evoluindo. Comecei tirando C mais, mas minha meta era tirar A. Sempre. Não consegui, mas consegui A duas vezes, uma em Redação e a outra acho que foi em Humanas. Mas consegui bastante B. Minha maior preocupação era não cair de faixa, porque eu sabia que o conteúdo, a quantidade de matéria vai aumentando e é muito fácil você ficar para trás.
O Plantão de Dúvidas, você chegou a usar? Nossa Senhora, até hoje não sei como os plantonistas gostavam de mim. Eu não teria me aguentado.
Em quais matérias você recorria mais aos plantonistas? Todas as matérias. Até as redações que eu fazia nos simulados. Não deixei nada de lado.
Teve uma época mais pesada para você no ano passado? Teve. Logo depois das férias. Não descansei nas férias. Tirei o atraso e terminei todas as
SOBRE AS PALAVRAS
Ficar a ver navios SERVIÇO DE VESTIBULAR
Inscrição
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CURSO – DIREITO/USP
apostilas. Em agosto eu estava cansada, mas resolvi que ia fazer todas as Fuvest anteriores, desde que ela mudou o modelo, em 2003. Isso significava fazer 14 provas da Fuvest, fora todos os simulados daqui. A partir da segunda semana de agosto eu fiz isso. No primeiro semestre eu estudava em média quatro, cinco horas por dia. No segundo semestre nunca estudei menos de cinco, seis horas. A partir de setembro passou a ser no mínimo seis, sete, principalmente quando comecei a fazer as Fuvest.
Você leu os livros indicados como obrigatórios pela Fuvest? Li todos os livros da Fuvest e também o livrinho de resumos.
Você veio às palestras de Literatura? Todas. Vi as palestras ao vivo e na internet.
Qual a importância das palestras? A análise, aquilo que fica subentendido da obra. Outra coisa importantíssima é a referência ao contexto histórico. Entender por que o autor escreveu daquele jeito. Esse paralelismo é essencial e é exigido nas provas.
Para relaxar, o que você fazia? Não sou muito amiga de exercício físico, então eu assistia a seriados. E saía para comer com meus pais, com meus amigos. Às vezes, quando estava muito cansada, eu pegava uma ou duas horas no período da manhã e ficava brincando com meus cachorros, dava um passeio.
Qual foi sua pontuação na 1a fase da Fuvest? Fiz 57 pontos. Tinha certeza absoluta de que não tinha passado. O corte no ano anterior tinha sido 59 e a tendência era subir a nota. E eu não tinha nenhuma bonificação. Mas os professores daqui falaram que o nível da prova tinha subido e a nota de corte poderia cair uns 4 pontos. Eu fiquei um tempo na agonia sem saber se tinha ido para a 2a fase. Foi duro. No fim, o corte de Direito foi 55. Hoje eu falo para as pessoas que a 1a fase não vai determinar sua classificação. Se você for para a 2a fase dá para se recuperar.
Na 2a fase, no primeiro dia é a prova com questões de Português e Redação. Quanto você tirou? Na prova, 68,5. Na Redação, 72. Achei que ia tirar uns 80. Não pus o título na Redação, tenho certeza de que perdi nota por isso. Fiquei muito nervosa no primeiro dia. Errei interpretação de questão que eu nunca errava. Não errei as questões de Literatura.
No segundo dia, na prova geral, como foi? Foi minha melhor nota, 76,5.
E no terceiro dia, das matérias prioritárias para a São Francisco: História, Geografia e Matemática? Foi uma droga. Eles aumentaram o nível em História e Geografia. Minha nota foi baixa, 50. Mas a média da galera foi 43. Fiquei 10% acima dessa média.
Na escala de zero a 1 000, qual foi sua pontuação na Fuvest? Foi 646.
E a classificação na carreira? 264. Eles chamaram de manhã até o 266.
Como avalia esses resultados? Esperava ir melhor na 2a fase. Melhor em tudo. Só fiquei mais tranquila quando todo mundo disse que o nível da Fuvest subiu. E os resultados finais comprovaram que as notas gerais baixaram.
Nos outros vestibulares que prestou, quais foram os resultados? No Mackenzie eu fiquei em 10o lugar, na PUC em 20o, na Unesp em 12o, na Federal da Bahia entrei em 8o, na Federal de Minas não sei a classificação porque fui colocada na lista de espera, em Coimbra também não sei a classificação porque não efetivei a inscrição. Mas eu teria nota para me inscrever. Eles usam pesos com a prova do Enem. O mínimo seria 120. A minha nota do Enem daria 161 pontos. É uma nota muito alta para entrar em Coimbra.
Como ficou sabendo de sua aprovação na Fuvest? Eu tinha certeza absoluta de que não tinha passado. Entrei na Fuvest usando minha senha para saber em que posição estava na lista de espera. Quando abri, não era lista de espera nenhuma, era convocação para matrícula na primeira chamada. Nem acreditei e vim para o Etapa. Aí é o maior chororô do mundo.
Você já conhecia a São Francisco? Conheci no dia da matrícula. É muito lindo o prédio, foi muito legal chegar lá. Eu levei minha mãe, meu pai estava trabalhando. Meus pais mereciam muito ir comigo.
Quais matérias você teve no primeiro semestre? Sete matérias: Constitucional, Civil, Penal, Romano, Teoria Geral do Estado, Introdução ao Estudo do Direito e Economia Política. Tranquei Direito Penal por uma questão de horário.
De qual matéria você está gostando mais? Eu me apaixonei por Direito Civil. Apesar de ter trancado Direito Penal, assisti a algumas aulas, vi um pouco da matéria, e é muito legal. Direito Romano acaba sendo muito legal também, mostra de onde veio nosso Direito Civil.
Qual é a matéria mais difícil? Introdução ao Estudo do Direito. É uma matéria bem pesada.
rumos que o Brasil tem que tomar para alavancar o comércio, para sair da crise, sobre a visão dos empresários, bancos internacionais.
