Revista Visão História - Fernão de Magalhães

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N.ºº 57 · FEVEREIRO N FEVERE FE VEREIRO IRO 2020 2020 CONTINENTE – €5,00 PERIODICIDADE BIMESTRAL

FERNÃO DE MAGALHÃES

A PRIMEIRA VOLTA AO MUNDO • A grande viagem que mudou o conhecimento da Terra • A vida do explorador • A época • O dia-a-dia a bordo • Rebeliões e prisioneiros • Contactos com nativos



SUMÁRIO

APOIO:

Tratado de Tordesilhas O hemisfério português, num pormenor da Crónica del-rei D. Afonso Henriques de Duarte Galvão

Cronologia 1415-1750 Instrumentos Náutica de bordo Mapa A primeira volta ao mundo Factos Verdadeiro e Falso por José Manuel Garcia A Época Os descobrimentos europeus por Luís Almeida Martins

6 8 10 12

16

O cravo das Molucas por Maria José Azevedo Santos

22

Lisboa, centro do império por Ana Cristina Leite

24

A Figura Perfil de Fernão de Magalhães por Rui Manuel Loureiro A vida em Espanha por Juan Gil A Bordo Ilustração: As naus e a tripulação

A Viagem As etapas da travessia por José Manuel Garcia

58

A passagem do estreito por Mauricio Onetto Pavez

72

Os nativos por Francisco Garcia

74

eiros Os prisioneiros por Alexandre Monteiro

78

O regresso de Elcano por José Manuell Garcia

80

Narrativas da viagem por Ana Paula Menino enino

84

26

Conhecimento ento O mundo antes ntes e depois da a viagem por José Manuell Garcia

32

Magalhães na literatura por Isabel Almeida ida

94

a saber mais Livros: Para por Clara Teixeira ra

96

ão Magalhães Constelação

98

38

A vida no mar por Francisco Contente Domingues

44

As revoltas Luís Almeida Martins

47

As profissões por Francisco Contente Domingues

48

Técnicas de navegação por José Manuel Malhão Pereira

50

As armas por Fernando Pedrosa

54

Os financiadores por Clara Teixeira

56

86

Homenagem Estátua de Fernão de Magalhães em Punta Arenas, Chile. Uma réplica foi oferecida por este país em 1930 à cidade de Lisboa e colocada em 1950 no Largo de Arroios, a partir de então denominado Praça do Chile

Os títulos, subtítulos e destaques dos artigos são da responsabilidade da redação, bem como a escolha das imagens e a sua legendagem Foto da capa: Retrato de Fernão de Magalhães por C. Legrand, 1841/Biblioteca Nacional de Portugal sobre planisfério de Diogo Ribeiro de 1529/Biblioteca Nacional de França

VISÃO H I S T Ó R I A

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DELFIM RUAS

Proprietåria/Editora: TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL LDA. Sede: Rua Fonte de Caspolima, Quinta da Fonte, Edifício Fernão de Magalhães nº8. 2770-190 Paço de Arcos NIPC: 514674520. Gerência da TRUST IN NEWS: Luís Delgado, Filipe Passadouro e Clåudia Serra Campos. Composição do Capital da Entidade Proprietåria: 10.000 euros Principal acionista: Luís Delgado (100%) Publisher: Mafalda Anjos

Diretora: ClĂĄudia Lobo Editor: LuĂ­s Almeida Martins Consultor editorial: JosĂŠ Manuel Garcia Editora adjunta: Clara Teixeira Textos: Alexandre Monteiro, Ana Cristina Leite, Ana Paula Avelar, Clara Teixeira, Fernando Pedrosa, Francisco Contente Domingues, Francisco Garcia, JosĂŠ Manuel Garcia, Juan Gil, Isabel Almeida, LuĂ­s Almeida Martins, MalhĂŁo Pereira, Maria JosĂŠ Azevedo Santos, Mauricio Onetto, Rui Manuel Loureiro. Imagens: Marcos Borga (peças do Museu Militar de Lisboa e instrumentos das pĂĄginas iniciais); Biblioteca Nacional de França; Biblioteca Nacional de Portugal; Getty Images; Fotobanco. Mapas: Ă lvaro Rosendo. Ilustraçþes: Delfim Ruas. Design: Teresa Sengo (editora) RevisĂŁo: AntĂłnio Ribeiro Assistentes editoriais: Ana Paula Figueiredo, Sofia Vicente, Teresa Rodrigues, Manuel LuĂ­s Pinto e Fernando Negreira (fotografia). Esta revista foi posta Ă venda em fevereiro de 2020 Citaçþes de Antonio Pigafetta retiradas do livro FernĂŁo de MagalhĂŁes (a sua vida e a sua viagem), de Visconde de Lagoa, Seara Nova, Lisboa, 1938. Redação, Administração e Serviços Comerciais: Rua Fonte de Caspolima, Quinta da Fonte. EdifĂ­cio FernĂŁo de MagalhĂŁes, n.Âş 8. 2770-190 Paço de Arcos – Tel.: 218 705 000 Delegação Norte: Rua Roberto Ivens, 288, 4450-247 Matosinhos. Tel: 220 993 810 MARKETING Diretora: Marta Silva Carvalho mscarvalho@trustinnews.pt Gestora de marca: Marta Pessanha (mpessanha@trustinnews.pt) PUBLICIDADE: Tel.: 218 705 000 (Lisboa). 220 993 810 (Porto). Diretora: Vânia Delgado (vdelgado@trustinnews.pt); Diretora Coordenadora: Maria JoĂŁo Costa (mjcosta@trustinnews.pt ) Gestores de Marca: Mariana Jesus (mjesus@trustinnews.pt ), MĂłnica Ferreira (mferreira@trustinnews.pt ) Porto: Margarida Vasconcelos (mvasconcelos@trustinnews.pt) Assistentes: Elisabete Anacleto (eanacleto@visao.pt); Florbela Figueiras (ffigueiras@visao.pt) Porto: Rita Gencsi (rgencsi@trustinnews.pt) Parcerias e Novos NegĂłcios: Diretor: Pedro Oliveira (poliveira@trustinnews.pt) Branded Content: Directora: Rita IbĂŠrico Nogueira (rnogueira@trustinnews.pt) Tecnologias de Informação: JoĂŁo Mendes (Diretor)

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APOIO:

A grande viagem Faz agora 500 anos, estava em curso a expedição que daria pela primeira vez a volta ao mundo. O comandante da mais extraordinĂĄria das epopeias marĂ­timas foi FernĂŁo de MagalhĂŁes, o portuguĂŞs mais famoso de sempre, cujo nome – universalizado como Magellan – foi dado a duas galĂĄxias, uma nave espacial, uma cratera de Marte, um sistema pioneiro de GPS, um computador, o estreito que liga o Atlântico ao PacĂ­fico, uma espĂŠcie de pinguins, etc. No entanto, a ideia de MagalhĂŁes nĂŁo era dar a volta ao mundo, mas sim atingir o Oriente rumando a ocidente. O que conseguiu, navegando por ĂĄguas desconhecidas dos europeus e revelando-lhes metade do planeta. Para o fazer, teve de oferecer os seus serviços ao rei de Espanha, depois de o monarca portuguĂŞs ter recusado o patrocĂ­nio de uma expedição Ă s ilhas das Especiarias (as Molucas). MagalhĂŁes perderia a vida num combate, nas Filipinas, pelo que nĂŁo regressou ao ponto de partida. Mas, paradoxalmente, foi a sua morte que determinou que a Ăşnica nau sobrevivente da armada desse a volta ao mundo, pois a viagem em redor do planeta apenas se concretizou porque a falta de conhecimentos nĂĄuticos dos sobreviventes os impeliu a desrespeitar as ordens do soberano espanhol e a violar o estipulado no Tratado de Tordesilhas, ou seja, a navegar por ĂĄguas que eram exclusivo dos portugueses. Toda esta epopeia, bem como a figura de MagalhĂŁes e o contexto da ĂŠpoca, sĂŁo evocados neste nĂşmero, apoiado pela Estrutura de MissĂŁo para as Comemoraçþes do V CentenĂĄrio da Viagem de Circum-Navegação Comandada pelo Navegador PortuguĂŞs FernĂŁo de MagalhĂŁes. Seguindo os passos de MagalhĂŁes, a edição conta com a colaboração de historiadores de paĂ­ses por onde o explorador andou, nomeadamente do espanhol Juan Gil, catedrĂĄtico da Universidade de Sevilha e membro da Real Academia Espanhola, e do chileno Mauricio Onetto Pavez, doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e professor na Universidad AutĂłnoma de Chile. Ao historiador JosĂŠ Manuel Garcia, autor de dois livros sobre FernĂŁo de MagalhĂŁes e especialista em ExpansĂŁo Portuguesa, agradecemos a consultadoria editorial.

