Revista Visão História - A China Maoista

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A CHINA MAOISTA ©MP/PORTFOLIO/LEEMAGE/FOTOBANCO

N.º 55 · OUTUBRO 2019 CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL

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• Das Guerras do Ópio ao falhanço da primeira República • Mao e a construção do comunismo • Os 70 anos da República Popular • O corte com a URSS e a Revolução Cultural • O preço de Tiananmen, 30 anos depois • De Deng Xiaoping a Xi Jinping • Macau, a China ‘portuguesa’ O FUTURO DE MACAU 20 ANOS APÓS A TRANSFERÊNCIA, por Rocha Vieira


Há vidas que merecem ser lembradas com detalhe

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CHINA // SUMÁRIO

Proprietária/Editora: TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL LDA. Sede: Rua Fonte de Caspolima, Quinta da Fonte, Edifício Fernão de Magalhães nº 8. 2770-190 Paço de Arcos NIPC: 514674520. Gerência da TRUST IN NEWS: Luís Delgado, Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos. Composição do Capital da Entidade Proprietária: 10.000 euros Principal acionista: Luís Delgado (100%) Publisher: Mafalda Anjos

Diretora: Cláudia Lobo Editor: Luís Almeida Martins Textos: Alfredo Gomes Dias, António Caeiro, António Costa Pinto, António Vasconcelos de Saldanha, Clara Teixeira, Emília Caetano, Éric Meyer, Helena Lopes, Luís Almeida Martins, Luís Cunha, Miguel Cardina, Pedro Caldeira Rodrigues, Pedro Vieira, Vasco Caeiro e Vasco Rocha Vieira. Imagens: Bridgeman Images; Getty Images; Magnum/AKG/ Fotobanco, Gonçalo Rosa da Silva; Luís Vasconcelos Design: Teresa Sengo (editora) Revisão: António Ribeiro Assistentes editoriais: Ana Paula Figueiredo, Sofia Vicente, Teresa Rodrigues, Manuel Luís Pinto e Fernando Negreira (fotografia).

Cartaz de propaganda maoista

Cartazes maoistas

Esta revista foi posta à venda em outubro de 2019 Redação, Administração e Serviços Comerciais: Rua Fonte de Caspolima, Quinta da Fonte. Edifício Fernão de Magalhães, n.º 8. 2770-190 Paço de Arcos – Tel.: 218 705 000 Delegação Norte: Rua Roberto Ivens, 288, 4450-247 Matosinhos. Tel: 220 993 810 MARKETING Diretora: Marta Silva Carvalho mscarvalho@trustinnews.pt Gestora de marca: Marta Pessanha (mpessanha@trustinnews.pt) PUBLICIDADE: Tel.: 218 705 000 (Lisboa). 220 993 810 (Porto). Diretora: Vânia Delgado (vdelgado@trustinnews.pt); Diretora Coordenadora: Maria João Costa (mjcosta@trustinnews.pt ) Gestores de Marca: Mariana Jesus (mjesus@trustinnews.pt ), Mónica Ferreira (mferreira@trustinnews.pt ) Porto: Margarida Vasconcelos (mvasconcelos@trustinnews.pt) Assistentes: Elisabete Anacleto (eanacleto@visao.pt); Florbela Figueiras (ffigueiras@visao.pt) Porto: Rita Gencsi (rgencsi@trustinnews.pt) Parcerias e Novos Negócios: Diretor: Pedro Oliveira (poliveira@trustinnews.pt) Branded Content: Directora: Rita Ibérico Nogueira (rnogueira@trustinnews.pt)

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Estatuto editorial disponível em www.visao.pt A Trust in News não é responsável pelo conteúdo dos anúncios nem pela exatidão das características e propriedade dos produtos e/ou bens anunciados. A respetiva veracidade e conformidade com a realidade são da integral e exclusiva responsabilidade dos anunciantes e agências ou empresas publicitárias. Interdita a reprodução, mesmo parcial de textos, fotografias ou ilustrações sob quaisquer meios e para quaisquer fins.

ASSINATURAS

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Cronologia 7000 a.C.-1949

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Mapa da China

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O império moribundo

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Assinalam-se agora em outubro os 70 anos da proclamação da República Popular da China. O velho gigante adormecido a que Napoleão se teria referido em termos receosos começava a despertar de um longo sono. Hoje está bem acordado. Mas entre 1949 e 2019 há outra data a assinalar, também em números redondos: 1989, o ano da contestação estudantil antirregime na Praça Tiananmen e da sua sangrenta repressão, parto doloroso de um «império» renascido sob a direção de Deng Xiaoping, um pequeno líder que gostava de jogar bridge e estabeleceu a ponte entre comunisno e capitalismo na fórmula criativa «um país, dois sistemas». Como não há duas sem três, uma outra data terminada em nove não pode deixar de ser assinalada: 1999, ano do regresso de Macau ao seio da China após quatro século e meio de administração portuguesa. O general Rocha Vieira, último governador do território, convida-nos a refletir sobre o seu futuro.

A Primeira República

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Perfil de Mao Tsé-Tung

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Citações do 'Livrinho Vermelho'

36

A construção do comunismo

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Taiwan, a disputada

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A rotura sino-soviética

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A Revolução Cultural

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Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos são da responsabilidade da redação.

CORREÇÃO Por lapso, as fotos do artigo A 'loucura lúcida' de Adelaide, da última edição (nº 54), não foram devidamente creditadas: são parte integrante do livro Doida Não e Não!, da autoria de Manuela Gonzaga, editado pela Bertrand.

O ano chinês

Opinião: O maoismo em Portugal por Miguel Cardina 56 Maoistas portugueses na China

58

Relações com Portugal

64

O império renascido

66

O preço de Tiananmen

70

A fábrica do mundo

74

Xi Jinping, o novo 'timoneiro

78

Macau, um pé na China

82

A identidade macaense

90

Negociações para a transição

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Opinião: O futuro de Macau por Vasco Rocha Vieira 96 Crónica: Amanhecer em Ou Mun

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Ligue já

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À exceção de Mao Tsé-Tung, foi respeitada a grafia dos nomes próprios proposta pelos autores dos textos.

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CARTAZ DE PROPAGANDA MAOISTA: ‘A ESPERANÇA ASSENTA EM VÓS’

CHINA // CABEÇA

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CHINA // CABEÇA

6 VISÃO H I S T Ó R I A


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CARTAZ DE PROPAGANDA MAOISTA: ‘IRRADIANDO ALEGRIA’


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CARTAZ DE PROPAGANDA MAOISTA: ‘A PRIMEIRA PRIMAVERA DE TERRENOS BALDIOS’


VISÃO H I S T Ó R I A

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CARTAZ DE PROPAGANDA MAOISTA: ‘APRENDER COM DONG ZI’, PERSONAGEM DE UM FILME SOBRE O EXÉRCITO VERMELHO


CHINA // CRONOLOGIA

Um país vindo do fundo dos tempos corretos tanto nas relações pessoais como estatais; os cinco laços principais são pai-filho, governante-súbdito, irmão-irmão, marido-mulher e amigo-amigo; estes princípios, compilados muito após a sua morte e que conformam o pensamento da elite até uma época recente, seriam atacados e considerados reacionários na segunda metade do século XX, no auge revolucionário do maoísmo.

nos vales férteis da vasta região que hoje é a China.

2800 a.C. Ainda no domínio

o período da lenda, começa com Augustos e dos Cinco dos Três Aug Imperadores, ao qual a tradição faz remontar a história da a invenção China. Ocorre O dos do carateres, atribuída a Canjie. at

2200 a.C. Da Yu 22

funda a Dinastia Xia, fu se semilendária.

531 a.C. Ano tradicionalmente apontado como o da morte de Lao Tsé; mas há quem o situe em época mais recuada

1600 a.C. Com a 16

Idade do Bronze, I principia a Dinastia Shang Yin, sem datas perfeitamente

quase sempre montado num búfalo.

400 a.C. Por esta altura é inventada a bússola magnética, inicialmente utilizada pelos geomantes, profissionais do feng-shui, que estudam as correntes positivas e negativas num dado espaço, fornecendo indicações aos construtores e decoradores de casas.

480 a.C. Segue-se o Período dos Reinos Combatentes, marcado pela proliferação dos estados rivais. A dinastia Chou tem apenas existência nominal. 300 a.C. É elaborado o mais antigo dicionário chinês que chegou até nós.

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7000 a.C. Existe já agricultura

hoje se dizem descendentes de Han. São usados o papel e o carrinho-de-mão. Changan (atual Xiam), que chega a ser a maior cidade do mundo, é o ponto de partida da Rota da Seda, que conduz à Europa.

130 a.C. A China estabelece contactos não oficiais com o Império Romano. O viajante Zhang Qian descreve a Ásia

7000 a.C 221 a.C. Com a Dinastia Qin,

1000 a.C. Começo aproximado da Dinastia Chou Ocidental, que dá continuidade às tradições Shang; o regime é feudal; a capital situa-se no Shanxi. 789 a.C. A Dinastia passa a

denominar-se Chou Oriental quando, na sequência de uma guerra contra os «bárbaros» (mongóis), a capital se muda para o Henan.

722 a.C. Arranca o Período das Primaveras e Outonos, no qual são introduzidos os utensílios de ferro, com especial destaque estaque para o arado de aiveca; travam-se guerras entre principados pados rivais súbditos do imperador. ador. 551 a.C. Data tradicional do o, nascimento de Confúcio, o filósofo que sublinha oss valores da moralidade e dos procedimentos 10 V I S Ã O H I S T Ó R I A

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fiáveis; aparecem os primeiros registos escritos, são construídas muralhas nas cidades e é adotado o sistema decimal; é suposto o rei contactar com os deuses.

e quem ponha em causa a sua existência histórica; é considerado o fundador do taoísmo, doutrina que incorpora os conceitos populares tradicionais acerca de um universo ordenado (yin e yang, acupunctura, artes marciais, m feng-shui, etc.) e que feng-s propugna propug o pacifismo, humildade na a hum liderança, um lid poder limitado p e um governo comedido; a iconografia representa-o

tem início a história da China Imperial propriamente dita; Qin Shihuang, considerado o primeiro imperador na plena aceção do termo, unifica o país pela força (incluindo a escrita, os pesos e as medidas), instala a capital em Xianyang e constrói a parte mais significativa da Grande Muralha (de que já existiam troços anteriormente). O confucionismo torna-se a doutrina do Estado.

210 a.C. É enterrado o exército de terracota, uma coleção de esculturas em tamanho real representando soldados de Qin Shiunag. Já é usado o guarda-chuva.

206 a.C. Fruto de uma rebelião, começa a Dinastia Han Ocidental, tida por uma época de ouro; os chineses ainda

Central e o império indogrego de Alexandre o Grande, incluindo a Mesopotâmia.

100 a.C. É produzido ferro fundido. Pouco depois surgem o martelo de forja operado por pedal e o malho movido a energia hidráulica. Um sábio chinês descobre que o luar é um reflexo da luz do Sol. 9 a.C.-22 d.C. O reinado de Ruzi Ying, que interrompe a Dinastia Han, é conhecido por Dinastia Xin. 23 Quando ressurge, a Dinastia Han passa a designar-se Han Oriental, visto que a capital transita de novo do Shanxi para o Henan; daí a dois anos o imperador é executado na sequência da Rebelião das Sobrancelhas Vermelhas, um movimento de camponeses que adotam essa marca distintiva e que acaba esmagado. É introduzido o budismo, proveniente da Índia. No final deste período, a cavalaria passa a usar estribos, o que facilita os transportes e desenvolve as


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artes militares. São inventados o leme de popa dos navios e o fole hidráulico usado para o fabrico de ferro fundido.

500 Já é utilizada a imprensa por meio de blocos de madeira, sobretudo para divulgar o budismo.

43 A China invade e ocupa o

523 É construído o primeiro

vence forças combinadas do Japão e da Coreia.

132 É inventado um

pagode de tijolo, quando a tradição até aqui era construí-los de madeira.

758 Piratas árabes e persas

sismógrafo capaz de discernir os pontos cardeais dos terramotos.

a Índia Central.

663 Uma esquadra chinesa

saqueiam e incendeiam o porto de Cantão, que fica encerrado por cinco décadas.

581 Com a fundação da Dinastia Sui, a capital fixa-se em Chang’an, no Shenxi. Por esta época surge a porcelana, cujos segredos de fabrico são ciosamente guardados. Há referências ao uso de papel higiénico.

605 É concluída a construção do Grande Canal, que liga os rios Amarelo e Azul, facilitando

763 A China derrota o império

1100 Os chineses começam a utilizar coque, em vez da hulha, no fabrico do ferro fundido.

1126 Os Jin, originários da Manchúria, capturam o imperador do Norte. 1129 Nanquim, no reino do Sul, é saqueada pelos Jin, forçando também os governantes meridionais ao pagamento de um tributo.

de An Lushan, persa.

1192 É inaugurada a bela Ponte

850 É inventado o papel-moeda

Lugou, perto de Pequim, depois mais conhecida por Ponte Marco Polo.

(as notas) e descoberta a pólvora, usada até ao século seguinte

1200 É inventado o ábaco, por vezes considerado «o primeiro computador» e ainda hoje utilizado. A China

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Vietname.

638 Uma expedição reconhece

1 Lau Tsé, Jesus, Buda e Confúcio 2 A Grande Muralha da China 3 O exército de terracota

1245 estabelece o contacto direto entre os dois impérios.

220 Com a queda da Dinastia

Han, abre-se o Período de Desunião, ou dos Três Reinos, cuja parte inicial é chamada Era das Três Dinastias: os chineses estão repartidos por estados que se guerreiam entre si.

265 E fundada a Dinastia Jin

Ocidental; desenvolve-se a cartografia, sobretudo graças ao geógrafo Pei Xiu.

317 Yuan é o primeiro imperador

da Dinastia Jin Oriental; a capital fixa-se em Nanquim, após a perda do Norte para os «bárbaros» não obstante a existência da Grande Muralha. Os territórios perdidos repartem-se por 16 reinos periféricos.

386 O regente Liu Yu derruba

o imperador Gong e funda a Dinastia Liu Song, que inaugura o Período das Dinastias do Sul e do Norte.

muito os transportes e as comunicações até ao século XX. São instituídos os exames imperiais (que perdurarão por 1300 anos), destinados a selecionar os eruditos com acesso à complicada burocracia estatal.

618 Li Yuan

funda a Dinastia Tang, época de ouro da China medieval; durante ela solidifica-se a burocracia, base administrativa do vasto império, que se expande geograficamente para leste (até à Coreia) e para oeste (até ao Irão); a capital continua a ser Chang’an. A clepsidra (relógio de água) é aperfeiçoada.

630 Os chineses vencem os turcos orientais. 634 São estabelecidas relações oficiais com o Tibete.

apenas em fogos--de-artifício e não para fins de guerra. Os budistas são perseguidos.

902 Dá-se nova pulverização do império; no Sul, começa o Período dos Dez Reinos (Wu, Shu, Wu Yue, Min, Han do Sul, Nanping, Chu, Shu, Tang do Sul e Han do Norte), que durará até 979; no Norte, é o Período das Cinco Dinastias (Liang Posterior, Tang Posterior, Jin Posterior, Han Posterior e Chou Posterior), que coexistem até 960. 960 Sobe ao poder Dinastia Song, mas o país reparte-se por Norte e Sul (capitais, respetivamente, em Bian, no Henan, e em Lin’an, no Hangzhou). 1004 Os Khitan, nómadas da Mongólia e da Sibéria Oriental, invadem o território do Norte, obrigando os chineses ao pagamento de um tributo; lutarão também contra os coreanos, em três guerras.

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166 Uma embaixada romana

dispõe de uma marinha de guerra permanente.

1214 Os mongóis, liderados por Gengis Khan, vencem a Batalha de Pequim e apoderam-se desta cidade, e a partir daí prosseguem a conquista da China. 1245 Frei Lourenço de Portugal é nomeado pelo papa Inocêncio IV embaixador da Santa Sé ao Império Chinês, mas não chegará a partir. VISÃO H I S T Ó R I A

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1279 A Dinastia Song é derrubada pelos mongóis, mas os conquistadores sinizam-se; com o início da Dinastia Yuan (Mongol), a capital é transferida para Pequim. O comerciante veneziano Marco Polo contacta diretamente com a corte de Kublai Kahn, neto do Gengis Khan; as suas andanças e observações serão

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desembarcar na China, na zona de Cantão.

1549 Navios de comércio portugueses passam a escalar todos os anos na ilha de Shangchuan (São João), vizinha de Macau. 1557 As autoridades de Cantão

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autorizam os portugueses a estabelecerem uma base permanente em Macau, a troco do pagamento de renda.

1582

Pequim por Yongle, no ano em que se conclui a construção dos palácios imperiais conhecidos como Cidade Proibida.

Os jesuítas iniciam a sua ação missionária na China, com a chegada do italiano Matteo Ricci. Publica-se em Pequim um jornal privado.

Terminam importantes trabalhos de restauração do Grande Canal.

1595 A China presta auxílio à Coreia quando esta é invadida pelos japoneses.

1420 A capital é fixada em

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CHINA // CRONOLOGIA

Igreja Católica e a China em torno da prática do culto dos antepassados pelos chineses convertidos, bem como de outros rituais inicialmente autorizada pelos jesuítas mas depois interditos por Roma.

1643 Os manchus vencem a batalha da Passagem de Shanhai e iniciam a conquista da China. Chongzhen, último imperador Ming, enforca-se ao saber que chineses rebeldes liderados por Li Zicheng dominam Pequim. 1644 Li Zicheng exerce por pouco tempo o poder imperial e é derrubado pelos

descritas no livro Il Milione (Viagens de Marco Polo), que exerceu grande influência no Ocidente.

1433 As expedições marítimas

1386 Findo o domínio mongol,

inaugura-se a Dinastia Ming, considerada a mais brilhante de todas; a capital é inicialmente fixada em Nanquim.

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1405 Principiam as grandes viagens marítimas chinesas de exploração patrocinadas pelo imperador Yongle e comandadas pelo almirante eunuco Zheng He; esquadras de enormes juncos percorrem o Sueste asiático, o oceano Índico e o golfo Pérsico, atingindo, em África, o atual Moçambique; uma girafa é levada para a China.

são interrompidas quando os chineses se apercebem de que não encontram fora do seu território nada de que tenham necessidade. Os portugueses do tempo do Infante D. Henrique estão a explorar a costa ocidental da África.

1513 Os portugueses,

chegados à Índia em 1498, contactam diretamente com a China: Jorge Álvares parte de Malaca e desembarca na pequena península de Macau, pouco habitada mas onde existe desde o século anterior um tempo dedicado à deusa A-Ma.

1515 O boticário Tomé Pires,

autor da Summa Orientalis, chefia uma embaixada portuguesa – a primeira europeia – à corte de Pequim.

1516 É a vez de outro

português, Rafael Perestrelo,

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1279 manchus, que inauguram a Dinastia Qing, permanecendo a capital em Pequim; os governantes manchus acabam por sinizar-se, mas impõem aos chineses o uso da trança, ou rabicho.

1652 Lobsang Gyatso, quinto Dalai Lama e unificador do Tibete, visita a corte de Pequim.

1602 A Companhia Holandesa das Índias Orientais começa a inundar a Europa com porcelana chinesa – as célebres peças da Companhia das Índias.

1658 Navios ingleses

1626 Os espanhóis, oriundos

1689 A China assina com a Rússia o Tratado de Nerchinsk, o primeiro com uma potência ocidental, delimitando as fronteiras entre os dois impérios.

das Filipinas, ocupam temporariamente uma zona do norte de Taiwan, de onde serão desalojados pelos holandeses.

1632 Os manchus, que ameaçam os governantes da Dinasta Ming, dominam praticamente toda a Mongólia interior. Inicia-se a Controvérsia dos Ritos, um conflito entre a

alcançam Cantão, mas as imposições das autoridades locais inviabilizam o comércio.

1662 Os holandeses são expulsos de Taiwan.

1698 Conclui-se a reconstrução da Ponte Marco Polo.

1705 Chega à China um embaixador papal.


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Marco Polo As expedições marítimas Ming 3 )LJXUD GH PDUõP para diagnóstico médico 4 Execução de rebeldes Boxers 5 Proclamação da República Popular da China

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1851 Estala a Revolta dos

1711 A Companhia Britânica das Índias Orientais estabelece um entreposto na zona de Cantão.

Taiping, que durará 13 anos e que é um sangrento conflito (quase meio milhão de mortos) entre o governo imperial e um grupo rebelde liderado por Hong Xiuquan, cristão que se dizia irmão de Jesus Cristo e que, em rutura com as tradições confucionistas e budistas, lidera o efémero Reino Celestial Chinês. Eclode a Rebelião Nien, também contra a Dinastia Qing, que durará sete anos e devastará economicamente as províncias setentrionais.

1720 Tropas chineses ocupam Lhassa, capital do Tibete. 1721 Culminando a já antiga Controvérsia dos Ritos, o imperador Kangxi proíbe a pregação cristã na China.

1752 Francisco Pacheco de Sampaio lidera uma embaixada enviada pelo rei português D. João V à corte do imperador Qianlong, da Dinastia Qing.

1895 Pelo Tratado de Shimonoseki, que põe termo ao conflito sino-japonês, Taiwan é anexada pelo Japão, que estabelece ainda um protetorado sobre a Manchúria e anexa as ilhas Pescadores.

1912 No primeiro dia do ano, é proclamada a República da China, sob a presidência de Sun Yat-Sen. 1916 Começa a «era dos senhores da guerra», com a multiplicação de líderes locais.

1919 O Movimento 4 de Maio, GETTYIMAGES

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1924 Os partidos Nacionalista (Kuomintang, KMT) e Comunista (PCC) aliam-se para restabelecer a ordem e receber ajuda soviética.

1898 O jovem imperador Guangxu e os reformistas liderados por Kang Yuwei lançam a fracassada Reforma dos Cem Dias, que termina num

1791 É publicado a obra-prima literária O Sonho do Pavilhão Vermelho.

protagonizado por estudantes de Pequim, protesta contra a cláusula do Tratado de Versalhes que permite ao Japão permanecer na posse de territórios em Shandong.

1949 Pequim um diplomata (Lorde Amherst), mas este recusa-se a tocar com a cabeça no chão diante do imperador, o que inviabiliza qualquer acordo comercial.

1858 A Segunda Guerra do Ópio, iniciada dois anos antes, conduz ao Tratado de Tientsin, o segundo dos «Tratados Desiguais», que abre as portas da China ao Reino Unido, à França, à Rússia e aos EUA.

1839 Começa a I Guerra do

1860 Forças anglo-francesas

1816 Os britânicos enviam a

Ópio, após o Reino Unido inundar a China com o estupefaciente proveniente das suas possessões na Índia. GRANGER/FOTOBANCO

incendeiam o Palácio de Verão, nos arredores de Pequim.

1862 Na Revolta Dungan, incentivada pelos Taipig, a minoria muçulmana tenta fundar um estado islâmico na margem ocidental do rio Amarelo. 1870 No Massacre de Tientsin,

1842 Pondo fim à I Guerra do Ópio, os ingleses impõem aos chineses o Tratado de Nanquim, o primeiro dos «Tratados Desiguais», e apoderam-se de Hong-Kong.

ocidentais são perseguidos, crianças raptadas e alguns padres e freiras mortos.

1894 A China e o Japão

defrontam-se na I Guerra Sino-Japonesa; vence o Japão, já muito industrializado.

1927 Começa a guerra civil

golpe de estado desencadeado pela imperatriz viúva Cixi e seus partidários conservadores.

entre KMT e PCC. Principia a Década de Nanquim, com o poder detido pelo KMT sediado nesta cidade.

1900 A seita Punhos da Concórdia e da Justiça lança a Revolta dos Boxers, contra o domínio estrangeiro (consideram que o boxe tradicional poderia levá-los ao triunfo sobre as armas de fogo ocidentais); os revoltosos cercam durante dois meses as legações diplomáticas ocidentais em Pequim, o que leva à intervenção militar vitoriosa de uma coligação de oito países (Inglaterra, França, Alemanha, Rússia, Áustria-Hungria, Itália, EUA e Japão).

1911 A revolta militar de Wushang precipita a Revolução Xinhai, que leva ao derrube da Dinastia Qing; Sun YatSen é presidente do Governo Provisório.

1932 O Japão funda na Manchúria o estado satélite de Manchuko.

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1807 Chega à China o primeiro missionário protestante, o britânico Robert Morrison.

1934-35 Para fugir ao cerco, as forças do PCC efetuam a Longa Marcha e mudam-se para uma zona remota do Norte. 1937 O Japão invade a China; é a Segunda Guerra Sino-Japonesa; KMT e PCC aliam-se contra o invasor.

1945 O Japão, derrotado na II Guerra Mundial, retira da China. Principia a segunda fase da guerra civil entre nacionalistas e comunistas. 1949 Os comunistas entram em Pequim em janeiro e proclamam a República Popular da China a 1 de outubro. L.A.M. VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // IMPÉRIO

Fumadores de ópio em 1880 O estupefaciente, produzido na Índia, foi introduzido na China pelos britânicos

O IMPÉRIO MORIBUNDO ASSINATURA

Para compreender o que passou na China no século XX é necessário recuar cem anos, até à época em que as potências do Ocidente, fascinadas pelas «chinesices» e pelo lucro fácil, humilharam o antigo «Império do Meio» e lhe impuseram os «Tratados Desiguais» por Luís Almeida Martins

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CHINA // IMPÉRIO

Imperador Yongzheng Autocrata no início do século XVIII, reinou ainda na época que precedeu o resvalar para o abismo

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eixem a China dormir, porque quando ela acordar o mundo tremerá.» Esta frase, atribuída a Napoleão, pode parecer profética num certo sentido, mas nada indica que o Ocidente tenha ou haja tido efetivas razões para temer o chamado «Perigo Amarelo», uma expressão racista e xenófoba que chegou a estar muito em voga. Mas que tem, no entanto, uma explicação. No início do século XIX, o tempo de Napoleão, o Império Chinês era o maior do mundo. Além da China propriamente dita, que em si mesma ocupa a maior parte da Ásia Oriental, incluía ainda a Coreia, a Manchúria, a Mongólia, o Turquestão, o Tibete, a Indochina e a ilha de Taiwan, a que os portugueses deram o nome de Formosa. Na Europa era por vezes chamado «Império do Meio», que é uma tradução literal da própria palavra «China» (pronunciada mais ou menos como «tchonguó»), que significa «país central», ou «país que está no meio». Do ponto de vista chinês, tudo o que não é China são arredores dela... Essa vasta formação política com 300 milhões de habitantes, correspondentes a quase um terço da Humanidade (num tempo em que a Rússia não tinha mais que 35 milhões e os Estados Unidos em pouco excediam os cinco) estendia-se, pois, desde a Ásia Central até para além das costas do Pacífico, ocupando uma superfície superior à da Europa incluindo a Rússia para cá dos Urais. Desde meados do século XVII, era governada pela Dinastia Qing, invasora mas rapidamente sinizada, cujos imperadores eram originários da Manchúria (por isso se lhe chama também Dinastia Manchu). Teodoro, protagonista da novela O Mandarim, de Eça de Queiroz, «esteve lá» e «contou» aos portugueses como era o também chamado «Celeste Império» e algumas das suas «chinesices», ou seja, coisas diferentes daquelas a que estamos habituados e que, por isso, nos fascinam. O leitor médio europeu, esse, conhecia sobretudo as paisagens exóti-

cas e os ambientes estranhos descritos por Júlio Verne nas Atribulações de um chinês na China. O interesse despertado pelas «chinesices» está na origem das chinoiseries, uma moda que consistiu na elaboração, no Ocidente, de pastiches inspirados nas artes arquitetónicas e decorativas chinesas. Não surpreende que um estado tão vasto carecesse de unidade, embora alguns príncipes manchus, como Qianlong, que governou na segunda metade do século XVIII, tenham conseguido estabelecer na Ásia Central e Oriental uma «paz chinesa» que nos faz lembrar a velha pax romana. É que, mesmo sem falar das possessões periféricas, as diferentes regiões da China propriamente dita

variavam muito no que diz respeito à paisagem, às populações, às línguas, ao clima e às produções agrícolas. Ao ponto de, na história quase cinco vezes milenar da China, raros terem sido os períodos em que uma dinastia conseguiu impor incontestavelmente a sua autoridade em todo o território. A divisão e a anarquia são, pois, características dominantes – na verdade apenas mitigadas nas últimas sete décadas pelo regime comunista. De tal forma que, mesmo nas alturas de relativa unificação, a China anterior a 1949 nunca constituiu verdadeiramente um estado, mas talvez antes uma rígida federação de entidades autónomas colocadas sob a égide de um imperador nominalmente autocrata. Existia, porém, uma incon-


PHOTO JOSSE/LEEMAGE/FOTOBANCO WALTERS ART MUSEUM (BALTIMORE/MARYLAND/USA)

Mas,, paradoxalmente, a China mostrava com m frequência tolerância para com Chegada dos portugueses a Nanquim O episódio é tema desta tampa de cofre do século XVII os europeus. Mesmo sem ser necessário remontar às viagens que, no século XIII, fizeram à Ásia Central o veneziano Marco Polo e os embaixadores do rei francês Luís IX (S. Luís), no tempo em que existiam comunidades cristãs em Pequim e em Cantão, fixemo-nos no século XVI, época da chegada dos portugueses. Estes nossos compatriotas foram inicialmente bem acolhidos tanto pela população como pelos dirigentes do «Império do Meio», então na época de esplendor da Dinastia Ming. Foram as práticas frequentemente violentas e a cupidez manifestada pelos nossos antepassados que acabaram por Tocadora de konghou As pinturas Ming pintam a vida imperial em tons idílicos exasperar os chineses, que mesmo assim lhes cederam o pequeno território de tornável ideia de unidade, assente no fabrico da seda e nas artes dos bordados. Macau para estabelecerem uma base cogosto estético, nos valores e sobretudo mercial (ler mais adiante, neste número). Aa suas escultura e pintura tradicionais na civilização moral. No século XVII, jesuítas italianos e atingiram o auge durante a Idade Média franceses chegaram a exercer consideocidental, e ainda hoje nos tocam. O esContactos com o Ocidente tilo poético chinês tem também muitos rável influência na corte imperial, ofereAo longo do século XIX, a descomunal admiradores. cendo inclusive telescópios «modernos» mas então algo sonolenta China iria sofrer Os chineses têm, porém, tendência aos astrónomos locais. Para obterem com sucessivas agressões e humilhações por para fixar-se mais no passado do que no mais facilidade conversões ao cristianisparte do Ocidente. Altamente lucrativos futuro, o que talvez contribua para explimo, estes padres permitiram aos chineses convertidos continuarem a praticar o culto para os europeus e norte-americanos, os car as motivações dos excessos antitradicionalistas, e mesmo crimes, cometidos dos antepassados. O problema foi que a «negócios da China» não eram, de facto, normalmente feitos entre partes colocadas Cúria romana não viu isto com bons olhos durante a Revolução Cultural Proletária no mesmo plano. ordenada pela fação radical do Partido e taxou os missionários de oportunistas, Comunista da China nas décadas de 1960 Desde que entraram em contacto com o que fez que estes tivesse de mudar de e 1970. Esse apego sistemático ao passado atitude, o que por sua vez desencadeou a China, os europeus reconheceram nos chineses qualidades marcantes como a faz que a sua verdadeira religião seja o a intolerância chinesa e a condenação à grande inteligência, a extrema polidez e culto dos antepassados, morte dos padres. dirigido não só à alma Os russos, presentes o enorme respeito pelas pessoas consideradas sábias. A sua brilhante civilização é dos mortos, mas a tudo nas fronteiras da Chimuito antiga. Foram eles que inventaram o que deles provém, desna, obtiveram no último a bússula, a pólvora, o papel, a porcelana de os costumes às práquartel do século XVII (que, em inglês, se designa exatamente ticas quotidianas. Tão o direito de praticar cochina) ou a imprensa, para não referir coiligados estão a essa hemércio no país. Quanto à sas aparentemente tão comezinhas como Inglaterra, chocou semrança intelectual e moBandeira o guarda-chuva, o carrinho-de-mão ou pre com a má vontade ral que durante séculos Um dragão os estribos. Surpreende-nos saber que manifestaram uma perdos mandarins. em campo amarelo Gazeta de Pequim, impressa com caratemanente desconfiança A situação alterou-se era a insígnia da China por qualquer ideia nova no início do século XIX, res de madeira, já se publicava no tempo nas cinco décadas que lhes chegasse do tanto por razões exterda Dinastia Tang, quando os chamados finais da Dinastia Qing «mouros» invadiram a Península Ibérica. nas como internas. Por exterior, levada pelos e do próprio império milenar Os chineses obtiveram ainda prodígios no «diabos estrangeiros». um lado, as mudanças VISÃO H I S T Ó R I A

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O confucionismo O elemento mais responsável pela rejeição chinesa a tudo o que provém do exterior são os ensinamentos de Confúcio, o «sábio dos sábios». Sobre a sua vida não existem dados fiáveis, mas tradicionalmente considera-se que tenha nascido em 551 a.C. e morrido em 479 a.C. O pensamento de Confúcio – o confucionismo – é voltado para o passado. Ensinava aos discípulos a saberia dos antigos, os seus rituais e preceitos de vida, os poemas, a música e os escritos que até ainda há pouco eram venerados como palavra divina e que o regime instalado em 1949 se empenhou em combater. Educados nestes preceitos, os altos funcionários do Império Chinês – conhecidos no Ocidente por «mandarins», uma palavra derivada do verbo português «mandar» – foram, durante mais de vinte séculos, recrutados entre os letrados, designação que abrange os que estudaram literatura, ciências e filosofia e conseguiram ser aprovados em difíceis exames oficiais. Contudo, era tal o imobilismo que, no início do século XIX, os programas de estudo eram ainda os mesmos do tempo da Dinastia Tang, séculos antes de D. Afonso Henriques fundar Portugal. Confúcio não reivindicava atributos da divindade, a revelação ou a iluminação, nem era propriamente um místico. Do seu ponto de vista, é na razão que nos devemos sempre apoiar. Entre muitas outras coisas, ensinou: «Não faças aos outros o que que não queres que te façam a ti», «todos os homens são irmãos», «as três virtudes capitais são a prudência esclarecida, a benevolência universal e a força de espírito», «o homem tem de alcançar a perfeição para cumprir a sua própria lei»… Os seus discípulos sintetizavam: «A doutrina do mestre consiste apenas em ter um coração reto e amar o próximo como a si mesmo.»

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económicas verificadas na Europa após a Revolução Industrial levaram os poderosos capitalistas ocidentais emergentes a induzir os novos poderes políticos a enviar esquadras de guerra para os mares orientais, forçando o «Império do Meio» a abrir-se ao comércio internacional. Internamente, a Dinastia Qing entrava então em plena decadência, com revoltas a estalarem nos quatro cantos do território e um poderoso movimento antimanchu a organizar-se em sociedades secretas que cresciam de forma imparável. Em 1813 verificou-se mesmo um assalto insurrecional ao palácio imperial de Pequim.

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As Guerras do Ópio A estes problemas internos veio juntar-se a ameaça de uma guerra contra a Inglaterra, que tinha decidido inundar secretamente o mercado chinês com o ópio produzido nas suas possessões da Índia. As autoridades chinesas proibiram a importação desse produto nocivo e o mandarim de Cantão ordenou mesmo a destruição de 20 mil caixotes contendo 1500 toneladas do estupefaciente. Reforçando tal medida, o imperador proibiu todo o comércio com o Reino Unido. Para induzir a China a mudar de posição, o Reino Unido declarou-lhe guerra. Este conflito durou de 1840 a 1842 e ficou conhecido por Guerra do Ópio. Navios da Royal Navy à ordem da Companhia Britânica das Índias Orientais subiram o rio Iangtzé, ameaçaram as povoações ribeirinhas sem encontrarem grande resistência e impuseram à China o Tratado de Nanquim, nos termos do qual obtiveram a posse da pequena ilha de Hong-Kong, perto de Macau, e o direito de comerciar em cinco portos do império, nomeadamente Cantão e Xangai. Enquanto os britânicos contavam meio milhar de baixas, entre mortos e feridos, os chineses choravam perto de 20 mil. A partir deste momento, o velho enclave português perdeu a importância que até então tivera, que era o de única porta do comércio externo chinês – o nome de Macau em cantonense é Ou

Mun, que significa exatamente A Porta. Cavalgando a onda britânica, outras potências ocidentais exigiram ter direitos semelhantes. Em 1846, a França obteve do governo de Pequim um decreto segundo o qual a religião católica era tolerada em todo o império e logo instalou igrejas, escolas, cemitérios e hospitais em cinco portos. Estas concessões feitas aos europeus e aos norte-americanos desencadearam uma enorme sublevação no Sul da China. O movimento foi liderado pela sociedade secreta dos Taipings, que acusava o imperador de trair o país em proveito dos «bárbaros» e cujo líder, Hong Xiuquan, convertido a uma modalidade sincrética de cristianismo e autoproclamado «irmão de Jesus Cristo», se autonomeou imperador e instalou a sua capital em Nanquim. Durante dez anos, marcados por prisões e atos de violência contra os ocidentais (designadamente a muito falada morte de um missionário francês), o território sublevado não reconheceu a autoridade de Pequim. Uma esquadra aliada anglo-franco-norte-americana entrou então – corria o ano de 1858 – no golfo de Petchili e subiu o rio Pei-Ho. Sentindo-se novamente ameaçados, os chineses concordaram em conceder tudo o que lhes era solicitado, mas depois da partida da força invasora entrincheiraram-se na foz do rio e quando, no ano seguinte, os embaixadores da


Segunda Guerra do Ópio Milícia chinesa armada com bastões e escudos

Marítima que o governo czarista construiu o porto de Vladivostok, aberto a águas não geladas do Pacífico. Pode, pois, afirmar-se que o verdadeiro triunfador da chamada Segunda Guerra do Ópio acabou por ser o regime autocrático de São Petersburgo.