No Direito, você pretende trabalhar na área pública ou na área privada? Eu fiz o vestibular de Direito pensando em carreira pública. Hoje eu não penso apenas nela, mas é muito cedo para definir o que eu quero. O Direito abre muitas opções e eu gosto de várias.
O que você destaca na São Francisco? Tem uma frase que o pessoal fala: “A São Francisco é gigante”. Você pode sair de lá preparada para qualquer área. A parte física da faculdade é grande, mas o que ela oferece para a vida é maior ainda. Você pode seguir carreira política, carreira privada, carreira pública, qualquer área do Direito.
O que você pode dizer a quem está se preparando neste ano para os vestibulares, pela primeira ou segunda vez? Os caminhos são muito individuais. O que eu posso dizer é para nunca desistir, não interromper a travessia. Não é fácil, mas é possível.
Que recordações traz hoje o Etapa para você? De todo o corpo de funcionários. Eu não posso falar só dos professores. Claro que tem professores que vou levar no coração para o resto da vida, mas eu recebi apoio incondicional de todo mundo – dos plantonistas, da coordenação, dos inspetores. É um corpo de funcionários dedicados a colaborar com sua vida. Sou supergrata e recomendo mesmo o Etapa para todo mundo.
Como fica marcado o ano passado para você? Um ano de loucura. Não porque foi muito difícil estudar. Não é isso. Falar para as pessoas que com 33 anos você vai ficar um ano estudando até 10 horas por dia para passar no vestibular não é algo comum. Mas não me arrependo nem um segundo. No Etapa me disseram: “Não é loucura, é legal, a gente vai te ajudar e vai dar certo”. Quando fui aprovada fiz um post e marquei as pessoas que eu tinha no Etapa. Gente que acreditou em mim, gente que, mais do que acreditar em mim, me ajudou. A começar pela minha família. Foi uma loucura que valeu muito a pena.
Hoje você acha que está diferente do que quando veio para o cursinho?
No primeiro semestre você idealmente não participa das extensões. Mas uma monitora me chamou para fazer parte de um grupo de estudos de Direito e Economia.
É uma mudança de embasamento técnico. Outra coisa superimportante foi reaprender a estudar. Aqui eu saí da minha zona de conforto. Vi coisas que eu não sabia o que eram e tive que aprender a ir buscar sozinha ou ir tirar a dúvida com o professor. Aprendi a estudar mais horas a fio. Eu uso esse tipo de ferramental no curso de Direito.
O que vocês discutem nesse grupo?
O que você tira de lição?
No primeiro momento discutimos o ICC (Câmara de Comércio Internacional). No último debate foi feita uma cartilha sobre novos
A gente tem o direito de recomeçar. Se você não for o primeiro a acreditar em si mesmo, ninguém vai acreditar.
Você está participando de algum grupo de extensão?
CONTO
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A cozinheira Artur Azevedo
A
I
raújo entrou em casa alegre como passarinho. Atravessou o corredor cantarolando a Mascote, penetrou na sala de jantar, e atirou para cima do aparador de vieux-chêne um grande embrulho quadrado; mas, de repente, deixou de cantarolar e ficou muito sério: a mesa não estava posta! Consultou o relógio: era cinco e meia. – Então que é isto? São estas horas e a mesa ainda neste estado! – Maricas! Maricas entrou, arrastando lentamente uma elegante bata de seda. Araújo deu-lhe o beijo conjugal, que há três anos estalava todo dia à mesma hora, invariavelmente – e interpelou-a: – Então, o jantar. – Pois sim, espera por ele! – Alguma novidade? – A Josefa tomou um pileque onça, e foi-se embora sem ao menos deitar as panelas no fogo! Araújo caiu aniquilado na cadeira de balanço. Já tardava! A Josefa servia-os há dois meses, e as outras cozinheiras não tinham lá parado nem oito dias! – Diabo! dizia ele irritadíssimo; diabo! E lembrava-se da terrível estopada que o esperava no dia seguinte: agarrar no Jornal do Comércio, meter-se num tílburi, e subir cinquenta escadas à procura de uma cozinheira! Ainda da última vez tinha sido um verdadeiro inferno! – Papapá! – Quem bate! – Foi aqui que anunciaram uma cozinheira? – Foi, mas já está alugada. – Repetiu-se esta cena um ror de vezes! – Vai a uma agência, aconselhou Maricas. – Ora muito obrigado! – bem sabes o que temos sofrido com as tais agências. Não há nada pior. E enquanto Araújo, muito contrariado, agitava nervosamente a ponta do pé e dava pequenos estalidos de língua, Maricas abria o embrulho que ele ao entrar deixara sobre o aparador... – Oh! como é lindo! exclamou extasiada diante de um magnífico chapéu de palha, com muitas fitas e muitas flores. Há de me ficar muito bem. Decididamente és um homem de gosto! E, sentando-se no colo de Araújo, agradecia-lhe com beijos e carícias o inesperado mimo. Ele deixava-se beijar friamente, repetindo sempre: – Diabo! diabo!... – Não te amofines assim por causa de uma cozinheira. – Dizes isso porque não és tu que vais correr a via sacra à procura de outra. – Se queres, irei; não me custa. – Não! Deus me livre de dar-te essa maçada. Irei eu mesmo. Ergueram-se ambos. Ele parecia agora mais resignado, e disse: – Ora, adeus! Vamos jantar num hotel! – Apoiado! Em qual há de ser? – No Daury. É o que está mais perto. Ir agora à cidade seria uma grande maçada.
– Está dito: vamos ao Daury. – Vai te vestir.
