R MO E A eira S D rr IA a Fe ÓR M e g IST nio O H ntó NC r A CI Po
N.º 54 · AGOSTO 2019 CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL L
AMOR E SEXUALIDADE
AO LONGO DOS TEMPOS
• Homossexualidade na Grécia antiga • Roma, o ‘gabinete secreto’ O sexo na Bíblia • • Amantes dos reis e das rainhas• A prostituição em Portugal • Escândalos da I República e do Estado Novo • A revolução sexual nos anos 60 Depoimento de Maria Teresa Horta
Campanha válida para Portugal na versão impressa, até 30/09/19. Assinatura da VISÃO História durante 1 ano (6 edições), com oferta de uma caixa arquivadora no valor total de 22,00€, me mediante pagamento por cartão de crédito ou débito direto. Valor da assinatura não reembolsável. Oferta limitada ao stock existente e enviada após boa cobrança.
Conhecer o passado para compreender o presente
As Assine a VISÃO História e rreceba uma caixa arquivadora
1 Ano An (6 edições) por apenas 22€ | 25% Desconto
Para assinar, ligue 21 870 50 50 Pa
Dias ú úteis, das 9h às 19h. Indique ao operador o código promocional: COBR5
SUMÁRIO
Mola real Prostituta num bar Postal ilustrado IUDQF«V GRV õQDLV do século XIX
GETTYIMAGES
«Oh, l'amour, toujours l'amour», costumavam dizer os franceses para dar a entender que estamos perante uma das molas reais da vida. E acrescentavam «cherchez la femme», «procurem a mulher», quando se tratava de tentar explicar um acontecimento relevante para os destinos do mundo. Era uma visão sexista, porque masculina, mas quem detinha as rédeas da carruagem eram os homens. Outra mola seria o dinheiro, e uma terceira o poder, que é uma súmula das duas anteriores. Quem diz amor diz sexo, pois as palavras confundem-se no uso quotidiano, e cabem no conceito de húbris dos antigos gregos, ou seja, tudo o que ultrapassava a «justa medida» e que, por isso, se opunha ao bom-senso e à prudência. Existem muitos outros tipos de amor, mas esses não cabem no âmbito deste número, que é dedicado à sexualidade ao longo dos tempos, com o olhar centrado no Ocidente. Porque, se o ser humano mantém características dificilmente mutáveis, a forma de ele manifestar e exercer o amor sexual não foi sempre a mesma no decurso dos séculos, visto estar sujeito às práticas e às regras de cada contexto e de cada geografia. Não se amou sempre da mesma forma, como não se pintou ou se escreveu do mesmo modo, como não se viu o mundo com os mesmos olhos. Este é, pois, um convite para uma viagem possível através dessa fascinante variedade. O ponto de partida é o Egito faraónico, o de chegada a revolução sexual da década de 1960. Contámos com a colaboração de convidados: o sociólogo José Machado Pais e os escritores António Mega Ferreira, Maria Teresa Horta e Patrícia Reis.
Egito Prazeres à beira do Nilo
10
Paraliteratura Os livros malditos
62
Grécia O sexo e a pólis
14
Escândalo A 'loucura lúcida' de Adelaide 64
Roma Em Roma, sê romano Cleópatra e Marco António
20 24
Prostituição As meninas da madame
68 76
26
Estado Novo O caso 'Ballet Rose'
Bíblia Uma só carne
30 35 36
Medicina A Sexologia Clínica
78
Idade Média Norma e transgressão: Pedro e Inês, amantes inconvenientes As mulheres dos cruzados
Anos 60 Liberdade e repressão
80
Adultério Os amores dos reis
37
Divórcio Os casamentos de Henrique VIII
Depoimento Histórias de revolução e regressão por Maria Teresa Horta
86
43
Expansão Como era a bordo das naus
47
Pornografia Toda a nudez será filmada
88
Amor e desejo segundo Leão Hebreu
51
Doença A 'sifilização' da Europa
52
Literatura As histórias de amor não têm um final feliz por António Mega Ferreira
92
Século XIX A arte do galanteio
56
Anúncios Nas páginas dos jornais
98
Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos são da responsabilidade da redação Foto da capa: Au lit, le baiser, quadro de Toulouse-Lautrec, 1892/Bridgeman Images VISÃO H I S T Ó R I A
3
‘O Jardim das DelÃcias’ $ W¢EXD FHQWUDO GHVWH WU®SWLFR GR SLQWRU öDPHQJR +\HURQLPXV %RVFK ª GHGLFDGD DRV SUD]HUHV GD FDUQH QR VHX FRQMXQWR D REUD H[HFXWDGD HQWUH RV õQDLV GR VªFXOR ;9 H R LQ®FLR GR VªFXOR ;9, FRQGHQVD D KLVW´ULD GR 0XQGR õJXUDQGR QR SDLQHO GD HVTXHUGD R 3DUD®VR H QR GD GLUHLWD R ,QIHUQR 'HVFRQKHFH VH TXHP WHU¤R VLGR RV PHFHQDV GHVWD SLQWXUD VREUH PDGHLUD PDV TXDVH GH FHUWH]D Q¤R VH WUDWRX GH XPD LJUHMD WUDGLFLRQDO FOTO: ASSINATURA/FOTOBANCO 4 VISÃO H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A
5
‘Rolla’ A obra-prima do pintor francês Henri Gervex, inspirada num poema homónimo de Alfred de Musset, gerou escândalo em 1878, e foi – como várias outras telas em meados do século XIX – recusada pelo júri do Salão de Pintura e Escultura. Os académicos pareciam esquecer-se de que o nu fora largamente representado em séculos anteriores, desde o Renascimento. Atualmente, Rolla está no Museu de Orsay, em Paris FOTO: GETTYIMAGES 6 VISÃO H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A
7
Revolução sexual Esta foto, tirada em São Francisco em 1969, GLõFLOPHQWH VHULD SRVV®YHO de obter anos antes, quando os costumes eram mais VHYHURV H R DPRU H R VH[R HVWDYDP VXMHLWRV D XP PDLRU recato. A descoberta e a GLIXV¤R GD S®OXOD FRQWUDFHWLYD em 1960, contribuiu SDUD D UHQRYD¨¤R GDV PHQWDOLGDGHV H GRV FRVWXPHV FOTO: ROBERT ALTMAN/GETTY IMAGES GETTYIMAGES
8 VISÃO H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A
9
SEXUALIDADE // ANTIGO EGITO
PRAZERES À Do antigo Egito chegam-nos cenas de grande beleza amorosa, em que a mulher dos estratos sociais elevados desempenhava um papel primordial Por Francisco Garcia
D
os prazeres sensoriais à perpetuação, da elegância estética à consolidação de uma posição social, as elites da corte no antigo Egito exaltavam os prazeres da carne e da alma celebrando faustosamente a vida com festas luxuriosas. Os indivíduos pertencentes aos ditos «estratos superiores», que representavam uma ínfima minoria da população, viviam de forma ostensiva comparativamente à esmagadora maioria, que se confinava aos frutos do trabalho manual e se entretinha de forma bastante diferente da corte. No seu íntimo, as elites desfrutavam a vida com graciosidade, cultivando sempre o apelo aos sentidos através do uso de vestimentas luxuosas de linho, joias feitas com pedras preciosas, flores de lótus e perfumes que pairavam no ar – para os egípcios, a moda era a pedra basilar dos eventos festivos. Em aniversários, casamentos e nascimentos, a moda adotada pela elite determinava a forma como os restantes
Nefertiti O famoso busto da esposa real de Akenáton encontra-se hoje no Neues Museum, de Berlim
convidados se apresentavam nos banquetes, comuns em qualquer ocasião de celebração. Contudo, tal como sucede atualmente, as modas foram-se alterando conforme as épocas e os reinados do antigo Egito. Por exemplo, no Império Antigo (2686–2181 a.C.) «estava na moda» as mulheres usarem vestidos tubulares de linho branco presos por alças, que acentuavam as formas e destapavam estrategicamente algumas partes do corpo. Quanto aos homens, usavam tendencialmente tangas curtas. No Império Novo (1549–1077 a.C.), as mulheres passaram a usar vestidos bastante mais coloridos e com pregas, enquanto os homens optavam por vestir túnicas compridas, também às cores, que simbolizavam riqueza e ostentação. O uso de maquilhagem era uma prática comum a ambos os sexos. Por vezes, era até comum que algumas mulheres rapassem o cabelo e usassem perucas adornadas com flores de lótus ou cones perfumados. Para os egípcios a estética era uma característica essencial da vida, pois era culturalmente reprovável que alguém mostrasse uma aparência descuidada. Aliás, as elites tinham por hábito cultivá-la ao usarem uma indumentária mais sofisticada e entregarem-se aos encantos do prazer e da sedução. Nos banquetes, os rituais começavam mal os convidados se sentavam. Por vezes, homens e mulheres sentavam-se juntos, noutras ocasiões ficavam separados, respeitando sempre a hierarquia de lugares à mesa. O primeiro momento de prazer tinha início no ato de comer, quando os criados serviam aos convidados vinho, cerveja, carne, peixe, pão e legumes, entre outras iguarias.
Mas um festim não estava completo sem momentos musicais guiados pelas melodias das harpas e os batuques dos instrumentos de percussão, sem momentos de dança com atuações de bailarinas exóticas que acompanhavam o ritmo da música, ou sem momentos dedicados à leitura e à recitação de textos e cânticos de amor. O banquete cristalizava quando os participantes invocavam Hathor, a deusa das festas, da dança e da embriaguez, consagradora do elemento da profanidade. As tonalidades eróticas que eventos desta natureza podiam assumir, e mesmo da civilização egípcia em si, podem ter relação com as características climatérico-geográficas do país, na medida em que as areias quentes do deserto e as águas do Nilo apelam à nudez ou ao parco uso de vestimentas
O estatuto da mulher A figura feminina ocupava um lugar importante, talvez misterioso, no imaginário coletivo do Egito antigo. Com estatuto,
As areias quentes do deserto e as águas do Nilo tinham uma componente erótica, pois apelavam à nudez ou ao parco uso de vestimentas
liberdade económica e papel jurídico de relevo, em muitos casos a mulher egípcia era livre de interagir e de se relacionar privada e amorosamente com os outros. O casamento não era imposto por regra, sendo socialmente aceite que a mulher fosse livre de aceitar ou de negar a proposta de um pretendente. Assim que atingiam a puberdade, normalmente mais cedo do que os homens, as mulheres eram consideradas como estando aptas a iniciar uma vida sexual de acordo com os padrões da sociedade. De certo modo, isso pode explicar-se pelo facto de os egípcios verem na fertilidade feminina o reduto para reversão do problema da elevada taxa de mortalidade infantil, que assolava a sociedade e que não conseguia ser resolvido através das técnicas de medicina da época. De acordo com os manuscritos da Sabedoria de Ani, um conjunto de textos de «boas práticas» sociais transmitidos entre gerações, quanto mais cedo um casal desse o nó matrimonial, tanto melhor. No entanto, o casamento só era incentivado e consumado no caso de estarem reunidas algumas condições, nomeadamente a de o casal ter meios para sustentar o lar de forma a proporcionar-se um ambiente estável. O objetivo de criar uma família tão grande quanto possível estava fortemente enraizado no ethos da civilização egípcia e pode ter tido por base o casamento divino entre os deuses Osíris e Isis, considerados no imaginário dinástico como o primeiro casal real. VISÃO H I S T Ó R I A
11
CRÉDITO FOTOXXXXX
BEIRA DO NILO
SEXUALIDADE // ANTIGO EGITO
Um banquete Por vezes, homens e mulheres sentavam-se separados e era usual a atuação de bailarinas
Poligamia e divórcio Embora a vida de muitas mulheres ficasse condicionada às vicissitudes do casamento, algumas egípcias dedicavam a sua vida a desempenhar papéis muito diversos na sociedade, como, por exemplo, serem médicas, juízas e sacerdotisas, o que pressupunha que tivessem tido uma educação diferenciada. Podiam ainda desempenhar profissões no campo 12 V I S Ã O H I S T Ó R I A
das artes performativas, como bailarina, cantora ou música. Na sociedade egípcia a poligamia era considerada uma quebra de normas, dado que convencionalmente a maioria dos indivíduos era monógamo. A única exceção eram os monarcas, que podiam justificar a poligamia quando motivada por razões de perpetuação dinástica. Comparativamente, a poliandria (uma
O uso de adornos, como brincos, era frequente, e a maquilhagem era uma prática comum a ambos os sexos
situação em que a mulher opta por ter mais de um companheiro) era altamente desencorajada e reprovada. Uma situação de infidelidade era mal vista em ambos os géneros, embora na maioria das situações as consequências fossem mais gravosas para a mulher do que para o homem. O divórcio podia ocorrer quando motivado pelas seguintes situações: infi-
©PHOTO JOSSE/LEEMAGE/ E LUISA RICCIARINI/ FOTOBANCO.PT
Mas os sentimentos e os valores sentimentais nem sempre eram a motivação principal da união. Em muitas ocasiões o casamento era imposto por um «contrato» de união familiar entre os pais dos futuros noivos, embora o consentimento do pai da noiva tivesse sempre um peso preponderante para a finalização do processo. Uma vez casada, a mulher egípcia tornava-se a senhora do lar e ficava incumbida, aos olhos da tradição social, de dar à luz o primeiro herdeiro da união. Organizava e supervisionava as atividades das suas servas, cuidava, educava e podia mesmo cingir-se aos lazeres da vida palaciana, no caso de viver num meio abastado.
Ter um filho representava a concretização de um desejo e de um objetivo transversal à grande maioria das pessoas, independentemente do estrato social a que pertencessem. O nascimento era considerado um evento que aliava a necessidade primordial de perpetuação à vontade psicológica e emocional de constituir uma família.
©LUISA RICCIARINI/LEEMAGE/FOTOBANCO
©PHOTO JOSSE/LEEMAGE/FOTOBANCO
O nome materno
delidade, descontentamento amoroso de ambas as partes, violência física ou psicológica e defeitos físicos. Da mesma forma que o casamento era vivido intensamente, também o divórcio trazia consigo um amargo procedimento protocolar que obrigava ambas as partes a requererem a presença de testemunhas para comprovar as razões da separação. As mazelas, para lá de emocionais, eram também familiares e sociais e afetavam o status do ex-casal. O nascimento simbolizava o início de um ciclo marcado por vários fatores. De imediato eram praticados rituais do agraciamento do nome, do aleitamento e da proteção mágica, que os egípcios acreditavam ter influência no desempenho de cada indivíduo na vida terrena.
Casal O divórcio podia ocorrer por infidelidade, descontentamento mútuo, violência ou defeitos físicos
À nascença, a mãe dava à criança um nome que a caracterizava de forma singular. Mais do que um nome, era um elemento identitário que a mãe deixava ao filho, que podia ser escolhido por diferentes razões, nomeadamente familiares, sociais, intelectuais ou espirituais. Na verdade, os egípcios podiam ter vários nomes, mas o nome materno era conhecido apenas pela própria mãe, num contexto íntimo. Os egípcios consideravam o investimento físico e emocional materno crucial para a educação e desenvolvimento de uma criança e, por isso, o Ensinamento de Ani
indicava que os filhos deviam dedicar o dobro do tempo que as suas mães dedicaram a si, como forma de honrar e respeitar o envelhecimento da matriarca. Acreditavam também que a forma de contornar o problema da mortalidade podia ser colmatado através de cultos e práticas mágicas; por isso, faziam ofertas aos deuses, erguiam estatuetas e efetuavam rituais para proteger os recém-nascidos. Diversas fontes iconográficas retratam a amamentação como a celebração da superação dos primeiros desafios da sobrevivência de um egípcio. Era, além de mais, o momento em que se fortalecia o laço emocional entre mãe e filho. O aleitamento era crucial durante os primeiros três anos de vida do recém-nascido e constituía uma importante fonte de nutrição para um desenvolvimento saudável. Quando uma mãe não conseguia amamentar, recorria às amas-de-leite, que frequentemente estavam presentes em ambientes mais abastados, sendo o caso de Maia, a ama-de-leite que ajudou a amamentar o faraó Tutankhamon. De um ponto de vista mitológico, pode explicar-se o valor ideológico da amamentação recorrendo-se aos contos tradicionais representados em pinturas da deusa Ísis no ato da amamentação de Hórus. A iconografia e os mitos deixaram um importante legado neste campo e permitem um melhor entendimento da relação entre o aleitamento humano e o aleitamento divino. A arte egípcia, ao representar a amamentação divina, veio dar um caráter humanizado a Ísis. Esta deusa, tal como uma mãe egípcia, tinha a preocupação de assegurar a sobrevivência do filho e a sua educação para herdar o trono do deus Osíris. O conceito de mãe amamentadora, embora tocante a várias personalidades da mitologia egípcia que amamentaram faraós, teve comummente como centro gravitacional a deusa Ísis, a figura mitológica que os egípcios consideravam representar melhor a maternidade divina. VISÃO H I S T Ó R I A
13
FRANCIS BARTLETT DONATION OF 1900 / BRIDGEMAN IMAGES
SEXUALIDADE // GRÉCIA ANTIGA
O sexo e a ‘polis’
De meio de controlo social a prática hedonista, diversas eram as funções dos comportamentos sexuais entre os Gregos da Antiguidade por Nuno Simões Rodrigues*
E
m si mesma, a sexualidade não tem uma história. Tal como não tem uma história o nascimento, ou a morte, ou a alimentação, enquanto processo fisiológico, ou o conjunto das necessidades orgânicas. O que tem uma história são as perceções, as representações e as atitudes humanas relativamente à sexualidade e restantes dinâmicas do foro da fisiologia. Ainda assim, podemos ensaiar uma «História da Sexualidade» no sentido etimológico do termo, na medida em que, para os Gregos da Antiguidade, historia significava «investigação». As-
14 V I S Ã O H I S T Ó R I A
sim acontece relativamente a todas as civilizações antigas conhecidas, e a dos Gregos não é exceção. As fontes, nas suas mais variadas formas, das textuais às iconográficas, passando pelos objetos da cultura material, fornecem-nos informações preciosas para compreendermos a forma como os Gregos entendiam a sexualidade, o que pensavam sobre ela e como a ela se referiam ou a representavam. Em suma: é possível saber que lugar tinha um processo orgânico-fisiológico como a sexualidade na vida e na mentalidade dos Gregos da Antiguidade.
Tal como noutras sociedades antigas de matriz patriarcal, também os Gregos entendiam a sexualidade como meio através do qual as comunidades se reproduziam e, enquanto tal, como uma prática que deveria ser socialmente controlada. Esse controlo fazia-se sobretudo através da normalização do casamento, que passava a legitimar quer as práticas sexuais concretizadas no âmbito conjugal quer os descendentes de uma união legal, que passavam a ser os herdeiros legítimos do património familiar. Neste sentido, a sexualidade conjugal era sobretudo pragmática, constituindo um meio de controlo social eficaz e de assegurar a continuação da comunidade. A este propósito, recordamos que, em 451 a.C., em Atenas (o caso mais bem conhecido de toda a Grécia Antiga pela quantidade de informação que sobre ela nos chegou), Péricles propôs uma lei que ditava que para que um homem fosse considerado cidadão ateniense, tanto o seu pai como a sua mãe deveriam ser atenienses de nascimento (Plut. Vida de
CRÉDITO FOTOXXXXX
Péricles 37.3). Não será difícil considerar que, por detrás dessa união, se subentendia o consórcio legal ou casamento dos progenitores. De igual modo, impõem-se também as reflexões sobre o papel do amor nas uniões conjugais. Sendo o casamento um contrato essencialmente político (no sentido literal do termo, isto é, para funcionamento da polis), pouca margem haveria para o amor em todo o
Amor e sexo não coincidiam necessariamente, tendo a sexualidade uma saudável função hedonística a que não se associavam juízos de valor
processo. Vários autores têm chamado a atenção dos investigadores para que não se radicalizem as leituras neste domínio, apresentando como argumento a famosa cena da Ilíada, em que Heitor se despede da sua mulher, Andrómaca, e do filho ainda de colo, Astíanax, numa descrição em que o poeta revela toda a sua genialidade criativa (Ilíada 6.461-600). No episódio em causa, o amor conjugal e o afeto familiar são evidentes. Mas a sublimação poética não deve constituir norma analítica para uma sociedade que ainda não teria descoberto o mito do amor conjugal. Com efeito, o que motiva Menelau a resgatar Helena de Tróia, depois que ela é raptada por Páris, é um sentimento de honra e de posse e não qualquer tipo de afeto.
Categorias de mulheres Amor e sexo não coincidiam necessariamente. É um facto que os textos protocristãos (séculos I-II d.C.) começam a apontar esse percurso. Em Plutarco, autor grego, coevo desta literatura, per-
Preparativos para um casamento A sequência de tarefas surge representada num vaso do século V a.C.
cebemos leituras da conjugalidade com ela convergentes. Mas essa começará por ser uma posição excecional, e o caminho até à sua difusão e aceitação será processual, longo e difícil (se alguma vez atingido), durante a Antiguidade. De igual modo, o facto de a sexualidade conjugal ter uma função eminentemente pragmática para os Gregos não significa que não fosse também entendida e aceite como uma forma de desfrutar prazer. Efetivamente, entre os Helenos a sexualidade tinha também uma saudável função hedonística, à qual, de um modo geral, não se associavam juízos de valor, máximas éticas ou princípios religiosos. Terão existido exceções, bem contextualizadas, sobretudo em ambiente filosófico e por vezes ritual. Mas, de VISÃO H I S T Ó R I A
15
SEXUALIDADE // GRÉCIA ANTIGA
Mitos sobre a homossexualidade
A
13 e os 19 anos de idade (não propriamente pré-púberes) e implicava uma relação de poder de um individuo mais velho e ativo (erastes) sobre um indivíduo mais novo e passivo (eromenos), sendo por isso, por princípio, rejeitada como prática entre homens da mesma faixa etária. Finalmente, há que referir que a homossexualidade grega Cena homossexual de que temos conhecimento Decoração de um vaso ático do século I a.C. é sobretudo a masculina. Isto não significa que não a houvesAtenas, entre os séculos VIII e V a.C. se no feminino, mas, sendo a Com a emergência da democracia em sociedade de modelo patriarcal, é acima algumas poleis, a homossexualidade pas- de tudo o mundo dos homens que ela sou a ser conotada com regimes políticos reflete. Ainda assim, alguma iconografia e hegemonias sociais indesejáveis e por e literatura, de que é exemplo máximo isso negativamente representada. Data a poesia de Safo, sugerem-na. Mas há desta época, por isso mesmo, a maio- razões para crermos que este tipo de prária das representações de tipo familiar tica seria, na maioria das cidades greconvencional na arte grega. Durante o gas, rejeitado e criticado negativamente, período helenístico, o tema da homos- dada a inexistência de uma função sosexualidade reaparece, mas sobretudo cial eminentemente pragmática, como como moda estético-literária e na se- acontecia com a variante masculina. Ao quência da sua sublimação filosófica. contrário do que proclamam algumas Por outro lado, a homossexualidade agendas ideológicas contemporâneas, o institucionalizada grega foi sobretudo que as fontes nos dizem é que a Grécia de tipo pederástico. Isso significa que o Antiga estava longe de ser uma espécie modelo se focava em indivíduos entre os de «paraíso gay» absoluto.
um modo geral, nesta perspetiva a sexualidade era acima de tudo entendida como uma necessidade fisiológica dos seres humanos. Cabe referir aqui o célebre discurso hoje atribuído a Apolodoro (século IV a.C.), o Contra Neera (59.122), no qual se classificam as mulheres de acordo com a sua função essencialmente erótica. Para o autor, que concebe uma espécie de inventário da identidade feminina ateniense clássica, as mulheres são ora esposas legítimas (gynai), cuja função é reproduzir o modelo social de
família e comunidade em que se inseriam; ora concubinas (pallakai), que, apesar de não serem as mães dos futuros Atenienses de direito, mérito absoluto e primeira linha, seriam muito provavelmente as escolhas assumidas dos homens, para quem eles dirigiam os afetos erótico-amorosos genuínos; ora heteras ou cortesãs (hetairai), mulheres com capacidade de socialização, formação erudita e uma vida pública reconhecida e vedada a outras, que, todavia, ser-lhes-iam socialmente superiores. A estas,
BRITISH MUSEUM
homossexualidade é uma problemática habitualmente associada à Grécia Antiga. Não sem razão, pois os Gregos incluíram a pederastia homossexual entre as práticas institucionalizadas, e a sua literatura, como a mitologia, prova-o. No entanto, isso não justifica alguns mitos contemporâneos que se generalizaram sobretudo a partir de finais do século XIX, na época vitoriana, e que ainda hoje ecoam em algumas vozes populares. Assim, há que referir que a homossexualidade (termo aliás desconhecido dos Gregos Antigos) associava-se à homofilia (comum em sociedades patriarcais e militarizadas) e não foi uma prática genericamente aceite. Com efeito, reconhecemos nas sociedades gregas antigas a existência de uma homossexualidade pederástica masculina, com eventuais origens ritualístico-religiosas e que tinha uma função propedêutica, ou seja, de manutenção e transmissão de um modelo social. Esta prática esteve associada a elites socioeconómicas e era fomentada sobretudo pelas aristocracias e oligarquias gregas de cidades como
16 V I S Ã O H I S T Ó R I A
há ainda que acrescentar as prostitutas (pornai), relegadas para o mais inferior dos planos, mas cuja função era satisfazer as necessidades sexuais mais básicas da população masculina (depreende-se), que para isso as procurava em zonas assumidamente instituídas, como o porto de Pireu (Aristófanes, Paz 164-165). Com estas, o sexo era sobretudo uma prática venal, uma transação, um momento de prazer a troco de um pagamento. Aliás, a polis tinha uma prostituição (tanto a feminina como a masculina) de tal forma
Mas, como convém frisar igualmente, as sociedades gregas antigas eram de modelo indo-europeu e, também por isso, patriarcais. Como tal, a maioria das nossas fontes corresponde a uma leitura masculina, pois foi essa a voz que predominou e que historicamente se impôs. Naturalmente, porém, o historiador deve levar esses aspetos em consideração de modo a contextualizar, relativizar e perspetivar a informação ao seu alcance. É isso que justifica que mulheres eroticamente proativas sejam, entre os Gregos, representadas em contexto de sátira sociopolítica, de que a comédia aristofânica faz testemunho. A Lisístrata, comédia escrita por Aristófanes em 411 a.C. (durante a Guerra do Peloponeso), ridiculariza as mulheres, apresentando-as como sexualmente ávidas, tanto ou mais do que os homens. Também na tragédia, das poucas vezes que os poetas do século V a.C. terão centrado a sua atenção em mulheres eroticamente ativas os resultados não são os mais animadores para o género feminino, como mostram a Clitemnestra de Ésquilo, na Oresteia, e a Fedra de Eurípides, em Hipólito.
Imagem pederástica Vaso do século VI a.C.
instituída, que ela era assumidamente considerada como um rendimento para o estado. As taxas que recaíam sobre a atividade são disso testemunho (por exemplo, no discurso de Ésquines Contra Timarco 1.119). Assim, é fácil perceber-se que o casamento e a família dificilmente esgotavam o quadro das relações humanas, e sexuais, na Atenas Clássica. Não é difícil entrever, pelas fontes de que dispomos, que este é também um olhar absolutamente masculino da sociedade e, por conseguinte, da sexualidade.
As mulheres eroticamente proativas eram apresentadas em contexto de sátira, como se vê nas comédias de Aristófanes
GETTYIMAGES
Adultério, violação e ritual É também este contexto que explica a forma como o adultério era entendido na Atenas Clássica. O crime de moicheia, sobre o qual caía a prática que identificamos como «adultério», era considerado grave na organização da polis e chegou a ser punido com a morte dos prevaricadores. Em causa estavam relações sexuais praticadas entre um homem e uma mulher legalmente dependente de outro. A lei podia ser particularmente dura com as mulheres envolvidas. O adultério no feminino era especialmente perigoso, dada a ameaça que representava para a comunidade. Numa sociedade que desconhece o ADN, a formulação da dúvida sobre a paternidade dos filhos de uma mulher, sobretudo se for uma mulher de estatuto social elevado, colocava sérias VISÃO H I S T Ó R I A
17
SEXUALIDADE // GRÉCIA ANTIGA
questões sobre processos tão importantes quanto a legitimação do estatuto de cidadão ou a transmissão de património, por exemplo. Daí a gravidade do adultério no feminino. A violência sexual, como a violação, é também assunto que as fontes registam. São sobretudo os textos mitológicos que nos dão conta deste fenómeno, tanto no feminino, como a famosa história das Leucípides de que o vaso da coleção Gulbenkian em Lisboa dá conta, como no masculino, como evoca o mito de Crisipo. Mas a violação sexual é também matéria referida, sob várias perspetivas, noutras fontes, como a retórica forense. Na Grécia
PICTURES FROM HISTORY / BRIDGEMAN
Um sátiro em ação A estas divindades menores ‘vocacionadas’ para o sexo chamariam os Romanos faunos
Antiga, a sexualidade estava também associada às práticas religiosas. Provável herança de crenças que remontavam ao Neolítico, há indícios de que determinados rituais evocavam processos de hierogamia (casamento sagrado), que deveriam materializar-se no ato sexual entre os representantes dos deuses, nomeadamente o sacerdote e a sacerdotisa. Esta não é uma questão pacífica entre os investigadores, há que referi-lo. Mas sabemos que o festival conhecido como Antestérias, celebrado no final de feve-
A deusa Afrodite (a que os Romanos chamariam Vénus) era associada simultaneamente ao amor e à sexualidade, derivando o seu nome do verbo aphrodisiazo, 'ter relações sexuais' 18 V I S Ã O H I S T Ó R I A
reiro em Atenas, incluía um ritual que deveria mimetizar a união sexual entre Dioniso e Ariadne, personagens representadas pelo arconte-basileus e pela sua mulher, a basilissa. Ainda assim, há que referir que, apesar de Dioniso ser uma divindade de desmesura e excessos, que poderiam incluir práticas sexuais entre os celebrantes de rituais específicos de contexto agrário e telúrico, ele é um deus profundamente contido em termos de sexualidade. No período clássico, aliás, a mitologia atribui-lhe apenas uma fixação erótica: Ariadne, princesa de Creta. Por outro lado, não é de menor importância que os Gregos chamassem «Afrodite» à deusa que associavam ao amor e à sexualidade. Divindade múltipla e de várias facetas e prováveis origens, o seu nome grego relaciona-se com o verbo aphrodisiazo, «ter relações sexuais». Não é impossível que o verbo se tenha formado depois do nome, uma vez que neste reconhecemos elementos que deverão estar relacionados com a origem da divindade em si. Ainda assim, é pertinente que o ato sexual seja para os Gregos algo intrínseco à divindade
BRIDGEMAN
Páris seduz Helena O casus belli da Guerra de Tróia é aqui representado num baixo-relevo de mármore do século I a.C.
que o patrocina. Tal como para outros povos antigos, para os Gregos, e por estar relacionada com a fecundidade, a sexualidade era também metáfora da fertilidade. Essa é também uma das funções de Afrodite na cultura grega, como aliás o demonstrou o mitólogo francês G. Dumézil, na interpretação que fez do célebre mito do julgamento de Páris. Em consonância, Priapo, o deus grego da fertilidade, era representado como um homem que ostentava um pénis de tamanho gigantesco. Esta questão relaciona-se com uma outra, que é a da representação dos órgãos sexuais masculinos na arte grega. O facto é que o nu masculino era uma questão de princípio e até mesmo de identidade entre os Gregos, como assinala Tucídides (1.6). No entanto, a julgar pela sua escultura, se o erotismo se avaliasse pelo tamanho da representação dos órgãos genitais, poderíamos decerto afirmar que os Gregos seriam os menos eróticos de todos os povos. A verdade é que, seguindo um dos princípios basilares do pensamento grego, também a arte helénica, sobretudo a do período
clássico, segue a ideia de contenção e de justa-medida, tão cara aos Gregos Antigos. Assim, ser belo é preencher os requisitos estéticos estabelecidos e entre eles está a ideia de parcimónia dos genitais. Este princípio, que aliás é explicitamente formulado numa das comédias de Aristófanes (Nuvens 1010-1019), é confirmado pelo facto de a iconografia grega representar a ereção masculina apenas em entidades como os Sátiros, personagens mitológicas associadas precisamente ao excesso, à desmesura, ao descontrolo e ao mundo selvagem. De resto, as esculturas que representam homens ostentam sempre genitais de proporções mais pueris do que adultas. Este tipo de representações não tem necessariamente que ver com mera pornografia, mas sim com ideias e princípios filosófico-civilizacionais. Por outro lado, esta nossa afirmação não quer dizer que não houvesse, entre os Gregos, o que hoje entendemos por pornografia, porque havia. Possuímos um número considerável de vasos, sobretudo datados dos séculos VI a IV a.C., sobre os quais se pintam cenas de sexualidade explícita,
quer na sua vertente hétero, quer homo, quer de uma sexualidade solitária próxima da masturbação. Temos inclusive representações de indivíduos usando objetos que hoje reconhecemos como dildos. Não é fácil sabermos se este tipo de figurações tinha como função estimular funções de natureza sexual, mas não é impossível que fosse um recurso usado principalmente em contextos de vivência da sexualidade, como bordéis. Estas produções teriam, portanto, que ver com o aspeto hedonista do sexo. * Nuno Simões Rodrigues é investigador do Departamento de História da Universidade de Lisboa Para saber mais: HUBBARD, T. H. ed., A Companion to Greek and Roman Sexualities, Blackwell Publishing 2014. MASTERSON, M.; RABINOWITZ, N. S.; ROBSON, J. eds., Sex in Antiquity: Exploring Gender and Sexuality in the Ancient World, Routledge, 2014. MCCLURE, L. ed., Sexuality and Gender in the Classical World: Readings and Sources, Blackwell Publishing, 2002. ORRELLS, D., Sex: Antiquity and its Legacy, I. B. Tauris, 2015. RAMOS, J.; FIALHO, M. C.; RODRIGUES, N. S., A Sexualidade no Mundo Antigo, CH-ULisboa, 2009. ROBSON, J., Sex and Sexuality in Classical Athens, Edinburgh, University Press, 2013. SKINNER, M. B., Sexuality in Greek and Roman Culture, Blackwell Publishing, 2005. VISÃO H I S T Ó R I A
19
Em Roma sê romano O mundo romano, incluindo os aspetos sexuais e eróticos, regia-se por regras diferentes das que o cristianismo viria a impor
N
por Lourenço Pereira Coutinho*
ápoles 1817, Museu Real. O rei Fernando I das Duas Sicílias visitava uma exposição sobre Pompeia, acompanhado da família real e da corte. Todos estavam maravilhados com os objetos expostos: esculturas, pinturas, artefactos, moldes de corpos humanos com quase 2 mil anos e em perfeito estado de conservação... A mostra transportava os visitantes para o ano de 79 d.C., quando a cidade ficou soterrada pela lava do Vesúvio. Mas esta viagem no tempo também chocou aquele grupo circunspeto. Uma das pinturas revelava um homem a tocar numa mulher despida; uma escultura definia os contornos de um casal a copular; e outra representava um Fauno – semideuses meio homens, meio bodes – a penetrar uma cabra... O rei ficou de tal forma transtornado que mandou que tudo o que tivesse carga erótica fosse encaminhado para o então criado «Gabinete dos Objetos Obscenos». Convertido mais tarde em «Gabinete Secreto», este núcleo expositivo esteve vedado a mulheres e crianças, e os homens só podiam entrar com uma autorização especial, concedida após confirmação da sua «idoneidade moral». Depois de avanços e recuos, o «Gabinete Secreto» só foi definitivamente aberto ao público no ano 2000. A distância entre as mentalidades da Roma antiga e da Itália contemporânea era ainda maior que o tempo que as separava.
República e Império Apesar da estupefação de Fernando I, a equiparação de Roma antiga a Sodoma 20 V I S Ã O H I S T Ó R I A
peca por excessiva. O Estado romano era baseado na Lei e exaltava as virtudes cívicas. Roma tornara-se poderosa graças ao estoicismo viril do seu exército, composto por cidadãos e inspirado por Marte, um deus abnegado e trabalhador incansável. Estes cidadãos-soldados tinham o dever de cultivar virtudes cívicas e participar na vida política, onde se exigia uma gravidade incompatível com desbragamentos. No entanto, os romanos distinguiam claramente o comportamento público do privado. Dentro de sua casa, o homem romano imperava, exercendo um poder despótico sobre a mulher, os filhos, os servos e os escravos. A mulher era tida como uma criatura menor, que existia para cuidar da casa e gerar filhos legítimos; a homossexualidade masculina era aceite, desde que não fosse sob a forma passiva; a pederastia foi tolerada, e o aborto nem sequer era questionado. Por sua vez, os recém-nas-
O 'Gabinete dos Objetos Obscenos', ou 'Gabinete Secreto', só foi aberto de vez ao público no ano 2000
cidos só contavam depois de apresentados ao círculo das relações familiares. A decisão de o fazer dependia do critério do pater familias, que podia optar por não deixar a criança viver, ou então por dá-la para adoção. Os romanos não entendiam o costume dos egípcios, germanos e judeus de aceitar todos os nascituros. Mais do que uma questão de sangue, as relações de parentesco eram uma questão legal. A legitimidade advinha do nascimento ou da adoção, sem distinções. A adoção até poderia ter um valor superior, por resultar de uma escolha e não do acaso. Nenhum destes conceitos era aberrante aos olhos do cidadão da Roma antiga. Um homem honrado, moralmente inatacável, distinguia-se pela sua contribuição para a res publica (coisa pública) e por agir dentro da lei, a exemplo dos generais que conquistavam territórios, e dos cônsules que governavam a República. Ninguém o iria censurar se abusasse sexualmente de qualquer dos habitantes de sua casa. Mas já seria reprovado se manifestasse paixão por algum deles. A austeridade emocional exigida em público foi posta em causa quando a República de base aristocrática passou a Império. Júlio César teve uma vida sexual preenchida, com um sem-número de amantes femininas e rumores de uma relação homossexual com o rei da Bitínia, na qual teria sido elemento passivo, boato suficiente para arruinar uma carreira política ou militar. O primeiro imperador, Augusto, teve uma vida conjugal e sexual relativamente estável, mas os seus sucessores, escudados na concentração de poderes e perpetuidade do cargo, competiram em loucura e devassidão. Pior do que isso, os imperadores da dinastia dos Júlio-Cláudios exibiram a sua devassidão em público. Do estoicismo viril que conduziu Roma à glória sob os auspícios de Marte, os seus governantes passaram a nortear-se por um hedonismo libertino, inspirado por Baco. Isso escandalizou muitos, mas in-
©COSTA/LEEMAGE/FOTOBANCO
SEXUALIDADE // ANTIGA ROMA
Fresco da Casa do Centenário Esta habitação de um morador rico de Pompeia é das mais bem preservadas pelas cinzas e a lava do Vesúvio
centivou outros tantos a afirmarem em público toda uma panóplia de fantasias e disfunções.