ASSINATURAS Ligue jĂĄ

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4 VISĂƒO H I S T Ă“ R I A

Correção Na edição n.Âş 56 da VISĂƒO HistĂłria (II Guerra Mundial – Como Tudo Começou), no artigo ‘A resistĂŞncia esquecida’, assinado por Helena F. S. Lopes, foi publicada uma foto com a legenda errada. NĂŁo se trata de uma imagem do massacre GH 1DQMLQJ FRPR D OHJHQGD UHIHUH PDV GH XPD IRWRJUDĂľD GH H[HFX¨œHV GH FKLQHVHV DFXVDGRV GH WUDL¨¤R $ HVFROKD GD IRWR EHP FRPR D LQIRUPD¨¤R TXH D DFRPSDQKRX foi da inteira responsabilidade da redação. Aos leitores, e Ă autora do artigo, pedimos desculpa pelo lapso.


VIAGENS COM AUTORES

NOS PASSOS DE MAGALHÃES, UMA VOLTA AO MUNDO VIAGEM COM O ESCRITOR-VIAJANTE GONÇALO CADILHE

PRÓXIMA DATA

6 D E N OV E M B RO A 5 D E D E Z E M B RO D E 2 0 2 0 30 DIAS PORTUGAL U R U G UA I B U E N OS A I R E S E PATAG Ó N I A ( A R G E N T I N A ) E S T R E I TO D E M AG A L H Ã E S ( C H I L E ) I L H A DA PÁ S COA TA H I T I AU C K L A N D ( N OVA Z E L Â N D I A ) S Y D N E Y ( AUS T R Á L I A ) FILIPINAS SINGAPURA M A L AC A ( M A L Á S I A ) G OA E B O M BA I M ( Í N D I A ) M O M BA Ç A ( Q U É N I A ) PORTUGAL

PORTUGAL ÍNDIA SINGAPURA QUÉNIA CHILE

URUGUAI

FILIPINAS

MALÁSIA

TAHITI

AUSTRÁLIA

ARGENTINA

CO N S U LT E E S TA E O U T R A S V I AG E N S E M W W W. P I N TO LO P E S V I AG E N S . CO M

P I N TO LO P E S V I AG E N S R UA P I N TO B E S S A , 4 6 6 . 4 3 0 0 - 4 2 8 P O R TO, P O R T U G A L . + 3 5 1 2 2 2 0 8 8 0 9 8 . G E R A L @ P I N TO LO P E S V I AG E N S . CO M R UA V I R I ATO, 2 3 A ( P I COA S ) . 1 0 5 0 - 2 3 4 L I S B OA , P O R T U G A L . + 3 5 1 2 1 3 3 0 4 1 6 8 . L I S B OA @ P I N TO LO P E S V I AG E N S . CO M P I N TO LO P E S V I AG E N S . CO M . FAC E B O O K . CO M / P I N TO LO P E S V I AG E N S . I N S TAG R A M . CO M / P I N TO LO P E S V I AG E N S


MAGALHÃES // CRONOLOGIA

1424-25 1415 Os portugueses conquistam Ceuta. Neste ano e no seguinte, o infante D. Henrique promove expedições às ilhas Canárias.

1419 João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, navegando ao serviço do infante D. Henrique, descobrem as ilhas desabitadas de Porto Santo e (com Bartolomeu Perestrelo) da Madeira.

1507 Afonso de Albuquerque apodera-se de Ormuz.

1509 Os portugueses derrotam, na batalha de Diu, uma esquadra otomana, egípcia, de Calecute e de Guzerate. Afonso de Albuquerque é nomeado governador da Índia.

1510 Afonso de Albuquerque conquista Goa.

6 VISÃO H I S T Ó R I A

1441

Falham tentativas de conquista das Canárias. O arquipélago da Madeira é colonizado.

1435 Navegando ao serviço do infante, Gil Eanes consegue ultrapassar o cabo Bojador, até então o limite da costa africana conhecida.

1431 Começa a ser povoada a ilha de açoriana de Santa Maria.

1505 D. Francisco de Almeida segue para a Índia, para desempenhar as funções de vice-rei; o jovem Fernão de Magalhães faz parte da armada.

1511 Albuquerque conquista Malaca; Fernão de Magalhães está presente. São enviadas missões diplomáticas ao Pegu (Myanmar), a Sumatra e ao Sião (Tailândia). É atingida a ilha de Timor. Começa a ser explorado o sertão moçambicano.

1502

1437 Fracassa a tentativa de conquista de Tânger pelos portugueses; o infante D. Fernando fica refém, em Fez.

Os navegadores portugueses dobram o cabo Branco e trazem para Portugal ouro, óleo de foca e os primeiros escravos africanos.

1443 O infante D. Henrique fica com o monopólio da navegação, guerra e comércio das terras para além do Bojador.

MUNDOS

João da Nova descobre as ilhas de Ascensão e Santa Helena. O Brasil e a costa oriental da Ásia são representados no planisfério de Cantino. É criada a feitoria na ilha de Moçambique.

1512 Francisco Serrão chega às Molucas e inicia uma correspondência com Magalhães.

1501

1500

Gaspar Corte-Real reconhece a Terra Nova.

A armada de Pedro Álvares Cabral, a caminho da Índia, «descobre» oficialmente o Brasil.

1513 Albuquerque explora o mar Vermelho, mas falha a conquista de Áden. Partindo de Malaca, Jorge Álvares chega à China.

1517 Magalhães parte para Espanha, desavindo com D. Manuel I

1498 A armada comandada por Vasco da Gama atinge a Índia. Duarte Pacheco Pereira poderá ter estado, secretamente, na costa do Brasil.

1518 Diogo Lopes de Sequeira é o novo governador da Índia portuguesa.


1445

1458

João Fernandes interna-se pelo rio do Ouro, procurando informações sobre o Preste João.

1444 Efetua-se, na cidade algarvia de Lagos, o primeiro mercado de escravos; o infante D. Henrique assiste e é parte interessada.

Os portugueses conquistam a praça-forte marroquina de Alcácer-Ceguer.

1456

1494 Pelo Tratado de Tordesilhas, Portugal e Espanha repartem entre si as terras «a descobrir».

1519 A frota comandada por Fernão de Magalhães levanta ferro de Sevilha. Conclui-se a construção da Torre de Belém.

1521 Fernão de Magalhães morre em combate, em Cebu, nas Filipinas. D. Duarte de Menezes é o novo governador da Índia.

Falha novamente a conquista de Tânger pelos portugueses.

Pelo Tratado de Alcáçovas, Portugal renuncia às Canárias, mas fica com o senhorio dos restantes arquipélagos do Atlântico Ocidental e da costa africana.

1471

Morre o infante D. Henrique.

NOVOS Cristóvão Colombo chega às Antilhas, ao serviço de Espanha (é a «descoberta da América»). Os portugueses Pêro de Barcelos e João Fernandes Labrador exploram a costa do Canadá.

1479

1460

São, presumivelmente, descobertas algumas ilhas de Cabo Verde.

1492

1464

1489

Uma embaixada do rei do Congo visita Portugal.

É conquistada Arzila, em Marrocos. São descobertas as ilhas de São Tomé e do Príncipe.

Bartolomeu Dias ultrapassa o cabo da Boa Esperança, no extremo meridional da África, e entra no Índico. Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva, espiões de D. João II, partem para colher informações sobre a Índia, a Etiópia e a costa oriental de África.