***
Às oito horas da noite Araújo e Maricas voltaram do Daury perfeitamente jantados e puseram-se à fresca. Ela mandou iluminar a sala, e foi para o piano assassinar miseravelmente a marcha da Aída; ele, deitado num soberbo divã estofado, saboreando o seu Rondueles, contemplava uma finíssima gravura de Goupil, que enfeitava a parede fronteira, e lembrava-se do dinheirão que gastara para mobiliar a ornar aquele bonito chalé da rua do Matoso. Às dez horas recolheram-se ambos. Largo e suntuoso leito de jacarandá e pau-rosa, sob um dossel de seda, entre cortinas de rendas, oferecia-lhes o inefável conchego das suas colchas adamascadas. À primeira pancada da meia-noite, Araújo ergue-se de um salto, obedecendo a um movimento instintivo. Vestiu-se, pôs o chapéu, deu um beijo de despedida em Maricas, que dormia profundamente, e saiu de casa com mil cuidados para não despertá-la. A uns cinquenta passos de distância, dissimulado na sombra, estava um homem cujo vulto se aproximou à medida que o dono da casa se afastava... Quando o som dos passos de Araújo se perdeu de todo no silêncio e ele desapareceu na escuridão da noite, o outro tirou uma chave do bolso, abriu a porta do chalé, e entrou... Na ocasião em que se voltava para fechar a porta, a luz do lampião fronteiro bateu-lhe em cheio no rosto; se alguém houvesse defronte, veria no misterioso noctívago um formoso rapaz de vinte anos. Entretanto, Araújo desceu a rua Matriz e Barros, subiu a de São Cristóvão, e um quarto de hora depois entrava numa casinha de aparência pobre.
II Dormiam as crianças, mas dona Ernestina de Araújo ainda estava acordada. O esposo deu-lhe o beijo convencional, um beijo apressado, que tinha uma tradição de quinze anos, e começou a despir-se para deitar-se. Araújo levava grande parte da vida a mudar de roupa. – Venho achar-te acordada: isso é novidade! – É novidade, é. A Jacinta deu-lhe hoje para embebedar-se, e saiu sem aprontar o jantar. Fiquei em casa sozinha com as crianças. – Oh, senhor! é sina minha andar atrás de cozinheiras! – Não te aflijas: eu mesma irei amanhã procurar outra. – Naturalmente, pois se não fores, nem eu, que não estou para maçadas! Depois que o marido se deitou, dona Ernestina, timidamente: – E o meu chapéu? perguntou; compraste-o? – Que chapéu? – O chapéu que te pedi.
– Ah? já não me lembrava... Daqui a uns dias... Ando muito arrebentado... – É que o outro já está tão velho... – Vai-te arranjando com ele, e tem paciência... Depois, depois... – Bom... quando puderes. E adormeceram. Logo pela manhã a pobre senhora pôs o seu chapéu velho e saiu por um lado, enquanto o seu marido saía por outro, ambos à procura de cozinheira. Os pequenos ficaram na escola. Os rendimentos de Araújo davam-lhe para sustentar aquelas duas casas. Ele almoçava com a mulher e jantava com a amante. Ficava até a meia-noite em casa desta, e entrava de madrugada no lar doméstico. A amante vivia num bonito chalé, a família morava numa velha casinha arruinada e suja. Na casa da mão esquerda havia o luxo, o conforto, o bem-estar; na casa da mão direita reinava a mais severa economia. Ali os guardanapos eram de linho; aqui os lençóis de algodão. Na rua do Matoso havia sempre o supérfluo; na rua de São Cristóvão muitas vezes faltava o necessário. Araújo prontamente arranjou cozinheira para a rua do Matoso, e à meia-noite encontrou a esposa muito satisfeita: – Queres saber, Araújo? Dei no vinte! Achei uma excelente cozinheira! – Sério? – Que jantar esplêndido! Há muito tempo não comia tão bem! Esta não me sai mais de casa. Pela manhã, a nova cozinheira veio trazer o café para o patrão, que se achava ainda recolhido, lendo a Gazeta. A senhora estava no banho; os meninos tinham ido para a escola. – Eh! eh! meu amo, é vosmecê que é dono da casa? Araújo levantou os olhos; era a Josefa, a cozinheira que tinha estado em casa de Maricas! – Cala-te, diabo! Não digas que me conheces! – Sim, sinhô. – Com que então tomaste anteontem um pileque onça e nos deixaste sem jantar, hein? – Mentira sé, meu amo; Josefa nunca tomou pileque. Minha ama foi que me botou pra fora! – Oras essa! Por quê? – Ela me xingou pro via das compra, e eu ameacei ela de dizê tudo a vosmecê. – Tudo, o que? – A história do estudante que entra em casa à meia-noite quando vosmecê sai. – Cala-te! disse vivamente Araújo, ouvindo os passos de dona Ernestina, que voltava do banho. O nosso herói prontamente se convenceu que a Josefa lhe havia dito a verdade. Em poucos dias desembaraçou-se da amante, deu melhor casa à mulher e aos filhos, começou a jantar em família, e hoje não sai à noite sem dona Ernestina. Tomou juízo e vergonha. Extraído de: <www.dominiopublico.com.br>.
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ARTIGO
A bomba atômica A partir de 1945, com o frio extermínio de 210 000 civis inocentes em Hiroshima, a humanidade passou a viver sob a ameaça da bomba atômica. Os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki constituíram a mais incrível e desnecessária atrocidade cometida contra a espécie humana. Eis a história dessa funesta “conquista tecnológica”. C. J. H. Watson
Sobre a cidade japonesa de Nagasaki brota o cogumelo fatídico, assinalando o lançamento da segunda bomba atômica em 9 de agosto de 1945.