Mulheres e homens Os romanos acreditavam que os fetos masculinos «cozinhavam» no útero materno de forma mais completa do que os femininos. Por isso consideravam o homem superior à mulher, exaltavam as virtudes viris e desdenhavam comportamentos femininos ou efeminados. A uma mulher honrada só restaria aspirar a conseguir um bom marido. Entrava na idade núbil com apenas 12 anos, passando então a ocupar o seu dia com os lavores domésticos, enquanto esperava pelo casamento. Entretanto, podia também aprender música, canto e dança, talentos que exercitaria de forma recatada e pudica. Depois de casada, era-lhe permitido divorciar-se de um marido que não providenciasse o seu sustento, ou que não cumprisse os seus deveres conjugais, e isto sem censura social. Era possível sonhar com um novo casamento, mas nunca com uma relação homossexual, permitida aos homens mas inadmitida entre mulheres. Por sua vez, o homem romano gozava apenas de privilégios. A maioridade não chegava com a idade cronológica, mas sim com a maturidade sexual. Depois de rapar pela primeira vez o buço e de vestir o traje viril, o jovem desafogado podia satisfazer-se com uma serva, ou então procurar uma prostituta no bairro de Suburra, sendo esta a única opção para os rapazes das classes baixas. A passividade sexual e a paixão é que eram alvos de recriminação: a passividade era interpretada como subordinação, algo tido por próprio das mulheres, e a paixão era vista como um sinal de fraqueza e descontrolo emocional.
GETTY IMAGES
Austeridade e libertinagem Austeridade e libertinagem coexistiram desdenhosamente durante grande parte da História de Roma. Marco Aurélio, imperador e filósofo do século II d.C., VISÃO H I S T Ó R I A
21
SEXUALIDADE // ANTIGA ROMA
congratulou-se por não ter assediado os seus escravos e por se ter abstido até tarde do «ato de virilidade». Um estoico, portanto. Foi por alturas do reinado de Marco Aurélio que a moral romana, ainda pagã, começou subtilmente a mudar, assim como a forma de encarar a sexualidade. Provavelmente, esta mudança terá sido uma reação ao destempero dos imperadores júlio-claudianos, quase todos com triste fim, aliada à crença de que os excessos sexuais consumiam o corpo. Os médicos recomendavam, pois, parcimónia na sua prática. Mas esta nova abordagem não foi suficiente para desencorajar os libertinos. Estes seriam ousados ao ponto de infringir as principais proibições que um homem honrado devia acatar: não praticar ato sexual durante o dia ou com luz a iluminar a parceira.
À mulher de César... A dinastia júlio-claudiana deu a Roma um grande governante, Augusto, mas também déspotas desequilibrados. Suetónio escreveu que Tibério, sucessor de Augusto, gostava de observar mulheres e homens jovens a copular indiscriminadamente uns com os outros. Júlia, filha de Augusto e vários anos mais nova do que o marido, Tibério, colecionou tantos amantes, incluindo escravos, que
Foi só no reinado de Marco Aurélio (161-180) que a moral romana, embora ainda pagã, começou subtilmente a mudar
O imperador seguinte, Nero, não ficou atrás dos antecessores. O último dos Júlio-Claúdios foi um debochado que mandou assassinar a mãe, acusando-a de conspiração, e castrou um servo para depois se casar com ele. Acabou deposto pelo Senado e morreu às mãos de um servo fiel que, a seu mando, o apunhalou para não ser aprisionado pela guarda pretoriana.
o pai teve de a desterrar para a ilha de Pandatária. Calígula, sucessor de Tibério, era um demente que cometeu incesto com as suas três irmãs (Agripina, Júlia Livila e Drusila), teve relações com um sem-número de escravos e beijou no teatro um ator, que seria seu amante. Tal foi considerado uma infâmia, não tanto pela assunção da homossexualidade como pela exibição pública de sentimentos. O sucessor de Calígula, que acabou morto pela guarda pretoriana, foi o seu tio Cláudio. Tendo sido um bom imperador, cometeu a fraqueza suprema de se apaixonar pela mulher, a cativante Messalina, que lhe foi constantemente infiel. Segundo rumores de credibilidade questionável, seria ninfomaníaca e cruel. Acabou executada, com 23 anos, a mando de Cláudio, que a acusou de conspirar para o matar.
Deuses e imperadores Parte do erotismo que influenciou a Roma antiga inspirou-se em histórias mitológicas, umas criadas pelos próprios romanos, outras adaptadas de povos que os precederam, como os etruscos, os gregos e os egípcios. Os romanos adoraram deuses do amor erotizado, como Vénus e Cupido; deuses adúlteros, como Vénus e Marte; e deuses incestuosos, como Juno e Júpiter. Os deuses romanos não eram modelos de uma conduta moral superior. O que os distinguia dos homens eram a imortalidade e os poderes sobrenaturais. A partir de Augusto, os imperadores passaram a aspirar à divindade. Esta só seria alcançada após a morte, e teria de ser decretada pelo Senado. Ao contrário do que viria a acontecer com os cristãos, que só através da fé e das boas obras podem atingir a santidade, os imperadores
O PODER NA INTIMIDADE
JÚLIO CÉSAR (ditador 49 a.C. – 44 a.C.) Diz-se que teve uma relação homossexual com o rei da Bitínia 22 V I S Ã O H I S T Ó R I A
JÚLIA (31 a.C. – 14 d.C.)
TIBÉRIO (Imperador 14-37)
CALÍGULA (Imperador 37 – 41)
CLÁUDIO (Imperador 41-54)
A filha de Augusto tinha tantos amantes que o pai a desterrou para a ilha de Pandatária
Gostava de observar homens e mulheres a copularem, segundo o historiador Suetónio
Terá cometido incesto com as suas três irmãs, Agripina, Livilia e Drusila
Cometeu a fraqueza de se apaixonar pela mulher, Messalina, cruel e ninfomaníaca
©ANDREA JEMOLO/LEEMAGE/FOTOBANCO
O fauno e a bacante Um dos frescos do Gabinete Secreto
pagãos não precisavam de ser exemplos de bondade e amor pelo próximo para virem a ser venerados como deuses. Cleópatra e Júlio César formaram o casal mais conhecido da Roma antiga. Júlio César não terá sido um Adónis. Era calvo e tinha um queixo saliente mas, verdade ou mito, o seu desempenho sexual tornou-se lendário. Por sua vez, Cleópatra VII, rainha do Egito, da dinastia ptolemaica de origem grega,
seria uma mulher de beleza sedutora. Teve um casamento incestuoso com o seu irmão Ptolemeu XIII e depois perdeu-se de amores por Júlio César, um homem confiante e inteligente. Destes amores nasceu um filho, Cesarião, que, por provir de uma relação adúltera, nunca contou para os romanos. Depois do assassinato de Júlio César, Cleópatra manteve uma relação com Marco António, que se apaixonara loucamente por ela. Tiveram três filhos e suicidaram-se em simultâneo.
Tabernas e prostíbulos
NERO (Imperador 54 – 68)
MARCO AURÉLIO (imperador 161-180)
Terá mandado castrar um servo, para depois se casar com ele
Congratulou-se por não ter assediado os seus escravos
A lava do Vesúvio preservou para a posteridade vários ditos romanos, como aquele que afirmava que «O banho, o vinho e Vénus consomem o corpo, mas são a verdadeira vida». Em Pompeia havia inúmeras tabernas, que vendiam comida barata e vinho. Alguns autores de pouco crédito estimaram que a cidade teria uns 35 bordéis, misturados com casas respeitáveis. Nesses bordéis, a prostituição misturava-se com o jogo, e os preços estavam inscritos nas paredes. A prostituição feminina era tolerada,
mas as mulheres que a praticavam tinham de usar togas de homem. Apesar de reconhecidas, as prostitutas pertenciam à categoria dos infamis (infames), condição em que tinham por companhia gladiadores e atores. A prostituição não se circunscrevia aos bordéis. Havia prostitutas que tinham um trabalho aceitável, como vendedoras de flores, e que quando se proporcionava dormiam com homens a troco de dinheiro.
Paganismo e cristianismo Entre os séculos IV e VI d.C. a moral romana transformou-se. O cristianismo triunfava sobre o paganismo, e o seu único Deus, casto e estoico, impôs-se aos deuses pagãos, eróticos e hedonistas. As primeiras comunidades cristãs regeram-se pela austeridade e encorajaram a abstinência de comida e de sexo. São Jerónimo, um asceta místico, apontou a gula e o sexo como as maiores ignomínias, opinião corroborada por outros pregadores. Até ao século VI, tempo já posterior à queda do Império Romano do Ocidente, a homossexualidade masculina passou a ser crime, assim como os poemas obscenos, as danças sugestivas e as roupas que delineavam os contornos do corpo. O sexo deixou de ser um prazer e passou a ser encarado como uma função, a desempenhar de forma moderada e tendo a procriação como fito. Enquanto os romanos só eram julgados pelo que faziam em público, , os cristãos prestavam contas a um Deus omnisciente e omnipresente, que tudo via e de tudo sabia. * Lourenço Pereira Coutinho é investigador integrado do CHAM – Centro de Humanidades, FSCH, U. Nova VISÃO H I S T Ó R I A
23
SEXUALIDADE // ANTIGA ROMA
Cleópatra e Marco António
Devoradores de pérolas H ouve uma época da História de Roma, no século I antes de Cristo, em que a República mergulhou em terríveis e prolongadas guerras civis, das quais haveria de emergir uma outra forma de governo: o Império. Depois das lutas sociais, foi a vez de generais ambiciosos convocarem as suas legiões e combaterem entre si pelo poder, formando e desfazendo alianças conjunturais. Numa dessas lutas fratricidas, Otávio e Marco António atravessaram o mar Adriático para atacar, na Macedónia, as legiões de Cássio e Bruto, que esmagaram na batalha de Filipos. António quis em seguida castigar o Egito por ter enviado socorros a Bruto. O antigo país dos faraós era então um daqueles reinos helenísticos em que quase três séculos antes se fragmentara o império de Alexandre, O Grande, à frente do qual estava a rainha Cleópatra VII Filopátor, da dinastia dos Ptolemeus. Esta mulher famosa falava sete línguas para além do grego koiné
24 V I S Ã O H I S T Ó R I A
materno e foi a primeira governante ptolemaica a aprender o egípcio antigo. go. O seu nome ainda hoje é sinónimo de encanto feminino e, talvez mais do que isso, de atração fatal. Quando, em 41 a.C., Marco António chegou a Alexandria, capital dos Ptolemeus, e se deparou com a sedutora rainha de 28 anos, já ela era ao que hoje chamaríamos uma figura do jet set. Ilustrada, viajada, mundana, ana, ara tivera um relacionamento com Júlio César, a quem dera um filho, e visitara urra Roma, onde fora aclamada como uma deusa. Banhava-se em leite de burra para manter sedosa a pele e, no subconsciente, atribuímos-lhe as feições de Elizabeth Taylor, que a encarnou no filme homónimo de Joseph Mankiewicz estreado em 1963. No entanto, os bustos e outras representações que dela nos chegaram mostram-nos que os seus traços fisionómicos não eram tão regulares e que talvez o nariz pronunciado não fosse o menor dos seus encantos. António logo esqueceu o seu projeto vingativo, trocando-o de bom grado pelos prazeres a que, desbragadamente, se entregou na companhia da bela. Apostadores e gastadores inveterados, um dos jogos de estranha sedução a que ambos se entregavam era a disputa acerca do custo dos banquetes que mutuamente se ofereciam. Certo dia Cleópatra desdenhou de uma dispendiosa comezaina oferecida por António e garantiu que lhe serviria no dia seguinte um festim avaliado em dois milhões e meio de denários – talvez uns 50 milhões dos nossos euros, fazendo as contas aos salários médios de então e de agora. Posta a mesa, vieram os eunucos com os manjares e António ria-se da vulgaridade
GETTYIMAGES
daqueles pratos sem chama: colo de cisne, frutos do mar, talvez cordas vocais de aves canoras… O plat de résistance seria o último, e revelou-se tão pouco espetacular que o general continuou a rir daquela forma brutal e sacudida que herdara de Baco, o seu deus-guia. Era apenas uma taça de acetum aquele vinho azedo, quase vinagre, que os romanos absorviam como esponjas e que transportavam no estômago enquanto conquistavam o mundo. Deixou de rir quando Cleópatra anunciou que só ela experimentaria o prazer requintado de esvaziar a taça. taça Mas, Mas antes de a levar aos lábios carminados carminados, retirou do lóbulo da orelha um dos seus brincos de pérola e deixou-o tombar no líquido, onde em segundos se dissolveu como por magia. Bebeu então a pérola de 50 milhões de euros, tão rara e única como ela própria. Ganhou a aposta, como ganhou tudo na vida menos a felicidade. Estes generais romanos que viveram num tempo de ambição e corrupção indisfarçada não tinham descanso, e António empreendeu entretanto uma desastrada expedição contra os Partos, após a qual regressou para os braços da sereia do Nilo, que na verdade eram os quebra-mares de um porto traiçoeiro. Projetava fundar um império oriental cuja coroa colocaria na cabeça da amada, algo que Otávio, na distante Roma, explorou da melhor forma em proveito próprio excitando a ira dos concidadãos anónimos contra o ex-aliado político. E, disfarçando a rivalidade pessoal com António a coberto de uma guerra nacional, o austero mas ambicioso futuro imperador fez decretar uma expedição militar contra «aquela mulher que sonhava com a queda do Capitólio e a ruína do Império».
António e Cleópatra, à frente de uma armada e de um exército embarcado nas galeras, foram ao encontro das forças de Otávio a meio mei caminho, na Grécia. A frota dos amantes amant foi vencida perto de Ácio, no mar Jónico, Jónic e Cleópatra pôs-se em fuga arrastando consigo co um António psicologicamente dest destroçado. Otávio perseguiu-os e derrotou os restos re do exército do rival perto de Alexandria. Alexandria Cleópatra, por seu lado, ordenou a mort morte de todos os súbditos que lhe eram suspeito suspeitos e aumentou os seus tesouros já algo dilapid dilapidados com os bens das vítimas e dos templos que mandou pilhar. Munida destas riquezas, riquez tentou em vão negociar com o vencedor; venced depois planeou fugir para o Oriente, carr carregando de ouro os seus navios, mas estes foram for atacados pelos árabes no mar Vermelh Vermelho, o que a levou a abandonar o projeto. À beira do d desespero, mas sempre excessivos, Cleópatra Cleópa e António juraram então permanecer inseparáveis i na morte, depois de passarem entregues e aos prazeres os dias que lhes restassem. resta Ela dedicou-se ao estudo dos venenos e apurou que a mordedura da víbora-áspide era a mais indolor das formas de morte. morte Mesmo assim, escreveu ainda duas cartas ao a inimigo Otávio, propondo-lhe numa, pública, pú uma coroa e um cetro algures no Eg Egito e noutra, secreta, a entrega de António em troca da manutenção do seu próprio diadema diade real. O inflexível vencedor recusou amba ambas as propostas. A sereia, que contava 39 an anos nesse ano 30 a.C., tentou ainda seduzi-lo com os seus encantos, como fizera a César e a António, mas em vão. Para evitar a humilhação de ser exibida como troféu num desfile de vitória, só lhe restava suicidar-se. Antes, porém, convenceu António a fazer o mesmo, o que não foi fácil. Refugiou-se depois numa torre sem portas, fez os escravos içarem com cordas o corpo moribundo do amante, envergou vestes esplendorosas e fez-se morder pela áspide. Morreram juntos naquele túmulo eleito, ela serenamente por uma vez na vida, e ele fraco, decerto embriagado e desfeito em excessos de sangue, como sempre vivera. Luís Almeida Martins
VISÃO H I S T Ó R I A
25
SEXUALIDADE // BÍBLIA
Uma só carne
De que modo o sexo é tratado nesse eterno bestseller que é a Bíblia? Uma viagem pelo Antigo e pelo Novo Testamento
a tradição ocidental encaramos o universo de narrativas bíblicas com passividade e compreensão ou então, no lado oposto, com julgamento e preconceito e, na maioria das vezes, e em ambos os casos, com algum ou demasiado desconhecimento. Se optarmos por invocar a palavra «sexo», muitas serão as pessoas a dizer que tal não consta do livro sagrado que, há séculos e séculos, mantém a sua importância. Para a maioria, a questão central que implica uma não-atividade sexual prende-se com o dogma de Maria. Imaginamos a mãe de Jesus com uma vida sexual? Não. Acredita-se na imaculada conceção e tudo o que isso implica de sobrenatural, logo, de divino. Maria Teresa Horta publicou em 2016 um romance em forma de poema cujo título, Anunciações, devolvia a Maria a ideia de feminino, o prazer do corpo e da mente, a paixão. Ali, o anjo que anuncia a boa nova toma-se, contudo, de amores pela mãe do futuro salvador da humanidade e só os «espiões do Senhor» conseguem resgatá-lo de tanta entrega, deixando Maria sozinha, grávida, zangada com Deus. Ora, Deus, na Bíblia, zanga-se algumas vezes, é ciumento, juiz e carrasco; porém, imaginou que o Homem teria uma manifestação física que implicasse prazer, sendo, por isso, mais do que uma mera funcionalidade do corpo com intuito à reprodução da espécie. Veja-se em Génesis 2: 24 em que se assume que a criação de um casal é coisa boa e que homem e mulher se tornaram «uma só carne». Não se referem os putativos fi26 V I S Ã O H I S T Ó R I A
lhos do casal, tão-pouco se especifica o tipo de relação sexual que teriam, mas a imaginação também é parte fundamental da poética da Bíblia. Um pouco mais à frente (Génesis 1:27-28), para calar já quem possa encontrar-me em terreno incerto, temos então o «sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra!». Desta afirmação entusiasta não é negada a possibilidade de incluir deleite, ser sinónimo de intimidade. Claro que temos a questão da fidelidade e da «pureza» do leito conjugal (Hebreus 13:4) e da ideia de que uma união é um vínculo vitalício (em Mateus 19:4-6 escreve-se: «Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém separe»). Se considerarmos certa passagem (Coríntios 7:3-4) voltamos, mais uma vez, à ideia de que a união dos corpos, o sexo, é facto consumado e aceite: «O marido deve cumprir os seus deveres conjugais para com a sua mulher, e da mesma forma a mulher para com o seu marido. A mulher não tem autoridade sobre o seu próprio
“
Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém separe» Mateus 19:4-6
Adão e Eva O pecado Original visto por Rubens BRIDGEMAN IMAGES
N
Por Patrícia Reis*
“
Mas eu digo: Qualquer que olhar para uma mulher e desejá-la, já cometeu adultério com ela no seu coração Mateus 5:28
corpo, mas sim o marido.» Aqui, muitos de nós torcerão o nariz, mas não é caso para tanto, já que o texto prossegue: «Da mesma forma, o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim a mulher.» Podemos, à luz de hoje, questionar a construção da frase e o que ela comporta de potencial machismo, mas, de repente, há uma reviravolta. É consolador poder repetir que existe a reciprocidade de «autoridade», que o corpo dos amantes é entendido como território comum.
O prazer sexual A aceitação do prazer sexual é contemplada noutras passagens do livro, mesmo que, na moral acanhada de quem opta por interpretar o texto como base fundamentalista de um discurso conservador, obrigatoriamente machista e controlador, as palavras possam ser usadas como ferramenta de distorção. Assim, em Provérbios 5:18-19 é com um sorriso que lemos: «Alegra-te com a esposa da tua juventude. Gazela amorosa, corça graciosa; que os seios da tua esposa sempre te fartem de prazer, e sempre te embriaguem os carinhos dela.» Podemos duvidar da alegria do sexo na Bíblia? Não creio. A Bíblia e as suas narrativas é, ainda agora, um dos livros mais requisitados no mundo inteiro, um verdadeiro bestseller. Não é apenas a base fundadora de muitas tradições, da maneira como construímos uma sociedade (o mesmo VISÃO H I S T Ó R I A
27
sucede com o Corão): é também reflexo da humanidade. Nestas páginas vai o espectro emocional humano, o amor, o desejo, a zanga, a alegria, a conquista, a perversão, a maldade, a injustiça. É um tableau vivo das questões que tomavam de assalto os homens, à época da sua escrita (e sobre isto muito haveria a dizer), questões existenciais por um lado, e por outro do universo da logística, do desenho de uma ordem social. Não podemos ignorar a competência reguladora do livro sagrado e a conceptualização de uma vida em comunidade ideal, à imagem da vida de Jesus, assente em princípios de partilha, justiça, capacidade de ouvir o Outro, promovendo a amizade e recusando a corrupção, a riqueza desmedida, a perversidade de comportamentos. A Bíblia é, nesse sentido, um livro moral e moralista, contudo o sexo está presente e a alegria do mesmo não pode ser escamoteada, ou pode mas com algum esforço e uma mão-cheia de flexibilidade de interpretação.
Adultério e prostituição «Vocês não sabem que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei eu os membros de Cristo e uni-los-ei a uma prostituta? De maneira nenhuma! Vocês não sabem que aquele que se une a uma prostituta é um corpo com ela? Pois como está escrito: ‘Os dois serão uma só carne. Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele’.» Esta é uma passagem (Coríntios 6:15-17) que pode ser entendida como prenúncio de lei contra a prostituição, reflexo de como o adultério era então (e hoje) encarado («Não adulterarás», Êxodo 20:14) e, como é timbre da dimensão bíblica, a promoção do elo a Deus, a Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, (Coríntios 7:9) reconhece-se a denominada «fraqueza» humana, a tentação do prazer físico, a obtenção de prazer como parte integrante da vida: «Mas, se não conseguem controlar-se, devem casar-se, pois é melhor casar-se do que ficar a arder de desejo.» 28 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Regular a «imoralidade sexual» (Tessalonicenses 4:3-5) a partir da vontade de Deus é dominar a «paixão de desejos desenfreados, como os pagãos que desconhecem a Deus» (idem). E, com o poder que apenas as palavras possuem, a ideia de pecado progride e pecado é o que vai contra o que não é possível controlar, perspetivando assim as narrativas bíblicas e a sua influência ao longo dos séculos como regulador, como instrumento de poder. «Fuji da imoralidade sexual. Todos os outros pecados que alguém comete, fora do corpo os comete; mas quem peca sexualmente, peca contra o seu próprio corpo. Acaso não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo que habita em vós, que vos foi dado por Deus, e que vós não sois de vós mesmos? Vós fostes comprados por alto preço. Portanto, glorificai a Deus com o vosso corpo» (Coríntios 6:18-20). Poderemos afirmar que a glorificação do corpo é uma aproximação ao divino? Talvez. Ao fim de tantos séculos a discutir, a ler e reler a Bíblia, a traduzi-la com maior ou menor cuidado, a ideia de que o corpo é um templo, que deve ser tratado e protegido e entregue com sentido do amoroso a um Outro que pretendemos próximo é uma concretização atual, parte integrante do discurso de muitos pais face aos filhos
PHOTO © RAFFAELLO BENCINI / BRIDGEMAN IMAGES
SEXUALIDADE // BÍBLIA
e ao início da sua vida sexual. Não o farão invocando o texto sagrado? Não, muitos pais não irão fazê-lo na presunção dessa afirmação, mas sim com base no bom-senso. Outros pais existem que, impregnados de uma leitura mais rígida das narrativas bíblicas, constroem discursos e promovem comportamentos com base em regras, em princípios, em noção de pecado e no que significa ir contra o que foi estabelecido numa dimensão divina.
‘Virgem’ ou ‘jovem solteira’?
“
Alegra-te com a esposa da tua juventude. Gazela amorosa, corça graciosa; que os seios da tua esposa sempre te fartem de prazer, e sempre te embriaguem os carinhos dela Provérbios 5:18-19
As questões da tradução dos textos que compõem o livro sagrado, e que dão mote às religiões monoteístas – as que creem num só Deus e são abraâmicas (religiões que partem da Bíblia Hebraica, como são os casos dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos) – são complexas e alvo de discussão contínua. E as perguntas importam para a resolução de alguns mistérios e, ainda, para a interpretação correta dos relatos. Será que no grego koyné determinada palavra quereria dizer «virgem» ou «jovem solteira»? Se nos concentrarmos outra vez no episódio da Anunciação, para voltar ao dogma de Maria, acredito que fará toda a diferença se lhe atribuirmos a condição de uma pessoa jovem e solteira, comprometida
com José, não necessariamente virgem. «No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de David; e o nome da virgem era Maria (...)» (Lucas 1: 26). Pergunto eu: e se mudarmos a palavra «virgem» para a palavra «solteira», muda alguma coisa? Talvez. Da mesma maneira, há outra formulação no texto que tende a deixar espaço para dúvidas sobre o que resta da vida sexual da mãe de Cristo, preferindo muitos tradutores deixar no ar a ideia de que José não teve qualquer encontro com Maria, mantendo-se esta intocada. Outra interpretação é mais generosa para esta mulher de quem se sabe tão pouco e que representa, demasiadas vezes, o dever de silêncio, recato e serviço das mulheres: a de que José «só a conheceu» depois do nascimento do primogénito (na tradução de Frederico Lourenço percebe-se como o texto original em grego indica primogénito na presunção da existência de mais filhos). Assim, Maria não é assexuada ou imaculada, é também ela uma mulher com corpo, desejos, prazer, compromisso. Toda a história da pintura mostra uma Maria sem qualquer cariz sexual. No lado oposto está Eva, a demoníaca e tenta-
dora, alguém que seduz e que consegue insinuar-se: a mulher que representa o mal, a razão do pecado original.
Anunciação A cena fundadora da virgindade de Maria, na interpretação de Leonardo da Vinci
Contra a natureza É a partir do pecado original que a Humanidade, no seu livre arbítrio, tudo pode e, por isso mesmo, importa «legislar«, conferir às comunidades um sentido de comportamento normalizador. O sexo é fruto de perturbações diversas, de conflitos e de tomadas de poder; portanto, os textos bíblicos nunca poderiam ignorar o tema. Há até um esforço para definir, em concreto, o que é de bom-tom e o que está totalmente em oposição ao que se espera de alguém que quer viver no seio da comunidade cristã: «Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e trocaram a glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes e répteis. Por isso Deus os entregou à impureza sexual, segundo os desejos pecaminosos do seu coração, para a degradação do seu corpo entre si. Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram a coisas e seres criados, em lugar do Criador, que é bendito para sempre. Amém. Por causa disso Deus os entregou a paixões vergonhosas. Até as suas mu-
lheres trocaram as suas relações sexuais naturais por outras, contrárias à natureza. Da mesma forma, os homens também abandonaram as relações naturais com as mulheres e inflamaram-se de paixão uns pelos outros. Começaram a cometer atos indecentes, homens com homens, e receberam em si mesmos o castigo merecido pela sua perversão» (Romanos 1:22-27). O desejo, o prazer, o sexo como adverso à norma que se quer isenta de perturbações da ordem física («Mas eu digo: Qualquer que olhar para uma mulher e desejá-la, já cometeu adultério com ela no seu coração», Mateus 5:28) e, ainda, a construção de uma moral através da enumeração de casos específicos (traições, relações com animais, relações com mulheres menstruadas etc., sugiro consulta Levítico 18: 6-23). O politicamente (in)correto é uma invenção da Bíblia? Sim, mesmo até no que toca ao sexo. * Patrícia Reis é escritora VISÃO H I S T Ó R I A
29
SEXUALIDADE // IDADE MÉDIA
NORMA E TRANSGRESSÃO A partir do fim da Antiguidade, o corpo passou a representar um perigo para a moral cristã e a própria paixão conjugal excessiva podia tornar-se luxúria
s discursos sobre sexualidade na Idade conotação negativa, em amplo contraste com Média advêm, sobretudo, de três regisa profusão dessas figurações na Antiguidade. tos diferenciados. O primeiro, e talvez O corpo cristão é um corpo completamente vestido, simbolicamente encerrado e protegido o mais estruturante, é o da Igreja, no afã desta instituição, sob a primazia do das tentações da carne, em contraposição aos papado, em delimitar uma república períodos anteriores. Esta nova perceção do cristã que conformasse um espaço homogéneo corpo sexualizado remete para uma particular de comuns sistemas verbais, simbólicos, de noção de pudor. Os banhos públicos – sobretuatitude e de ação. Paralelamente, as monardo comuns na zona mediterrânica, enquanto quias empenham-se na concretizaespaços privilegiados de sociabilidação desses vetores ideológicos nos Barregania de, desde, pelo menos, os romanos e respetivos territórios. De um ponto passando pelos muçulmanos – consViver com de vista normativo ou judicial, a se- alguém sem ser tituir-se-ão como objeto de vigilância xualidade emerge tanto na legislação casado; mancebia e de constantes críticas moralizantes, monárquica como na casuística da enquanto sinónimo de devassidão e justiça, atestando, neste último caso, as viluxúria, acabando por resultar no seu gradual vências do quotidiano. Este último aspeto desaparecimento. projeta-se igualmente no registo literário em O corpo desnudo representa, pois, um perigo para a moral cristã. De resto, é na antinomia sentido lato. A poesia trovadoresca no reino português convoca esta particular ação huentre corpo e alma que a Igreja estruturará a sua mana, tanto numa idealização erótica, que reforma, no século XI, numa pretendida depureflete as dificuldades da nobreza no acesso à ração de costumes do mundo clerical. Por um mulher, como numa mais desapiedada crítica social dirigida a indivíduos concretos e às suas O corpo cristão transgressões sexuais.
A ‘sanha’ de Deus O pecado original e a queda da humanidade conformaram, necessariamente, um aspeto negativo da sexualidade para os teólogos cristãos. O corpo nu, cuja reprodução exclusivamente se remetia para a representação de Adão e Eva, adquiriu concomitantemente também uma 30 V I S Ã O H I S T Ó R I A
é um corpo vestido, simbolicamente protegido das tentações da carne, em contraposição aos períodos anteriores
‘LE LIVRE DE VALERE MAXIMEN’, SÉC. XV/BIBLIOTECA ARSENAL/LEEMAGE
O
por Maria Filomena Lopes de Barros*
Uma 'casa de banhos' Um cortesão aponta a um rei um destes locais, onde casais despidos comiam e bebiam enquanto se banhavam
VISÃO H I S T Ó R I A
31
SEXUALIDADE // IDADE MÉDIA
lado, afirmando a superioridade do celibaposições consideradas contranatura, ao to obrigatoriamente aplicado ao conjunto incesto, polução noturna, masturbação dos clérigos, numa clara separação do ou homossexualidade, tanto feminina mundo laico e como penhor descomo masculina. A partir do sécusa mesma supremacia. Por outro, Rufiões lo XII, os Manuais de Confessores na luta incessante para erradicar Proxenetas contribuem para a publicitação a concubinagem do grupo, prática desta pretendida normalização, bastamente interiorizada e dificilmente fornecendo conselhos práticos para os ultrapassada no devir dos tempos. administradores da confissão, os quais eram igualmente propalados nos disDe facto, o cristianismo trouxe para o centro do debate a contenção sexual, até cursos catequéticos e pastorais e na leentão propalada e seguida por franjas migislação canónica. noritárias da sociedade pagã, difundindo Paralelamente ao discurso eclesiástico, as a abstenção clerical como novo modelo a monarquias concretizaram, sob o ponto seguir. Mas, para os laicos, a propagação da espécie constituía um complemento indispensável a esta divisão: «Crescei e multiplicai-vos.» O controlo impunha-se, pois, na normalização das práticas O adúltero é sexuais, apenas entendidas como legítitambém aquele mas dentro do quadro de um casamento que ama com santificado, monogâmico e indissolúvel. Presente neste contexto, a moderação demasiada paixão sexual constituía uma das temáticas cena sua mulher» trais do discurso. Como afirmava Santo Santo Agostinho Agostinho, «o adúltero é também aquele que ama com demasiada paixão a sua mulher». O matrimónio poderia assim incorrer na luxúria, considerada como pecado mortal, devendo homens e mulheres conseguir manter o controlo da razão e moderar-se no prazer sexual. De facto, o casamento visava tão-somente a procriação, pelo que um conjunto de constrangimentos pesava sobre o casal: a interdição de relações sexuais em determinados períodos (antes do Natal, Páscoa e Pentecoste, nos períodos de menstruação das mulheres, durante a gravidez e no período pós-parto) e a própria posição do ato, com a mulher deitada de costas e o homem sobre ela. De resto, à mulher incumbia ser totalmente submissa e não tomar qualquer iniciativa nesta matéria, privilégio absoluto do homem. Deste quadro, a Igreja sublinhava também as infrações, que se constituiriam como pecados, desde o não acatamento dessas regras, nomeadamente através de 32 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ST AGUSTINE, C. 1319/SIMONE MARTINI/BRIDGEMAN IMAGES
“
de vista legislativo, uma série de medidas contra os comportamentos transgressores, visando um enquadramento social conforme ao quadro ideológico propugnado pela Igreja – o pecado seria punido. Neste sentido, impõem-se normativas para a definição do casamento, ainda fluido e que não correspondia totalmente às especificações eclesiásticas. D. Dinis determinou, por exemplo, os requisitos do casamento de pública fama ou de juras, particularmente vigente nas classes populares, que correspondia a uma coabitação sem bênção eclesiástica. De resto, uma legislação ampla abarcava as principais proibições decretadas pela Igreja. O matrimónio monogâmico foi delimitado, pela proibição do adultério (a pena aplicada à mulher seria a morte, se não se afastasse do parceiro no período de dois meses) e da barregania dos homens casados, sujeitos a coimas. No caso da nobreza, leis de D. Afonso III e de D. Dinis interditavam que os ricos homens levassem «soldadeira nem puta» para os mosteiros, sendo proibida também a presença das barregãs na corte. O conjunto da legislação englobava outros aspetos díspares, implicando a concomitante penalização, tais como a violação e o rapto das mulheres, o abuso do género feminino pelos oficiais de justiça ou a barregania dos clérigos. Neste último aspeto, contudo, o comum objetivo da Igreja e do rei no tocante ao afastamento desse grupo da prática sexual complementa-se intrinsecamente. A Igreja julgaria o clérigo; a lei geral incidia sobre o castigo dessas barregãs. A legislação foi suscitada pelos representantes populares, ao queixarem-se, nas Cortes de Braga de 1387, de que os clérigos traziam as suas barregãs «vestidas e garnidas tão bem e melhor que os leigos trazem suas mulheres, por a qual razão muitas mulheres deixavam de tomar maridos lídimos», o que, para mais, alegavam, minava a moral dominante, pois os leigos «perdiam devoção nas igrejas». Um conjunto de legislação régia é par-
CANTIGAS DE SANTA MARIA, DE AFONSO X/BRIDGEMAN IMAGES
Cenas da vida medieval Um casamento e a chegada de um mensageiro, segundo uma iluminura castelhana das Cantigas de Santa Maria, de Afonso X
cebia e assim viviam», afastando dessa ticularmente dirigida aos intermediários da economia do sexo, os rufiões (proforma os homens do pecado. Necessixenetas) e os/as alcoviteiros/as, numa tavam, contudo, de um homem que as similitude com o que acontece no resto representasse para pagar os tributos que da Europa. Os primeiros, juntamente impendiam sobre a comunidade, o que com as prostitutas que exploravam, senenhum varão ousava fazer, por medo riam castigados com açoites de ser acusado de rufião. Por públicos e degredados do reiPutarias esse motivo solicitavam algum no. Os últimos (os alcaiotes e as «remédio» a esta situação, o Bairros onde se praticava a alcoviteiras), que em suas casas que o rei deferiu autorizando a prostituição; permitiam que as mulheres fiexistência dos referidos rufiões mais tarde, foi zessem «mal de seus corpos», judeus. usada a palavra incorreriam na pena de morte. O documento ilustra ca«mancebias» A primeira lei, contudo, seria balmente a perceção sobre a atenuada por pedido da comuna dos juprostituição como mal menor, que, não se limitando aos judeus, se estende ao deus de Lisboa, em maio de 1488. Aleconjunto da sociedade medieval. As prosgavam as suas autoridades que sempre tinham existido na judiaria da cidade titutas são reconhecidas enquanto tal «judias mundanas que faziam sua mane não penalizadas pela sua prática (ao
contrário dos proxenetas e dos/as alcoviteiros/as), excetuando apenas os casos de uma interação interconfessional, com muçulmanos ou judeus, que conduzia a uma inevitável pena de morte. Santo Agostinho define bem essa perceção generalizada: «A prostituta na sociedade é como o esgoto no palácio. Se se retirar o esgoto, o palácio inteiro será contaminado.» Esta economia do sexo, necessariamente menosprezada mas consentida, expressa-se no apartamento em bairros próprios – designadas por «putarias» em período mais pretérito e posteriormente por «mancebias» – e numa legislação sobre o vestuário, impeditiva de ostentação e de luxo, determinando quais os panos a ser confecionados e quais os ornamentos interditos. Os costumes locais imporiam outros sinais distintivos a estas mulheres, como é o caso de Lisboa, em que as prostitutas teriam de envergar véus «bem açafroados» para se distinguirem «das outras mulheres honestas e honradas». Finalmente, a sodomia, considerada como o «mais torpe, sujo e desonesto pecado», era penalizado pela morte pelo fogo, para que do corpo do infrator e da sua sepultura não houvesse memória. Em Portugal existe pelo menos uma notícia da execução desta pena, aplicada em 1343 a um muçulmano, na região de Amarante. É de salientar que a ordenação se refere apenas ao género masculino, ignorando a homossexualidade feminina. Não obstante, sob esse conceito ela é expressamente referida no Catecismo Pequeno, de Diogo Ortiz (impresso em 1504), que definia sodomia enquanto relações de «varão com varão» e de «mulher com mulher».