D. João II rejeita a proposta de Cristóvão Colombo de tentar alcançar o Oriente navegando para ocidente.

1524 A conferência de Badajoz-Elvas estuda a questão da posse das Molucas.

Começa a ser edificada a feitoria-fortaleza de São Jorge da Mina. Diogo Cão sobe o curso inferior do Zaire, deixa uma inscrição na pedra em Ielala e contacta com o reino do Congo.

1487 Gonçalo Eanes e Pêro de Évora internam-se em África, atingindo Tombuctu.

1750 1543

1526 A infanta D. Isabel, filha de D. Manuel I, casa-se com Carlos V

Funda-se, em Lisboa, a Casa da Mina.

1482 1483

1488

1481

1529 O Tratado de Saragoça define o traçado do antimeridiano de Tordesilhas, ficando as Molucas na zona portuguesa.

Os portugueses chegam ao Japão.

É oficialmente abolido o Tratado de Tordesilhas, desde há muito desrespeitado pelos outros países, que não Portugal e Espanha.

VISÃO H I S T Ó R I A

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MAGALHÃES // INSTRUMENTOS

Orientação no mar O astrolábio (à direita) e, mais tarde, a balestilha (à esquerda), juntamente com o quadrante, permitiam aos navegantes determinar com suficiente rigor as alturas de astros, para obter a latitude do lugar durante as viagens em alto mar

8 VISÃO H I S T Ó R I A


MARCOS BORGA

VISÃO H I S T Ó R I A

9


Antimeridiano de Tordesilhas 47° 28’ O

19 – 1521 27 abr

Magalhães é morto em combate na ilha de Mactan

17 – 1521 16 mar

20 – 1521 1 mai

Arquipélago das Filipinas

Em Cebu, são massacrados 25 tripulantes, durante um banquete, e João Lopes de Carvalho é nomeado capitão-mor da armada

18 – 1521 7 abr

Ilha de Cebu

16 – 1521 6 mar

Ilha dos Ladrões (Guam)

Filipinas Cebu Mactan

21 – 1521 2 mai

A nau Conceptión é queimada por falta de tripulantes

22 – 1521 8 jul – Chegada ao Brunei 23 – 1521 16 set

Na ilha de Bornéu, João Lopes de Carvalho deixa de sercapitão-mor da armada a favor de Espinosa, na Trinidad, enquanto Juan Sebastián Elcano é nomeado capitão da Victoria

15 – 1521 13 fev

Guam (Ilha dos Ladrões)

Equador

Brunei Bornéu

Tidore

24 – 1521 8 nov

Ternate Timor

Ilha de Tidore, nas Molucas. Partida da Victoria a 21 dez

Oceano Pacífico

25 – 1522 25 jan a 8 fev

Passagem da Victoria por Timor

26 – 1522 6 abr

A Trinidad parte de Tidore para norte, com o objetivo de atravessar o Pacífico. Incapaz de o conseguir, volta para trás e chega a Ternate, nas Molucas, a 24 out, onde é aprisionada pelos portugueses FONTE José Manuel Garcia INFOGRAFIA Álvaro Rosendo

A primeira volta ao mundo feita de seguida Trajeto de Fernão de Magalhães Continuação por Juan Sebastián Elcano

A PRIMEIRA VO

10 V I S Ã O H I S T Ó R I A


Meridiano de Tordesilhas 132° 32’ E

1 – 1519 10 ago 31 – 1522 6 set

Chegada a Sanlúcar de Barrameda com 18 sobreviventes da primeira volta ao mundo feita de seguida

Os cinco navios da armada de Magalhães deixam Sevilha e descem o rio Guadalquivir rumo a Sanlúcar de Barrameda

32 – 1522 8 set

A Victoria chega a Sevilha

2 – 1519 20 set

Partida de Sanlúcar de Barrameda

30 – 1522 15 ago Açores

Sanlúcar

29 – 1522 14 jul Em Santiago, os portugueses prendem 12 tripulantes da Victoria

Tenerife

3 – 1519 20 set a 3 out Tenerife, Canárias Cabo Verde Santiago

Equador

28 – 1522 9 jul 4 – 1519 13 a 27 dez Rio de Janeiro

14 – 1520 18 dez Início da travessia do Pacífico

Oceano Atlântico

Rio de Janeiro

Rio da Prata

13 – 1520 28 nov

Cabo de Santa Maria (Uruguai) e exploração do rio da Prata

6 – 1520 31 mar – Puerto de San Julián Violento motim dos capitães castelhanos contra Magalhães, que acaba controlado

Puerto de San Julián

Cabo Deseado Estreito de Magalhães

Rebelião na nau San Antonio, que parte de regresso a Espanha, onde chegou a 6 de maio de 1521

5 – 1520 10 jan a 7 fev

7 – 1520 1 e 2 abr

Fim da exploração do estreito de Magalhães e entrada no Pacífico

12 – 1520 8 nov

Ilha de Santiago (Cabo Verde)

Rio de Santa Cruz Cabo das Onze Mil Virgens

11 – 1520 21 out

Descoberta do cabo das Onze Mil Virgens, que marca a entrada no estreito de Magalhães

8 – 1520 3 mai

27 – 1522 18 mai

A Victoria passa o cabo da Boa Esperança

A nau Santiago afunda-se no rio de Santa Cruz

9 – 1520 24 ago

Partida do resto da armada do Puerto de San Julián, onde ficam desterrados Juan de Cartagena e Pedro Sánchez de la Reina

10 – 1520 26 ago a 18 out Rio de Santa Cruz

LTA AO MUNDO VISÃO H I S T Ó R I A

11


MAGALHÃES // FACTOS

VERDADEIRO

A

história de Fernão de Magalhães deve ser esclarecida através de uma abordagem simples e clara de questões fundamentais e da correção de erros, dúvidas e equívocos A fim de estabelecer a verdade possível e apontar falsidades que têm sido divulgadas, selecionamos, pois, aqui alguns pontos essenciais relativos à vida e à grande viagem de Magalhães

1.

Magalhães era natural do Porto

Das sete naturalidades que ao longo dos tempos foram sendo atribuídas ao navegador – Lisboa, Figueiró dos Vinhos, Sabrosa, Tolões (Amarante), Braga, Porto e Ponte da Barca – apenas a identificação do Porto é válida. Quanto à data do nascimento de Magalhães, ela não é conhecida, pelo que e apenas por mera hipótese se tem apontado a possibilidade de a situar cerca de 1480.

Magalhães foi o primeiro homem a dar uma volta ao mundo

2.

O facto mais importante na valorização da história da vida de Magalhães consiste na afirmação de ter sido o primeiro homem a dar uma volta ao mundo. Essa sua circum-navegação da Terra não resultou, contudo, de uma única viagem, mas sim de várias, realizadas em duas fases, e correspondendo por isso a um processo que decorreu ao longo de 16 anos. O seu feito foi levado a cabo não de uma só vez e de seguida, mas sim indo primeiro pelo oriente e depois pelo ocidente, dando desta forma um alegórico abraço à Terra. Quando chegou às Filipinas, em 1521, foi o primeiro a conseguir provar a esfericidade da Terra, um conhecimento teoricamente adquirido há muito tempo. 12 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Juan Sebastián Elcano foi o primeiro homem a dar uma volta ao mundo de forma ininterrupta A primeira circum-navegação da Terra a ser feita de seguida deve-se exclusivamente à responsabilidade, iniciativa e direção de Juan Sebastián Elcano. Só a ele cabe, pois, a glória de ter conseguido alcançar um tal feito. Isso, contudo, só foi alcançado porque aquele basco foi contra as ordens dadas por Carlos V aos membros da «armada da especiaria». Estamos assim perante uma daquelas contingências da História que têm de se explicar sem equívocos: a viagem iniciada em Sevilha em 1519 só se veio a concluir nessa mesma cidade em 1522, depois de se ter dado uma volta ao mundo, devido à morte de Magalhães nas Filipinas, pois ele teria pensado regressar pelo Pacífico como Carlos V lhe ordenara, e à solução encontrada por Elcano para a fazer. Esta decisão resultou do desespero em querer regressar ao ponto de partida de um modo viável e minimamente seguro. Elcano pensou que tal desígnio não poderia ser cumprido se tentasse o regresso pelo Pacífico, como oficialmente deveria ter feito e em vão Gonzalo Gómez Espinosa ainda tentou fazer. Elcano decidiu partir das Molucas rumo a ocidente seguindo a rota do oceano Índico, passando pelo cabo da Boa Esperança e continuando depois até à Europa. Esta rota era dos portugueses e por isso estava-lhe oficialmente interdita por Carlos I. Esta realidade está bem provada pela evidência de que, apesar de os espanhóis terem navegado mais algumas vezes até às Molucas no século XVI, não voltaram a tentar regressar à Europa pela rota do Índico e do cabo da Boa Esperança.