A
história da invenção da bomba atômica tem algo a oferecer para todos nós. Para o físico nuclear, representa uma odisseia de pesquisas científicas até então sem precedentes, concluída “com êxito”, apesar dos enormes obstáculos impostos pelo sigilo e pela carência de técnicas e de materiais. Para o engenheiro, constitui-se numa verdadeira epopeia tecnológica, durante a qual 1 bilhão e 400 milhões de dólares foram aplicados em quatro novos processos industriais, cada um deles ameaçado de perto pelo fracasso total. Para o historiador, é uma saga de maquinações, nas altas esferas de poder, envolta numa atmosfera de suspeitas e hostilidade internacional. Para o filósofo, oferece excelente campo de estudo sobre os conflitos de lealdade – as exigências antagônicas feitas ao político ou ao cientista por seus próprios instintos e ambições, por seus amigos, pela pátria e, do lado oposto, pela humanidade. Para certos leitores, é apenas mais uma história de guerra – um drama pungente e emocionante, a cargo de um numeroso elenco, cujos personagens vão desde o mais ardoroso “patriota” até o agente secreto mais pérfido. E, finalmente, para aqueles que têm um mínimo de sentimento humano, é a história da perversão de todos os ideais apregoados pelos meios científicos, induzidos a colaborar na preparação de um dos mais frios e cruéis crimes de guerra conhecidos: o extermínio de Hiroshima e Nagasaki que – obviamente – não foi julgado em Nuremberg. E que até hoje continua impune. Como funcionam as armas nucleares? Os princípios básicos da física nuclear já haviam sido estabelecidos em 1940. Em resumo, os núcleos dos átomos são formados por uma mistura de prótons e de nêutrons. O número de prótons, variável de 1 a 111, determina o elemento químico do átomo. Assim, os núcleos do hidrogênio têm 1 próton, os do ferro, 26, os do urânio, 92, e os do plutônio têm 94. O número de nêutrons varia e os núcleos que diferem apenas quanto ao número de nêutrons recebem o nome de isótopos. Dessa forma, sabe-se da existência de três
isótopos do hidrogênio, com nenhum, um e dois nêutrons, conhecidos respectivamente como hidrogênio, deutério e trítio, e de catorze isótopos do urânio, os mais abundantes dos quais são o U-235 e o U-238, que têm, respectivamente, 143 e 146 nêutrons. A existência desses isótopos e a inexistência de outros com diferente número de nêutrons é uma consequência das leis muito peculiares que regem as forças de coesão dos núcleos. Usando uma linguagem mais acessível: prótons e nêutrons atraem-se fortemente quando estão muito próximos, ou então ignoram-se, ou, no caso dos prótons, repelem-se uns aos outros. A natureza “tem tido alguma dificuldade” para construir unidades estáveis com esse material tão instável. As únicas combinações viáveis são aquelas em que o núcleo tem mais nêutrons do que prótons, porém não muito mais. O núcleo mais estável é o do ferro (que tem 26 prótons e 32 nêutrons). Via de regra, qualquer reação nuclear (ou seja, o reagrupamento de prótons e de nêutrons para formar um novo ou novos núcleos) que leve a um núcleo cujo número de prótons esteja mais próximo de 26 resulta numa liberação de energia nuclear. Por conseguinte, pode-se obter energia nuclear de duas maneiras: pela fusão de dois núcleos mais leves que o do ferro (do deutério e do trítio, por exemplo, que possuem um próton), ou pela fissão (divisão em duas metades iguais) de núcleos mais pesados que o do ferro (do urânio-235, por exemplo, que tem 92 prótons). A bomba de hidrogênio baseia-se na primeira opção, a bomba atômica, na segunda. Felizmente para a estabilidade de nosso mundo material, tanto a fusão como a fissão só ocorrem em circunstâncias excepcionais. A fusão acontece apenas quando os núcleos se chocam com extrema violência. Até recentemente a temperatura exigida para essa fusão (cerca de 100 milhões de graus centígrados) só poderia ser conseguida, em nosso planeta, por intermédio de uma bomba atômica. A fissão, por outro lado, também é um fenômeno excepcional. O universo tem milhares de milhões de anos e, durante sua evolução, quase todos os núcleos capazes de cindir-se espontaneamente já o fizeram. Nos poucos núcleos que restam (como o do rádio, por exemplo), a fissão se processa tão lentamente que não chega a ter utilidade
como fonte de energia. Não obstante, como certos núcleos pesados são pouco estáveis, o acréscimo de mais um nêutron é suficiente para que eles se cindam. O urânio-235 e o plutônio constituem um exemplo típico disso. Como cada fissão liberta dois ou mais nêutrons, é possível produzir uma reação em cadeia: um primeiro nêutron é aprisionado por um núcleo pesado, que se rompe, libertando dois nêutrons que, por sua vez, são capturados por mais dois núcleos, e assim sucessivamente.
Cogumelo atômico: bomba lançada sobre Hiroshima.