Modernização e reação Com a entrada em vigor do Tratado de Pequim, os estrangeiros residentes na China passaram a gozar de um estatuto de extraterritorialidade, o que implicava

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Inglaterra e da França iam ratificar formalmente o tratado, foram recebidos a tiro de canhão. Foi então preparada uma nova expedição militar europeia, que em 1860 derrotou os chineses na bela ponte de Palikao, ornada com dragões de pedra, e ocupou Pequim. Não contentes com a vitória militar, os ocidentais incendiaram o esplendoroso Palácio de Verão, nos arredores da capital chinesa, a pretexto de represália pela morte de alguns soldados prisioneiros. O edifício seria reconstruído ainda antes da queda dos Qing, e é hoje muito visitado por turistas. O Tratado de Pequim, assinado em 1860, concedeu à Inglaterra e à França o direito de negociar em mais sete portos e de manter representantes permanentes na capital imperial. Este acordo forçado, na sequência do que fora firmado em Nanquim, foi o segundo dos «Tratados Desiguais». Obtidas estas vantagens, Londres e Paris ajudaram então as autoridades chineses (que agora importava preservar) a combater e a derrotar os Taiping. A Rússia obtinha entretanto vantagens na China superiores ainda às da França e da Inglaterra: a pretexto de ter agido como moderadora das ambições anglo-francesas, arrancou a Pequim a posse dos territórios a sul do rio Amor. Foi na extremidade meridional desta nova Província

Revolta dos Boxers Um prisioneiro capturado é exibido com uma canga

não estar sob a alçada da lei chinesa e o direito de ser julgado pelo seu próprio cônsul. Nos portos abertos ao comércio, os ocidentais residiam em bairros chamados «concessões», que eles próprios administravam e onde os chineses não podiam instalar-se. As alfândegas eram controladas pelos britânicos, o que privava a China de uma importante fonte de receitas e lesava a sua – ainda que incipiente – indústria. Na tentativa de resgatar a independência hipotecada, a China tentou apetrechar-se com os novos conhecimentos ocidentais e, sob a direção do ministro Li Huang, foi criada em Pequim uma escola europeia destinada a instruir os letrados nas «ciências bárbaras». Alguns chineses foram enviados à Europa em missão de estudo, o exército e a marinha foram parcialmente restruturados em moldes modernos, construíram-se vias férreas, instalaram-se linhas telegráficas, ergueram-se faróis, encorajou-se a exploração mineira e desenvolveu-se a indústria têxtil em Xangai. Mas a transformação foi apenas parcial, já que a maioria da população se mostrou hostil às novidades. Por exemplo, em 1879 populares arrancaram os carris de uma linha férrea alegando que os parafusos podiam lesar a espinha dorsal dos dragões que habitam debaixo da terra. Liderado pela imperatriz regente Cixi, o movimento antiocidentalização manifestou-se sobretudo pela hostilidade aos missionários e culminou num massacre de europeus em Tientsin. O avanço dos russos na Mongólia, dos ingleses na Birmânia e dos franceses na Indochina contribuiu para o exacerbar da xenofobia. Surpreendente é que esta se tenha também manifestado de forma violenta, ainda que induzida, contra outro povo asiático: o Japão. O desenvolvimento tecnológico e económico japonês, na segunda metade do século XIX, foi muito mais rápido e surpreendente do que o da China. Não cabe aqui desenvolver este tema (na verdade, o principal responsável direto pelo VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // IMPÉRIO

China. Quanto à França, fez valer direitos no sul, na região limítrofe das suas possessões indochinesas. Estava consumado, se não propriamente o desmembramento da China, pelo menos um forte atentado à sua independência.

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A revolta dos Boxers

I Guerra Sino-Japonesa O grande embate asiático deu-se em 1894-95

nascimento da fobia europeia do «Perigo Amarelo»), mas importa levar em conta que o Japão estava em vias de se tornar uma grande potência quando, em 1894, entrou em choque com a China a propósito da soberania sobre a Coreia. Ocupada for tropas japonesas, esta península foi teatro de combates contra forças chinesas, que numa fase inicial foram repelidas. Em seguida, depois de terem destruído a esquadra chinesa na foz do rio Yalu, os japoneses ameaçaram Pequim. Enquanto uma força nipónica ocupava a península de Liautung, uma outra desembarcava no Xantung e a esquadra ocupava a Formosa e as ilhas Pescadores. A China viu-se forçada à rendição e, pelo Tratado de Shimonoseki, comprometeu-se a pagar indemnizações de guerra, desistiu das ambições sobre a Coreia e cedeu ao Japão a Formosa, as Pescadores e o Liauting, com a cidade portuária de Porto Artur; como garantia do pagamento das indemnizações, aceitou ainda a ocupação de uma cidade do Xantung. Esta guerra entre vizinhos revelou a grande fraqueza da China, o que levou as potências ocidentais a encararem a hipótese de repartirem entre si o «Império do Meio». Em alternativa a esta medida radical, acabaram por decidir ocupar pontos 22 V I S Ã O H I S T Ó R I A

estratégicos e criar zonas de influência. A iniciativa partiu da Rússia, que emprestou dinheiro à China, criou um banco misto e assinou com Pequim uma aliança defensiva contra Tóquio; obteve em contrapartida o direito de construir uma linha férrea através da Manchúria, permitindo fazer chegar o comboio Transiberiano a Vladivostok. Quando a Alemanha ocupou o porto de Tsigtao (onde fundou a conhecida fábrica de cerveja com o nome da cidade), a Rússia reivindicou para si Porto Artur, o que lhe permitiu cumprir, em 1898, o velho sonho de possuir nos mares da China uma base marítima livre de gelos durante todo o ano. A Inglaterra exigiu também um porto e o reconhecimento dos seus interesses económicos no vale do Iangtzé, a zona agrícola mais rica da

A seita mais poderosa era a dos Boxers, que odiava os estrangeiros mas apoiava a Dinastia Manchu e contava com o aval da imperatriz Cixi

Face à necessidade de encontrar uma forma de conjurar o perigo europeu, a China viu-se repartida por duas correntes de opinião em confronto: a dos reformistas e a das sociedades secretas. O líder reformista, o jovem letrado cantonês Kang Youwei, era de opinião que a decadência do império era fruto do falhanço do regime, pelo que preconizou uma política de profundas reformas idêntica à que tinha sido levada a cabo no Japão. Conseguiu converter às suas ideias o jovem imperador Tongzhi e começou assim o período dos Cem Dias, com o objetivo de transformar a administração e a mentalidade chinesas sem beliscar o regime político. Este programa deparou, no entanto, com a hostilidade da imperatriz regente Cixi, sua mãe e antiga concubina imperial. Foi ela que exerceu durante meio século o poder efetivo no império. As sociedades secretas tiveram, assim, a oportunidade de dar cumprimento ao seu programa, que consistia basicamente no massacre dos estrangeiros. A seita mais poderosa era dos Boxers, que se assemelhavam aos Taipings de décadas antes pelo seu ódio aos «bárbaros» mas que, ao contrário daqueles, apoiavam a Dinastia Manchu. Com o aval de Cixi, perpetraram, em maio de 1900, massacres no norte da China. No mês seguinte foi a vez de ser assassinado o representante alemão na capital e de os seus homólogos das outras potências europeias se verem cercados, durante um mês e meio, nas respetivas legações – tema da conhecida superprodução cinematográfica 55 Dias em Pequim. As potências, incluindo os EUA e o Japão, enviaram uma força internacional. Os aliados ocuparam Pequim e a China teve de ceder, comprometendo-se a


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Hong Kong em 1902 O futuro gigante financeiro era colónia britânica desde meados do século XIX

Cixi A poderosa ex-concubina imperial governou de facto a China entre 1861 e 1908 AKG/FOTOBANCO

punir os culpados e a pagar uma indemnização; em contrapartida, as potências renunciavam ao desmembramento do país. Só a Rússia, que cobiçava a Manchúria e a Coreia, não respeitaria o compromisso. Viu-se assim em rota de colisão com o Japão, que ambicionava também esses territórios. Estalaria deste modo a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, um choque de massas de infantaria e de marinhas equipadas com couraçados, que não cabe aqui descrever em pormenor mas que se saldaria pela vitória nipónica, o primeiro grande triunfo moderno de um país asiático sobre um europeu.

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A caminho da República O êxito militar do Japão, o fracasso da Revolta dos Boxers e as novas humilhações da China mostraram à maioria dos chineses cultos a necessidade imperiosa

de reorganizar o país. Mas nem todos viam essa reorganização da mesma forma. Enquanto os moderados desejavam conservar a monarquia (à semelhança da opção japonesa), limitando-se quando muito a propor a substituição ubstituição da Dinastia Manchu por uma outra de raiz nacional, os revolucionários preconizavam a criação de uma República. O líder dos republicanos era o médico Sun Yat-Sen, que estudara udara no estrangeiro. Em 1904 904 divulgou um folheto onde nde

Puyi O último na imperador da China subiu ao trono com 2 anos e foi levado a abdicar aos 6

sugeria uma solução republicana para o problema chinês e em seguida fundou o Kuomintang (Partido Democrático Nacionalista). Para acalmar a agitação, a imperatriz prometeu, em 1906, a formação de um governo constitucional com a participação de um conhecido partidário das reformas, Yuan Shikai. Mas era tarde para que o país enveredasse por essa via, pois a revolta estendia-se já pelo vale do Iangtzé. No final de 1908, morreram subitamente tanto a velha imperatriz Cixi como o jovem imperador Guangxu, seu sobrinho (este com sintomas de envenenamento), e a política desastrada do regente (o novo imperador, Puyi, tinha 2 anos) apressaria a queda da monarquia. Em outubro de 1911 todo o vale do Iangtzé estava em ebulição e a agitação alastrava ao Tibete, ao Turquestão e à Mongólia, que exigiam autonomia. Em dezembro, os republicanos formaram em Xangai um governo chefiado por Sun Yat-Sen e a reação do reformista Yan Sh Shikai foi surpreendente: em vez de d combater os rebeldes, preferiu trair o regente e negociar em proveito pro próprio, obtendo a abdicação do pequeno impeabdic rador. A sua intenção, que rad não conseguiu concretizar, nã eera fazer-se coroar a si próprio. p Mas esta jogada faz já parte da história da Repúp blica da China, cujos lanb ces serão contados noutro ce artigo. artig VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // REPÚBLICA

1912 Com o novo regime, o uso da trança, símbolo de vassalagem, foi abolido e os cabelos ficaram mais curtos

Construir a modernidade

A era republicana foi um período de convulsões políticas e militares, mas também de novas ideias, vanguarda cultural e transformação económica

O

por Helena F. S. Lopes*

fim de milénios de monarquia na China foi mais rápido e definitivo do que se poderia imaginar. Em outubro de 1911, a explosão acidental de uma bomba por um grupo clandestino de republicanos em Wuhan foi o rastilho que precipitou a queda da dinastia Qing. De província a província, as Forças Armadas juntaram-se à revolução e declararam independência em relação aos Qing. No dia

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1 de janeiro de 1912, a República da China começou oficialmente, e Sun Yat-sen, que emergira no final do século XIX como a figura tutelar entre os revolucionários, foi declarado Presidente provisório. Puyi, o último imperador, abdicou em fevereiro, com 6 anos de idade. A rapidez com que a monarquia caiu não significou uma igualmente célere consolidação da República. Em termos de cultura política, o novo regime promoveu,

com sucesso, a adoção de símbolos nacionais e de novas formas de expressão de cidadania e vida quotidiana, de um novo calendário, até novos penteados (o corte da trança, que era obrigatória durante a dinastia Qing, havia já sido um ato simbólico importante entre revolucionários que estudaram no estrangeiro). A República prometeu mudança em muitos setores da sociedade onde, já durante os últimos anos dos Qing, se verificava uma transformação de mentalidades. Por exemplo, muitas mulheres haviam-se juntado aos revolucionários, conspirado, angariado fundos e até combatido em 1911. A luta por igualdade e direito ao voto foi, no entanto, uma das promessas não cumpridas da nova República. A fragilidade em termos de apoio afetou também o «pai da nação». Sun foi presidente provisório apenas durante um mês, passando o cargo para Yuan Shikai. Este havia sido um dos mais proeminentes comandantes militares dos Qing. Nas


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1916 Num momento de pausa, durante a I Guerra Mundial, um soldado britânico partilha um cigarro com trabalhadores chineses enviados para a construção das trincheiras em França

primeiras eleições da nova república, o candidato vencedor do Partido Nacionalista (Kuomintang, abreviado como KMT), criado por Sun, foi assassinado, possivelmente a mando de Yuan. Yuan baniu o KMT em 1913 e nos anos seguintes implementou reformas conservadoras, longe de consensuais. Em 1916, engendrou a sua ascensão a imperador, mas a ideia não vingou e ele morreria pouco depois. Uma tentativa de restaurar Puyi y no trono falhou também.

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Yuan Shikai Y O primeiro Presidente Repúbl da República da China (1912-16) era er um antigo co c omandan militar da comandante dinastia Qing d

Começou então a que é muitas vezes descrita como «era dos senhores da guerra». Embora as estruturas de governo nacionais continuassem em teoria – quem tivesse o poder na capital, Pequim, era o presidente, e assim sucessivamente – na prática o país estava fragmentado. Comandantes militares governavam extensas áreas do país, algumas correspondendo a províncias, quase como estados dentro do Estado. É difícil generalizar sobre estes líderes regionais, que variavam em termos de carisma, violência e ideologia. Mas vários abraçaram a retórica da modernidade que animara a fundação da república. Por exemplo, Yan Xishan, em Shanxi, promovia a educação feminina, e Chen Jiongming, em Guangdong,

defendia o federalismo. No entanto, a divisão do país tornava a China ainda vulnerável a pressões externas, cujos interesses não se evaporaram com a queda dos Qing. Isso tornou-se evidente na I Guerra Mundial, quando a China apoiou a Tríplice Entente. Cerca de 140 mil trabalhadores vieram para a Europa para fazer as tarefas Bandeiras republicanas Das Cinco Raças sob uma União (1912-1915 e 1916-1928). No intervalo houve uma tentativa de restauração monárquica Vermelha e azul com sol branco (1928-1949). Ainda é usada pela República da China, em Taiwan

VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // REPÚBLICA

Sun Yat-sen, o ‘Pai da Nação’ Sun Yat-sen (1866-1925) foi, provavelmente, o mais internacional dos líderes políticos chineses. Nascido em Cuiheng, uma vila a 26 km de Macau, cresceu em Honolulu, estudou medicina em Hong Kong e exerceu-a em Macau. Pelo caminho tornou-se um carismático líder revolucionário, defendendo a queda da dinastia Qing. Criou a Aliança Revolucionária (Tongmenghui) em 1905, em Tóquio, e viajou pela América do Norte e pelo Sueste Asiático a convencer imigrantes chineses a juntarem-se à causa republicana. Em Macau teve apoiantes e amigos e colaborou no primeiro jornal bilingue, Echo Macaense. Estava nos EUA quando a revolução de 1911 começou, tendo sido o primeiro presidente provisório da República. Fundou o Kuomintang em 1912, mas o partido foi

mais duras e menos reconhecidas, como abrir trincheiras ou desminar terrenos. Antes da Revolução Russa de 1917, meio milhão terão estado ao serviço dos exércitos czaristas na frente leste do conflito. O sacrifício era encarado como forma de granjear prestígio internacional e reaver territórios controlados pelo Japão, nomeadamente na província de Shandong, que os nipónicos tinham invadido sob pretexto de derrotar a presença alemã. Mas também o Japão entrou na I Guerra ao lado dos vencedores e, embora não tenha saído da Conferência de Paz em Paris, em 1919, com tudo o que almejava, Shandong permaneceu sob o seu controlo. A delegação chinesa não assinou o tratado de paz. Internamente, a «traição» de Versalhes teve efeitos cataclísmicos.

afastado da governação e Sun continuou uma vida de viagens e exílio. Em Cantão, nos anos 1920, liderou a Primeira Frente Unida com o PCC, reorganizou o KMT segundo moldes leninistas e planeou a reunificação da China. Foi aí que formulou os «Três Princípios do Povo» (nacionalismo, democracia e providência social), a sua influente teoria política. Morreu em 1925, sem ver KMT no poder. Venerado como «pai da Nação» (guofu), é homenageado em memoriais e casas-museu em diferentes partes do mundo, incluindo em Macau, onde a sua primeira mulher viveu durante décadas.

A fragmentação política dos anos 1910 e 1920 foi acompanhada de um intenso florescimento cultural que é por vezes chamado «a Renascença Chinesa» e mais comummente descrito como o Movimento Nova Cultura. Novas vozes das artes e das letras emergiram neste contexto, que também assistiu à promoção de uma «língua nacional». Entre os autores mais importantes do início do século XX encontram-se Lu Xun e Ding Ling. Os contos cáusticos e humanistas de Lu Xun são das mais brilhantes obras da literatura chinesa contemporânea. Anotam a complexidade de problemas sociais e expõem as difi-

No dia 4 de maio de 1919, um grupo de estudantes em Pequim saiu para as ruas em protesto no que ficou conhecido como o Movimento 4 de Maio. As reivindicações dos estudantes da capital eram partilhadas por outros na China: nacionalismo anti-imperialista, nascido de um sentimento de injustiça pela fraqueza dos governantes, e desejo de construir um país cosmopolita e progressista. Advogou-se que os «Sr. Ciência e Sr. Democracia» deveriam substituir a rigidez das ideias confucionistas. Os jovens estariam na vanguarda de uma nova China. 26 V I S Ã O H I S T Ó R I A

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Maduros maios

Os comunistas foram perseguidos violentamente pelos nacionalistas de Chiang Kai-shek

culdades das soluções fáceis advogadas pelos seus jovens contemporâneos. Ding foi uma escritora feminista e comunista, autora de obras que exploram de forma original ideias de sexualidade, doença e o papel das mulheres na revolução. As suas intervenções críticas valeram-lhe dissabores durantes os anos Mao, tendo sido presa e enviada para o Nordeste para fazer trabalho manual, sendo mais tarde «reabilitada». Embora a maioria das novas ideias e formas literárias se propagasse nos centros urbanos, nem todas as zonas rurais chinesas eram atrasadas e obscuras. Novas vias de comunicação e oportunidades educativas espalharam pelo país as aspirações e práticas da China que se modernizava. Essas ideias eram, aliás, marcadas por significativa pluralidade e incluíram também projetos de reconstrução de zonas campesinas sob princípios de um novo modernismo rural. Alguns destes esforços foram internacionais, em colaboração com missões técnicas da Sociedade das Nações (SdN), de que a China foi um dos membros fundadores. Foi neste contexto de novos «ismos» que o Partido Comunista da China (PCC) foi fundado em 1921, na Concessão Francesa de Xangai. Nesta fase inicial destacaram-se Chen Duxiu e Li Dazhao, diretores de uma das mais influentes revistas literárias do período, La Jeunesse.


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A Longa Marcha, 1934-35 Mao Tsé-Tung em fuga com o seu exército, a caminho de uma zona remota no Norte

Alguns dos primeiros membros do partido estavam em França, onde milhares de trabalhadores chineses ficaram após a I Guerra, e onde recém-chegados estudantes-trabalhadores, como Zhou Enlai e Deng Xiaoping, aderiram ao PCC no início dos anos 1920. O partido juntou forças com o KMT de Sun Yat-sen numa Primeira Frente Unida, em Cantão (Guangzhou), iniciada em 1924. Depois de ser afastado do poder em Pequim, Sun reorganizou o Kuomintang com apoio de conselheiros do Comintern. Uma das condições era a de se unirem aos comunistas. Assim, foi a partir da grande cidade do Sul da China que um novo projeto de reunificação nacional se forjou. Mas acontecimentos noutros lugares ajudaram a criar o momentum para o seu sucesso. Um dos mais emblemáticos foi o Incidente 30 de Maio de 1925. Um grupo de manifestantes chineses em Xangai, que protestavam contra a morte de um trabalhador chinês numa fábrica japonesa, foi dispersado a tiro pela polícia municipal do International Settlement, largamente dominado por britânicos. Seguiu-se uma onda de protestos. Um incidente similar em Cantão no mês seguinte, que levou à morte de ainda mais manifestantes chineses, inflamou os ânimos e levou a uma greve de mais de um ano em Cantão e Hong Kong, num claro sinal aos interesses coloniais estrangeiros de que não eram bem-vindos.

Estes acontecimentos confirmaram aos nacionalistas que o tempo era propício para tentar reunificar o país. No ano seguinte, a Expedição do Norte seguiu em frente, vencendo a maioria dos chefes militares com que se deparou no caminho. Sun, no entanto, nunca a veria concluída, pois morreu em 1925. Da disputa pela sua sucessão política saiu vencedor Chiang Kai-shek, que havia comandado a Academia Militar de Whampoa, de onde saíram as forças da Expedição do Norte. Na mesma academia, Zhou Enlai começou a carreira como diretor do departamento político.

A década de Nanjing O ano de 1927 marcou um ponto de viragem. A Frente Unida desmoronou-se de forma brutal quando a Expedição do Norte chegou a Xangai. Na grande metrópole, centro industrial e económico da China, os nacionalistas viraram-se contra os seus aliados comunistas, com o apoio de um poderoso gangue local. O banho de sangue foi descrito por André Malraux em A Condição Humana. Após tomarem o poder e controlarem a maior parte do país, os nacionalistas iniciaram um conjunto de iniciativas com vista a consolidar a soberania do país – e a estabilidade do seu regime. A capital foi mudada para Nanjing (Nanquim) e um ambicioso programa de obras públicas procurou torná-la um

centro administrativo de imponência equivalente a Washington. A autoridade estatal estendeu-se com vista a uniformizar práticas, incluindo legislação laboral e novas regras de educação pública. Os comunistas continuaram a ser perseguidos violentamente e um projeto de mobilização ideológica foi tentado com o Movimento Nova Vida, que tentava pregar aos jovens obediência à autoridade. Externamente, os nacionalistas foram bem sucedidos em alguns aspetos: forçaram os britânicos a devolver o controlo da concessão de Hankou e recuperaram autonomia, perdida pelos Qing, em termos de tarifas aduaneiras. Começaram também negociações para a abolição do regime de extraterritorialidade, que dava aos estrangeiros o privilégio de não serem julgados segundo a lei chinesa. No entanto, uma China unida e forte sob os nacionalistas gerou alguma ansiedade, sobretudo no vizinho Japão que, a partir do início dos anos 1930, assistiu a um crescente militarismo. Em 1931, foi dado o primeiro passo para o que seria a II Guerra Mundial na China, quando militares japoneses provocaram um incidente no Nordeste em torno de uma linha férrea que o Japão controlava desde a Guerra Russo-Japonesa (19045). Seguiu-se a ocupação das três províncias conhecidas como Manchúria. Em 1932, o Japão promoveu a criação VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // REPÚBLICA

Chiang Kai-shek (1887-1975) é uma figura incontornável do século XX chinês, odiado como um déspota por uns e por outros admirado pela sua resistência na II Guerra e por ter sido o obreiro de uma visão de «ordem e progresso» de que a China atual tem ecos evidentes. Nascido na província de Zhejiang, participou na revolução de 1911 e obteve formação militar na China, no Japão e na Rússia. Numa sucessão contestada, emergiu após a morte de Sun Yat-sen, em 1925, como a figura tutelar do KMT. Converteu-se ao cristianismo para casar com Song Meiling, irmã da última mulher de Sun, Qingling. Liderou a Expedição do Norte (1926-28), que reunificou a China, e procurou pôr em prática o programa político do seu mestre, construindo uma China soberana e militarmente preparada, moderna em tecnologia e infraestruturas, mas também conservadora e protetora de tradições. A sua perseguição aos comunistas chineses, só temporariamente contida pela guerra contra o Japão, afastou-o de muitos, nomeadamente intelectuais. Culpado por ter «perdido a China» por corrupção e intransigência, foi derrotado na guerra civil em 1949 e fugiu para Taiwan. Aí continuou a governar a sua República da China até morrer, em 1975, vendo-a tornar-se numa potência económica ao mesmo tempo que cada vez mais isolada politicamente.

de Manchukuo, entregando o trono ao último imperador dos Qing. Tratava-se de um estado em teoria independente mas, na prática, um fantoche colonial subordinado a interesses japoneses. Os diplomatas chineses contestaram a invasão da Manchúria na SdN. Não conseguiram apoio significativo da comunidade internacional embora o Japão tivesse abandonado a SdN em 1933 na sequência das críticas. 28 V I S Ã O H I S T Ó R I A

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Chiang Kai-shek, ‘o Generalíssimo’

Chiang Kai-shek percebeu que não tinha capacidade de vencer o Japão e decidiu esperar, ao mesmo tempo que se preparava para um futuro conflito, modernizando, designadamente, as Forças Armadas com apoio técnico da Alemanha. Mas a opinião pública apenas via inação em face da agressão externa, enquanto continuavam as «campanhas de extermínio» contra o PCC, que advogara a resistência ao Japão desde o início. Foi a fugir dos ataques nacionalistas que, em 1934, os comunistas iniciaram a Longa Marcha para uma zona remota na província de Shaanxi. Dois anos depois, Zhang Xueliang, chefe militar da Manchúria, farto de ver o seu domínio ocupado sem resistência aberta, raptou Chiang Kai-shek em Xi’an para o forçar a uma Segunda Frente Unida com os comunistas contra o Japão. Por complexas razões, Chiang concordou.

Resistir até ao fim A guerra aberta começou em julho de 1937, com um outro incidente, agora em Pequim. Desta feita, Chiang escolheu lutar. Uma segunda frente foi aberta em Xangai, centro cosmopolita onde a bru-

talidade de uma guerra não declarada foi testemunhada por estrangeiros, incluindo jornalistas que lhe deram projeção global. Boa parte dos observadores estrangeiros no terreno simpatizaram com a causa chinesa, chocados com as atrocidades que viam – como bombardeamentos de civis em cidades como Cantão – e com a resiliência chinesa perante um atacante tecnologicamente superior. Chiang Kai-shek manteve-se firme no objetivo de «resistência até ao fim». A capital, Nanjing, foi atacada com particular brutalidade. No infame massacre de Nanjing, prisioneiros de guerra foram executados em massa, civis mortos indiscriminadamente e mulheres de todas as idades violadas. Os números são motivo de debate, mas a estimativa oficial chinesa é de 300 mil mortos num mês. Os nacionalistas perderam o controlo de todas as grandes cidades na costa leste que eram centros políticos, culturais e económicos do país – e que foram entregues a regimes colaboracionistas. Mas fizeram um esforço hercúleo para relocalizar ministérios, fábricas e escolas para o interior. A capital foi mudada primeiro para Wuhan e depois para Chongqing. Aí


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1937, Nanjing O banho de sangue na cidade capital dos nacionalistas fez pelo menos 300 mil mortos em apenas um mês

1937 Durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, os bombardeamentos aéreos nipónicos causaram inúmeras vítimas entre civis

a topografia ofereceu resistência, ainda que a cidade não tenha sido poupada a ataques aéreos. Foi, a dada altura, a mais bombardeada do mundo. Chiang advogava uma estratégia de «trocar espaço por tempo», usando a vastidão do território chinês para deter os japoneses – que, no limite, foi bem sucedida. Da sua base comunista de Yan’an, onde estava desde a Grande Marcha, Mao Tsé-Tung defendeu algo similar. Aí consolidou autoridade e escreveu alguns dos seus textos teóricos mais relevantes. Nas áreas sob o seu controlo, particularmente destituídas, o PCC empreendeu programas de reforma agrária e educação. Longe dos ataques nacionalistas, distraídos a combater o Japão, a experiência dos comunistas durante a guerra foi um teste superado para a visão de governo que aplicariam em toda a China. Ao mesmo tempo, guerrilhas comunistas destacaram-se também na resistência. Os comunistas eram vistos como frugais e competentes e foram poupados às críticas feitas aos nacionalistas, desgastados por anos de guerra contínua. Contudo, embora os nacionalistas tenham sido retratados durante décadas

como incompetentes, a sua experiência de guerra tem vindo a ser reavaliada por historiadores como bastante mais complexa. É hoje reconhecido que a guerra abriu caminho a um Estado mais interventivo, preparando o terreno para a República Popular surgida em 1949. A mobilização para a resistência permitiu aos nacionalistas estender o controlo estatal a áreas como a educação ou a indústria, e lançar as bases de um estado social, por exemplo, através da gestão da enorme crise de refugiados que a guerra provocou na China. Internacionalmente, o legado não poderia ser mais notório: o odiado regime de extraterritorialidade foi abolido, as concessões sob domínio estrangeiro foram devolvidas à China e o esforço do

Chiang advogava a estratégia de “trocar espaço por tempo”. Mao defendeu algo similar

país na guerra foi recompensado com um lugar permanente no Conselho de Segurança da recém-formada Organização das Nações Unidas. No entanto, o fim da II Guerra Mundial, em 1945, não foi o fim de um estado de conflito. Depressa a rivalidade entre o KMT e o PCC se tornou irreconciliável e (re)começou uma guerra civil. Chiang Kai-shek ficou desacreditado aos olhos de muitos, em particular dos seus aliados americanos. As suas forças, embora superiores em número, estavam esgotadas pela guerra contra o Japão. Chiang ainda ponderou voltar a recuar, para resistir no Sul ou no Sudoeste, mas depressa se tornou claro que isso não tinha grande hipótese de sucesso e o reduto escolhido acabou por ser a ilha de Taiwan. A capital no período da II Guerra Mundial, Chongqing, foi das últimas grandes cidades que os nacionalistas retiveram na China continental, até novembro de 1949. Um mês antes, Mao anunciara em Pequim, de novo promovida a capital, o estabelecimento da República Popular da China. Tinha começado uma nova era. * Helena F. S. Lopes é docente e investigadora de História da China na Universidade de Bristol VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // COMUNISMO

ASSINATURA

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O ‘Grande Timoneiro’ Cartaz de 1952 mostrando Mao em frente a uma bandeira vermelha, onde estão desenhadas as figuras de Estaline, Lenine, Engels e Marx

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MAO TSÉ-TUNG E A REINVENÇÃO DO COMUNISMO

O líder da revolução chinesa criou uma nova via para a tomada do poder, fundou uma nova China, afrontou a URSS da coexistência pacífica com o Ocidente e inspirou por todo o mundo movimentos de regresso à «pureza» marxista-leninista

por António Costa Pinto* V I S Ã O H I S T Ó R I A 31


CHINA // COMUNISMO

Partido Comunista da China (PCC), em 1920. Quando o jovem PCC entrou na frente nacionalista republicana de Sun Yat-sen, Mao dedica-se inicialmente ao trabalho de frente com os nacionalistas, mas é o seu regresso ao campo que o faz repensar a mobilização camponesa como elemento fundamental de uma eventual revolução socialista na China.

A estratégia de Mao Quando Chiang Kai-shek substituiu Sun Yat-sen na chefia do Partido Nacionalista (Kuomintang) e começou a quebrar a aliança com os comunistas, para logo quase os desmantelar, Mao vai desenhando a estratégia de mobilizar os camponeses e erguer um «exército vermelho» como braço armado do PCC, que lhe assegure a resistência às forças nacionalistas a partir do campo. Em 1931, a sua base militar foi quase dizimada pelos exércitos nacionalistas e Mao inicia aquela que ficou conhecida como a «Longa Marcha», mais tarde heroicizada até ao limite pela ditadura socialista chinesa: a movimentação em retirada por alguns milhares de soldados até ao noroeste da China. Quando, em 1935, foi aprovada a estratégia da frente antifascista, no VII Congresso da Internacional Comunista, o seu impacto na China conduziu à

Filho de agricultores, Mao rejeitou cedo um futuro como camponês renovação das negociações com as forças nacionalistas que acabariam por incluir o próprio Chiang Kai-shek. Esta aliança seria um facto durante a guerra antijaponesa e é aqui que os comunistas chineses consolidaram a sua base militar e política no campo. Foi também aqui que Mao escreveu alguns dos seus «clássicos», como o Da Prática e o Da Contradição, e reforçou noutras a correção da sua estratégia de guerra revolucionária. A sua hegemonia sobre o PCC crescia significativamente, ao mesmo tempo que as divergências com a fação mais seguidista em relação à estratégia de Estaline se acentuava. Com a chamada «Campanha de Retificação» do início da década de 1940, Mao, já presidente do Secretariado do Comité Central do PCC, depurou o partido dos seguidistas de Moscovo. Quando Mao abriu a guerra com os nacionalista de Chiang Kai-shek, o ceticismo soviético foi grande, mas quando o «Exército Popular de Libertação» Mao icónico Os cartazes de propaganda do líder chinês tornaram-se populares nas décadas de 50 e 60 do século XX. Procuravam transmitir uma imagem de alegria e felicidade associadas ao regime

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ao Tsé-Tung foi o construtor da China contemporânea e o mais importante protagonista da maior cisão no movimento comunista internacional. Foi também inspirador de uma vaga esquerdista revolucionária na década de 1960 e da mais inovadora dinâmica totalitária de um regime socialista: a Revolução Cultural. Carisma, poder pessoal, ideologia, política de potência, marxismo-leninismo, nacionalismo, em todos estes aspectos renovou, dirigiu e marcou a história global do comunismo. A juventude política de Mao nada tem de muito particular perante a de muitos outros dirigentes comunistas da primeira metade do século XX. Nascido na província de Hunan, Mao era filho de agricultores e cedo se desviou do que seria o seu futuro camponês. Na escola foi influenciado como tantos outros pelo nacionalismo ocidentalizado de Sun Yat-sen, mas foi aqui que a experiência militar nacionalista e a questão camponesa o marcariam. Ativista estudantil, foi como ajudante de bibliotecário da Universidade de Pequim que reforçou a sua militância política progressivamente influenciada pela Revolução Russa e pelo marxismo. Foi já como professor primário que participou no primeiro congresso do


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Ideólogo Imagem alusiva ao regresso às origens do marxismo-leninismo

Estadista Com a República Popular consolidada, faz pose para a fotografia, numa praia

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Revolucionário Retrato dos anos 1930, a seguir à Longa Marcha

de Mao ganhou a guerra civil, em 1949, e este viajou triunfalmente para Moscovo, já como Presidente da República Popular da China, o pragmatismo das boas relações com Estaline imperou.

O líder e o poder Os dilemas de Mao Tsé-Tung como chefe da República Popular da China (RPC) não escaparam aos clássicos da ditaduras: personalização da chefia, utilização do partido único como instrumento de controlo e mobilização políticas, dinâmica ideológica com enorme pressão-repressão sobre a sociedade civil, etc. No entanto, algumas características do exercício do poder por Mao, nomeadamente a Revo-

lução Cultural, apontaram para uma dinâmica totalitária de tipo novo no campo das ditaduras socialistas. Apesar da especificidade e da teorização sobre a construção de um regime socialista na China, antes da tomada do poder, os primeiros anos do novo regime chinês apontavam para uma industrialização seguindo o modelo soviético, evitando a socialização da agricultura antes da possibilidade da sua mecanização. Com a dinâmica da «destalinização» khrushcheviana, Mao abriu o partido à contradição para rapidamente reforçar a repressão e a depuração, em passo subsequente. A «reeducação» no campo de intelectuais e quadros acentuou-se.