Desvios e transgressões As expectativas normalizadoras que advêm da ideologia da Igreja como da normativa régia não conseguem, contudo, dominar as práticas sexuais na vivência medieval, como, de resto, nos períodos posteriores. A complexidade humana determina escolhas que, nesta como noutras VISÃO H I S T Ó R I A
33
SSEXUALIDADE E X UA L IDA DE //// IDADE IDADE MÉDIA MÉ DI A
Padres abstinentes O celibato sacerdotal nem sempre existiu
BRIDGEMAN IMAGES
A proibição de os sacerdotes da Igreja Católica casarem só foi imposta em 1123, embora continuem a ser admitidas algumas exceções. Antes, os padres podiam contrair matrimónio ou ter uma vida sexual semelhante à dos outros homens. No entanto, a sua abstinência já fora recomendada na viragem do século III para o século IV pelo Concílio de Elvira. Pouco depois, o I Concílio de Niceia decretou que os clérigos não coabitassem com mulheres. Seguiram-se várias leis pró-celibato. Nos meados do século V, o Concílio de Calcedónia proibiu o casamento a monges e a virgens consagradas (clero regular). Mas, depois disso, chegou ainda a haver papas casados.
Um casamento A cerimónia matrimonial segundo uma iluminura do século XII
matérias, se afastam substancialmente dos discursos de poder. S. Vicente Ferrer (1350-1419) ilustra claramente esta asserção, numa crítica sem dúvida exacerbada ao seu tempo: «Hoje a lei não é obedecida. [Os homens cristãos] querem experimentar tudo: muçulmanos e judeus, animais, homem com homem: não há limite.» No reino português, cuja realidade não difere dos demais territórios, dentro da poesia trovadoresca, as Cantigas de Escárnio e Maldizer exemplificam cabalmente muitas dessas transgressões que cruamente ridicularizam. Veja-se, por exemplo, o caso da homossexualidade feminina, imputada a uma Maria Mateus («Mari’Mateu, Mari’Mateu,/ tam desejosa ch’es de cono como eu») ou da masculina, no caso de Álvaro Rodrigues, na sua relação para mais com um mouro muito 34 V I S Ã O H I S T Ó R I A
jovem («d’Alvar Rodriguiz punha de saber/ se fode já esse mouro tam moço»). Entre outros aspetos, destaca-se também a questão da masturbação, dirigindo-se a uma abadessa a oferta de «quatro caralhos franceses e dous aa prioressa». O quotidiano medieval atesta, de resto, tanto um quadro de desvios como de uma infração tolerada dos mesmos, através das cartas de perdão outorgadas pelo soberano. Por estas perpassa toda uma miríade de transgressões sexuais, perdoadas a troco de uma quantia monetária ou, em menor grau, do degredo. Casos de incesto, violação, adultério, alcovitagem, mancebia com clérigos (muitos…), prostituição com rufião ou, mais excecionalmente, sodomia, desvelam a complexa realidade das práticas sexuais consideradas desviantes em função de
um padrão ideologicamente construído. De resto, uma outra tensão perpassa a sociedade medieva: a dos contactos sexuais interconfessionais, que particularmente se define a partir do 4.º Concílio de Latrão (1215). Em qualquer caso, na Europa como na Península Ibérica, a pena de morte aplicar-se-ia aos infratores, numa fronteira rigorosamente delimitada pelos perigos da contaminação entre as várias comunidades religiosas em presença. Mas o rigor da lei é, como noutros casos, ultrapassado pelo perdão régio. Contactos sexuais entre cristãos, judeus e muçulmanos, casados ou solteiros, desfilam nessa tipologia documental, eximindo os indivíduos da severidade da pena imposta. De resto, na própria base da pirâmide social inscrevem-se as numerosas relações sexuais com as mouras cativas (com cristãos ou com judeus), os elementos mais vulneráveis no contexto sociológico em causa, enquanto mulheres e escravas, representando, de facto, o derradeiro gesto colonizador de todo este processo. O sexo representa também uma expressão de poder. * Maria Filomena Lopes de Barros é professora auxiliar do Departamento de História da Universidade de Évora
Pedro e Inês
Amantes inconvenientes A associação dos nomes Pedro e Inês soa tão bem ao nosso ouvido como a de Romeu e Julieta. Pedro ainda era infante e reinava o pai, Afonso IV, quando, em 1339, casou com a nobre castelhano-aragonesa Constança Manuel. O problema foi que no séquito da futura rainha de Portugal vinha uma bela dama, bastarda de um nobre galego, chamada Inês de Castro, por cujos encantos Pedro se deixou seduzir. Como o romance fosse vivido à vista de toda a gente, Constança convidou Inês para madrinha do primeiro filho que teve de Pedro, o que, segundo os costumes da época, tornava incestuosas quaisquer relações de caráter amoroso entre os dois apaixonados. Houve quem atribuísse a morte prematura da criança a obra dos amantes. Constança não tardaria a falecer também, quando dava à luz o futuro rei D. Fernando, deixando Pedro e Inês livres para viverem a sua paixão, da qual haveriam de nascer quatro filhos. É mesmo provável que se tenham casado secretamente. Dava-se entretanto o caso de os irmãos da beldade serem poderosos e influentes nobres castelhanos, o que poderia pôr em causa a legitimidade sucessória do pequeno Fernando. A pretexto desse risco, o ainda rei Afonso IV, que já em vida de Constança ordenara um exílio temporário de Inês, decidiu então – pressionado por um setor da nobreza – mandar assassiná-la. E, em 1355, a bela galega foi degolada num dia em que Pedro andava à caça. Ao saber da notícia, o infante foi tomado de uma fúria daquelas a que os Antigos chamariam «divina». Dois anos depois, quando já rei, após a morte do pai, mandou arrancar o coração aos carrascos da amada, cujo cadáver – diz-se – teria feito desenterrar e coroado rainha de Portugal. O tétrico episódio da «rainha morta», glosado por várias literaturas europeias, não tem, porém, grande credibilidade, devendo tratar-se de uma efabulação de finais do século XVI, posterior ao aparecimento das Trovas à Morte de Inês de Castro
de Garcia de Resende, à inclusão por Camões do episódio da bela Inês n’Os Lusíadas e à representação da tragédia de António Ferreira A Castro. Como nasceu então essa crença? O responsável parece ter sido Manuel Faria e Sousa, um estudioso português do tempo dos Filipes, que vivia em Madrid e escrevia em castelhano. Diz ele: «Mataram-na e o príncipe não deixou de amá-la morta. E assim, logo que morreu o seu pai e ele empunhou o cetro, fez desenterrar D. Inês e colocá-la num trono, onde foi coroada como rainha, e ali fez com que os seus vassalos beijassem aqueles ossos que tinham sido umas belas mãos, publicando primeiro com juramentos e outros atos solenes que tinha sido sua legítima mulher.» E acrescenta: «Temos em nosso poder a cópia do instrumento público que mandou fazer de tudo isto e se conserva no arquivo real.» Trata-se da chamada Declaração de Cantanhede. Do que não há dúvida é de que D. Pedro fez transladar com pompa os restos da amada do Convento de Santa Clara, em Coimbra, para um belo túmulo gótico do Mosteiro de Alcobaça, ao lado do que destinara a si próprio, conjunto que ainda hoje podemos admirar. Inês de Castro não terá sido a única paixão do excessivo D. Pedro, que segundo parece era bissexual. Conta Fernão Lopes que o arrebatado soberano teve uma assolapada paixão pelo escudeiro Afonso Madeira, ao qual «amava mais do que se deve aqui dizer». Como este tivesse um caso com uma certa Catarina Tosse, o rei «mandou-lhe cortar aqueles membros que os homens em maior apreço têm, de modo que não ficou carne até aos ossos que tudo não fosse cortado». O pobre Afonso, ainda segundo Lopes, foi tratado, «curou-se, engrossou nas pernas e no corpo e viveu alguns anos engelhado de rosto e sem barba e morreu depois de sua natural morte». Esta história pouco conhecida complementa a outra, muito divulgada e glosada. Luís Almeida Martins
VISÃO H I S T Ó R I A
35
As que esperavam pelos cruzados
Anos a fio aguardando o regresso do marido da longínqua Terra Santa quase sempre davam azo a mal-entendidos e outros episódios picantes
E
por Luís Almeida Martins
ra uma vez um barão escocês, já entrado em anos, que escolhera para esposa uma dama bastante mais nova – o que era, aliás, frequente. Mas, ou porque o apelo da cruzada fosse muito forte nesse piedoso século XII, ou porque o incomodava a impossibilidade de satisfazer plenamente os desejos da jovem, poucos meses depois do casamento decidiu abalar para a Terra Santa, deixando a companheira entretida a fiar junto da lareira, num canto da velha torre perdida nas colinas do condado de Peebles, perto da nascente do Tweed. Quando voltou, passados sete ou oito anos, teve a surpresa de deparar com a solidão do gélido lar e da triste donzela atenuada pela presença de um terceiro – e barulhento – elemento que tagarelava muito e tratava a castelã por mãe. O barão teria gostado de tratar o rapazito por filho, mas a idade deste não batia certo com a data da sua partida para além-mar. Consultou, provavelmente, físicos, bruxos, magos e outros especialistas, acabando afinal por optar pelo mais simples: pedir à mulher que lhe explicasse o mistério. Esta, que certamente já esperava a pergunta, começou por verter a torrente de lágrimas que armazenara para tal ocasião, e depois contou que certo dia em que passeava sozinha pelas brumosas colinas onde nasce o Tweed viu elevar-se das águas uma forma humana que se apresentou como sendo o génio tutelar do 36 V I S Ã O H I S T Ó R I A
rio e que logo a seguir, se tornou – «a bem ou a mal» – o pai da irrequieta personagem que tanto surpreendera o barão no seu regresso a casa. Como escreve Walter Scott, que desencantou esta história nos anais do seu país, «poucos contemporâneos do cavaleiro teriam acreditado em tal narrativa, mais própria do tempo de Homero, mas o esposo era velho e tinha a cabeça enfraquecida, ao passo que a dama era jovem e bela e possuía parentes fortes e belicosos (os Fraser, ao que parece), e o barão estava farto de combates na Terra Santa; em resumo, acreditou ou fingiu acreditar na aventura e aceitou de bom grado a criança que a sua mulher e o Tweed lhe ofereciam». A verdade é que o pimpolho, que recebera mesmo o nome de Tweed, veio a ser o herdeiro do barão. Que se saiba, nunca teve irmãos, pelo menos por parte do pai, que morreu incapaz de, como escreve o nosso autor, pai do Romantismo, «manter o berço em movimento».
O regresso de Moringer Há uma história alemã do género desta, mas com mais peripécias. O mesmo Walter Scott foi encontrá-la num romanceiro publicado em 1807 em Berlim. A balada em questão refere-se, tal como a história do Tweed, a um acontecimento do tempo das Cruzadas. Vamos a ela. O nobre Moringer, poderoso barão germânico, decidiu um dia empreender
uma peregrinação à terra dos cristãos de S. Tomé, ou seja, à costa indostânica do Malabar, onde segundo a tradição o referido apóstolo terá exercido atividade missionária no século I d.C. e onde existe uma antiga comunidade cristã, muito anterior à chegada dos portugueses. Antes de se meter ao caminho, incumbiu o camareiro de guardar durante sete anos o seu castelo, as suas terras e, é claro, a sua dama. O honesto funcionário, homem já idoso e decerto prudente, achou que as terras e o castelo não constituíam problema, mas que sete dias, e não sete anos, seria o prazo máximo pelo qual se responsabilizaria pela fidelidade de uma dama. O barão poderia ter imposto a sua vontade, mas, dada a delicadeza do assunto, achou preferível encarregar o escudeiro da missão que primeiro reservara ao camareiro. O alvo da segunda escolha aceitou. Passaram-se sete anos menos um dia e uma noite. O barão dormia uma noite ao ar livre, em terra estrangeira, quando uma voz lhe soprou em sonhos ao ouvido: «São horas de acordares: a tua dama e as tuas terras estão prestes a mudar de senhor.» Aflito, o imprudente Moringer terá feito logo uma oração a S. Tomé, e este cumpriu o milagre de o transportar num ápice aos seus domínios. Lá estava o moinho, e ao fundo o castelo...
Histórias como estas abundam e são todas sexistas, mas na realidade muitas mulheres desempenharam papel importante e ativo nas Cruzadas
GETTYIMAGES
SEXUALIDADE // IDADE MÉDIA
ver o símbolo da antiga aliança, gritou «Moringer está aqui» e desatou em pranto. Vá lá saber-se se chorava de alegria ou de dor, quando jurava que nunca esposa tinha sido mais fiel. Faltavam alguns minutos para a meia-noite, e os sete anos não se tinham, pois, escoado ainda. Foi então que Marstetten avançou uns passos e, ajoelhando aos pés de Moringer, lançou por terra a sua espada e falou assim: «A palavra e a fé de um cavaleiro foram violadas; aqui tendes, senhor, a espada e a cabeça de um vassalo.» Moringer sorriu e respondeu: «Aquele que percorre o mundo durante sete anos recolhe sabedoria; a minha filha tem agora 15 anos e dizem-na doce e bela; nomeio-a minha herdeira e substituirá a esposa que perdeis.»
TARKER / BRIDGEMAN IMAGES
Sexismos
A fiar e a cozinhar Assim era suposto ocuparem o seu tempo as virtuosas esposas dos «cavaleiros da cruz»
O barão pediu ao moleiro que lhe desse notícias do local. O outro respondeu que nada de novo havia, a não ser que o castelão tinha morrido em terra estrangeira e que a sua dama ia casar-se com o nobre Marstetten. Em sobressalto, o «morto-vivo» foi bater à porta do castelo, onde os guardas não o reconheceram, e suplicou que o deixassem entrar. Estes começaram por recusar, mas a dama, informada do que se passava, ordenou que deixassem passar o estranho. Lá dentro decorriam os festejos da boda. Moringer, incógnito e silencioso, sentou-se entre os convivas, e assim se passou o dia.
Porém, pouco antes de a noiva se retirar para o quarto nupcial, um dos convidados disse alto e bom som: «Há um costume antigo que impede que um conviva passe a noite sob teto alheio sem que antes faça ouvir a sua voz.» Assim, instado a quebrar o persistente silêncio, o incógnito senhor das terras entoou então uma balada em que evocava o drama de um cruzado que regressava a casa velho e triste. Comovida por estas dolorosas recordações, a dama fez-lhe servir uma taça de vinho e ele, depois de a ter esvaziado, depôs-lhe no fundo o anel nupcial que trazia consigo e mandou restituí-la à castelã. Esta, ao
Semelhante, embora com recortes mais violentos, é a história do cruzado inglês sir William Bradshage e da sua esposa lady Mabel de Haghe. Uma tradição de incontestável veracidade assegura que, durante a ausência do marido, a dama se casou com um cavaleiro galês. No regresso, sir William veio pedir esmola a lady Mabel, que o reconheceu e se desfez em lágrimas. Ao ver isto, o segundo marido maltratou-a e sir William afastou-se e deu-se a conhecer aos seus vassalos. O cavaleiro galês achou prudente pôr-se em fuga, mas sir William perseguiu-o e matou-o. O confessor de lady Mabel deu-lhe como penitência ir todas as semanas descalça até um determinado cruzeiro e a infeliz acabou os seus dias desprezada pelos nobres e conhecida simplesmente por Mab. Histórias destas abundam e, claro, todas são sexistas. Em boa verdade, muitas mulheres desempenharam papel ativo nas Cruzadas e algumas, como Leonor de Aquitânia ou Margarida de França, tiveram papéis de protagonistas. Mas a ideia da mulher passiva e expectante, eventualmente punida, que nos legou a cultura popular é a que predomina. VISÃO H I S T Ó R I A
37
SEXUALIDADE // ADULTÉRIO
Os amores dos reis
De moças de varrer o paço a damas da corte, passando por freiras ou atrizes, entre tantas outras, são incontáveis as mulheres que passaram pelo leito dos reis de Portugal
vida afetiva dos reis pode parecer, à primeira vista, um assunto de menor importância. Mas não o é, principalmente no caso da monarquia portuguesa, onde relações ilícitas dos monarcas deram origem a uma nova dinastia, a de Avis, e a uma das principais casas nobiliárquicas, a de Bragança. Os casamentos dos reis eram, acima de tudo, um assunto de Estado. Tratava-se de opções diplomáticas, políticas e económicas do reino e as vontades do coração ficavam arredadas destas escolhas. E isto era importante. Os monarcas que optaram por seguir as suas próprias vontades enfrentaram resistências na corte, sobretudo quando ficavam em risco as prerrogativas e o poder da nobreza. No reinado de D. Afonso IV (1325-1357), o casamento do futuro D. Pedro I com D. Inês de Castro foi encarado como um perigo para o reino. No ano em que D. Pedro se casou com a amante, em 1354, o irmão de D. Inês, Álvaro Perez de Castro, «ofereceu» o trono castelhano ao infante D. Pedro. A ideia era afastar o monarca castelhano, assumindo D. Pedro e D. Inês o trono de Castela. Ora, isto implicava uma grande ascensão da linhagem dos Castro, o que hipoteticamente poderia ameaçar os nobres portugueses e os seus interesses, já que a própria sucessão à coroa de Portugal poderia ficar comprometida. Os casamentos eram, portanto, um assunto de Estado. Contudo, se os afetos eram secundários, nem por isso deixa38 V I S Ã O H I S T Ó R I A
vam de existir. E, naturalmente, nasciam assim relações extraconjugais, algumas delas pré-matrimoniais, umas resultado de encontros fortuitos outras mais duradouras.
Feitiços para engravidar Fossem elas moças de varrer o paço, damas da corte, freiras ou atrizes, algumas destas sedutoras mulheres exerciam sobre os monarcas um tal fascínio que alguns acreditavam estar enfeitiçados. O papa Inocêncio III chamou «feiticeira» a D. Maria Pais, pelo encantamento com que prendia D. Sancho I, que todos os dias a visitava.
E as rainhas? Esperava-se que as rainhas fossem um modelo de virtude, mas sobre algumas recaíram dúvidas quanto a possíveis adultérios, como D. Dulce, mulher de D. Sancho I, D. Isabel, mulher de D. Afonso V, e D. Leonor Teles, mulher de D. Fernando. D. Carlota Joaquina foi acusada de infidelidades várias, que colocaram em dúvida a paternidade de D. Miguel. João dos Santos, almoxarife da Quinta do Ramalhão, ou D. Pedro Meneses Coutinho, 6.º marquês de Marialva, foram apontados como presumíveis pais de D. Miguel. O envolvimento íntimo da rainha D. Maria Pia com Tomás Sousa Rosa foi muito comentado, inclusive entre os membros da família real, mas não há provas da existência da ligação.
TERREIRO DO PAÇO NO SÉC. XVII/ DIRK STOOP/MUSEU DE LISBOA/CML/EGEAC
A
Por Joana Pinheiro de Almeida*
Umas houve que recorreram mesmo a feitiços para garantir a estima do amado e tentar engravidar. Sirva de exemplo o caso de D. Pedro II (1683-1706), que teve muitas ligações extraconjugais. Aos 15 anos, manteve uma relação íntima com D. Francisca Botelha, dama esta que recorreu a uma feiticeira para garantir que ele não se afastaria dela. Uma vez, tirou uma fita de uma carapuça do infante e entregou-a à feiticeira. Esta deu-lhe muitos nós e disse à dama para a meter
O Terreiro do Paço antes do terramoto de 1755 O Paço da Ribeira foi, durante dois séculos e meio, cenário de ostentação mas também de escândalos
entre os colchões da cama garantindo-lhe que com isso ficaria grávida de D. Pedro. Outro dos feitiços consistiu em reunir vários objetos Comendadeira e dizer «eu te embuço eu te rebuço com o buço Religiosa de convento que do lobo, com o osso do tinha comenda ou homem morto, com o herdade pão da forca e corda do enforcado para que tu infante D. Pedro andes a meu mandado, tu me digas o que souberes, tu me dês quanto tiveres, tu me ames mais que a todas as
mulheres, todas quantas vires te pareçam burras velhas, só eu te pareça uma dama bela».
Casos de fidelidade Mas na História de Portugal, reis houve que parece terem desenvolvido cumplicidade e estima pelas mulheres legítimas, como D. Duarte e D. Leonor ou D. Maria I e D. Pedro III. Para outros, não se conhecem amantes. Embora isso não signifique que não as tenham tido, a probabilidade terá sido de facto pequena, como nos ca-
sos de D. Afonso IV ou D. Afonso V. Mas, em contrapartida, muitos houve que se destacaram pela sua intensa fogosidade. As mais importantes relações são aquelas que se denunciam quando nasce o fruto desses amores ilegítimos. Das mães, por vezes pouco mais do que o nome ficou registado para a História. Se pouco se conhece sobre a amante de D. Pedro I (reinado de 1357 a 1367) Teresa Lourenço, a verdade é que desempenhou um papel fundamental para o reino: foi mãe de D. João, mestre de Avis, um filho ilegítimo VISÃO H I S T Ó R I A
39
‘RELIGIOSA NUM CONVENTO’, DE CARL KATHAN, 1855/PALÁCIO NAC. DA PENA/DGPG
Os conventos foram usados para encontros dos reis com as amantes. O de Odivelas está ligado a D. Dinis e a D. João V, separados no tempo por 400 anos
D. JOÃO V E A BATALHA DE CABO BATAPÃO, 1717/DOMENICO DUPRÀ/ MUSEU NACIONAL ARTE ANTIGA
SEXUALIDADE // ADULTÉRIO
D. João V Teve muitas amantes, mas a mais famosa foi Madre Paula, para quem mandou construir uma casa perto do convento
que veio a tornar-se rei de Portugal após a crise de 1383-1385, o que constitui um caso único. O rei da Boa Memória (reinado 1385-1433) teve uma relação pré-matrimonial com Inês Pires, a qual terá terminado com o casamento do monarca, altura em que Inês Pires entrou para o mosteiro de Santos, onde foi comendadeira. Destes amores nasceram dois filhos: D. Afonso, 1.º duque de Bragança, uma das mais importantes casas nobiliárquicas de Portugal, e D. Beatriz, condessa de Arundel, em Inglaterra.
Encontros no convento Célebre pelas suas deambulações noturnas, dos 44 anos de casamento de D. Dinis (reinado 1279-1325) com a rai40 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Filhos bastardos
D. Pedro I
D. João mestre de Avis
(com Teresa Lourenço)
(com Inês Pires)
D. João mestre de Avis foi o único filho bastardo a tornar-se rei
D. Afonso
D. Beatriz
1º conde de Bragança
condessa de Arundel, em Inglaterra
D. João V
(com Madre Paula)
(com uma freira francesa)
D. José
D. António
No século XVII, a vida íntima e sexual de um rei foi exposta publicamente. O processo de nulidade de casamento de D. Afonso VI (reinado 1656-1683) levou a que o monarca fosse sujeito a exames médicos para provar que fora incapaz de o consumar com D. Maria Francisca Isabel de Sabóia. Iniciava-se um processo em que a intimidade de D. Afonso VI foi devassada, o que certamente foi penoso e humilhante para o próprio. Todas as relações do rei foram escrutinadas, desde a proximidade e intimidade com António Conti, com quem partilhava o quarto no palácio, à convivência com diversas mulheres, na maioria prostitutas, que contaram que, apesar das diligências que faziam, D. Afonso VI nunca conseguiu concretizar o ato sexual. Descreveram ao pormenor os encontros e o órgão sexual do rei. O processo teve, acima de tudo, um propósito político. Se o rei era impotente, não podia dar sucessão ao reino, o que justificava a sua substituição pelo irmão, o infante D. Pedro.
nha Santa Isabel apenas nasceram dois filhos, mas o rei teve vários filhos ilegítimos de diversas amantes. Conta-se que D. Dinis escapava com frequência do leito régio e ia, pela calada da noite, até ao mosteiro de Odivelas, onde tinha encontros com as freiras que lá viviam. Os seus nomes não sobreviveram à passagem do tempo, mas as lendas sim. A rainha, ao ter conhecimento destes episódios, quis mostrar ao rei que sabia a razão das suas ausências. Acompanhada
(com D. Madalena Máxima de Miranda)
D. Gaspar
MUSEU NACIONAL DOS COCHES/DGPC/ADF
O processo de Afonso VI
de algumas damas da corte, preparou archotes e esperou num local por onde o rei teria forçosamente de passar para chegar ao mosteiro. Ao encontrarem-se, esta terá dito: «Ide vê-las. Nós alumiamos o vosso caminho.» Diz-se que foi assim que nasceu o nome do Lumiar e que de «de vê-las» se formou o topónimo Odivelas. O convento de Odivelas era um dos mais conhecidos pela sua vida desregrada, sendo muitas das freiras visitadas por reis. D. João V (reinado 1706-1750), com fama
D. João IV
D. Pedro II
(com a dama de D. Maria Ana da Áustria)
(com uma criada de varrer o paço)
D. Maria Rita de Portugal
D. Maria
(com a ama de companhia da mulher, D. Francisca Isabel de Saboia)
D. Miguel de Bragança
de ter sido o rei com mais amantes de Portugal, foi pai de três bastardos, conhecidos como os Meninos de Palhavã, todos filhos de freiras, justificando o epíteto de «freirático». É difícil precisar o número de amantes de D. João V. Pouco discreto em relação às suas relações extraconjugais, teve uma forte ligação a Madre Paula, de seu nome Paula Teresa da Silva. A relação terá começado cerca de 1718, e em 1720 nasceu o bastardo D. José. O favorecimento económico que o rei proporcionou à freira e à sua família foi extraordinário, tendo sido muito generoso em tenças e mercês. Para os encontros amorosos, mandou construir uma casa perto do convento onde vivia a Madre Paula e a sua irmã, servidas por nove criadas. A casa foi arrasada pelo terramoto de 1755, mas algumas descrições referem que os tetos eram em talha dourada, as portas e o chão em madeira do Brasil, e as camas, forradas com lâmina de prata, eram de dossel, rodeadas de veludos vermelhos e dourados. Além de Madre Paula, D. João V teve relações com uma freira francesa, que foi mãe de D. António, e com D. Madalena Máxima de Miranda, mãe de D. Gaspar. VISÃO H I S T Ó R I A
41
Francisca expulsara da corte D. Isabel Francisca da Silva, dama de singular formosura que frequentava o paço e que teria encantado D. Pedro. Uma das mais famosas amantes de D. João V, que ficou conhecida pela designação popular de Flor da Murta, era dama de D. Maria Ana de Áustria. A beleza de D. Luísa Clara de Portugal conquistou D. João V, que a seduziu com um cumprimento que se espalhou por toda a corte: «Flor da murta, raminho de freixo; deixar de amar-te é que eu não deixo!» Palavras talvez lendárias, mas o certo é que a relação dos dois depressa se consolidou. Regularmente o rei visitava-a na casa onde habitava com os filhos e com o marido. Em 1731 veio ao mundo D. Maria Rita de Portugal, que foi à nascença separada da mãe e enviada para o convento de Santos, onde se tornou freira.
A decisão de D. Fernando (reinado 1367-1383) de casar com Leonor Teles, talvez uma das rainhas mais malamadas da História de Portugal, e com quem ele terá inclusive vivido em concubinato, foi usada como um dos motivos para a crise do reinado do Formoso. Foi Fernão Lopes que caracterizou a rainha como mulher ambiciosa, cruel e adúltera. O suposto adultério de Leonor Teles com o galego conde Andeiro, que dela recebeu benesses e importantes funções no governo, foi aproveitado para difamar a rainha e colocar em causa a legitimidade da herdeira do trono, D. Beatriz. Terá D. Fernando tido conhecimento de que uma ligação amorosa unia a rainha ao conde Andeiro? Na verdade, tal como para outros casos de rainhas de Portugal, apesar dos boatos e dúvidas levantados, as fontes não comprovam a existência de uma relação extraconjugal de D. Leonor Teles.
Amores no paço Pelos corredores do palácio circulavam criadas, moças e damas. Encontros quase diários que conduziam, não raras vezes, à troca de olhares sedutores. D. João IV (reinado 1640-1656), conhecido por ter amores fortuitos, protagonizou encontros fugidios com uma criada de varrer o paço, ligação da qual nasceu uma filha bastarda, D. Maria. Após o parto, a criança foi retirada à mãe, que entrou no Convento de Chelas onde tomou o nome religioso de Maria de São João Batista. D. Ana Armanda Duverger, dama que acompanhou a rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia desde França, desenvolveu uma relação com o marido desta. Dos idílios amorosos entre o futuro D. Pedro (regência 1668-1683) e D. Ana Armanda nasceu um filho, D. Miguel de Bragança, notícia que chegou ao conhecimento de D. Maria Francisca que, despeitada, ordenou que a dama fosse expulsa do paço e que regressasse a França. Já antes D. Maria 42 V I S Ã O H I S T Ó R I A
DIANA DE POITIERS A favorita de Henrique II, numa representação da época
Apesar de D. João V não ter reconhecido a paternidade da criança, a rainha não teve dúvidas de que se tratava de uma filha do rei e tentou proibir a entrada da dama no paço.
Atrizes em cena
SANTA ISABEL DE PORTUGAL, C. 1635/FRANCISCO DE ZURBARÁN/MUSEU DO PRADO,
Leonor Teles e o Andeiro
DIANA DE POITIERS, SÉC. XVI/FONTAINEBLEAU SCHOOL/BRIDGEMAN IMAGES
SEXUALIDADE // ADULTÉRIO
A rainha Santa Isabel quis mostrar a D. Dinis que sabia das suas escapadelas e foi uma noite esperá-lo no caminho
À medida que outros espaços de sociabilidade vão surgindo no reino, estes tornam-se também lugares de novos amores. Em 1739, D. João V conheceu Petronilla Trabó Basilii, atriz italiana na ópera Vologeso no Teatro Novo da Rua dos Condes. O rei ficou encantado com Petronilla quando foi assistir à ópera e decidiu tirá-la do teatro para, à vontade, encetar com ela uma relação que durou pelo menos até 1742, data do primeiro ataque que paralisou o lado esquerdo do amante. Nesta altura, o monarca contava 50 anos e, querendo manter o vigor de outros tempos, passou a recorrer a afrodisíacos. D. João V mandava Manuel da Costa comprar nos boticários de Lisboa os produtos necessários, sendo o mais utilizado a essência de âmbar. Dir-se-ia que teriam sido os excessos amorosos a estragar-lhe a saúde. Amante da boa vida, o rei D. Luís (reinado 1861-1889) era conhecido pelas suas aventuras noturnas. Dos seus vários casos amorosos destaca-se Rosa Damasceno, atriz do Teatro D. Maria II, que o rei conheceu em 1886. A relação durou até
Um caso francês Quase 20 anos separavam Diana de Poitiers de Henrique II de França (reinado 1547-1559). Mulher de uma grande beleza, culta e muito inteligente, a forte ligação que uniu os dois durante cerca de 28 anos apenas terminou com a morte do rei. A relação era conhecida por toda a corte. Na verdade, a amante aconselhava e influenciava profundamente o monarca e interferia nos assuntos do reino. Os embaixadores estrangeiros pediam-lhe audiência, e até com o Papa Diana mantinha uma relação cordial. Parecia desempenhar o papel da mulher legítima. Mas a favorita conhecia bem o seu lugar. Ao fim de algum tempo de casamento de Henrique com a mulher, Catarina de Médicis, esta ainda não tinha engravidado. A rainha poderia ser repudiada, mas Diana convenceu Henrique a ser mais cumpridor do seu dever conjugal, visto que acima de tudo era fundamental garantir a descendência da monarquia. Após a morte de Henrique II, Catarina de Médicis afastou Diana de Poitiers da corte. O «reinado» da amante terminara.
cerca de 1889, chegando a amante a receber como prenda do monarca a Quinta de Santana. Várias das amantes do rei eram «mulheres indiscretas» e que lhe extorquiam dinheiro a troco das eróticas cartas que ele lhes escrevera. Também o seu filho, D. Carlos (reinado 1889-1908), ficou conhecido pela fogosidade. Chamavam-lhe «o Balão Cativo», por ser gordo e ficar sempre preso a um local onde es es-
tivessem damas bonitas, como as «três condessas favoritas». Em 1909, o último rei de Portugal, D. Manuel II (reinado 1908-1910), conheceu durante a estada da comitiva real em Paris a atriz e bailarina Gaby Deslys, na sala de espetáculo parisiense Capucines. Os dois jovens foram apresentados no camarote da bailarina, nascendo uma relação que durou vários anos e que encheu as páginas dos jornais. Em julho de 1910,
D. Luís Rosa eR Da Damasceno
O rei conheceu a atriz do Teatr Teatro Nacional D. Maria II em 1 1886 e teve um caso com ela até 1889. Ofere Ofereceu-lhe a Quinta Qui de Santana
Gaby Deslys passou férias no Buçaco, junto do rei, situação que foi imediatamente aproveitada pelos republicanos para tecerem os piores comentários. Meses depois, a monarquia conhecia o seu fim. E as aventuras amorosas dos reis de Portugal passaram a fazer parte do passado, recordadas em histórias publicadas em livro. *Joana Pinheiro de Almeida é, juntamente com Ana Cristina Pereira e Paula Lourenço, autora do livro As amantes dos reis de Portugal
D. Manuel II e Gaby Deslys
O último rei de Portugal conheceu a bailarina durante a estada da comitiva real em Paris, em 1909. Em julho do ano seguinte, a francesa passou férias no Buçaco, com o rei
VISÃO H I S T Ó R I A
43
SEXUALIDADE // DIVÓRCIO
As mulheres do Barba Azul
Henrique VIII e as seis mulheres O monarca inglês pode ter sido uma das fontes de inspiração de Charles Perrault para criar o protagonista do seu conto Barba Azul
Henrique VIII de Inglaterra simboliza o divórcio. Quando o Papa não lho concedeu fundou a 'sua' igreja por Luís Almeida Martins
44 V I S Ã O H I S T Ó R I A
sim, porque tudo é relativo. O certo é que se fez rodear de políticos sem escrúpulos mas muito competentes, que ele se encarregava de esmagar e de substituir ao sabor das conveniências. Um dos seus homens de confiança, Wolsey, era filho de um talhante e em breve seria equivalente a primeiro-ministro e cardeal. Inaugurou também aquela política externa, típica da Inglaterra, de não tomar um partido fixo nas lutas europeias. «Quem eu defendo, domina», gostava de dizer, referindo-se às guerras incessantes entre o Francisco I e Carlos V de Espanha. Henrique VIII nasceu em 1491 e tinha, pois,18 anos quando subiu os degraus do trono. Era destro nas atividades físicas, sem deixar de ter algum talento para a música e a poesia e de dar os seus palpites em matéria teológica (na verdade, escreveu livros sobre o tema).
‘Consummatum non est’ O herdeiro da coroa não era ele, mas o irmão mais velho, Artur, a quem os cortesãos prepararam, logo aos 3 anos, um muito conveniente casamento com Catarina de Aragão, filha mais nova dos Reis Católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Aos 11 anos, Artur já era noivo e correspondia-se com Catarina em latim, ainda que quase decerto não fossem os próprios a escrever as cartas. Quando avistou as brancas falésias de Dover, aos 15 anos, Catarina levava no séquito um lote de negros africanos, algo de exótico na brumosa Albion.