Essa reação em cadeia, verdadeira explosão populacional dos nêutrons, gera a liberação tremendamente rápida de energia nuclear que ocorre em toda explosão atômica. Como toda explosão populacional, no entanto, ela depende diretamente da manutenção de uma “taxa de reprodução” de mais de um nêutron para cada nêutron capturado. Dois fatores adversos, no entanto, podem impedir isso. Em primeiro lugar, se a massa do material que contém os núcleos físseis for muito pequena, muitos nêutrons podem escapar para fora da superfície, em lugar de serem capturados por outros núcleos de seu interior, para gerar a fissão. Em segundo lugar, se o núcleo que captura um nêutron não for do tipo certo, ele pode deixar de fundir-se, ou então não se cindir com a devida rapidez. O primeiro fator não chega a ser decisivo – demonstra simplesmente que a massa do material deve exceder um certo nível crítico. Na prática, as bombas atômicas
ARTIGO são disparadas mediante o contato entre duas porções de urânio, cada uma delas um pouco abaixo do tamanho crítico. O segundo fator, entretanto, é absolutamente fundamental, pois o urânio-238 não é físsil. Dessa maneira, até mesmo uma reduzida concentração de U-238 numa porção de U-235 é suficiente para impedir uma reação de explosão em cadeia. Na realidade, o urânio natural consiste de 99,3% de U-238 e apenas 0,7% de U-235. Então, a fim de que o U-235 possa ser utilizado como explosivo nuclear, é necessário separá-lo da quantidade muito maior de U-238. O outro material físsil, o plutônio, não existe na natureza. No entanto, se o U-238 for bombardeado com nêutrons lentos (obtidos pela rápida passagem de nêutrons rápidos através de um “moderador”, feito de água pesada ou de grafita, num reator nuclear), ele se transforma lentamente em plutônio, que pode, então, ser separado e utilizado como explosivo. A primeira opção (o U-235) foi usada na fabricação da bomba que explodiu em Hiroshima, e a segunda, daquela que explodiu em Nagasaki. Em setembro de 1939, praticamente todos esses conceitos já eram de pleno conhecimento dos físicos nucleares de todas as nações. E, por desgraça, todas as nações cientificamente adiantadas tentaram explorar o potencial militar da energia atômica. Os progressos nesse campo, porém, não foram idênticos nos vários países. Na França, quase todo o trabalho foi interrompido com a ocupação alemã. Muitos dos físicos nucleares franceses fugiram para a Inglaterra (transferindo-se mais tarde para o Canadá), inclusive Halban e Kowarski, que mais tarde se tornariam famosos. Na União Soviética, a Academia de Ciências constituiu uma “Comissão Especial para o Problema do Urânio”. Seus planos, porém, foram frustrados pela invasão alemã, que forçou a evacuação do grosso da indústria soviética e de seus centros de pesquisa para a região dos Urais. Isso retardou o programa nuclear russo até o fim de 1942, época em que, através do agente Klaus Fuchs, os soviéticos já vinham recebendo informações regulares sobre as pesquisas britânicas e americanas nesse campo. Ao que parece, todavia, foi só em 1945 que a União Soviética passou a dar prioridade à construção de sua própria bomba atômica. Na Alemanha, o trabalho foi prejudicado pela perda de muitos dos mais talentosos físicos nucleares, durante os expurgos antissemitas, pouco antes da guerra, e pelas disputas partidárias entre os que sobraram. Não obstante, em meados de 1940, sob o disfarce de um “Instituto do Vírus”, um grupo de físicos, entre os quais Bothe, Weizsäcker e Heisenberg, fundou um instituto de pesquisas atômicas. Até 1942, o nível de suas pesquisas correspondia mais ou menos ao nível das pesquisas dos físicos
americanos. Em abril de 1942, porém, um grupo de sabotadores anglo-noruegueses destruiu a usina de água pesada em Rjukan (na Noruega), da qual dependia, de maneira vital, o programa de pesquisas dos alemães. Daí para a frente o prosseguimento deste programa não teve andamento. Mesmo assim, os anglo-americanos continua ram a corrida para a construção da arma atômica, alegando que os alemães deviam estar na iminência de fabricá-la. No entanto, a descoberta de anotações e documentos de Weizsäcker, durante a tomada de Estrasburgo, em 1944, revelou como os alemães ainda estavam atrasados no campo das pesquisas nucleares. Na Inglaterra, a maior parte dos cientistas estava inicialmente engajada em outras atividades relacionadas com a guerra. Nos primeiros meses, o esforço nuclear dependeu quase que exclusivamente de cientistas refugiados, cuja nacionalidade os impedia de participar de projetos militares secretos. Não obstante, os ingleses foram os culpados pelas contribuições mais importantes para o desenvolvimento das armas nucleares em seus primeiros anos. A primeira notícia séria sobre a possibilidade de construção de uma bomba atômica foi dada em fevereiro de 1940 pelos professores Peierls e Frisch, que trabalhavam na Universidade de Birmingham. Em seu notável Memorandum, de apenas três páginas, eles abordaram os problemas principais para a construção de uma bomba atômica, bem como as possíveis soluções. Salientaram, pela primeira vez, que era indispensável separar o U-235 do U-238, indicando o método para conseguir isso – a difusão térmica. Calcularam a “massa crítica” do U-235, obtendo 600 gramas, quantidade posteriormente alterada para 9 quilos, em função das medidas nucleares mais exatas. A explosão resultante, segundo eles, seria equivalente a cerca de 1 000 toneladas de TNT. Comentaram, também – e isto é muito importante –, os efeitos letais da radiação que seria produzida.
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A construção da bomba Sob o estímulo do memorando de Peierls e Frisch, as pesquisas britânicas sobre a separação dos isótopos passaram a merecer um apoio cada vez maior durante o ano de 1940, especialmente sob a direção do Professor Simon, da Universidade de Oxford. Ao final desse ano, concluiu-se que havia outro processo de separação – a difusão gasosa – mais eficiente que a difusão térmica. Por outro lado, calculou-se que uma usina capaz de separar U-235 em quantidade suficiente para uma bomba custaria mais de 5 milhões de libras, exigindo, para sua construção, materiais que só poderiam ser obtidos após grandes esforços e consideráveis pesquisas. Entrementes, os físicos franceses Halban e Kowarski, que trabalhavam então na Universidade de Cambridge, demonstraram que seria possível produzir o plutônio, mediante uma lenta reação em cadeia no urânio natural, desde que se utilizasse água pesada para moderar a velocidade dos nêutrons. Seus colegas, Bretscher e Feather, sugeriram a utilização do plutônio como explosivo nuclear. Finalmente, na Universidade de Birmingham, Oliphant vinha desenvolvendo uma terceira técnica de separação de isótopos – o método eletromagnético. Nem seu processo, porém, nem o do plutônio, pareciam então muito viáveis. Assim, quando o Comitê Maud (criado pelo Ministério da Aeronáutica para realizar uma investigação sobre as armas nucleares) elaborou seu relatório final, em meados de 1941, manifestou-se favorável ao método da difusão dos gases. Nessa altura, quase todos os cientistas britânicos percebiam que o trabalho em maior escala só poderia ser levado a cabo nos Estados Unidos, onde ainda havia todos os recursos de produção necessários. Até 1942, o esforço dos americanos no campo nuclear fora menos intenso e não apresentara resultados tão “bons” quanto o que se havia desenvolvido na Grã-Bretanha. Na realidade, repetidas vezes eles solicitaram uma cooperação maior para os cientistas britânicos.
Resultado do 2º bombardeio atômico: Nagasaki, 09.08.1945.