Como em outras experiências socialistas no mundo rural, as cooperativas forçadas de camponeses, seguidas de unidades coletivas, em 1956, provocaram a desorganização e a fome de milhões de chineses. Por outro lado, o fim do apoio dos conselheiros soviéticos também teve efeitos negativos na industrialização e agravou as relações com Nikita Krushchev. Apesar de ter aceite os planos de moderação de Liu Shaoxi e de Deng Xiaoping, Mao iniciaria pouco depois a «Grande Revolução Cultural Proletária», uma dinâmica inédita nas ditaduras socialistas da época. A deterioração das relações sino-soviéticas após a chegada de Khrushchev ao poder VISÃO H I S T Ó R I A

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foi sempre crescendo, mas, para além das tensões agravadas nas relações bilaterais, ela atingiria o movimento comunista internacional no início da década de 1960. Quando Khrushchev anunciou a nova política de «coexistência pacifica» com o mundo capitalista do outro lado da Guerra Fria, Mao denunciou essa estratégia como revisionista, apelando à luta armada contra o imperialismo e à fidelidade à tradição revolucionária. No fundamental, deu-se então saliência ao carácter revolucionário do movimento comunista internacional contra o reformismo soviético e uma reafirmação dos princípios marxistas-leninistas por parte do PCC. Embora com muitas variações, a grande maioria dos partidos comunistas ocidentais, legais ou clandestinos, seguiram Moscovo, e o mesmo aconteceu com os regimes socialistas, com a exceção da Albânia de Henver Hoxa que, por fatores não apenas ideológicos, alinharia com Pequim. No entanto, quase todos os partidos conheceram pequenas cisões pró-chinesas entre 1963 e 1965. Na Ásia, alguns partidos ficaram neutrais, mas a China tornou-se um novo farol de muitos movimentos de libertação armados. No Ocidente europeu e latino-americano, situações como a do Brasil, onde os mais destacados dirigentes comunistas seguiram Pequim, foram

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CHINA // COMUNISMO

Falando às massas No final dos anos 20, à beira da guerra civil, Mao mobilizava os camponeses com os seus dotes oratórios

muito raras. Na maioria dos casos, sobretudo após a Revolução Cultural, a China tornou-se o símbolo do retorno à pureza revolucionária do marxismo-leninismo, mobilizando novas gerações de ativismo estudantil esquerdista no Ocidente do final da década de 1960.

facto, um movimento de «revolucionarização» de grande parte dos quadros dirigentes do partido e do Estado, dirigida por um fação esquerdista do PCC, com a legitimação e a chefia inicial de Mao.

A ‘conjuntura totalitária’

A China tornou-se o símbolo do retorno à pureza revolucionária do marxismo-leninismo, mobilizando gerações de estudantes no Ocidente

A Revolução Cultural representou uma dinâmica política de mobilização de quadros comunistas e de organizações de massas do regime que não pode ser comparado às típicas depurações que várias ditaduras socialistas foram fazendo, no fundamental para reforçar o poder do líder e afastar rivais. Foi, de

DATAS DE UMA VIDA 1893

1911

1918

1919

Nasce em Shaoshan, província de Hunan, numa família de camponeses ricos

Junta-se ao exército republicano de Sun Yat-sen. Lê muito

Torna-se ajudante de bibliotecário da Universidade de Pequim; é alvo de troça pela sua pronúncia de Hunan

Manifesta-se contra o Tratado de Versalhes, que concede direitos à Alemanha e ao Japão na China

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1921 Está entre os fundadores do Partido Comunista da China (PCC), que se alia ao Kuomintang (KMT) contra os «senhores da guerra».

1927 Integra a direção do KMT, antes de os comunistas serem expulsos. Funda o Exército Vermelho e luta contra o KMT

1934-35 Para fugir ao cerco das forças do KMT, empreende, com o Exército Vermelho, a Longa Marcha

1937 Alia-se de novo ao KMT para combater a invasão japonesa

1947 Após a derrota do Japão e a saída das tropas dos EUA, inícia a fase final da guerra civil contra o KMT

1949 Proclama a República Popular da China


Mao morreu, em 1976, a Revolução Cultural estava já extinta e o processo de reconsolidação autoritária em curso, mas esta foi a sua última marca política enquanto fundador e chefe carismático da República Popular da China.

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O legado

Funeral de Estado O velório do líder chinês atraiu multidões

O projeto de revigoração ideológica e política do partido passou pela mobilização dos Guardas Vermelhos, organizações de jovens comunistas que intervinham no aparelho de Estado denunciando e depurando quadros que se tinham «burocratizado» e «desviado» dos princípios marxistas-leninistas criando uma «casta» distante das massas. Comités Revolucionários constituídos por representantes do Exército de Libertação Nacional e jovens quadros, brandindo o livro de citações de Mao, invadiam e ocupavam empresas, «saneavam» dirigentes e obrigavam-nos a autocríticas públicas, sendo muitos presos e mortos. Esta dinâmica constituiu uma típica «conjuntura totalitária». Em nome

1953 Lança o primeiro Plano Quinquenal

1954 Torna-se Presidente da República Popular da China

1956 Encoraja (brevemente) as críticas, na Campanha das Cem Flores

de princípios ideológicos radicais instala-se um clima político de incerteza generalizada, com consequências paralisantes sobre a sociedade e a vida humana que, em última análise, pode levar à entropia e à desconsolidação do regime. O processo de reconstrução do partido foi tomando forma a partir de 1969, mas o chefe do Exército de Libertação Nacional, Lin Biao, continuou central no processo político chinês, sendo o eventual sucessor de Mao. A sua morte em 1971, num desastre aéreo, permanece ainda hoje rodeada de mistério e dada a interpretações conspirativas. Nesse mesmo ano, Richard Nixon visitou a China, rompendo o seu isolamento internacional. Quando

1958

1959

Decreta o Grande Salto em Frente, que virá a falhar os objetivos de desenvolvimento da agricultura e da indústria

Afasta-se do comunismo soviético, que classifica de «revisionismo». Cede a presidência da RPC a Liu Shaoqi

1964 É publicado o «livrinho vermelho» com citações suas

1966 Lança a Revolução Cultural, contra a ala mais reformista; a China mergulha na desordem

Mao Tsé-Tung ficará indissociavelmente ligado à história do movimento comunista internacional e à Revolução Chinesa. A sua tomada do poder, em 1949, inaugurou a entrada da China na política internacional da época contemporânea. Entre nacionalismo e socialismo, a República Popular da China não mais foi desafiada. Bandeira ideológica e política de uma via revolucionária marxista-leninista nas décadas de 1960 e 1970, Mao teve uma presença forte na cultura política da extrema-esquerda mundial desse tempo. Também inspirou um sem-número de projetos revolucionários no então chamado Terceiro Mundo. Ironicamente, ou talvez não, deixou como legado um país e um regime político que, com acentuada continuidade, iria iniciar um sólido processo de transição ao capitalismo, transformando-o na (quase) principal potência económica mundial. * António Costa Pinto é politólogo e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

1971 Convida uma equipa americana de pingue-pongue para visitar a China

1972 Recebe o presidente dos EUA, Richard Nixon, em visita oficial

1976 Morre depois de ter sofrido três ataques cardíacos

VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // CITAÇÕES

Mao ‘dixit’

O pequeno volume Citações do Presidente Mao Tsé-Tung foi inicialmente publicado na China mas teve distribuição internacional a partir de 1964, chegando a alcançar uma tiragem de 900 mil exemplares em múltiplos idiomas. Alguns excertos A GUERRA REVOLUCIONÁRIA

de morte contra nós, razão por que jamais devemos subestimá-los. 1949

Para eliminar a guerra só existe um caminho: opor-se à guerra com a guerra, opor-se à guerra contrarrevolucionária com a guerra revolucionária. (…) Quando a sociedade humana avançar até ao ponto em que as classes e os Estados desapareçam, não haverá mais guerras, nem contrarrevolucionárias nem revolucionárias, nem injustas nem justas – será a era da paz eterna para a humanidade.

O PARTIDO COMUNISTA

1936

Na sociedade feudal chinesa, só as lutas de classe dos camponeses, as insurreições camponesas e as guerras camponesas foram as verdadeiras forças motrizes do desenvolvimento histórico. 1939

Devemos apoiar tudo o que o inimigo combate e combater tudo o que o inimigo apoia. 1939

Depois da eliminação dos inimigos armados, ficarão ainda os inimigos sem armas, os quais travarão inevitavelmente uma luta 36 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Sem os esforços do Partido Comunista da China, sem os comunistas chineses como pilar principal do povo chinês, a independência e a libertação não são possíveis, assim como não será possível a industrialização e a modernização da agricultura da China. 1945

O Partido Comunista da China é o núcleo dirigente do povo chinês. Sem esse núcleo, a causa do socialismo não pode triunfar. 1957 Devemos ser modestos e prudentes, prevenir-nos contra toda a presunção e precipitação, e servir de todo o coração o povo chinês. 1945

OS REACIONÁRIOS Todos os reacionários são tigres de papel. Na aparência, os reacionários são terríveis, mas na realidade não são assim tão poderosos. Vendo a longo prazo, não são os

reacionários mas sim o povo quem é realmente poderoso. 1946

Hitler era ou não era um tigre de papel? Hitler foi ou não foi derrubado? Eu afirmei igualmente que o czar da Rússia, o imperador da China e o imperialismo japonês eram todos tigres de papel e, como vocês bem sabem, eles foram todos derrubados. O imperialismo norte-americano ainda não foi derrubado e possui a bomba atómica, no entanto eu penso que será igualmente derrubado. É também um tigre de papel. 1957

O inimigo não morrerá por si mesmo. Nem os reacionários chineses nem as forças agressivas do imperialismo norte-americano na China se retirarão por si mesmos da cena da história. 1948

O IMPERIALISMO

O imperialismo não pode durar muito, precisamente porque pratica, a todo o momento, toda a espécie de atos infames. 1958

Povos de todo o mundo, uni-vos e derrotai os agressores norte-americanos e todos os seus lacaios! Que os povos de todo o mundo sejam corajosos, ousem travar combate, desafiem as dificuldades e avancem por vagas sucessivas, pois desse modo o mundo inteiro pertencer-lhes-á. 1964


Edição em português Atribui-se a compilação do 'Livrinho Vermelho' a Lin Biao, o ex-presidnete da RPC e do PCC que depois caiu em desgraça e morreu na queda de um avião quando fugia para a URSS

socialista no nosso país. (…) O problema do correto e do incorreto nas artes e nas ciências deve ser resolvido por meio da discussão livre nos círculos artísticos e científicos, através da prática da arte e da ciência, e nunca de maneira simplista. 1957

O ESTUDO Há um ditado chinês que diz: «Ou o vento de Leste predomina sobre o de Oeste, ou o vento de Oeste predomina sobre o de Leste.» Eu penso que a característica da situação atual é que o vento de Leste predomina sobre o de Oeste. O mesmo é dizer que as forças do socialismo ganharam uma superioridade esmagadora sobre as forças do imperialismo. 1957

AS MASSAS O povo, e só o povo, constitui a força motriz na criação da história universal. 1941

As massas têm um entusiasmo potencial inesgotável pelo socialismo. Aqueles que, mesmo num período revolucionário, não sabem mais

do que seguir a velha rotina, são absolutamente incapazes de perceber tal entusiasmo. 1955

AS MULHERES

A teoria de Marx, Engels, Lenine e Estaline é uma teoria de valor universal. Devemos considerá-la não como um dogma, mas sim como um guia para a ação. 1937

É preciso fazer que todas as mulheres capazes de trabalhar participem na frente de trabalho segundo o princípio de salário igual para trabalho igual. 1955

Ler é uma forma de aprender, mas praticar é também uma forma de aprender, sendo até a forma mais importante de aprender. 1936

OS JOVENS

A ARTE Que cem flores desabrochem e cem escolas de pensamento rivalizem, eis a política para promover o desenvolvimento das artes e o progresso das ciências, bem como o florescimento de uma cultura

Qual o critério que permite determinar se um jovem é ou não é revolucionário? (…) Verificar se esse jovem quer ou não ligar-se às grandes massas operárias e camponesas e se, efetivamente, se liga a elas. 1939 VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // COMUNISMO

O formigueiro azul

Do auxílio soviético à rotura frontal, não foram fáceis os primeiros anos do novo regime comunista instalado em 1949 no país mais populoso do mundo

ilhares, milhões, de pessoas vestidas de algodão tingido – as «formigas azuis», como por vezes eram chamadas no Ocidente – de mata-moscas na mão perseguindo os insetos alados potencialmente transmissores de doenças, ou então brandindo varapaus contra os pássaros que debicam as espigas… Hiperrealistas e berrantes cartazes de propaganda onde homens, mulheres e crianças exibiam sorrisos luminosos enquanto se dedicavam, entre maquinaria novinha em folha e petromaxes, às mais variadas tarefas da «construção do socialismo»… Multidões de azul montadas em bicicletas circulando em vastas praças… Estas são três das imagens fortes que o imaginário ocidental guarda da China na década de 1950 e início da seguinte, quando o velho «Império do Meio» voltou a fechar-se ao mundo (à exceção do na altura incontornável aliado conjuntural soviético) e, tateando na sombra das injustiças históricas dos últimos cem anos, ia obedecendo à letra às ordens de um «Grande Timoneiro» tido por iluminado. Várias, e por vezes bruscas, foram as inflexões de rumo; muitos foram os erros táticos cometidos; literalmente mortífera terá sido a estratégia delineada. Hoje sabemos que o «homem novo» não nasce por decreto nem por vontade de uma geração, mas que as revoluções são respostas naturais à injustiça que as precede. O jornalista português José de Freitas, que no início da década de 1960 percorreu a China ao serviço do Diário

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Popular, insistiu, no seu interessante livro A China Vence o Passado (Edições Cosmos, 1964), em que «os acontecimentos verificados na China nos últimos 15 anos só podem ser justamente apreciados com a indispensável ajuda de conhecimentos históricos» (ler, neste número, O império moribundo). A opção chinesa pelo comunismo, essa é limpidamente explicada pelo jornalista norte-americano Edgar Snow quando escreve em A China Ontem e Hoje (Publicações Dom Quixote, 1972) que «não seria precisa uma intuição arguta para compreender por que razão, num país em que os trabalhadores de 10 ou 12 anos eram fechados à noite, para dormirem sobre farrapos debaixo das máquinas com que trabalhavam durante o dia, o Manifesto Comunista [de Karl Marx e Friedrich Engels] surgiu aos olhos dos que o leram como um autêntico evangelho».

O novo poder A revolução chinesa, consumada ao fim de duas décadas de guerras civis e contra o invasor japonês, não teve os lances de efeito cénico da sua congénere soviética de 1917 em Petrogrado (mesmo que o épico assalto ao palácio de Inverno tenha sido posteriormente reinventado pelo cineasta Sergei Eisenstein...). Em vez disso, ex-camponeses armados foram conquistando terreno palmo a palmo, entre montanhas e arrozais, até tomarem a velha capital imperial e o seu núcleo simbólico, a Cidade Proibida. Quando a República Popular da China (RPC) foi proclamada por Mao Tsé-Tung,

© HENRI CARTIER-BRESSON/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO

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por Luís Almeida Martins

na Porta de Tienanmen, em 1 de outubro de 1949, a cúpula comunista estava já há dez meses instalada em Pequim, e desde então não cessara de, a partir dali, ir acrescentando território à força de vitórias sobre as tropas «nacionalistas» do Kuomintang, subitamente abandonadas pelo poderoso aliado americano. A proclamação do novo modelo de Estado for-

A República Popular foi proclamada em outubro de 1949, mas os dirigentes comunistas estavam já desde janeiro em Pequim. A capital do governo nacionalista era Nanquim


Siderurgia ‘de aldeia’ Em 1858, a comuna de Shiu Shin produzia a cada meia hora 30 quilos de ferro fundido

malizou decisões tomadas na Conferência Consultiva Política do Povo, realizada menos de três semanas antes. Foi nesse fórum que os novos governantes adotaram a bandeira nacional vermelha com a estrela amarela que representa o Partido Comunista da China (PCC), rodeado de quatro estrelas mais pequenas simbolizado as classes operária, camponesa, pequeno-burguesa e burguesa urbana. Porque a existência de classes foi reconhecida pelos governantes, com o artifício de forjarem, na teoria, uma aliança entre elas. Na realidade, o PCC detinha o poder absoluto sobre os então 542 milhões de «formigas azuis», e exercia-o através das suas organizações regionais. As decisões eram tomadas pelo Comité Central, de 44 membros, 14 dos quais constituíam o Bureau Político e, destes, cinco formavam o Comité Permanente: Mao Tsé-Tung, Zu Enlai (Chu En-Lai, como na altura se escrevia com mais frequência), Liu

Shaoqi (Liu Chao-Shi), Zhu De (Chu Te) e Chen Yun. O principal guardião desse poder era o Exército Popular de Libertação (EPL), estreitamente ligado ao PCC desde os primórdios da guerra civil, ainda na década de 1920. De 1949 a 1976, antes da morte de Mao e da ascensão ao poder de Deng Xiaoping (e mesmo nos dois anos que se seguiram ao desaparecimento físico do internamente chamado «Grande Timoneiro»), a construção do socialismo na China efetuou-se sob a influência das ideias do líder carismático. É fácil, no entanto, distinguir períodos diferenciados quanto à aplicação dessa ideologia. O primeiro desses períodos, até 1957, foi uma etapa de relativo apagamento do maoismo, servindo de figurino à nova China o modelo estalinista. No quadro da Guerra Fria, foi com natu-

ralidade que o mundo assistiu, em fevereiro de 1950, à assinatura do Tratado de Amizade, Aliança e Assistência Mútua sino-soviético, por meio do qual a China Popular (designação também usada com frequência no exterior) passava a estar integrada no chamado «campo socialista, que desta forma aumentava espetacularmente de dimensões. Do ponto de vista chinês, o pedido de auxílio à URSS foi uma atitude óbvia, visto não existir outra potência que pudesse apoiar (pese alguma reticência ou receio por parte do Kremlin) um regime comunista no país mais populoso do Bandeira Classes sociais (estrelas pequenas) subordinadas ao Partido (estrela maior)

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mundo. Esse auxílio traduziu-se – depois da visita de Mao a Moscovo, dois meses depois da proclamação da RPC – numa política de empréstimos e de assistência tecnológica. Naturalmente, a economia figurava na primeira linha das preocupações do novo governo de Pequim, tanto mais que o país, já de si atrasado e eminentemente rural, se encontrava desarticulado após quase quatro décadas de conflito interno e de luta antijaponesa. A repressão dos opositores, apelidados de «contrarrevolucionários», foi também uma prioridade dos novos governantes, que lançaram nesse sentido uma campanha de «terror vermelho» durante a qual foi preso e executado um grande número de pessoas.

A Guerra da Coreia Eclodiu, entretanto, a Guerra da Coreia, na qual a recém-fundada China Popular se viu envolvida. Em 25 de junho de 1950, após conflitos fronteiriços, tropas comunistas norte-coreanas atravessaram o paralelo 38, fronteira internacionalmente aceite entre as duas Coreias desde 1945, e invadiram a Coreia do Sul, capitalista. A ONU aprovou uma resolução sobre o envio de uma força multinacional para repelir essa invasão, força essa que, comandada pelo general americano Douglas MacArthur, que se distinguira no teatro de operações do Pacífico durante a II Guerra Mundial, empurrou rapidamente as tropas norte-coreanas para o seu reduto. Tanto Estaline como Mao ficaram descontentes com este êxito ocidental nos primórdios da Guerra Fria, e decidiram envolver diretamente a China no conflito, já que a URSS queria evitar um confronto direto com a superpotência rival, os EUA. O pretexto foi o facto de bombas americanas terem caído na margem chinesa do rio Yalu. «Voluntários» do EPC lançaram, pois, uma profunda ofensiva em território coreano, alcançando, também rapidamente, o sul da península. 40 V I S Ã O H I S T Ó R I A

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CHINA // COMUNISMO

Grande Salto em Frente Estudantes constroem uma piscina numa zona alagadiça

Após novo contra-ataque fulminante das Nações Unidas, a guerra terminaria com um cessar-fogo assinado em julho de 1953, que restabeleceu uma situação no terreno praticamente idêntica à que precedeu o conflito. O preço em vidas humanas foi muito alto para a China, estimando-se que um milhão de «voluntários» tenha morrido, entre os quais o filho mais velho de Mao, Mao Anying. Aliás, muitos líderes de Pequim, incluindo o ministro da Defesa, Lin Biao, tinham discordado da participação na guerra.

As campanhas de massas Mas a Guerra da Coreia foi determinante quer para o enquadramento quer para o desenvolvimento do novo regime chinês. No primeiro aspeto, a presença de uma esquadra norte-americana no estreito da Formosa inviabilizou a planeada invasão de Taiwan, confirmando e «eternizando» a separação entre a China continental (comunista) e a China insular (capitalista); por outro lado, a RPC cavou um

fosso com os EUA e o Ocidente em geral, ao passo que reforçava as relações com a URSS. No segundo aspeto, a mobilização para o combate promoveu o espírito revolucionário da ideologia maoísta, que viria a expressar-se em campanhas de mobilização social em massa, apoiadas por cartazes apelativos e palavras de ordem simples. Nesta perspetiva, a campanha de apoio à Guerra da Coreia foi batizada «Resistir aos Estados Unidos e ajudar a Coreia» e decorreu enquanto muitos estrangeiros residentes na China eram perseguidos, acusados de espionagem. Outras três campanhas teriam lugar durante a guerra. Em 1951 lançou-se a que foi batizada de «Eliminação dos Contrarrevolucionários», visando pequenos empresários e lavradores acusados de não colaborarem com o PCC. No mesmo ano, a campanha «Movimento dos Três Anti» (antiesbanjamento, anticorrupção e antiburocracia) visou os quadros do PCC espalhados pelo país, e foi complementada com o «Movimento dos Cinco Anti» (contra a corrupção, a fuga fiscal,


Tibete resistente A história do Tibete, governado por dinastias guerreiras, teve início há mais de 2 mil anos, mas só no século X se deu a transformação cultural que permitiu a livre prática do budismo, a criação do alfabeto nacional e a construção de imponentes templos. Em 1720, depois de um período sob domínio mongol, o país foi conquistado pela dinastia chinesa Qing. Durante dois séculos, foi palco de conflitos entre chineses e tibetanos, continuando ainda estes a reivindicar hoje a independência. Em 1912, os tibetanos conseguiram finalmente expulsar os chineses, embora temporariamente. Em 1950, o Exército Popular de Libertação da China ocupou o Tibete, que foi anexado como província à RPC, e em 1965 declarado província autónoma. Desde então, os chineses são acusados de reprimir a atividade religiosa, perseguindo monges e arrasando mosteiros e templos, e de impor aos mais jovens a aprendizagem da língua mandarim. Após a derrota da revolta armada de março de 1959, o jovem Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, exilou-se com centenas de seguidores em Dharamsala, no norte da Índia, onde até hoje funciona o governo no exílio. O relato da fuga, que durou duas semanas, foi na altura amplamente descrito pela revista Time, que fez capa com a imagem do líder político e espiritual tibetano, então com 23 anos. Não se sabe quantas pessoas morreram durante os confrontos, mas aponta-se para a existência de 10 mil desaparecidos. Mas nem assim os conflitos terminaram no «Teto do Mundo», a região planáltica situada a norte da cordilheira dos Himalaias cuja média de altitude acima do nível do mar é de 4 mil metros. Pequim nunca hesitou em usar a força para conter a rebelião nacionalista em Lhassa, a capital tibetana, designadamente em outubro de 1987 e em março de 1988, sendo mesmo acusado de genocídio cultural. O Dalai Lama, hoje com 84 anos, com a sua postura pacífica, tem tentado chamar a atenção do mundo para a causa do seu povo, lutando por uma «autonomia política significativa» para a região. Em 1989 recebeu o Prémio Nobel da Paz. Em 2011 abandonou a liderança do governo no exílio. Clara Teixeira

o assalto ao erário, a quebra de contrato e a divulgação de segredos económicos estatais), lançado contra a burguesia urbana. Estas campanhas permitiram ao PCC estender seu controlo não só sobre a produção, mas sobre a própria população Após a Guerra da Coreia, e reforçada a colaboração com a URSS, os líderes chineses decidiram optar pelo modelo soviético de desenvolvimento. Como é sabido, este modelo baseava-se numa economia planificada, com os focos postos na indústria pesada e na produção agrícola. Copiando a prática moscovita, decidiu Pequim implementar um plano quinquenal, definitório das metas de crescimento num período de cinco anos. A reforma agrária lançada a partir de junho de 1950 consistiu na redistribuição de terras confiscadas aos latifundiários. Mais tarde, em 1955, a coletivização apressada decretada por Mao permitiu ao Estado utilizar à vontade a produção camponesa para financiar o lançamento dos alicerces industriais, no quadro de uma planificação que fazia incidir a tónica na indústria pesada. Os principais meios de produção e de

troca seriam nacionalizados em 1956, de molde a que o 8º Congresso do PCC, reunido em setembro desse ano, pôde celebrar os triunfos de uma China socialista dominada por um Partido todo-poderoso. Simultaneamente eram introduzidas reformas sociais, como a nova lei do casamento, que concedeu mais direitos às mulheres (pondo fim, nomeadamente, aos contratos nupciais combinados cedo entre famílias), ou os planos de erradicação da prostituição e da dependência do ópio. Em 1956, com o objetivo de promover a alfabetização da população, formara-

-se uma comissão incumbida de estudar e implementar uma simplificação dos carateres chineses. Na mesma altura foi introduzido o sistema de transcrição para carateres latinos designado Pinyin, que na origem poderá ter sido uma tentativa de substituição dos caracteres chineses pelos ocidentais, mas que acabou por não ter expressão interna, gerando antes no exterior (sobretudo de início) não poucas confusões decorrentes de uma dupla escrita. Como exemplo, Pequim passou a ser grafado por muitos Beijing, e Mao Tsé-Tung transformou-se em Mao Zedong.

As Cem Flores

A Guerra da Coreia, em que a China se viu diretamente envolvida, foi determinante para o enquadramento e o figurino do novo regime

A segunda etapa da construção do socialismo na China arrancou em fevereiro de 1957, com a crítica, decretada pelo próprio Mao, aos êxitos aparentes até então obtidos. Em boa verdade, ao aperceber-se de que a taxa de crescimento era ínfima, o «Grande Timoneiro» ordenou a abertura de fogo sobre o quartel-general. A campanha das Cem Flores foi a fórmula encontrada pelo líder para controlar o descontentamento. O nome é extraído de um poema, onde se diz: «Que cem flores desabrochem, que VISÃO H I S T Ó R I A

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cem escolas rivalizem.» Os acontecimentos na Europa de Leste em 1956 (greves operárias na Polónia e revolta popular húngara) mostravam que as contradições entre o povo e um partido comunista no poder podiam degenerar em confrontos agudos. A campanha das Cem Flores foi, pois, uma tentativa de fazer rebentar de forma controlada a eventual bolha. Mas o movimento duraria apenas de finais de abril a princípios de junho de 1957. É que, contrariamente ao que pensava a liderança, o regime não era muito popular, e o que realmente floresceu foram as críticas de recorte anticomunista, sobretudo oriundas do setor intelectual e estudantil. Mas não só: em silêncio, os camponeses começaram a abandonar as cooperativas. Inquieto, Mao inverteu a estratégia, substituindo a campanha das Cem Flores pela violenta Campanha Antidireitista, que se traduziu na perseguição, na tortura e na eliminação física de pelo menos 2 milhões dos que tinham ousado levantar a voz contra a sua política. O breve período de liberdade de expressão foi, pois, seguido por um reforço da censura e da justiça musculada. No inverno seguinte foram expulsos 8 por cento dos membros do PCC e, persuadido de que controlava o aparelho, Mao decidiu fazer o seu povo trilhar uma via original para o comunismo.

Grande Salto em Frente E foi assim que, em maio de 1958, Mao tomou balanço para o designado Grande Salto em Frente, diretamente inspirado na sua ideologia e na prática caracterizado sobretudo pelo nascimento das comunas populares. A ideia era tirar vantagem de uma situação desfavorável, ou das contradições por ela geradas. Se a China era inegavelmente um país pobre, isso tinha ao menos a vantagem de deixar o povo à margem da corrupção, e portanto mais predisposto à mobilização para trabalhos coletivos. O líder, que tinha pretensões a poeta, dizia que «numa página em branco podemos escrever belos poemas». Os chineses eram muitos? Uma boca corresponde a dois braços… 42 V I S Ã O H I S T Ó R I A

© HENRI CARTIER-BRESSON/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO

CHINA // COMUNISMO

Campanha antiparasitas O extermínio de ratos, mosquitos e pardais foi o tema de uma exposição didática, em 1958

OS PRIMEIROS ANOS 1950 É assinado o tratado sino-soviético. Começa a Guerra da Coreia, na qual combatem 700 mil chineses

1951 Uma lei pune os «contrarrevolucionários» e desencadeia o «terror vermelho»

1953

1955

Morre Estaline. Acaba a Guerra da Coreia. É lançado o I Plano Quinquenal

Mao acelera a coletivização agrícola

1956 São nacionalizadas as empresas industriais e comerciais nas cidades. O PCC começa a afastar-se de Moscovo após a URSS denunciar o estalinismo


1957 A Campanha das Cem Flores abre o debate intelectual; pouco depois, o Diário do Povo desencadeia a campanha «antidireitista» que lhe põe termo

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Reagrupando as atividades das antigas 740 mil cooperativas agrícolas, foram assim criadas 26 mil comunas, cada uma delas com 15 a 25 mil membros, pensadas de modo a que os mais pobres pudessem ser ajudados pelos menos pobres. As atividades industriais foram descentralizadas e espalhadas por essas comunas, basicamente postas ao serviço da agricultura. Numa demonstração daquilo que o poeta Mao chamava «caminhar sobre as duas pernas», surgiram as pequenas siderurgias locais, bem como as milícias e os sistemas de saúde e de ensino também locais. Mao sonhava com uma China que fosse uma federação de comunas no seio das quais reinariam a unicidade ideológica, o igualitarismo, a disciplina e, necessariamente, a frugalidade, tanto mais que a alimentação era gratuita. Parecia renascer a velha esperança para milhões de camponeses que a reforma agrária tinha deixado na penúria e que a coletivização em minúsculas cooperativas não arrancara ao pesadelo da fome. Julgava-se que dois ou três anos de esforços bastariam para que se alcançasse uma era de abundância e da felicidade. Por outras palavras, havia a firme convicção de que a China atingiria o estádio do comunismo propriamente dito («a cada um segundo as suas necessidades, de cada um segundo

Consagração do maoismo Imagem de propaganda chinesa em que Mao figura no mesmo friso que Marx, Engels, Lenine e Estaline

as suas capacidade») antes de os soviéticos lá chegarem. Mas o inverno de 1958-1959 fez, desde logo, congelar esse sonho. As estatísticas manipuladas aumentavam exponencialmente os números da colheita. O frio e

Nos «três anos negros» de 1959, 1960 e 1961, a fome nos campos vitimou entre 13 milhões (número admitido na China) e 30 milhões de pessoas

1958

1959

Mao lança o Grande Salto em Frente; são instituídas as comunas populares e abolida a propriedade individual

A insurreição do Tibete é esmagada pelo EPL; o Dalai Lama foge para a Índia

1960 Consuma-se a rotura sino-soviética. A fome provoca dezenas de milhões de mortos em três anos

1962 O PCC admite o falhanço do Grande Salto em Frente e volta a dar prioridade à agricultura, progressivamente descoletivizada

outras calamidades naturais não ajudaram, mas o pior – dizem os especialistas – foi a falta sentida de dezenas de milhões de braços camponeses, ocupados, longe das suas aldeias, em gigantescos trabalhos de obras públicas. Por outro lado, as entregas obrigatórias ao Estado ultrapassavam o limite do tolerável. Numa reunião do Comité Central que teve lugar em Lushan, o marechal Peng Dehuai criticou o projeto e pediu a Mao que fizesse marcha atrás. A coragem valeu-lhe a destituição e a substituição por Lin Biao. Estava assim aberto o caminho à catástrofe. O tempo decorrido entre os invernos de 1959 e 1961 é conhecido por «os três anos negros», no decorrer dos quais a fome, anteriormente vencida, reapareceu nos campos, custando a vida a um número de pessoas situado algures entre os 13 e os 30 milhões (sendo a primeira destas cifras admitida na própria China). O sonho de uma noite de verão lavara a uma catástrofe. Mas o maoismo não podia recuar, tanto mais que se consumara já a rotura com os soviéticos (ver texto mais adiante) e que as acerbas críticas ao «imperialismo americano» não permitiam outra saída que não fosse a fuga em frente. Entra-se assim na terceira fase da construção do regime, a da Grande Revolução Cultural Proletária, que é, só por si, tema de um outro trabalho desta revista.

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Taiwan, a disputada

Para Pequim, a grande ilha é uma província a reintegrar, como sucedeu a Hong Kong e Macau. Para os governantes locais, o futuro deve ser decidido ali

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por Helena F. S. Lopes

abitada durante milénios por populações austronésias, Taiwan era também uma paragem para pescadores chineses. No século XVII foi firmemente integrada em redes comerciais globais – não por portugueses, que lhe chamaram Formosa mas não se detiveram ali, mas por holandeses, que lá se estabeleceram. (Os espanhóis, embora menos influentes, também estiveram no norte de Taiwan entre 1626 e 1642). A colonização holandesa, entre 1623 e 1662, abriu a ilha aos migrantes chineses. Os europeus foram expulsos nesse último ano pelo estratega Zheng Chenggong (Koxinga), leal aos Ming, a dinastia que logo seria derrubada pelos manchus Qing. A proximidade de um reduto leal aos Ming gerou alarme e os Qing acabaram por estender o seu domínio a Taiwan em 1683. Mas, em 1895, após serem derrotados na I Guerra Sino-Japonesa, os Qing foram obrigados a ceder ao Japão a ilha e arquipélago de Pescadores, que ainda hoje pertence a Taiwan. A colonização japonesa duraria 50 anos, até ao final da II Guerra Mundial. Taiwan foi pensada pelos decisores nipónicos como uma colónia modelo, e o seu controlo não foi tão violento como na Coreia. Foi levado a cabo um ambicioso programa de obras públicas e industrialização, ao mesmo tempo que se aplacava a resistência popular. Mesmo assim, os taiwaneses eram cidadãos de segunda e as aspirações da elite a terem mais voz no governo local foram largamente ignoradas. 44 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Os Nacionalistas em Taiwan Com a derrota do Japão na II Guerra, os territórios que ocupara na China (incluindo Taiwan e Pescadores) passaram para a soberania do governo chinês, que na altura era o do Partido Nacionalista (Kuomintang), de Chiang Kai-shek. O pós-guerra foi traumático para Taiwan. A chegada dos Nacionalistas foi encarada com esperança após as provações sofridas durante o conflito, mas a resposta estatal foi afetada pela confusão económica e política do pós-guerra chinês e o início de uma guerra civil. Acusações de corrupção e «recolonização» e o ressentimento contra a exclusão de taiwaneses na administração explodiram em 28 de fevereiro de 1947 («Incidente 2-28»), quando um episódio de venda clandestina de tabaco gerou a contestação aberta, com locais a apoderarem-se da administração e violência nas ruas. Os Nacionalistas responderam com mão de ferro e instauraram a lei marcial. As autoridades sentiam medo e desconfiança, suspeitando que os taiwa-

A Guerra da Coreia (1950-53) mudou o rumo de Taiwan, assegurando o apoio dos EUA a Chiang Kai-shek, coisa em que Washington estava até então pouco interessada

neses fossem ainda leais aos japoneses e temendo infiltrações comunistas. Seguiu-se um longo período de «terror branco», que perseguiu também muitos chineses recém-chegados (os «continentais»). A Guerra da Coreia (1950-53) mudou o rumo de Taiwan, assegurando o apoio dos EUA a Chiang Kai-shek, coisa em que Washington estava até então pouco interessada. Os EUA deram assistência militar e económica. A Comissão Conjunta para Reconstrução Rural criou condições para que uma reforma agrária em Taiwan nos anos 1950 fosse bem sucedida, sem a violência verificada pela mesma altura no continente. Num território muito mais pequeno do que a China continental, os projetos de desenvolvimento colocaram Taiwan numa rota de crescimento económico. Mas será errado olhar para os sucessos obtidos como um mero produto americano, pois já era possível ver na China anterior à guerra ecos da visão tecnocrática de «modernidade» que o Kuomintang tentara implementar. Também os Nacionalistas imaginaram Taiwan como um modelo, uma «China livre» que os legitimasse interna e externamente. Mas essa «liberdade» era relativa: expressões de identidade locais, incluindo o uso de línguas que não o mandarim (que poucos ali falavam em 1945) foram abafadas, e quem advogasse a independência era perseguido. A guerra civil não acabou completamente em 1949 com a vitória de Mao, prosseguindo, ideológica e diplomaticamente, nas décadas seguintes. Houve também confrontos militares em ilhas no estreito de Taiwan. Os Nacionalistas evacuaram as Dachen em 1955, embora permanecessem nas Kinmen e Matsu. Duas crises à beira de um conflito nuclear ocorreram naquele ano e em 1958. Mas a divisão das «Chinas», como a das «Coreias», continuou na prática.