GETTY IMAGES
Q
uando pensamos em Henrique VIII, que reinou em Inglaterra de 1509 a 1547, lembramo-nos da série de casamentos e de separações que protagonizou, algumas por divórcio, outras pela condenação à morte da mulher preterida. E também do corte com a Igreja Católica e da fundação de uma nova obediência religiosa, de que ele próprio se arvorou em chefe: a Igreja Anglicana, que até hoje continua a ser liderada pelo soberano britânico em exercício. Um recorde menos conhecido deste reinado é o do número de pessoas executadas: fazendo as contas por alto, mais de 1600 súbditos perderam a vida às ordens do obeso e decerto paranoico Henrique VIII. No tempo do pai, Henrique VII, que foi o primeiro rei da dinastia Tudor, a Inglaterra ainda não era a grande potência que viria a ser mais tarde. No início do século XVI, a França dominava política e militarmente o continente europeu e a Espanha beneficiava da recente «descoberta» das Américas. O próprio Portugal, com o monopólio do rota marítima para a Índia e do comércio oriental das especiarias, tornara-se uma potência, como hoje se diz, global. Mas quando este nosso Barba Azul morreu, em meados do século, padecendo de uma obesidade mórbida que o impedia de se levantar e caminhar sem ajuda, o seu país exercia já uma grande influência na política continental. Isto faz dele um bom rei? Em certo sentido,
1
2
3
Catarina de Aragão
Ana Bolena
Joana Seymour
4
GETTY IMAGES
Ana de Cleves
5
6
Catarina Howard
Catarina Parr
Um sumptuoso cortejo desfilou desde a sala do banquete de casamento até ao quarto nupcial, e os mirones só debandaram depois de os jovens noivos se terem metido na cama. Era normal naquele tempo, e o episódio não teria grande importância se a noite de núpcias não viesse de novo à baila meses depois. É que o enfermiço Artur morreria «de febres» pouco após o casório, deixando o ainda rei Henrique VII a braços com um problema. Seria conveniente não deixar partir a infanta espanhola, e para isso casá-la com o irmão mais novo de Artur – o nosso futuro Henrique VIII. Fácil de planear, mas não de executar, pois para isso seria necessário que o casamento anterior não tivesse sido consumado. Catarina jurava a pé juntos que não tinha, mas a dúvida instalou-se. O futuro Henrique VIII complicou as coisas clamando alto e bom som que não queria casar-se com Catarina. Mas, fosse porque os cabelos ruivos e o rosto cheio da espanhola lhe começassem a despertar o interesse de adolescente, ou fosse porque os argumentos de ordem diplomática acabassem por impor-se, por fim cedeu. Mas, é claro, seria preciso que o Papa anulasse VISÃO H I S T Ó R I A
45
SEXUALIDADE // DIVÓRCIO
Até que o divórcio nos separe antes o casamento da prometida com o falecido irmão, a pretexto de este não ter sido consumado. A base legal era o livro bíblico do Levítico, onde se lê em 18:15: «A nudez da mulher do teu irmão não descobrirás; é a nudez do teu irmão.» O grande filósofo Thomas More, que sucedera ao filho do carniceiro na chefia do governo, era pela indissolubilidade do casamento, mas outros invocavam o livro seguinte da Bíblia, o Deuteronómio, que diz em 25:5: «Quando irmãos morarem juntos e algum deles morrer e não tiver filho, então a mulher do defunto não se casará com homem estranho de fora; o seu cunhado entrará a ela e a tomará por mulher e fará a obrigação de cunhado para com ela.» O famoso humanista, autor da Utopia acabou por ser imolado devido a esta posição inconveniente. A anulação chegaria enfim, mas Henrique não esperou por ela: contradizendo o anterior desinteresse, levou Catarina ao altar e festejou o enlace mandando prender More e outro ministros, acusados de traição. Um casamento real destina-se a garantir herdeiros da coroa. Ora, Catarina engravidou mas deu à luz uma menina que logo faleceu. Teve a seguir um rapazinho que morreu também. Engravidou terceira vez mas abortou, e só à quarta a segunda menina vingaria: Maria Tudor. Nascida em 1516, seria ela mais tarde a primeira rainha titular de Inglaterra e da Irlanda e ficaria na História com o cognome de Bloody Mary (Maria Sangrenta), por ter condenado à fogueira um grande número de «hereges» não católicos.
O ‘mediático’ divórcio A união de Henrique e Catarina durou 18 anos e poderia ter-se prolongado, mas transportava os germes do fracasso. Ela era modesta e reservada, ele extrovertido e espaventoso. O rei tinha muitas amantes e a certa altura quis ver-se livre da mulher – foi quando se deixou embeiçar pela alegre Ana Bolena, filha de um fidalgo da corte que desempenhava funções políti46 V I S Ã O H I S T Ó R I A
NA ROMA ANTIGA O divórcio era fácil de concretizar e relativamente comum, constituindo mais objeto de coscuvilhice do que de «vergonha». NA IDADE MÉDIA As igrejas cristãs católica e ortodoxa consideravam o casamento um vínculo sagrado e indissolúvel. Os tribunais civis não tinham poder na matéria. A anulação podia no entanto ser decretada pela Igreja, a pedido, como sucedeu frequentemente em casamentos reais. NA IDADE MODERNA Depois da Reforma, o casamento passou ser considerado um contrato nas regiões protestantes, sendo o divórcio da alçada dos tribunais civis. Em Inglaterra, a Igreja Anglicana manteve, porém, a indissolubilidade. Nos países católicos, a situação manteve-se como na Idade Média. EM PORTUGAL No tempo da monarquia não havia divórcio. Este foi legalizado em 1910, menos de um mês depois da implantação da República; a mulher deixou de ter o dever de obediência ao marido; o adultério continuou, porém, considerado crime, ainda que sem distinção do sexo do cônjuge que o praticasse. Em 1940, a Concordata assinada entre o Estado Novo e a Santa Sé retirou o direito ao divórcio aos portugueses casados pela Igreja, podendo no entanto continuar a ser dissolvidos os casamentos exclusivamente civis. Em 1975, na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974, todos os portugueses voltaram a poder divorciar-se, sejam ou não casados pela Igreja Católica. Em 2001, o divórcio de comum acordo passou a ser tratado nas conservatórias do Registo Civil, sem intervenção judicial. EM FRANÇA Pelo Código Napoleónico, de 1804, o divórcio passou a ser assunto dos tribunais civis. NO REINO UNIDO Quase impossível até 1857, o divórcio passou neste a ano a ser matéria de tribunais civis EM ESPANHA A Constituição republicana de 1931 reconheceu, pela primeira vez, o direito ao divórcio EM ITÁLIA O divórcio só foi introduzido em 1970, e com forte oposição da Igreja Católica. NA IRLANDA Só em 1999 foi legalizado EM MALTA Data apenas de 2011 a lei do divórcio.
cas e diplomáticas. Mas ao contrário da irmã, Maria, com quem Henrique tivera um breve relacionamento amoroso, Ana parecia difícil de conquistar: desprezou as juras de amor e os presentes régios e resolveu jogar forte vendendo o seu corpo ao preço da coroa. Henrique cedeu, mas tinha de ver-se livre de Catarina. Um emissário seu partiu então para Roma, a fim de requerer o divórcio ao papa Clemente VII. Uma vez mais é invocado o Levítico: Henrique teria infringido as leis religiosas ao ter descoberto a nudez da mulher do irmão… Catarina voltou a alegar que o seu primeiro casamento nunca tinha sido consumado, mas o rei comprou supostas testemunhas oculares que afiançaram ter Artur «cumprido as suas obrigações maritais» logo na noite de núpcias, a tal que fora parcialmente pública. Cada vez mais irascível e impiedoso, Henrique VIII mandava para o patíbulo quem o contrariasse. Foi nessa altura que o cardeal Thomas Cromwell, então chefe do executivo, lhe sugeriu a revolucionária ideia de dispensar a instituição papal e atribuir a si mesmo a supremacia espiritual nos seus domínios. Henrique achou a ideia brilhante e fundou a Igreja Anglicana, independente de Roma, tomando simultaneamente posse de todos os bens dos templos e dos conventos. Foi então fácil um tribunal submetido à sua vontade anular o casamento com Catarina de Aragão, que morreria daí a três anos, com 50, pouco antes da queda em desgraça da sua sucessora. Porque estava aberto o caminho para Ana Bolena, já grávida da futura rainha Isabel I, ser coroada – em 1533 – rainha consorte. Vencida esta etapa, o principal problema para a nova soberana passou a ser, como já entrevimos, a manutenção do trono. O colérico rei não lhe perdoou o ter dado à luz um varão nado-morto e tomou como amante Joana Seymour, filha de um cortesão de Westminster. Entusiasmado com a sua nova paixão e embalado pelo hábito de repudiar ofi-
HENRIQUE VIII E CATARINA DE ARAGÃO FRENTE AO PAPA, DE 1910/ FRANK OWEN SALISBURY/BRIDGEMAN IMAGES
Súplicas de Catarina de Aragão A primeira mulher de Henrique VIII pede-lhe que reconsidere sobre o divórcio
cialmente as esposas, Henrique VIII logo começou a magicar na forma de se ver livre de Ana Bolena.
As rainhas executadas À falta de outro pretexto, restou-lhe o de armar-lhe uma cilada: um jovem músico flamengo foi preso e obrigado a confessar sob tortura que era amante da rainha. Segundo alguns historiadores, a intriga teria sido da lavra do chanceler Cromwell. Ana protestou a sua inocência, mas isso não a impediu de ser encerrada na Torre de Londres e de entretanto os seus acusadores, para dar mais «consistência» ao processo, acrescentarem à lista dos hipotéticos crimes da ré a prática de incesto com o irmão, o envenenamento de Catarina de Aragão (que por esses dias adoecia gravemente) e ainda a tentativa de envenenamento da jovem Maria Tudor. Condenada à morte, Ana Bolena teve a duvidosa honra de ser decapitada com uma espada, e não um machado. Daí a dias, Henrique VIII casava-se com Joana Seymour, que lhe deu finalmente um filho varão, o futuro Eduardo VI. Mas
a mãe, terceira mulher do rei, morreu no parto e Eduardo viveria apenas 17 anos. Aos 47 anos, Henrique VIII – primeiro solteiro, depois casado, em seguida divorciado, mais tarde divorciado-viúvo de um só golpe – ficou «apenas» viúvo. Cada vez mais gordo, praticamente imobilizado pela obesidade, teve de renunciar aos prazeres da caça, mas não aos do corpo. Quando se tratou de escolher uma quarta esposa, foi eleita a alemã que conhecemos por Ana de Cleves (na verdade, Anna von Kleve), filha de um dos eleitores germânicos fundadores do movimento
O irascível Henrique VIII enviava para o patíbulo quem o contrariasse, Durante o seu reinado mandou matar mais de 1600 pessoas
protestante. O problema agora foi que o retrato que lhe tinham enviado da noiva, executado por Barthel Bruyn o Velho, não correspondia ao modelo, tendo-lhe acrescentado o pintor a beleza que de seu natural lhe faltava. Quando conheceu pessoalmente a mulher com quem ia casar-se, Henrique deu largas à sua ira, fazendo rolar no cadafalso a cabeça de Cromwell, que tinha sido o intermediário do consórcio. Já só pensava na maneira de se ver livre da alemã, mas, adquirido o balanço, achou por bem levá-la primeiro ao altar e divorciar-se depois. Como fundamentos para a anulação do casamento, invocou coação moral e engano na pessoa. Não foi preciso mandar matar a alemã, pois esta aceitou bem o divórcio, em troca de propriedades e outros bens materiais, optando até por ficar em Inglaterra, onde viria a falecer muito mais tarde com o título bizarro de «Irmã do Rei». Seguiu-se, no rol de rainhas consortes, a nobre inglesa Catarina Howard. Henrique VIII, desconfiado e prudente, ordenou porém uma devassa, e veio a apurar que a sua quinta mulher tivera anteriores amantes. Dois dos implicados nesse «crime de alta traição» foram enforcados e ela acabou por confessar a simples realidade de que era um facto ter amado homens. Mas não tinha, por isso, forma de escapar ao carrasco, e a hora de pôr a cabeça no cepo chegou em 1542. Nesse momento, proferiu estas palavras corajosas: «Morro como rainha mas preferia ter morrido como mulher do meu amante.» O parlamento foi a correr aprovar uma lei segundo a qual «deverá ser condenada à morte toda a mulher solteira que case com o rei de Inglaterra e tenha tido aventuras pré-nupciais sem o confessar». Henrique VIII, cada vez mais morbidamente obeso e sem perder o hábito de manter o carrasco ocupado a tempo inteiro, casar-se-ia ainda uma sexta vez, agora com a inglesa viúva Catarina Parr. Esta sobreviver-lhe-ia. Algum dia teria de ser. VISÃO H I S T Ó R I A
47
SEXUALIDADE // EXPANSÃO
Como era a bordo das naus?
Ausentes de terra durante semanas ou meses, os homens embarcados em navios dos séculos XVI e XVII recorriam ao onanismo e à sodomia, mas por vezes conseguiam ter relações sexuais com mulheres
A
Por Marco Oliveira Borges*
presença de mulheres a bordo dos navios foi uma realidade durante a expansão marítima portuguesa, destacando-se nas fontes históricas o caso das que partiam para a Índia ou que de lá vinham. Mas, excetuando alguns casos, sobretudo quando capitães ou fidalgos importantes recebiam autorização para levaram as esposas e filhas, era proibido o seu transporte, sendo muitas embarcadas ilegalmente. Alguns consideravam a existência de mulheres a bordo muito inconveniente, pois a sua presença no seio de uma tripulação exclusivamente masculina poderia ser vista como a causa dos males e das adversidades que surgiam durante as viagens. Entre mulheres de fidalgos, órfãs, mancebas, aventureiras e prostitutas, as que viajavam solteiras estavam associadas, segundo a correspondência dos padres da época, à prostituição a bordo, à origem de distúrbios, à falta de segurança, à destruição de costumes e à indisciplina, pelo que eram sujeitas a castigos ou largadas nalgum local de escala da viagem. Devido à presença feminina, considerava-se que os homens faziam mal as suas vigias, revelavam atitudes negligentes e descuidavam-se noutros aspetos de segurança, podendo levar a acidentes a bordo ou até a naufrágios. Apesar da forte contestação e da perseguição movida pelos padres às mu-
48 V I S Ã O H I S T Ó R I A
lheres a bordo dos navios da carreira da Índia, chegaram a ocorrer romances e casamentos em pleno mar. Em 1545, um caso vivido na nau Burgalesa terminou em casamento. A história ligou um cavaleiro que se apaixonou pela filha de outro passageiro ilustre e que pediu a sua mão. Porém, a celebração teve lugar apenas em Goa. Mas em 1562 ocorreram dois casamentos numa nau. O primeiro com o consentimento de todos, por não se registar qualquer impedimento, enquanto o segundo ocorreu clandestinamente, em virtude de o capitão do navio ter proibido a união alegando que havia suspeita de «cunhadio». É que o homem e a mulher haviam dito que viajavam como cunhados, e depois não conseguiram provar o contrário. Desperta curiosidade saber como se desenrolava a vida sexual a bordo dos navios que partiam para a Índia transportando, por norma, cerca de 500
Apesar da forte contestação e perseguição movida pelos padres, chegou a haver romances e até casamentos em pleno mar
homens e poucas mulheres e que, em média, demoravam perto de seis meses a finalizar a viagem. Sobre este tema as fontes não são muito expressivas. Todavia, comprova-se com alguns dados disponíveis que os mais ousados tentavam expedientes para se aproximarem das mulheres embarcadas, às vezes com consequências simplesmente caricatas. Vivendo num espaço em que praticamente não havia privacidade, excetuando os casos de quem dispunha de compartimentos reservados, é muito provável que tenham sido frequentes as situações de flagrante sexual e a aplicação de castigos que podiam chegar à morte (ainda que muitas situações também devam ter sido abafadas e nem sempre penalizadas). Em todo o caso, no tempo de Afonso de Albuquerque, Rui Dias, português de boa linhagem oriundo de Alenquer, foi apanhado em flagrante com uma escrava na câmara da nau do governador. Foi por isso condenado ao enforcamento, e nem o apelo de outros portugueses fez Albuquerque recuar.
Prostitutas embarcadas As mulheres que seguiam como prostitutas estariam apenas ao alcance de um pequeno grupo de homens, em que se incluíam capitães, pilotos, mestres e armadores, a não ser que – o que acontecia por vezes – estes não tivessem conhecimento da sua presença ou permitissem o contacto com homens comuns. Contudo, muitas mulheres que ficaram conotadas com a prostituição poderiam seguir apenas como mancebas. Numa carta de 1532, o bispo D. Fernando Vaqueiro queixou-se ao rei de que tinha viajado muito desgostoso para a Índia devido a Vicente Gil (armador da nau Graça) vir publicamente amancebado, consentindo que alguns oficiais viessem na mesma situação. O bispo repreendeu Vicente Gil por várias vezes, tanto mais que o escrivão da nau requereu previamente ao armador que cessassem tais situações, mas o homem não ligou ao que era dito nem às penas
alvo de um assédio desenfreado. Mesmo as que iam com os maridos e que, com o decorrer da viagem, ficavam viúvas, poderiam a partir daí ser um alvo fácil. Em 1608, na atribulada e trágica viagem da nau Nossa Senhora da Salvação, que naufragou na costa de Mombaça, iam embarcadas três órfãs do Recolhimento do Castelo de Lisboa, estando confiadas a uma passageira de consideração. O capitão da nau, D. Luís de Sousa, andou desinquietando as órfãs, tanto a bordo como em Mombaça, onde a tripulação se acolheu depois do naufrágio. Acabou por ser ordenada uma averiguação a propósito do comportamento do impulsivo capitão e de este pretender devassar o recato das jovens passageiras, uma das quais acabaria por morrer durante a viagem. A bordo da nau seguia igualmente um embaixador do rei da Pérsia, que foi assaltado por fidalgos que tomaram o seu dinheiro à força. Por estes incidentes, pelo naufrágio da nau e possivelmente por outros que ficaram por conhecer, o capitão D. Luís de Sousa andou posteriormente homiziado.
Curiosidade mortal Uma armada da carreira da Índia A viagem demorava perto de seis meses em cada sentido
que D. João III tinha decretado para quem levasse mulheres a bordo. A situação de as prostitutas estarem apenas disponíveis para um pequeno grupo de homens acabaria por ser um enorme problema, possível gerador de conflitos graves, visto que muitos dos que tinham conhecimento da sua presença ou que testemunhavam atos sexuais também sentiam necessidade de satisfazer os seus impulsos. Não conseguindo comprazer o desejo sexual com as que iam embarcadas, os homens tinham de esperar até que os navios fizessem escala e pudesse haver contacto com alguma mulher, situação que levava meses. Mas deve ter havido momentos de maior liberdade, em que as
mulheres possam ter estado envolvidas com um número mais elevado de homens e em espaços à vista de muitos outros.
Assédios desenfreados Seja como for, é preciso atenuar um pouco o peso da prostituição, visto que nem todas as mulheres eram prostitutas. Por outro lado, e embora numa condição social diferente, sendo esposas de homens importantes ou órfãs, outras mulheres poderiam vir a ter problemas durante o percurso. Viajando entre centenas de homens, muitos deles criminosos de delito comum saídos das prisões, as que não estivessem sob a proteção dos maridos ou de homens importantes poderiam ser
Ao tentarem procurar e entrar em contacto com mulheres clandestinas ou que vinham isoladas e sob proteção, alguns homens poderiam incorrer em situações bastante caricatas e ser alvo do registo escrito dos missionários. Veja-se, por exemplo, o caso de um homem morto por ferimentos de um tubarão depois de se ter atirado ao rio para tentar ver melhor as mulheres que seguiam a bordo de uma nau da carreira da Índia: «Morreram muitos [durante a viagem para a Índia] entre os quais foi um mancebo que, andando nadando no rio, e segundo alguns diziam era para ir ver umas mulheres que estavam em a varanda do leme [do navio], e andando assim nadando veio um tubarão que lhe levou uma coxa da perna que lhe não deixou mais que o osso e assim um pedaço de um braço. Acudiram-lhe logo e o trouxeram VISÃO H I S T Ó R I A
49
para a terra, onde o sim executado como enterraram e queira «bom cristão». Nosso Senhor que Por seu turno, os estivesse confessarapazes mais novos do, ou ao menos com que viajavam nas contrição dos seus naus também se pecados e esperantornavam um alvo ça de misericórdia à sexual dos homens hora da sua morte. mais velhos. Numa Aqui verão, caríssicarta régia de 1620, mos irmãos quanto dirigida ao vice-rei bem é estar em graça da Índia, o monarca com Nosso Senhor e Um naufrágio Segundo os padres, a presença de mulheres a bordo podia ter referia que fora inaparelhados para to- consequências trágicas formado de que nas das as horas.» naus que partiam de O caso remonta a 1562, altura em com as poucas mulheres presentes ou até Lisboa iam embarcados muitos menimesmo à sua ausência, o onanismo e a nos que os soldados, à chegada à Índia, que se fazia escala em Moçambique. É muito provável que estas mulheres logo levavam para as suas casas, abusodomia acabavam por ser frequentes, que o homem tentava ver fossem órfãs, havendo dados sobre esta última prática sando deles. Como medida punitiva, o moças que geralmente iam ao cuidado de e execuções punitivas a bordo. rei determinou que se deveria investigar senhoras da nobreza. Contudo, isso não Em 1548, numa carta dirigida ao rei, o assunto e proceder contra os soldados impedia que a sua presença suscitasse D. João Henriques, capitão-mor de uma conforme o que estava disposto nas leis grande curiosidade entre as tripulações armada da carreira da Índia, deu a coe instruções régias. nhecer que recebeu uma denúncia de e demais passageiros. De modo a evitar situações problemáticas, estas mulheres sodomia, atividade que era severamente Violências de corsários viajavam fechadas num camarote da nau, punida. O caso punha em ação Diogo Entre as situações de violência de corsánormalmente à popa, mas com acesso a Ramires, castelhano que cometera esse rios franceses contra a navegação portuguesa, há um caso conhecido em que as uma varanda. pecado com dois criados de D. Manuel Numa deslocação entre Lisboa e os Telo. Consequentemente, «por ser coisa mulheres que vinham embarcadas foram portos asiáticos, e vice-versa, se houtão abominável ante Deus», e de modo violadas. O acontecimento teve lugar no vesse mulheres grávidas a bordo ou que a cumprir a lei e ordenação régia, D. início de junho de 1524, quando uma João Henriques tomou parecer com os caravela portuguesa que se deslocava engravidassem já no mar, o nascimento poderia ocorrer durante a viagem. Notena costa de Lagos foi atacada por franfidalgos, cavaleiros, padres e oficiais da -se que normalmente este tipo de viagens ceses. Ao que parece, a situação decorreu nau, acabando por condenar o sodomiduravam seis meses, mas nalguns casos, ta castelhano à morte. Diogo Ramires como represália por se terem prendido, se fosse necessário invernar, era possível chegou a confessar a sua ação, sendo asem Lisboa e em Lagos, alguns franceses que se atingisse um ano e meio. Em 1610, que haviam sido capturados por alegada de acordo com o padre francês Francisco associação a atos de corso. Nesse mesmo Pyrard de Laval, durante a torna-viagem ano, provavelmente no seguimento das e antes da chegada ao cabo da Boa Esações de represália e não muito longe A sodomia era da barra do Tejo, corsários franceses perança, uma dama mestiça oriunda da assaltaram outra caravela portuguesa, Índia, mulher de um português, muito severamente punida, castrando os homens que seguiam nela. bela e com cerca de 30 anos, entrou em o que não impedia trabalho de parto em pleno mar. Acabou Como se vê, e como não poderia deixar que os rapazes por ter a criança, mas ambas morreram, de ser, o sexo era indissociável da vida a tendo sido lançadas ao mar. bordo das naus da época da expansão. embarcados fossem
Onanismo e sodomia No meio de centenas de homens embarcados, e face a restrições de contactos 50 V I S Ã O H I S T Ó R I A
também um alvo sexual de homens mais velhos
* Marco Oliveira Borges é investigador da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com um pós-graduação em História do império marítimo português
HISTÓRIA TRÁGICO-MARÍTIMA, 1735, DE BERNARDO GOMES DE BRITO
SEXUALIDADE // EXPANSÃO
Fonte do desejo
Sem o amor, nada faria sentido – é a tese defendida por um importante humanista natural de Lisboa Por Adelino Cardoso*
ALBRECHT DUHRER/BRIDGEMAN IMAGES
N
os Diálogos de Amor, de Leão Hebreu, uma das obras-primas do Renascimento, o amor é a fonte do sentido de todas as coisas, a força que move os seres a agir, «a causa do nascimento do mundo» e «a aprimeira paixão da alma». O autor, de seu verdadeiro nome Iehudah Abrabanel, nascido por volta de 1465 em Lisboa numa importante família judaica, foi um prestigiado médico que teve uma vida atribulada devido à perseguição feita aos judeus em Portugal, em Espanha, onde logrou a posição de médico pessoal dos reis Católicos (édito de expulsão de 1492) e em Nápoles, onde a política de tolerância para com os judeus sofreu interrupções (1495-1501 e 1510-1512). Nesta última cidade, onde terá morrido por volta de 1525, exerceu atividade médica na corte e desenvolveu intenso labor intelectual. Aí redigiu grande parte dos Diálogos, que não chegou a concluir. Ainda assim, são uma obra grandiosa, composta por três diálogos: Do amor e do Desejo, Comunidade do Amor e Origem do Amor. Para cumprir o plano faltou-lhe escrever o quarto, que seria sobre os efeitos do amor. O género literário do diálogo estava muito em voga no seu tempo e é ajustado ao tema. Fílon e Sofia, os dois interlocutores, não se limitam ao debate de ideias, entrando numa conversação amorosa. Para Leão Hebreu, o amor é «pai do desejo», ou seja, há prioridade do amor sobre o desejo, sem que exista incompatibilidade entre um e outro: o amor é fonte inesgotável do desejo,
o elo de uma união perfeita. Tem uma dupla dimensão – erótica e psicológica: a primeira dirigida à satisfação do prazer e a segunda à união plena com a pessoa amada. O «perfeito e verdadeiro amor» intensifica a vida e a sua justa medida é o excesso, não o meio-termo característico da moral. O critério do amor perfeito é que não se deixa contaminar pelo cansaço e pela saturação, mantendo sempre viva a frescura inicial do encontro amoroso.
Enlevo amoroso Este casal jovem, desenhado por Albrecht Dührer cerca de 1490, poderia bem ser Sofia e Fílon
Acompanha-o uma modalidade especial de pensamento, a «cogitação», que se traduz por uma relação de cuidado e preocupação com o ser amado.
Relação primordial O amor é a relação primordial de todas as coisas, «o fundamento de todas as relações». A sua função é gerar harmonia e concordância entre todos os seres do cosmos. Em sintonia com a mundividência do Renascimento, o corpo humano é, para Leão Hebreu, a mais perfeita imagem do macrocosmo, havendo correspondência entre os principais órgãos somáticos e os corpos celestes: «O Sol é o coração do céu, a Lua é o cérebro do céu, Júpiter é o fígado do céu, Saturno é o baço do céu, Marte é o fel e os rins do céu, Vénus é os testículos do céu, Mercúrio é o pénis do céu. Move-se principalmente pela aproximação do Sol e pelos aspetos da Lua, tal como se move o pénis conforme o desejo e o estímulo do coração e da imaginação e memória do cérebro.» E conclui: «De maneira que, ó Sofia, tu vês como o Céu é marido da Terra, em tudo perfeito, já que todos os seus membros orgânicos e homogéneos se movem e esforçam por lançar nela o sémen e nela gerar tantas gerações formosas e tão variadas.» Leão Hebreu interroga-se sobre a génese do impulso amoroso, concebido como movimento do amante para o amado: «O amor é produzido e engendrado pelo amado e pelo amante, como de pai e de mãe», existindo assim «precedência do amado ao amante». No quadro intelectual dos Diálogos, o amante é movido pela beleza e perfeição do amado. Ora, a beleza é um tipo de bem desejado por si mesmo. Por isso, a deleitação amorosa exprime-se pela satisfação por o amado ser tal qual é e pelo desejo de união fruitiva com ele. Mas para que a relação amorosa se consume, é necessário que amado e amante permutem os papéis, num jogo de reciprocidade. *Adelino Cardoso é investigador do CHAM-FCSH – Universidade NOVA de Lisboa VISÃO H I S T Ó R I A
51
SEXUALIDADE // DOENÇA
A ‘sifilização’ da Europa
A mais temida das doenças venéreas anteriores à sida foi «importada» da América e tratou-se com pau-santo e mercúrio antes do advento da penicilina por J. A. David de Morais*
É
revelador o facto de a sífilis ser também conhecida por uma grande variedade de outros nomes (ver caixa). Isso põe especialmente em relevo dois aspetos: nenhum país queria assumir o ónus da difusão da temível doença venérea, criando-se designações que tentavam culpabilizar o vizinho; e é possível discernir na listagem um certo sentido da onda de difusão da doença na Europa e, depois, no resto do mundo. Outra questão importante prende-se com a origem geográfica da sífilis. Houve quem, transpondo a ideologia para o domínio científico, sugerisse que o Treponema pallidum pallidum, o agente da doença, teria a sua origem na Europa. Ora, à luz dos conhecimentos historiográficos e científicos hoje disponíveis, podemos situar a fonte primitiva da sífilis nas Américas, reconhecendo-se-lhe, para o nosso continente, uma origem decorrente da viagem de Cristóvão Colombo às Antilhas.
Primeiros registos A Península Ibérica foi, assim, a porta de entrada da sífilis no Velho Mundo. Os escritos dos autores que testemunharam essa introdução permaneceram, contudo, desconhecidos ou secundarizados durante muito tempo. A Ibéria era uma periferia da Europa culta do 52 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Renascimento e os livros de médicos e cronistas castelhanos não estavam disponíveis para lá dos Pirenéus. Várias fontes documentais só tardiamente foram impressas, tanto mais que o castelhano não era acessível aos médicos da restante Europa, que publicavam em latim. O que não impede que existam fontes documentais castelhanas que, mesmo em desprimor do seu próprio país, são bem claras sobre a origem colombiana da sífilis. Um desses autores é o humanista judeu Francisco López de Villalobos, que foi médico da casa ducal de Alba, de Fernando, o Católico, de Carlos V e da sua esposa Isabel de Portugal. Em 1498, escreveu: «… por toda a provincia e por toda a nação foi una pestilência nunca vista/ […] muito brava e com a qual não se alcança vitoria»(1).
A MESMA DOENÇA, MUITOS NOMES bubas boubas mal-espanhol sarna castelhana morbo napolitano morbo gálico mal-francês mal-germânico mal-polaco
mal-ilírico mal-turco mal-português mal-chinês mal serpentino mal de coito mal venéreo lues cancro-duro
Outro é o cronista de Carlos V, Fernández de Oviedo, que foi governador das Antilhas e estava em Barcelona quando Colombo foi dar conta aos Reis Católicos da descoberta da América. Escreveu: «A primeira vez que esta enfermidade em Espanha se viu foi depois que o almirante don Christoval Colom descobriu as Índias e tornou a estas partes»(2). Deve também ser referido Ruy Diaz de Ysla, o cirurgião que, no Renascimento, mais sifilíticos deve ter tratado na Europa. Localizou a origem da sífilis na ilha Hispaniola (atual Haiti e República Dominica) e fixou a data da sua introdução em Barcelona (3). Admite-se que Martín Alonso Pinzon, capitão da caravela Pinta da frota de Colombo, possa ter sido o primeiro europeu vitimado pela sífilis. Desembarcou já doente e faleceu pouco tempo depois.
‘Exportação’ para Itália Depois da sua introdução em Barcelona, a sífilis foi «exportada» para Itália. Carlos VIII de França, achando-se com direito à coroa de Nápoles, organizou um exército composto em grande parte por mercenários e invadiu essa península. Os Reis Católicos enviaram então para Nápoles um contingente de que faziam parte homens infetados com o «mal-espanhol». Fernandez de Oviedo conta que «passou esta enfermidade com alguns daqueles espanhóis e foi a primeira vez que em Itália se viu». […] E daí se espalhou por toda a cristandade». Posteriormente, Carlos V, com a sua contínua belicosidade, contribuiu para a difusão da sífilis pela Europa. Os seus mercenários levavam na retaguarda grupos de prostitutas e, depois de desmobilizados, difundiram a doença nos respetivos países, sem poupar os eclesiásticos. O médico judeu português Amato Lusitano, na «cura» 69 da sua IV Centúria, fala-nos de um frade com a «virga tumescida e inchada» e chagas na cabeça e de um presbítero que «sofria do mesmo mal».
A viagem da doença
GETTY IMAGES
A análise do ADN de várias estirpes permitiu concluir que o T. pertenue só existe em regiões tropicais e se transmite por contacto direto, e não por via sexual. Trata-se do treponema mais antigo e é nativo da América do Sul, enquanto o T. p. pallidum, agente da sífilis, é de aparecimento um pouco mais recente mas existia desde há muito naquele continente(4). A datação por carbono-14 de esqueletos humanos do Velho Mundo em que se identificaram lesões compatíveis com infeções por treponemas mostrou que todos eram posteriores a 1493, isto é, ao regresso de Colombo à Europa (5).
Tratamento com pau-santo Os nativos americanos já usavam o guáiaco na cura das bubas
Entre os pacientes de Amato Lusitano contava-se o papa Júlio III, que foi talvez quem, no século XVI, melhor conheceu a problemática da sífilis na Europa (6). Durante a sua formatura em Salamanca estagiou num hospital de sifilíticos; face ao antissemitismo, fugiu de Portugal no reinado de D. João III, tendo exercido clínica em vários países europeus, e indo falecer em Salónica, no Império Otomano. Descreveu, nas Centúrias de Curas Medicinais, 700 casos clínicos, e logo no quarto caso refere-se a um soldado de Carlos V que contraíra uma «sarna gálica» que evoluíra para o que hoje poderíamos classificar como neurossífilis. O doente consultou médicos em Nápoles e Roma e, não tendo melhorado, recorreu então a Amato Lu-
sitano, que lhe prescreveu cozimento de guaiaco (pau-santo) e uma trepanação craniana.
A ‘casa das bubas’ em Lisboa Sendo Lisboa o principal entreposto comercial de especiarias vindas do Oriente e das Américas, rapidamente a doença se introduziu na cidade, veiculada por
“
Uma noite com Vénus, toda a vida com mercúrio» Aforismo médico renascentista
comerciantes e marinheiros. D. Manuel I e, depois, D. João III viram-se coagidos a contratar um dos mais consagrados especialistas da doença, o castelhano Ruy Diaz de Ysla, que publicaria umas das mais importantes fontes documentais da época sobre a sífilis, dedicando o livro a D. João III. No Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, considerado o mais moderno da Europa quinhentista, foi mesmo criada uma enfermaria para internamento exclusivo de sifilíticos, a «casa das bubas», com capacidade para 50 doentes, de que era responsável Diaz de Ysla. Curiosamente, a introdução na Europa desta doença venérea acabou por proporcionar a Carlos V uma das principais fontes de receitas para a manutenção das guerras com que pôs a Europa a ferro e fogo. O fitofármaco mais utilizado no tratamento dos sifilíticos era então o guaiaco (Guaiacum officinale), planta que os nativos americanos já usavam na cura das «boubas» – «Assim como veio o mal das Índias veio o remédio, […] o qual é o pau e árvore dito guayacán» (7) – e que os marinheiros castelhanos começaram a usar ainda a bordo (3). Importavam-se troncos das Américas (o palo santo) e com eles preparavam-se infusões consideradas antissifilíticos eficazes. Carlos V conceVISÃO H I S T Ó R I A
53
SEXUALIDADE // DOENÇA
“
Morro a rebentar como um cão enquanto a p... da Bovary se prepara para viver eternamente» Gustave Flaubert no leito de morte
Fumigação Esta forma de tratamento foi também ensaiada
deu o monopólio da comercialização do guaiaco aos grandes banqueiros e empresários alemães Fugger, que financiavam o sorvedouro de recursos das guerras do imperador e da manutenção da sua faustosa corte. Outros fitofármacos então utilizados na terapêutica da sífilis eram a raiz-da-china (que Garcia de Orta experimentou em si mesmo, e era importada do Oriente pelos portugueses) e a salsaparrilha das Américas, além do mercúrio, cuja aplicação já era corrente na lepra e cuja utilização na sífilis foi promovida por Paracelso. Com o devir do tempo, a sífilis experimentou períodos de relativa acalmia. Por outro lado, os infetados foram desenvolvendo mecanismos imunogenéticos, deixando de ser tão exuberantes
as manifestações cutâneas da doença, que são as mais evidentes. Mas também se registaram períodos de importantes recorrências.