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No verão de 1942, contudo, em decorrência do ataque japonês a Pearl Harbor e do relatório favorável do Comitê Maud sobre a viabilidade das armas atômicas, as pesquisas ganharam um novo ímpeto nos Estados Unidos. O programa americano, conhecido como “Projeto Manhattan” por razões de segurança, foi posto então sob controle do Exército, na pessoa do General Groves. Os recursos que lhe eram destinados passaram, de milhares, para milhões de dólares. Por coincidência, no preciso instante em que a Grã-Bretanha se dispôs a cooperar com o programa nuclear dos Estados Unidos, dois dos cientistas responsáveis pelo mesmo, Conant e Bush, concluíram que a colaboração britânica era perfeitamente dispensável. Essa decisão deu origem, nas relações anglo-americanas, a um clima de ressentimento e de reserva que só paulatinamente se desfez, mesmo depois das conversações diretas entre Churchill e Roosevelt, que resultaram na assinatura do Acordo de Quebec, em agosto de 1943. Entrementes, prosseguiam nos Estados Unidos as pesquisas sobre todas as técnicas anteriormente citadas: na Universidade de Colúmbia, Urey e Dunning estudavam a separação de isótopos pela difusão dos gases; na Universidade da Califórnia, Lawrence dedicava-se à separação eletromagnética; em Anacostia, Abelson concentrava-se na separação térmica, e Fermi, em Chicago, pesquisava a produção de plutônio por meio de nêutrons lentos. Os sucessos e reveses dessas pesquisas constituíam a preocupação máxima do General Groves e de seus assessores científicos. O método de difusão dos gases exigiu a fabricação de uma enorme quantidade de “membranas” – delgadas lâminas metálicas com milhões de pequenos orifícios, pelos quais se difundia o hexafluoreto de urânio – e a construção de uma enorme usina, cujo consumo de energia elétrica seria suficiente para iluminar uma grande metrópole. Em julho de 1944, essa usina, localizada em Oak Ridge, no Tennessee, estava praticamente concluída (ao custo de 280 milhões de dólares). As dificuldades tecnológicas para a fabricação da “membrana”, no entanto, ainda eram enormes, pondo em risco todo aquele investimento. O método eletromagnético dependia da utilização, em escala industrial, de um delicado instrumental de laboratório.
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O eletroímã utilizado nas primeiras experiências de Lawrence media alguns poucos centímetros; na usina de separação eletromagnética (também em Oak Ridge), era gigantesco: tinha quase 40 metros de comprimento por 5 de altura e seu enrolamento elétrico fora feito com 86 000 toneladas de prata, especialmente cedidas pelo Tesouro dos Estados Unidos. Aí também houve problemas: a usina começou a operar em fevereiro de 1944 e já em julho percebeu-se que tão cedo não seria capaz de produzir U-235 em quantidade suficiente. O processo de difusão térmica mostrou-se inútil como meio de enriquecer o U-235 em grande escala, embora funcionasse bem para pequenas quantidades. Havia finalmente o método do plutônio, que parecia muito promissor após o êxito da primeira pilha atômica experimental, construída por Fermi em Chicago, em dezembro de 1942. Essa pilha, a precursora de todos os reatores nucleares subsequentes, levou à construção de vários gigantescos reatores de produção de plutônio em Hanford, às margens do rio Colúmbia. O primeiro deles foi acionado pelo próprio Fermi, em setembro de 1944, mas parou de funcionar poucas horas depois, em consequência de um fenômeno totalmente inesperado – o chamado “envenenamento nuclear”. No fim, todos os quatro métodos foram utilizados. O método da difusão térmica foi empregado para elevar o teor de U-235 do urânio de 0,7% para 0,9%. Esse material levemente enriquecido era então levado para a usina de difusão gasosa, que aumentava o conteúdo de U-235 para 20%. Finalmente, utilizava-se a usina eletromagnética para produzir material com mais de 90% de U-235. Como resultado, em agosto de 1945, após gastarem cerca de 1 bilhão de dólares, os Estados Unidos dispunham de U-235 em quantidade suficiente para uma arma atômica. Quanto ao plutônio, foi difícil prever sua produção, visto que a quantidade necessária para a construção de uma bomba era desconhecida até o último instante, chegando-se até mesmo a duvidar que ela explodisse. Por essa razão resolveu-se testar uma bomba, tão logo houvesse bastante plutônio disponível. O teste foi realizado no deserto de Alamogordo, no Estado do Novo México, em 17 de julho de 1945, sob a supervisão científica de J. Robert Oppenheimer,
Criança vítima da bomba atômica lançada pela Força Aérea Americana sobre Hiroshima, 06.08.1945.
físico responsável pelo laboratório atômico de Los Alamos. A explosão, que superou tranquilamente todos os cálculos teóricos, causou um impacto que não seria avaliado apenas em termos de milhares de toneladas de TNT. Vários dos cientistas que presenciaram o teste, horrorizados com a experiência, convenceram-se de que aquela arma jamais deveria ser utilizada contra seres humanos. A maioria deles, porém, ou pelo menos os que dispunham de influências junto às esferas governamentais, não hesitou em aconselhar o emprego da bomba contra o Japão, como único meio de abreviar a guerra. Apesar dos insistentes protestos de Szilard e de outros renomados cientistas, a decisão final foi tomada pelo presidente Truman, de comum acordo com Churchill. As bombas foram lançadas sobre Hiroshima, a 6 de agosto, e sobre Nagasaki, três dias depois. No dia 10 de agosto, o imperador do Japão comunicou sua intenção de render-se. No entanto, o mais provável é que os japoneses teriam-se rendido de qualquer maneira, sem maior derramamento de sangue. Argumentou-se, por outro lado, que o emprego da bomba atômica deu credibilidade ao papel das armas nucleares como meio de evitar um conflito mundial. Como se fosse necessário, para isso, sacrificar dezenas de milhares de inocentes civis japoneses, em meio à mais pavorosa de todas as mortes.