Isolamento e democratização Diplomaticamente, o regime de Chiang Kai-shek ficou cada vez mais isolado.

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CHINA // TAIWAN


O refúgio do general Chiang Kai-shek falando às massas. Em cima, sentado na pedra, com a mulher e o filho Chiang Ching-kuo, seu herdeiro político. Em baixo, posando entre o embaixador dos EUA, Patrick Hurley, e o líder chinês Mao Tsé-Tung

A sua resistência contra o Japão dera à China um lugar entre os «cinco grandes», com assento no Conselho de Segurança, mas foi rejeitada a ideia de que a sua república deveria ser a legítima representante da China na ONU. Em 1971, após anos de votações, a República Popular foi reconhecida como a China com direito a ter assento na ONU (Portugal votou a favor, mesmo tendo relações diplomáticas com a China de Chiang). A delegação nacionalista retirou-se antes do voto que iria expulsá-la. Segundo Jay Taylor, biógrafo de Chiang, este «tinha um pacto informal com Zhou Enlai» – com quem se manteve em contacto via intermediários: rejeitar qualquer representação de «duas Chinas» que levasse a reconhecer Taiwan como Estado independente. Os Nacionalistas sofreram outro revés em 1979, quando os EUA estabeleceram relações diplomáticas com a RPC. Os militares americanos retiraram-se e as relações com Taiwan passaram a

circunscrever-se às esferas económica e cultural, embora o fornecimento de armas defensivas continue a gerar tensões. O progressivo isolamento externo (hoje, só 14 países reconhecem Taiwan) foi acompanhado de mudanças internas. A prosperidade económica ajudou a superar o trauma de 1947 e beneficiou tanto os taiwaneses como os ditos «continentais». Quando os EUA cortaram relações, o Kuomintang tinha mudado e muitos dos seus quadros e membros eram taiwaneses. Chiang Kai-shek morreu em 1975 (um ano antes de Mao), passando a autoridade máxima para o seu filho Chiang Ching-kuo. Este abriu caminho à democratização, abolindo a lei marcial em 1987 e escolhendo como sucessor um taiwanês educado no Japão e nos EUA (Lee Teng-hui). As mudanças na China continental sob Deng Xiaoping abriram possibilidades de reaproximação. Famílias separadas reencontraram-se e, tal como

Hong Kong, Taiwan foi inspiração para a China da «reforma e abertura», incluindo a criação de zonas económicas especiais. Lee Teng-hui, presidente desde 1988, continuou o processo de democratização e foi reconduzido em 1996, nas primeiras eleições presidenciais livres. O Kuomintang já nem sempre ganha nas urnas, embora continue a ser um dos dois principais partidos. Os símbolos nacionais que trouxe para a ilha nos anos 1940 – como o nome República da China, a bandeira e o hino – continuam a ser usados internamente. A crise de Tiananmen, em 1989, afetou as relações entre Taiwan e a China, mas o afastamento da Guerra Fria não se repetiu. Contactos pessoais, profissionais e comerciais intensificaram-se. A RPC é hoje o maior parceiro comercial de Taiwan. Embora o futuro político das relações se mantenha em aberto, o statu quo é feito de complexas ligações e interações. VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // MAOISMO

Pequim e Moscovo em rota de colisão

A animosidade entre Mao e Khrushchev e divergências geoestratégicas estão na origem do cisma sino-soviético, que culmina num confronto armado entre as duas principais referências do «mundo socialista»

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Tsé-Tung deteta uma via terceiro-mundista em emergência –, permite-lhe reforçar a ideia de que a China pode caminhar «com as suas duas pernas». Mao acentua o afastamento através de argumentos ideológicos. O líder chinês rejeita a perspetiva de «coexistência pacífica» com o bloco ocidental desejada por Khrushchev, que em grande medida permaneceu ilusória, e o recuo soviético em Cuba (1962, no desfecho da crise dos mísseis) dá a última machadada à pouca confiança já existente. A URSS torna-se um concorrente económico e político.

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m 27 de fevereiro de 1963, o Renmin Ribao (Diário do Povo, o jornal oficial do Comité Central do Partido Comunista Chinês (PCC) publicou um artigo intitulado «De onde vêm as divergências? Resposta a Maurice Thorez [líder do PC Francês] e outros camaradas», que oficializava a «crise efetiva» nas relações entre Pequim e Moscovo. Através deste texto crítico, consumava-se a mais grave rotura no designado movimento comunista internacional, já abalado a partir de 1948 com um primeiro cisma, entre a Jugoslávia do marechal Tito e a União Soviética de Estaline. O ataque do líder soviético Nikita Khrushchev aos dirigentes da Albânia, em 1961, no XXII Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) foi outro sinal, um reflexo da «desestalinização» iniciada em 1956 com o «relatório secreto» sobre os crimes do estalinismo por si apresentado no XX conclave do partido soviético. A progressiva deterioração das relações sino-soviéticas terá efeitos à escala global e surge num período (início da década de 1960) em que a URSS dava sinais de enfraquecimento, apesar de Moscovo ter prestado de início um importante apoio militar e económico à China Popular. As diferenças de personalidade, a desaceleração da economia soviética e o contexto internacional – quando Mao

A desconfiança entre russos e chineses remontava à era de Estaline, mas não impediu a assinatura, em 1950, de um Tratado de Amizade e Assistência Mútua

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por Pedro Caldeira Rodrigues

A questão do Terceiro Mundo A atitude a adotar face ao emergente Terceiro Mundo surgiu como um dos principais pontos de atrito entre a URSS pós-Estaline e a China maoísta, e esteve no centro das declarações dos dois partidos quando o conflito sino-soviético se tornou conhecido publicamente, em 1960. A conferência de Bandung, na Indonésia independente, tinha ocorrido há poucos anos, em 1955. A questão da exportação da revolução para o Terceiro Mundo e o apoio aos movimentos de libertação nacional será decisiva no acentuar das divergências. Desde então, Pequim e Moscovo digladiam-se em torno do movimento comunista mundial e no universo afro-asiático. Apesar das reservas do Kremlin, Mao estava convencido de que o imperialismo ocidental podia ser reduzido a um «tigre de papel» caso se confrontasse com uma guerra generalizada nos países do Terceiro Mundo em vias de «emancipação».


Encontro de líderes Apesar do ar descontraído, a visita de Khrushchev à capital chinesa, em 1958, marcou uma viragem nas relações entre os dois países

Troca de argumentos

No entanto, a desconfiança entre russos e chineses, que assume máxima expressão com a «animosidade acrimoniosa» de Mao face a Khrushchev, já remontava ao período de Estaline, que terá definido o líder chinês como «um Tito asiático». Um fator que não impediu a assinatura, em 1950, de um Tratado de Amizade e Assistência Mútua. O período da Guerra da Coreia (1950-53) confirma a «simbiose» russo-chinesa. Mas a morte de Estaline, em março de 1953, implica alterações imediatas na diplomacia soviética, através da política de «coexistência pacífica» com o Ocidente. As reservas face à função do Partido soviético surgem no outono de 1956, com as crises polaca e húngara. Os chineses opõem-se a uma intervenção soviética na Polónia, mantêm uma atitude mais cautelosa face aos graves acontecimentos na Hungria e pronunciam-se por uma flexibilização das ligações de Moscovo com os países de Leste.

A degradação das relações pessoais entre Khrushchev e Mao também são um fator que acelera o divórcio sino-soviético. E na sequência das rivalidades pessoais surgem desacordos ideológicos, divergências estratégicas, disputas territoriais.

Diálogo na piscina Nos meios diplomáticos envolvidos assinala-se a importância do fator humano e de falsas percepções para esta deriva: a falta de sagacidade de Khrushchev, a sua inexperiência em assuntos internacionais, a incapacidade em perceber a importância geoestratégica da China (aliada às inquietações dos chineses sobre a segurança do seu país), as susceptibilidades após um século de domínio estrangeiro e os jogos do poder no interior do PCC. Mas a grande viragem nas relações sino-soviéticas ocorreu durante a viagem oficial de Khrushchev a Pequim, de 31 de julho a 3 de agosto de 1958. Uma visita mal preparada e que assinala o início de tensões duradouras.

«Este antro de perfeitos burgueses que é a clique de renegados revisionistas usurpa o poder na URSS, onde anulou as conquistas da grande Revolução Socialista de Outubro e na hora atual está empenhada em restaurar o capitalismo em todos os domínios (...). Na política externa, esta clique revisionista segue sistematicamente a linha contrarrevolucionária e, longe de apoiar o movimento revolucionário dos povos do mundo, trai-o e inclusive reprime-o: de uma política de chauvinismo de grande potência e de egoísmo nacionalista, evoluiu para uma política social-imperialista e neocolonialista efetuada em colaboração com o imperialismo americano com o qual procura partilhar o mundo (...).» ‘Diário do Povo’, órgão oficial do PCC, 9 de janeiro de 1969

«Apesar das nossas próprias dificuldades, (...) investimos na China somas consideráveis. (...) Por instigação de Mao, os chineses começaram a afirmar que a distribuição de bens materiais em relação com a quantidade e a qualidade do trabalho fornecido, tal como era proposto pelos soviéticos, era um princípio burguês. Mao também declarava que a coexistência pacífica era um conceito pacifista burguês. (...) O seu chauvinismo e a sua arrogância provocavam-me arrepios de frio nas costas. De seguida, a imprensa chinesa, inspirada por Mao, começou a proclamar que Vladivostok estava em território chinês.» Nikita Sergeevich Khrushchev, Khrushchev remembers, Boston, Little Brown, 1970

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CHINA // MAOISMO

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O conflito sino-soviético atingirá o auge no verão de 1969, com os graves confrontos armados entre os dois exércitos nas regiões fronteiriças

Momento de propaganda Jovens albaneses folheiam uma revista fazendo a apologia da Revolução Cultural

Albânia, a minúscula China Bem longe da China, na Europa balcânica, houve nas décadas de 1960 e 1970 um país tendencialmente maoísta e pró-chinês: a Albânia. Para entender o que se passou é preciso recuar até ao final da II Guerra Mundial, quando, depois da eliminação dos ocupantes italiano e alemão, o comunista Enver Hoxha, comandante-chefe do exército clandestino de libertação nacional, passou a chefiar o governo provisório. Em 1945, os comunistas eram legitimados por voto popular e assumiam o poder em Tirana, a capital. A recém-criada República Popular da Albânia adotou inicialmente o modelo da União Soviética (URSS), o que a levou a afastar-se da Jugoslávia de Tito. Mas em 1961 dar-se-ia a rotura com a URSS «revisionista», liderada por Khrushchev. Isolado no leste da Europa, o regime de Tirana passou a aceitar a orientação de Pequim. À medida que ia construindo os seus mais de 700 mil abrigos antinucleares, em plena Guerra Fria, o país abandonava, em 1968, o Pacto de Varsóvia. Um ano antes, assumia-se como o primeiro Estado ateu do mundo, através da proibição das religiões e da demolição dos respetivos templos. Em dezembro de 1976, a nova Constituição declarava a Albânia uma República Socialista Popular. O relacionamento com o amigo chinês viria, contudo, a esfriar a partir de 1978. Numa caricatural reedição do conflito sino-soviético, a Albânia acusou a China de praticar uma política revisionista, com o abandono da luta de classes e da perspectiva revolucionária. Mobilizou, mesmo, contra Pequim os grupúsculos maoístas espalhados pelo mundo e que os dirigentes chineses não levavam em consideração. Inevitavelmente, a rotura deixou a Albânia ainda mais isolada. Enver Hoxha morreu em abril de 1985, mas só no final da década, quando os fragmentos da queda do muro de Berlim atingiram a Europa oriental, é que o governo tentou democratizar-se e reatar as relações com o exterior. A insatisfação popular, resultante do agravamento da crise económica num dos países mais pobres da Europa, motivou os albaneses a protestarem nas ruas. Em 1991, as televisões transmitiram as imagens do derrube da estátua de Hoxha no centro de Tirana. Coube a Ramiz Alia, o sucessor, criar as bases para uma democracia multipartidária, uma tarefa nada facilitada pelas dificuldades económicas e pela escalada de violência na província do Kosovo, que no final da década de 1990 obrigou milhares de kosovares de etnia albanesa a refugiarem-se na Albânia. C.T.

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Khrushchev é acolhido friamente, e apesar de ser um fraco nadador tem de manter parte das conversações com Mao numa piscina, com uma boia à roda da cintura. O «Grande Timoneiro» volta à carga a propósito de Estaline, acusa o líder soviético de uma decisão unilateral que atinge a autoridade e prestígio de todos os partidos comunistas, reprova a condenação dos crimes do estalinismo e diz que Estaline permanecerá «um grande líder comunista». A política de abertura de Moscovo face a Washington acentua as inquietações em Pequim pela forte presença militar norte-americana no Extremo Oriente. Mas as tensões sino-soviéticas estavam longe de se resumirem a desacordos estratégicos. A nível interno, Mao enfrentava problemas crescentes. Em abril de 1959, um mês após os tumultos em Lhassa e a rebelião no Tibete, os seus poderes são reduzidos e cede inclusive o posto de presidente a Liu Shaoqi. Para consolidar o seu poder e reafirmar a sua autoridade, recorre em simultâneo à radicalidade ideológica e à exaltação do sentimento nacionalista. Após a sua histórica visita aos EUA, em 1959, Khrushchev faz escala em Pequim para assistir às celebrações do X aniversário da Revolução Popular. A perspetiva de um novo impulso nas relações bilaterais esfuma-se em definitivo. No desfile do 1º de Outubro, Mao e Khrushchev estão na tribuna lado a lado, mas na conversa a dois Mao considera que as posições do PCUS equivalem a um


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««revisionismo moderno». É a primeira vez que utiliza este termo na presença de Khrushchev. De seguida, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Chen Yi, denuncia o «chauvinismo de grande nação» que atenta «contra a solidariedade e objetivo comum dos países socialistas». Quando as críticas se tornam públicas, na primavera de 1960, os soviéticos reagem com virulência. Em julho, perante o CC do PCUS, Khrushchev qualifica a contribuição teórica de Mao de «baboseiras» e sugere que o culto da personalidade na China assumia «formas perigosas». A direção soviética adota duas decisões que consumam a rotura: convoca uma conferência internacional de 81 partidos e movimentos comunistas na ideia de forçar os chineses a reconhecer os seus erros, e ordena o regresso de todos os conselheiros soviéticos na China. A retirada de 1600 especialistas e a anulação de 2257 projetos de cooperação desferem um duro golpe à economia chinesa. Esta atitude abrupta de Khrushchev agrava o pendor nacionalista dos líderes chineses, apanhados de surpresa.

Combate nas fronteiras Nesse momento, endurecem as denúncias, agravam-se as tensões, sucedem-se os incidentes territoriais e as manifestações frente às embaixadas dos dois países. Os chineses acusam os soviéticos de

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A sombra de Estaline Dois homens transportam a fotografia do antigo líder da URSS, em Pequim. O seu desaparecimento agravou a tensão entre os dois regimes comunistas

Tensão na fronteira Militares soviéticos abrem fogo contra posições chinesas, em 1969

ausência de ardor revolucionário no Terceiro Mundo, de ajuda insuficiente aos movimentos de libertação, crítica justificada nos casos da Argélia, Laos e Vietname. Até 1964, o ano em que Khrushchev é afastado do poder por Leonid Brejnev, a política soviética face às lutas de libertação nacional vai manter-se prudente. Nesta deriva, Pequim decide contestar o traçado das fronteiras com a URSS. Ao considerar que as fronteiras chinesas não estavam delimitadas, Mao exige a restituição dos territórios «litigiosos». Em 1963, os guardas soviéticos registam mais de 400 violações de território, envolvendo 100 mil civis e militares chineses.

A invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em agosto de 1968, tem um profundo impacto na China e acentua a retórica de Pequim. O conflito sino-soviético atingirá o auge no verão de 1969, com os graves confrontos armados entre os dois exércitos nas regiões fronteiriças atravessadas pelos rios Amour e Oussouri. A URSS «social-imperialista» é eleita pelo PCC como «o principal inimigo» dos povos do mundo. Paradoxalmente, esta posição também implicará uma viragem na política externa de Pequim, que nos inícios da década de 1970 regista uma progressiva aproximação ao «imperialismo ocidental», em particular aos EUA. VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // MAOISMO

Denunciando os ‘defensores da via capitalista’ Denominação dada a quem se vergasse à «pressão das forças burguesas»

Revolução Cultural, a última batalha de Mao

Desencadeada em 1966 por Mao com a ajuda das Forças Armadas, serviços secretos e os jovens da Guarda Vermelha, esta convulsão inseriu-se numa luta fratricida pelo poder em nome da pureza ideológica

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jovem Yu Xiangzhen tinha 13 anos quando Mao Tsé-Tung lançou a «Grande Revolução Cultural Proletária», em maio de 1966, há 53 anos. Adolescente, estava no primeiro ano de um liceu de Pequim. Por ordem do governo central, as aulas foram suspensas. «De seguida, deveríamos criticar e humilhar os nossos 50 V I S Ã O H I S T Ó R I A

por Pedro Caldeira Rodrigues professores. Foi como tudo começou», recordou esta antiga guarda vermelha num testemunho divulgado em 2016. «Em julho, foi organizada uma primeira reunião na nossa escola. Uma camarada mais velha despejou metade de um enorme recipiente com cola sobre a cabeça da diretora. Estava muito calor, o cheiro era insuportável. Regressei a cor-

rer ao dormitório. Não sei porquê, mas lembro-me deste pormenor.» Zhang Jilan, sua professora, foi acusada de ser uma «mulher fria, sem coração». Insultada e humilhada, foi enviada para uma quinta com uma vacaria, para «reeducação». Yu Xiangzhen manteve vivas as memórias da «Grande Revolução Cultural


FOTOS:AKG/FOTOBANCO

“Campanha contra Confúcio e Lin Biao” Camponeses leem um dazibao (jornal de parede) com as acusações

Proletária», até chegarem os tempos da comiseração. Contou que só voltou a rever a sua antiga professora em 1990, durante uma excursão dos antigos alunos e professores à Grande Muralha. E pediu formalmente desculpas a Zhang Jilan, então já octogenária. Perguntaram-lhe o que tinha acontecido no seu desterro campestre. «Não foi assim tão mau», respondeu. «Por vezes era obrigada a rastejar no chão como um cão.» Ao escutar o testemunho, Yu Xiangzhen confessa ter chorado pela forma leviana como contribuiu para destruir uma vida, ainda sem ter completado 14 anos. Zhang Jilan morreu dois anos depois desse reencontro, mas muitos outros homens e mulheres apanhados no furacão da Revolução Cultural tiveram um final menos digno e não resistiram ao turbulento período que abalou o país sobretudo desde maio de 1966 até finais de 1967 mas

Humilhação A exibição pública de «antirrevolucionários» era prática corrente

que na prática se prolongou por dez anos, até à morte de Mao. O número de vítimas nestes dez anos, decerto vários milhões, ainda permanece tema de polémica.

Os primeiros sinais A Revolução Cultural tem sido descrita por diversos académicos como uma luta

pelo poder entre os diversos grupos de influência que partilhavam desde 1959 a direção da República Popular da China (a esquerda maoista com as suas diferenças, o sistema «direitista» do Partido e do Estado e as Forças Armadas, que estavam longe de constituir uma entidade homogénea). VISÃO H I S T Ó R I A

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Para o líder da Revolução chinesa, ela é justificada pela sua perceção sobre a emergência de uma «nova burguesia» em formação no seio do Partido Comunista da China (PCC) e no aparelho de Estado, que Mao julga poder neutralizar pela mobilização popular. Em simultâneo, o conflito com a União Soviética, que se tinha consumado a partir de 1960, é considerado um segundo aspeto «do mesmo combate». Em diversos pontos precisos, a intenção de Mao consistia em aprofundar o fosso entre a URSS de Khrushchev e a China através destes movimentos de massas. Os primeiros sinais surgem no outono de 1965, quando elementos próximos de Jian Qing, a mulher de Mao, polemizam contra os escritores que entre 1960 e 1962 tinham criticado o «Grande Timoneiro». O movimento alastra às escolas e universidades, surgem apelos ao «domínio sem partilha» do pensamento de Mao. Este, afastado da presidência na sequência do desastre do Grande Salto em Frente (1958-1961) e retirado da capital, manobra à distância. Proclamada oficialmente em 8 de agosto de 1966, a «Grande Revolução Cultural Proletária» assentará de início nesse movimento de contestação no qual se destacam Jiang Qing e aliados,

© BRUNO BARBEY/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO

CHINA // MAOISMO

Ópera revolucionária As coreografias com Guardas Vermelhos estiveram muito em voga durante a Revolução Cultural

representantes da ala «ultraesquerdista» do PCC. O movimento foi desencadeado por um dazibao, jornal mural com tradições na China imperial e que exprimia a opinião popular. Redigido por quadros radicais da Universidade de Pequim, incluindo a professora de filosofia Nie Yuanzi que depois se tornará crítica do movimento, tornou-se uma das ferramentas da propaganda maoista. Afixado em 25 de maio de 1966 na parede da cantina, a petição atacava a direção da universidade, denunciada como «um ninho de revisionistas à Khrushchev», incapaz de conduzir a Revolução Cultural convocada por Mao para denunciar «os representantes da burguesia infiltrados» no Partido e nas instituições. «A revolução e Mao estão em perigo», alertavam. O «Grande Timoneiro» ainda mantinha a presidência do Partido, mas estava afastado dos assuntos correntes. De imediato, é formado o Grupo Central

Assunto tabu Mais de 50 anos depois, a Revolução Cultural permanece um assunto tabu na sociedade chinesa. Os manuais escolares apenas a mencionam, sem muitos detalhes. Em 1981, a China reconheceu, no entanto, que ela originou «as maiores perdas para o Partido, o Estado e o povo desde a fundação da República Popular» em 1949. Apesar desta declaração, nunca se registou um debate público alargado sobre a Revolução Cultural e os chineses evitam referências ao tema, mesmo em família. Um movimento que também seduziu importantes franjas da elite europeia, que viram no maoismo a alternativa à «capitulação» de Moscovo, sem se aperceberem das profundas consequência da Revolução Cultural. Numerosos estudos, análises e documentários têm sido dedicados a este período, para tentar entender como um dos movimentos mais perturbadores do século XX se tornou uma referência que mobilizou gerações pelo mundo. Os distúrbios vão prolongar-se-iam até à morte de Mao, em 9 de setembro de 1976, na sequência do conflito entre a sua mulher, Jiang Qing, que tenta relançar a Revolução Cultural, e o primeiro-ministro Zhou Enlai.

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da Revolução Cultural, que integra Jian Qing e Kang Sheng, chefe dos serviços secretos, que se transformará num órgão paralelo de poder. Centenas de dazibaos surgem de imediato nas escolas e nas universidades. O movimento torna-se imparável. Equipas de trabalho enquadram a contestação estudantil e procuram canalizar os ataques da juventude filiada nos Guardas Vermelhos contra quem é apontado como inimigo da Revolução: os antigos «direitistas», gente de «origem capitalista», quem no passado criticou o Partido ou Mao, também durante a Campanha das Cem Flores. Estes bodes expiatórios são os primeiros alvos da Revolução Cultural. Quando regressa de forma espetacular a Pequim, em 16 de julho, após mergulhar e nadar no rio Iangtsé, Mao fornece total liberdade de ação aos Guardas Vermelhos e ordena «fogo sobre o quartel-general!». Iniciava-se a guerra aberta contra os «revisionistas contrarrevolucionários» que se tinham «infiltrado» no Partido, no Estado, nas Forças Armadas e nos meios culturais. Mao fixa os objetivos do movimento: «Combater e esmagar os que detêm postos de direção mas se comprometeram com a via capitalista.» O movimento enaltece os «jovens revolucionários» e apela à «mobilização das massas sem reserva e com audácia». Liu Shaoqi, eleito presidente do país em 1959, e Deng Xiaoping, representantes da «ala direita pragmática» na liderança do PCC e que tinham manifestado a sua oposição à política maoista durante o Grande Salto em Frente, em 1958, são acusados de «revisionismo» e de sacrificar a ideologia aos imperativos da reformulação económica.


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Aula ao contrário Alunos «reeducam» o professor lendo-lhe pensamentos de Mao

O Livrinho Vermelho Entre 18 de agosto, a primeira grande concentração, e novembro de 1966, mais de 10 milhões de Guardas Vermelhos, fardados e agitando o pequeno Livro Vermelho, desfilam por Tiananmen, a grande praça de Pequim, e idolatram a sua referência «divina» num ato de vassalagem revolucionária que afinal recordava tradições seculares da China imperial.

Na sua tribunal anexa à Cidade Proibida, o «Grande Timoneiro» saúda estas concentrações de massas onde o fervor atinge o paroxismo. Jovens de todas as idades tornam-se Guardas Vermelhos com o seu fardamento próprio e agitam o livrinho com as citações de Mao, uma recolha de fórmulas que devem ser decoradas e repetidas em todas as ocasiões num oráculo infalível.

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Deng Xiaoping é sujeito a uma reeducação forçada e Liu Shaoqi morre na prisão em 1969. O marechal Peng Dehuai, outro destacado dirigente, também pagará pelas suas críticas. Após ser derrotado na conferência de Lushan, em 1959, será sujeito a torturas, vexames e humilhações públicas. Também morre sob detenção em 1974 e terá uma reabilitação póstuma em 1978, como muitas outras vítimas do movimento. Em contrapartida, o chefe das Forças Armadas, marechal Lin Piao, chefe do Exército Popular de Libertação (as Forças Armadas), emerge como o delfim de Mao, orquestra o culto da personalidade dirigido ao líder e coordena as diretivas para a educação e produção – até «cair em desgraça».

Depois do combate Guardas Vermelhos mortos por elementos do clandestino Movimento Democrático da China

Em nome do combate aos «quatro arcaísmos» (velhas ideias, velha cultura, velhos costumes e velhos hábitos), com o objetivo de eliminar tudo o que fosse considerado uma herança da «mentalidade feudal», saqueiam-se templos, queimam-se livros e móveis antigos, encerram-se museus, proíbe-se o ballet clássico,

impõem-se normas sobre o vestuário e os comportamentos, humilham-se publicamente intelectuais como Lao She, o célebre escritor de Pequim que se suicida nesse verão de 1966. Os jovens rebeldes, exortados e manipulados pelos mentores do movimento e movidos pelo ideal de uma «sociedade de iguais», atacavam não apenas as autoridades políticas, económicas e os quadros do Partido e do Estado, mas também os fundamentos em que assentava a vida social. Após a primeira concentração gigante de agosto, multiplicam-se as violências. A arrogância instala-se entre esta juventude fanatizada. O Livro Vermelho, editado em 1964 por iniciativa de Lin Piao, torna-se na única referência sagrada.

Exorcizar os demónios Em Pequim, os Guardas Vermelhos viram-se contra os suspeitos habituais do regime. A polícia recebe ordens para não intervir e em muitas ocasiões será cúmplice dos vexames e das mortes. Sabiam de cor a frase do soldado Lei Feng, um «ícone comunista da abnegação» e que tinham aprendido na escola: «Tratar os inimigos de classe tão friamente como o inverno.» VISÃO H I S T Ó R I A

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Estudantes Na Universidade de Xangai, entoam o tema As Obras do presidente Mao são distribuídas entre nós. Na de Pequim (página ao lado), aprendem a manejar armas de fogo

uma insígnia com a efígie do presidente Mao, um sol vermelho ergue-se no nosso coração.» Milhões de chineses por toda China urbana e rural tornam esta e outras frases, transportadas junto do corpo, a bíblia do seu quotidiano.

Regresso à ordem As convulsões nas esferas dirigentes do PCC a partir de 1966 recordam as grandes purgas dos anos 1930 e que permitiram a Estaline reforçar o seu poder pessoal na União Soviética ao dizimar os quadros do Partido e da administração civil e militar. Estaline conduziu esta operação prescindindo do apelo às massas e ao Exército, mas apenas com a ajuda da sua autoridade e da polícia.

Na China, o processo foi diferente. Este período permite, paradoxalmente, uma inédita liberdade de imprensa, em particular através dos dazibaos, mas que será sufocada, assim como todas as manifestações artísticas que escapem à norma. Novas vagas de «rebeldes» são instrumentalizadas por Jiang Qing e apoiantes, dividindo os Guardas Vermelhos e as famílias, impondo fações rivais por todo o país. Todos se reclamam de Mao, de verdadeiros herdeiros da pureza ideológica, e desencadeiam-se batalhas intestinas contra os «usurpadores». Os milhões de Guardas Vermelhos acabam por escapar a qualquer controlo, num processo de discussão e ação que se pretendia permanente. As grandes cidades são paralisadas por greves e confron-

DATAS DE UM FURACÃO 1966

1967

1968

Em 16 de maio, uma circular difundida no PCC denuncia os «elementos burgueses». Em 13 de junho, as escolas entram de férias para que os estudantes participem na Revolução cultural. Surgem os Guardas Vermelhos, que em 18 de agosto promovem uma colossal concentração em Pequim

No final do ano tem início a repressão contra os Guardas Vermelhos

Começa a deportação para os campos de 16 a 20 milhões de pessoas

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Em paralelo, o Partido desmorona-se sob o assalto das «massas» fanatizadas. Os «comités revolucionários», os «órgãos provisórios da Revolução Cultural» que pretendem dirigir o «combate antiburocrático» substituem a administração e assentam na tripla aliança entre as massas, os quadros revolucionários e os representantes das Forças Armadas. Mas vão digladiar-se entre si em nome da «pureza ideológica». Em plena vaga purificadora, denotam-se os primeiros reflexos de sobrevivência. A crítica e a autocrítica imperam em todos os setores da vida social. Os quadros caídos em desgraça são exibidos às massas, curvados, com cartazes ao pescoço com frases insultuosas e barretes de papel pontiagudos na cabeça. Milhões de pessoas são atingidas pela tentativa de Mao de impor os princípios mais radicais e utópicos do seu ideal e exorcizar os «demónios nefastos». Quando o movimento atinge o auge tenta-se afastar as elites e eliminar todas as desigualdades salariais: as direções das fábricas são substituídas e o ensino reestruturado, das escolas às universidades. O comportamento político passa a ser o primeiro critério de avaliação. A política e a ideologia sobrepõem-se a tudo. «Se o barco enfrenta a tempestade, a ideologia condu-lo ao porto», dirá o marechal Lin Piao. As estatísticas oficiais revistas por historiadores indicam 100 a 200 mortos por dia em Pequim nos últimos dias do mês de agosto de 1966. Promovem-se deportações em massa para «campos de reeducação» devido à «má origem de classe» dos visados ou de estes se «alienarem do povo». Os suicídios multiplicam-se, um número infindável de vidas é destruído. Esta vaga de «justiça revolucionária» alastra de seguida aos campos, dirigida aos membros das «cinco categorias negras» (proprietários de terras, camponeses ricos, contrarrevolucionários, direitistas e maus elementos). «Ao usar

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CHINA // MAOISMO

1969 O IX Congresso do PCC, em abril, reafirma a função dirigente de Mao Tsé-Tung e designa Lin Piao, um dos promotores da Revolução Cultural, como seu sucessor oficial. Travam-se confrontos armados entre a China e a URSS junto ao rio fronteiriço Oussouri


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tos de rua, e as desordens e as violências forçam Mao a pôr termo às turbulências da Revolução Cultural através da intervenção musculada do Exército Popular. Convocado no final de 1967 sob as ordens de Zhou EnLai, número dois na hierarquia do PCC, começa a restabelecer a ordem nas cidades. Após o breve período em que o movimento de massas escapou ao controlo do Partido, do Estado e dos militares, Mao põe termo às turbulências da Revolução

1971 A República Popular da China é admitida na ONU em 25 de outubro, no lugar de Taiwan, e torna-se membro permanente do Conselho de Segurança. Lin Piao, acusado de conspiração contra Mao, morre num acidente de aviação

1972 O presidente dos EUA, Richard Nixon, visita a China entre 21 e 28 de fevereiro; Washington reconhece que Taiwan faz parte da China (comunicado de Xangai). A China restabelece as relações diplomáticas com o Japão

Cultural e, a partir de janeiro de 1968, asfixia um movimento que ele próprio, sua mulher e um núcleo restrito tinham desencadeado. Por sua ordem, Lin Piao promove o exílio forçado para os campos de cerca de 17 milhões de Guardas Vermelhos, na generalidade jovens diplomados, e confia-os ao cuidados dos camponeses e das suas tradições. Seria a vez de eles serem «reeducados», enquanto em Pequim se procedia à «reconstrução» do Partido.

1973

1976 Morre Mao Tsé-Tung e terminam os confrontos entre fações, encerrando-se a Revolução Cultural

São reabilitados os dirigentes ostracizados durante a Revolução Cultural; Deng Xiaoping retoma o seu lugar no Comité Central do PCC

A Revolução Cultural foi um dos períodos mais traumáticos da história contemporânea chinesa. Toda uma geração, incluindo milhões de «jovens instruídos», ficou marcada para sempre. No rescaldo deste processo, 95% de todos os antigos dirigentes e quadros das fábricas regressam aos seus postos, após terem sido perseguidos e expulsos, mas passam a integrar direções colegiais. As obras clássicas, os «livros envenenados do passado» que deixaram de ser publicados, regressam progressivamente. A repressão, porém, não acompanhou estes novos ventos: por uma simples «afirmação reacionária» uma família inteira ainda podia ser detida. Esta fase termina em 1971, quando Lin Piao, acusado de conspiração, foge num avião que se despenha sobre a Mongólia. O Partido pode restaurar e seu poder e diversos dirigentes proscritos, com Deng Xiaoping na primeira linha, retomam o controlo do país. Deixaram de existir nas ruas e praças os dazibaos que cobriam os muros, as lojas e mesmo os passeios, escritos por gente diversa e dirigidos às massas mais simples. Desaparecem as insígnias e o Livro Vermelho, mas o que sobretudo se esvai são certas formulações teóricas sobre a «autoridade absoluta» do pensamento de Mao, definido como «o marxismo que atinge um nível superior mais desenvolvido». E esvaiu-se a fraseologia revolucionária que tinha servido de justificação para a mobilização política permanente do maior movimento de massas que o mundo tinha presenciado. À semelhança de Yu Xiangzhen, o célebre guarda vermelho Tai Tetzé, que pronuncia o primeiro discurso em Tiananmen em agosto de 1966 ao lado de Mao, também reconhecerá os excessos: «Nesse período, os estudantes, operários e camponeses desconfiavam dos intelectuais e dos professores. Desprezavam todos, consideravam-se os únicos revolucionários autênticos. Mas os estudantes devem respeitar os professores e estes devem respeitar os estudantes.» VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // OPINIÃO

Quando o maoismo se fez português

Durante as décadas de 1960 e 1970, surgem um pouco por todo o mundo organizações inspiradas por dois momentos sucessivos: o conflito sino-soviético e a Revolução Cultural chinesa

MIGUEL CARDINA é investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e autor do livro Margem de Certa Maneira – O maoismo em Portugal, 1964-1974

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por Miguel Cardina

lugar do fenómeno maoísta nas décadas de 1960 e 1970 constitui um dos aspetos recorrentes nos estudos sobre a época. Apesar disso, a sua evocação permanece tingida por um conjunto amplo de caricaturas e lugares-comuns. Em boa parte dos lugares onde teve expressão, o ativismo maoísta é hoje entendido como uma espécie de estágio juvenil – ou uma «história louca», como se diz no subtítulo de um livro sobre o maoismo francês (1) – a anteceder uma posterior acomodação nas elites. O modelo imaginado de percurso nesta área é o do antigo militante hoje dotado de projeção mediática ou funções governativas, o que é muito evidente em Portugal na atenção dada às histórias de empenhamento na juventude de um mesmo punhado de figuras públicas de relevo. Durante as décadas de 1960 e 1970, surgem um pouco por todo o mundo um conjunto de organizações inspiradas por dois momentos sucessivos: o conflito sino-soviético e a Revolução Cultural chinesa. A primeira vaga maoísta coincidiria assim para o dissídio entre chineses e soviéticos, desencadeado na sequência do XX Congresso do PCUS. A estratégia soviética da «coexistência pacífica» era criticada pelos chineses por mitigar a separação entre comunismo e capitalismo. A divergência levaria à rotura entre os dois países e ao surgimento em diferentes lugares de pequenos coletivos «marxistas-leninistas» (m-l) alinhados com a China. Surgidos ao longo da primeira metade da década, a estruturação destes primeiros grupos maoístas (ou «marxistas-leninistas», como então se designavam) resultou quase sempre de cisões dentro dos Partidos Comunistas pró-Moscovo ou em organizações a eles afetas. Em Portugal, surgirá em 1964 a FAP (Frente de Ação Popular) e o CMLP (Comité Marxista-Leninista

Português), fruto de um esforço de clarificação ideológica com o PCP (Partido Comunista Português), levado a cabo essencialmente por Francisco Martins Rodrigues e sintetizado no Documento Luta Pacífica e Luta Armada no nosso Movimento e nas páginas do jornal Revolução Popular. O cerne das divergências assumidas deixava ecoar o conflito sino-soviético, mas centrava-se domesticamente na política de alianças a seguir (trabalho frentista com a burguesia democrática-liberal vs aliança operária-camponesa) e na estratégia a adotar para o derrube do regime (levantamento nacional vs derrube violento do regime). O grupo organiza-se no exílio francês – com ramificações em outros países – e decidirá pouco depois transferir os seus quadros mais destacados para o «interior». Como resultado de um vasto conjunto de detenções, este recém-inaugurado campo político viria praticamente a desaparecer.