O ‘mal du siècle’ Face a uma certa complacência de costumes, um desses surtos ocorreu no século XIX, e tão elevada foi a sua incidência que era designado como o mal du siècle, a «doença do século: «Sífilis: toda a gente está mais ou menos afectada», escreveu Gustave Flaubert no seu Dicionário das Ideias Feitas. Lembre-se que no período de liberdade e licenciosidade que se seguiu à Revolução Francesa, funcionava à noite em Paris, no Palais-Royal, um edifício público, o «mercado das prostitutas». Para rentabilizar o «negócio»
foi mesmo editado, em 1793, um guia intitulado Lista completa das mais belas mulheres públicas e das mais saudáveis do Palácio de Paris. Na Europa, entre os sifilíticos contavam-se muitos intelectuais célebres. Entre os escritores, sofriam da doença o marquês de Sade, Schiller, Lord Byron, Schopenhauer, Baudelaire, Gustave Flaubert, Alphonse Daudet, Nietzsche, Guy de Maupassant, Oscar Wilde e muitos outros. Também sifilíticos eram os pintores Goya, Gauguin, Van Gogh ou Toulouse-Lautrec e os músicos Mozart, Beethoven, Schubert, Paganini e Donizetti. A profusão da sífilis era tal entre os intelectuais que «segundo certos autores de finais do século XIX, o génio poderia proceder da própria sífilis» (8). Eloquente
COM O ‘MAL DU SIÈCLE’
BEETHOVEN
LORD BYRON
BAUDELAIRE
GUSTAVE FLAUBERT
PAUL GAUGUIN
MAUPASSANT
1770-1827 Músico
1788-1824 Poeta
1821-1867 Poeta e ensaísta
1821-1880 Escritor
1848-1903 Pintor
1850-1893 Escritor
54 V I S Ã O H I S T Ó R I A
CRÉDITO FOTOXXXXX
'Cartilha dos Sifilíticos' Coleção de postais editada pelo Dispensário de Higiene Social de Lisboa em 1931
é a carta escrita por Maupassant a um amigo ao ser-lhe diagnosticada sífilis: «Tenho a sífilis, a verdadeira, não o miserável esquentamento [blenorragia], não a eclesiástica cristalina, não os burgueses papilomas venéreos (…), não, não, a sífilis. (…) E tenho orgulho nisso. Aleluia, tenho sífilis» (8). Nesse tempo, o tratamento baseava-se fundamentalmente no mercúrio, de onde o aforismo «Uma noite com Vénus, toda a vida com mercúrio». Contudo, este «fármaco» é extremamente tóxico. «Mercúrio: mata a doença e o doente», escreveu Flaubert no Dicionário das Ideias Feitas. E o autor de Madame Bovary era uma voz autorizada na matéria, pois contraíra sífilis e era tratado com mercúrio. Em resultado disso, a saliva tornou-se-lhe
VINCENT VAN GOGH
OSCAR WILDE
1853-1890 Pintor
1854-1900 Escritor
negra e caíram-lhe todos os dentes, com exceção de um. Resta a dúvida se teria morrido da doença ou da cura. No leito de morte, afirmou: «Morro a rebentar como um cão enquanto a p… da Bovary se prepara para viver eternamente.» Clinicamente, é plausível que tivesse «rebentado como um cão» devido aos efeitos tóxicos do mercúrio.
O tratamento eficaz Outros dois grandes períodos de recrudescência da sífilis coincidiram com a I e a II Guerras Mundiais. Os serviços de saúde desorganizaram-se, a incerteza do futuro levava as pessoas a viverem livremente o dia-a-dia e a mobilização de enormes contingentes militares determinou grande permissividade no domínio sexual. Por fim, com o advento do vírus da imunodeficiência adquirida (VIH) assistiu-se, a partir do final do século XX, a mais uma reemergência da sífilis, com caráter pandémico, sendo que a coinfecção de ambas as patologias infeciosas determinou (e determina ainda) sérias dificuldades terapêuticas. Significativamente, três prémios Nobel deram o seu importantíssimo contributo para a moderna terapêutica desta ubíqua doença sexual. Ao primeiro deles, o alemão Paul Ehrlich (1854-1915), laureado em 1908, deve-se a introdução de
arsenicais menos tóxicos (o Salvarsan e o Neosalvarsan), em substituição do mercúrio. O austríaco Julius Wagner-Jauregg (1857-1940), distinguido em 1927, promoveu o tratamento da neurossífilis pela malarioterapia, que consistia na infeção deliberada com o parasita da malária, provocando febre e sudação profusa, após o que o doente se sentia melhor, embora não curado. Finalmente, o britânico Alexander Fleming (1881-1955), premiado em 1944, proporcionou, com a descoberta da penicilina, o tratamento eficaz da sífilis. * J. A. David de Morais é médico especialista em doenças infeciosas e ex-docente da Universidade de Évora. NOTAS 1) F. López de Villalobos, El sumario dela medecina con un tratado sobre las pestíferas buvas, 1498. 2) G. Fernãdez de Oviedo, Dela natural hystoria delas Indias, 1526. 3) R. Diaz de Ysla, Tractado cõntra el mal serpentino, 1539. 4) K. N. Harper et al, «On the Origin of the Treponematoses: A Phylogenetic Approach, 2008. 5) K. N. Harper et al, «The origin and antiquity of syphilis revisited: an appraisal of Old World pre-Columbian evidence for treponemal infection», American Journal of Physical Anthropology, 2011.6) J. David de Morais, «A sífilis nas ‘Centúrias de Curas Medicinais’ de Amato Lusitano», Medicina na Beira Interior, Cadernos de Cultura, 2018. 7) F. López de Gómara, Historia General de las Indias, 1552. 8) Apud, C. Quétel, Magazine Littéraire, nº 186, 1982. VISÃO H I S T Ó R I A
55
SEXUALIDADE // SÉCULO XIX
À beira-mar (Praia das Maçãs) Oléo sobre madeira de José Malhoa, pintado em 1918
A ARTE DO GALANTEIO NO SÉCULO XIX Quer na cidade quer nos meios rurais, havia regras muito rígidas a observar, sobretudo para preservar a imagem e a reputação da mulher Por José Machado Pais* 56 V I S Ã O H I S T Ó R I A
VISÃO H I S T Ó R I A
57
ASSINATURA DA FOTO: JOSÉ MALHOA/MUSEU DO CHIADO/DGPG/ADP
A
mor e galanteio variam de acordo com a sua inscrição espacial e social. Por isso, os galanteios urbanos distinguiam-se dos rurais, da mesma forma que se diferenciavam em função do estatuto social dos amantes. Até meados do século XIX, o espaço público das cidades encontrava-se segregado segundo o género de quem o frequentava. O estatuto de «homem público» era atribuído a quem gozava de prestígio social, reconhecimento público. Em contrapartida, «mulher pública» era a designação outorgada à prostituta, precisamente porque circulava num espaço de domínio masculino, transgressão carregada de suspeição. À mulher virtuosa estava consagrado o espaço doméstico. Era em casa que devia ficar, tendo quando muito permissão para tomar chá em casa de amigas ou frequentar cultos religiosos. Por isso, as igrejas eram palco dos mais ardilosos galanteios. Os tratados de namoro regulavam os códigos de comunicação não verbal na igreja. Os conventos eram conhecidos pelas suas voluptuosas grades de doces. A clausura por desgostos de amor não apagava a chama do amor. Não por acaso, a doçaria portuguesa tem uma forte tradição conventual, de que são exemplo iguarias como barrigas de freira, bolos de amor, pecados de abade, beijinhos de frade, papos de anjo, suspiros de Santa Catarina, toucinho do céu, maminhas de noviças... As procissões atraíam múltiplas devoções. Abundavam piscadelas de olho, mordeduras de beiço, cortesias de aba beijada... Beijava-se a aba do chapéu na impossibilidade de beijar a cortejada. Refugiadas no espaço doméstico, as mulheres logravam adquirir uma boa reputação que lhes permitia manter ou conquistar um casamento. Para tomarem ar podiam assomar à janela, mas muito discretamente. As solteiras arriscavam namorar à janela. O namoro de estaca, como também era conhecido, era tolerado por algumas mães e mais bem acolhido pela vizinhança, matronas desejosas de
58 V I S Ã O H I S T Ó R I A
CONVITE À VALSA, DE COLUMBANO BORDALO PINHEIRO, 1880/MUSEU DO CHIADO/DGPG/ADF
SEXUALIDADE // SÉCULO XIX
não perder pitada do namoro da filha da vizinha. Os amantes sentiam, por isso, o seu espaço de intimidade violado. Os mais astutos acabariam por descobrir uma maneira de burlar a bisbilhotice da vizinhança mediante bilhetinhos amorosos que se baixavam e erguiam por um cordel que se desprendia da janela. Mais para finais do século XIX, surgiu uma engenhoca artesanal de tubos que, de acordo com princípios básicos da acústica, viabilizou a comunicação por fios e, alguns anos mais tarde, o namoro por telefone.
À conquista do espaço público Em meados do século XIX as modas parisienses invadem Lisboa. As senhoras burguesas anseiam por aceder às elegantes lojas de moda do Chiado, às mais chiques novidades importadas. A ascensão económica da burguesia fez que as mulheres passassem a identificar-se não tanto com a sua beleza ou laços de sangue quanto com
os adornos e riquezas com que se cobriam. Aquele desejo de dar nas vistas e de amortizar longas horas passadas ao espelho era o que as lançava à rua numa ânsia exibicionista. Porém, os circunspectos esposos das respeitáveis burgueses sentiam uma incómoda ameaça. E se as suas mulheres fossem confundidas com as outras, as prostitutas? Em meados do século XIX, os legisladores passam à ação, congeminando medidas para impor ordem no caos. Surgem então os projetos de regulamentação da prostituição. As prostitutas deveriam ser guetizadas em casas de toleradas, para que as respeitáveis burguesas circulassem sem constrangimentos morais. Era a conquista do espaço público pela mulher burguesa. O gosto burguês de exibição em público – no Chiado, no Passeio Público, nos jardins, nos teatros – levou a mulher a dotar a sua presença de signos falantes. As próprias fitinhas e laços, balanceando na traseira das cin-
OS CONVERSADOS DA ALDEIA, DE FRANCISCO JOSÉ DE RESENDE, 1860/PSML/EMIGUS
O mesmo país, dois mundos Um jovem urbano convidando uma senhora para dançar, num baile de sociedade (Convite e Valsa, c. 1880, pintura de Columbano Bordalo Pinheiro), e um namoro do mundo rural (Conversados da aldeia, 1860, de Francisco José de Resende)
turas das donzelas, ganhavam apodos significativos: «Siga-me, senhor! Dê-me aqui um beliscão! Casa-me, papá!» Em contrapartida, algumas damas usavam o pudor como estratégia de sedução. Os cavalheiros também caprichavam no seu porte. Os chapéus eram indispensáveis. Os de copa, de traço mais aristocrático; os chapéus melão, de forma arredondada, preferidos pelos burgueses. Ao cruzar-se com uma dama, o cavalheiro levantava levemente o chapéu, evitando olhá-la frontalmente. Desse modo assegurava uma postura digna. Em contrapartida, os peraltas esmeravam-se em malabarismos com o chapéu, respondendo algumas damas com manejos de leque. Os galanteios envolviam olhares sedutores e sorrisos enigmáticos. Mirones deambulavam pela cidade na ânsia de vislumbrar um tornozelo, uma curva acentuada por um corpete. Os mais afoitos sedutores perseguiam as mulheres,
tossindo ou recorrendo a interjeições: «Pst, pst!» Outros, mais tímidos ou felinos, usavam de um charme romântico que se reproduzia no estilo nostálgico e ardente que reverberava nas cartas de amor: «Minha Alice, não cessaram as contrações violentas do coração desde que recebi a tua carta...» Às suas amadas também rogavam fotografias, madeixas de cabelo ou um lenço perfumado. Com o passar do tempo, as burguesas começaram a reivindicar direitos a que só
Mirones deambulavam pela cidade na ânsia de vislumbrar um tornozelo, uma curva acentuada por um corpete
os homens tinham acesso: praticar desporto, passear de bicicleta, usar calças e até fumar. O corpo desnuda-se. Com a moda dos banhos de mar, as pernas nuas aparecem pela primeira vez nas praias. Travavam-se lutas de elegância entre os banhistas. Se alguma prometida recusava uma ida à praia, logo o namorado suspeitava que a vergonha da amada era determinada pelo receio de exibir ancas estéreis. A loucura dos banhos associava-se a incessantes campanhas por uma vida mais livre, em contacto com a natureza – campanha que algumas feministas se encarregavam de fomentar, circulando nas suas populares bicicletas, por entre assobios e comentários apreciativos e depreciativos. Na alvorada do século XX chegou o animatógrafo, trazendo finalmente aos namorados uma proximidade discreta. A passagem do namoro à janela para o namoro no cinema correspondeu a uma enorme mudança de mentalidades. Na escuridão das salas de cinema, os contactos eram fortuitos mas afortunados, outrora inimagináveis. Mãos trémulas de ansiedade navegando o corpo ao lado, antecipavam a loucura dos anos 20 que haveriam de anteceder longas décadas de repressão sexual.
Sopeiras e costureiras Na segunda metade do século XIX intensificaram-se os fluxos migratórios para a cidade e subúrbios. Em meios operários, a iniciação sexual ocorria frequentemente com prostitutas. Nas feiras, os carrosséis de cavalinhos rivalizavam com as mulheres das barracas de tiro ao alvo que vendiam refrescos e beijos. Operárias, criadas de servir e costureiras, buscando melhores condições de vida, sonhavam que alguém as pudesVISÃO H I S T Ó R I A
59
SEXUALIDADE // SÉCULO XIX
se levar ao altar. Nas vilas operárias, os namoricos ocorriam em contexto local ou nas próprias fábricas. Era aí que as raparigas começavam a andar debaixo de olho. Depois surgiam os bailaricos de fim de semana, embora as moças fossem acompanhadas da mãe ou de uma tia, para as controlar. As sopeiras caíam frequentemente no engodo de militares e polícias, deixando-se levar pelos seus farfalhudos bigodes. Era conhecido o dito: «O que faz uma galinha [um magalinha] à porta de uma cozinha? Está à espera da sopeirinha!» Mas elas não eram apenas aliciadas por sedutores fardados: em casas burguesas e aristocráticas, a iniciação sexual dos rapazes era frequentemente consumada com jovens criadas. Um sagaz poeta observava: «Toda em vergonha se abrasa/ Gentil criada do meio/ Quando o menino da casa/ Com beijocas a atenaza/ Ou lhe deita as mãos ao seio.» Quanto às costureiras, os magros proventos da agulha levavam algumas a comprar com o corpo o que não lhes rendia a agulha. Trocavam a máquina de costura pela melancolia do bordel. Muito solicitadas e seduzidas por falsas promessas, sopeiras e costureiras acabavam por ser atraídas para encontros clandestinos. No seu encalço seguiam catitas de barba à guise, operários janotas com promessas e copinhos, velhotes endinheirados e homens casados. Criadas de servir e costureiras eram as categorias profissionais que mais sobressaíam nos arrolamentos de prostitutas matriculadas no concelho de Lisboa na segunda metade do século XIX. Nos finais do século XIX emerge um novo padrão de encontros amorosos, protagonizado pelas amantes com casa posta. Correspondendo a um ideal pequeno-burguês, amantes e protegidas acabavam por idealmente se inscrever num modelo conjugal materializado ora numa união paralela, no caso dos casados, ora numa união substitutiva, no caso dos solteiros. A título de exemplo, 60 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Passeio Público de Lisboa O lugar da moda da burguesia no século XIX
tome-se o enamoramento de Artur por Conchita, relatado por Eça de Queirós em A Capital. Chegado Artur a Lisboa, o seu amigo Melchior arrastou-o, uma noite, para a pândega. Numa caleche, já em companhia de duas fogosas andaluzas, uma delas, Conchita, aconchegou suavemente a mão de Artur. Arturzinho ficou imediatamente apaixonado pela espanhola, perante tão subtil sinal de amor. Mais ainda quando Conchita lhe falou das agruras da vida que a levaram por tão desafortunados caminhos. Muy desgraciada! E logo Artur meteu na cabeça que haveria de a regenerar. Dar-lhe-ia uma casita, um amor poético e moço, toiletes e a consideração de esposa… Apesar dos enganos e frustrações, como aconteceu com Arturzinho, emergia uma nova sensibilidade onde os favores sexuais, embora pagos, se traduziam em simulacros de sedução, sentimento e afeição.
Brigas nos meios rurais Nos meios rurais os namoricos sobrevinham em festas e arraiais, no adro da igreja, nos fontanários de aldeia e nas fainas do campo. Após as colheitas, os aldeãos reuniam-se noite adentro em torno de uma fogueira. As moças casadoiras exibiam o seu apego ao trabalho,
fiando linho com as mães. Mas não tardava que aparecessem os «mulas», rapazes que atiravam gracejos e galanteios às moças, desafiando-as para cantilenas e bailaricos. O fiadeiro ficava de lado. Os jovens eram desde cedo encorajados à iniciação sexual. No Nordeste trasmontano e regiões beirãs, a festa dos rapazes era uma prova evidente de virilidade masculina. Mascarados com caretas e levando chocalhos à cintura, perseguiam as raparigas em correrias desordenadas. Quando alcançadas, eram chocalhadas, em simulações de ato sexual. A identidade masculina era celebrada de forma festiva, transgressora e orgiástica.
O estatuto de ‘homem público’ era atribuído a quem gozava de reconhecimento público. Em contrapartida, ‘mulher pública’ era a designação dada às prostitutas
LITOGRAFIA DE GEORGE VIVIAN/ MUSEU DE LISBOA/CML/GERAÇÃO
Comunicação não verbal durante a missa
Um dos momentos altos das festas dos rapazes era constituído pelas loas, repletas de ditos picantes e satíricos. Frequentemente, as loas fabricavam casamentos improváveis, baralhando hierarquias sociais, ricos a casarem-se com pobres, num ritual de inversão de status. Era uma paródia anarquizante da ordem que se reforçava na justa medida em que a anarquia era só a brincar. Quando os jovens chegavam à idade namoradeira, o senso comum aconselhava-os: «Se queres bem casar, teu igual vai procurar.» Aliás, os pais dos jovens também eram admoestados pela sabedoria popular: «Casa teu filho com teu igual e de ti não dirão mal.» Deste modo, a mobilidade social através do casamento era desencorajada. A ordem social era frequentemente perturbada por ocasião dos bailaricos de aldeia, havendo rixas e forte pancadaria entre os jovens da aldeia onde se realizava o baile e os forasteiros. Como os bailaricos apareciam associados aos namoricos, os forasteiros faziam perigar a reputação das moças da aldeia, avaliada pelo bom porte e castidade. Em contrapartida, o prestígio dos rapazes passava pela capacidade de conquista e proezas sexuais. A compatibilização destas conflituantes fontes de prestígio
Ele – Para dizer Como é tão formosa!: coloca a mão direita sobre o coração, erguendo os olhos para o teto. Ela – Não lhe posso falar: deixa cair o missal. Ele – Serei muito feliz se for correspondido: aperta as mãos uma na outra, erguendo-as à altura do peito. Ela – Escreva-me: abre o missal e folheia-o devagar. Ele – Tenho aqui uma carta para si: desabotoa o casaco com a mão direita
e logo o fecha com a esquerda. Ela – A mamã anda desconfiada, é preciso cautela: coça o nariz com o missal fechado. Ele – Seu pai sabe alguma coisa?: coça atrás da orelha. Ela – Gosto muito de si: aperta o missal fechado entre as mãos. Ele – À noite passo por sob a sua janela: levanta o pescoço e coça o queixo. Ela – Apareça-me que eu estou à janela: folheia o livro depressa.
Adaptado do Almanaque das Travessuras de Cupido. In José Machado Pais, Artes de Amar da Burguesia, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais
levava a que os rapazes de uma aldeia se divertissem com as moças de outras aldeias, de modo a preservar a honra das suas conterrâneas. Muito concorridos eram os bailes da região saloia, nos arrabaldes de Lisboa. Muitos eram os namoros surgidos nos chamados «muros do derrete», sendo famoso o da feira das Mercês, no concelho de Sintra. As moças sentavam-se no muro esperanto o cortejo dos rapazes. Estes aproximavam-se com piscadelas de olho e assim poderia começar o namoro. Os encantos das saloias galgavam os muros do derrete, chegando a ser representados em algumas peças de teatro. Os bailes saloios eram afamados e concorridos, não sendo difícil para os forasteiros entrarem nas cenas de pé de dança. Por isso se dizia: «O bailarico saloio/ não tem nada que saber/ É andar c’um pé no ar/ e outro no chão a bater.» Porém, se os forasteiros se excediam nos galanteios e meneios, as cenas de ciumeira eclodiam e eram corridos a pontapé. A fama das cobiçadas saloias era tal que mesmo em Mértola ela aparecia representada no cancioneiro popular: «Sou Saloia, vendo leite/ Na cedade de Lisboa; Dizem todos os janotas: Ó saloia, és tão boa!» Porém, alguns janotas mais atrevidos eram corridos a varapau: «Sou saloia,
honro-me disso, /P’ra casacas [homens encasacados] não sou má./ Os janotas atrevidos/ Sei correr a varapau.” Em Trás-os-Montes, os rapazes consideravam as raparigas das suas aldeias como propriedade interdita aos forasteiros. A estes apenas concediam o direito de as namorar caso se submetessem ao rito do pagamento da cabrita, que consistia na oferta de rodadas de vinho, carne e bacalhau. Se o rejeitassem, eram mergulhados na fonte ou num poço, não com o propósito de os matar mas de os humilhar. Os casamentos exolocais não eram bem aceites, pois poderiam provocar desequilíbrios no mercado matrimonial, como atestam o adágio popular «Quem longe vai casar, ou se engana ou vai enganar.» Alguns iam bem longe casar, como acontecia com jovens portugueses que emigravam para o Brasil. Como tinham a fama de conquistadores e mulherengos, com a independência do Brasil suscitaram fortes hostilidades antilusitanas: «Marinheiro, pé-de-chumbo/ Calcanhar de frigideira/ Quem te deu a confiança/ De casar com brasileira.» *José Machado Pais é investigador do Instituto de Ciências Sociais e autor de livros como A Prostituição e a Lisboa Boémia ou Artes de Amar da Burguesia VISÃO H I S T Ó R I A
61
SEXUALIDADE // PARALITERATURA
Os livros malditos
As muitas obras de Alfredo Gallis podem surgir assinadas por Condessa de Til, Barão Alfa e sobretudo Rabelais, o mais famoso dos pseudónimos que usava. Foi ele o principal nome da literatura licenciosa do século XIX por Emília Caetano
O
livro chegava ao Brasil sem nome de autor nem de editora, apenas com uma referência vaga a São Paulo como local de publicação. Nada que surpreendesse os leitores brasileiros, como não tinha certamente intrigado os portugueses, já que grande parte dos chamados «livros para homens» circulava clandestinamente. E, no entanto, Volúpias: 14 Contos Galantes ia tornar-se um «clássico» deste género de literatura, do lado de cá e de lá do Atlântico, e o seu autor, Alfredo Gallis, o mais conhecido pornógrafo. Só na 2.ª edição, publicada em 1893, Gallis assumiria a autoria, assinando como Rabelais, o pseudónimo a que mais vezes recorria, sobretudo nos livros de linguagem particularmente sugestiva. A obra aparecera no Brasil pela mão de dois portugueses, os irmãos Teixeira, donos de uma livraria em São Paulo, embora ambas as edições tivessem provavelmente sido impressas em Lisboa. Volúpias, que o autor confessaria mais tarde ser a sua obra de estreia, editada pela primeira vez em 1886, iria tornar-se «a vanguarda da literatura pornográfica em língua portuguesa», como diz Leonardo Mendes, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro no texto Livros para Homens: Sucessos Pornográficos no Brasil no final do século XIX. Vendido a preços populares, o livro circulou a tal ponto no Brasil, que, mais tarde, chegou a haver um catálogo Rabelais. Nascido em 1859 em Lisboa, Alfredo Gallis revelar-se-ia como jornalista e es-
62 V I S Ã O H I S T Ó R I A
critor. Colaborador de publicações como a Ilustração Portuguesa ou o Jornal do Comércio, teria no Diário Popular a secção 24 Horas, que assinava como Anthony. Enquanto escritor, deixou alguns romances naturalistas, corrente em voga na época, e até dois volumes complementares da História de Portugal de Pinheiro Chagas. Mas nada o tornaria tão popular como os contos picantes que assinava com pseudónimos como Condessa de Til, Barão Alfa, Duquesa Laureana ou Ulisses. A pretexto de uma suposta crítica de costumes, criava contos que envolviam prostitutas, mulheres adúlteras ou a iniciação sexual de jovens, habitualmente por senhoras mais velhas. Por vezes, os textos assumiam a forma de conselhos diretos, como um manual para noivos e outro para noivas. Os títulos eram invariavelmente sugestivos, como As Mártires da Virgindade, Lascivas, Diabruras de Cupido, ou Sensações Fortes. Por vezes os cenários eram transpostos para a Antiguidade, como em O Sensualismo na Anti-
A pretexto de uma suposta crítica de costumes, Alfredo Gallis escrevia contos que envolviam prostitutas e adúlteras
ga Grécia ou A Devassidão de Pompeia. A homossexualidade, tema menos habitual na época, surge em contos como Sáficas ou Ligurino, um jovem favorito do poeta Horácio. Gallis publicou ainda uma série a que chamou Tuberculose Social, onde incluiu títulos como Políticos ou Decadentes, ao mesmo tempo que ele próprio ia fazendo uma carreira se não propriamente na política, pelo menos na Administração Pública. Foi escrivão da Confederação dos Pilotos na Barra, administrador do concelho do Barreiro e secretário do governador civil de Lisboa. Seria, aliás, durante o seu trabalho no porto de Lisboa que terá travado conhecimento com o rei D. Carlos. «Embora as cenas sejam claras, não há linguagem chula. O uso frequente de metáforas torna a pornografia mais suave, uma vez que permeada pelo riso, porém nunca menos eficiente», explica a académica brasileira Aline Moreira Duarte, a propósito do estilo deste autor, no texto Rabelais: Alfredo Gallis e os Subgéneros Pornográficos na Belle Époque. Parte da sua obra seria ainda dedicada à crítica anticlerical, na tradição da literatura satírica, quer portuguesa quer estrangeira, que via os mosteiros como cenários de potenciais orgias. Exemplo disso tinha sido Os Serões do Convento, de autor desconhecido (assinado apenas por M.L.), que se tornou um dos mais conhecidos livros pornográficos da segunda metade
do século. No caso dele, resultou em contos como A Amante de Jesus ou O Divino Esposo.
A literatura do Inferno «Era um autor menor, um escritor a metro», considera António Ventura, catedrático do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e coordenador de Aventuras Galantes, uma edição da Tinta da China que reúne parte das Volúpias. Mas, em termos de quantidade, deixaria uma obra «brutal». Aquele investigador assegura que Gallis foi, sem dúvida, «o mais prolífero» destes autores, já que, ao longo de duas décadas, escreveu dezenas de livros, desde volumes com 200 ou 300 páginas a folhetos de 20, que eram distribuídos semanalmente. Aliás, nem sequer é possível conhecer toda a produção dele, já que uma parte era anónima. «Este género é uma espécie de rio subterrâneo que percorre toda a nossa literatura desde a Idade Média até ao século XX e que envolveu alguns dos chamados autores sérios, como José Régio. Só que era clandestina», explica António Ventura. Na sua investigação, diz que a maior dificuldade com que se viu confrontado foi a total ausência de estudos nesta matéria. Ou perto disso: «A Biblioteca Nacional não tem quase nada.» Ao contrário do que sucede em França, onde um grosso volume, Les Livres de l’Enfer, de Pascal Pia, reúne a literatura erótica daquele país dos séculos XVI a XX. E também é possível encontrar trabalhos sobre o tema em Itália, Inglaterra e mesmo Espanha, ainda que neste caso menos. Até ao início do século XIX, a Inquisição e a Real Mesa Censória conseguiram que toda a chamada literatura marginal só circulasse clandestinamente, em cópias manuscritas. Textos impressos, este historiador diz não ter encontrado nenhum nesse período. E, no entanto, abundavam traduções de obras estrangeiras, sobretudo francesas, que nem sequer tinham
'O Saque dos Conos' Gravura que ilustra a 1ª edição de uma obra do início do século XIX
o nome do tradutor. Num texto escrito para a obra Rumos e Escrita da História (Edições Colibri), Ventura conta que a Real Mesa Censória elencava pormenorizadamente os exemplares que apreendia dessas traduções de livros franceses, como Les Liaisons Dangereuses, de Laclos, ou vários de Mirabeau. Com o século XIX chegariam as primeiras obras impressas desta literatura, nalguns casos de autores que já tinham circulado em cópias manuscritas. António Ventura está convicto de que a primeira foi a Martinhada, de Caetano José da Silva Souto Maior, conhecido como «Camões do Rossio», e inspirada no lúbrico Frei Martinho de Barros, confessor de D. João V. Em 1815 seria detido um homem, à porta da Universidade de Coimbra, por estar a vender livros obscenos, entre os quais 200 exemplares deste. Na capa figurava como data de edição 1814 e Chipre como intrigante local de
impressão (no interior adivinhava-se que terá sido Londres). Mas a grande explosão desta literatura iria dar-se no final do século XIX. «A sociedade estava diferente. Embora a taxa de analfabetismo fosse ainda altíssima, mais gente sabia ler. Havia, portanto, um público, que era um público burguês, incluindo muitos estudantes», diz ainda o historiador. Daí que a literatura licenciosa se tenha tornado um comércio florescente. De tal forma que chegou a estar elencada em catálogos, por vezes com a menção «À venda à socapa em certas livrarias». Mesmo sem censura, os bons costumes obrigavam a uma circulação sob reserva. Quanto a Gallis, pouco chegou a conviver com a República, já que morreria a 24 de novembro de 1910. E mais tarde, com o Estado Novo, seriam os livros políticos os novos protagonistas das vendas à socapa em certas livrarias. VISÃO H I S T Ó R I A
63
SEXUALIDADE // ESCÂNDALO
A ‘loucura lúcida’ de Adelaide por Teresa Campos
Q
uase a beirar os 50 anos, Adelaide Coelho da Cunha tornara-se a anfitriã ideal de uns muito aplaudidos serões literários, na Lisboa do início do século XX. Bonita, culta e emancipada, era a herdeira do Diário de Notícias, jornal que marcara uma inovação na imprensa por ser impresso em máquinas rotativas. Financiado por Tomás Quintino Antunes, conde de São Marçal, o diário tinha sido fundado e dirigido pelo pai de Adelaide, Eduardo Coelho, e depois da morte deste, ocorrida em 1889, pelo marido dela, o poeta e jornalista Alfredo da Cunha. Enquanto Alfredo passava grande parte do dia no jornal, Adelaide ocupava-se de almoços e outras visitas sociais. Nos tempos livres, e como eram ambos apaixonados por viagens, corriam Portugal e o estrangeiro. Nas cartas que a mulher enviava à família, fossem do Alentejo ou de Paris, o tom era sempre de satisfação. «Quem corre por gosto não cansa», sublinharia várias vezes. Em 1906, o casal instala-se no Palácio de São Vicente, ao pé da Feira da Ladra, e Adelaide, mãe de um único filho, José, revela-se uma dona de casa exemplar. Em 1915, não poupam para comemorar as bodas de prata e a cerimónia teve eco em Lisboa inteira. 64 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Mas a partir de 1917 tudo muda. Adelaide passa a mostrar-se menos alegre, mais distante de tudo e a usar um vestuário bem mais modesto. Até que, num dia de novembro de 1918, exatamente uma semana depois do fim da I Guerra, não regressa a casa depois dos seus múltiplos afazeres.
Plano de fuga e recuperação Desde o primeiro momento, houve quem apostasse que aquela ausência súbita só podia ser sinal de suicídio, já que Adelaide não levara nada consigo, porque nada faltava no palácio. Mas, na ausência de cadáver, sem suspeitos e desprovido de qualquer indício, Alfredo decide dedicar-lhe parte da primeira página do jornal, publicando um anúncio que descrevia detalhadamente a mulher: «Desapareceu de sua casa uma senhora de mais de 40 anos, de estatura baixa. Usava vestido castanho-escuro, casaco preto, de abafo, romeira e peles, chapéu de veludo preto, sem enfeites, e sapatos de verniz abotinados...» Não dizia o nome, mas prometia recompensas a quem soubesse do seu paradeiro. Reconhecendo-se naquele apelo, Adelaide resolve escrever a Eduardo: «Estou viva, embora considerando-me morta para todos os efeitos.» O carimbo de San-
‘ARQUIVO DA FAMÍLIA’
Há cem anos, a herdeira do Diário de Notícias desapareceu um dia de casa deixando marido, filho e uma vida de luxo, para ir viver com o ex-motorista, muito mais novo. ‘Caçada’ pela GNR, seria internada num hospital psiquiátrico
‘ARQUIVO DA FAMÍLIA’
O marido Alfredo da Cunha, numa foto de 1917, um ano antes de Maria Adelaide (retratada na foto à direita, em 1900, com 31 anos) sair de casa
Manuel Cardoso Claro Em 1917, com 25 anos, ao volante do automóvel da família Cunha
ta Comba Dão denunciava o local onde se encontrava, e Alfredo não tardou a pôr a GNR à sua procura, num procedimento bastante comum à época, quando vigorava a restituição judicial da mulher ao marido. Soube-se então que Adelaide fugira com Manuel Claro, antigo motorista da família, homem com quase metade da sua idade e pouco mais velho do que o filho. O marido decretou por isso encaminhá-la para internamento no hospital portuense do Conde Ferreira. «Só pode estar louca», ouvia constantemente, e aquela sentença era a única que para ele e para o mundo podia explicar a decisão de Adelaide de abandonar o lar e a fortuna para ir viver modestamente com o chauffeur – que entretanto fora detido. Declará-la incapaz de gerir a sua vida e os seus bens seria o passo seguinte, e é por isso que a tríade da psiquiatria da altura – Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid – há de alinhavar um diagnóstico à medida de Adelaide: «Não tem qualquer alteração nos mecanismos biológicos, mas como não está a agir como seria de esperar, só pode ter uma loucura lúcida.»
Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid fazem o diagnóstico: ‘Não tem qualquer alteração nos mecanismos biológicos, mas como não está a agir como seria de esperar, só pode ter uma loucura lúcida’
Com a interdição de Adelaide, Alfredo avançou sem medos para a venda do jornal, como há muito pretendia. Já a mulher, só meses mais tarde conseguiria sair do manicómio, ajudada por um dos mais famosos advogados de então, Bernardo Lucas, contratado pelo amado, Manuel Claro. Depois, enquanto este não saía da prisão, ela contaria toda a história num folhetim publicado no jornal A Capital, a que chamou Doida Não!, e a que Alfredo responderia com outro – Infelizmente Louca! – nas páginas do Diário de Notícias. Livres a partir de 1922, Adelaide e Manuel viveriam juntos até à morte dela, em 1954.
‘ARQUIVO DA FAMÍLIA’
Argumento de filme «Foi-se embora sem nada, nem sequer a aliança levou», atesta Ana Rita Coelho Ribeiro, sobrinha-bisneta de um irmão de Adelaide, José Tomás, a quem a história fascina desde pequena – é ela que guarda orgulhosamente um vestido que Adelaide usava nos serões literários, além de ser a fiel depositária de uma série de fotografias e livros de então. «Era uma mulher muito à frente da sua época», sublinha Ana Rita, para quem a relação que a «tia» manteve com Manuel Claro só pode ter sido amor verdadeiro. «Não VISÃO H I S T Ó R I A
65
creio que pudesse ser apenas um devaneio, senão não teria sobrevivido até ao fim dos seus dias.» Essa é também a versão que transparece em Solo de Violino, filme realizado pela luso-francesa Monique Rutler, que levou a história ao grande ecrã em 1990 depois de um amigo ter encontrado o livro de Adelaide num alfarrabista. Os diálogos que o filme reproduz, sobretudo os do tempo do Palácio de São Vicente, são bem reveladores da vida do casal. Depois de um muito concorrido serão, Alfredo da Cunha diz-lhe: «Todos te elogiaram, dizes Camões como ninguém.» E Adelaide responde-lhe: «Todos não, não me recordo de qualquer comentário teu.» Pouco depois, ouvimos uma Adelaide desgostosa a pedir a Manuel Claro, então motorista da família: «Esta noite há de levar-me ao teatro, que o senhor doutor tem muito que fazer.» Mas eis que nessa noite, na ópera, Alfredo se deixa ver acompanhado de uma jovem mulher. «Não é surpresa para mim», deixará escapar Adelaide. «Afinal, não me fala, não me liga, não me procura...» No tal diário, a propósito disso, escreve: «Ontem conseguiu novamente mostrar o seu desprezo por mim.» Há de seguir-se o momento em que Alfredo despede Manuel (já haveria algo entre ele e Adelaide? Suspeitaria Alfredo?) e depois o reencontro dos futuros amantes, na rua, a lançar os dados do princípio de uma outra vida. A Manuel, Adelaide confessa que passa dias sozinha, que Alfredo nem vai a casa dias seguidos e só aparece para mudar de roupa. E logo lhe lança a interrogação: «E se eu um dia decidisse pertencer ao teu mundo?», antes de assumir, com todas as letras, «não gosto da vida que levo, é falsa». Já durante a fuga, no comboio, é Manuel que a questiona: «Tens a certeza? Mesmo perdendo tudo a que estás habituada?» Ao que Adelaide responde: «Só te quero a ti. E que tu me queiras.» E passa a usar o nome de Maria Romana Claro. Rezam ainda as crónicas que Adelaide já se fartara há muito do seu casamento 66 V I S Ã O H I S T Ó R I A
de conveniência e que chegara mesmo a pedir o divórcio: o marido era frio e distante, distraindo-se com sucessivas relações extraconjugais. Mas a lei que previa a dissolução do casamento só raramente saía do papel. Alegadamente, Alfredo até conseguira dissuadi-la desse pedido. Até que Adelaide decidiu fugir.
Da moral e bons costumes Perante tudo isto, e dada a reação de Alfredo ao «desaparecimento» da mulher, torna-se evidente que a relação de ambos tinha pouco de cordial. Ele bem começa por suspeitar que ela possa ter-se matado, mas ao descobrir onde se escondeu não hesita em enviar a polícia para arrestá-la – e entregá-la depois num hospital psiquiátrico. E é aqui, na fase do processo jurídico e moral, que o caso passa também a constar dos anais da Psicologia: «Toda a literatura dessa época caracteriza-se pela menoridade da mulher, um ser que nem barba tinha. No fundo, era alguém que no processo evolutivo não se tinha desenvolvido o suficiente e, portanto, não cumpria todos os preceitos para tomar as suas decisões», nota Carlos Poiares, especialista em Psicologia Forense.