A bomba explode em Hiroshima
m 6 de agosto de 1945 um avião de bombardeio americano, Enola Gay, procedente de Tinian, nas ilhas Marianas, lançou a primeira bomba atômica. Ela desceu de paraquedas, sendo detonada a 500 metros acima do alvo – Hiroshima. Eram exatamente 8h16min da manhã, a hora mais trágica deste século.
Para os que lá estavam e sobreviveram, a lembrança do instante em que o homem, pela primeira vez, desencadeou contra si mesmo as forças naturais de seu universo é de um relâmpago de pura luz, ofuscante e intensa, mas de uma terrível beleza e variedade (...). Se houve algum som, ninguém ouviu.
O relâmpago inicial gerou uma sucessão de calamidades. Primeiro veio o calor. Durou apenas um instante mas foi de tal intensidade que derreteu os telhados, fundiu os cristais de quartzo nos blocos de granito, chamuscou os postes telefônicos numa área de 3 quilômetros e incinerou os seres humanos que se achavam nas proximidades. Tão com-
ARTIGO pletamente que nada restou deles, a não ser suas silhuetas, gravadas a fogo no asfalto das ruas ou nas paredes de pedra. Depois do calor veio o deslocamento de ar, varrendo tudo ao seu redor com a força de um furacão soprando a 800 quilômetros por hora. Num círculo gigantesco de mais de 3 quilômetros, tudo foi reduzido a escombros. Em poucos segundos, o calor e o vendaval atearam milhares de incêndios. Em alguns pontos o fogo parecia brotar do próprio chão, tão numerosas eram as chamas tremulantes geradas pela irradiação do calor. Minutos depois da explosão começou a cair uma chuva estranha. Suas gotas eram
grandes e negras. Esse fenômeno aterrador resultava da vaporização da umidade da bola de fogo e de sua condensação em forma de nuvem. À medida que a nuvem, formada de vapor de água e dos escombros pulverizados de Hiroshima, atingia o ar mais frio das camadas superiores, condensava-se, caindo sob a forma de “chuva negra” que não apagava os incêndios, mas aumentava o pânico e a confusão (...). Depois da chuva veio o vento – o grande vento de fogo –, soprando em direção ao centro da catástrofe e aumentando de violência à medida que o ar de Hiroshima ficava cada vez mais quente. O vento so-
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prava tão forte que arrancava árvores enormes nos parques onde se abrigavam os sobreviventes. Milhares de pessoas vagavam às cegas e sem outro objetivo a não ser fugir da cidade de qualquer maneira. Ao chegarem aos subúrbios, eram tomadas, a princípio, por negros e não japoneses, tão enegrecidas estavam. Os refugiados não conseguiram explicar como foram queimados. “Vimos um clarão”, contavam, “e ficamos assim”. Trechos do livro No High Ground, de Fletcher Knebel e Charles Bailey. Extraído de: História do século 20, Abril Cultural.
Inventário de fauna e flora em São Paulo surpreende pela alta biodiversidade Maria Fernanda Ziegler
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m uma determinada área, do tamanho de 140 mil campos de futebol, é possível encontrar tucanos-toco (Ramphastos toco) do Cerrado, o muriqui-do-sul (Brachyteles arachnoides) – o maior primata brasileiro – e o sagui-da-serra-escuro (Callithrix aurita), animal endêmico da Mata Atlântica e em risco de extinção. Há ainda seis espécies de plantas até então desconhecidas pela ciência, além de carismáticas capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris), suçuaranas (Puma concolor capricornensis) e até mesmo uma onça-pintada (Panthera onca), o maior felino das Américas, contabilizando um total de 1 113 espécies da fauna e 4 768 da flora. Os números são surpreendentes, principalmente se for levado em conta que a área em questão está no município de São Paulo. Há uma biodiversidade latente entre o cimento, o asfalto e as poucas áreas verdes, sobretudo nos cinturões verdes do Norte e do Sul da cidade. É o que concluiu o mais recente inventário de fauna e flora do município, divulgado pela Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA). O esforço de fazer um inventário da biodiversidade da capital paulista reuniu servidores da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, instituição parceira do Programa BIOTA-FAPESP com o Projeto Atlas Ambiental. O levantamento da fauna silvestre é feito desde 1993 e em 2016 foram incluídos dados sobre a flora pela primeira vez. A equipe obtém os dados a partir do levantamento primário em mais de 100 localidades (136
localidades em 2016) e por meio do atendimento de animais silvestres entregues à Divisão Técnica de Medicina Veterinária e Manejo da Fauna Silvestre da prefeitura. Os resultados incluem ainda registros cumulativos de mais de 20 anos de trabalho e alguns estudos realizados por pesquisadores parceiros. No caso das plantas, foi feita uma compilação de diferentes fontes de dados, incluindo amostras de plantas herborizadas documentadas no Herbário Municipal, relatórios de vistorias técnicas do Herbário Municipal e referências bibliográficas como levantamentos florísticos ou fitossociológicos realizados no município desde 1911. O que impressiona é a possibilidade de encontrar espécies novas e a resistência não só de espécies pouco exigentes ecologicamente, como as capivaras do rio Pinheiros, como daquelas que precisam de um ecossistema equilibrado para sobreviver. É o caso de uma onça-pintada de quase 100 quilos que teve tranquilo andar captado, em janeiro de 2016, enquanto passeava pelo Núcleo Curucutu do Parque Estadual da Serra do Mar, limite sul da capital paulista. O flagrante foi feito por armadilhas fotográficas do Instituto Pró-Carnívoros, um parceiro do trabalho. “Tanto o muriqui-do-sul, que ainda não tinha registro recente no município de São Paulo, quanto o sagui e a onça-pintada são espécies exigentes ecologicamente. A presença deles indica uma cadeia preservada, já que não suportam alterações ambientais. É surpreendente e, sem dúvida, uma boa
notícia”, disse Anelisa Magalhães, servidora da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente que coordenou a parte de fauna do Inventário da Biodiversidade do Município de São Paulo – 2016, à Agência FAPESP. Logo na estreia da pesquisa de flora no inventário foram registradas seis espécies desconhecidas pelos pesquisadores. Há ainda mais uma – árvore da família Lauraceae – sendo analisada como provavelmente nova. Todas elas estão relacionadas aos esforços de coleta realizados durante o projeto “Flora Fanerogâmica do Estado de São Paulo”, financiado pela Fapesp. “A Leandra lapae D’El Rei Souza & Baumgratz, um arbusto da família Melastomataceae, só foi registrada até o presente momento a partir de uma coleta realizada em uma mata ao lado de Parelheiros”, disse Ricardo Garcia, curador do Herbário Municipal e responsável pela parte de flora do inventário.