O

s resquícios do CMLP transformaram-se em PCP (m-l) (Partido Comunista de Portugal Marxista-Leninista) em 1970, muito ancorados na emigração francesa e posteriormente com focos de militância no meio estudantil. Sob a liderança de Heduíno Gomes «Vilar», o grupo desenvolveu um «marxismo-leninismo» de matriz mais «clássica» e chegaria ao 25 de Abril dilacerado por um conflito entre as facções «Vilar» e «Mendes». Em 1973, surgiu a OCMLP (Organização Comunista Marxista-Leninista Portuguesa), através da junção de O Grito do Povo, ativo a norte do país, e O Comunista, presente em alguns círculos da emigração. Num contexto em que a guerra colonial se prolongava, a organização destacou-se pelo seu apelo à deserção com armas e por um tipo de linguagem informal que visava mimetizar as formas de expressão popular, sofrendo também uma crise interna nas proximidades do 25 de Abril.


Em 1970 surgiu o jornal O Bolchevista, dinamizado pelo Comité Marxista-Leninista de Portugal (CML de P), a URML (Unidade Revolucionária Marxista-Leninista) e os CCR (m-l) (Comités Comunistas Revolucionários Marxistas-Leninistas). A 18 de setembro de 1970 seria fundado o MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), que encontrará um eco particular na juventude estudantil lisboeta e em algumas franjas operárias e populares radicalizadas nestes anos finais da ditadura. O grupo tornar-se-ia conhecido por um forte ativismo anticolonial e pelo tom triunfalista dos seus documentos. Entenderá que nunca existira em Portugal um Partido Comunista digno desse nome, ao contrário do que defendia a linhagem m-l, que imputava ao PCP um processo de degeneração «revisionista» empreendido a partir da década de 1950.

N

ão é simples de aferir o impacto deste complexo maoísta no conjunto das oposições ao Estado Novo. Uma forma de o estimar consistiria na quantificação deste conjunto militante. A contabilidade oscilará entre círculos estritos onde é possível registar algumas centenas de militantes até uma identificação com estas estruturas que envolveu alguns milhares de jovens estudantes e intelectuais, operários radicalizados e emigrantes politizados. No seu conjunto, este foi o campo mais representativo da extrema-esquerda nos anos finais da ditadura. São várias as razões que o explicam. Em primeiro lugar, esse campo havia já estruturado, entre 1964 e 1965, via Francisco Martins Rodrigues, um corpus teórico coerente e alternativo ao PCP. Em segundo lugar, o maoísmo possuía uma peculiar capacidade de atração adicional por remeter para o imaginário de uma China igualitária e para os processos políticos realizados no então chamado «Terceiro Mundo». Em terceiro lugar, a sua vocação anti-imperialista transformava-o numa caixa de ressonância particularmente habilitada a conferir prioridade ao combate anticolonial. Com o 25 de Abril, a possibilidade de ação política legal e os processos de transformação social que então se desencadeiam abrem uma nova fase para estas organizações. Operam-se vários arranjos organizativos neste campo, sendo o mais relevante o que leva à formação do PCP (R), antecedido pela criação da sua frente de massas, a UDP (União Democrática Popular). Esta área estabelecerá relações formais com

a Albânia e conseguirá o feito de eleger um deputado para a Assembleia Constituinte, e posteriormente em outras eleições que se seguirão. Quanto ao MRPP, manterá logo a seguir ao 25 de Abril um estilo arrojado de intervenção política, muito marcado pelo recusa do embarque de soldados para as colónias (numa altura em que as independências ainda não estavam reconhecidas), por ataques aos poderes militares (o que seria usado como justificação para ter sido impedido de concorrer à Constituinte e como pretexto para a prisão de 432 militantes a 28 de maio de 1975) e pela tentativa de contrariar a hegemonia que o PCP ia procurando construir. Se até ao 25 de Abril os diferentes grupos maoístas ganharam preponderância no movimento estudantil e em certas franjas juvenis, populares e intelectuais, entre 1974 e 1976 a sua influência aumentou, mas nunca foi genericamente equiparável à de um PCP prestigiado pelos largos anos de clandestinidade e capaz de aumentar rapidamente o seu corpo de militantes e simpatizantes. O campo «marxista-leninista» – ou seja, maoísta – seria, além disso, um campo bastante diversificado, marcado por uma forte concorrência e animosidade, o que ocasionará por vezes intensos confrontos físicos entre militantes de diferentes grupos. Hoje em dia, o MRPP mantém-se como um resquício organizativo de outros tempos. A UDP foi quem resistiu melhor a este processo de erosão continuada, vindo a participar, em 1999, na formação do Bloco de Esquerda.

NO SEU CONJUNTO, OS DIFERENTES GRUPOS MAOISTAS FORAM O CAMPO MAIS REPRESENTATIVO DA EXTREMA-ESQUERDA NOS ANOS FINAIS DA DITADURA

1) Christophe Bourseiller (1996), Les maoïstes. La folle histoire des gardes rouges français. Paris: Plon VISÃO H I S T Ó R I A

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À procura do Homem Novo

Viveram anos na China revolucionária. Conheceram o país por dentro, voltaram com memórias gratas. E, no entanto, qualquer coisa dentro deles, a meio caminho, se quebrou

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por Emília Caetano

ilas intermináveis de chineses aguardavam vez para um último adeus a Mao, agora ali exposto no Palácio do Povo, na Praça Tiananmen. Ao longo de uma semana, por lá terá passado cerca de um milhão de pessoas. E, no entanto, a notícia da morte do líder, a 9 de setembro de 1976, não apanhara o país de surpresa, conhecido que era o seu estado de fragilidade. Adélia Goulart, que ali vivia há um ano, não pode deixar de comparar o peso da solenidade das cerimónias fúnebres de Mao com as reações emotivas que causara, oito meses antes, a morte de Zhou Enlai (Chou-En Lai): «O país inteiro chorou. Havia pessoas a soluçar, abraçadas a árvores.» Ela e o marido, João Cláudio Costa, estavam ali em missão do Partido Comunista de Portugal (marxista-leninista), PCP (ml), para trabalharem nas Edições de Pequim em Língua Estrangeira, o coração da Agit-Prop da China revolucionária, de onde saíam para o mundo as obras de Mao e as revistas A China em Construção e Pequim Informa. No caso dela, ia sobretudo ajudar a formar tradutores. Entre os estrangeiros que ali trabalhavam era voz corrente que Mao «já não devia mandar nada». Ou perto disso. Sofrera há algum tempo um AVC e era visível o seu estado de fragilidade, quando a televisão o mostrara, menos de quatro meses antes, a receber o presidente do Paquistão, Ali Bhutto.

58 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Numa altura em que Portugal ainda não reconhecera a República Popular da China, ela e o marido eram uma espécie de embaixadores informais, a quem os chineses recorriam em caso de visita de alguma personalidade portuguesa. A primeira imagem que ela conserva de Pequim é imprecisa. Tinham ido a Paris apanhar o voo da CAAC, a companhia aérea chinesa, chegaram ao destino já de noite e não se via quase nada. Tinha então 28 anos e recorda-se sobretudo de uma cidade cinzenta. Ou antes, onde as pessoas viviam atrás de muros cinzentos: «Da rua não se viam casas. Era preciso atravessar um muro, e só depois, bem lá para dentro, se chegava ao pátio.» Habitualmente três famílias viviam à volta de cada pátio, onde

O PCP (m-l) era o único partido português reconhecido pela China

tudo se centrava: «A vida era no pátio. Havia muita gente a cozinhar e os mais idosos contavam histórias às crianças.» E achou Pequim ainda muito rural. Como os outros estrangeiros convidados, Adélia e o marido ficaram alojados no Hotel da Amizade e, depois, levados em passeio até ao sul: «Fomos muito bem tratados. E o sul era mais animado, embora junto à estrada só se vissem casas pequenas. O meu marido até comentou que aquilo parecia África!» O confronto com a realidade não lhe abalou as convicções políticas. A construção do Homem Novo, um dos objetivos do marxismo, deveria ser entendida como um caminho. A percorrer sem desânimos. Mas quando, após a morte de Mao, foi preso o chamado Bando dos Quatro, o grupo radical de que fazia parte a viúva dele, Jiang Qing, viu até que ponto eram detestados, quando uma sua aluna comentou: «Quem me dera que a minha avó tivesse podido assistir a isto!» Em Pequim, Adélia e João Cláudio seriam pais pela primeira vez. Em 1977, João André tornar-se-ia «o primeiro português a nascer em Pequim depois da Revolução». Talvez por ser uma espécie de raridade, os anfitriões deram-lhe até um nome chinês, Ke Hua. Se Ke significa forte e próspero, Hua é o nome da China em mandarim. Como todas as estrangeiras ali em serviço, Adélia teve direito a uma ama, que se tornaria uma personagem importante na sua vida. «Ela dizia que devia a Mao estar viva e ter aprendido a ler.» Oriunda de uma família muito pobre, achava que teria sucumbido se a China não tivesse mudado de regime. E saber ler era para ela um assumido motivo de orgulho. Apresentava-se sempre com o Diário do Povo debaixo do braço.» A ama iria revelar-se uma trabalhadora incansável, para quem o casal pediria aumento, mas a ideia colidia com a China Revolucionária. Isso seria malvisto pelas outras amas, ao que alegavam os chineses, e o assunto morreu ali. Então

JOSÉ CARLOS CARVALHO

CHINA // MAOISMO


António Graça Abreu Na atualidade (à esquerda) e nos seus anos na China revolucionária

Adélia resolveu ter com ela algumas marevistas, sobretudo para se lançarem em nifestações de apreço, como mandar vir Angola e Moçambique.» de Hong Kong um ferro de engomar igual A China estava então numa fase de ao seu, já que os locais eram «uma chacopo meio cheio ou meio vazio, conforpa pesadíssima», totalmente anacrónica. me o ângulo geracional de que se olhasse. Novamente a ama se veria em trabalhos, Como este exemplo: «A ama achava que o devido à amabilidade do casal. Revistada país tinha evoluído muito desde o tempo à saída do Hotel da Amizade, ser-lhe-ia dos pais. Já os filhos dela pensavam que confiscado o ferro, que nunca recuperaria. evoluía pouco.» O preço das casas era Ao fim de dois anos, as lutas que se «ridiculamente baixo», o ensino e a saúde seguiram à morte de Mao no interior do gratuitos. «As pessoas tinham televisão e PC chinês começaram a atrapalhar as bicicleta e conseguiam até fazer algumas Cartas de Pequim, as crónicas que o casal poupanças, mas com um estilo de vida se comprometera a enviar semanalmente espartano.» para o jornal do PCP (m-l), o Unidade Com as necessidades básicas satisfeitas, Popular. «Passámos a ter de fazer uma muitos começavam já a sonhar. E chegou grande ginástica. Havia várias versões o dia em que o sonho se materializou e já não percebíamos quem era quem. Mais a mais, eles tinham aquela técnica do branqueamento, algumas pessoas desapareciam das fotografias.» Pior ainda, de Lisboa chegavam rumores de que também a situação no PCP (m-l) estava a ficar confusa. Tudo pesado, decidiram pôr fim às crónicas, desligar-se do partido e continuar em Pequim por conta própria. Dois funcionários do PC chinês ainda foram a sua casa saber o porquê do corte, mas o casal lá se manteve: «Eles Heduíno Gomes Com a delegação do PCP(m-l) estavam muito empenhados nas e dirigentes chineses, em Pequim

numa cozinha japonesa, que esteve em exposição num grande armazém. Uma ocasião que Adélia recorda assim: «Parecia uma nave espacial. Era moderníssima, com máquinas para tudo, incluindo para triturar o lixo. Os chineses, que adoram tecnologia, estavam fascinados.»

Sete a três, o legado de Mao Pequim pareceu-lhe «uma cidade triste», quando António Graça Abreu, em 1977, ali aterrou. Mas é-lhe difícil falar em dececão. Não fizera conjeturas, quisera partir à descoberta, ver como os seus ideais maoistas eram postos em prática. E chegava a tempo de grandes comemorações, já que, no dia seguinte, passava um ano sobre a morte de Mao. Tinha 30 anos e ia com a primeira mulher, Conceição Afonso, e os dois filhos pequenos, também com destino às Edições de Pequim. E se Graça Abreu achara a cidade triste, devia-se à penumbra em que mergulhava mal o Sol se punha: «Faltava eletricidade muitas vezes. A iluminação pública era escassa e, dentro das casas, só as lâmpadas de 20 velas eram autorizadas.» Apesar dos seus 6 milhões de habitantes, era então «uma cidade baixinha, de casas antigas. E com VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // MAOISMO

campos de cultivo a entrar por ali dentro, que mais tarde dariam lugar às avenidas e às grandes circulares. Era outra Pequim, com 3 milhões de bicicletas e quase sem automóveis. Os raros que existiam eram importados da Rússia e gastavam 30 litros aos 100 quilómetros. E, mais tarde, haveria de registar no seu Diário (Secreto) de Pequim: «Transparece uma ideia de pobreza, não de miséria.» A população fazia render as senhas de racionamento: «Havia cupões para muita coisa, fosse para arroz, fosse para roupa, os quatro ou cinco metros de algodão por ano a que davam direito.» Aquilo que faltava em luz sobrava em ruído. Pela cidade abundavam altifalantes, para divulgação de propaganda política, de canções revolucionárias ou de convites à ginástica. «Tudo isso começava logo às 6 da manhã, mas, felizmente, depois acabou.» O Hotel da Amizade era, por vezes, palco de desabafos sobre os excessos da Revolução Cultural, como os de atores agora reabilitados, que se queixavam sobretudo da viúva de Mao. Ele próprio, no entanto, continuava a ser uma memória imbeliscável. Deng Xiaoping era uma figura em ascensão, mas ainda não chegara o dia em que decretaria o «7 a 3», isto é, Mao fizera 70% de coisas positivas e 30% de negativas. Morto o «Grande Timoneiro» há um ano, abandonada a Revolução Cultural, o país encontrava-se em fase de estagnação. Por onde ir agora? «Os chineses começavam a ver o mundo de outra forma. Olhavam para Hong Kong, Macau e Formosa com certa inveja.» O termo modernização iria entrar no debate político.

João Cláudio Costa Entre chineses, na Grande Muralha

levara consigo outros dirigentes para um encontro de alto nível com os chineses, que lhes pediram especialistas para formarem tradutores. «Mantínhamos relações com a China desde 1964, ainda nos tempos do Comité Marxista-Leninista Português (CMLP), que antecedeu o PCP (m-l).» E Pequim iria manter-se fiel a esses laços, nunca reconhecendo como interlocutor outro dos grupos pró-chineses entretanto criados, nem sequer o MRPP, claramente maoista. Heduíno Gomes explica assim: «Nós é que éramos marxistas-leninistas. Tínhamos a organização típica de um partido comunista. E, internacionalmente, estávamos alinhados com a China. Todos os outros eram o que os franceses chamavam “les maos spontex”, os maoistas espontâneos.» Em Portugal, os campos estavam claros: «O nosso inimigo era o revisionismo soviético. Assim, tínhamos como aliados o PS, o PSD e até o CDS, que defendiam a democracia.» Levou à China militares como Pires Veloso, ou civis como Jaime Gama e Amaro da Costa. Heduíno era então o que hoje se chamaria um influencer, o homem a procurar

Embaixada do futebol Ao contrário daqueles camaradas, Heduíno Gomes, ou Vilar, o seu pseudónimo, nunca viveu na China. Mas, enquanto secretário-geral do PCP (m-l), o único partido português reconhecido pelos chineses, iria até lá, a partir de 1975, quatro vezes. Logo na primeira 60 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Heduíno Gomes tinha uma dupla missão: reatar relações diplomáticas e levar o Sporting à China

por quem quisesse abrir caminho até lá. E recorreram a ele desde as mais altas instâncias do Estado, até às aparentemente mais básicas. Um momento destacado desse trabalho de sombras envolveria o Sporting Clube de Portugal. Heduíno conta que um dia lhe apareceu um camarada, que colaborava no Jornal do Sporting, com uma missiva: João Rocha, então o presidente do clube, queria falar com ele. Em nova viagem a Pequim, em 1977, Heduíno seria recebido por Hua Guofeng, o sucessor de Mao, a quem transmitiria o interesse das autoridades portuguesas no avanço das relações diplomáticas com Pequim. E, já agora, também o Sporting queria ir jogar à China. A 7 de julho de 1978, a equipa do Sporting, que acabara de vencer a Taça de Portugal, aterrava em Pequim, formalmente a convite da Associação Democrática de Amizade Portugal-China, numa viagem a que os jornais portugueses deram enorme destaque. João Rocha levaria uma comitiva de 41 pessoas, entre jogadores, jornalistas, e convidados especiais. Entre estes ia Veiga Simão, ex-ministro da Educação antes do 25 de Abril de 1974 e que fora, depois, representante de Portugal na ONU, onde estabelecera relações cordiais com a delegação chinesa e chegara a conhecer o ministro dos Negócios Estrangeiros. Por isso, fora escolhido como portador de uma carta do então Presidente da República, Ramalho Eanes. O momento alto da viagem estava


guardado para o Estádio dos Operários de Pequim, com mais de 100 mil chineses entusiasmados, e que terminaria com o Sporting a vencer por 2-0 a seleção nacional chinesa. O general Chen Xilian, um dos vice-primeiros ministros, que combatera Chiang Kai-Shek e os japoneses, foi cumprimentar a equipa portuguesa e assistir a parte do jogo. Numa receção que ofereceria aos dirigentes da comitiva, lembrou que, um ano antes da ida de Nixon à China, em 1972, ali estivera uma equipa de pingue-pongue dos EUA. «Desta vez é uma equipa portuguesa do Sporting a chegar e traz uma bola bem maior.» Para os presentes ficaria subentendido que a aproximação entre Lisboa e Pequim estava para breve. Em janeiro de 1979 os EUA estabeleciam relações diplomáticas com a República Popular da China, seguidos, no mês seguinte, por Portugal. Ambos eram dos poucos países que ainda não o tinham feito.

Os ‘rabos de capitalismo’ Até que, numa bela manhã de 1980, já que o partido se reunia invariavelmente de manhã para reflexão, o PCP (m-l) chegou ao fim. O 8º Congresso sancionou a autodissolução, o que, ao que garante Heduíno, «nada teve a ver com a China». Apenas, cada um foi para seu lado. Para ele, a ideologia não resistiu às descobertas da biologia: «O papel da genética no comportamento humano era muito maior do que parecia. O Homem Novo conseguia-se pela educação, pelos valores que deviam passar de pais para filhos, mas não se transmitiam geneticamente. Havia ero. Quando sempre que recomeçar do zero. percebi isso, o marxismo acabou cabou para mim.» Em 1984 seria recrutado do por Mota Pinto para o PSD. Adélia regressou com o marido em 1980, depois de descobrir muito do melhor e do pior da China. Uma das memórias mais fortes que guarda arda foi a reação ao terramoto de Tangshan, ngshan, ngoliu em 1976, que praticamente engoliu uma cidade. Nos meses seguintes, ntes,

Sporting O general Chen Xilian cumprimenta a equipa, sob o olhar de João Rocha

o casal viveria, tal como os habitantes de Pequim, na rua, em tendas. Num prazo inacreditavelmente curto, as organizações de bairro, ajudadas pelo Exército, montaram uma autêntica cidade paralela, com escolas, bibliotecas e todos os serviços necessários. Durante esse tempo, não pagava o que comprasse: «Diziam que estávamos a sofrer com eles e, portanto, não nos podiam cobrar nada.» Mas vieram também a público descobertas trágicas, como a relativa a Dazhai, uma bandeira do regime quando ela chegara, um verdadeiro milagre agrícola. «Tanta gente morrera na abertura dos sulcos à mão, para mostrar que a força de vontade vence tudo. E, afinal, soube-se depois que o país já possuía as máquinas que poderiam ter feito aquele trabalho!» «Regressei a saber relativizar as coisas. Isso foi-me acontecendo aos poucos. O ser humano é o ser humano. Há gente boa e má em todo o lado e os chineses não são exceção.» E assim o casal voltou à pacatez da sua ilha, o Faial, nos Açores. Em maio de 1983 foi Graça Abreu a fazer a viagem de regresso, numa altura em que já havia arranha-céus em Pequim e se criavam centros comerciais e supermercados. Se dantes eram frequentes os cortes de eletricidade, agora debati-se a energia nuclear. Os terrenos de cultivo

que entravam pela cidade estavam a ser vendidos e construía-se já a terceira circular em torno da capital. Politicamente, também o mundo chinês mudara muito. Deng Xiaoping, que, após a morte de Mao, era quem «governava por trás da sombra ou do biombo», como se dizia, conseguira, em 1978, a maioria no Bureau Político e dominava a Comissão Militar. Dentro em pouco iria lançar a palavra de ordem «enriquecer é glorioso.» Em Pequim tinham florescido os chamados «mercados livres». Pelas ruas viam-se «carroças atrás umas da outras», de camponeses que vendiam um pouco de tudo, desde roupas feitas em casa, a artesanato e até porcelanas que tinham guardado escondidas. Mao nunca permitira pequenos negócios, nem sequer individuais. A isso chamava ele «rabos de capitalismo», pois seriam a porta de entrada de todo o sistema. No seu diário, Graça Abreu conta que um colega chinês lhe perguntou se estava satisfeito com as condições que encontrara. A resposta foi a de um jovem militante entusiasta: «Estou a dar o meu contributo para a construção do socialismo, do Homem Novo e de uma sociedade mais justa», ao que o colega comentou: «O camarada é ingénuo!» Com o tempo, tornou-se menos. tornou-s Ainda que a China se fosse afastando da d ideologia revolucionária, ele conseguira, no entanto, levar a con cabo a sua revolução pessoal. Se, mesm naquela altura, os casamenmesmo co estrangeiros continuavam tos com pro proibidos, após ano e meio a remo mover montanhas, Graça Abreu vol voltava para Lisboa casado com um chinesa. uma VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // MAOISMO

FERNANDO ROSAS

‘O grande contributo do maoismo foi a luta contra a Guerra Colonial’

O historiador e dirigente do Bloco de Esquerda foi um dos fundadores do MRPP Como chegou cá o maoismo? A cisão sino-soviética data do início dos anos 60 e a primeira cisão pró-chinesa no PCP iria ocorrer em 1963/1964, quando Francisco Martins Rodrigues saiu e criou o Comité Marxista-Leninista Português (CMLP), ligado à Frente de Ação Popular (FAP). Mas era uma fase pré-maoista, anterior à Revolução Cultural. Só a partir de 1970 esta segunda fase atingiria Portugal. Até aí não havia organizações maoistas propriamente ditas, defensoras do espírito da Revolução Cultural. Surgiram no rescaldo da grande desilusão com as eleições de 1969, organizadas por Marcelo Caetano. A quebra de expectativas de alguma mudança levou à radicalização geral da oposição. Começaram até organizações armadas – ARA, LUAR, Brigadas Revolucionárias - e apareceram grupos que se reivindicavam do maoismo, como o MRPP.

O que traziam de novo? Havia neste movimento duas linhas, a dos grupos ML e outros, que se consideravam herdeiros do património do PCP, enquanto o MRPP se definia como marxista-leninista-maoista e fazia o corte com o PCP. Considerava-se o primeiro partido comunista. Portanto, este movimento nunca foi uno. E só houve dois grupos que atuavam no interior: o MRPP, cuja direção se manteve sempre cá na clandestinidade, e que se 62 V I S Ã O H I S T Ó R I A

tornaria muito ativo sobretudo contra a Guerra Colonial, e a OCMLP, ligada ao jornal Grito do Povo. Enquanto o MRPP se centrava na zona da Grande Lisboa e um pouco em Coimbra, a OCML implantou-se sobretudo no Norte e estiveram até para se fundir. Esta extrema-esquerda, a que se juntariam os católicos progressistas, iria colocar a luta contra a guerra na ordem do dia. O anticolonialismo do antifascismo português foi tardio. O PCP só num congresso clandestino, em 1957, desistiu de tentar criar secções suas em Angola e Moçambique. E, mesmo depois, sempre sacrificou uma luta anticolonialista clara às necessidades da unidade antifascista com os setores republicanos e social-democratas, socialistas. A questão colonial continuava a ser muito ambígua, porque o republicanismo tinha uma forte tradição colonialista. Enquanto o PCP defendia a ida à guerra, para tentar mudar as coisas por dentro, esta extrema-esquerda propunha a deserção e lançava a palavra de ordem «guerra à guerra.» Foi um contributo político decisivo e que tornaria a Guerra Colonial o elo mais fraco do regime.

Como é que o Maio de 68 e a Crise Académica de 69 se articulam com este espírito? A crise de 68 chegou cá no ano seguinte, a Lisboa e não a Coimbra. Bem sei que isto não agrada muito aos ativistas de Coim-

bra, mas a luta deles, que foi importante, era ainda relativamente tradicional, pela autonomia da universidade, pelas liberdades públicas. A luta antissistémica, que trazia a marca de Maio, surgiu em Lisboa

EX-MAOISTAS ILUSTRES Estão hoje em áreas diferentes do espetro político mas têm em comum um passado 'pró-chinês'

DURÃO BARROSO

NUNO CRATO

Ex-presidente da Comissão Ministro da Educação de Europeia, militou no Passos Coelho, esteve na MRPP de 1974 a 1977 UEC (m-l) e no PCP (m-l)

MARIA JOSÉ MORGADO

JOSÉ LAMEGO

A ex-procuradora distrital Ex-governante e de Lisboa foi militante do deputado, foi ferido a tiro MRPP no tempo do PREC quando era do MRPP


Fernando Rosas O historiador defende que a desilusão com a primavera marcelista criou terreno fértil para o nascimento dos movimentos maoistas em Portugal

para uma certa radicalidade. A mim, o que me interessava era a crítica de massa às oligarquias, aos novos bonzos que se tinham instalado no poder em nome do comunismo e que reproduziam os tiques, as relações de dominação caraterísticas das sociedades capitalistas.

Esse pipeline com as livrarias francesas não causou ao MRPP um dissabor nas relações com a China, a propósito do Volume V das Obras Escolhidas de Mao?

e não era centralizada. Os estudantes de Economia começaram a questionar «os economistas para quê?», ocuparam o Instituto Superior de Economia e davam cursos livres à população; os estudantes do Instituto Superior Técnico perguntavam «A Ciência para quê?» e publicaram o Binómio; os de Direito surgiram com a sua antissebenta e a revolta das barricadas. Tudo isto criava um ambiente de radicalidade, que ultrapassava muito a

orientação tradicional do PCP e que seria um terreno de onde surgiriam, a partir de 1970, as organizações maoistas.

Isso já foi depois de 25 de Abril. Em termos de interlocutor, a certa altura o PC Chinês fez uma escolha, optou pelo Partido Comunista de Portugal Marxista-Leninista (PCP-ML).

Mas porquê? Vista daqui, qual era o fascínio da Revolução Cultural?

Havia uma espécie de pipeline entre livrarias de Paris que difundiam os textos da Revolução Cultural e o movimento de juventude revolucionária em Portugal. E a sociedade estava, como disse, disponível

ESTER MUCZNICK

SALDANHA SANCHES

ANTÓNIO COSTA PINTO

Dirigente da comunidade israelita, aderiu às organizações m-l em 72

O fiscalista, falecido em 2010, foi torturado quando era do MRPP

O investigador do ICS veio da UEC (m-l) e participou na fundação da UDP

Não sei. Já depois do 25 de Abril, ainda tive umas duas reuniões na embaixada da China em Paris, para discutir as relações do MRPP com Pequim, mas isso ficou por ali. Eles tinham mesmo feito uma escolha, e o PCP (m-l), a certa altura, até possuía o monopólio das viagens para lá. Numa ocasião, como as questões diplomáticas não andavam, tentámos forçar a coisa e enviámos lá dois militantes (Afonso de Albuquerque e Francisco Batista), por decisão nossa. Foi um grande erro, pois os chineses odeiam esse tipo de medidas. Eles chegaram ao aeroporto, os chineses não os receberam e recambiaram-nos no avião seguinte. E quanto ao Volume V, o MRPP fez aqui a edição, com grande pompa e circunstância, mas na China já não foi lançado, pois começara a queda da Revolução Cultural e a ascensão de Deng Xiaoping. Não que o Volume V tivesse algo de especial, mas eles queriam acabar com a edição das Obras Escolhidas.

Esse caso não prejudicou as relações do MRPP com a China? JORGE COELHO

ANA GOMES

O homem do 'aparelho' socialista foi da UDP mas desligou-se em 1975

Ex-eurodeputada e exembaixadora, a militante do PS foi do MRPP

PACHECO PEREIRA

O fundador do Ephemera e ex- deputado do PSD foi militante do PCP (m-l)

Isso já foi posterior à viagem que referi. Não conheço a reação dos chineses à edição da obra sem autorização, mas boa não há de ter sido. E.C. VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // PORTUGAL

Uma demora de 25 anos

Portugal e a Irlanda foram os últimos países europeus a reconhecer a ‘nova’ China

S

por António Caeiro*

ujeita à censura e ao anticomunismo militante de Salazar, a imprensa portuguesa deu pouco destaque à fundação da República Popular da China. Contra a opinião dos seus diplomatas no terreno, Portugal foi mesmo um dos últimos estados europeus a estabelecer relações diplomáticas com aquele país. Naquele 1 de outubro de há 70 anos, cerca de 300 mil pessoas aclamaram Mao quando este anunciou a «derrota dos opressores nacionais e estrangeiros através da Guerra Popular de Libertação». Isto passou-se na Praça Tiananmen, no centro de Pequim, mas a atenção dos jornais portugueses estava concentrada em Cantão, a maior cidade do sul da China, situada a 150 quilómetros de Macau e de Hong Kong, e que só seria conquistada pelo exército vermelho duas semanas mais tarde. «As forças nacionalistas chinesas opõem-se tenazmente às tropas comunistas», noticiava o República no dia 2 de outubro. Um despacho da agência UP referia que «durante as operações os comunistas tiveram mais de 5 mil mortos, elevado número de feridos, e perderam grande quantidade de armas e munições». Mesmo assim, no dia seguinte, o líder do Partido Nacionalista, o marechal Chiang Kai-shek, saiu de Cantão, rumo a Taipé (capital da ilha de Taiwan), contava o Diário Popular. «Está prestes a decidir-se a sorte de Cantão. Nacionalistas e comunistas preparam-se para a grande batalha», anunciava o República a 4 de outubro. 64 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Internacionalmente, Chiang Kai-shek era mais conhecido do que Mao e, ao contrário deste, que admirava Estaline, converteu-se ao cristianismo. A sua mulher, Soong Mei-ling, chegou a discursar no Congresso norte-americano, em fevereiro de 1943. Numa dramática declaração citada na primeira página do Diário de Notícias de 10 de outubro, o marechal Chiang – ou generalíssimo, como também lhe chamavam – afirmou que «a terceira mundial já começou e o militarismo comunista apenas poderá ser dominado

se as forças democráticas intervierem». Segundo a sua visão, a União Soviética – um dos primeiros países a reconhecer a República Popular da China – «perfilha a antiga política expansionista dos czares» e os comunistas chineses «não passam de instrumentos de Moscovo». Cinco dias mais tarde, chegou a notícia que a propaganda nacionalista não permitia antever: «As tropas comunistas chinesas já entraram em Cantão, não tendo encontrado a menor resistência», relatou o República. «A queda de Cantão é o dobre de finados da China Nacionalista», dizia o Diário de Lisboa citando «jornais de Tóquio». E o Diário de Notícias adiantou: «As tropas comunistas já se espalharam pela cidade, (…) convidaram os comerciantes a abrir os estabelecimentos e a vida quotidiana regressou quase imediatamente à normalidade.» O cônsul-geral de Portugal em Cantão, José Calvet de Magalhães, assistiu à entrada das tropas comunistas na cidade. «O governo nacionalista desfez-se», contaria mais tarde o diplomata. «Os comunistas eram mais disciplinados e mantinham melhor a ordem. Passou a haver mais disciplina e o povo apreciava isso.»

‘Eficiência’ dos comunistas

O reconhecimento era “uma necessidade imperiosa” para a diplomacia portuguesa. Franco Nogueira concordava, mas Salazar recusou fazê-lo

João de Barros Ferreira da Fonseca, chefe da Legação de Portugal em Nanjing, a capital da República da China (sem o adjetivo «popular»), também ficou bem impressionado com a «rígida disciplina» e a «eficiência» dos comunistas. Nanjing (ou Nanquim, como então se escrevia) foi ocupada pelo exército vermelho em abril de 1949. «A corrupção, tão tradicional do povo chinês, não se manifesta entre as novas autoridades», escreveu Ferreira da Fonseca para Lisboa. Depois da proclamação da República Popular, Pequim voltou a ser a capital da China e os diplomatas colocados em Nanjing perderam o seu estatuto oficial. Como os outros países, Portugal fechou a Legação e Ferreira da Fonseca partiu


LUÍS VASCONCELOS

Protagonistas Mário Soares e Ramalho Eanes (ao centro) figuram entre os convidados para a cerimónia da transição de Macau. O primeiro reconheceu a RPC; o segundo normalizou as relações entre os dois países

para Xangai, onde dois navios fretados pelo governo britânico foram buscar o que restava do corpo diplomático acreditado na antiga capital. O ministro de Portugal chegou a Hong Kong a 21 de outubro, juntamente com os embaixadores do Reino Unido, Índia, Itália e Birmânia. «Todos declararam que foram tratados com cortesia pelos comunistas chineses, mas recusaram-se a discutir as condições na China comunista», diz o despacho da agência Reuter citado pelo Diário de Lisboa. No último relatório para Lisboa, Ferreira da Fonseca aconselha o governo português a reconhecer a «nova situação», afirmando que «as diferenças de ideologia de maneira nenhuma obstam à normalização das relações». E argumentava: «São de cultivar as boas relações com a China comunista, da qual Macau depende exclusivamente.» Calvet de Magalhães, que ficou em Cantão até setembro de 1950, também defendia que, «em virtude da posição de Macau e da sua dependência económica

da China continental», o reconhecimento do governo de Pequim era «uma necessidade imperiosa». Mais de meio século depois, recordaria: «Propus logo o reconhecimento. O governo aceitou, mas houve alguém que hesitou e decidiu-se esperar por uma decisão da Commonwealth.»

Tecnocracia ou ideologia? «A rejeição de Salazar fundamentava-se em princípios meramente ideológicos, isto é, na sua profunda aversão ao comunismo», afirma Moisés Silva Fernandes, um dos mais minuciosos investigadores da história das relações luso-chinesas, a propósito de uma «iniciativa gorada» de Franco Nogueira para estabelecer relações com Pequim, em 1964. Sete anos antes, o último ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar já defendia que «na Ásia, o comunismo apresenta-se mais como uma tecnocracia do que uma ideologia» e apesar das «aparências transitórias de momento», não acreditava numa «conversão total» da China ao modelo soviético.