[ARQUIVO PALÁCIO DE SÃO VICENTE]
SEXUALIDADE // ESCÂNDALO
Não eram felizes e não viveram juntos para sempre O casal, Maria Adelaide e Alfredo, com o filho, numa foto sem data
A lei que permitia à família declarar a interdição de alguém tinha sido revogada, o que obrigava à necessidade de um carimbo da Ciência. Com aquele atestado de loucura, Alfredo da Cunha, o marido traído e abandonado, ficaria livre para decidir o futuro dos bens – o que lhe interessava sobejamente. «Ele sabia que não conseguiria vender o jornal sem a aprovação de Adelaide, a herdeira maioritária, e assim afastava-a também do seu caminho», prossegue Poiares, acrescentando que naquele tempo se faziam diagnósticos até por retrato. «Perante alguém que se revolta contra as instituições e as amarras sociais que a prendem, a Medicina não hesitava em considerar isso da ordem do patológico.»
Importância da palavra escrita
A história deu origem a um romance de Manuela Gonzaga e a um filme de Monique Rutler
Soube-se do desaparecimento de Adelaide pela imprensa da época e seria pela mesma que se conheceria a sua versão da história, vinda a público no folhetim publicado no vespertino A Capital, então autoproclamado «diário republicano da noite». Depois de conseguir deixar o hospital, a 9 de agosto de 1919, é da venda dessas crónicas que ela vai subsistindo, a par de trabalhos de costura, enquanto aguarda que Manuel Claro seja libertado.
“ “
Maria Adelaide escreveu o livro Doida Não e Não! e defendeu-se das acusações do marido nas páginas de A Capital, escrevendo a série O Martírio de uma Mulher
Alfredo da Cunha contou a sua versão dos acontecimentos através do Diário de Notícias, que publicou o seu livro Infelizmente Louca!
Por tudo isto, no livro Doida Não e Não!, biografia de Adelaide escrita por Manuela Gonzaga, a autora não tem dúvidas de que esta história mistura vários fenómenos, da violência doméstica e do machismo ao bullying e à corrupção. Mas que também viveu da liberdade de expressão e do jornalismo, pois «só este pode travar abusos e dar voz às injustiças, visto que nunca se saberia da história sem o jornalismo livre», insiste Manuela Gonzaga. E isso, sublinha, fez toda a diferença, porque, como os jornais em que as cartas foram publicadas correram mundo, acabou por ser a opinião pública a desempatar o caso, pressionando para que o desfecho fosse favorável a Adelaide. «Publicaram-se até reportagens sobre as condições tenebrosas de vida nos hospícios, onde estavam muitas mulheres internadas por casos semelhantes», segue a escritora. «Diziam: o que ela fez não é certo, mas não se põe uma senhora no seu juízo num hospital de loucos. E pediam ‘deem-lhe o divórcio’.» Adelaide nem vacilava: «Afirmando que hei de sair vitoriosa, afirmo-o convicta que não estou nem nunca estive doida. Demore 5, 10, 15 anos? Leve o resto da vida», lia-se nos seus escritos. Já Alfredo, mesmo depois de a mulher ter saído do palácio, manteve o lugar dela à mesa e as roupas nos armários. Escolhia sempre as flores de que ela mais gostava e depois guardou todos os textos seus e sobre ela numa escrivaninha de fundo falso, só há pouco tempo encontrada. «Fez-lhe uma espécie de culto, como se ela fosse voltar no dia seguinte, nunca aceitando que, apesar da fome, da falta de dinheiro e do frio, ela não regressaria», interpreta Manuela Gonzaga. Manuel Claro juntar-se-ia a Adelaide depois de sair da prisão e os dois viveriam juntos até à morte dela, num quarto alugado no Porto. Alfredo morrera uns anos antes, e isso permitira a Adelaide não só fazer as pazes com o filho como libertar-se – finalmente! – do rótulo de «louca lúcida». VISÃO H I S T Ó R I A
67
SEXUALIDADE // PROSTITUIÇÃO
AS MENINAS DA MADAME
Durante mais de cem anos, o Estado português tentou integrar e fiscalizar a prostituição feminina, com o principal argumento de combater doenças venéreas como a sífilis. Uma visita às ‘casas toleradas’ Por João Pacheco
68 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GETTYIMAGES
Bordel, Paris, por volta de 1900 O ambiente em Portugal seria semelhante
VISÃO H I S T Ó R I A
69
SEXUALIDADE // PROSTITUIÇÃO
1170 D. Afonso Henriques faz publicar a primeira repressão legal da prostituição em Portugal, ordenando a prisão das barregãs dos clérigos. 70 V I S Ã O H I S T Ó R I A
1275 D. Afonso III proíbe as barregãs de frequentar a corte e os homens casados de fazer doações às amantes. 1814 É inaugurada, em
AML
O
homem que chegou primeiro espreita agora pelo buraco da fechadura da casa de meninas. Já bateu à porta, mas nada feito. Olhando por ali, só consegue descrever ao segundo homem uma imagem rápida. O instantâneo parece inventado no momento. E vai na linha de um boato corrente. Em certos dias do mês acontecem aqui orgias à italiana. Segundo quem espreita primeiro, uma das prostitutas residentes cavalga de chicote na mão, montada na garupa de um homem que trota pela casa. Espreitando pelo mesmo buraco de fechadura, o segundo cliente já nada consegue ver a não ser móveis. Certo é que o bordel da Madame Blanche manter-se-á indisponível hoje – até para bons clientes, como o filho de uma família rica. Lá dentro estão os italianos de um paquete da linha da América que passa por Lisboa duas vezes por mês, levando ao fecho do estabelecimento para festas privadas. Nos dias normais, em meados do século XX, a casa de Madame Blanche «distinguia-se entre os bordéis de Lisboa pelo grande número de mulheres, o ambiente e, paradoxalmente, o decoro», escreve José Rentes de Carvalho no conto Almoço no Ritz, incluído no livro Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia (2011). Havia alguns móveis aparatosos. E sobretudo sofás e banquetas, no grande salão onde se podia conversar com as meninas da Madame. Era ali que o cliente escolhia uma das prostitutas da casa, subindo depois com ela até um dos quartos. A casa da Madame Blanche ficava num
Prostituição de rua Em Portugal, um pano branco tapava a vista para o interior; ao lado, uma foto tirada em Paris, em La Villette, por volta de 1920
primeiro andar da Rua da Glória e era uma das mais conhecidas do ramo, embora nem todos lá pudessem entrar. «Para assegurar uma certa seleção da clientela, porque os preços não eram excessivos, a própria Madame Blanche sentava-se a uma escrivaninha junto da porta e, espreitando pelo ralo, decidia se o aspeto do freguês lhe inspirava confiança», escreve Rentes de Carvalho. A familiaridade inspirada pelos bordéis estava muitas vezes relacionada com memórias da adolescência. Para muitos homens portugueses nascidos ainda no século XIX ou já na primeira metade do século XX, a iniciação sexual passava por
Lisboa, a Casa de Correção de Santa Margarida de Cortona, como substituição da antiga Casa da Estopa; as prostitutas ficam sob prisão correcional, sendo obrigadas a fazer meias
1836 Através de um Código Administrativo, é estabelecida uma lei de tolerância. Como escreve o médico Santos Cruz, deste modo «o legislador entendeu não ser
pagar os chamados favores sexuais de uma prostituta. Já com o pai e com os avôs teria sido assim. «Ao fim e ao cabo, e dado que as leis do casamento eram quase as bases de uma lei de propriedade, o amor e a vida sexual eram inevitavelmente procurados fora do matrimónio», escreve o sociólogo José Machado Pais no livro A Prostituição e a Lisboa Boémia, Do século XIX aos inícios do século XX (2008). «Os casamentos fabricados tinham necessariamente de provocar uma dupla consequência – os amantes e a ilegitimidade e, com esta, a prostituição.» Quer fossem vagabundas esfomeadas, quer praticassem preços apropriados aos orçamentos dos cidadãos de classe média ou quer se apresentassem como coccotes de luxo, as prostitutas eram, nos séculos XIX e XX, consideradas um mal necessário ao equilíbrio da sociedade. Em Portugal
possível proibir e extinguir as prostitutas, tolera-as por isso, mas ordena que se estabeleçam medidas policiais para que elas não ofendam a moral pública nem prejudiquem a saúde».
1838 É publicado em Lisboa um edital que restringe a área de atuação das prostitutas, com os nomes das ruas onde não podem ter casas públicas; além disso, são proi-
EUGENE ATGET/GETTY IMAGES
A Lavradeira
havia sobretudo francesas e espanholas, além de portuguesas. Algumas das portuguesas eram mulheres que tinham sido desgraçadas antes do casamento, ou seja, que tinham perdido a virgindade, sendo-lhes por isso mais difícil contar com a segurança económica que só o casamento parecia garantir. Ou então eram «rolas» recém-chegadas de áreas rurais do País, onde haviam sido recrutadas ao engano por supostas angariadoras de criadas. As menores também tinham procura especial por parte de alguma clientela e chegavam a ser negociadas com a família, tanto nas cidades como em meios rurais. As «engatadeiras» usavam vários truques para angariar novas caras e desempenhavam um papel fundamental no negócio, tal como as madames ou as donas das chamadas casas toleradas. Algumas prostitutas de luxo conseguiam ser
bidas de ter casa próximo de templos, passeios públicos, estabelecimentos de instrução, liceus, recolhimentos e praças públicas. 1841 É publicado o livro
do médico Francisco Ignácio dos Santos Cruz, Da Prostituição na Cidade de Lisboa, que viria a ser marcante na legislação posterior; inclui no final um «projeto de regulamento policial e sanitário
postas por conta de algum homem rico, que lhes pagava casa e as sustentava em regime de exclusividade. Outras subiam à categoria de madame e abriam o próprio bordel, passando a viver da prostituição alheia. Essa era a opção que nalguns casos permitia acumular fortunas, por vezes também através da promoção ilegal do jogo a dinheiro dentro dos bordéis. Enquanto prostitutas, quase todas as mulheres viviam subjugadas a um esquema em que partilhavam parte das receitas com os chulos ou com as patroas, contraindo também dívidas relativas a todos os gastos. Era comum morrerem pobres – por vezes de doenças venéreas contraídas em trabalho – e anónimas, ao contrário de algumas madames que alcançavam uma notoriedade benéfica ao negócio. A própria Madame Blanche do conto de Rentes de Carvalho existiu mesmo e é referida também no poema
para obviar os males causados à moral e à saúde pela prostituição pública». 1858 É publicado o primeiro Regulamento Policial das Meretrizes e Casas
Como o médico Francisco Ignacio dos Santos Cruz escreveu no livro Da Prostituição na Cidade de Lisboa (1841), «a maioria das donas de casas da cidade foram prostitutas antes do novo ofício». Foi esse o caso da Lavradeira, uma das proprietárias de bordel mais famosas de Lisboa. Teve direito a notícia de jornal quando morreu, destacando-se no Diário de Notícias de 21 de novembro de 1908 a sua fortuna. A área de negócio é omitida no obituário: «Vitimada por uma apoplexia, faleceu anteontem, pela uma hora da madrugada, Emília Clara, muito conhecida em Lisboa pela ‘Lavradeira’. Contava 35 anos e era natural de Arcos de Valdevez. Possuía bens de fortuna, que segundo o testamento aberto ontem são avaliados em 75 contos de réis.» A riqueza amealhada por algumas proprietárias de bordéis foi tema comum a muitos dos que escreveram sobre o assunto. No livro de 1912 O Vício em Lisboa, Fernando Schwalbach indigna-se contra estes lucros: «Não há um exemplo único de, ao morrer, uma destas criaturas não deixar pelo menos meia dúzia de contos de réis, ganhos todos à custa de quantas lágrimas! Se algumas há que até têm agentes pelas terras da província para lhes arranjarem raparigas fortes, sadias, desenxovalhadas e com tipos descritos conforme as encomendas que existem no escritório! (...) Está ainda cumprindo pena no Limoeiro um desses agentes conhecido pelo ‘Maneta da Covilhã’, que vivia apenas desse negócio limpo e, curioso, até tinha uma tabela de preços que regulava de 20 a 60 mil réis, conforme a mercadoria. Quanto rendoso não era e é o negócio para poder dar tal comissão!»
de Toleradas da Cidade de Lisboa. 1865 O Regulamento Bramcaamp obriga à matrícula policial das prostitutas para efeitos de controlo de saúde.
1894 Num decreto contra o proxenetismo escreve-se que «aquele que, sendo apto para ganhar a sua vida pelo trabalho, for convencido de viver a expensas VISÃO H I S T Ó R I A
71
SEXUALIDADE // PROSTITUIÇÃO
GLOSSÁRIO SÉCS. XIX E XX Avental de madeira A meia porta dos prostíbulos do Bairro Alto, onde as prostitutas se debruçavam para se mostrarem
Inculcadeira Alcoviteira; aliciadora de prostitutas; proxeneta
Caça às borboletas Perseguição às prostitutas feita pela polícia.
Malote Prostituta de baixa condição.
Piolhos-da-púbis Cocotte Prostituta elegante e cara, por conta ou não de um homem rico Engatadeira Mulher que alicia raparigas para a prostituição, por vezes ao engano Estar com o avental de pau Prostituir-se Estrear-se Diz-se da prostituta que consegue o primeiro cliente do dia Fadista Mulher que se entrega à prostituição; homem vadio; brigão, desordeiro Governanta Meretriz idosa
de mulheres prostituídas será considerado e punido como vadio». 1911 O ministro do Interior António José de Almeida tenta abolir as 72 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Marmita Mulher que sustenta o amante Mula Manifestação sifilítica na parte inferior das coxas
O FADO, DE JOSÉ MALHOA, 1910/MUSEU DE LISBOA
Chatos, camaradas ou pintassilgos na balseira
Juiz do Bairro Alto Deus
Nómada Prostituta que se desloca à procura de cliente
‘O Fado’, quadro de José Malhoa, 1910 Também se usava 'fadista' para designar uma mulher que se entregara à prostituição
Pataqueira Prostituta muito barata
Pastelaria, de Mário Cesariny, publicado em 1952. Ou seja, o buraco de fechadura ficcionado por Rentes de Carvalho é aqui só um exemplo entre muitos que se pode encontrar na ficção literária portuguesa dos séculos XIX e XX, onde as prostitutas vão aparecendo com frequência. «E não apenas em Portugal. Quase todos os grandes escritores naturalistas do século XIX se ocuparam da figura humana da prostituta: recorde-se Zola, Tolstoi ou Dostoievski», escreve Machado Pais. Outra proprietária de bordel famosa nessa Lisboa de meados do século XX foi Madame Calado, que tinha casa a funcionar próximo da estação de comboios do Rossio. Neste caso, as transações eram feitas a preços de luxo e o negócio acabou por servir à patroa Maria da Piedade Calado para fazer uma grande fortuna, que em
Patrajona Meretriz de soldados que segue um regimento de terra em terra Pivinha Idoso que procura prostitutas jovens Protegida Mulher que recebe proteção económica de alguém em troca de favores sexuais Rola Criada de servir fácil de enganar, por ser recém-chegada de um meio rural
matrículas de prostitutas através de um decreto. O médico Ricardo Jorge escreve um projeto de lei nesse sentido, mas a lei não chega a ser promulgada.
1913 É criada em Portugal uma Liga de Moralidade Pública, que pretende combater a prostituição, as touradas, as tabernas e a pornografia.
1964, ao morrer, deixou por testamento à Igreja Católica e destinou a obras pias no Fundão.
Açoites e pena de morte Era fácil encontrar organização e diferenciação, sobretudo em Lisboa e no Porto. Incluindo uma grande variedade de preços, desde a «pataqueira» ao preço da chuva à cocotte mais difícil de conquistar e financiar. Mas também existia prostituição noutras cidades do País e em meios rurais, ainda que em menor escala, bem como em zonas balneares, sobretudo durante os meses de verão. Tal como algumas prostitutas se descolavam para as localidades de veraneio à procura de clientes sazonais, também outras, as «patrajonas», viviam na órbita dos quartéis e acompanhavam os regimentos
1926 Realiza-se o Congresso Abolicionista Português, onde o advogado Arnaldo Brazão apresenta a tese Abolição do Registo Policial das Meretrizes.
1930 Cria-se a Polícia Sanitária, para inspeção das prostitutas nos prostíbulos ou no domicílio. São extintas em Lisboa as «casas de toleradas», substituídas
3
1
Livrete sanitário incluído no regulamento policial das meretrizes de Évora, 1935
2
Primeira página do jornal satírico ‘A Paródia’, de 1900, com um cartoon sobre as ‘espanholas’
3
Regulamento policial das meretrizes e casas toleradas da cidade de Lisboa, 1865
2 1
militares, quando estes eram deslocados para outro ponto do País. Há notícia de prostituição em vários continentes, séculos e milénios. Em Portugal, a prostituição feminina mereceu a atenção do poder político logo no reinado de D. Afonso Henriques, sendo depois ao longo dos séculos alvo de sucessivas tentativas de controlo por parte da coroa, da I República, do Estado Novo e do regime democrático instaurado a seguir ao 25 de Abril de 1974. Em muitos casos, o que os monarcas e os legisladores iam determinando era apenas a melhor forma de esconder a atividade, afastando-a para certas ruas ou determinados bairros. Houve também uma preocupação transversal com a criação de formas de distinguir as prostitutas das chamadas mulheres honradas, nem que fosse pelos
por casas de permanência transitória ou de «curta permanência», chamadas «quartos mobilados». 1947 Os «quartos mobilados»
são proibidos em algumas ruas de Lisboa. 1949 Proíbe-se a nova matrícula de prostitutas e a abertura de novas casas de
horários em que podiam andar na rua. Entre os reis de Portugal, D. Manuel I distinguiu-se como um dos mais severos para com as prostitutas, estabelecendo castigos que iam dos açoites públicos à pena de morte, passando pelo degredo para a ilha de São Tomé. Já do reinado de D. João III ficou «legislação espantosamente branda e tolerante em que se ordena que os corregedores e juízes de crime de Lisboa não recebessem queixas contra mulheres solteiras que ganhassem dinheiro com estas práticas e que não as prendessem nem as vexassem», escrevem Isabel do Carmo e Fernanda Fráguas no livro Puta de Prisão (2003). Ao longo de séculos, as leis tinham em comum o serem escritas e sobretudo aplicadas de forma a que apenas fossem
prostituição. Mantém-se a obrigatoriedade dos exames médicos às prostitutas já matriculadas.
Portugal. As prostitutas passam a ser equiparadas aos vadios, do ponto de vista legal.
1963 É proibida a prostituição em
1966 Decorre o Processo “Ballet Rose”.
presas, perseguidas, controladas, humilhadas ou taxadas as prostitutas, sendo raras vezes incomodados os clientes, que podiam pertencer a qualquer classe social e ter qualquer idade. Quase sempre, os proxenetas masculinos só acabavam por ser presos pela prática de outros crimes, e não pelo facto de viverem da prostituição alheia.
Tutelada pelo Estado A atenção do Estado português aumentou muito durante o século XIX. «Com a Revolução Francesa [iniciada em 1789], o problema melhorou, aparentemente, uma vez que foi proibida [em França] a prostituição de menores. Nos inícios do século XIX, a França regulamentou a prostituição, no que foi imitada por quase todos os países da Europa», escre-
1983 É despenalizada a prostituição em Portugal. A Justiça portuguesa passa a concentrar-se no crime de lenocínio, ou seja, na promoção da prostituição alheia.
1991 Portugal ratifica a Convenção de 1949 das Nações Unidas para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem. VISÃO H I S T Ó R I A
73
SEXUALIDADE // PROSTITUIÇÃO
vem Celeste da Rocha Coelho e Roberto Linhares de Castro Pires Martins no livro As Toleradas da Póvoa de Varzim. 1871-1950. «Nos tempos modernos, os Estados passaram a preocupar-se mais com a prostituição, por estar ligada às doenças venéreas, e tentaram implementar uma fiscalização sanitária. Mais do que nunca, a prostituição estava tutelada pelo Estado, era este que estipulava as leis, cobrava impostos, obrigava a exames de saúde e escolhia o local de habitação.» A necessidade de garantir mão-de-obra saudável também terá sido uma das motivações estatais, sobretudo em países europeus em processo de industrialização. As doenças venéreas que existissem entre o pelotão das prostitutas de uma cidade teriam consequências também na saúde dos homens, diminuindo assim a mão-de-obra disponível e funcional. Na altura em que o primeiro cliente a chegar à casa de Madame Blanche espreitou pelo buraco da fechadura – em meados do século XX – a prostituição feminina era uma atividade que o Estado ainda tolerava e que aparentava tentar controlar, sobretudo com pretextos de saúde pública. Havia regras específicas e controlo médico tanto para as prostitutas como para as criadas que trabalhassem nas casas onde fosse praticada legalmente a prostituição. E as patroas das casas também tinham enquadramento legal. Em Portugal, a tolerância estatal começou a desenhar-se em 1836. Sobretudo desde 1858 (com a publicação do primeiro Regulamento Policial das Meretrizes e Casas de Toleradas da Cidade de Lisboa) e até 1963, o enquadramento legal e a fiscalização do Estado português mantiveram-se durante mais de cem anos, através de vários governos da Monarquia, da I República e do Estado Novo. Com nuances, tanto nas leis como na atuação das autoridades policiais.
Uma pesca milagrosa Pelo meio houve muitas críticas à corrupção das autoridades e à atuação da 74 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Erotismo Um postal ilustrado de 1910
polícia em particular, que ao longo dos vários regimes políticos foi mantendo a tutela da prostituição, com a inerente benesse financeira vinda das multas e dos subornos. Um dos críticos foi o médico Ricardo Jorge, autor, em 1911, de um projeto de decreto-lei que começava por dizer que o «regime policial das prostitutas» era uma instituição que precisava do «golpe certeiro e fundo do braço reformador da
Ser uma prostituta inscrita significava que a mulher se tinha matriculado, de forma voluntária ou coerciva, nos livros de registos oficiais
República», mas que acabou por não ser promulgado. «A prensa de espremer dinheiro do corpo das meretrizes tem funcionado à maravilha sem empeno nem entraves», escreveu Ricardo Jorge. «Há cerca de três anos baixa do Governo Civil sobre as toleradas a intimação de não divagarem pelas ruas desde o meio-dia às 11 horas da noite, sob pena de desobediência – mais um recurso engenhoso de cardar proventos. A infeliz que saísse à rua nas horas vedadas, para satisfação de uma necessidade que fosse, para buscar alimento ou remédio, arriscava-se à captura. Só num semestre, de abril a setembro de 1908, foram presas por andarem fora de casa 698 mulheres; à volta do ano, esta nova rede varredora, a pretexto de limpeza de bons costumes da via pública, despejava, segundo se calcula (...) cerca de 6.000$000 réis no pátio da Polícia Judiciária – uma pesca milagrosa!» Algumas destas mulheres eram presas várias vezes no mesmo dia, numa «caça
BRIDGEMAN IMAGES
No livro negro
às borboletas» e à multa que aprofundava a miséria das mais vulneráveis. Outro crítico da tutela estatal da prostituição foi mais tarde o advogado Arnaldo Brazão, que apresentou a tese Abolição do Registo Policial das Meretrizes no Congresso Abolicionista Português, em 1926: «Presentemente a prostituição já não é tida como um delito, antes um vício, é procedimento delituoso a sua exploração, e o Estado, reconhecendo a prostituição como modo de vida, tolerando-a, cobrando proveitos de licenças, multas, alvarás, etc., etc., pactua com o vício, torna-se conivente com todos os males que da prostituição advêm para a sociedade, torna-se por assim dizer o grande industrial, e assim comete um delito, sui generis é verdade, mas um delito. A supressão do regulamento das meretrizes e a abolição das casas de tolerância são medidas de higiene social que se impõem e que já demasiadamente tardam.»
puderam ainda exercer a prostituição. A prostituição clandestina sempre existiu Após esse ano, os livros de registo das – antes, durante e depois dos mais de cem matrículas e os livretes foram queimados. anos do chamado regulamentarismo. As É necessário conhecer o que se passava na época para perceber o alívio que consclandestinas constituíam um pelotão de tituiu esta queima de documentos. Estar profissionais muito maior do que os números das mulheres inscritas nas listas es‘matriculada’ era um carimbo consideratatais, quer se tratasse de bordéis de luxo do irreversível, uma queda nos infernos, ou das chamadas prostitutas de terceira que não só atingia a própria como toda categoria. «A prostituição clandestina a família.» exerce-se evitando sempre a vigilância Ao distinguir entre as frequentadoras da polícia, e para melhor alde hospedarias ou de casas de passe, o estigma que cançar este fim acoberta-se SINÓNIMOS representava estar matricom uma profissão lícita. PROSTITUTA Assim pois a mulher é costuculada é também referido Galdrana, galdrapinha, reira, luveira ou chapeleira, por Fernando Schwalbach galdéria, lumia, marca, no livro O Vício em Lisboa. trabalha em calçado, vende mulher pública, louça, porcelanas, quinquiAntigo e moderno, de 1912: mulher da vida, mulher lharias, frutas, etc.», escreve «Assim como as primeiras de vida fácil, mulher o médico e inspetor de saúde [as hospedarias] são escodo fado, pinoia, pitada, Francisco Pereira d’Azevedo lhidas para os amores sopeiputa, rameira, tipoia, tolerada, tronga no livro História da Prostirais, as segundas [as casas de tuição e Polícia Sanitária passe] são preferidas pelas PROSTÍBULO costureirinhas, classe que no Porto (1864). Segundo o diagnóstico do autor, no não pequeno contingente Casa de passe ou de alcouce, casa Porto as clandestinas seriam tem dado para a legião de de meninas, casa de à data o triplo das inscritas. infelizes cujos nomes estão toleradas, bordel Ser uma prostituta inscrita inscritos no livro negro que a significava que a mulher se sanitária possui.» No retrato PROXENETA tinha matriculado, de forma feito neste livro, Schwalbach FEMININA voluntária ou coerciva, nos ocupa-se tanto da cocotte de Abelha-mestra, livros de registo oficiais, receluxo como da mais miserámadame, patroa, tia bendo um livrete onde eram vel prostituta que tentava apontados todos os detalhes ganhar a vida atrás de um PROXENETA médicos e legais. Para que «avental de madeira» no MASCULINO uma mulher fosse obrigada Bairro Alto. «É inconfunChulo, fadista dível o seu aspeto. Porta ao exame médico que serviria para a votar a esta lista de rua, um pequeno balcão maldita, bastava uma denúncia ou as susocupando metade dessa porta; a tapar a peitas dos agentes da autoridade. Sair da vista para o interior, um pano branco a lista oficial – por exemplo, por querer servir de cortina, que de noite, com a luz casar-se ou apenas deixar a atividade – do candeeiro a petróleo, nos dá a ilusão chegou a implicar o pagamento de uma de um animatógrafo.» taxa ao Estado. Os clientes das prostitutas Sim, a miséria era a nota principal não eram obrigados a controlo médico nas vidas de muitas prostitutas, que nem eram alvo da atenção policial. nunca chegavam sequer a ser meninas No livro Puta de Prisão, Isabel do ao serviço de uma madame. Não era Carmo e Fernanda Fráguas destacam a preciso espreitar pela fechadura de um importância do final das matrículas e dos bordel para ver este cinema: bastava livretes: «Durante 1963 as prostitutas andar na rua. VISÃO H I S T Ó R I A
75
SEXUALIDADE // ESTADO NOVO
Na imprensa estrangeira Cá, a Censura cortava, mas lá fora as notícias iam saindo, abalando o regime
O ‘ballet’ do silêncio No escândalo ‘Ballet Rose’, envolvendo altas figuras do salazarismo, duas prostitutas seriam condenadas mas todos os homens absolvidos m novembro de 1967, o jornal britânico Sunday Telegraph publicou uma notícia que por Lisboa circulava em segredo: homens poderosos, ligados ao regime, estavam envolvidos numa rede de prostituição e abuso sexual de menores. Salazar ficou furioso pela divulgação. Através da PIDE, estava a par dos factos que emanavam Sala Salazar O ditador tentou abafar o te escândalo, mas es não tinha como nã controlá-lo além-fronteiras
de uma investigação da PJ que já ia longa. Quanto mais se desenrolava a teia, mais o assunto se tornava de Estado, já que envolvia algumas das suas mais altas figuras, entre as quais aquele que era apontado por muitos como o sucessor do próprio Salazar, o ministro da Economia José Gonçalo Correia de Oliveira, que antes havia sido ministro de Estado-adjunto da Presidência do Conselho. Por ordem de Salazar, foi acionada a máquina do silêncio. Mas a imprensa estrangeira farejara a presa, agitando o caso internacionalmente, enquanto em Portugal não se escrevia uma vírgula sobre o tema.
Caça à Lolita As notícias no exterior sucediam-se, com pormenores, locais, moradas. Além de Correia de Oliveira, foram nomeados Quintanilha Mendonça Dias, antigo go-
LUÍS PAVÃO
E
por Luís Pedro Cabral
vernador do Estado Português da Índia e à data ministro da Marinha; Santos Júnior, ministro do Interior; Vítor Emanuel, filho do rei Humberto II de Itália; Henrique de Verda-Bairos, amigo do príncipe; o conde de Monte Real, empresário agrícola, desportista, presidente do Banco Nacional Ultramarino; o conde de Caria, presidente da Associação Comercial de Lisboa e administrador do Banco Pinto & Sotto Mayor; o conde da Covilhã, administrador do Banco Borges & Irmão; Rogério Silva, administrador do Banco Espírito Santo; Teodoro dos Santos, proprietário dos hotéis Embaixador e Estoril-Sol e concessionário do Casino Estoril; Manuel Anselmo, diplomata, observador de Portugal na UNESCO, em Paris; John Kort Right Pringle, diretor da Companhia Mineira do Lobito; Manuel da Silva Carvalho, corretor da Bolsa e administrador da Companhia Industrial de Portugal e das Colónias; Alípio Antero e João Antero, gerentes da imobiliária Confidente. Muitos destes nomes nunca viriam a ser pronunciados; os que foram a julgamento, seriam absolvidos. Lá fora, surgiam títulos do género Caça à Lolita no Jardim do Ministro, com desdes crições detalhadas de festas em que partirticipavam altos dignitários em brincadeiras ras sexuais com crianças conduzidas para aa prostituição pelas respetivas mães. Um desses jogos consistia em colocar as criananças de 8 a 10 anos a dançar com vestidos dos baitransparentes, às vezes desnudas, debaixo de luzes rosáceas, perante uma elite lite geriátrica com dinheiro para comprar ar a doinocência como outra qualquer mercadoria. O «Ballet Rose».
Justiça, pagaria por não ter travado o seu andamento. Seria exonerado por Salazar.
Questões de ‘habitualidade’
Teodoro dos Santos, dono da Sociedade Estoril, foi apenas condenado a uma pena simbólica
Ministro exonerado
de notícias falsas. Soares passou o Natal desse ano em Caxias, a pagar pelo crime de «fonte», que sempre negou. Também Francisco Sousa Tavares seria preso nesta ronda persecutória. O Conselho de Ministros decidiu deportar Mário Soares para São Tomé, o que aconteceria em março de 1968. Soares contou mais tarde que soube do caso por um escrivão do tribunal da Boa-Hora, mas também é provável que o tivesse sabido por Joaquim Pires de Lima, opo oposicionista embora filho de um político do Estado Novo. O caso «Ballet Rose» bateu à porta do seu escritório quando uma rapariga lá apareceu contando que estava a ser apertada pela PJ para prestar declarações acerca das razões que a levavam a casa de uma modista tida como desencaminhadora de menores. O processo era orquestrado para o silêncio. Antunes Varela, ministro da
O regime encontrou o seu bode expiatório ório num escritório da Rua do Ouro,que Mário ário Soares partilhava com Pimentel Saraiva aiva e Gustavo Soromenho. A PIDE tinha nha observado visitas de jornalistas estranangeiros, e isso bastava para mandar prenender o advogado, acusado da divulgação ção
Mário Soares Acusado de ser «fonte» da imprensa estrangeira, foi deportado para São Tomé
Uma das figuras centrais deste caso era uma mulher de 36 anos, Genoveva, teoricamente modista, que tinha em seu redor um conjunto de mulheres que angariava para a sua rede, juntamente com as suas filhas menores. Seria muito pressionada para manter o silêncio, mas acabou por quebrá-lo com nomes e pormenores, o que apenas serviu para condená-la. juntamente com outra prostituta envolvida. Sobre Teodoro dos Santos, dono dos hotéis Embaixador e Estoril-Sol e concessionário do Casino Estoril, sobre quem havia abundantes provas, afirmou a acusação «há vários anos, e pelo menos até data próxima da instauração do processo, o arguido ter enveredado pela prática de anomalias sexuais com várias mulheres, adultas umas, menores outras, numa revelação de decrépita ou senil sensualidade, traduzida numa busca de prazeres anómalos, generosamente remunerados». Mas o tribunal deu como não provada acusação de abuso de menores, não por não existirem provas, mas por que não ficou provada a sua «habitualidade», isso sim, crime. Teodoro dos Santos foi condenado a uma pena provisória «por um máximo de seis meses de liberdade vigiada». O arguido ficou ainda proibido de se ausentar de Lisboa sem autorização do tribunal, de «frequentar casas onde se pratique ou facilite a prostituição» e intimado a «não contactar com prostitutas suspeitas, nem acompanhar ou contactar raparigas menores, sem necessidade de assim proceder». As sentenças dos homens que chegaram a ser julgados foram todas idênticas a esta, sempre incluindo rasgados elogios às suas atividades profissionais, à sua honradez familiar e à sua imaculada posição social. VISÃO H I S T Ó R I A
77
SEXUALIDADE // MEDICINA
Tratar do sexo
Quando e como surgiu a Sexologia Clínica, e de que forma ela se interpenetra com outras ‘disciplinas’?
ão é fácil estabelecer o momento em que apareceu a Sexologia Clínica no território da Medicina. Além disso, a Sexologia engloba os contributos de muitas outras disciplinas como a Biologia, a Genética, a Psicologia Social, a História e a Sociologia. Mesmo hoje, esta área raramente surge isolada: associa-se a várias especialidades, umas ligadas ao tratamento das doenças dos órgãos sexuais, como a Urologia/Andrologia e a Ginecologia, e outras, como a Endocrinologia, uma espécie de resquício histórico da ideia de que as hormonas sexuais teriam papel determinante na reatividade sexual. Outros associam-na à Psiquiatria e à Psicologia Clínica, porque Sigmund Freud (1856-1939), mesmo sem ter proposto tratamento para as disfunções sexuais, elaborou uma conceção teórica, a Psicanálise, segundo a qual as patologias psíquicas eram originadas pela repressão ou o recalcamento da sexualidade. Popular «sexólogo», influenciou seguidores a estudar e a tratar patologias sexuais. Em 1905 publicou os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, em que sexualizou muitos dos pequenos prazeres infantis, como chupar o dedo.
Masters & Johnson Em grande parte, a Sexologia Clínica nasceu na década de 1960 em St. Louis, nos EUA, quando o ginecologista/obstetra William Masters (1915-2001) e a psicóloga Virginia Johnson (1925-2013) criaram uma clínica onde investigaram 78 V I S Ã O H I S T Ó R I A
o ciclo da resposta sexual (A Resposta Sexual Humana, 1966) e estabeleceram um programa terapêutico para as disfunções sexuais (A Inadequação Sexual, 1970). Este era de base psicoeducativo, instituído em regime de internamento, e excluía muitas disfunções sexuais, masculinas e femininas, de causas orgânicas. Muitas das suas propostas terapêuticas não eram exatamente inovadoras, excetuando a ideia de centrar o tratamento no casal onde se encontrava o sujeito disfuncional e de o realizar num internamento de três semanas. Parece-nos que esta última ideia nunca foi replicada em qualquer parte do mundo, ainda que os tratamentos para as
Pioneiros e desbravadores Richard von Krafft-Ebing (1840-1902), professor alemão de psiquiatria, escreveu a Psicopatia Sexual (1866), onde descreveu a mais longa lista de práticas sexuais que escapavam à «normalidade», ou seja, ao coito heterossexual entre casados e na posição «correta». Mais tarde, o médico inglês Havelock Ellis (1859-1939) estudou a homossexualidade (então «inversão sexual»), o erotismo, a psicologia do sexo, o amor, o casamento e o eonismo (transexualidade). Por seu lado, o médico e psicanalista alemão Magnus Hirschfeld (1868-1935) fundou, em 1905, o primeiro jornal de Sexologia, que teve curta vida. Em 1914 publicou A Homossexualidade dos Homens e das Mulheres, onde analisou as relações amorosas entre pessoas do mesmo sexo. Foi defensor dos direitos dos homossexuais. Em 1919 fundou em Berlim o Instituto para o Estudo da Sexualidade, que seria destruído em 1933 pelo emergente poder nazi. Em 1926, o ginecologista holandês Theodoor van de Veld (1873-1937) deu à estampa O Casamento Perfeito, livro onde ensinava técnicas eróticas a casais, mas de início só acessível a médicos. O médico e psicanalista Wilhelm Stekel (1868-1940), nascido na atual Ucrânia, estudou várias parafilias (feiticismo dos amputados, sadismo, masoquismo), além LEONARD MCCOMBE/GETTYIMAGES
N
por José Pacheco*
disfunções sexuais inspiradas em Masters e Johnson se tenham disseminado em todo o mundo pelo menos até ao aparecimento do Viagra, em 1998. De resto, a sua fama estendeu-se à série americana Masters of Sex, que teve quatro temporadas (2013-2016). Contudo, seria pouco exato não considerar os contributos de muitos outros que permitiram acumular conhecimentos e práticas que permitiram chegar à realidade da Sexologia Clínica atual. Destes, salientamos a seguir, de forma muito breve, os mais relevantes.