3.


E FALSO

4.

Henrique não foi o primeiro homem a dar uma volta ao mundo Ao contrário do que por vezes se tem afirmado, não foi o escravo de Magalhães, Henrique, o primeiro homem a circum-navegar a Terra. Essa hipótese resultou da falsa conceção de que o escravo de Magalhães teria nascido nas Filipinas, baseada no facto de ele em 1521 ter falado com nativos daquelas ilhas quando Magalhães lá chegou. Teria, assim, sido levado das Filipinas para Malaca, onde Magalhães o comprou em 1511 ou 1512. A verdade, porém, é que os contactos estabelecidos por Henrique com as populações filipinas não foram feitos nas suas línguas nativas, mas sim em malaio, uma língua franca que tanto era falada pelas gentes dessas ilhas como pelas que habitavam no resto do Sudeste Asiático até Malaca e Samatra. É de considerar que Henrique era natural desta última ilha, segundo Pigafetta, ou de Malaca, segundo Magalhães, tendo este afirmado mesmo em 1519, no seu testamento, que ele era «natural da cidade de Malaca, de idade de 26 anos, pouco mais ou menos». A esse homem faltou assim percorrer os cerca de 4 mil quilómetros da parte da Terra que vai de Malaca às Molucas. Só se o tivesse feito teria concluído em 1521 a primeira volta à Terra de forma indireta quando chegou às Filipinas, como conseguiu fazer o seu senhor, que já em 1512 havia efetuado tal trajeto.

Revendo e corrigindo a história do primeiro homem a identificar a Terra tal como ela é

5.

por José Manuel Garcia*

Magalhães não queria dar uma volta ao mundo de seguida e estava proibido de a fazer Magalhães nunca quis fazer, ou sequer pensou em fazer, uma viagem à volta ao mundo de forma direta e ininterrupta. Em 1516-1519, ao conceber e iniciar a sua grande viagem para ocidente, ele tinha apenas em mente finalidades económicas e políticas, que passavam por chegar às Molucas do Norte e aí provar que, devido à sua longitude tal como ele a calculava, essas ilhas pertenciam a Castela. Dessa forma assegurava a sua posse por esse reino e lhe entregava os tão cobiçados lucros inerentes ao comércio das especiarias. O navegador português acreditava na existência de uma passagem no sul da América que viabilizaria chegar à Ásia por ocidente, seguindo uma rota mais proveitosa do que a usada até então pelos portugueses, via cabo da Boa Esperança, muito difícil e morosa. Queria assim retomar em novos moldes e concretizar o projeto de Cristóvão Colombo, com fundamentos científicos mais precisos. Há ainda que sublinhar ter Magalhães recebido reiteradamente ordens de Carlos V interditando a sua armada de entrar no hemisfério oriental sob o domínio exclusivo de D. Manuel. Só poderia e deveria ir até à região das Molucas porque Carlos V o autorizara a fazê-lo na medida em que ficara convencido dos argumentos que ele lhe apresentara mostrando estarem na sua parte do mundo.

VISÃO H I S T Ó R I A

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6. MAGALHÃES // FACTOS

Magalhães não apresentou a D. Manuel o seu projeto de ir às Molucas por ocidente ou de dar uma volta ao mundo É absolutamente errada a afirmação, muito divulgada, de que Magalhães teria apresentado a D. Manuel a sua pretensão de querer fazer uma viagem às Molucas por ocidente, ou mesmo a de querer dar uma volta ao mundo, e que teria sido por este rei ter recusado apoiar os seus desejos que ele foi apresentar a proposta a Carlos V, que a aceitou. Tais noções, tão falsas como absurdas, resultam apenas de uma atitude em que se copiou a situação ocorrida em 1483 com Cristóvão Colombo, quando esse navegador pediu apoio a D. João II para realizar o seu projeto de ir à Ásia por ocidente, o que lhe foi de facto recusado em Portugal. Em 1516-1517, Magalhães nunca se poderia ter colocado numa posição idêntica à de Colombo, pois o seu plano era pura e simplesmente contrário à política dos portugueses, que queriam dominar o comércio das riquezas da Ásia apenas pela rota do cabo da Boa Esperança, a única que lhes era consentida pelo Tratado de Tordesilhas e que seguiam desde que Vasco da Gama a abrira, entre 1497 e 1499. Há ainda a realçar a evidência de não ser possível a Portugal permitir a realização das ideias que Magalhães concebeu em 1516-1517, pois a viagem por ele proposta consistia em rumar para sul e ocidente do Brasil e de seguida passar apenas por áreas da exclusiva navegação de Castela. Assim sendo, estava evidentemente proibida a D. Manuel qualquer possibilidade de deixar portugueses fazerem viagens por vias ocidentais para irem ao oriente ultrapassando a linha de demarcação entrando na área castelhana, que se situava a ocidente de uma linha que passava a cerca de 47º 28’ O. Há ainda que reconhecer ter Magalhães concebido o seu plano em Lisboa, em 1516-1517, para se vingar de D. Manuel, visto sentir-se injuriado por este rei não lhe ter aumentado em cem reais mensais a «moradia» (ordenado) nem deixado ir às Molucas por oriente.

8.

7.

Magalhães foi o maior descobridor de todos os tempos Magalhães teve o grande mérito da conceção e execução da parte mais notável, original e difícil da grande viagem de descobrimento que planeou e chefiou entre 1519 e 1521, durante a qual revelou grandes áreas do planeta até aí desconhecidas dos europeus. Basta dizer que só à sua conta ele descobriu praticamente 20 mil quilómetros, isto é, metade da circunferência da esfera terrestre. Com efeito, essa é a distância que ele descobriu medida no equador entre as longitudes de terras a sul do rio da Prata (34º 52’ S; 56º 10’ O) e a ilha filipina de Cebu (10º 17’ N; 125º 51’ E). Magalhães descobriu os seguintes espaços: a parte meridional do continente americano a sul do rio da Prata; o estreito de Magalhães, que permitia a navegação entre o Atlântico e o Pacífico; a parte sul da costa do Chile até cerca de 32º S; toda a extensão do oceano Pacífico; e, finalmente, algumas ilhas das Filipinas.

A chave do sucesso do projeto de Magalhães consistiu em ter provado a sua crença de que no extremo sul da América havia uma ligação entre o Atlântico e o Pacífico Este feito foi alcançado depois de grandes sacrifícios e graças à sua enorme tenacidade e capacidade de chefia. A ideia de poder haver uma passagem na América do Sul começara a ser equacionada quando, em 1514, os portugueses sob a direção do piloto João de Lisboa descobriram o rio da Prata, tendo-se admitido então a possibilidade de por ali poder haver um acesso ao Pacífico. Magalhães convenceu-se de que ela existiria por ali à semelhança do que acontece no extremo sul da África entre o Atlântico e o Índico, que estão a latitudes idênticas.

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Magalhães foi o primeiro homem a navegar em todos os oceanos Ao fazê-lo, Magalhães percecionou experimentalmente que eles banhavam os continentes, permitindo por isso que estes passassem a estar ligados entre si por via marítima.

11.

Foram pelo menos 34 os portugueses que embarcaram na armada de Magalhães Este é o número de portugueses que apurámos terem ido na armada de Magalhães, maior do que aquele que tem sido apontado. Alguns deles apresentaram-se como espanhóis mas acabaram por ser identificados como originários de Portugal.

12.