Após o triunfo da Revolução dos Cravos, o novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, considerou do «mais alto interesse» normalizar as relações com a República Popular da China, e em janeiro de 1975 Portugal reconheceu o governo de Pequim como «o único legitimo representante do povo chinês». Mas, devido à instabilidade política nos dois países, a «normalização» só seria acordada quatro anos mais tarde. Na Europa Ocidental, a Suécia foi o primeiro país a reconhecer a «nova China», em maio de 1950, e pouco depois a Suíça e a Dinamarca fizeram o mesmo. Portugal e a Irlanda foram os últimos a estabelecer relações diplomáticas com Pequim, em fevereiro e junho de 1979, respetivamente – não contando com a Santa Sé, que mantém laços oficiais com Taiwan, a ilha onde se refugiou o governo da «velha» China depois de os comunistas tomarem o poder no continente. * António Caeiro é jornalista e foi correspondente da agência Lusa em Pequim VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // MAOISMO

O império renascido

Foi a seguir às turbulências da Revolução Cultural que a China deu o seu verdadeiro «grande salto em frente»: o que a transformou na grande potência que hoje é

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Por Luís Cunha*

té mesmo o passado muito recente é História», argumenta Paul Kennedy em Ascensão e Queda das Grandes Potências. No caso da China, a meteórica aceleração da história nas últimas quatro décadas constitui um dos mais ricos episódios de uma civilização cinco vezes milenar. Obra da mais improvável das dinastias: a comunista. Em setembro de 1976 a China chorava a morte de Mao, o carismático líder responsável pela implantação da República Popular da China (RPC) e unificação de um país destroçado pela guerra civil e a luta contra o invasor japonês. No seu telegrama de condolências, Mário Soares lamentava a morte do «intérprete intransigente das lutas anti-imperialistas». Ramalho Eanes descrevia-o como «um dos maiores estadistas deste século» e Medeiros Ferreira, considerava que «perpetuamente deixará o seu nome e a sua obra ligados ao progresso da humanidade». Mas ao mesmo tempo que milhares de chineses aguardavam em longas filas, na Praça Tiananmen, para prestarem a última homenagem a um Mao já embalsamado para memória futura, a obra e a humanidade do responsável por alguns dos períodos mais sombrios da China comunista estavam já em processo de revisão crítica. A sua herança era demasiado pesada. A luta de classes, que promovera durante três décadas, deixara um rasto de destruição. O Grande Salto em Frente saldara-se em mais de 45 milhões de mortos e a Revolução Cultural paralisara o país. Mao passara à História, mas a face mais radical do maoismo ainda agitava a China. Lide-

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rado pela aguerrida viúva de Mao, Jiang Qing, e Zhang Chunqiao, Yao Wenyuan e Wang Hongwe, o «Bando dos Quatro» tentava perpetuar a Revolução Cultural e conquistar posições na hierarquia do Partido Comunista (PCC). O fim de uma era Em apenas um ano, entre dezembro de 1975 e setembro de 1976, a China havia perdido quatro figuras históricas do PCC: Kang Sheng, um dos algozes de Mao, o primeiro-ministro Zhou Enlai, Zhu De, um dos fundadores do Exército Popular de Libertação e o próprio Mao. Deng Xiaoping, que em abril de 1974 tinha sido o primeiro líder da RPC a intervir numa sessão da ONU, onde dissertara sobre a teoria do «terceiro mundo» e atacara a política colonial portuguesa, somava uma longa carreira ao serviço do PCC. Por duas vezes caíra em desgraça durante a Revolução Cultural. Não seria o último revés político do homem que viria a mudar o destino da China e do mundo. Mao fizera dele um dos seus homens de confiança, mas a visão reformista e mais independente de Deng quanto ao modelo de desenvolvimento a trilhar transformava-o aos olhos dos delatores num potencial Khrushchev, o líder soviético que atacara o legado de Estaline. Em 1975 foi nomeado vice-primeiro-ministro, chefe do Exército e membro do Comité Executivo do Bureau Político. O altamente imprevisível Mao precisava de Deng para restaurar a ordem depois do caos provocado pela Revolução Cultural. A sua promoção seria efémera. Logo após a morte do primeiro-ministro Zhou Enlai, o seu protetor, foi saneado pela terceira vez na sua carreira política, e tem-

BRUNO BARBEY/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO

porariamente afastado das ferozes lutas pelo poder. No ínterim, a Praça Tiananmen enchera-se, em 5 de abril de 1975, de populares que celebravam a memória de Zhou, injustamente marginalizado por Mao, aproveitando a ocasião para apoiarem Deng e denegrirem o «Bando dos Quatro». Depois de participar no funeral de Zhou, em janeiro de 1976, Deng só voltaria a reaparecer em público no verão de 1977. O ciclo revolucionário das primeiras três décadas da RPC estava a chegar ao fim.

Mao precisava de Deng para restaurar a ordem depois do caos generalizado provocado pela Revolução Cultural. Mas a hora deste chegaria mais tarde


Centro fabril em Sichuan Ao fundo, a estátua de Mao Tsé-Tung, com uma inscrição apelando à modernização

Após a prisão dos membros do «Bando dos Quatro», em outubro de 1976, o caminho para o regresso à ribalta de Deng Xiaoping, o velho companheiro de Mao que mostrara reservas em relação ao ideário da Revolução Cultural, começava finalmente a despontar. Desfrutando de uma sólida reputação nas fileiras partidárias e militares, bem como junto da população, Deng acumulara um apreciável capital político em 40 anos ao serviço da causa comunista. A sua (re)entrada na cena política seria lenta mas inexorável. O modelo de desenvolvimento económico de inspiração soviética, sustentado em planos quinquenais fortemente marcados por objetivos ideológicos, atrasara ainda mais uma China que se isolara do mundo. Durante grande parte da Revolução Cultural a representação diplomática externa resumira-se à colocação de apenas um embaixador no estrangeiro (Egito). Desde 1971 que a RPC tomara o lugar da República da China (Taiwan) na ONU, mas a sua diplomacia era inope-

rante. Cerca de 80% da população era constituída por camponeses, com um rendimento médio per capita de apenas 40 dólares. Contra as expectativas, tinha sido Hua Guefeng, antigo secretário do PCC no Hunan, o eleito de Mao para lhe suceder.

A abertura ao mundo

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Deng, o reformador

Ao ascender a primeiro-ministro e secretário-geral do PCC, ficaria para a história como um líder transitório, sem carisma ou capacidade política para renovar uma China subdesenvolvida. Mas, na realidade, entre a morte de Mao e a tomada do poder por Deng, Hua acabaria por lançar as bases do programa desenvolvimentista delineado por Zhou Enlai. Na companhia de Deng, Zhou apresentara no 4º Congresso Nacional Popular, em janeiro de 1975, o plano estratégico para a transformação da China numa grande potência. Traçou então as prioridades para a modernização do país: desenvolvimento da agricultura, indústria, comércio e área militar. A diretiva ficou conhecida como «as quatro modernizações». Uma quinta, adiada sine die e nunca assumida, a democratização do sistema político, ganharia visibilidade dramática nas manifestações em Tiananmen (1989). Durante cerca de dois anos, Deng preparou o caminho para a tomada do poder. Tinha aliados de peso, uma reputação não manchada pela Revolução Cultural e o imprescindível apoio dos militares. A 3ª sessão plenária do 11º Congresso do PCC consagraria, em dezembro de 1978, a entronização de Deng Xiaoping. Tomava assim as rédeas do poder, enquanto Hu permanecia a prazo nas posições cimeiras do Partido-Estado. Todos sabiam quem era, de facto, o novo timoneiro da China.

Sucessor de Mao Só depois da morte do líder histórico, Deng Xiaoping teria o caminho livre para iniciar as reformas

Deng Xiaoping foi um genial estratega que compreendia como poucos as qualidades do seu povo. Aos 74 anos tomava a seu cargo uma população desmoralizada e ressentida, uma economia estilhaçada e um PCC desacreditado. Os reformistas liderados por Deng não partiram de um plano estratégico perfeitamente definido, optando antes pela experimentação, a que os dirigentes chamaram shithou guohe («atravessar o rio tateando os seixos»). Os 800 milhões de camponeses foram os primeiros a compreender a mensagem. Libertos das grilhetas impostas por Mao, aumentaram VISÃO H I S T Ó R I A

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de tal modo a produção que a fome passou a ser coisa do passado. No entanto, as reformas lideradas por Deng não foram consensuais, principalmente no que respeita ao grau de abertura da economia ao exterior, ritmo e extensão das medidas macroeconómicas. Durante dez anos a ala conservadora do PCC tentou refrear a ala liberal que, paulatinamente, abria a economia chinesa ao mundo. Nas suas memórias póstumas, o primeiro-ministro e depois secretário-geral, Zhao Zyang, atribui a si próprio, e não a Deng, o papel de arquiteto das reformas económicas. Foi Zhao que lançou a política de desenvolvimento das zonas costeiras, cujo tremendo sucesso serviria de balão de ensaio para a captação de investimento e abertura ao exterior. Zhao, que veria a sua carreira política acabar em desgraça na sequência dos acontecimentos de Tiananmen, considera que Deng não tinha qualquer interesse nas reformas políticas, ao mesmo tempo que deixou a corrupção grassar, permitiu uma campanha antiliberalização e destituiu o liberal Hu Yaobang, um líder muito popular, do cargo de secretário-geral do PCC. A economia entrara num impasse. A China caminhava para a economia de mercado, o que entrava em contradição com a ortodoxia ideológica do PCC. Estes foram

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CHINA // MAOISMO

Transição Militares içam a bandeira chinesa em Hong Kong, a 1 de julho de 1997

alguns dos motivos que estiveram na origem das manifestações de Tiananmen.

O novo salto em frente O presidente Jiang Zemin, uma escolha pessoal de Deng, não conseguiu realizar o sonho da reunificação com Taiwan, mas presidiu às cerimónias da transferência administrativa de poderes em Hong Kong e Macau, dando corpo à fórmula política do seu mentor «um país, dois sistemas» (ver caixa). Apoiado em Zhu Ronji, o seu arguto primeiro-ministro, Jiang Zemin liderou aquele que foi provavelmente o mais significativo triunfo político da China desde o início das reformas: a adesão à Orga-

nização Mundial do Comércio (OMC). Foi ainda responsável pela cooptação do empresariado capitalista no seio do PCC, ao abrigo da sua «teoria das três representações», e obrigou os militares a encerrarem as empresas que controlavam. A quarta geração de líderes políticos a chegar ao poder (Hu Jintao/Wen Jiabao), adotou os conceitos de «desenvolvimento científico» e «sociedade harmoniosa» na tentativa de recolocar a tónica social na modernização da China. Já a doutrina da «ascensão pacífica» acabou por ter efeitos contraproducentes. As medidas de recuperação económica contribuíram para um novo salto em frente, que culminou na ascensão

A CAMINHO DAS REFORMAS 1976

1978

1979

1982

Morrem Chu En-Lai e Mao Tsé-Tung. É preso o «Bando dos Quatro»

O 11º Congresso do PCC consagra Deng Xiaoping como homem forte da China

A China estabelece relações diplomáticas com os EUA e com Portugal

Implementação da «política independente» na política externa

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1984 Deng Xiaoping dá a conhecer a fórmula «um país, dois sistemas»

1989 O exército reprime as manifestações estudantis em Tiananmen; a China é alvo de isolamento diplomático

1993 Morte de Deng Xiaoping (juntou-se finalmente a Marx, como gostava de dizer)

1996 Jiang Zemin visita África, arrancando o investimento chinês nesse continente

1997 Hong Kong regressa à soberania chinesa

1999 Macau é transferido para a RPC


A terceira revolução Desde 2012 que a China tem um Presidente-Imperador. Ao concentrar em si todos os postos-chave do topo da hierarquia política, incluindo alguns que nem Mao assumira, Xi Jinping tornou-se o homem mais poderoso da China. Em 2017, já depois da eleição de Trump, a revista The Economist dedicou-lhe uma capa apelidando-o mesmo de «homem mais poderoso do mundo». Xi está a fazer da China a nação indispensável em todos os continentes. O seu «sonho chinês» passa pela construção de umas forças armadas poderosas e de uma rede geoeconómica assente numa Nova Rota da Seda, ligando a China à Ásia, à Europa e à África. O Império do Meio foi substituído pelo Império de todas as latitudes. A nova ordem internacional dependerá, em grande parte, da China. No centro desta terceira revolução está o nacionalismo com características chinesas que galvaniza o espírito patriótico de um povo apostado em recu-

2000 Multilateralismo/ política going out

2001 A China é admitida na Organização Mundial de Comércio (OMC)

Um país, dois sistemas No princípio da década de 1980, Deng Xiaoping deu a conhecer a fórmula que revolucionaria a política interna e externa da China. Foi a celebrizada teoria «um país, dois sistemas», rebuscada conceção formulada a pensar em Taiwan, mas que conheceria aplicação prática em Hong Kong e Macau. Com o seu pragmatismo, Deng eliminava algumas das mais evidentes contradições subjacentes à adoção da via de desenvolvimento capitalista por um regime comunista. No discurso da cerimónia da Protestos Os movimentos pró-democracia não transferência de poderes em Hong Kong, aceitam a perda de autonomia o presidente Jiang Zemin deixou bem vincado que a prática de «um país dois sistemas» desempenha «um papel exemplar de grande relevância para a solução definitiva da questão de Taiwan». Mas nem tudo tem corrido de feição para Pequim. O movimento pró-democracia em Hong Kong revela fissuras nesta política. Taiwan, um regime democrático, vê com apreensão a interferência de Pequim em Hong Kong. Ao querer implementar medidas que põem em causa a autonomia das regiões administrativas especiais, o regime liderado por Xi denota urgência no regresso ao primeiro sistema, com datas marcadas para 2047 (Hong Kong) e 2049 (Macau). Na verdade, a China teve sempre apenas um sistema: o imperial. GETTYIMAGES

da economia chinesa à segunda posição mundial em 2010. Mas alguns analistas consideram que o consulado de Hu correspondeu a dez anos perdidos, ao não ter agarrado a oportunidade de fazer profundas reformas económicas e sociais.

perar a grandeza e o reconhecimento internacional. A China chegou à Lua e ao fundo dos oceanos, ao Ártico e à Antárctida. É agora uma potência económica, política, militar e tecnológica. É no domínio da alta tecnologia que se jogará o seu futuro, em inevitável confronto com os EUA.

2008

2008-9

2010

Os Jogos Olímpicos de Pequim são um sucesso

A intervenção estatal revela-se fulcral no controlo dos danos da crise financeira e económica mundial

A China adquire dívida soberana da eurozona, aumentando a sua influência político-económica na UE

2011 O 12.º Plano Quinquenal (2011-15) coloca a tónica nas reformas económicas e no investimento no o exterior

2012 Xi Jinping, relativamente desconhecido, toma as rédeas do poder de forma resoluta

«A China não é uma superpotência e nunca o será», disse Deng na Assembleia Geral da ONU, em 1974. Promessa que estará definitivamente ultrapassada. * Luís Cunha é investigador do Instituto do Oriente (ISCSP/Universidade de Lisboa)

2014

2015

2019

Manifestantes pró-democracia insurgem-se em Hong Kong contra as reformas eleitorais el de Pequim

A estratégia nacional «Made in China 2025» tem por objetivo criar uma superpotência tecnológica

Nos 70 anos da RPC, Pequim mostra o poderio militar. Prosseguem os protestos em Hong Kong

VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // MAOISMO Só contra os tanques A icónica imagem da Magnum ficou para a história como símbolo da violenta repressão

O preço de Tiananmen

O sangrento esmagamento das manifestações pela liberdade, em 1989, teve como contrapartida o enriquecimento individual dos chineses e como corolário uma guerra surda com o Ocidente primeiro sinal do fim da primavera de Pequim, em 1989, foi dado no sábado, 15 de abril, sob a forma de um despacho da agência Nova China noticiando a morte de Hu Yaobang, ex-primeiro ministro e líder das reformas. Hu tinha caído em desgraça 14 meses antes. A sua política incomodava os «barões vermelhos» da província, que temiam pelos seus privilégios e advogavam a manutenção de uma ordem socialista rígida – do seu ponto de vista, aquilo tinha de parar. Hu sofrera um ataque cardíaco cinco semanas antes, em pleno Bureau Político, quando acabava de ser excluído deste órgão supremo. Jamais recuperaria. Sem perder um instante, temendo confrontos de rua ao ser noticiada a morte do herói popular, o Bureau Político votou a favor da organização de um funeral nacional, para homenagear ostensivamente Hu. Foi um esforço vão, pois a explosão partiu dos estudantes! Em poucas horas, as notícias alastraram pelas universidades. No campus de Beida (Universidade de Pequim), centenas de jovens colaram dazibaos (jornais de parede). No dia seguinte, três coroas funerárias foram colocadas na Praça Tiananmen, junto do Monumento aos Heróis Revolucionários, por jovens de Beida, Renda e Tsinghua (três viveiros do regime). À noite, apareceram mil jovens com coroas funerárias, curvando-se diante delas... e permanecendo no local! 70 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Um deles fez-me uma estranha confidência: o secretário-geral do Partido Comunista, Zhao Ziyang, aconselhara-os pessoalmente a ir ali, para denunciar a injustiça de que Hu fora vítima. A escolha do sítio não foi casual. Desde sempre, é ali que o povo vai apresentar as suas queixas ao imperador! Na qualidade de último reformador, Zhao tornara-se o alvo número um dos conservadores. E estava desde o primeiro dia à espera desse movimento estudantil para tentar enfraquecer os seus opositores. A revolta estudantil tinha, pois, uma correspondência na guerra civil que se travava dentro do Partido. Na terça-feira, 18 de abril, às 15 horas, na Praça Tiananmen contavam-se 20 a 30 mil manifestantes. Curiosamente, apesar das palavras de ordem insolentes e da ilegalidade flagrante dessa ocupação, prevaleceu uma atmosfera agradável, como que de alívio. Toda a gente desejava

Os pais dos jovens de Tiananmen pediam aos filhos que voltassem para casa. De má vontade, muitos acabam por fazê-lo. Na noite do massacre, serão ainda 50 mil

© STUART FRANKLIN/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO

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por Eric Meyer*

participar. Mas daí a pouco parecia que o país inteiro queria ir à praça, tornando o movimento incontrolável. Um velhote sussurrou-me ao ouvido a sua preocupação: «O regime nunca ouviu ninguém... Neste país sem leis, a primavera dos jovens não tem futuro.»

‘Diálogo’ impossível Os jovens exigiram um encontro com as autoridades. Ocorreu uma primeira troca de impressões entre o presidente da câmara de Pequim, Chen Xitong e um grupo de estudantes de que faziam parte Wang Dan, o uigur Wuer’kaixi e a musa inspiradora Chai Ling. Fizeram exigências exorbitantes: negociar com o impopular primeiro-ministro Li Peng, obter um pedido de desculpas público


pela morte de Hu Yaobang, acabar com a censura e divulgar os rendimentos dos filhos dos líderes – porque toda a gente sabia que os bens das grandes famílias sempre foram registados em nome dos herdeiros. É claro que Cheng recusou tudo em bloco. Dias depois, Li Peng fez o mesmo. E o «diálogo» diminuiu, exacerbando a animosidade de ambos os lados... Mas Deng Xiaoping, o patriarca, queria acabar com aquilo. Já em 23 de abril, por sua ordem, o Bureau Político classificara o movimento de «contrarrevolucionário». No dia 26, Deng publicou um editorial no Diário do Povo denunciando a juventude como «antissocialista» e «facciosa» (o crime supremo para o regime), enquanto Zhao Ziyang era acusado de faltar à disciplina do Partido. O que Deng procurava

era obter a unanimidade das províncias contra Zhao, para poder lançar a tropa sobre Tiananmen antes de 15 de maio, o primeiro dia da visita de Mikhail Gorbachev destinada a enterrar 31 anos de guerra fria entre Pequim e Moscovo. Estranhamente, Zhao Ziyang optou por não se defender e ignorou ostensivamente a reunião do Bureau Político, preferindo passar a manhã num court de golfe. Pior, no dia seguinte, 24 de abril, saiu do país em visita oficial... à Coreia do Norte. Foi uma manobra. Zhao esperava que o massacre ocorresse na sua ausência, sem o seu acordo. Depois, o país erguer-se-ia indignado, e ele poderia (segundo esperava) regressar como salvador e afastar os responsáveis pelo banho de sangue. Infelizmente para si, os seus opositores,

como medida de prudência, obrigaram-no a assinar o decreto de lei marcial por telex, a partir de Pyongyang, e esperaram que voltasse antes de lançar os tanques contra os estudantes, a fim de envolvê-lo na repressão... Em 4 de maio, Zhao, em Pequim, em frente do Banco Asiático de Desenvolvimento, apoia os jovens, «esperanças da nação», contra Deng Xiaoping e o clã conservador. Ao fazê-lo, expõe-se às críticas por ter revelado ao mundo a existência de um conflito interno – um erro imperdoável aos olhos do Comitê Central. Enormes manifestações desembocam diariamente na Praça Tiananmen: 500 mil pessoas, um milhão, dois milhões. Nenhuma barreira policial, mesmo com vinte filas de espessura, consegue detê-las. VISÃO H I S T Ó R I A

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Faço com eles essas marchas e escrevo os meus artigos ao longo do caminho! Em 15 de maio, Gorbachev teve de entrar pela porta das traseiras no Grande Palácio do Povo, em Tiananmen, o que representou para o regime uma grande perda de face – tanto mais que o tribuno russo apoiava obviamente os estudantes. Em 19 de maio, Deng demitiu Zhao por indisciplina. Ao arrepio da Constituição, viu a sua demissão ser votada pelos membros de dois órgãos, um dos quais sem existência legal, o «Comité dos Conselheiros», antigos líderes retirados, proverbialmente mais próximos da ideologia marxista e da ditadura do proletariado.

A sangrenta repressão Pode agora ser feita a grande limpeza do local. Ainda assim, é necessário encontrar tropas suficientemente seguras para disparar contra o povo e fazer um trabalho normalmente reservado à polícia. Em 22 de maio, a lei marcial foi imposta, mas não imediatamente respeitada: as colunas militares são barradas pelos estudantes nas entradas de Pequim, daí resultando uma paz indecisa e uma interminável espera nervosa. Já há semanas que os pais dos jovens de Tiananmen pediam incessantemente aos filhos que voltassem para casa. De má vontade, muitos acabam por fazê-lo, minados pelo cansaço, pela fome e pelo baixo moral. Mas são espontaneamente substituídos por outros jovens vindos de muito longe para participar na festa. Na noite do massacre, serão ainda 50 mil. Na tarde de 3 de junho, centenas de camiões civis carregados de homens à paisana com capacetes de obras e cassetetes pararam na terceira circular. Os homens apearam-se rapidamente e misturam-se com as massas, para evitar serem linchados. Julguei na época que tinham sido enviados por Li Peng, mas estava enganado: eram uma tentativa final da fação reformista para evitar o massacre. Esses operários das siderurgias de Pequim estavam ali para dispersar a multidão a 72 V I S Ã O H I S T Ó R I A

STUART FRANKLIN/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO

CHINA // MAOISMO

fim de retirar ao exército qualquer motivo para intervir. Mas falharam, por falta de experiência de controlo de multidões! Por volta das 22 horas, os tanques dos 38º e 27º corpos de exército voltam a Tiananmen, protegidos por soldados de infantaria em uniforme de combate. A multidão acolhe-os a 50 metros com gritos de «tufei» («assassinos»). Os seus olhos têm um brilho excessivo – os manifestantes confidenciam a jornalistas que receberam drogas para terem coragem de matar o seu próprio povo desarmado. Respondem aos insultos com rajadas de metralhadora. A multidão volta para as ruas laterais, mas nem toda gente lá chega: alguns caem, em silêncio ou gritando. No rasto da soldadesca, jovens enfermeiros vêm recolher os corpos, que evacuam em plataformas de bambu ligadas a triciclos. Mas logo se sabe que há falta de sangue nos hospitais mais próximos, e os triciclos têm de seguir viagem para os subúrbios – sem sangue, a maioria dos feridos morre no caminho. Na Praça Tiananmen a confusão é indescritível. Os tanques esmagam as tendas e os corpos estendidos, escaqueiram a Estátua da Liberdade erguida pelos estudantes de Belas Artes. Liu Xiaobo, professor e líder

dissidente, negoceia com um comandante livre passagem para os milhares de sobreviventes – um corredor ao longo do qual os que escapam são agredidos. Nos dias seguintes, Liu será preso, depois libertado e novamente detido, até morrer no cárcere em 2017, de um cancro não tratado, laureado com o Prémio Nobel da Paz. Segundo números divulgados 30 anos depois no Reino Unido, 10 mil jovens terão morrido naquela noite. O Estado chinês alude a «23 mortos, todos militares». As fotos divulgadas em apoio desta tese mostram a imagem insustentável de restos carbonizados de soldados queimados vivos em pneus cheios de gasolina. O que lhes aconteceu é um mistério. Poderiam ter sido liquidados depois de abandonar os tanques, encontrados no dia seguinte incendiados…

O ‘génio’ de Deng Após esta tragédia, milhares de jovens foram arbitrariamente presos e enviados para campos de concentração e penitenciárias, enquanto a China se vergava a uma fria campanha de denúncias. Porém, mal o movimento reformista foi esmagado e a ala reformista decapitada, Deng


Contagem final Esperançosos, os jovens revezavam-se na praça central de Pequim. Nenhuma barreira policial os detinha. Até que os tanques avançaram sobre eles

STUART FRANKLIN/MAGNUM PHOTOS/FOTOBANCO

percebeu que o seu odiado e isolado regime teria de soltar lastro se queria evitar o colapso. O seu génio manifestou-se ao saber combinar o torniquete autoritário com uma campanha de crescimento e bem-estar sem precedentes, de acordo com um programa de obras públicas em equipamentos e infraestrutura e apelo ao setor privado para produzir bens de consumo em massa. Nos 30 anos decorridos desde então toda gente enriqueceu, e a China ocupa mesmo o primeiro lugar do ranking mundial de fortunas em dólares. Vê-se até florescer uma certa criatividade artística – desde que o tema não seja político: o Prémio Nobel da Literatura foi atribuído a Mo Yan, realizadores como Zhang Yimou receberam muitos troféus em festivais de cinema e pintores contemporâneos como Cai Guoqiang ou Ai Weiwei viram o seu talento reconhecido. No entanto, este sucesso é acompanhado por nuvens negras. Por ordem do regime, foi banida toda e qualquer evocação do massacre: 95% dos jovens nascidos após Tiananmen não sabem sequer da existência do drama. Os próprios pais são cúmplices: esses estudantes de ontem concordaram em ficar calados, evitar

problemas e desfrutar do seu «xiaokang» (pé-de-meia). Mas o silêncio tem um preço. O trauma permaneceu intacto, por falta de discussão e porque o regime sempre se recusou a admitir o crime e dessa forma obter paz e perdão. Todos os anos, em Pequim, cem mulheres idosas são mandadas antes de julho para férias forçadas na província, a fim de evitar que essas «mães da Praça Tiananmen» comemorem o desaparecimento dos filhos. Para compensar a sua permanente intolerância às liberdades civis, o regime viu-se forçado a proporcionar crescimento a qualquer preço. Incluindo à custa de outras nações. Ultranacionalista, o regime não hesita em prejudicar os vizinhos, e até a Europa e a América, numa corrida pelo primeiro lugar no ranking mundial. Ao fazê-lo, satisfaz os instintos populistas

Após a tragédia, milhares de jovens foram arbitrariamente presos e enviados para campos de concentração e penitenciárias

das massas, mas também cria fortes ressentimentos. Por esse motivo, em 2018 os Estados Unidos lançaram uma guerra comercial contra a China, que já lhe fez perder milhões de empregos e inquieta o mundo inteiro. Na própria China, o massacre de 3 de junho mudou para sempre o vínculo entre o regime e o povo. O homem da rua desinteressou-se da política e o seu único interesse é o materialismo individual, em prejuízo do destino comum. A evolução das mulheres é muito reveladora. As raparigas casam-se menos e divorciam-se mais: querem ter uma carreira e não receberem ordens de um parceiro masculino. Algumas até sonham em se divertir, jogando o dinheiro na bolsa e vivendo na ociosidade.

Herança histórica Mesmo assim, o massacre de Tiananmen deixou uma herança histórica positiva: de universal que era antes, o sentimento de superioridade do Ocidente desapareceu, substituído por uma consciência de crescente igualdade em termos de poderio militar, financeiro e tecnológico. O medo do outro subsiste – é o antigo «perigo amarelo» – mas a China e o Ocidente começam a dialogar aos níveis governamental e empresarial. Uma tal aproximação é, contudo, travada pelos demónios nacionalistas e totalitários do Império do Meio. Este não se mostra disposto a fazer a mínima concessão (mesmo ao cabo de um ano de guerra comercial) e os seus parceiros têm de manter sempre as suas reservas e de limitar os riscos. Mas há que ser claro: esses demónios da China são o preço que ela tem de pagar pela incapacidade de reconhecer o crime praticado na noite de 3 para 4 de junho de 1989. Um dia terá de fazê-lo. Talvez quando não tiver outra opção se quiser por fim negociar honestamente com os seus parceiros mundiais. * Éric Meyer é um jornalista francês que residiu em Pequim e acompanhou os acontecimentos de Tiananmen, é autor do blogue Le Vent de la Chine VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // HOJE

A fábrica do mundo A China aliou uma imensa força de trabalho a uma enorme capacidade de investimento e a um espírito reformista, sem tirar o socialismo da agenda

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por Clara Teixeira

enhum país cresceu mais do que a China nos últimos 40 anos. Em tamanho, a sua economia rivaliza apenas com a dos Estados Unidos da América (EUA). Milhões de pessoas saíram da pobreza quando uma imensa força de trabalho migrou do campo para as cidades, tornando as urbes ainda maiores e mais industrializadas. Em poucas décadas, uma economia planificada e burocrática gerou um sistema orientado para o mercado. Face a um crescimento hoje mais lento, o regime político confronta-se com as aspirações de uma classe média que exige novos produtos e serviços para consumo imediato, que se preocupa com o ambiente e que defende uma sociedade mais inclusiva. Os próximos tempos não serão fáceis para a China milenar. Nas mais de três décadas que separaram 1978 de 2010, a China cresceu em média 10% ao ano, segundo as estatísticas oficiais. Entre 2005 e 2015, avançou a um ritmo médio anual de 9,5 por cento. E, a partir de 2010, o ano em que conquistou ao Japão o estatuto de segunda maior economia mundial, caiu para um valor próximo de 7% ao ano. Este abrandamento do crescimento, encarado como o «novo normal», não afetou o nível de vida do povo chinês, apesar dos desafios e vulnerabilidades que persistem. O desempenho ímpar da China encontra paralelo no Japão e na Coreia do Sul, mas em nenhum destes países o salto foi tão grande nem durou tanto tempo. Nas três economias asiáticas, observou-se uma relação direta entre demografia, migração interna, investimento e políticas comerciais. Barry Naughton, investigador 74 V I S Ã O H I S T Ó R I A

na Universidade da Califórnia e autor do livro The Chinese Economy, Adaptation and Growth (The MIT Press, 2018), identificou quatro grandes especificidades do crescimento chinês: recursos humanos jovens, qualificados e inesgotáveis; uma força de trabalho organizada e barata; um enorme potencial atrativo para o investimento; e um governo «com capacidade de aprender» e de pôr em prática um ambicioso plano de reformas. Essa determinação foi visível nas décadas de 1980 e 1990, quando a China deixou de ser uma economia fechada e isolada para se transformar numa potência comercial. Com efeito, o milagre económico chinês resulta em grande parte da adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) e do aumento das exportações. Desde 1992 que a China se afirma como uma «economia socialista de mercado», assente num robusto e centralizado setor estatal orientado para o investimento e para o comércio com o exterior. O poderoso governo, controlado pelos dirigentes do PC chinês, continua a intervir na economia, conciliando com autoritarismo os interesses dualistas entre Estado e mercado e entre capital nacional e estrangeiro. Com avanços e recuos, como se verá.

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1949–77: a herança de Mao

dustriais no Nordeste, ao mesmo tempo que 10 mil chineses eram convidados a prosseguir os estudos na URSS. Uma nova visão do socialismo, denominada pelos economistas de Big Push, prevaleceria nos 30 anos seguintes. Para viabilizar a aposta na indústria pesada, o investimento atingiu um quarto do PIB, uma meta alta para um país pobre. Os centros económicos cresceram a uma velocidade estonteante, principalmente nas regiões costeiras, e o peso do setor industrial mais do que duplicou, saltando de 18% para 44% do PIB em 1978. No Sul, cerca de 40% da terra arável foi redistribuída por famílias pobres, organizadas em unidades coletivas de produção. Os agricultores eram forçados a vender as colheitas ao Estado, cumprindo objetivos de produção por preços pré-fixados, enquanto nas cidades os proprietários de pequenas fábricas e lojas viam-se obrigados a aderir a cooperativas controladas

Em 1949, quando a República Popular foi fundada, a China era uma nação pobre, flagelada pela guerra, pela corrupção e pela hiperinflação. A URSS de Estaline foi apontada como modelo. Desenhado entre Pequim e Moscovo, o primeiro plano quinquenal entrou em vigor em 1953. Cerca de 6 mil técnicos soviéticos acompanharam a instalação de complexos in-

Depois da morte de Mao, Deng Xiaoping conduziu a reforma e a abertura da economia


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Crescer sem limites Organizada e disciplinada, a China apostou na criação de grandes indústrias para se tornar numa potência

O reformador Depois de uma viagem épica ao Sul do País, Deng Xiaoping lançou um vasto programa de modernização da economia

pelo governo. A propriedade privada foi «virtualmente extinta», depois de Mao Tsé-Tung, irritado com a lentidão das coletividades, ter comparado os camponeses e proprietários a «mulheres velhas coxeando com os pés ligados». O ano de 1956 passou à história como o primeiro ano de existência de uma economia «socialista» completa, mas os problemas levaram o regime a optar, a partir do 8º Congresso do PCC, por um modelo mais flexível e orientado para o mercado. Contudo, esse caminho só viria a ser seguido em 1978. Antes, Mao impôs o Grande Salto em Frente, um programa económico destinado a transformar a China num estado industrializado. Acabaria por revelar-se um dos períodos mais trágicos da história. No campo, a falta de mão-de-obra, atraída pelo desenvolvimento das cidades, fez cair drasticamente a produção agrícola. Nos anos seguintes, 25 a 30 milhões de chineses, ou mais, terão morrido à fome. Seguiu-se a Revolução Cultural, mas os desequilíbrios mantiveram-se, prejudicando o abastecimento alimentar. Após a morte do ditador, em setembro de 1976, a economia impôs-se na agenda do governo. O novo líder, Deng Xiaoping, lançou a sua Reforma e Abertura, contemplando a criação de Zonas Económi-

cas Especiais (ZEE). Nelas, a economia centralizada convivia com as forças de mercado. Um programa de reabilitação de fábricas e de infraestruturas foi posto em marcha, através da instalação de unidades de transformação de aço, centrais elétricas, campos de petróleo, portos, etc. Em 1978, começava o milagre económico chinês, assente na transição para aquilo que o regime viria a definir como economia socialista de mercado.

1978–92: a via do mercado A partir de 1978, a economia chinesa conheceu sucessivas vagas de reformas. Com o primeiro-ministro Zhao Ziyang, entrou num período de mudança acelera-

da. O seu sistema de duas vias (dual-track) permitia, em teoria, crescer e produzir acima do planeado, combinando os objetivos do governo com o escoamento da produção através dos canais de mercado. Desse modo, as empresas aprendiam a viver numa economia aberta, ajustando os preços à procura, cortando custos e orientando-se para os lucros. Com um senão: a inflação não tardou a disparar até um máximo de 28% em 1988-89. De seguida, os acontecimentos na Praça Tiananmen afastaram os reformistas e o poder passou para os conservadores, mas estes souberam reconhecer os méritos da «reforma sem perdedores». Os camponeses viviam melhor desde que passaram

Os conselhos de Milton Friedmann Sob as ordens de Deng Xiaoping, economistas chineses viajaram m para países como EUA, Japão, Reino Unido, Jugoslávia e Alemanha Federal, l, com o objetivo de adquirirem conhecimentos sobre as economias de mercado. Ao mesmo tempo, o regime aconselhava-se com economistas de tendências ornai foram dois socialistas, liberais e neo-keynesianos. James Tobin e János Kornai dos académicos convidados, mas o nome mais surpreendente foi o de Milton Friedman, o «pai» da escola liberal de Chicago. Durante uma deslocação à China, no final da década de 1980, Friedman envolveu-se em polémica ao considerar que o sistema de duas vias (dualsmo assim, o track) era «um convite direto à corrupção e à ineficiência». Mesmo primeiro-ministro Zhao Ziyang quis encontrar-se com ele. Não se conhece o teor da conversa, mas Friedman regressou aos EUA convencido do de que as mudanças na direção do mercado estavam iminentes na China. na.