Cerrado na metrópole Fazer o levantamento da biodiversidade de uma megalópole como São Paulo de forma periódica tem justamente a função de acompanhar a evolução e alteração das espécies no município, assim como para servir de embasamento científico de políticas públicas. “Com esse trabalho, ficamos sabendo tanto de espécies que eram documentadas historicamente em alguns locais da cidade e que desapareceram, como aquelas que surgiram. Isso ocorre por causa das intensas mudanças ambientais promovidas pela urbanização”, disse Magalhães.
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O inventário mostra que tanto a flora como a fauna do Cerrado estão se tornando mais presentes. “O tucano-toco, por exemplo, é uma espécie comum no Cerrado e que está sendo registrada agora com maior frequência aqui”, disse. Até mesmo a pomba asa-branca (Patagioenas picazuro) é um exemplo de colonização do ambiente urbano. Na década de 1990, ela era vista poucas vezes e em poucas épocas do ano, atualmente o animal se estabeleceu em toda a cidade. “Quando os habitats são reduzidos pela urbanização e atividades humanas muitas espécies vão desaparecer enquanto outras vão se adaptar e aumentar suas populações”, disse Magalhães. Com a flora não é diferente. Do total, 47 espécies foram registradas pela primeira vez na cidade depois de mais de 50 anos sem coletas. São, portanto, espécies que poderiam ser consideradas extintas, mas que foram reencontradas. “Isto pode indicar tanto falta de coletas nesse intervalo de tempo como, também, que porções do território estão sendo reocupadas por espécies campestres, dadas as atuais condições ambientais. Dentre estas, 20 espécies ocorrem nos biomas Mata Atlântica e Cerrado”, disse Garcia. Originalmente, os campos cerrados, matas, vegetação de várzea e campos alto-montanos eram os tipos de vegetação que cobriam o município de São Paulo. Apenas na área do Centro Histórico é que predomi-
navam os campos mais secos (nos morros) e vegetação de várzea nas baixadas. Hoje, essas vegetações originais foram quase extintas por completo. Porém, observou-se uma intensificação também da flora típica do Cerrado nos últimos anos. No conjunto das 3 474 espécies vasculares nativas no município, 18 são consideradas como exclusivas do bioma Cerrado, sendo que cinco delas possuem registros recentes em ambientes naturais (não foram cultivadas). O levantamento possibilitou outra constatação importante: os parques da cidade de São Paulo têm função essencial ao servirem como ponto de parada para aves. “Eles dão suporte para alimentação e descanso durante os deslocamentos das aves entre os fragmentos de mata. É o caso do Parque Ibirapuera, do Parque da Aclimação e do Parque Buenos Aires, que recebem a visita da
araponga [Procnias nudicolis] durante a primavera, por exemplo. A malha de parques municipais, com sua miscelânea de vegetação nativa e exótica, tem maior relevância ecológica para as aves florestais e migratórias do que se supunha”, disse Magalhães. A bióloga explica que, além da importância dos parques ser confirmada, há ainda necessidade de acompanhar a arborização urbana. “O que você escolhe para plantar na sua cidade vai influenciar na biodiversidade”, disse. Ao longo dos 20 anos de realização do inventário, ele já serviu de base para compensação ambiental de grandes obras. “No fim, isso tudo depende de decisões políticas, mas com o inventário podemos instrumentalizar as decisões”, disse. Magalhães conta que nas obras do Rodoa nel, trecho sul, por exemplo, foram criados por compensação ambiental quatro parques naturais, com base nas informações do inventário de fauna e flora. O mesmo ocorreu com a alteração da fiação elétrica da Eletropaulo, em áreas rurais, para um menor risco para a fauna, baseado nos casos de eletrocussão relatados pela Divisão de Fauna. “Isso porque conseguimos provar que havia impacto e que animais estavam morrendo eletrocutados. Caso contrário, poderiam sempre falar que em São Paulo não tem bicho nem planta”, disse. Extraído de: Agência FAPESP – Divulgando a cultura científica, maio/2017
SOBRE AS PALAVRAS
Ficar a ver navios O rei de Portugal, Dom Sebastião, morreu na batalha de Alcácer-Quibir, mas o corpo não foi encontrado. A partir de então (1578), o povo português esperava sempre o sonhado retorno do monarca salvador. Em 1580, em função da morte de Dom Sebastião, abre-se uma crise sucessória no trono vago de Portugal. A consequência dessa crise foi a anexação de Portugal à Espanha (1580 a 1640), governada por Felipe II. Evidentemente, os portugueses sonhavam com o retorno do rei, como forma salvadora de resgatar o orgulho e a dignidade da pátria lusa. Em função disso, o povo passou a visitar com frequência o Alto de Santa Catarina, em Lisboa, esperando, ansiosamente, o retorno do dito rei. Como ele não voltou, o povo ficava apenas a ver navios. Ou seja, esperava em vão.
SERVIÇO DE VESTIBULAR Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) Período de inscrição: até dia 26 de setembro de 2017. Via internet. Endereço da faculdade: Praia de Botafogo, 190 – Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22250-900 – Telefone: (21) 3799-5757. Requisito: taxa de R$ 75,00 até dia 11 de agosto de 2017; após esta data, taxa de R$ 150,00. Cursos e vagas: consultar site <www.fgv.br/processoseletivo>. Exame: dia 15 de outubro de 2017.
Jornal do Vestibulando
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