Magalhães provou que a parte marítima da Terra é maior do que a terrestre

Em 1521, Magalhães demostrou pela primeira vez que a parte aquática do nosso planeta é maior do que a sua parte terrestre, assunto que até então não havia sido esclarecido. Ainda assim, há que reconhecer estarmos perante uma demonstração experimental de uma hipótese que Magalhães já admitira ao planear a sua viagem, pois ao conceber em Lisboa, entre 1516 e 1517, o projeto de viagem às Molucas por uma via ocidental, estava ciente de que teria de passar pelo oceano que em 1520-1521 viria a denominar Pacífico. Calculara já antes a sua enorme extensão com bastante aproximação, facto que ficou registado no planisfério feito em 1519 por Jorge e Pedro Reinel segundo as suas ideias. Nesse mapa ficou assinalada a grande extensão de tais águas, ali referidas como um «mar visto pelos castelhanos».

10.

Ao morrer em Mactan, Magalhães terá percebido o erro que cometera ao situar as Molucas na parte espanhola da Terra

Quando Magalhães morreu, em 1521, já teria assumido dramaticamente o erro que cometera ao defender a localização das Molucas na parte espanhola do mundo definida pelo Tratado de Tordesilhas. Há indicações reveladoras, nomeadamente as registadas pelo piloto grego Francisco Albo, de que ele percebeu estarem as Molucas situadas no hemisfério português.

* José Manuel Garcia é historiador do Gabinete de Estudos Olisiponenses, especialista na época da Expansão e autor do livro Fernão de Magalhães herói, traidor ou mito: a história do primeiro homem a abraçar o mundo

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Naus portuguesas do século XVI O livro mandado executar por Lisuarte de Abreu, na década de 1560, proporciona-nos belas reconstituições dos navios

A ÉPOCA

ATRÁS DO SOL POENTE 16 V I S Ã O H I S T Ó R I A


Legenda Legenda

LIVRO DE LISUARTE DE ABREU

Alcançar o Oriente navegando para ocidente foi um dos grandes desafios da era dos descobrimentos europeus. Após as viagens de Colombo, a procura, nas Américas, de uma passagem entre os oceanos Atlântico e Pacífico está na origem da maior das epopeias marítimas: a odisseia liderada por Fernão de Magalhães que acabaria por dar a primeira volta ao mundo. Mas antes disso muita água tinha corrido sob os cascos das barcas, caravelas e naus portuguesas por Luís Almeida Martins

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MAGALHÃES // A ÉPOCA

T

udo começou em Lisboa, com um mal-entendido. Foi quando, em meados da década de 1480, presumivelmente em 1483, o rei D. João II recusou a proposta que lhe foi apresentada por Cristóvão Colombo, um italiano residente há alguns anos em Portugal, de tentar atingir as Índias navegando para oeste. Compreendemos as razões por que o Príncipe Perfeito declinou a sugestão do navegador genovês (ou como tal registado pelo próprio filho e pelos cronistas da altura): o cabo da Boa Esperança estava em vias de ser dobrado pelos exploradores lusos, abrindo-se dessa forma pela via «normal» o caminho para a Índia das cobiçadas especiarias; além disso, uma viagem direta através do Atlântico inviabilizaria a almejada aliança com o Preste João, um semilendário soberano cristão já então identificado com o negus da Etiópia e que se julgava ser bem mais poderoso do que o era na realidade. Despeitado, Colombo foi oferecer os seus serviços aos «Reis Católicos» de Espanha, Isabel de Castela e Fernando de Aragão – e dessa forma Portugal, que já navegava África abaixo há umas boas seis décadas enquanto a Espanha se limitava a singrar a rota das Canárias, abriu indiretamente ao rival ibérico o caminho dos mares e da colonização do Novo Mundo… Esta realidade nua e crua poucas vezes é equacionada e, talvez para amenizar a sua rudeza, nasceu há menos de cem anos no nosso país a teoria «patriótica», e no mínimo controversa, de que Colombo seria um agente secreto de D. João II incumbido de desviar a atenção dos espanhóis da rota do Oriente, encaminhando-os para o mar largo. Se assim fora, o tiro teria saído pela culatra, já que a popular e europocêntrica «descoberta da América» em 1492, mundial e tradicionalmente atribuída ao provável genovês, tem permanecido ao longo dos séculos como um dos maiores feitos da História Universal. A façanha de Colombo foi também uma espécie de «ensaio geral» para a grande expedição que Fernão de Magalhães lideraria quase três décadas mais tarde e que, essa sim, alcançaria o Oriente navegando para ocidente. Como denominador comum a ambas, o facto de terem sido iniciativa de marinheiros empreen18 V I S Ã O H I S T Ó R I A

dedores escorraçados por reis de Portugal e navegando ao serviço da Espanha – no caso do português Magalhães, por razões que este número da VISÃO História amplamente esclarecerá.

A porta de Ceuta Os portugueses exploravam os mares já desde que o infante D. Henrique – filho de D. João I e a partir de certa altura administrador da Ordem de Cristo e um dos homens mais ricos do reino – , dera o sinal de partida, 70 anos antes. Os nossos antepassados nacionais de há 600 anos foram, incontestavelmente, pioneiros das explorações geográficas da Idade Moderna, o que é agora universalmente reconhecido de forma pacífica – e que fica atestado, por exemplo, na forma serena como o historiador americano Daniel Boorstin alude ao facto no seu livro Os Descobridores, um best-seller dos anos de 1980. Ressalve-se, porém, que nem sempre assim aconteceu, já que no século XIX, época em que as potências europeias se lançaram na disputa das riquezas africanas, Portugal teve de desenvolver grandes esforços para «fazer valer os seus direitos», uma vez que a

já muito antiga primazia lusa na exploração de costas e mercados do «Continente Negro» era deliberadamente minimizada, quando não ignorada, no exterior, sobretudo por franceses e ingleses. Não deixa de ser sintomático que o popular Júlio Verne na sua obra A Conquista da Terra só de forma sintética e apressada se tenha referido aos navegadores do infante. É claro que, entre nós, a ideia forte – que tem uma grande componente de mito mas que o transcende – dos «heróis do mar, nobre povo» nunca deixou de estar presente no imaginário coletivo, a ponto de fazer parte da letra do hino nacional. Esse pioneirismo deve também ser visto como o arranque de uma nova fase da história do mundo, que apesar de atuais «dificuldades» se tem mantido até hoje: a do predomínio europeu, ou, em sentido lato, ocidental. Essa ordem, que agora começa a ser desafiada por ventos asiáticos, principiou, contudo, não com a descoberta de novas terras, mas com um ato bélico: a conquista de Ceuta, em 1415. Não que esse feito de armas tenha sido profícuo de um ponto de vista prático, mas porque foi ali, no Norte de África, que os portugueses


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Governantes da Índia Afonso de Albuquerque e os vice-reis Vasco da Gama e Francisco de Almeida, segundo os retratos do livro de Lisuarte de Abreu

colheram informação acerca do alto Níger, do Senegal e, de uma forma genérica, de toda a vasta região oeste-africana conhecida por Guiné – com o seu ouro, a sua malagueta e a potencialidade, depois reconhecida, do comércio esclavagista. Foram estes os limites ambicionais do mundo do infante D. Henrique (1394-1460), mais tarde substituídos pelo «plano da Índia», quando, já no reinado de D. João II (1481-1495) o objetivo claramente definido

passou a ser o de encontrar a rota das especiarias orientais – a pimenta, a canela, a noz-moscada, o cravinho... Por outras palavras, tratava-se de arrebatar o monopólio deste comércio altamente lucrativo aos venezianos, distribuidores dos cobiçados produtos na Europa visto estarem posicionados no termo de uma longa cadeia de intermediários que os faziam chegar por via terrestre à costa oriental do Mediterrâneo. Não é descabido, nesta guerra que foi comercial e geográfica antes de o ter sido propriamente militar, realçar a ajuda prestada a Portugal por agentes e financiadores florentinos, tendo em conta a acesa animosidade entre os estados italianos.