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a comercializar a sua produção, fixando preços mais altos. Os pequenos proprietários urbanos tinham mais liberdade para explorar nichos de mercado. E os funcionários das empresas públicas tinham a estabilidade assegurada. Todos os grupos sociais ganhavam, nenhum perdia. Em 1992, Deng Xiaoping deu luz verde à continuidade das reformas depois de uma viagem épica ao Sul da China. «O desenvolvimento é a única verdade absoluta», declarou. O Congresso do PCC, em outubro de 1992, decretou, como objetivo, a chegada a «uma economia socialista de mercado». No ano seguinte, um novo plano económico a seis anos seria aprovado.

1993–2002: a vez dos privados A China entrou numa fase de transforação acelerada, que coincidiu com um dos períodos de maior crescimento. A economia abriu-se ao exterior, através da captação de investimento e da instalação de empresas estrangeiras. As empresas estatais foram reestruturadas e forçadas a melhorar os resultados. Com a chegada de Zhu Rongji ao governo, os monopólios estatais transformaram-se em oligopólios dando uma ilusão de concorrência. No petróleo, nas telecomunicações, na defesa, as grandes empresas dividiram-se em duas ou três, passando a competir entre si. Mas o capital manteve-se na posse do Estado. Ao mesmo tempo, arrancaram as privatizações à chinesa, sob a forma de operações de management buy-out. O Estado incentivou a tomada de controlo das empresas pelos próprios quadros, mantendo uma posição no capital, como no caso da Huawei. A estratégia tem dado frutos. Os acionistas privados cultivam boas relações com o poder e gerem as empresas de acordo com as orientações do regime. Assim, conseguem apoios públicos e acesso ao crédito bancário. Esta política reformista garantiu à China um passaporte de entrada na OMC, embora o acordo de adesão ao 76 V I S Ã O H I S T Ó R I A

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livre comércio tivesse demorado seis longos anos a negociar. Mas, desta vez, as reformas implicaram «perdedores». A taxa de desemprego nos centros urbanos atingiu 10% e a inflação regressou em força, chegando a um pico de 20% em 1995. Porém, a «recessão» chinesa revelou-se menos profunda do que a da antiga URSS. Pequim tinha criado um setor público maior e mais robusto, capaz de absorver os custos de uma transição acelerada. Os incentivos ao investimento do governo central e dos governos locais funcionaram como uma espécie de coligação pró-crescimento. A partir de 2003, o PIB passou a crescer a uma média 10% ao ano, durante cinco anos consecutivos.

Chineses em Portugal O investimento da China em Portugal já ultrapassou os 9 mil milhões de euros, de acordo com dados do embaixador chinês em Lisboa. Nos anos da crise financeira, as empresas chinesas investiram em setores estratégicos como a energia (EDP e REN), banca (BCP e Haitong), seguros (Fidelidade), saúde (Luz Saúde), aviação (TAP), comunicação social (Global Media) e imobiliário. Este último setor tem funcionado como um passaporte para a obtenção de vistos de residência.

O país rege-se até hoje pelos efeitos deste segundo período reformador, que apostou na economia de mercado.

2003–2012: o comércio livre A liberalização do comércio mundial deu novo impulso à fábrica do mundo. A China passou a importar mais e a produzir mais, destinando a sua produção tanto para o mercado interno como para exportação. Quase de imediato, o peso do comércio subiu de 5% para 20% do PIB. Em 2007, atingiu 35% do PIB, saldando-se por um excedente comercial de 7,4% do PIB. Claro que esta explosão causou um choque nas relações comerciais. Entre 2006 e 2008, países como os EUA pressionaram Pequim a apreciar a moeda para reduzir o excedente comercial face ao resto do mundo. A moeda valorizou-se, mas o excedente manteve-se. A partir de 2009, a China tornou-se no maior exportador mundial. Antes da entrada na OMC, ocupava a sexta posição. O setor produtivo sofreu uma reorientação profunda, passando a incorporar mais tecnologia. Cerca de 85% das exportações de alta tecnologia produzida em território chinês são feitas atualmente por empresas sediadas em Taiwan, com capital de países como os EUA. A Foxconn e a Quanta geram unidades de montagem de equipamentos (smartphones, computadores) que fornecem para empresas como a Apple, Dell, Hewlett-Packard e Cisco.


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Socialismo de mercado No final dos anos 90, a China entrou num dos períodos de maior crescimento. No outono de 2019, foi inaugurado em Pequim o maior terminal aeroportuário do mundo

A globalização foi uma oportunidade única que os chineses souberam aproveitar, mas não explica o milagre económico na totalidade. O investimento, público e privado, em edifícios, aeroportos, autoestradas, linhas elétricas e comboios de alta velocidade foi um fator crítico para a economia nacional. O investimento atingiu cerca de 30% do PIB entre o final dos anos 1970 e a década de 1980. Entre 2003 e 2008, chegaria a 40% do PIB. Com o programa de combate à crise financeira, disparou para 45% do PIB entre 2009 e 2014 – um valor nunca registado durante seis anos consecutivos noutro país. Desde meados dos anos 1990 que a China é também um dos principais destinos do Investimento Direto Estrangeiro (IDE), captando cerca de um terço dos

fluxos destinados aos países em desenvolvimento. Dirigido principalmente para as ZEE – Shenzhen, Zhuhai, Shantou e Xiamen foram as primeiras –, acontece que o IDE já não é tão bem acolhido na China como no passado. A partir de 2011, o país mudou de rumo e tornou-se ele próprio um importante investidor no estrangeiro, primeiro na área dos recursos naturais e depois nos setores financeiros e tecnológicos. Quatro grupos privados – Fosun, Anbang, Dalian Wanda e Hainan Airlines – foram responsáveis por 18% do investimento chinês entre 2015 e 2016. Em 2017, os fluxos de capital para o exterior caíram 48%, acusando uma retração após investimentos ruinosos feitos essencialmente na área dos recursos naturais.

O milagre económico A dinâmica da economia chinesa tem superado a de todos os outros países, incluindo o Japão e a Coreia do Sul PIB (%) PIB per capita (%) População (%)

6 4,1 1,9 1952 – 1978

9,7 8,3

10,5 9,9

7,7 7,1

1,3

0,6

0,5

1978 – 2000

2000 – 2010

2010 – 2016

Enquanto a China crescia, o resto do mundo assistia, perplexo, à maior crise desde a Grande Depressão. Pequim preparou uma resposta vigorosa, lançando um programa de estímulos no valor de 568 mil milhões de dólares, ao mesmo tempo que a banca injetava 1,1 biliões de dólares na economia, principalmente nos governos locais e nas empresas públicas. Terá sido a mais rápida concessão de crédito bancário da história mundial, com o dinheiro a ficar disponível num tempo recorde de seis meses, ao longo do primeiro semestre de 2009. A economia reagiu bem – em 2008 e 2009, cresceu quase 19% –, mas, para académicos como Dinny McMahon, autor de China, Great Wall of Debt (Little Brown, London, 2018), a dívida bancária das empresas tornou-se o novo motor do crescimento chinês.

Pós-2013: o ‘novo normal’ O abrandamento da economia tornou-se uma verdade incontornável a partir de 2015. Uma resolução aprovada durante o 18º Congresso do PCC, no final de 2012, antecipava já o arrefecimento económico e prometia dar um novo impulso às políticas reformistas. «Reformar é como navegar contra a corrente: se não fores em frente, serás puxado para trás», declarou o primeiro-ministro, Li Keqiang. Embora o investimento esteja em queda, à medida que a demografia e o envelhecimento da população provocam uma subida dos salários, Pequim mantém ligados dois motores de crescimento: o capital humano, mais qualificado, e a nova classe média de 300 milhões de pessoas, com padrões mais elevados de consumo. A China tem as maiores fábricas do mundo e continuará a ser o maior mercado do planeta, mas continua a ser um país em desenvolvimento. E a sua economia continua muito dependente da tecnologia e do capital de países como os EUA, o grande rival numa guerra comercial que ameaça arrastar o mundo para uma nova recessão. VISÃO H I S T Ó R I A

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Xi Jinping, o novo ‘timoneiro’ Teoricamente, pode ficar até 2035 «ao leme, conduzindo o país por entre ventos e ondas, rumo a um futuro mais brilhante»

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formas» lançadas no final da década de 1970 e que, no espaço de uma geração, transformaram a China na segunda economia do planeta. O culto da personalidade em torno de Xi é outro fenómeno sem precedentes depois de Mao. Ainda não lhe chamam «Grande Timoneiro», como acontecia com o fundador do regime, mas falta pouco. No perfil de Xi difundido pela agência noticiosa oficial Xinhua, por ocasião da grande parada militar, o atual presidente «está ao leme, conduzindo o país por entre ventos e ondas, rumo a um futuro mais brilhante». É mais do que uma metáfora: a bandeira da antiga República da China (sem o adjetivo «popular») continua hasteada em Taiwan, a ilha onde o governo do Partido Nacionalista (Kuomintang) se refugiou depois de os comunistas terem tomado o poder no continente. O PCC defende a «reunificação pacifica»,

A mulher do Presidente Peng Liyuan, uma conhecida cantora de ópera

segundo a mesma fórmula adotada para Hong Kong e Macau («um país, dois sistemas»), mas ameaça «usar a força» se a ilha declarar a independência. Em março do ano passado, a Assembleia Nacional Popular chinesa aboliu o limite de dois mandatos consecutivos para o presidente e vice-presidente da República, permitindo a Xi Jin Jinping manter-se no poder para além de 2 2023. Dois dos 2963 depu deputados votaram contra a aquela emenda constituc constitucional, três abstiveram abstiveram-se e os restantes votaram vot a favor. «Sem uma liderança centralizada, unificada e fir firme», argumentam argumen os ideólogos ideól do PC PCC, a China « «ten-

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equim, 1 de outubro de 2019. Do alto da Porta da Paz Celestial (Tiananmen) – a imponente tribuna de cor púrpura onde 70 anos antes Mao Tsé-Tung anunciou o nascimento de uma «nova China» e «o fim de mais de um século de humilhação e sofrimento» – o secretário-geral do Partido Comunista da China (PCC), Xi Jinping, preside à maior parada militar da história moderna do país. Entre as armas exibidas pela primeira vez sobressai o míssil balístico intercontinental Dongfeng-41, com um alcance de 14 mil quilómetros e capacidade para transportar dez ogivas nucleares. (Um «dissuasor estratégico» que «pode atingir qualquer ponto do planeta», precisou o Global Times, um tabloide nacionalista do grupo Diário do Povo, o órgão central do PCC). «Ninguém poderá abalar as bases desesta grande nação», proclamou Xi Jinping. ng. A 2 mil quilómetros da capital, na Região ão Administrativa Especial de Hong Kong, ng, manifestantes pró-democracia, quase se todos jovens, pisavam o retrato de Xi e reclamavam a eleição dos seus goverernantes por sufrágio direto. «Um país, ís, dois sistemas» – fácil de dizer, difícil de harmonizar. ro Com 63 anos, Xi Jinping é o primeiro líder chinês nascido depois de 1949 e o mais forte desde Mao Tsé-Tung (18833-1976). Mais forte até do que Deng ng Xiaoping, o «arquiteto-chefe das ree-

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por António Caeiro


Demonstração de força Com o Presidente na linha da frente, os 70 anos da República Popular foram o pretexto para a maior parada militar da história. Desfilaram 15 mil soldados, ao lado de blindados, drones e armas como o míssil balístico DF-41, capaz de alcançar os EUA em 30 minutos

deria para a divisão e a desintegração, causando um caos generalizada para lá das suas fronteiras.»

Punidos por corrupção Esta «nova era» – outra expressão muito em voga – começou há sete anos, quando Xi Jinping ascendeu à chefia do PCC. É a maior organização política do mundo, com cerca de 90 milhões de filiados, e o seu «papel dirigente» é um «princípio cardeal» que ninguém nem nenhuma força pode contestar. «Governo, Forças Armadas, sociedade e escolas, Norte, Sul, Leste e Oeste, o Partido deve liderar tudo», costuma dizer Xi Jinping. Mais de um milhão e meio de funcionários – centenas dos quais com a categoria igual ou acima de ministro – foram, entretanto, punidos por corrupção, na mais drástica campanha do género de que há memória na China. Pela primeira vez em 70 anos, um antigo membro do Comité Permanente do

Politburo – a cúpula do poder – foi condenado a prisão perpétua por ter aceitado subornos no valor de 129 milhões de yuan (16 milhões de euros) e outros crimes. Trata-se de Zhou Yongkang, ex-chefe da segurança interna do país, que tutelava as polícias, os tribunais e os serviços de informação. Dois ex-vice-presidentes da Comissão Militar Central, os generais Guo Boxiong e Xu Caihou, foram também presos e condenados. A «absoluta liderança» do Partido tem sido aplicada com especial rigor nas Forças Armadas. Xi

O culto da personalidade em torno de Xi é um fenómeno sem precedentes depois de Mao

é «comandante-chefe do Centro Conjunto de Operações Militares», um novo posto, criado em 2016. «O poder está na ponta da espingarda», ensinava Mao. Outrora pobre e isolada, a China é hoje a segunda economia mundial, com a mais extensa rede de autoestradas e de caminhos-de-ferro de alta velocidade do planeta. Nos últimos 40 anos, o seu contributo para o crescimento global subiu de 1,1% para 27,5%; a percentagem das suas importações e exportações no comércio mundial passou de 0,1% para 17,8 por cento. A China é já o país mais representado entre as 500 maiores empresas do mundo apuradas pela revista Fortune, com 129 contra 121 dos Estados Unidos, que passaram para segundo lugar. (No ano 2000 havia apenas dez empresas chinesas na lista). Pelas contas oficiais, cerca de 700 milhões de pessoas saíram da pobreza e 400 milhões já pertencem à classe média. VISÃO H I S T Ó R I A

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‘Príncipe Vermelho’ «Príncipe vermelho», filho do general Xi Zhongxun, um herói da luta revolucionária que conduziu o Partido Comunista ao poder, Xi fez a instrução primária na Escola 1º de Agosto, uma escola de elite em Pequim. Em 1959, o pai foi promovido a vice-primeiro-ministro, mas três anos depois caiu em desgraça, acusado de pertencer a uma «clique anti-Partido». A China estava a sair do «Grande Salto em Frente» (1958-61), a campanha preconizada por Mao para acelerar a industrialização do país e coletivizar a agricultura, que provocaria milhões de mortos. Embora os números variem muito – desde «dezenas de milhões» até «cerca de quatro milhões» – é considerada a maior fome do século XX 80 V I S Ã O H I S T Ó R I A

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Outro recorde: no ano passado, 150 milhões de chineses passaram férias fora da China continental, confirmando o país como o maior emissor de turistas. «Em poucas décadas, a China fez um percurso que países desenvolvidos demoraram várias centenas de anos a percorrer», salienta o governo chinês. Mas, para Xi Jinping, a hora não é apenas de festa. «A China está confrontada com grandes riscos e desafios de crescente complexidade», alertou o presidente chinês a 3 de setembro, um dia antes de a chefe-executiva de Hong Kong, Carrie Lam, protagonizar uma rara cedência ao movimento pró-democracia. Num discurso na Escola Central do PCC, Xi Jinping exortou os jovens quadros a «manter um espírito combatente» e a «fortalecer a capacidade de luta». Sem referir a persistente contestação em Hong Kong ou o aceso diferendo político e comercial com os Estados Unidos, Xi proclamou que, perante «situações e tarefas difíceis», os responsáveis do PCC devem «ousar lutar e vencer». Como outras frases de novo em voga, aquele slogan evoca logo a «Grande Revolução Cultural Proletária», lançada pelo antigo presidente Mao Zedong em 1966. Xi Jinping tinha então 13 anos.

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CHINA // HOJE

China moderna O investimento em infraestruturas mudou a face do país. Nas imagens, a barragem das Três Gargantas e um comboio de alta velocidade

causada por razões políticas. Mao teve de ceder a presidência da República ao «número 2» do Partido, Liu Shaoqi. Após o lançamento da Revolução Cultural, todos os críticos de Mao foram denunciados como «revisionistas», «reacionários» ou «seguidores do capitalismo». Eles, os filhos e outros familiares tornaram-se «inimigos de classe». Os Guardas Vermelhos, um movimento nascido entre estudantes de uma escola secundária de Pequim, eram a nova vanguarda. Em 1969, Xi foi trabalhar para o campo, para «aprender com os camponeses pobres». Toda a juventude urbana passou por isso. As universidades, consideradas um bastião de «ideias burguesas e revisionistas», foram encerradas.

Há fotografias de Xi caminhando com uma enxada ao ombro em Liangjiahe, uma aldeia da província de Shaanxi, no norte da China. Não parecia deprimido nem resignado. «Quando cheguei estava ansioso e confuso. Quando parti, aos 22 anos, os objetivos da minha vida estavam claros e eu sentia-me cheio de confiança», diria mais tarde Xi Jinping, numa rara entrevista sobre a sua vida pessoal. Ainda em Liangjiahe, filiou-se no Partido. De regresso a Pequim, em 1975, fez o curso de Engenharia Química na Universidade Qinghua e a seguir entrou para a secretaria da Comissão Militar Central. A sua carreira política começou aqui, entre militares. Militares, isto é: soldados do Exército Popular de Libertação, o nome oficial – ainda hoje – das Forças Armadas chinesas.


Protestos em Hong Kong Manifestantes pisam o retrato de Xi Jinping no Dia Nacional da China

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Mesmo com as melhores guanxi (relações), não é fácil subir num partido tão populoso como o PCC. Ao fim de três anos, Xi foi colocado num município da vizinha província de Hebei, primeira etapa de uma longa marcha pela administração local. Em 1987, quando casou com Peng Liyuan, uma popular soprano do exército, era vice-presidente do governo de Xiamen, uma Zona Económica Especial, na costa leste da China. Em 1997, o ano em que a China reassumiu a soberania de Hong Kong, entrou para o Comité Central, com o estatuto de suplente. Continuava longe de Pequim, mas ia acumulando apoios e experiência. Cinco anos mais tarde, chegou a líder de uma das mais prósperas províncias chinesas, Zhejiang. Situada na costa leste, junto a Xangai, Zhejiang é um dos berços da iniciativa privada do país. Foi lá que nasceram o grupo Alibaba, o maior consórcio de comércio eletrónico do mundo, cotado na Bolsa de Nova Iorque. A Geely, o fabricante de automóveis que há oito anos comprou a Volvo por 1500 milhões de dólares, também começou em Zhejiang. No XVII Congresso do PCC, em 2007 – um ano antes dos Jogos Olímpicos de Pequim – ascendeu ao Comité Permanente do Politburo, encabeçado pelo secretário-geral do Partido, Hu Jintao, e composto na altura por nove elementos (mais dois do que atualmente). No ano seguinte, assumiu os cargos de vice-presidente da

República e da Comissão Militar Central, a liderança política das Forças Armadas. Embora ocupasse o sexto lugar da hierarquia, era encarado como o próximo «número 1». O percurso replicava os passos que Hu Jintao tinha percorrido cinco anos antes para suceder a Jiang Zemin.

Líder ‘inamovível’ Xi Jinping fará 68 anos em 2021, quando a China festejar o centenário da fundação do Partido Comunista. Dois anos mais tarde, completará o seu segundo mandato como Presidente da República, mas isso já não é um problema. Teoricamente, poderá liderar a China até 2035, quando o processo de «modernização socialista» estiver concluído e o país for já um «líder global no domínio da inovação». As universidades chinesas formam anualmente cerca de 8 milhões de licenciados, 58% dos quais nas áreas da

Cerca de 700 milhões de pessoas saíram da pobreza, 400 milhões pertencem à classe média e 150 milhões passaram férias fora da China continental

Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemáticas. É oito vezes mais do que nos Estados Unidos. Última grande nação com governo comunista, definida na sua Constituição como «um estado socialista, dirigido pela classe trabalhadora e assente na aliança-operário-camponesa», a China tem 4800 empresas cotadas na Bolsa: mais do que a maior potência capitalista. Para o PCC, no entanto, «modernização não significa ocidentalização». O acesso ao Facebook, Google, Youtube e muitos outros sites está, aliás, bloqueado. Num Livro Branco sobre A China e o Mundo na Nova Era, difundido nas vésperas do 70º aniversário da República Popular, o governo chinês sustenta que a modernização «não pode ser alcançada através do mesmo modelo». Pelo contrário: «Alguns países copiaram cegamente o modelo ocidental ou foram forçados a adotá-lo, mas não obtiveram desenvolvimento económico nem estabilidade política. Em vez disso, caíram na agitação social, crise económica, paralisia governamental e até guerra civil interminável.» No espaço de apenas quatro anos, Xi Jinping presidiu a três paradas militares, outro feito inédito. Na parada mais recente – com 15 mil soldados e centenas de viaturas blindadas, mísseis, drones e outras armas sofisticadas – Xi Jinping enfatizou: «Nenhuma força pode travar o avanço do povo e da nação chinesa.» VISÃO H I S T Ó R I A

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Panorâmica Vista parcial da cidade por volta de 1920

MACAU, UM PÉ NA CHINA

De pequeno território autogovernado por portugueses com o consentimento chinês, a Cidade do Nome de Deus na China evoluiu para o estatuto de colónia no período das Guerras do Ópio (sem que Lisboa alinhasse com os restantes europeus) e para o de território chinês sob administração lusa, até ao seu regresso à «mãe-pátria» por António Vasconcelos de Saldanha* VISÃO H I S T Ó R I A

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omeçou por ser a China. A relação dos portugueses com a China é cerca de 40 anos anterior à sua relação com Macau, então uma ínfima aldeia piscatória numa península do delta do rio das Pérolas, na província de Cantão. O arranque expansionista que se seguiu imediatamente à chegada dos portugueses aos mares da Ásia e à colocação de um padrão real por Jorge Álvares em Tamão, algures num ponto desse delta (1513), levou-os mais longe, às províncias costeiras do Fujian e do Zhejiang. Por aí andaram mercadores de maior ou menor lustre de nascimento, irmanados com muitos outros que se espalharam por toda a Ásia num objetivo principal: enriquecer e rapidamente, fora do alcance das peias impostas pela disciplina e organização da empresa da Coroa, gerida da Índia, ou, no máximo, de Malaca. Alheios ao desastre da embaixada conduzida por Tomé Pires em nome de el-rei D. Manuel até às portas da corte imperial em 1520, enriquecer desse modo e nas costas da China significou para centenas, senão milhares de portugueses, o envolverem-se na acidentada vida mercantil daqueles mares, frequentemente apodada de tráfico, contrabando ou pirataria. Em parcerias complexas com japoneses, chineses e malaios da mesma sorte, foi rápida a aprendizagem da China pelos portugueses, mais rápida do que a consagração progressiva do rosto marítimo do império nos mapas que os cartógrafos foram desenhando, de facto os primeiros que materializaram a imagem mítica da Ásia no conhecimento europeu. A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto dá fé desse estilo de vida e das vicissitudes da fortuna dos que a essa vida se entregaram, indiferentes às bandeirolas pintadas com as quinas e as esferas armilares que os cartógrafos portugueses iam semeando ao longo das rotas delineadas da Ásia. Foram essas vicissitudes que levaram os portugueses – expulsos e destruídas as suas bases primeiras, como a lendária Liampó, no Fujian, pelas forças de

defesa marítima chinesas (1548) – a baixarem a outras paragens mais a sul, como o delta do rio das Pérolas, na província de Cantão. Aí, de facto, lograram os portugueses uma maior tolerância para com a utilização de bases costeiras para o estabelecimento e prática de um comércio irregular que a todos convinha em Cantão, dos mercadores às populações costeiras e aos magistrados, corruptos uns, zelosos outros de apaziguar a latente ameaça e inverter em proveito do império a agressiva dinâmica da presença dos estrangeiros do grande mar do Ocidente. Na ilha de Sanchoão, procurou esses mercadores e entregou-se à sua guarda o padre jesuíta Francisco Xavier, na sua derradeira tentativa de, em prol do Padroado

Destruída chineses a base de Liampo, os portugueses desceram para o delta do rio Peixes

Português, entrar e inaugurar a missão católica na China (1552). Anos mais tarde, outro jesuíta, o padre Melchior Nunes Barreto, já os encontrou noutra ilha, em Lampacau, mais a leste, e já com eles pôde entrar na China e visitar a maior metrópole comercial do sul (1555). O feito inédito ficava a dever-se ao chamado assentamento de Leonel de Sousa (1554), o primeiro acordo verbal entre um capitão português nomeado pela Coroa e uma autoridade provincial de Cantão pautando um modus vivendi entre portugueses e chineses na região. A essa fase seguiu-se outra, a da mudança para a pequena aldeia piscatória a que os portugueses chamaram Macau, e a que os chineses ainda hoje conhecem pelo nome antigo de Aomen, mais conveniente pela proximidade de comunicações e acesso aos imensos mercados de Cantão. A data precisa do estabelecimento fixo de uma comunidade em Macau é ainda hoje discutida, mas é geralmente aceite que rondasse os anos de 1555-1557. Grande parte da história de Macau é, assim, a história de uma comunidade mercantil que se assentou e autoestru-


Cosmopolitismo As ruínas de S. Paulo segundo uma litografia alemã de Wilhelm Heine (à esquerda) e uma antiga planta da península de Macau, de origem francesa

turou sob consentimento das autoridades chinesas na província de Cantão e originalmente à margem da jurisdição dos estabelecimentos oficiais da Coroa Portuguesa na Ásia. É a história da gestação lenta das instituições de autogoverno da Cidade do Nome de Deus na China, como o foi o caso do Senado de cidadãos mercadores, com uma Misericórdia e até os primeiros locais de culto fundados pelos seus cidadãos em parceria com a Igreja, que aí adivinhou cedo a potencialidade de levar à China a missionação católica. É também a história da «oficialização» dessa comunidade sob a égide da Coroa e do Padroado Português, primeiro com a criação pontifícia de uma diocese de Macau de jurisdição estendida a toda a China (1576) e sufragânea do Arcebispado de Goa, e depois com a atribuição dos privilégios municipais moldados sobre os da cidade portuguesa de Évora em 1586 e a nomeação de um capitão-geral (1623) que, nomeado diretamente pelos delegados do rei em Goa, consagraria definitivamente, e até 1844, a dependência administrativa, judicial, militar e politica e Macau da metrópole do Império Português na Ásia. Finalmente, a história de

Macau é a história da criação ab ovo de uma rede de ligações comerciais vastíssima e diversificada. Como tal, definida por alguém como a única e mais verdadeira criação dos portugueses na Ásia, a situação privilegiada de Macau consentiu que a cidade se constituísse durante séculos, na Ásia marítima, como uma placa giratória ligando alternada ou cumulativamente os portos da Índia, do Sudeste Asiático, da Insulíndia e do Japão, garantindo-lhe a sobrevivência em conjunturas de diversa e acentuada dificuldade, sobretudo na transição do século XVII para o XVIII.

Autogovernação consentida Desemaranhar o conteúdo do que um historiador chinês definiu como «os segredos da sobrevivência» de Macau é uma operação extremamente complexa. Como em todas as áreas do império português, se conhecemos bastante das regras oficiais de equilíbrio e das margens de autono-

mia que se consentiram, pressentimos, mais do que sabemos, do que não ficou escrito e que assentou fundamentalmente em relações de proveito mútuo pessoal ou grupal desenvolvidas de acordo com cultura predominante no local. Em Macau, para lá do que poderemos admitir como uma miríada de arranjos e proveitos de pessoas e grupos dos dois lados (situação que, aliás, já presidira ao próprio nascimento de Macau), a palavra de ordem foi o óbvio do consenso sobre o benefício diário ou excecional: a circulação de pessoas e mercadorias entre Macau e a China, a prática e o exercício religioso católico, a aplicação da justiça própria, a taxação de navios e mercadorias, o ajuste de acordos informais no que diz respeito ao uso das águas circundantes e até a efetivação de campanhas de erradicação de pirataria costeira que, iniciadas no século XVI, ainda se verificaram nos inícios do século XIX e do século XX. Em registo mais elevado, por Macau entrou o punhado de embaixadas que a Coroa portuguesa enviou à corte imperial nos séculos XVII e XVIII, por Macau se estabeleceram na China as grandes e prestigiadas missões jesuítas e a Macau recorreram imperadores e mandarins como uma via única de saída para contacto com o exterior marítimo e a longínqua Europa, com propósitos diplomáticos ou comerciais. Bandeiras As insígnias do Leal Senado, com os dois anjos, foram durante séculos a imagem heráldica de Macau mais utilizada para representar o território O brasão do Governo de Macau foi criado apenas em 1939 e nunca foi muito usado

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CHINA // MACAU

Colónia portuguesa Quando, em 1839, eclodiu em Cantão a crise anglo-chinesa que conduziu rapidamente à chamada 1ª Guerra do Ópio, as autoridades portuguesas de Macau estavam já cientes de incómoda situação em que se encontravam, divididas entre os deveres de proximidade ao mais sólido aliado de Portugal na Europa e as conveniências locais de não perturbação das pautas tradicionais de entendimento com a China. Aliás, poucos anos atrás, já tinha sido precisamente o Senado de Macau a alertar as autoridades imperiais 86 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Dois mundos Vendedores de peixe chineses em 1902 e o Palácio do Governador em 1900 GETTYIMAGES

Durante quase 300 anos vigorou em Macau um sistema de equilíbrio baseado, do lado chinês, no «consentimento» nas margens marítimas do império de uma comunidade estrangeira autogovernada, e do lado português na aceitação de um estatuto de gentes «consentidas», pautado formalmente por regras escritas, decretos imperiais publicados e publicitados em Macau no tempo dos imperadores Wanli (1572-1620) e Qianlong (1735-1796), sustentado por um sistema de administração baseado numa restrição espacial marcado por portas e muralhas de desenho definido pela China, numa militarização limitada às necessidades de ordem pública e defesa, na aceitação de um chefe da comunidade (a quem os portugueses chamaram «capitão» ou mais tarde «governador») e pela permeabilidade existente entre a autogovernaçao da comunidade portuguesa e a administração imperial. Aí, o pivot foi o procurador do Senado, o «olho dos bárbaros», simultaneamente dotado de um ínfimo grau no mandarinato consentâneo com as regras da comunicação burocrática chinesa. As famosas «chapas sínicas» ainda hoje existentes no arquivo nacional da Torre do Tombo dão fé da abundância temática e da fluidez desse relacionamento, bem como do caráter da dependência de Macau do cumprimento dessas pautas de comportamento consentido para a sua sobrevivência.

para o risco implícito em qualquer cedência territorial aos ingleses. Agora, a crise tinha confirmado o aviso da forma mais dramática e Macau avaliava com desgosto não só a criação de um entreposto britânico rival em Hong Kong, mas também a verdadeira corrida à celebração de tratados de privilégio, que a derrota da China facilitara primeiro aos ingleses e, na sua peugada, aos franceses e aos americanos. Em 1843, aproveitando a estada em Macau do delegado imperial Qi Ying, que ali viera com o propósito de gerir as negociações com os «bárbaros», o governador Silveira Pinto, em conjunção com o Senado, avançou então com uma

O impasse entre a China e Portugal colocou Macau num limbo e num novelo de ajustes informais que o condicionaram durante décadas

proposta da cidade. Ao invés de reclamar o estatuto de «potência de tratado», os portugueses não contestavam a tradicional inserção de Macau na ordem imperial chinesa, limitando-se a reclamar o ajuste da pauta centenária de relacionamento, cassando todas as formas sugestivas de uma sujeição antiga, inclusive a abolição do tributo e das formas de tratamento deferencial em correspondência, a redução da taxação dos navios e o seu acesso aos cinco portos recém-abertos por imposição inglesa. O total desconhecimento da realidade política e económica de Macau por parte dos delegados imperiais, bem assim como o afastamento das elites comerciais cantonensas da cena das negociações, levou à frontal recusa dos pedidos portugueses por parte do imperador. A situação de injustiça da parte chinesa face à neutralidade penosamente assumida por Macau e por Portugal durante o conflito sino-britânico, acumulando com o sentimento de inferioridade em relação a outras potências ocidentais recém-chegadas à China e a imensa frustração decorrente do fracasso inglório das negociações de um ajuste direto de um renovado estatuto para Macau, tudo


Porto Interior As sampanas (barcos) atracadas e o bulício comercial, cerca de 1880

terá empurrado Portugal para soluções unilaterais mais radicais. Em sintonia com um amplo processo de reforma colonial, o decreto régio de 1844 que autonomizava Macau no quadro da administração ultramarina portuguesa como a «Província de Macau, Solor e Timor», concentrando nas mãos de um governador o poder civil e militar do território, seria o toque de finados para alguma veleidade de autonomia que a

administração local do Senado ainda pudesse ter num contexto de articulação com as autoridades chinesas. A sequente declaração régia da franquia do porto de Macau em 1845 (uma medida desesperada para proporcionar algum alento à economia depauperada do território) tornaria ainda mais claro o intuito do governo de Lisboa de tomar definitivamente em mãos os interesses nacionais na China. Finalmente, em 1846, a nomeação do

governador João Ferreira do Amaral (um militar com abundantes provas dadas de firmeza em contexto colonial) tiraria quaisquer dúvidas quanto à decisão de Portugal, de uma vez por todas, implementar unilateralmente as reformas exigidas pelas alterações radicais do contexto regional pós-Guerra do Ópio. Com carta branca de Lisboa e orientado pelos setores reformistas de Macau, entre 1846 e 1849 Ferreira do Amaral afrontou e enfrentou simultaneamente as autoridades chinesas – demolindo eficazmente os poucos e enfraquecidos símbolos da supremacia chinesa no território (eliminando as alfândegas, as lápides com os decretos imperiais, o simbólico tributo anual, a presença de um mandarim residente e o papel intermediário do procurador do Senado) – e os interesses de uma plutocracia local agrupada em redor da instituição decrépita do Senado e com ramificações na Índia e em Cantão, consabidamente envolvida no tráfico do ópio e outros expedientes consentidos pela liberdade de manobra

QUATRO SÉCULOS E MEIO 1557

1583

1602

1688

1846

1862

1987

1999

As autoridades locais permitem que os portugueses se estabeleçam permanentemente em Macau

Macau não reconhece a anexação de Portugal pela Espanha. É fundado o Leal Senado. A cidade é um importante entreposto comercial

Chega o primeiro governador nomeado por Lisboa

A China estabelece uma alfândega no território e, mais tarde, impõe um mandarim residente

O governador Ferreira do Amaral aba com acaba lfândega a alfândega hinesa e chinesa xpulsa o expulsa andarim mandarim (o que lhe ustará a custará vida)

A China reconhece Macau como colónia portuguesa

Começam as negociações luso-chinesas vist à com vista reintegra reintegração na Chin China

O território é reintegrado na China, como Região Administrativa Especial de Macau (RAEM)

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CHINA // MACAU

Figuras macaenses do final do século XIX Vendedor de legumes, mulher da classe média, família de pedintes e um burocrata

que ambiguidade do estatuto de Macau consentira até então. Em agosto de 1849, Ferreira do Amaral acabou assassinado às mãos de um chinês, claramente acobertado pelas autoridades imperiais de Cantão e menos obviamente por mandantes ou facilitadores oriundos daquele meio em Macau. Todavia, Macau não seria mais o mesmo e, apesar de muitos reajustes impostos pela necessidades práticas da sobrevivência diária da cidade e da sua comunidade, o facto é que a autonomia formal do território na China, o seu estatuto declaradamente colonial e a sua plena

inserção na máquina administrativa do império colonial ultramarino português estavam para ficar, e efetivamente ficaram até 1974.