A Sexologia Clínica nasceu, em grande parte, na década de 1960, em St. Louis, nos Estados Unidos, por ação de William Masters e Virginia Johnson
‘TROMP D’OEIL’ SATÍRICO ATRIBUÍDO DE AUTORIA ATRIBUÍDA A SIGMUND FREUD/BRIDGEMAN IMAGES
‘O que está na cabeça de um homem’ Caricatura de Sigmund Freud
de temas abrangentes como o casamento, a homossexualidade, a impotência, a frigidez e o onanismo (masturbação). O americano Alfred Kinsey (1894-1956) realizou um dos maiores estudos sobre o comportamento sexual humano, publicado em dois volumes, um sobre o homem (1948) e outro sobre a mulher (1953). Durante décadas, este estudo, feito através de entrevistas a voluntários, foi considerado «perfeito». Após o advento da sida, em meados da década de 1980. foram-lhe apontadas inúmeras falhas que poderiam ter distorcido a amostra: conteria excesso de presos, de prostitutas e de homens homossexuais; no caso do comportamento sexual das crianças
e adolescentes, a maior parte dos dados teriam sido obtidos a partir do diário de um pedófilo que registara as suas atividades sexuais durante mais de 20 anos. Em 1936, Wilhelm Reich (1897-1957), médico e psicanalista austríaco, publicou o livro Revolução Sexual, onde conceptualizou com base na Psicanálise, que aceitara na plenitude entre 1924 e 1930, e na filosofia marxista. E em A Função do Orgasmo, de 1942, considerou que a resposta sexual tinha quatro etapas: tensão mecânica, carga bioelétrica, descarga bioelétrica e relaxamento. Já Ernst Gräfenberg (1881-1957), alemão de origem judaica, ficou na história por ter inventado um protótipo de dis-
positivo intrauterino e ter descrito, em 1950, a ejaculação feminina e o ponto G. Quanto a Kurt Freund (1914-1996), da antiga Checoslováquia, inventou o primeiro pletismógrafo, para avaliar a intensidade da reação eréctil, e interessou-se pelo estudo de várias parafilias, sobretudo a pedofilia, Na década de 1950 usou a terapia aversiva para «tratar» a homossexualidade masculina, concluindo afinal que esta não era uma doença, nem medo ou aversão às mulheres como a teoria psicanalítica defendera.
Mudanças relevantes Estes desenvolvimentos no seio de várias especialidades médicas e da Psicologia Clínica foram acompanhados de mudanças relevantes na forma como a sociedade encarou a sexualidade, apesar de terem sido parcialmente retardados enquanto a sida não se transformou numa doença crónica. De entre essas mudanças, nos últimos 50 anos, salienta-se o facto de a posição da mulher na hierarquia social se ter alterado significativamente. Depoias, há a considerar o aparecimento de métodos de contraceção seguros, o que melhorou a forma como muitos casais heterossexuais passaram a viver a sexualidade. Por outro lado, muitas «patologias» sexuais, como a masturbação, a homossexualidade ou as perturbações da identidade do género foram colocadas no campo da normalidade. Finalmente, desde o início do século XXI apareceram vários medicamentos que passaram a remediar pelo menos 70% dos casos de disfunção eréctil e que permitiram alargar o espectro de intervenção a outras especialidades médicas, incluindo a Medicina Geral e Familiar. No futuro próximo esperam-se novidades no aparecimento de medicamentos para tratar a maioria das disfunções sexuais femininas, assim como do défice do desejo sexual, tanto para homens como para mulheres. *Médico e antigo presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia VISÃO H I S T Ó R I A
79
SEXUALIDADE // ANOS 60
Libertação Na boite 'O Relógio', Lisboa, 1968. As boîtes eram as discotecas dos anos 60 e 70 (foto de Eduardo Gageiro)
80 V I S Ã O H I S T Ó R I A
QUEM QUER ‘CASAR DE PENÁLTI’ COM A CAROCHINHA? A mulher era a fada do lar, o marido dono do seu corpo. Casava-se à pressa em caso de ‘acidente’ e às escondidas jogava-se às ‘chavinhas’. A revolução sexual trouxe a pílula, o amor livre, a libertação feminina e o divórcio Por Miguel Carvalho
EDUARDO GAGEIRO
E
m 1965, aos 15 anos, Maria de Jesus pensava que os bebés chegavam de avião. Quando o revelou ao namorado, com quem trocava tímidos mimos à soleira da porta sob ríspida vigilância materna, ele ficou zonzo: «Estás a brincar comigo, não estás!?» De origens humildes, a aprendiz de costureira no Ameal, então zona rural do Porto, fora mantida pela mãe, viúva, na ignorância. «Quando tive a primeira menstruação, a única coisa que ela me disse foi: ‘Estão ali toalhinhas para te limpares. Agora, cuidado: não podes andar com rapazes’.» No ateliê, onde agulha e dedal ensaiavam o ofício, a novata era alvo das praxes de colegas sabichonas ou mestras entradotas. «Hoje mandaram-me à confeitaria comprar salpicão de noiva», comentava em casa. «Para a próxima, diz para irem elas!», replicava a mãe, sem mais delongas nem explicações. Dois anos mais velho, politicamente instruído, poupa e brilhantina à Elvis, o namorado ainda ofereceu à rapariga um livrinho ilustrado sobre sexualidade, «lindo, com explicações simples». Mas a censura maternal
logo se encarregaria de dar sumiço às desencaminhadoras páginas. Era este, à superfície, o Portugal de Salazar quando já caminhava para o estertor. Oficialmente assexuado, o «pai da Pátria» vivia casto, rodeado de mulheres, governanta e criadas, sem esquecer senhoras “bem”. Ao palacete de São Bento, «quintalinho» de galinhas poedeiras e ambiente de sacristia, nem sequer faltou um vago tempero platónico saído do convívio com a escritora francesa Chris-
John Lennon e Yoko Nus na capa do disco 'Two Virgins', de 1968
tine Garnier. «Vendaval de alegria» e «desordem perfumada», na confissão manuscrita do ditador, o caso não teve, que se saiba, mais enlevos. Seria preciso chegarmos a 1961, à Coimbra onde a desordem estudantil germinava, para que o Estado Novo e seus acólitos descobrissem, indignados e ofendidos, o que já lhes ia escapando pelos subterrâneos do regime e pela via uterina. Órgão da Associação Académica de Coimbra, o Via Latina publicara um artigo intitulado Carta a uma Jovem Portuguesa. Da lavra de estudante anónimo, a missiva dirigia-se a uma rapariga imaginária, mas transformar-se-ia em manifesto à velocidade do fogo na pradaria. Influenciado pelos escritos de Simone de Beauvoir, o autor (Artur Marinha de Campos, saber-se-ia mais tarde) renegava o papel opressor do homem e defendia a libertação social da jovem sofredora, de vivência sombria, submissa e passiva, cuja existência seria um cemitério de sonhos e desejos reprimidos caso não desafiasse as convenções. «Separa-nos um muro, alto e espesso, que nem tu nem eu construímos», lia-se na carta que terminava com VISÃO H I S T Ó R I A
81
vontade expressa de amar «à luz dum dia jovem, à luz do que nasce e floresce». Na origem do texto estivera a intenção de sacudir melindres e preconceitos a propósito da convivência diária entre estudantes de ambos os sexos, mas o abalo na moral tradicional da época foi sísmico, tendo os setores mais retrógrados do regime alertado instituições, educadores e famílias para os perigos do «amor rastejante», do «materialismo desenfreado» e da «defesa torpíssima do amor livre e da animalesca liberdade sexual». Nesse País amorfo, adolescentes e jovens adultos «questionaram abertamente valores da sociedade de então e a hipocrisia da mesma», recorda Júlio Machado Vaz. Mas o psiquiatra e sexólogo, 69 anos («curioso número», como gracejou, em tempos, Mota Amaral, membro do Opus Deis, no Parlamento), alerta para o fosso geográfico, outra face do problema: «Em Lisboa, se calhar, havia As Noites de Cabíria [referência à prostituta interpretada por Giulietta Masina no filme de Fellini], mas o Porto era muito conservador. Para não ofender ninguém, dou o meu exemplo: entre os 16 e os 18 anos não tinha autorização para sair sozinho com a namorada: passeava com ela e a mãe na Rua de Santa Catarina. E não era o único.» Ainda assim, «acontecia muita coisa atrás da cortina, como, por exemplo, os ‘jogos das chavinhas’», swing da época em que casais tiravam à sorte molhos de chaves, do carro ou de casa, acabando a noite com o respetivo proprietário.
GETTYIMAGES
SEXUALIDADE // ANOS 60
Movimentos feministas O soutien tornou-se o símbolo da opressão da mulher (na imagem, protesto em São Francisco, EUA, 1969)
sexual no país. Entre outros sobressaltos, o repórter mostra que a II Guerra Mundial foi «sexualmente libertadora para as mulheres», em especial «aquelas que se aventuraram no mercado de trabalho», longe «da influência restritiva dos lares paternos, dos parentes e das paróquias». Enquanto escreviam cartas aos soldados por quem se tinham enamorado, «faziam amor com homens que não amavam». E assim amadureceram o papel de mulheres e mães compreensivas e tolerantes, condenadas pelas seitas moralistas dos anos vindouros. Outra América, aquela que punira a prática de sexo oral com 30 anos de prisão (Connecticut) ou considerava tais «obscenidades» mais graves do que «sexo com animais» (Geórgia), ficava para trás. Talese não terminaria a investigação minuciosa sem se aventurar numa espécie de jornalismo imersivo, arriscado para os padrões da época: integrou-se na
Era uma vez na América Enquanto Portugal remoía contradições, os Estados Unidos da América estavam a caminho de se tornar «o paraíso da carne», na versão romanceada de John Updike. No livro que resume a viagem de nove anos para fixar o retrato da permissividade americana antes da era da sida (The Neighbor´s Wife, 1980), Gay Talese relata, sem filtros, a história da vida privada dos compatriotas e a revolução 82 V I S Ã O H I S T Ó R I A
Vilar de Mouros, 1971 Woodstock à portuguesa
mais famosa comunidade de nudismo e amor livre, «na crista mais alta das montanhas de Santa Mónica, a 12 quilómetros de Malibu Beach» (Califórnia). A experiência no Retiro de Sandstone, através da qual descascou a poligamia, ia acabando com o seu casamento. A América agradecer-lhe-ia mais tarde, mas ele preferiu fazê-lo com Hugh Heffner, fundador da Playboy (mais de 6 milhões de exemplares vendidos nesses tempos): Talese considera-o a figura mais importante da sexualidade americana do século XX, pelo simples facto de ter permitido «que nos imunizássemos à nudez». Por vezes mais fantasiado do que real, o caminho da revolução sexual fez-se à boleia dos movimentos de contracultura, da pílula contracetiva, da contestação aos conflitos bélicos, das lutas pelos direitos civis e dos ativismos políticos, sociais e culturais que contagiaram a Europa. Houve também Rita Hayworth de combinação de cetim rendada, ajoelhada numa cama, a mais famosa foto pin-up dos anos da II Guerra, publicada na Life. Houve Marilyn Monroe, Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones, drogas e a Eros, primeira publicação literária do género, provocadora e ilustrada, com ensaios eróticos, exercícios físicos para aumentar a libido, guias de afrodisíacos e outras «obscenidades» perseguidas por governos e tribunais.
GETTYIMAGES
Triste fado e novas cartas
Festival Woodstock, estado de Nova Iorque, 1969 Um marco histórico
Houve a minissaia, o Festival de Woodstock e derivados, a sexóloga e feminista Shere Hite, autora da «bíblia» sobre a sexualidade das mulheres e o direito ao orgasmo. Houve que combater as presidências restritivas e moralistas de Lyndon Johnson e Richard Nixon e agitar o relatório da Comissão Presidencial sobre Obscenidade e Pornografia, em cujas conclusões se desvendaria o perfil do consumidor de «porno». Negando teses reacionárias que ue atribuíam tais comportamentos ao o refugo da sociedade, o egurava que os maiores documento assegurava clientes eram, afinal, inal, homens brancos, de classe média, meia eia idade, casam fatos ou dos, que vestiam vas. roupas desportivas. O cocktail chegaria egaria tarde ao Portugal tugal baço, envergonhado hado e envolto em pasancos maceira. Solavancos e atrevimentos foram
reprimidos e aprisionados. «Às vezes, até parece que estivemos todos em São Francisco, com flores no cabelo, nessa época. Mas não foi assim. Hoje, a geração da revolução sexual recusa ser vista como assexuada, apesar de idosa. Ao mesmo tempo, muitos dos seus elementos caíram na esparrela de querer ser irmãos mais velhos ou os melhores amigos dos filhos quando deveriam ter sido, antes de tudo, pais. E isso não teve bons resultados», adverte Júlio Machado Vaz.
A comercialização da pílula era permitida em Portugal desde 1962, mas só como método de regulação do ciclo menstrual
A caminho do final da década de 1960, o País navegava entre a juvenil inocência da Anita Dona de Casa e a proibição da Antologia de Poesia Erótica e Satírica, organizada pela indomável Natália Correia. Católico praticante até aos 15 anos, o cantor Sérgio Godinho emigrara para conhecer mundo depois de «perceber o que era bom». A comercialização da pílula, «bomba atómica» social, era permitida desde 1962, mas só com prescrição médica e enquanto método de regulação do ciclo menstrual. Combatida a partir dos púlpitos das igrejas, é associada ao cancro, à infertilidade e depravação da juventude. Em 1967, preocupado com as influências externas, o desvario e a inversão dos papéis de género que contagiavam os filhos da nação, Marcelo Caetano, futuro presidente do Conselho, considerava a barba «o derradeiro refúgio da dignidade máscula». Enquanto isso, católicos progressistas, meios estudantis, políticos e literários, arrasavam, por escrito, as leis do casamento e da fidelidade, desassossegando almas e tabus com artigos e polémicas sobre o divórcio e a liberdade sexual. À luz do Código Civil, o matrimónio podia ser anulado se a noiva não fosse virgem para o casório, mas as pressões familiares impunham outros dogmas. «Quando cresci, ouvia a torto e a direito a expressão ‘casar de penálti’ para designar uma gravidez indesejada que era preciso oficializar», lembra Júlio Machado Vaz. De Desde a Constituição de 1933, as mulheres são adestradas para cumprir o lhere ideal feminino do regime e embelezarem a moldura mo do Estado Novo enquanto esposas, mães e fadas do lar. O corpo, espo usufruto exclusivo do marido, mantinhausufr -se, ssegundo a socióloga Isabel Freire, «dedicado a Deus, à Pátria, à Família e «ded ao Trabalho», Tr cerimonial ininterrupto de vocação, devoção e santidade. Senhoras voca de Fátima Fá são quase todas, descontadas as pr precárias de contexto laboral doméstico ou das oficinas, sujeitas à chantagem VISÃO H I S T Ó R I A
83
SEXUALIDADE // ANOS 60
dos abusos sexuais. Prostitutas e outras galdérias, essas contaminavam «o bom português» nos rituais iniciáticos nos bordéis tolerados pelo regime e nas orgíacas pedofilias do «Ballet Rose», cultivadas em segredo por altas cúpulas do salazarismo. Com rebuço, mas sem peso na consciência. O meio artístico é, nesse tempo, uma das raras correntes de ar que vai escapando pelas frinchas da tradição, das leis e dos costumes. Ao colocar-se à frente dos guitarristas no início da carreira (1939), Amália Rodrigues dera um passo cénico e simbólico, reivindicando não apenas a sua liberdade artística, mas de género. «Durante muitos anos, os músicos mandavam nos fadistas. Eram eles quem compunha. As meninas e os meninos que cantavam faziam parte do serralho particular dos guitarristas e dos ‘violas’. Quem remou contra isso foi o Alfredo Marceneiro, à porrada, e a Amália, toda cheia de miminhos e pastéis de bacalhau. Mas a verdade é que passou a fazer-se como ela queria», sublinhou Ruben de Carvalho, comunista desde a juventude e estudioso da cultura popular, há pouco falecido. Separada desde 1942, divorciada anos depois, independente na vida pessoal e artística, a cantadeira foge aos estereótipos domésticos e brejeiros. Amália «foi-se afastando do modelo da Severa, da mulher submissa, resignada a um destino trágico e, nesse sentido, podia ter sido o sonho secreto de uma geração de mulheres, subjugadas a um regime e a uma sociedade opressivos e conservadores», assinalou Emília Tavares, conservadora e curadora de Fotografia e Novos Media, no Museu Nacional de Arte Contemporânea/Museu do Chiado. Na estreia internacional em Madrid, em 1943, Amália recusou cantar o fado Perseguição, de Avelino de Sousa, enquanto o embaixador Pedro Teotónio Pereira, íntimo de Salazar, não reescreveu a estrofe original em que a mulher era apresentada como «sentinela vigilante» da honra do 84 V I S Ã O H I S T Ó R I A
marido. O diplomata fez-lhe a vontade, mas, por livre iniciativa, ela raramente incluiu o tema nos recitais. Uma cena de Fado, História de uma Cantadeira, de 1947, também marcaria a sua biografia cinematográfica e o seu desconforto com o patriarcado. No filme, Amália protagoniza um diálogo que contestara, mas ao qual cedeu: «O que ele deveria ter feito quando eu comecei a ser mosca doida era dar-se ao respeito, percebeste? Mandar em mim, obrigar-me a obedecer… isso, sim, era ser homem!», desabafa a cantora na pele da personagem Ana Maria. Na verdade, a fadista detestou e considerou «fora de tudo» aquelas frases típicas da obediência e opressão feminina da época, conforme confessará no documentário Estranha Forma de Vida, de Bruno de Almeida (1995). Nos recintos da fadistagem acoitam-se também comportamentos ditos desviantes, criminalizados pelo regime. «Tendo o fado a fama de ser o bastião do marialvismo e do machismo, o meio sempre incluiu, sem problema, os homossexuais», recordará Ruben de Carvalho. «Passa-se o mesmo com expressões musicais da mesma família. O flamenco vai até mais
'O Último Tango em Paris' O filme de Bernardo Bertolucci estreou-se em Portugal com dois anos de atraso, em 1974, ano em que os direitos das mulheres eram invocados num anúncio de imprensa para vender cartões de crédito de um banco português
longe, como se tinha ido em 1920 com os travestis, o universo boémio, etc.» No teatro, muito se esconde atrás do palco, mas a coragem também entra em cena. «O Villaret é! O Villaret é!», gritam ao ator João Villaret, homossexual. «O Villaret é, mas ninguém tem nada com isso!», reagiu o saudoso declamador da grande poesia. O episódio é recordado pelo crítico de teatro Tito Lívio, autor de artigo demolidor, em 1972, no República, no qual contestou a celebração do Dia Inter-
«Quem faz um filho, fá-lo por gosto», cantado por Simone no Festival da Canção de 1969, tornou-se hino e rebelião numa sociedade saturada de respeitinhos
nacional da Mulher por considerá-la «um pretexto para lembrar a subalternidade» a que o elemento feminino estava sujeito «numa sociedade patriarcal, marialva, machista e repressiva».
Desfolhar o regime Simone de Oliveira, cantora consagrada, mãe e mulher desprendida, ganhara o Festival da Canção anos antes (1969) com Desfolhada, cantiga de Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes. A letra saíra à socapa da RTP e fora lida na penumbra de boîtes antes da consagração que viria. «Quem faz um filho, fá-lo por gosto», tornou-se hino e rebelião na sociedade saturada de respeitinho, aparências e matrimónios abençoados, mas Simone também foi «depravada» e «degradante» aos olhos de maridos ciosos das suas mulheres de trazer por casa. Insultada em restaurantes e estádios de futebol, revelara, sem querer, um apagão nos discursos do Estado Novo, «ou seja, a dimensão do prazer sexual na relação conjugal, independentemente da sua finalidade reprodutiva», escreveu, a propósito, a investigadora Isabel Freire. Às portas do 25 de Abril, as elites dormiam nuas e os quadros superiores tinham relações sexuais «duas vezes por semana e domingo à tarde», se não tivessem nada para fazer. Retiradas de
um inquérito à «rotina dos casais», tais conclusões nunca passaram no crivo do Exame Prévio. O excerto de um artigo da escritora Luísa Dacosta no Expresso sobre a mulher «casada e séria» que só experimentava «o picantezinho» do prazer a partir das «aventuras do marido», teve idêntico destino. A censura do «marcelismo», cuja «primavera» foi de papelão, não teria mãos a medir quando Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno decidiram, em almoços à mesa do restaurante 13, no Bairro Alto, avançar com um projeto de escrita partilhada. Inspiradas nos relatos de clausura, abuso e abandono de Mariana Alcoforado, as «Três Marias» denunciaram a cartilha do regime, onde as mulheres que desejavam sê-lo em plenitude eram estigmatizadas e catalogadas de impuras, ilegítimas, pecadoras e doentes. Novas Cartas Portuguesas libertou a palavra, expôs a submissão das mulheres sem falinhas mansas, recebeu solidariedades internacionais, libertou silêncios, assanhou a ditadura e até velhos resistentes antifascistas. «Há coisas que as senhoras não deviam sequer pensar, muito menos escrever», afirmou então o republicano, socialista e maçon Raul Rego. «Putas ou lésbicas, não importa o que nos chamem, já que a nossa luta não
está perdida», diria Maria Teresa Horta à brasileira Veja, em 1973. «Chegou a hora de dizer ‘Basta!’ e formar um só bloco com os nossos corpos», assumiu. «Não nos interessa a simples emancipação da mulher. Nós queremos liberdade.» E ela viria, absolvendo as «Três Marias» de todos os crimes e prometendo a todas um País novo. Aos primeiros dias de revolução, estreou-se, com dois anos de atraso, O Último Tango em Paris, drama erótico de Bertolucci com Marlon Brando e Maria Schneider. Parte da população deixa de espreitar pelo buraco da fechadura e, durante meses, esgota sessões. A fronteira entre ditadura e liberdade é agora física, palpável: excursões de espanhóis engrossam filas das bilheteiras. A possibilidade de assistir à famosa cena simulada de penetração anal é tida, à época, como libertadora, sinal dos tempos desenfreados que se viveram, mas «é contra tudo aquilo que uma feminista defende», assinala Maria Teresa Horta. «Maria Schneider foi vítima de uma manipulação e ficou destruída com a violação encenada, como admitiria no fim da vida. Veja-se o caminho que foi preciso fazer para ela poder denunciar isto antes de morrer.» A prometida mudança de mentalidade escorregou na manteiga e, apesar dos avanços, talvez continue por cumprir. «É provável que nunca se tenha vivido numa sociedade tão violenta como a atual ao nível das relações. A naturalidade com que se encaram a agressão física e a violação de privacidade é coerente com isso», afirma Júlio Machado Vaz. Ao seu consultório chegam cada vez mais casais desavindos. «Em 60 a 70 por cento das situações, a ‘coisa’ rebentou através de tecnologia, telemóveis ou computadores.» Chama-lhes «Little Brothers», ironizando com a distopia de Orwell. De que serviu a revolução sexual se ainda mantemos um pide dentro de nós? «Quase tenho saudades dos outros. Pelo menos, eram mais primários e vinham de gabardina.» VISÃO H I S T Ó R I A
85
SEXUALIDADE // DEPOIMENTO
Histórias de revolução e regressão
Protagonista da libertação das mulheres e das lutas contra a moral social e sexual em ditadura, a escritora recorda, em discurso direto, esses tempos sufocantes e castradores, sem esquecer os retrocessos
MARIA TERESA HORTA* Escritora, poetisa e jornalista, fez parte do movimento Poesia 61 e dedicou-se à questão do feminismo. Conta, entre os seus antepassados, com a célebre Marquesa de Alorna, sobre a qual escreveu o romance As Luzes de Leonor (2011)
* Depoimento recolhido por Miguel Carvalho 86 V I S Ã O H I S T Ó R I A
N
o tempo do fascismo era impossível sequer imaginar uma revolução sexual. Era um País de ignorância profunda, de um marasmo completo, puritaníssimo. Quem mandava queria convencer-nos de que tudo o que se passava fora do País era pecaminoso e perverso. As nossas saias eram medidas, a linguagem controlada. Para irmos a qualquer sítio, nós, raparigas, tínhamos de ir com os nossos irmãos, que entravam e saíam quando queriam. Éramos completamente segregadas em tudo aquilo que se passava fora de casa. As mulheres nem sequer podiam reivindicar a sua sexualidade: tinham apenas a sexualidade que os maridos queriam que elas tivessem, ou seja, aquilo que lhes dava prazer. Assim éramos educadas, assim chegávamos a jovens. Com uma sexualidade sussurrada. Quando apareceu o disco do Bill Haley Rock Around the Clock, eu e a minha irmã, dois anos mais nova, fomos para a fila imensa da loja da Valentim de Carvalho. Estivemos lá três horas. Em casa, pusemos o disco a tocar, uma e outra vez, sem sabermos que o meu pai, entretanto, já tinha chegado. De repente, entrou e disse: «Que coisa horrível é esta que vocês estão a ouvir? Está completamente fora de hipótese ouvir isto cá em casa!» Dito isto, aproximou-se do aparelho e partiu o disco no joelho! Tínhamos juntado dinheiro para comprá-lo e ficámos sideradas. Fomos advertidas e foi traumático. Acabámos por ir comprar o disco de novo, mas ouvíamo-lo às escondidas. O meu pai chamava-se Jorge Horta. Católico, médico, professor catedrático da Faculdade de Medicina, antigo diretor hospitalar, personalidade muito considerada na época. Tinha uma biblioteca
espantosa, mas onde, durante muito tempo, não havia um único livro escrito por mulheres. Era um mar de homens. Mais tarde apareceu um da Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo. Antes disso, com 6 ou 7 anos, já eu tinha perguntado à minha mãe: – Não há mulheres que escrevam? Ela, muito escandalizada, reagiu: – Claro que sim! A tua avó! [Marquesa de Alorna, protagonista do premiado romance histórico de Maria Teresa Horta As Luzes de Leonor, sobre a sua quinta avó].
L
embro-me de ir a Paris, ainda jovem, e de ter ficado maravilhada com a alegria que vi. Era espantoso. Um ato tão simples, mas verdadeiramente libertário, era poder estar às cavalitas de um amigo no meio da multidão a gritar pela vontade de ser uma pessoa por inteiro. Havia, claro, dois olhares, feminino e masculino, sobre aquelas transformações. Mas as vozes das mulheres e dos homens também coincidiam. Solidárias, igualitárias e cúmplices. Era uma coisa tão bela, tão emotiva. Andávamos na rua e sorríamos uns para os outros. Em Portugal, a situação das mulheres era catastrófica. Fui a primeira mulher diretora de um cineclube no País, o ABC Cineclube de Lisboa. Um dia fomos ao Secretariado Nacional de Informação (SNI), no Palácio Foz, falar com o diretor, César Moreira Baptista, para ver se nos «levantavam» a censura a uma série de filmes sobre neorrealismo que queríamos exibir. «O que é que os senhores querem desta vez? E o que está aqui a fazer esta menina?», perguntou ele. «Não é menina, é uma mulher. Casada e escritora», respondeu o Manuel Neves, um dos dirigentes. «Pobre país este que já
tem mulheres como diretoras de cineclube!», reagiu o Moreira Baptista com o ar mais condoído que se possa imaginar. Para ele, eu, dirigente do cineclube, só com homens, só podia ser uma depravada. Era a mentalidade da época. César Moreira Baptista foi o meu pior inimigo. Foi ele que, em 1971, já subsecretário de Estado, mandou proibir o meu livro de poesia Minha Senhora de Mim, ameaçando a Snu Abecassis, proprietária da Dom Quixote, de que se publicasse algo da minha autoria, nem que fosse a «história da carochinha», fechava as portas da editora. Por causa desse livro, fui espancada na rua, de noite, no bairro social do Arco do Cego. Foi também ele que mandou proibir As Novas Cartas Portuguesas, o livro que escrevi com a Maria Velho da Costa e a Maria isabel Barreno que desafiou a moral social e sexual da época.
N
esse tempo, havia imensas orgias, encontros de sexo em grupo, sobretudo para os lados de Cascais. E muitas vezes me questionavam: então se eu era pela libertação das mulheres, por que razão não aparecia nessas coisas? «Não quero, acho horrível», respondia. O benefício era sempre dos homens, as mulheres eram desfrutadas. Sempre se criou uma ideia absurda à minha volta, de que era uma galdéria, quando eu, afinal, sou uma mulher apaixonada pelo mesmo homem há 56 anos. Mas a minha imagem era essa. Ainda hoje se riem de mim quando falo disto: «Lá está a aldrabona», dizem. Como brigava sempre pelos nossos direitos e depois tentei que o Movimento de Libertação das Mulheres acabasse com a subalternidade face aos homens, foi a imagem que ficou. Em ditadura, não havia uma única jornalista que fosse enviada ao estrangeiro pelo jornal. As mulheres
ficavam na redação, na maioria dos casos nem iam à rua. N´A Capital, nos primeiros tempos, estive sozinha, numa salinha, com a Isabel da Nóbrega, que fazia crónicas. Perguntei porquê ao chefe de redação, Maurício de Oliveira. «Porque vocês distraem os jornalistas. Além disso, os homens gostam muito de falar mal, têm um palavreado que não é adequado, e se estiver uma senhora na redação ficam retraídos.» E eu respondi: «Pois, mas lá em casa quem fala mal sou eu.» Hoje vejo algumas regressões. A violência no namoro, por exemplo, era impensável naquele tempo. Nunca o permitiríamos. As nossas mães preveniam-nos sempre contra isso. Nem os pais o consentiriam, embora o homem pudesse bater na «sua» mulher ou até matá-la em situações de traição, sem que a Justiça o incomodasse. Mas, nesse tempo, ele era «dono» dela, à face da lei. Os namorados, mesmo os mais brutos, não o faziam. Cultivavam o enamoramento. A primeira vez que ouvi falar nisso foi através dos meus netos. Fiquei estarrecida. Não entendo que uma mulher aceite ser espancada, muito menos uma mulher solteira. É algo que me desmoraliza muito. Houve avanços em termos sociais, mas no que diz respeito à intimidade há um retrocesso. Não em relação à sexualidade, porque, apesar de tudo, a mulher tem hoje noção do seu direito ao prazer e à sexualidade, mas muitas mulheres continuam a fingir que têm prazer. Não nos enganemos: uma coisa é o que se vê, outra é o que vai na intimidade de cada mulher, silenciado. Temos séculos de silêncio nessa matéria. Por isso, não está tudo bem. Está ilusoriamente bem. E, como sempre, para haver mudanças, as mulheres têm de dar três passos à frente para ficarem com um. E às vezes nem com um ficam.
Já em liberdade Só depois do 25 de Abril de 1974 o processo das «Três Marias» foi encerrado e pôde ser contado na imprensa sem o filtro do puritanismo nem os cortes da censura
“
A VIOLÊNCIA NO NAMORO SERIA IMPENSÁVEL NAQUELE TEMPO. NUNCA O PERMITIRÍAMOS VISÃO H I S T Ó R I A
87
SEXUALIDADE // PORNOGRAFIA
Toda a nudez será filmada
Dos filmes amadores e clandestinos a uma indústria bilionária vai um caminho de pouco mais de um século. Sempre a descobrir novas formas de consumo de cinema erótico e pornográfico
É
por João Gobern
por muito pouco que a relação entre o cinema, em sentido lato, e as suas componentes erótica e pornográfica não suscita uma discussão do género da que se alimenta em torno do ovo e da galinha. Bastará pensar que um dos «pais fundadores» daquela que é conhecida como a 7ª Arte, o francês Georges Meliès, dirigiu Après Le Bal, em que a atriz Jeahnne d’Alcy é auxiliada por uma criada a despir-se depois do baile. Dura um minuto, mas entra nas contas. Nos Estados Unidos e nos primórdios emerge Audrey Munson, que haveria de morrer aos 104 anos (em 1996): ela foi a protagonista de Inspiration (de George Foster Platt, 1915) e de Purity (de Rae Berger, 1916), em que repetia o papel de modelo praticante do nu artístico, naquilo a que os dicionários da especialidade chamariam um tableau vivant. Munson diria, em claro avanço à sua época: «Detesto a modéstia e a falsidade. Não vejo nada de chocante num corpo nu.» A mesma linha de pensamento foi seguida por Lois Weber ao dirigir Hypocrites (1915), considerado fortemente anticlerical, quando um monge é persistentemente seguido pela figura translúcida (uma inovação técnica) de uma mulher nua, Margareth Edwards. Se dúvidas restassem, esta disponibilidade para o nu acabaria «ratificada» por um dos primeiros grão-mestres, D.W. Griffith, que no épico Intolerance (1916), com
88 V I S Ã O H I S T Ó R I A
1
extensos 210 minutos de duração, abriu portas à nudez em vários momentos, mesmo recorrendo ao truque dos véus, que dissimulam mas não tapam. O primeiro striptease assinalado remonta a 1896 e ao filme Le Coucher de La Mariée, dirigido pelo francês Albert Léar, ficando a nudez entregue a Louise Willy. Do mesmo ano vem o primeiro beijo, em The May Irwin Kiss: 47 segundos chegaram para os protestos de espectadores e da Igreja Católica. Que, algumas décadas depois, repetiria a reprovação, pela voz do próprio papa Pio XII, face à obra que deu a conhecer um nome que, pouco depois, brilharia em Hollywood, o da jovem austríaca Heddy Lamarr. As reações a Êxtase, produção checa de 1933, passavam pela estreia nos ecrãs de uma representação do orgasmo feminino. Muito antes disso, na circunspecta Áustria, já se organizavam as Herrenabende («noites de cavalheiros», à letra), em que só os homens tinham acesso às salas nas sessões de filmes de adultos.
O Código Hays, de 1930, proíbe a nudez, «de facto ou insinuada», nos filmes de Hollywood
5
E foi também em Viena que surgiu a primeira produtora do género, a Saturn, de Johann Schwarzer, responsável por nada menos de 52 fitas com nudez integral feminina. As autoridades locais acabariam por dissolver a empresa e por destruir todas as películas que encontraram. Segundo o estudioso Dave Thompson, houve uma cidade que se destacou nesta variante sensual das imagens em movimento: Buenos Aires, com exibições dos filmes em bordéis, desde o princípio do século XX. Nos terrenos evidentes da pornografia, são poucos os documentos que sobreviveram ao arranque do impulso censório. Patrick Robertson, no livro Film Facts, refere três: L’Écu d’Or ou La Bonne Auberge (de 1908), em que um soldado e a empregada de uma pensão consumam o ato; El Sátiro, rodado algures entre 1907 e 1912, com origem argentina; e o alemão Am Abend (1910), considerado um dos pioneiros, que haveria de definir a falta de limites da pornografia filmada – em
3 D.R.
2
4
GETTY IMAGES
6
3
7
dez minutos, passa-se da masturbação feminina à cópula e da felação ao sexo anal. Do lado norte-americano, o pioneiro habitualmente aceite é A Free Ride, de 1915, em que um homem dá boleia a duas mulheres e acabam os três por entreter-se, de forma evidente, antes de chegarem aos respetivos destinos.
Da clandestinidade ao apogeu Aos poucos, a nudez e a sexualidade iam sendo mais e mais vigiadas pelos grupos moralistas. Não espanta que a maioria dos stag films (ou blue films), tanto na era do mudo como nos primórdios do cinema sonoro, ficasse a cargo de amadores, sem estrelas conhecidas ou qualquer embrião de indústria envolvido. Até a revelação dos filmes era doméstica, muitas vezes concretizada em casas de banho. Já a distribuição era feita de mão para mão ou, no limite, através de caixeiros-viajantes, que corriam risco de prisão caso fossem apanhados pela polícia.
Hollywood era objeto de uma malha mais apertada, uma vez que o chamado Código Hays, publicado a 19 de fevereiro de 1930 na revista Variety, incluía enormes restrições quanto ao que poderia ver-se nas salas. Assinalam-se proibições absolutas, visando a «nudez, de facto ou insinuada», a «insinuação de perversões sexuais», a «higiene sexual e as doenças venéreas» (forma de travar as escapadelas «documentais» que também recorriam à utilização do nu como mero pretexto), entre outras; por outro lado, estatuía o forte incentivo a «cuidados extremos» na exibição de «venda de mulheres ou venda da sua virtude por uma mulher», «violação ou tentativa de violação», «consumação do casamento» ou a presença de «homem e mulher juntos na cama». Durante algum tempo, os estúdios ainda lograram fintar o espírito da lei. Cecil B. De Mille – que passou à história como o cineasta de Sansão e Dalila e, sobretudo, Os Dez Mandamentos – fez questão de dizer
8
1
Inspiration, de 1915: Audrey Munson num tableau vivant
2
Hypocrites, de 1915: figura translúcida de uma mulher nua
3
Intolerance, de D. W. Griffitth: véus que dissimulam mas não tapam
4
The May Irwin Kiss, 1896: o primeiro beijo da história do cinema
5
Uma das películas de Saturn, a primeira produtora de filmes eróticos, criada em 1906
6
Êxtase, de 1933: Heddy Lamarr estreia a representação de um orgasmo feminino
7
Fotograma de um stag film
8
O cartaz de Promises! Promises!, que prometia Jane Mansfied em nu integral
VISÃO H I S T Ó R I A
89
adeus ao nu em Four Frightened People e na sua versão de Cleópatra, ambos de 1934 e ambos com Claudette Colbert. Dois anos antes, De Mille dirigira O Sinal da Cruz, que os estudiosos assinalam como o filme que apresenta a primeira cena lésbica de Hollywood, com as atrizes Elissa Landi e Joyzelle Joyner. Os «censores» tentaram em vão que o autor cortasse voluntariamente essa cena. Perante a recusa deste, avançaram unilateralmente para a sua supressão, aproveitando ainda para «eclipsar» parte do banho despojado de Colbert. Também para a «despedida», Johnny Weissmuller teve oportunidade de nadar com uma mulher completamente despida, em Tarzan e A Companheira (ainda de 1934). A sua parceira nesse momento não é a actriz Maureen O’Sullivan, que assume o papel de Jane, mas sim a nadadora olímpica Josephine McKim. Ainda assim, à cautela, a produção filmou três versões diferentes (nu integral, parcial e numa espécie de fato de banho), antecipando os protestos da Legião Católica. Quem já não escapou à fúria restritiva foi mesmo Jane Russell, a vedeta pulpeuse «descoberta» por Howard Hughes, que tanto em A Terra dos Homens Perdidos
Dinheiro em caixa Quanto vale, hoje, a indústria da pornografia? Os números são difíceis de calcular, uma vez que – reconhecidamente – só uma parte do negócio está legalizada. Ainda assim, sabe-se que a pirataria, sob múltiplas formas, fez baixar de forma drástica os números avassaladores que a revista Forbes revelava em 2005: DVD – 500 milhões de dólares/ano (quase 450 milhões de euros); Internet – mil milhões de dólares; revistas – mil milhões; payper-view (em canais de TV por cabo ou por satélite, mais quartos de hotel) – 130 milhões. Em 1975, o cálculo apontava para uma receita anual bruta de 5 a 10 milhões, rapidamente revista depois de uma investigação do fisco norte-americano, em 1979, que apontou a soma mínima de 100 milhões.