Domínio português Depois da ocupação de Ceuta, os portugueses empreenderam uma persistente e sistemática exploração naval da costa ocidental africana, que se estendeu no tempo entre

Tratado de Tordesilhas A versão portuguesa da página de rosto do documento, de 1494

1434, quando foi dobrado o cabo Bojador, situado a sul das Canárias, e 1488, ano em que Bartolomeu Dias ultrapassou o cabo da Boa Esperança e deixou aberto o caminho marítimo para a Índia. A mirífica terra das especiarias acabaria mesmo por ser alcançada em 1498, por uma esquadra comandada por Vasco da Gama, inaugurando-se assim uma nova era na história das relações humanas: a das trocas globais. Nessa prodigiosa viragem do século XV para o século XVI, que é também o auge do Renascimento italiano e o largo átrio da Idade Moderna, o mundo deixava de estar dividido em compartimentos estanques e o ser humano descobria em si mesmo novas potencialidades, libertando-se (ainda que não completamente, pois isso seria anti-humano) de uma larga dose de medos e de superstições. Paralelamente ao interesse comercial, os portugueses dessa época alimentaram um espírito de cruzada que a Igreja de Roma nunca deixou de recompensar com a publicação de bulas que lhes concediam a posse das terras «descobertas» e davam cobertura à luta contra os muçulmanos e à evangelização dos povos que professavam outras religiões. As disputas dos portugueses com os espanhóis limitavam-se à posse das Canárias, problema que ficaria resolvido em 1479 com a assinatura do Tratado de Alcáçovas (ratificado no ano seguinte, em Toledo, pelos «Reis Católicos»), nos termos do qual Portugal renunciava a esse arquipélago em troca da propriedade das outras ilhas já descobertas (casos da Madeira, dos Açores e de Cabo Verde) ou a descobrir e do direito de exercer o seu domínio e de praticar o comércio na costa africana. Por seu lado, os espanhóis ficavam, nos termos do acordo, impedidos de navegar a sul do cabo Bojador. No que toca aos interesses do comércio atlântico (porque outros havia, de caráter eminentemente político, que o tratado contemplava), a Espanha vergou-se em grande parte devido ao facto de Portugal possuir um domínio inigualável das técnicas de navegação. Os marinheiros lusos conheciam os ventos e as correntes e tinham demonstra-

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do que a África podia ser circum-navegada. O fator-Colombo, atrás referido, veio desestabilizar a situação e pôr fim a essa autêntica pax lusitana em águas atlânticas. Em 1492, depois da primeira viagem do genovês (que faria mais três, sempre para a zona das Caraíbas e da América Central), a Espanha estava lançada nos mares e em breve colonizaria as Antilhas e a «Terra Firme» centro e sul-americana – as chamadas «Índias de Castela» (nunca é de mais recordar que o navegador chamara «índios» aos habitantes do Novo Mundo por julgar ter alcançado a Índia). Mas com a entrada em cena da Espanha no palco atlântico levantava-se, agora, um novo problema: o de definir as áreas de influência de um e de outro dos concorrentes – o português e o espanhol.

O Tratado de Tordesilhas Para esse efeito, representantes dos dois países ibéricos reuniram-se em junho de 1494 na localidade castelhana de Tordesilhas, perto de Valladolid, e ali ratificaram um tratado segundo o qual a fronteira geográfica entre essas áreas seria um meridiano, como tal traçado de pólo a pólo, que passava 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, a mais ocidental do arquipélago de Cabo Verde. Para reconhecer in loco o curso, no Atlântico central, dessa linha imaginária – a raia, como lhe chamavam – foram aparelhadas quatro caravelas com marinheiros, pilotos e astrólogos (então também o que hoje entendemos por astrónomos) dos dois países interessados. Fora da Península Ibérica, ninguém gostou deste acordo. Ficou célebre uma carta do arcebispo de Toledo a Carlos V, escrita umas décadas depois, em que o prelado faz alusão à perplexidade do rei Francisco I de França, que «gostaria de ver o testamento de Adão para saber como ele [ou seja, o bíblico primeiro homem] tinha partilhado o mundo e outras coisas que tais». Escusado será dizer que os povos que habitavam fora da Europa não só não foram consultados, como se mantiveram até na ignorância de tal acordo. Com o passar das décadas, esses povos foram-se dilatando, uma vez que, depois de alcançada a Índia, os portugueses estenderam a sua zona de atuação direta para a península 20 V I S Ã O H I S T Ó R I A

indochinesa e para os arquipélagos que hoje constituem a Indonésia e boa parte da Malásia, áreas a que o explorador, aventureiro e escritor Fernão Mendes Pinto chamaria «a pestana do mundo». Com efeito, à política basicamente comercial do primeiro vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida, sucedera o plano imperialista de Afonso de Albuquerque, fundador de um império português, comercial e militar de raiz marítima, nas águas quentes do Índico e da entrada para o Pacífico. Um ator bruscamente chegado de longe afrontava assim diretamente os interesses, há muito instalados, dos comerciantes muçulmanos, sobretudo omanitas, e dos soberanos locais seus aliados espalhados pelo arco costeiro que circunda o Índico. É certo que o Tratado de Tordesilhas nunca foi escrupulosamente respeitado, sobretudo a partir do momento em que, um século após a sua assinatura, irromperam bruscamente no Índico os galeões holandeses, ingleses e franceses, mas manteve-se oficialmente em vigor até ao tempo do Marquês de Pombal, concretamente até ao dia 13 de janeiro de 1750, data em que foi abolido.

O enigma do antimeridiano Este tratado levantava outra questão: sendo a Terra esférica, o meridiano de Tordesilhas prolongava-se necessariamente do outro lado do planeta. Por outras palavras, algures no Extremo Oriente existia também uma linha imaginária que delimitava os interesses comerciais português e espanhol. Ora, esses interesses eram ali especialmente quentes e picantes, uma vez que se presumia que a incerta raia passasse pelo local onde se situavam as mais cobiçadas ilhas da especia-

Por onde passava a linha que, do outro lado do mundo, delimitava as zonas portuguesa e espanhola definidas pelo Tratado de Tordesilhas?

rias: Tidore e Ternate, nas Molucas do Norte. O problema estava em determinar o traçado do antimeridiano. Enquanto a linha permanecia imersa num limbo nebuloso, os espanhóis tentavam alcançar as terras da especiarias navegando para ocidente, seguindo a rota aberta por Colombo e de acordo com o estipulado em Tordesilhas. Desfeita a ilusão de que as Antilhas, ou as «Índias de Castela», ficavam no Oriente, e sabido que a Terra era bem maior do que o genovês presumira, tratava-se então de procurar uma passagem entre o «velho» oceano Atlântico e um oceano «novo» existente para lá do Novo Mundo, que os espanhóis tinham batizado de mar do Sul quando avistaram uma nesga dele do outro lado do istmo do Panamá, aí numa posição mais meridional. Mas não foram os únicos a fazê-lo, já que, à revelia do Tratado de Tordesilhas, Henrique VII de Inglaterra patrocinou, em 1497, a exploração da costa canadiana pelo italiano Giovanni Caboto (John Cabot) à procura dessa passagem e os portugueses João Lavrador


LIVRO DE LISUARTE DE ABREU

Batalha naval Um combate entre naus portuguesas e galeras turcas nos mares do Oriente, representado no livro de Lisuarte de Abreu

e Gaspar Corte-Real desenvolveram idênticos esforços entre 1498 e 1501. A mais conhecida das tentativas espanholas foi posterior a estas, e levada a cabo por Juan Díaz de Solís, supostamente um português exilado no país vizinho. A passagem entre os dois oceanos apenas seria, no entanto, encontrada duas décadas depois, por Fernão de Magalhães. Quanto ao traçado do antimeridiano, haveria de ser apurado em 1524 por uma junta de cosmógrafos, pilotos e matemáticos nomeados pelos dois países e reunidos em Elvas e Badajoz, tendo o respetivo traçado sido reconhecido bilateralmente em 1529, através do Tratado de Saragoça. Tudo estava então facilitado, já que pouco antes, em 1526, Carlos I de Espanha (mundialmente mais conhecido por Carlos V, visto ser este o seu nome enquanto imperador do Sacro Império Romano-Germânico) casara-se com Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I e irmã de D. João III, e desse consórcio resultara o fortalecimento dos laços entre as duas coroas peninsulares.