Estatuto indefinido A história de Macau ao longo do século XIX é uma variação sobre esses temas, o que é dizer sobre a manutenção do statu quo definido durante o governo dos imediatos sucessores de Amaral, jogando-a com maior ou menor habilidade num tabuleiro bidimensional. Internamente, procurando satisfazer, reequilibrando, as posições distanciadas da comunidade

As chapas sínicas documentam as relações de Macau com as autoridades chinesas entre os séculos XVII e XIX

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chinesa local e da comunidade macaense, ambas crescentemente educadas e cosmopolitas, a primeira ligada a redes chinesas ultramarinas e às elites de Cantão, a segunda com uma apetência sensível para a emigração para os novos centros de oportunidade inaugurados pela presença inglesa na China, em Hong Kong, em Xangai ou em Cantão. Em relação a Lisboa, replicando as estruturas administrativas e judiciais ultramarinas e acompanhando quanto fosse possível as políticas de fomento colonial na sua versão local. Prova disso são diversos projetos mais ou menos (ou mesmo nada) conseguidos, mas que por si são prova de um empenho ou determinação na melhoria e crescimento de Macau, as mais das vezes frustrados por razões de política externa (mormente as da China e as da Inglaterra, definitivamente instalada na vizinha Hong Kong) ou por oposição de interesses estabelecidos internos: o saneamento e o desenvolvimento urbanos, a industrialização, a potencialização das águas portuárias, o caminho-de-ferro de ligação a Cantão, a determinação dos limites marítimos e a expansão territorial para as ilhas circundantes da Taipa, Coloane, D. João e Montanha, a regula-


JACK BIRNS/GETTYIMAGES

mentação dos jogos de azar, o combate ao tráfico do ópio e a disciplina do tráfico dos coolies em alinhamento com as políticas internacionais aplicáveis nestas matérias. Externamente, a situação não seria de menos complexa gestão, pelo contrário. Se Portugal conseguira levar a cabo a definitiva autonomização de Macau pelo entorpecimento da China a braços com a brutalidade do expansionismo britânico durante e após a Primeira Guerra do Ópio (1839-1842), a verdade é que a ausência de Portugal da não menos brutal Segunda Guerra do Ópio (1856-1860) inibiu, por outro lado, que se colhessem os proveitos que a comunidade das potencias ocidentais envolvidas (Inglaterra, França, Rússia e EUA) retiraram da imposição à China de uma nova pauta de relacionamento politico e diplomático. Apesar das tentativas portuguesas para negociar com as autoridades imperiais um tratado que garantisse a extensão a Portugal dos privilégios comerciais garantidos na China a outras potências, bem assim como a consagração formal do novo estatuto de Macau inaugurado no governo de Ferreira de Amaral, a verdade é que a China se sentiu à vontade para, por um lado, o negar, recusando a celebração de qualquer tratado, e, por outro, para exigir intransigentemente um regresso ao statu quo ante de Macau como território tributário sujeito à ordem imperial. O impasse colocou Macau num limbo e num novelo de ajustes informais que condicionaram o seu progresso e desenvolvimento durante décadas: para lá de enlear o território e os interesses de Portugal numa situação de inferioridade por contraste com outras presenças ocidentais em plena expansão na China e na região, limitou grandemente a concretização de muitos desses projetos, que se baseavam, precisamente, na clarificação dos limites territoriais, marítimos e terrestres. Uma questão sempre em aberto, que transitou da Monarquia para a República, e

Força expedicionária Marinheiros portugueses na Rua da Felicidade, em 1949

que assim em parte permaneceu até à transferência de 1999.

Soberania dividida O único progresso verdadeiramente relevante nesta matéria, ainda neste século XIX, foi o Tratado de Amizade e Comércio Luso-Chinês de 1887. Aproveitando habilmente um contexto de necessidade por parte da China da cooperação de Portugal para a implementação da sua política marítima de controlo do tráfico do ópio, o governo português conseguiu finalmente superar as debilidades passadas, celebrando pela primeira na história das relações dos dois países um tratado em forma, ainda que, sem qualquer fundamento que não seja a mera propaganda, seja recorrentemente referido no rol dos tratados ditos «desiguais». Em verdade, ganharam as duas partes. Portugal ganhou a parificação no contexto de outras presenças europeias na China, colhendo (independentemente do uso que deles

pôde fazer em pleno) a extensão de benefícios comerciais e políticos. E ganhou sobretudo o que há muito se impunha, como o era a definição internacional do seu estatuto face à China. Arredado de vez o retorno de Macau a uma situação de «tributariedade» no contexto de uma ordem imperial já caduca na prática, as partes acordariam numa solução técnica de «domínio» ou «soberania dividida» (que antecedeu de algum modo a menos inocente figura dos lease territoriais a que outras potências europeias tanto recorreram na China). Aí radica a definição da fórmula constitucional vigente até 1999 (Macau como território sob administração portuguesa) pela qual se permitiu que, fechando um ciclo de quase 500 anos, se pudesse falar de uma final e definitiva devolução ou «transferência de soberania» para a China. * António Vasconcelos de Saldanha é professor catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade de Macau VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // MACAU

Ser macaense

Macau tende hoje a perder as características de espaço de «origem», para assumir as de território de acolhimento onde a comunidade macaense passa a sentir-se emigrante na cidade onde nasceu

efinir o «ser macaense» é sempre uma tarefa difícil, considerando a complexidade social que lhe deu origem, a longa duração de um processo de miscigenação étnico-cultural que se estendeu por muitas gerações e a interação entre os diferentes territórios que permitiram as reconfigurações da sua identidade. A identidade étnica dos macaenses resultou do encontro entre grupos humanos de diferentes origens que ocorre por força de dois movimentos migratórios, centrados em Macau.

Migrações e territórios O primeiro desenvolveu-se ao longo de mais de quatro séculos, com a passagem por aquela cidade de diferentes fluxos migratórios asiáticos e europeus, transformando-a num ponto de contacto entre comerciantes e marinheiros, soldados e religiosos, piratas e aventureiros. Destas mobilidades e do dinamismo social característico de uma cidade portuária constituiu-se uma comunidade luso-asiatizada, que foi integrando, ao longo do tempo, os contributos de outras realidades culturais, acabando por assumir uma identidade singular. O segundo movimento envolveu esta comunidade macaense que, não obstante as experiências migratórias que conhecera anteriormente, iniciou um processo migratório massivo, cuja origem se associa ao nascimento de Hong Kong (1841-42). Com a deslocação de numerosos macaenses para a nova colónia britânica iniciou-se o que se considera ser a diáspora ma90 V I S Ã O H I S T Ó R I A

caense, que se foi intensificando ao longo da segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, tendo, principalmente, duas cidades de destino: Hong Kong e Xangai. Após a II Guerra Mundial, e com o regresso da comunidade dos «portugueses de Xangai» a Macau, a partir de 1949, a comunidade macaense iniciou novas experiências migratórias, que a levaram à América (Brasil, Estados Unidos, Canadá…), à Europa (Portugal, Grã-Bretanha…); à Oceânia (Austrália); e à Ásia (Hong Kong, diferentes cidades chinesas…). É na complementaridade entre estes dois movimentos migratórios que se coloca a primeira peça na construção do complexo puzzle que constitui o «ser macaense». O permanente contacto com outras realidades culturais, associado a uma capacidade de adaptação e integração de elementos culturais dos grupos com que convivia nos diferentes territórios, moldou o processo de uma constante reconfiguração cultural que explica a sua singularidade e, talvez, a sua sobrevivência.

LUÍS VASCONCELOS

D

por Alfredo Gomes Dias*

Mudança Com a passagem para a China, a comunidade asiática fortaleceu-se face à europeia

Tendo na sua génese aqueles dois movimentos migratórios, – um, convergindo para Macau; o outro, divergindo para o mundo – o «ser macaense» tem a sua origem em dois territórios. O primeiro, Macau, foi o local de nascimento e de convívio diário com outros grupos culturais, com destaque para os portugueses que rumavam àquela cidade enquanto se manteve sob administração portuguesa. A estes juntavam-se as comunidades asiáticas: chinesas, indianas, malaias ou filipinas. Macau, cidade portuária, era um espaço privilegiado para o encontro com o Outro, onde o Porto Interior, favorecendo as redes sociais com a China vizinha, se complementava com o Porto Exterior, capitalizando as interações com outros asiáticos de origem mais longínqua, e os povos europeus. A Macau associa-se Portugal, território de origem «mítica», que conferiu à identidade macaense os fundamentos de uma ancestralidade aglutinadora, erguida num longo processo histórico. Deste segundo território de origem, o «ser macaense» adotou algumas características que o aproximam de um «portuguesismo» que, muitas vezes, integra o discurso macaense, nomeadamente referindo-se ao domínio da língua e à religiosidade católica. Para além dos territórios de origem, a construção da identidade macaense resultou dos processos de integração nas sociedades de acolhimento, com a comunidade a revelar a capacidade de se adaptar aos novos contextos socioculturais e de construir pontes com o território de origem – Macau. Nos territórios de destino da diáspora jogou-se, mais uma vez, o processo de reconfiguração cultural da sua identidade, preservando «Macau» no seio das comunidades que se dispersaram pelo mundo, e formando uma rede intercontinental que alimentou a comunidade de origem com novos elementos culturais.

Gerações e famílias Se os territórios constituem a dimensão espacial da formação da identidade ma-


GONÇALO ROSA DA SILVA

Ruínas de São Paulo A língua e a religião católica são a face mais visível da herança portuguesa em Macau

caense, as gerações envolvidas nos processos de reconfiguração cultural, naqueles diferentes territórios, oferecem-lhe a sua dimensão temporal. A construção de uma identidade étnico-cultural é sempre um processo de longa duração e, neste caso, envolveu sucessivas gerações de famílias que se foram constituindo ou alargando, recebendo no seu seio novos elementos com diferentes origens asiáticas e europeias. Por outro lado, estas mesmas famílias foram quase todas incluídas nos movimentos da diáspora, cada uma delas alimentando os diferentes fluxos migratórios ao longo de várias gerações e experimentando diferentes destinos. Esta constante temporal, de disponibilidade para o contacto com o Outro foi um dos fatores que garantiram quer o seu processo de

construção identitária quer a afirmação da sua existência e sobrevivência enquanto comunidade, cuja singularidade se traduziu na razão de «ser macaense». Diretamente relacionada com a dimensão geracional encontramos a quarta e última dimensão, que se centra nas famílias macaenses. Foi no seu seio que se construíram as práticas culturais sobre as quais se ergueu a identidade macaense, integrando, pela via do casamento, pessoas de outras origens, em particular os portugueses, os quais garantiram a preservação da componente europeia da identidade macaense. Na diáspora, foram as famílias que sustentaram e direcionaram os diferentes fluxos migratórios, a partir do território de origem – Macau – e que preservaram os laços com as sociedades de acolhimento dispersas pelo mundo.

A forte marca, em cada família, da diversidade das origens dos seus membros – um fenómeno tanto mais complexo quanto mais diversificadas vão sendo – afasta definitivamente a hipótese de uma visão redutora de considerar o «ser macaense» como o indivíduo que é natural de Macau. Herdeira de uma identidade que configura a síntese entre duas universalidades – portuguesa-europeia e chinesa-asiática –, a comunidade macaense encontra-se hoje perante desafios que questionam a sua sobrevivência no futuro. Macau, a partir de 1999, transformou-se na Região Administrativa Especial de Macau, administrada pela República Popular da China, de acordo com o princípio «um país, dois sistemas». Embora integrada no «segundo sistema» até 2049, por força dos tratados assinados, Macau vive um profundo processo de mudança política, económica e social, que nunca poderia deixar de ter impacte na comunidade macaense e na configuração da sua identidade cultural. À fragilização da sua componente portuguesa-europeia corresponde o fortalecimento, quase esmagador, da sua vertente chinesa-asiática. A mediar este processo encontramos as comunidades da diáspora que, considerando a riqueza da sua diversidade/dispersão pelo mundo, poderão dar um importante contributo para a preservação do «ser macaense» enquanto comunidade que sempre soube fazer a síntese com o Outro. Macau, território nuclear de todo este processo, poderá manter-se como referência, herdeiro de uma história de quatro séculos e meio. Mas também poderá perder as características de um espaço de «origem», para assumir progressivamente a configuração de mais um território de acolhimento, onde a comunidade macaense tende a perder o sentimento de pertença enquanto «filho da terra», passando a sentir-se emigrante na cidade onde nasceu. * Alfredo Gomes Dias é investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa VISÃO H I S T Ó R I A

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A longa marcha das negociações

De 25 de abril de 1974 a 19 de dezembro de 1999, «a pedra polida a boiar no rio das Pérolas» foi o ponto nevrálgico da busca de entendimento luso-chinês

N

por Pedro Vieira

um tempo sem notícias instantâneas, Macau levou dois dias a despertar para a queda da ditadura em Portugal. Só a 27 de abril a Revolução faz manchete no Notícias de Macau. O enclave era um caso à parte no ultramar português. Aliás, a pedido de Pequim, tanto Macau como Hong-Kong saíram em 1972 da lista da ONU de territórios por descolonizar, passando para o âmbito interno da China. A nova situação política em Portugal abriu caminho ao estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países. O primeiro grande passo nesse sentido foi a nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 6 de janeiro de 1975, na qual o governo «estima do maior interesse e relevância o estabelecimento de relações normais com a República Popular, cujo governo é o único e legítimo representante do povo chinês». E conclui: «Dentro desse princípio, Portugal considera que a Formosa (Taiwan) é parte integrante da República da China.» Quanto a Macau, diz que «o território poderá ser objeto de negociações no momento considerado apropriado pelos dois governos». Pequim responde uma semana depois: «A posição da Formosa era satisfatória, mas subsistia infelizmente uma diferença entre as posições dos governos chinês e português sobre Macau.» Que diferença? Em causa está o reconhecimento explícito de um princípio

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inalienável para a China, o da sua soberania sobre Macau. A República Popular quer ver em que param as modas. Receia o aumento da influência soviética em Portugal. Face ao conflito sino-soviético, é inimaginável que a China pudesse aceitar uma presença hegemónica do PCP em Macau. Entretanto, em novembro de 1974, o coronel Garcia Leandro é nomeado governador, sucedendo a Nobre de Carvalho. Em fevereiro de 1976, é aprovado o Estatuto Orgânico de Macau com realce para a autonomia de governo. Em 25 de abril de 1976, a nova Constituição da República estabelece que «o território de Macau, sob administração portuguesa, rege-se por estatuto adequado à sua situação». Desde 1975 que há contactos «estreitos e cordiais» entre as embaixadas de Portugal e da China em Paris. É assim que, em 1978, o embaixador Han Kehua propõe ao seu colega António Coimbra Martins a abertura de negociações oficiais para o estabelecimento de relações diplomáticas, sugerindo que fossem na capital francesa e conduzidas pelos dois embaixadores. A sugestão foi aceite e o acordo ficou pronto no início do verão daquele ano. Estava em funções o II governo Soares, PS-CDS. Porém, lamenta Coimbra Martins, «certo ministro (não o dos Estrangeiros) levantou dificuldades em Conselho, como se tivesse sido acometido à última hora do famoso delírio que o Eça descreve no Mandarim: ‘No

meu país, quando, a propósito de Macau, se fala de Império Celeste, os patriotas passam os dedos pela grenha e dizem negligentemente: Mandamos lá cinquenta homens, e varremos os chineses…’» O assunto ficou adiado com a queda do governo. Para desgosto do embaixador, desejoso de que Portugal não aparecesse «à trela dos EUA». Diz no livro Esperanças de Abril: «O estabelecimento de relações Lisboa/Pequim poderia ter precedido de seis meses as relações Pequim/ Washington.» Está tudo pronto para a assinatura a 10 de janeiro de 1979, quando o Palácio das Necessidades chama o embaixador ao telefone para lhe dizer que Portugal pedia quatro modificações nos textos acordados. «Modificações vãs», Coimbra Martins dixit. Após alguma agitação político-mediática, ficou tudo na mesma: Pequim trocou uma frase por outra de valor idêntico e Lisboa aceitou a alteração. O acordo foi acompanhado por um protocolo secreto, segundo o qual «Macau faz parte do território chinês e será restituído à China».

O fantasma da descolonização O tal momento chega com a visita do presidente Ramalho Eanes a Pequim, em maio de 1985. Apesar de estar na calha, a iniciativa chinesa gerou surpresa em Portugal. O próprio primeiro-ministro, Mário Soares, refere Fernando Lima no

Regressado da visita à China em que se abordou a restituição de Macau, Eanes convocou o Conselho de Estado e apelou para que o processo decorresse com dignidade

LUÍS VASCONCELOS

CHINA // MACAU


Cerimónia da transição Foi às zero horas de 20 de dezembro de 1999 que Portugal restituiu Macau à China. A cerimónia decorreu num pavilhão construído para o efeito e mais tarde demolido

livro Macau – Um Diálogo de Sucesso, «se queixara de ter sido apanhado desprevenido pela posição de Ramalho Eanes em aceitar negociações sobre o destino do território na visita oficial à China». No termo da visita presidencial, em 23 de maio de 1985, foi anunciado que «ambas as partes concordaram em iniciar, num futuro próximo, negociações por via diplomática para a resolução da questão de Macau». Regressado a Lisboa, Eanes convoca o Conselho de Estado para esclarecer o que se passara na capital chinesa. Segundo Lima, na conversa com o primeiro-ministro Zhao Ziyang sobre a questão de Macau, Eanes fez «um apelo para que o processo de transferência decorresse com dignidade» e lembrou que «Portugal descolonizara de forma precipitada as suas dependências coloniais, o que suscitara entre a população portuguesa traumatismos em que era mister não reincidir». As negociações só se iniciaram a 30 de junho de 1986, com Portugal preocupado

em que Macau não fosse discriminado dros implicou uma progressiva ascensão em relação a Hong Kong e com a China a de quadros chineses na administração de Macau, sem exclusão de cidadãos porquerer chegar rapidamente a um acordo. tugueses. As delegações foram chefiadas pelo embaixador Rui Medina e pelo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros Zhou Nan. De Questões decisivas A nacionalidade e a data da transferência início a China chega a propor que a transferência de Macau se faça em simultâneo, foram os dois nós mais difíceis de desaem 1987. Algo de inaceitável para Portugal. tar. Quanto ao primeiro, estava em causa O grande objetivo de Lisboa é asseguo estatuto de cerca de 90 mil chineses rar à população de Macau a manutenção com passaporte português. Para a Chida sua maneira de viver na, que não reconhece no âmbito do princípio a dupla nacionalidade, «um país, dois sisteeles eram chineses. Para mas». É a esta luz que Portugal, eles eram porse devem ver as três «lotugueses. Numa solução calizações» consagradas criativa, expressa em dois na Declaração Conjunmemoranda reciprocata: quadros, legislação mente aceites, a China Bandeira de Macau (RAEM) reconhece aos titulares e língua. O português As três pétalas da flortornou-se uma das línde passaporte português -de-lótus simbolizam guas oficiais de Macau em 19 de dezembro de a península de Macau e o acervo legislativo foi 1999 a possibilidade de e as ilhas da Taipa traduzido para chinês. continuar a utilizá-los e de Coloane; as estrelas após essa data. A localização dos quarepresentam a China VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // MACAU

Portugal fez da data da transferência o seu grande trunfo até à derradeira fase das negociações. Foi esse um dos pontos que trouxeram o vice-ministro Zhou Nan a Lisboa em novembro de 1986. Saiu de mãos a abanar. Até que, na segunda metade de janeiro de 1987, Cavaco Silva envia a Pequim o secretário de Estado de Negócios Estrangeiros em missão especial. Eduardo Azevedo Soares comunica às autoridades chinesas que Lisboa estava de acordo em que a transferência fosse em 31 de dezembro de 1999. Da capital chinesa, trouxe uma data: 20 de dezembro de 1999. Contudo, só perto do final das negociações Portugal tomará uma decisão definitiva sobre o tema. O número de rondas negociais – quatro contra 22 de Hong-Kong – pode ser enganador. Na verdade, o grupo de trabalho para a finalização da Declaração Conjunta teve 11 sessões em Pequim entre dezembro de 1986 e março de 1987. Na estimativa de João de Deus Ramos, nas

LUÍS VASCONCELOS

Arriar da bandeira Quando as insígnias de Portugal deixaram de flutuar no Palácio do Governo

MARCOS DE UM ENTENDIMENTO 1974

1975

1979

18 JUL Veiga Simão, representante permanente junto da ONU, em Nova Iorque, enceta contactos com a missão chinesa

6 JAN Portugal reconhece o governo da República Popular da China e corta relações com Taiwan

8 FEV Embaixadores Coimbra Martins e Han Kehua assinam, em Paris, o estabelecimento de relações diplomáticas entre Portugal e a China

94 V I S Ã O H I S T Ó R I A

1985

23 MAI Durante a visita do Ramalho Eanes à China são anunciadas negociações para a questão de Macau

1987

1988

13 ABR Primeiros-ministros Cavaco Silva e Zhao Ziyang assinam em Pequim a Declaração Conjunta sobre o processo de transferência de Macau para China

11 ABR Em Lisboa, primeira reunião plenária do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês


suas memórias diplomáticas Em Torno da China, foram 440 horas à mesa. A última reunião plenária, após um longo hiato, só se efetuou em 18 e 19 de março. Por fim, em 13 de abril de 1987, no Grande Palácio do Povo, em Pequim, os primeiros-ministros Cavaco Silva e Zhao Ziyang assinaram a Declaração Conjunta Sobre a Questão de Macau. Tal como Eanes em 1985, também Cavaco em 1987 se reuniu com Deng Xiaoping. A Mário Soares nunca se proporcionou tal oportunidade. Confessou que levava para o outro mundo o pesar de não o ter conhecido. Após a promulgação da Declaração Conjunta, um tratado internacional depositado nas Nações Unidas, o período de transição iniciou-se em janeiro de 1988. Nesta fase, entra em cena o Grupo de Ligação Conjunto. Nunca suspendeu a sua atividade, mesmo quando, em 1989, a Comunidade Europeia aplicou sanções à China, devido à repressão das manifestações na Praça Tiananmen. «O governo português explicou aos seus parceiros comunitários – e foi aceite – que a questão de Macau obrigava a manter o diálogo com a China», escreve Cavaco Silva na Autobiografia Política. Ao invés de Hong Kong, no acordo de Macau não se previa a entrada de

1999 26 NOV Jiang Zemin visita Portugal (com Jorge Sampaio)

19/20 DEZ Transferência de Macau para a China

Sem rasto de Tiananmen Uma das surpresas de Mário Godinho de Matos ao aterrar em Pequim, no verão de 1989, foi a ausência de sinais do final sangrento das manifestações pela democracia na Praça de Tiananmen. «Cheguei umas semanas depois e a sensação era de que, à superfície, não tinha acontecido nada. As marcas das lagartas dos tanques já tinham sido apagadas», diz o diplomata, então com 38 anos, que também fazia parte do Grupo de Ligação Conjunto (GLC). Em Xian Godinho de Matos Do ambiente de Pequim reteve, citando o seu colega (à esquerda) com um João de Deus Ramos, «o rolar surdo das bicicletas» e os elemento da parte chinesa homens em camisola de alças a jogar toda a noite com umas pedras debaixo de candeeiros. Com experiência de serviço externo em Washington e Maputo, Godinho de Matos participou logo na primeira reunião plenária do GLC, no Palácio Foz, Lisboa, em abril de 1988, da qual ficou nos anais das Necessidades um incidente pirotécnico-diplomático. A delegação portuguesa era chefiada pelo embaixador Simões Coelho, um fumador de cachimbo. Como a fornalha estava sempre a apagar-se, o cinzeiro foi-se enchendo de fósforos. Até que um fósforo não apagado provocou um princípio de incêndio. Na circunstância, valeu a reação pronta do tradutor oficial da delegação chinesa, Wang Xian. Despejou um jarro de água sobre as chamas e cortou cerce o perigo. Nos plenários do GLC, cada delegação tinha a sua equipa de intérpretes. As reuniões eram longas e pesadas e o trabalho de interpretação extenuante. A dada altura, na expressão de Godinho de Matos, «os tradutores já deitavam fumo pela cabeça». Talvez por isso, ficara assente que aos encontros formais se seguiria sempre uma segunda parte mais lúdica, que permitia continuar a falar fora da mesa. Em maio de 1970, a 7ª reunião, esta em Pequim, teve por epílogo uma visita a Xian, onde em 1974 foi descoberto o exército de terracota. No âmbito do GLC, Godinho de Matos chefiava um grupo com peritos de Macau, que tinha por objetivo «pôr o território dentro de organizações internacionais». No seu mandato, concretizou-se a adesão ao GATT (agora OMC), à Organização Marítima Internacional; e à Comissão Económica e Social para a Ásia e Pacífico, uma agência da ONU. Embora não fosse necessário, o antigo nº 2 da embaixada em Pequim, cujo último posto foi Moscovo, como embaixador, realça que os pedidos de adesão eram sempre analisados com a parte chinesa e a respetiva carta assinada por ambas as partes.

tropas chinesas. Aliás, o Comando Territorial Independente tinha sido extinto no final de 1975. No entanto, por ocasião da transferência de Hong Kong, um dirigente chinês anuncia a possibilidade da entrada de tropas chinesas, o que deixa em alerta o governador de Macau, Vasco Rocha Vieira. Na retina de milhões de telespectadores permaneciam as imagens noturnas de uma coluna de blindados a entrar em Hong Kong. Sem delongas, o governador suscita o problema junto do ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, e do Presidente da República, Jorge Sampaio.

O assunto não mais sairia da agenda até ao final do período de transição. Sampaio fez mesmo depender a sua presença na cerimónia de transferência de uma solução consentânea com a sensibilidade portuguesa. O impasse resolveu-se durante a visita do Presidente chinês a Portugal em 25 e 26 de outubro de 1999. Jiang Zemin comunicou a Sampaio que as tropas só entrariam às 9 da manhã de 20 de dezembro. Não foi às 9, foi ao meio-dia. Um sinal de que Macau continuaria a ser, na definição de Agustina Bessa-Luís no JL de 15 de dezembro de 1999, «uma pedra polida, a boiar no rio das Pérolas». VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // OPINIÃO

Da transição para o futuro A cooperação pela via do entendimento é um traço comum às culturas chinesa e portuguesa. Esse valor é mais importante para construir o futuro no quadro de uma nova ordem mundial do que as afirmações unilaterais de poder e de domínio

VASCO ROCHA VIEIRA general do Exército, foi o último governador português de Macau, entre 1991 e 1999

96 V I S Ã O H I S T Ó R I A

M

por Vasco Rocha Vieira

acau é uma singularidade concreta, o resultado único, incomparável, das circunstâncias que ficam associadas à sua localização no delta do Rio das Pérolas e às sucessivas conjunturas que foram ocorrendo durante a sua longa história. A distância que separa Macau de Portugal, sobretudo nas épocas em que as comunicações eram difíceis, foi um fator que contribuiu para a sua autonomia, na medida em que as autoridades portuguesas responsáveis pela administração do território tinham de responder aos desafios que lhes eram colocados sem poderem esperar por instruções ou envio de recursos, humanos ou financeiros, de Lisboa. Souberam sempre enfrentar essas dificuldades respondendo de modo adequado às dinâmicas de mudança sem sacrificarem o que constitui a sua identidade, que articula a sua natureza de entreposto comercial como uma porta de abertura da China ao mundo, desde 1557, na dinastia Ming, com o sentido estratégico da ligação de cooperação e entendimento entre a China e Portugal, que encontrou em Macau a expressão efetiva da convergência entre duas nações e dois povos muito diferentes, com culturas muito distintas, mas que souberam encontrar uma plataforma de complementaridades que fez das normais relações de conhecimento e respeito mútuos uma efetiva relação de compreensão e de entendimento. A realidade singular concreta que é Macau insere-se, de facto, numa singularidade mais geral, mais exigente e mais ambiciosa, que tem a sua origem na relação especial que se estabeleceu, desde o primeiro encontro até hoje, entre a China e Portugal. Essa relação especial, também única e incomparável, tem permitido responder a todas as mudanças sem perder o sentido da plataforma de cooperação e entendimento, o que constitui um valor estratégico relevante para os novos tempos de mudança que se abrem para o nosso futuro. Esta singularidade geral

tem uma escala de mais de cinco séculos, preservou a sua identidade durante a passagem das épocas e dos sucessivos padrões que estabeleciam e regulavam a ordem mundial nesses tempos e nessas circunstâncias, manteve sempre o sentido de respeito pelas diferenças, que é a base segura para a compreensão entre as nações e entre os povos.

A

s diferenças entre poderes nacionais de escala semelhante são fatores de conflitualidade porque a competição que se estabelece entre eles conduz a disputas, onde vitórias e derrotas são determinadas pela imposição das diferenças de uns com a anulação das diferenças dos outros. Mas as diferenças que existem entre poderes nacionais de escala distinta são oportunidades de cooperação porque não está em causa a vitória ou a derrota, passando para o primeiro plano a avaliação e o aproveitamento das vantagens mútuas. A relação entre Portugal e a China insere-se naturalmente no regime da cooperação e da exploração das vantagens mútuas – e se foi assim durante cinco séculos, nada justifica que venha a ser de outro modo no futuro. O modo como se processou a transição das responsabilidades administrativas do território de Macau de Portugal para a China, no quadro de uma Região Administrativa Especial e dentro do princípio político «um país, dois sistemas», concretizou o objetivo de participar na constituição de uma estrutura nacional pluralista na República Popular de China dotada de flexibilidade política e administrativa, mas também permitiu a Portugal preservar os marcos da sua presença em território chinês e exemplificar o que é o seu entendimento das relações de cooperação, evitando tensões e roturas no cumprimento do que tinha sido acordado entre as duas partes. Hoje, a China já não precisa do entreposto comercial de Macau, desloca-se livremente nos mercados mundiais e aproxima-se do estatuto de primeira


estiveram sob sua administração, mas foi uma permanente adaptação às circunstâncias e às condições locais, ganhando pela flexibilidade o que não podia ser obtido pela imposição da autoridade.

GONÇALO ROSA DA SILVA

A

Porta do Entendimento Da autoria de Charters de Almeida, simboliza o diálogo Portugal-China

potência económica no espaço global. Mas tem de enfrentar, como todos os outros países desenvolvidos, as incertezas e as tensões de um processo de crise e de transformação do regime de ordem mundial, que estava estabelecido desde meados do século passado. Esta é uma dinâmica de mudança que não tem modelos comparativos que possam servir de referência, onde é preciso identificar a propensão das coisas para encontrar a trajetória de menor resistência e de menor conflitualidade, para que não sejam ameaçados os progressos acumulados e para que não se desperdicem recursos necessários para sustentar as oportunidades de crescimento nas economias e de desenvolvimento nas sociedades. Agora, que a China se desloca pelo mundo, encontra os traços da presença de Portugal que complementam e confirmam, numa nova escala, o que foi o seu conhecimento do papel dos portugueses em Macau. E o que podem verificar é que o papel de Portugal, na época dos impérios coloniais, não foi o de extrair matérias-primas, mas sim o de construir instituições, estruturas administrativas e infraestruturas produtivas que contribuíram para configurar nações e Estados com condições de autonomia, com viabilidade para serem entidades independentes na esfera internacional, como se provou depois da descolonização. Este papel de Portugal não foi imperialista, impondo um modelo único a todos os territórios que

cooperação pela via do entendimento e da compreensão, pelo respeito pela propensão das coisas, é um traço comum à cultura chinesa e à cultura portuguesa, mas são resultado de experiências históricas e de escalas nacionais muito distintas. Os portugueses são um povo em viagem há cinco séculos, precisam do exterior para afirmar a sua identidade, e foi essa propensão que os levou até à China. Os chineses são a população do Império do Meio, quando se deslocam não esquecem o espaço de origem como espaço de formação do poder. Quando agora a China assume o seu papel de potência de primeiro plano no sistema mundial de Estados, já não poderá manter a ótica nacionalista e fechada de império regional, precisa de procurar os seus complementos na escala global. O modo como portugueses e chineses entendem a propensão das coisas é diferente, porque são diferentes as suas dimensões no território e na população, mas é complementar, no sentido em que a flexibilidade e a adaptação são os complementos necessários para que o poder político possa responder com eficácia quando mudam as conjunturas e as circunstâncias. A construção de uma nova ordem mundial, que é o mais urgente desafio do presente, vai originar novas redes de alianças que preencham o vazio que está a ser criado pelo abandono das redes de alianças que estavam estabelecidas desde a Segunda Guerra Mundial. Como todos os desafios nos tempos de mudança, a primeira evidência, superficial, é a incerteza e a percepção do aumento dos riscos na política, na economia e nos assuntos de segurança. Em profundidade, porém, o que decidirá a identificação da propensão das coisas é a capacidade de entendimento e de cooperação, que será sempre mais importante para construir o futuro do que as afirmações unilaterais de poder e de domínio. Quando se procura uma perspetiva orientadora sobre o que será a propensão das coisas que construirá o futuro, a singularidade concreta que é Macau é um contributo decisivo para enquadrar e dar conteúdo prático à singularidade geral que é a relação de Portugal com a China. Em qualquer dos futuros possíveis, este é um valor objetivo que não pode ser ignorado, em Portugal ou na China.

QUANDO A CHINA ASSUME O SEU PAPEL DE POTÊNCIA DE PRIMEIRO PLANO, JÁ NÃO PODE MANTER A ÓTICA NACIONALISTA E FECHADA DE IMPÉRIO REGIONAL VISÃO H I S T Ó R I A

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CHINA // CRÓNICA

Amanhecer em Ou Mun

Memórias de quando Macau voltou a ser oficialmente chinesa

LUÍS ALMEIDA MARTINS

A

LUÍS VASCONCELOS

Jornalista, editor da VISÃO História, esteve várias vezes em Macau e acompanhou o processo de transição

N

unca a expressão «da noite para o dia» foi Gato da Sorte. Dançarinos agitavam lenços coloridos e dragões de papel avançavam sinuosamente. Numa tão apropriada. Durante a madrugada de esquina, uma banda executava em permanente rapdomingo, 19, para segunda-feira 20 de desódia o hino nacional chinês e marchas militares de zembro de 1999, que se seguiu à cerimónia da transferência da soberania de Macau de recorte americano. Por cima, uma faixa bilingue proPortugal para a China, todas as bandeiras clamava: «Damos as boas-vindas ao Exército Popular das quinas espalhadas pelas ruas foram retiradas por de Libertação.» Um agente chinês da PSP de Macau mão rápidas e certeiras. Mas não foram para o lixo. assistia de sorriso rasgado, só lhe faltando aplaudir. As mesmas mãos foram entregá-las a membros da tropa dirigiu-se depois aos aquartelamentos inscomitiva oficial lusa que ainda não tinham abandotalados no aterro vizinha do Porto Exterior. E, nado o território. No País do Meio, o gesto é tudo. Os muitos milhares de chineses que na manhã a partir de então, a guarda ao aquartelamento, de 20 passeavam pelas ruas de máquina fotográfica instruída para permanecer horas em rigorosa posi(passou-se isto no tempo em que os telemóveis só ção de sentido, tornar-se-ia objeto da curiosidade e falavam) depararam com um alvo das objetivas fotográficas Leal Senado «novo». Os dois dos habitantes de uma cidade anjos heráldicos da fachada de que se tornara a principal tinham sido tapados com «atração». painéis talhados de forma a – Apreensiva? – perguntei a imitar a parede do imóvel. No Anabela Ritchie, ex-presidencentro do frontão destacavate da Assembleia Legislativa de Macau, que encontrei à tar-se o símbolo da recém-criada Região Administrativa de a ver as montras dos antiEspecial de Macau (RAEM), quários da Rua de São Paulo. – Não. Triste, talvez. Mas um flor-de- lótus branca em campo verde, sobrepujada das confiante… estrelas amarelas da RepúbliUm ano depois, em deca Popular da China (RPC). zembro de 2000, novos e A esmagadora maioria opgigantescos hotéis-casinos tou por ir assistir à entrada erguiam-se no coração de Madas forças do Exército Pocau – Ou Mun em cantonense. Em 2006, era a ilha da Taipa pular de Libertação chinês provenientes de Xiangzhou que estava irreconhecível. que, ao meio-dia, atravesE, em 2009, a antiga Cidade saram as Portas do Cerco e Invasão pacífica Entrada do exército do Nome de Deus na China entraram em Macau. Vinham chinês em Macau, após meio milénio tornara-se a capital mundial de administração portuguesa em missão de soberania, e os do jogo. Hoje não se compara com o que era quando a chineses residentes no território agitavam festivamente bandeirinhas vermelhas da RPC e verdes conheci há 30 anos. Mas continua a ter os seus becos da recém-criada Região Administrativa Especial. sonolentos, as suas farmácias com lagartos na monDo alto dos blindados, os militares iam correstra, as lojas de sopa de fitas e os letreiros bilingues. pondendo aos aplausos como robôs programados, Vai ser assim até 2049, quando acabar o prazo de validade do estatuto especial. Discretamente, nos anagitando apenas ao de leve a mão direita enluvada, num movimento cadenciado e monótono como o do típodas da agitação política da vizinha Hong Kong.

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