90 V I S Ã O H I S T Ó R I A
GETTY IMAGES
SEXUALIDADE // PORNOGRAFIA
(1943) como em A Moda Vem de Paris (1953) veria imagens suas retiradas por utilização de decotes excessivos e «estratégicos». Ou seja, além do que se via, estendia-se o crivo ao que podia ver-se. Só para registo: o Código Hays foi abandonado de vez em 1968 – há meio século. Mas, cinco anos antes, já o anúncio ao filme Promises… Promises!, com a bombástica Jayne Mansfield, se baseava em duas palavrinhas apenas: «completely nude». Em boa verdade, a atriz surge apenas em topless. Promessas… Para chegar aos seus «anos dourados», marcadamente empresariais, a pornografia cinematográfica percorreu uma longa via. Com escalas importantes, como aquela que dá conta de uma decisão do Supremo Tribunal norte-americano, em 1957, que condena Samuel Roth, acusado de venda postal de livros «obscenos» mas que abre a porta a muito do que aconteceria depois, ao distinguir sexo (na Arte, na Literatura e na divulgação científica) de obscenidade. O advento de um realizador como Russ
Meyers, antigo operador de câmara nos palcos da II Guerra Mundial, vale outra fenda na muralha, com o autor a «esticar a corda», enchendo fotogramas de mulheres bem nutridas e em atitudes sugestivas, no filme The Immoral Mr. Teas (1959) e nos que dirigiu em seguida. Por fim, a ligação entre o norte-americano Ruben Sturman, editor de revistas eróticas e pornográficas, e o dinamarquês Lasse Braun, a quem se chamava «o rei do porno europeu» (já agora: a Dinamarca foi o primeiro país a liberalizar toda a pornografia, em 1969, tendo como consequência mais palpável a descida drástica do número de crimes sexuais), davam origem às famosas cabinas individuais de exibição dos filmes «para adultos», com as projeções acionadas através da inserção de moedas, que se traduziam em minutos. Com uma vantagem adicional para os agentes: a localização desses «cubículos», em sex shops, livrarias e armazéns, levou anos a ser «descoberta» pelas autoridades tributárias. Ou seja, funcionou sem impostos por muito tempo.
GETTY IMAGES
GETTY IMAGES
Estrelas do porno Linda Lovelace, a protagonista de Garganta Funda, de 1972, e, em baixo, o cartaz italiano do filme; ao lado, Marylin Chambers numa cena de Behind the Green Door, do mesmo ano
Desses milhares de «cinemas privados», passou-se às salas de cinema públicas, mas «reservadas» aos filmes pornográficos. Durante a década de 1970, as fotografias e documentários de Times Square, em Nova Iorque, dão conta da proliferação desses espaços, cenário que se repetia em muitas das grandes metrópoles norte-americanas, de Chicago a Miami, de Los Angeles a Boston. Os bilhetes eram, por norma, mais baratos do que os ingressos de acesso aos filmes «normais», uma vez que ainda não tinham chegado os grandes orçamentos e o lucro estava à mão de semear. A primeira longa-metragem explícita, mas com algum enredo, é – de
A Dinamarca foi o primeiro país a liberalizar toda a pornografia, em 1969
acordo com Seth Grahame-Smith, no seu The Big Book Of Porn – Mona and The Virgin Nymph (1970). Em Boys In The Sand (1971), mais um salto: foram incluídas fichas técnicas e artísticas, com os «artistas» quase sempre escondidos atrás de pseudónimos, prática que se mantém até aos nossos dias. Chegaram os clássicos como Garganta Funda, Behind The Green Door (ambos de 1972), The Devil In Miss Jones (1973), The Opening Of Misty Beethoven (1975), Debbie Does Dallas (1978) e Insaciável (1980). Ao mesmo tempo, surgiam as primeiras grandes divas do setor (que hoje até premeia as melhores produções e desempenhos na especialidade, em cerimónias de pompa e circunstância) quase sempre mais valorizadas do que os seus parceiros masculinos.
Da sala caseira para o computador A chegada das cassetes de vídeo e da utilização do videotape (por oposição ao filme) obrigou a profundas transformações. Os videoclubes – e, mais tarde, os locais de aluguer de DVD – dispunham de uma secção, muitas vezes com localização discreta, quase camuflada, para aluguer dos filmes do setor. De algumas centenas de produções, passou-se rapidamente aos milhares de novidades anuais. O consumidor já não precisava de correr o risco de ser visto numa sala pública, de se misturar com outros frequentadores, porque passava a dispor da possibilidade de ver o que queria na sala… caseira. A indústria aproveitou para se diversificar, abrindo o leque de variantes a subespécies mais difíceis de levar aos cinemas: filmes gay e lésbicos, fetichismos de todos os géneros, com atrizes grávidas e anões/anãs, sado-
masoquistas, duplas penetrações, recurso a atrizes e atores anafadas/os, utilização de acessórios de todo o tipo, atrizes jovens («barely legal» é a expressão usada para certificar que não se trata de menores, o que nem sempre correspondeu à verdade) ou já bem maduras/os, fitas que envolvem wrestling... Por norma, sempre se mantiveram dois limites: a pedofilia (que, naturalmente, nunca foi admitida neste segmento legalizado) e a zoofilia. As salas de cinema entraram rapidamente em decadência, inclusivamente em Portugal, depois de Lisboa ter – entre as décadas de 1980 e 1990 – meia dúzia a funcionar em simultâneo. Os DVD permitiram a interatividade, em que a sequência da ação era determinado pelo espectador. Com a Internet, tudo voltou a mudar: hoje, o palácio pornográfico por excelência é mesmo o computador pessoal, com sites pagos e, para mal dos intervenientes, pirataria sem fim. Longe vai a época em que a comunidade porno se assustou com a sida, que chegou a vitimar vários atores e atrizes, antes de a própria indústria criar a obrigatoriedade de testes médicos. Curiosos são os casos de algumas mulheres que viajaram entre o cinema (dito) «sério» e as produções pornográficas, como Ginger Lynn, Traci Lords ou Nina Hartley. Quanto à importância do fenómeno do porno, basta ver a atenção que lhe foi dedicada pelo «outro» cinema – de Inserts (1975), dirigido por John Byrum e que tem por objeto os pioneiros da pornografia filmada, a Jogos de Prazer (1997), de Paul Thomas Anderson, são vários os mergulhos no assunto. E há ainda os biopics, como o mais recente Lovelace (2013), rodado a partir da vida de Linda Lovelace, a estrela de Garganta Funda. Há ainda a contínua discussão sobre as fronteiras que delimitam os dois terrenos, com dois casos-limite bem separados no tempo: O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, e Ninfomaníaca (2013), de Lars von Trier. Mas essa é outra questão, em que dificilmente uma sentença transitará em julgado. VISÃO H I S T Ó R I A
91
SEXUALIDADE // LITERATURA
AS HISTÓRIAS DE AMOR NÃO TÊM UM FINAL FELIZ Assim no-lo ensina – se necessário fosse – a literatura, quer através da recriação de histórias reais quer da invenção de posteriores realidades por António Mega Ferreira*
Amor, que a nenhum amado amar perdoa Dante Alighieri ‘Inferno’, Canto V
Unidos pela lâmina da espada
D * António Mega Ferreira é escritor 92 V I S Ã O H I S T Ó R I A
eve-se ao génio poético de Dante Alighieri (1265-1321) a difusão universal da história dos amores trágicos de Paolo Malatesta e Francesca de Rimini, assassinados in fragrante pelo irmão do primeiro, que era também marido da segunda. Apesar de ambos procederem de famílias poderosas, as crónicas da época não referem o episódio sangrento, que não pode deixar de ter impressionado vivamente as consciências cristãs, até porque o direito canónico proibia o exercício da violência sobre a mulher adúltera. Dante conta-o de forma arrebatadora no Canto V do Inferno, a primeira das suas viagens poéticas pelo Além, em busca do
MORTE DE FRANCESCA E PAOLO, DE ALEXANDRE CABANEL, 1870/MUSEU DE ORSAY/GETTYIMAGES
encontro com Deus e da salvação da alma, que é o assunto maior do seu poema A Divina Comédia. E é a partir do relato dantesco que a paixão de Paolo e Francesca se torna, nos séculos seguintes, uma das referências fundamentais da história do Amor no Ocidente europeu. Da pintura à música, de Ingres a Rachmaninov, o século XIX praticamente tornou Francesca um mito romântico, declinado em quadros, esculturas, tragédias e óperas. O drama real conta-se em poucas linhas: um casamento político entre Gianciotto Malatesta e Francesca da Polenta pôs termo a uma dura contenda entre as duas famílias, a primeira dominante em Rimini, a segunda em Ravena. Mas Gianciotto era cruel e aleijado; o seu irmão mais novo, Paolo, era conhecido como il Bello. Francesca, que devia andar pelos 20 anos de idade, forçada a casar com Gianciotto, conheceu Paolo e apaixonou-se. E este, que era casado e uns dez anos mais velho, cedeu também às setas de Cupido. O marido enganado soube da história duplamente transgressiva (além de adúlteros, os amantes cunhados eram também culpados de incesto, segundo a definição da época), surpreendeu-os num momento de intimidade e matou-os com um único golpe de espada, que atravessou os dois corpos mantendo-os unidos. O epílogo sangrento aconteceu em 1285.
A morte dos amantes Francesca e Paolo ligados no trágico destino, segundo uma tela oitocentista de Alexandre Cabanel
Deste material histórico tirou Dante a inspiração para o episódio do Canto V do Inferno, em que ele e o seu mentor, o poeta Virgílio, entram no círculo dos «luxuriosos» (os que submetem a razão aos seus desejos). Quando avista os dois amantes, que vogam no espaço unidos um ao outro, Dante, o peregrino, manifesta a vontade de falar com eles: quer saber «quantos doces pensamentos e desejo/ao doloroso passo os levaram em declive». O colóquio terá como interlocutores o poeta e Francesca, porque Paolo apenas chora em silêncio e Francesca não se faz rogada a contar a sua história. «Um dia em que líamos com enleio/como amor a Lançarote aprisionou», toparam, no livro que conta as suas aventuras, com o momento em que o cavaleiro beija Genebra (Guinevere) e inicia o seu amor funesto com a mulher do rei Artur: «E este, que não pode de mim ser apartado,/ tremendo, me beijou, naquele instante.» Numa bela elipse narrativa, Dante conclui a fala de Francesca: «Nesse dia não lemos p’ra diante.» É pois um livro que medeia a relação amorosa de Paolo e Francesca. E é um livro, a Comédia de Dante, que a torna célebre e imortal. Por coincidência, Dante virá a morrer em Ravena, em 1321, quando se encontrava ao serviço de um primo de Francesca, Guido da Polenta. VISÃO H I S T Ó R I A
93
SEXUALIDADE // LITERATURA
‘Romeu e Julieta’
Uma tragédia de equívocos
H
O ADEUS DE ROMEU E JULIETA, DE EUGENE DELACROIX, 1845/BRIDGEMAN IMAGES
á quem diga que o assassínio de Paolo e Francesca teve motivos políticos: Gianciotto aproveitou o pretexto para se ver livre da mulher, porque queria casar-se com Zambrazina, natural de Faenza, o que efetivamente viria a acontecer pouco tempo depois da tragédia. O episódio, igualmente trágico, dos amores de Romeu Montéquio e Julieta Capuleto, pelo contrário, parte de uma atração entre dois adolescentes, provenientes das duas famílias rivais na luta pelo poder na cidade de Verona para terminar na morte voluntária dos dois amantes. Da história, transmitida por relatos de meados do século XVI, tirou William Shakespeare (1564-1616) A muito excelente e lamentável Tragédia de Romeu e Julieta, dada à estampa em volumes in quarto em 1597 e 1599, mas apenas representada, ao que se sabe, quase dez anos depois, como uma simples história de amor contrariado e desgraçado. Mas o texto de Shakespeare, tomando como motivo central os amores, primeiro jubilosos, depois infelizes, dos dois adolescentes de Verona, é mais que uma história de amor. Como era inevitável no autor inglês, a sua tragédia é também uma peça de teatro político, como se diz logo na intervenção proemial do Coro: «Duas casas, iguais as duas em nobreza,/Na bela Verona, onde pomos a nossa cena,/De
94 V I S Ã O H I S T Ó R I A
velhos rancores tiram nova aspereza,/Em que sangue civil mãos civis gangrena.» As cidades italianas, com o seu estatuto autónomo e senhorial e as lutas constantes pelo poder, como era o caso de Verona, constituíam terreno fértil para a inventiva shakespeariana, tanto quanto a sanguinária história britânica, na qual os reis e os seus sequazes eram matéria-prima para o cortejo de vilezas, traições, desmandos e desgraças que são a marca de água da tragédia shakespeariana. No caso presente, a paixão de Romeu e Julieta só remotamente evoca a dos amores de Dante e Beatriz, ou de Petrarca e Laura, amores italianos por tradição literária. É que se, nestes, a mulher amada era objeto de veneração que alimenta a criação poética, a paixão shakespeariana é de acentuado pendor erótico e só se consuma no contacto entre os amantes. O soneto dialogado em que Romeu seduz Julieta (e vice-versa) é talvez um dos pontos mais altos do discurso amoroso em Shakespeare. Diz Romeu: «E não têm lábios os santos, e os palmeiros não?» E ela: «Têm, peregrino, lábios pra rezar, sem outra usança.» O Montéquio insiste: «Então, imagem santa, que os lábios sigam a mão:/ Só vos pedem que não mude a fé em desesperança.» E ela, condescendente: «Não se move o santo, inda que a prece o satisfaça.» E ele, decidido: «Não vos moveis, então, enquanto recolho esta graça.» O beijo que sela esta belíssima troca de emoções (sente-se como a sedução progride através das palavras) é, sabemo-lo agora, o beijo fatal da eternidade. Se morrem, não é por mão de terceiros, mas porque, na sua ingenuidade, se equivocam: ele pensa-a morta e suicida-se; ela descobre-o morto e põe termo à vida. Mas o seu sacrifício ritual, aparentemente inglório, acaba por ser o penhor que garante a paz entre as famílias desavindas, paz que ninguém poderá dizer se sobreviveu aos seus atores presentes. O equívoco da dupla morte, pelo contrário, sobreviveu ao tempo: é dele que se alimenta o mito romântico de Romeu e Julieta.
‘Cartas de dois amantes’
Da infâmia à redenção
‘THE PARTING OF ABELARD AND HELOISE’, DE ANGELIKA KAUFFMAN/HERMITAGE/GETTY IMAGES
E
m finais do século XI despontou em França o talento filosófico e dialético de Pierre Abélard (a quem chamaremos Abelardo, como é costume entre nós), um natural da Bretanha, inoculado, desde pequeno, com a paixão das letras por um pai militar mais dado à pena do que às armas. Uma sede insaciável de conhecimento levou Abelardo (1079-1142) a uma carreira vertiginosa, embora não isenta de peripécias e obstáculos. Assertivo, truculento e inconformista, Abelardo tornou-se notado pelo seu génio argumentativo, tanto quanto pela sua predisposição para contestar os mestres. Andou de um lado para o outro à procura das luzes da filosofia e de alunos a quem doutrinar, até que, por volta dos 30 anos, assentou cátedra em Paris, junto de Notre-Dame, onde fundou escola.
Ganhou prestígio e fama, o que são duas coisas diferentes. Mas talvez ambas tenham concorrido na determinação de um cónego do quartier, um tal Fulberto, em aliciá-lo para ser o mestre da sua sobrinha adolescente, Heloísa, que era dada ao latim, à poesia e à filosofia. Abelardo não se fez rogado: tinha 36 anos e ela talvez não mais de 17. E propôs ao cónego aboletar-se em casa dele, para mais facilmente dispor de tempo para ensinar a gentil sobrinha. Estudavam à noite, enquanto Fulberto e Paris dormiam; e, no termo de uma corte insistente (ele queria uma relação carnal, ela uma amitié amoureuse), tornaram-se amantes, ela por devoção rendida, ele por desejo insaciável. A progressão do affaire pode ser documentada através de um manuscrito do século XV, que reproduz parcialmente umas Epistolae duorum amantium (Cartas dos dois amantes), em prosa e verso, de autores desconhecidos, mas recentemente atribuídas aos nossos dois amantes. Na última, escreve ele: «Que escondes tu sob os teus trajes? O meu espírito perde a calma./Gostava de os tocar quando me vêm à memória.» Mas, uma noite, a Fulberto deu a insónia; e descobriu-os no leito em debates não propriamente filosóficos. Segue-se uma sucessão confusa de afastamentos e ocultações, porque Fulberto não quer a sua honra manchada e Abelardo teme que o escândalo lhe prejudique a carreira docente. Mas, por volta de 1117, dois anos depois do início do enredo, Heloísa dá à luz um rapaz,
a quem põe o excêntrico nome de Astrolábio; Abelardo propõe a Fulberto sanar o percalço, tomando Heloísa em casamento, com a condição de que o enlace permaneça secreto; mas uma inconfidência torna o episódio um escândalo público, e o tio enganado decide vingar-se da afronta, por mão própria ou alheia: apanham Abelardo na cama e o fogoso amante é castrado a sangue-frio. Vergado pela infâmia, Abelardo decide que aos dois amantes apenas resta retirarem-se do mundo, professando ele na abadia de Saint-Denis, onde se tornará um dos expoentes do pensamento escolástico, ela em Argenteuil, onde virá a morrer abadessa em 1164, com 74 anos de idade. Parece que se reencontraram doze anos depois do episódio dramático. Mas, em vez de reatarem uma relação amorosa que fora a causa da infâmia de ambos, iniciaram uma correspondência em que rememoram os factos que tinham vivido. O caráter autobiográfico é particularmente nítido nas cartas de Abelardo, embora não isento de algumas imprecisões que são a marca indelével da sua personalidade egotista. Essa correspondência, dita «monástica«, a única que até há poucas décadas lhes era indubitavelmente atribuída, é, por si só, um monumento literário de alto calado, sem dúvida a mais brilhante e comovente troca epistolar amorosa e intelectual da Idade Média. E, que mais não fosse por isso, os amantes acharam, perante a posteridade, o caminho da redenção. VISÃO H I S T Ó R I A
95
FOTOGRAMAS DO FILME ‘AMOR DE PERDIÇÃO’, DE MANOEL DE OLIVEIRA
SEXUALIDADE // LITERATURA
‘Amor de Perdição’
Como morrer de amor
S
imão Botelho era um adolescente intrépido e estoura-vergas, estudante em Coimbra, mais conhecido pelas constantes zaragatas que armava (e das quais se desembaraçava com garbo) do que pela dedicação ao estudo e a uma vida conforme com os desejos do pai, corregedor em Viseu. E, de repente, aos 17 anos, os hábitos de Simão transformam-se: torna-se aplicado e estudioso, caseiro e moderado, introspetivo e solitário. Efeitos de Coimbra sobre a sua alma em construção? Não. Porque a transformação dá-se em Viseu, para onde voltara após seis meses de cárcere académico. «Simão Botelho amava.» A infeliz contemplada (tudo, neste história, é um rol de infelicidades) era uma vizinha, Teresa, que andava pelos 15 anos, mas na qual os olhares de Simão, dardejados da janela fronteira, tinham acendido as labaredas da primeira paixão. Namoravam-se por bilhetes, às escondidas, porque entre os pais de ambos havia conflito
96 V I S Ã O H I S T Ó R I A
insanável, que certas sentenças dadas pelo corregedor tinham vindo agravar. Deste desencontro de vontades nasce a intriga de Amor de Perdição, novela de Camilo Castelo Branco (1825-1890) dada à estampa em 1861. O pai de Teresa tinha outros planos para ela: queria vê-la casada com um primo de Castro d’Aire, um tal Baltasar Coutinho, o qual, vilão desta história, se torna o catalisador da tragédia. Apesar da corte desajeitada que o primo move a Teresa, esta resiste: «O coração é mais forte que a submissa vontade de uma filha.» E o primo desenganado jura tirar Simão do seu caminho. O génio aquietado de Simão todo se incendeia ao saber dos intentos de Baltasar. Um duelo mortal abre-se entre os dois pretendentes; e Simão sai ferido de um recontro com dois criados de Baltasar, que o esperavam para lhe desfechar as clavinas. Simão é acolhido em casa do ferrador João da Cruz, que devia certos favores ao corregedor de Viseu. E surge aqui a maior desgraçada desta
história, Mariana, a filha do ferrador, que sucumbe de um golpe aos encantos do estudante amoroso. Torna-se enfermeira, confidente, irmã. Mariana ama Simão, que só tem olhos para Teresa. Mas, apesar das premonições de Mariana, Simão sente chegada a hora de ajustar contas com o primo incómodo. Sabe que o pai vai internar Teresa num convento do Porto, escoltada por Baltasar e pelas suas irmãs. Aparece-lhes à porta do templo; de um tiro abate o rival. E entrega-se às autoridades, porque não quer fuga nem perdão. Simão sabe que é a forca que o espera, tanto mais que o pai corregedor, inflexível, renuncia a intervir a favor do filho. No convento, Teresa definha: em casa, Mariana tresvaria. A confissão sem atenuantes valeu-lhe, de facto, a pena capital. Mas o corregedor de Viseu mete-se em brios e move empenhos e cabedais até que a Relação comuta a pena em dez anos de degredo na Índia ou o mesmo tempo de cativeiro nos cárceres de Vila Real. Simão renuncia pela última vez: o degredo será, porque os dezoito meses de cativeiro que sofreu até à consumação do processo lhe parecem tormento que não poderá voltar a suportar. Mariana quer ir com ele; e ele aceita-a como amparo, porque sozinho não sabe como enfrentar a última etapa da sua perdição. No dia em que os dois desgraçados são recebidos a bordo da nau da Índia, Teresa pede que a levem ao mirante do convento de onde se avista o barco do degredo, acena a Simão e expira nos braços das freiras que a acolheram. A notícia chega ao barco fundeado ao largo, Simão é tomado por uma febre maligna e morre ao princípio do dia seguinte. Forma-se parada para lançar o cadáver ao mar; e, no momento em que o corpo inerte bate nas águas, Mariana lança-se para o abraçar uma última vez antes de descer com ele às profundezas do oceano. Simão Botelho era o irmão mais novo do pai de Camilo, Manuel Botelho. O que só prova que a realidade é muitas vezes mais cruel que a ficção.
‘Anna Karenina’
GRETA GARBO NO FILME ‘ANNA KARENINA’, 1935/BRIDGEMAN IMAGES
A heroína de todo o mundo
A
nna Karenina é uma imagem estável na paisagem com que se abre o romance de Lev Tolstói (1828-1910) que leva o seu nome: é uma mulher madura e fascinante, regularmente casada e mãe de um filho, que consome os seus dias entre chás e visitas de família e as noites deitada ao lado de um marido très comme il faut, conservador e bisonho, mecânico e rotineiro. E, de repente, à saída de um comboio, numa gare de São Petersburgo (George Steiner disse uma vez que seria possível «escrever um ensaio sobre o papel das estações de comboio nos romances e na vida de Tolstói e Dostoievski») conhece o jovem oficial Vronski e descobre que as orelhas do marido são enormes e o desfeiam até à irrisão. Como dois ímanes, são atraídos um para o outro, Vronski porque sim, Anna porque não. Um quer conquistar a outra; ela ganha nele as forças para rejeitar o mundo em que se move. Anna ama Vronski, total, deses-
peradamente. E Vronski ama Anna? Sim, como um homem de sucesso ama uma mulher: em dedicação exclusiva quando está com ela, com desprendimento quando vai para longe. Inicia-se um torvelinho de episódios dramáticos, que incluem o abandono do marido e do filho, uma fuga para Itália na companhia do fogoso amante, um regresso desgraçado sob a ameaça de um divórcio, uma crise patológica de ciúmes, a perda (a que não se resigna) do amante, a ruína da sua reputação e o ostracismo a que toda a gente a vota. Perdida para o mundo em que sempre se tinha movido, Anna Karenina perde-se nos abismos de si mesma. Anna sucumbe, já se sabe. Mas, por um estranho sortilégio literário, esta «mulher perdida» transformou-se numa espécie de ícone da resistência feminina às pressões do meio envolvente e do conformismo social, muito por causa da indisfarçável atração que Tolstói sentia pela personagem que criara. Talvez Tolstói, à maneira de Flaubert e da sua Bovary, sentisse que Anna Karenina era também ele, os seus repentes, as suas paixões, a sua aversão às convenções sociais. E, tal como ele, que, sendo russo, se tornou um escritor global, também a admirável Anna se converteu num paradigma desgraçado da luta contra o pensamento dominante. Anna Karenina é a heroína de todo o mundo porque, como todo o mundo, é uma vítima do casamento e do preconceito social e contra eles se rebela, não apenas em pensamentos ou por palavras, mas com gestos sucessivos de ruptura, que têm tanto de ousadia quanto de desrazão. Cintila nela o instinto natural da liberdade e ateia-se a labareda incontrolável da paixão. Em si, vemos vertidas todas as nossas insatisfações, os nossos sonhos destruídos, a nossa vertigem de fusão com o outro reduzida a pó. E, tanto como o seu caminho para a perdição, é fascinante a forma como ela se entrega à paixão por um homem muito mais novo, cedendo a um anseio de libertação que a leva a deixar tudo o que lhe pertence para trás. Começar de novo, é o que Karenina deseja – para descobrir, em desespero, que nunca se começa de novo uma vida: tudo o que precede projeta a sua sombra sobre o que é e o que está para vir. VISÃO H I S T Ó R I A
97
SEXUALIDADE // PUBLICIDADE
Nas páginas dos jornais
Anúncios como estes saíram na Ilustração Portuguesa e n'A Capital nas duas primeiras décadas do século XX
Proprietária/Editora: TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL LDA. Sede: Rua Fonte de Caspolima, Quinta da Fonte, Edifício Fernão de Magalhães nº8. 2770-190 Paço de Arcos NIPC: 514674520. Gerência da TRUST IN NEWS: Luís Delgado, Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos. Composição do Capital da Entidade Proprietária: 10.000 euros Principal acionista: Luís Delgado (100%) Publisher: Mafalda Anjos
Diretora: Cláudia Lobo Editor: Luís Almeida Martins Textos: Adelino Cardoso, António Mega Ferreira, Emília Caetano, Francisco Garcia, J.A. David de Morais, Joana Pinheiro de Almeida, João Gobern, João Pacheco, José Machado Pais, José Pacheco, Lourenço Pereira Coutinho, Luís Almeida Martins, Luís Pedro Cabral, Marco Oliveira Borges, Maria Filomena Lopes de Barros, Maria Teresa Horta, Miguel Carvalho, Nuno Simões Rodrigues, Patrícia Reis e Teresa Campos. Imagens: Bridgeman Images; British Library; Direção-Geral do Património Cultural/Arquivo da Divisão Fotográfica (DGPG/ ADF); Getty Images; Leemage/Fotobanco; Museu de Lisboa. Design: Teresa Sengo (editora) e Rita Cabral Revisão: António Ribeiro Assistentes editoriais: Ana Paula Figueiredo, Sofia Vicente, Teresa Rodrigues, Manuel Luís Pinto e Fernando Negreira (fotografia). Esta revista foi posta à venda em agosto de 2019 Redação, Administração e Serviços Comerciais: Rua Fonte de Caspolima, Quinta da Fonte. Edifício Fernão de Magalhães, n.º 8. 2770-190 Paço de Arcos – Tel.: 218 705 000 Delegação Norte: Rua Roberto Ivens, 288, 4450-247 Matosinhos. Tel: 220 993 810 MARKETING Diretora: Marta Silva Carvalho mscarvalho@trustinnews.pt Gestora de marca: Marta Pessanha (mpessanha@trustinnews.pt) PUBLICIDADE: Tel.: 218 705 000 (Lisboa). 220 993 810 (Porto). Diretora: Vânia Delgado (vdelgado@trustinnews.pt); Diretora Coordenadora: Maria João Costa (mjcosta@trustinnews.pt )
Gestores de Marca: Ana Ribas (aribas@trustinnes.pt); Mariana Jesus (mjesus@trustinnews.pt ), José Maria Carolino (jmcarolino@ trustinnews.pt), Mónica Ferreira (mferreira@trustinnews.pt ) Porto: Margarida Vasconcelos (mvasconcelos@trustinnews.pt) Assistentes: Elisabete Anacleto (eanacleto@visao.pt); Florbela Figueiras (ffigueiras@visao.pt) Porto: Rita Gencsi (rgencsi@trustinnews.pt) Parcerias e Novos Negócios: Diretor: Pedro Oliveira
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA, 15/12/1919
(poliveira@trustinnews.pt) Branded Content: Directora: Rita Ibérico Nogueira (rnogueira@trustinnews.pt)
Produção, Circulação e Assinaturas: Vasco Fernandez (Diretor) Pedro Guilhermino (Coordenador de Produção), Nuno Carvalho, Nuno Gonçalves e Paulo Duarte (Produtores), Isabel Anton (Coordenadora de Circulação), Helena Matoso (Coordenadora
A CAPITAL I SÉRIE, 1/01/1911
de Assinaturas),
Serviço de apoio ao assinante. Tel.: 21 870 50 50 (Dias úteis das 9h às 19h)
Impressão: Lisgráfica – Casal de Sta. Leopoldina – 2745 Queluz de Baixo. Distribuição: VASP MLP, Media Logistics Park, Quinta do Grajal. Venda Seca, 2739-511 Agualva-Cacém Tel.: 214 337 000. Pontos de Venda: contactcenter@vasp.pt – Tel.: 808 206 545, Fax: 808 206 133 Tiragem média: 28 800 exemplares Registo na ERC com o n.º 125 643 Depósito Legal n.º 276 678/08
Estatuto editorial disponível em www.visao.pt
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA, 3/11/1919
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA, 20/01/1919
A Trust in News não é responsável pelo conteúdo dos anúncios nem pela exatidão das características e propriedade dos produtos e/ou bens anunciados. A respetiva veracidade e conformidade com a realidade são da integral e exclusiva responsabilidade dos anunciantes e agências ou empresas publicitárias. Interdita a reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias ou ilustrações sob quaisquer meios e para quaisquer fins.
ASSINATURAS Ligue já
21 870 5050 Dias úteis – 9h às 19h vá a www.assineja.pt
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA, 19/05/1919
98 V I S Ã O H I S T Ó R I A
ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA, 9/09/1907
VISÃO. TENHA UMA, ou mais. JÚNIOR
WWW.VISAO.PT
OS MELHORES RESTAURANTES PARA COMER MARISCO
EESPECIAL SPEC I M O B I LI IMOBILIÁRIO
AGO/SET 2019 | NÚMERO 7
PÁGINAS 2222 P ÁGI
A CIÊNCIA CIÊNCI DO SEXO E DO PRAZER
AASS CCASAS QUE ATRAEM M ILIO MILIONÁRIOS A PORTUGAL
n.O
zoo de lagos
vale 1 Bilhete de criança *Na compra de um bilhete de adulto
N 1377. Nº 1 377 377. 25 25/ 25/7 / 7 A 31 31/ 31/7/2019 / 7/201 / 9 . CONT. CONT E ILHAS: ILHAS €3 €3,6 €3, €3,60 6 0 . SEMANAL
A NEWSMAGAZINE NEW MAIS LIDA DO PAÍS
PPEDRO EDRO MMARQUES ARQUEES BBLOCO LOCO COEE PCP PCP NNOO GOVERNO? GO ERNO? GOV “NALGGUM “NALGUM MMOMENTO OMENTTO AACONTECERÁ” CONTE N CERRÁ”
183
grátis*
badoca safari park
vale 1 Bilhete
grátis*
de criança ç
MENSAL AGOSTO 2019 PORTUGAL (CONT.) €2,90
ASS ÚL ÚLT ÚLTIMAS TIMMAS IN INVESTIGAÇÕES, N V ES OS BENEFÍCIOS PARA A SAÚDE, A RECUPERAÇÃO DO DO DESEJO E OS TRATAMENTOS MAIS EFICAZES
LLISBOA ISB BOA JÁ Á RIV RIVALIZA VALIZA C COM OM NOVA IORQUE E LONDRES NO IMOBILIÁRIO DE ELITE, COM COMPRADORES VI INDOS D ODO O MUNDO. COMO A “FEBRE DO LUXO” ESTÁ A MUDAR O MERCADO VINDOS DEE TTODO
DESPORTO Sete S ete exercícios exerc ex er íccio os p para ara ffa azerr ao ao ar ar livre livrre fazer
PRAIA Como C omo mo o mar ma m e a areia are reia a aju uda am ajudam n as doenças doença en s nas
€7, m €7,2 milhões ilhõ ões Acabou ser batido A cabou bou de s er b atiido o recorde apartamento ecorde rde do apar a ap rtamento o mais País, ais caro o do d P aís s, vendido ainda em projeto ven ndid do a inda ae mp ro ojeto Lis . Mas M s jjá áh á em Lisboa. há outros com p preços mais tros sc pr preços m aiis elevados mercado, ellevados ado no om ercado,, e até moradia té uma a mor m radiia porr 28 milhões de euros 8m milhõe milhõ õe d e eu uros
COLESTEROL
NA NATUREZA
Alertas A lerttas so ssobre brre o iinimigo nim migo go ssilencioso illenccioso so
TTorna-te or n um
eexplorador exp xp l o
IMAGEM Oss segredos O seegredo ed s d os cuidados cuidad da os dos ccom om a pele pe
€4,90 (CONT.) | BIMESTRAL
Podes Po Pode es e encontrar ncontrar bichos extraordinários perto de p erto d e tti.i. Dizemos-te como
OOSS SEGREDOS SEG DO SSTAND T UP PADDLE
GANHA
LIVRO DE JOGOS
NINTENDO SWITCH + NINTENDO LABO ROBOT KIT
+ €3,20 (CONT.)
VISÃO
VISÃO Ã SAÚDE Ú
VISÃO Ã JÚNIOR Ú
VISÃO BIOGRAFIA
A newsmagazine mais lida do país, que prima pelo rigor informativo, o distanciamento crítico e a isenção.
Explora temas sobre saúde e medicina, com o melhor da ciência e da investigação.
Uma revista de informação com artigos para os mais pequenos. Repleta de passatempos, jogos e artigos divertidos.
Uma nova marca da família VISÃO, para conhecer a fundo a vida e obra de grandes figuras da história.
€4.50 (CONT)
EDIÇÃO ESPECIAL 2 0 19
EDIÇÃO ESPECIAL
RIA TÓRIA HISTÓ DAHISAS TA M NIC LE CO Â MPAL RIT COOC S B IAM LHA OG, U IL OLÉM AS ONEL D CR B
271
€4,50 cont.
SUGESTÕES PARA COMER, DORMIR E FAZER NAS 9 ILHAS
Açores GUIA DO PARAÍSO
LIFESTYLE
AV E N T U R A
MERCADO
C U LT U R A
Ilhéu de Vila Franca do Campo, São Miguel
N.º 53 · JUNHO 2019
TURISMO
CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL
UMA ALIANÇA COM MAIS DE SEIS SÉCULOS
M E R G U L H O N O M U N D O FA S C I N A N T E DO DESPORTO SENSAÇÃO EM PORTUGAL
PORTUGAL E INGLATERRA PORT
No tempo de A Aljubarrota • Catarina de Bragança na corte de Westminster d O apoio inglês durante a Guerra Peninsular • Os vinhos do Porto e da Madeira A chegada do 'foot-ball' • A crise do Ultimato • As duas Guerras Mundiais
VISÃO SURF
VISÃO AÇORES
VISÃO HISTÓRIA
Uma edição da VISÃO sobre o desporto sensação em Portugal, feita em parceria com especialistas do setor.
Uma edição especial Açores. Um mergulho nas nove ilhas, para ler e partir à descoberta.
Em cada edição, um assunto histórico, abordado por especialistas. Afinal, é impossível compreendermos o presente sem conhecermos o passado.
PARA ASSINAR OU ENCOMENDAR: Aceda a loja.trustinnews.pt ou ligue 21 870 50 50 Dias úteis, das 9h às 19h.