De Fernão de Magalhães falar-se-á muito nas páginas que se seguem. Tal como Cristóvão Colombo três décadas antes, também ele foi escorraçado por um soberano português e indiretamente encaminhado para Espanha, a cujo serviço tanto um como o outro levaram a cabo feitos que jamais deixariam de ser recordados tanto por estudiosos como pelo homem comum. O desejo de Magalhães era que o rei D. Manuel I lhe financiasse uma pequena expedição às Molucas do Norte, onde tencionava arredondar o saco de umas poupanças depauperadas por uma vida aventurosa e cheia de vicissitude ao serviço da Coroa – no Extremo Oriente e em Marrocos. Face à recusa do monarca, e dada a antipatia existente entre os dois (o rei vinha-lhe recusando há muito um aumento de pensão), foi oferecer os seus serviços à Espanha, a potência rival. Aí, não se tratava já «apenas» de alcançar Ternate e Tidore, mas sim de chegar até estas ilhas por via da tal passagem entre os dois mares, há muito procurada mas sempre em vão. Magalhães, que tinha profundos conhecimentos náuticos

e era um caso paradigmático daquele «saber de experiência feito» que Camões haveria de cantar n’Os Lusíadas, estava além disso convencido de que as Molucas do Norte ficavam situadas no hemisfério espanhol – o que mais tarde se demonstraria não ser verdade, já que o antimeridiano de Tordesilhas passa um pouco a leste delas. Nunca pretendeu, pois, dar a volta ao mundo, mas sim alcançar as referidas ilhas navegando para ocidente. Tendo encontrado a morte num combate contra uma tribo indígena das Filipinas, em 27 de abril de 1521, não alcançou o seu objetivo e, se circum-navegou o globo fê-lo em duas etapas temporalmente separadas ao longo da vida – a primeira navegando para leste ao serviço de Portugal, a segundo fazendo-o para oeste sob o pendão espanhol.

O homem-planeta Mas atingiu a imortalidade ao permitir de forma indireta que a nau sobrevivente das cinco inicialmente postas sob o seu comando completasse a viagem em torno do planeta, quando esta regressou a Sevilha através das águas «portuguesas» proibidas pelo Tratado de Tordesilhas. Antes disso, desvendara aos olhos europeus metade do globo de uma assentada, ao percorrer de leste para oeste, na sua largura máxima, todo o vasto oceano Pacífico, por ele assim batizado num augúrio de esperança e de bonança. Antes ainda, encontrara a tão buscada passagem entre as duas massas de água, algures nos confins meridionais da Patagónia – o hoje chamado estreito de Magalhães. Ao longo de toda a odisseia, em que patenteara inigualáveis conhecimentos náuticos, tivera de combater e dominar as rebeliões dos comandantes das outras naus, que não se conformavam a sujeitarem-se às ordens de um estrangeiro, ainda por cima natural da potência rival na exploração dos mares. Por todos estes motivos, Fernão de Magalhães, durante muito tempo visto no seu país natal como um traidor, é na verdade o português mais famoso de todos os tempos, o simbólico homem universal, o metafórico homem-planeta.

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MAGALHÃES // A ÉPOCA

‘O mais suave cheiro do mundo’

verdadeiro e único berço do cravo, pelo menos até ao século XIX, o que, na lembrança errada dos homens, se traduzia num outro nome que ainda hoje permanece – cravinho-da-índia – que é, ao mesmo tempo, uma alusão indiscutível às suas reduzidas dimensões.

É o do cravo das Molucas, a especiaria quase mágica utilizada na medicina e na culinária que atingiu um valor quase idêntico ao do ouro por Maria José Azevedo Santos*

uando havia vento pela proa, como relata Garcia de Orta, os nossos navegadores quinhentistas experimentavam, sobretudo de Cochim para Goa, «o melhor cheiro do mundo», ou seja, a fragrância daquela especiaria exótica, originária das ilhas Molucas. Das quase seis dezenas de colóquios (conversas) que aquele médico português publicou em Goa em 1563, o 250 é integralmente dedicado ao cravo (cariofilum ou gariofilum, do latim, girofe, do grego, ou chanque, como o designavam nas ilhas de origem). Mas não nos matemos pelos nomes, como escreve o autor. Falar deste cravo é falar de uma árvore cujas notícias mais antigas remontam à Antiguidade. No século XVI ela é descrita como planta que poderia atingir 35 metros de altura e viver durante um século. As suas características mais peculiares são, todavia, as flores e os frutos. As primeiras, aos cachos, na copa das árvores, nascem no cimo de um pauzinho (pé), são colhidas ainda em botão e só elas merecem o nome de cravo, ou cravinho-da-índia. Por sua vez, os pés, ou bastões, e os frutos, carecidos do aroma e de ímpar sensação gustativa, próprios da flor, eram considerados também especiarias, mas pobres, de má qualidade, como denunciavam as expressões «cravo cheio de bastão» ou «o cravo todo era pao». Documentos de natureza administrativa, literária ou histórica atestam que o cravo, a pimenta e outras substâncias do género chegaram à Europa na Idade Média (séculos XII-XIII). É sabido como a peregrinação por mar e terra a que estavam sujeitos era longa e penosa. Saíam das Molucas em juncos ou 22 V I S Ã O H I S T Ó R I A

outros barcos e eram transportadas até à ilha de Ceilão (hoje Sri Lanka). Daí seguiam para os principais portos e cidades da Índia, como era então Calecute. Deste modo, ia ficando bem afastado, no tempo e na distância, o

ILUMINURA FLAMNECA SÉC. XVI/GETTYIMAGES

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Meia volta ao mundo

Para chegar à mesa ou às boticas dos princípes, o cravo, vendido a preços exorbitantes, fazia uma viagem que era quase a semicircunferência do globo

Nos portos indianos, era a vez de os árabes carregarem as suas embarcações e trazerem as preciosas mercadorias «até ao fundo do golfo Pérsico, por um lado, ou até ao fundo do mar Vermelho, por outro». A Carreira da Índia estava ainda longe de ser descoberta e, por essa razão, as especiarias despejadas naquelas paragens seguiam por terra, em caravanas, até Alexandria ou Constantinopla (hoje Istambul). Mas para que chegassem às mesas ou boticas de príncipes, de reis ou de nobres ricos da Europa era necessário o contributo decisivo dos comerciantes de Génova ou Veneza que, por fim, além de abastecerem a Itália também transportavam o cravo para Marselha ou Barcelona e daí para o próspero mercado de Lisboa. O 40 conde de Ficalho, botânico português do séc. XIX, escreve a propósito desta viagem que podia durar mais de um ano: «A especiaria, o cravo, fazia assim uma viagem que era quase a semicircunferência do globo, embarcada e desembarcada, dezenas de vezes, vendida e revendida.» Era, sem espanto, comprada por preços exorbitantes, quase equivalentes aos do ouro, e entrava na vida das casas abastadas com duas funções principais: a primeira, de sempre, como remédio conhecido pelas suas propriedades analgésicas, anti-inflamatórias e antibacterianas; além disso, era também aromatizante das bebidas ou da água, tratava a boca (como mastigatório) e combatia a temível peste. Aliás, a mais antiga receita em português que conhecemos com cravo (1436-1438) é uma mezinha contra a «pestenença», cuja fórmula o médico Diogo Mangancha enviou, por carta, ao rei D. Duarte, falecido de peste em 1438. Tal receita é só própria de reis, pela carestia inimaginável dos produtos. Entre mirra, ouro, cânfora, gengibre e outras «drogas», lá estão uns «finos cravos» moídos, passados


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Cravo A flor da árvore era usada contra a peste, ou «pestenença», como se lê na mais antiga receita a em português

por peneira de seda e misturados com vinho e sangue de texugo. Mais tarde, também o médico de D. João V, Francisco Henriquez, exalta as múltiplas virtudes medicinais do cravo. A segunda função era a de tempero, já então bem difundido. É, de facto, como adubo, vocábulo frequente nas Idades Média e na Moderna utilizado no sentido de condimento, que aquela especiaria ganha maior relevo e assume um óbvio sinal de poder socioeconómico e cultural.

Receitas com cravo Nos livros de cozinha, ontem como hoje, em receitas, fossem de carne, de peixe, de doces ou de molhos, quantas vezes na companhia

do açafrão, da pimenta, do gengibre e da canela, encontramos os cravos com o seu incomparável sabor ardente. São exemplo disto as receitas de pastéis de carne, de tigelada de perdiz, de lampreia ou de fartes (bolos doces) que fazem parte, entre outras, do mais antigo livro de cozinha português, o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, datável da segunda metade do séc. XVI, de autor desconhecido. Anteriores a este, podemos citar o Libro de Guisados de Ruberto, cozinheiro-mor de Fernando de Nápoles, publicado em 1529. São em número significativo as receitas que levam cravo. A de potage de grassa recomenda «tres madres de clavos» (a especiaria de segunda qualidade),

o «relleno para dolientes» inclui um pedaço de canela inteiro e um «clavo de girofe», enquanto nas de peixe, como a de esturjão, ou de molhos, como a de escabeche, surgem «clavos machacados». O célebre Nostradamus (1503-1566) deixou-se igualmente inspirar pelo cravo e, no Tratado da maneira de fazer doces de frutos, de 1552, oferece-nos um doce de amêndoas que, depois de frias, são polvilhadas com canela e cravo-da-índia, «pois torna o doce excelente e com melhor odor». Acrescenta o autor que «este doce pode acompanhar carne comida a qualquer hora do dia». Mas a epopeia do cravo não se fez apenas com o perfume que exala e os negócios e lucros que provocou. As expressões «ilhas das contendas» ou «questão das Molucas» significam anos de conflito armado, no arquipélago das especiarias, entre portugueses e espanhóis. Logrado o desiderato de Fernão de Magalhães conseguir provar a qual dos reinos as Molucas pertenciam, D. João III, por um lado, e Carlos V, por outro, partem para uma solução bélica V que custou muitas vidas e sofrimento. Ao cabo de quase dez anos de lutas, foi assinado, em 1529, o Tratado de Saragoça, que entregava a Portugal a posse das Molucas e o monopólio do comércio do cravo. Em troca, a Espanha recebeu uma considerável soma de dinheiro. Todavia, como é sabido, a paz foi apodrecida pela cupidez praticada pelos portugueses que se locupletavam com a compra especulativa do cravo aos autóctones, seguida da venda, na Ásia ou na Europa, a preços desmedidos. Este monopólio, porém, termina no século XVII com o domínio dos holandeses. Portugal e Espanha desviam para outras paragens a produção do cravo (Brasil, Índia, Madagáscar e outras). Mantinham-se, e mantêm-se até hoje, as propriedades medicinais (não esquecer o óleo) e culinárias desta especiaria oriental, mas o que foi irremediavelmente destruído foi o sortilégio, a magia, o encanto exótico dessa especiaria que, por ser tão pequenina, ficou, também, para a história como cravinho-da-índia ou cravo-de-cabecinha. * Maria José Azevedo Santos é professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

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CRÓNICA DE D. AFONSONDE O HENRIQUES DE DUARTE GALVÃO. MUSEU CONDES DE CASTRO GUIMARÃES

MAGALHÃES // A ÉPOCA

Lisboa, centro do império A capital do nascente império português adquiriu um cunho monumental por iniciativa de D. Manuel I

A

por Ana Cristina Leite*

Lisboa no tempo de Fernão de Magalhães, onde o navegador viveu por curtos períodos, intercalados pelas suas viagens, desde os inícios de Quinhentos até 1517, era uma cidade em plena transformação. Renovava-se como resultado do programa de reordenamento do espaço público do reinado de D. Manuel I (1495-1521) que visou fornecer a urbe de novas infraestruturas, funcionalidades e equipamentos utilitários para darem uma resposta eficaz à forte pressão demográfica (autóctones e gentes de todo o mundo) e à circulação de novas mercadorias. Lisboa, a capital e a mais importante cidade do reino, era o centro de um vasto império e o grande entreposto do comércio mundial entre a Europa, o Oriente, a África e o Novo Mundo. Vivia-se a época das grandes viagens marítimas da expansão portuguesa e era intensa a atividade portuária. Gozando desde sempre de uma localização privilegiada junto do estuário do Tejo, como porta de entrada da Europa e do mundo, a cidade acumulava e geria poder, grandeza, esplendor, riqueza e supremacia. Renovada, modernizada e com uma nova paisagem urbana ribeirinha mais monumentalizada, pontuada por arquiteturas de aparato e propaganda, Lisboa era a imagem ideal da capital centro de um império. Oferecia-se como uma cidade global do Renascimento que deslumbrava muitos dos que a visitavam. 24 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Uma cidade em transformação Vista panorâmica de Lisboa, por volta de 1520, atribuída a António de Holanda

Dela escrevia o cronista Garcia de Resende na sua Miscelânea (1533): «Lisboa vimos crescer/ em povos e em grandeza/ e muito se enobrecer/ em edifícios, riqueza/ em armas e em poder;/ porto e trato não há tal,/ a terra não tem igual.»

A cidade medieval Quando D. Manuel subiu ao trono recebeu uma cidade com focos de restruturação dos reinados precedentes, mas ainda com características medievais. Instalada no morro do antigo castelo, em São Vicente, na colina do Carmo e de S. Francisco, na zona da velha Sé, em Alfama e no vale da Baixa, com arrabaldes

[Os portugueses] celebram Lisboa com tal cópia de palavras que a fazem igual às principais cidades do mundo e por isso costumam dizer: quem não vê Lisboa não vê coisa boa’’ Viagem a Portugal dos Cavaleiros Tron e Lippomani, 1580

como a Mouraria e áreas de campo e olivais, era defendida pelas antigas muralhas (Cerca Velha, Fernandina e Muralha da Ribeira), só pontualmente absorvidas pelo casario que ia crescendo ao sabor das necessidades. Fora e dentro da Cerca Fernandina surgem novos bairros: desde 1498 a Vila Nova de Andrade (na génese do Bairro Alto); e a partir de 1502 a Vila Nova de Oliveira, nas cercas dos conventos do Carmo e da Trindade, acima dos recentes quarteirões de Cata-que-Farás. Dentro do perímetro das muralhas havia muitos chãos baldios, campos, terreiros, hortas que contrastavam com os núcleos densos das antigas ruas estreitas e sinuosas. Pela largura e traçado reto, era exceção a Rua Nova dos Mercadores (obra de D. Dinis, que ficara calcetada já depois de 1515), paralela ao rio, correndo junto da Muralha da Ribeira. A principal e mais opulenta artéria da cidade, com os seus prédios de três, cinco ou seis andares, viria a ser um lugar de intensa vida política, económica e social. Por motivos comerciais, desde finais do século XIII, assistíamos a uma lenta demanda da urbe para junto do rio, com ocupação de áreas da Ribeira, sobretudo do lado do arrabalde ocidental, e à construção de uma série de infraestruturas portuárias e outras. Este processo de relação cidade-Tejo, em parte espontâneo e natural, teve como consequência direta o crescimento da área de Lisboa,


a definição de um modelo de expansão e de uma nova configuração da sua forma urbana. Logo nos últimos anos de Quatrocentos e inícios de Quinhentos D. Manuel nuel delineou a intervenção na Ribeira, onde havia avia a intenção de definir um terreiro concretizado etizado com a regularização de aterros da faixa ixa ribeirinha: o Terreiro do Paço. Aqui mandou dou construir a sua nova morada, o Paço da Ribeira, para onde se mudou abandonando o Paço da Alcáçova, no castelo, antiga residência da Corte. Com esta mudança, transferia-se o pólo administrativo, político e cívico de Lisboa, consagrado simbolicamente na nova praça, que viria a consolidar-se também como centro vital do monopólio económico e comercial. O Paço da Ribeira (Diogo de Arruda, 1501-1521), além de residência régia integrava a Casa da Índia, Mina e Guiné (entrepostos comerciais), reforçando-se desta forma o simbolismo da construção que foi um marco decisivo no urbanismo e no desenvolvimento da Ribeira. O edifício fechava a ocidente o Terreiro do Paço, nova entrada monumental de Lisboa.

Do Rossio à Ribeira A partir de agora a cidade vai organizar-se em duas frentes: uma ao longo da faixa ribeirinha; a outra entre a nova praça e o Rossio, antigo terreiro medieval, ligação à zona rural envolvente, lugar de mercados, festas religiosas e régias e atividades lúdicas. Ali funcionou a partir de 1504, por iniciativa régia, o moderno Hospital Real de Todos-os-Santos. Reconhecido como grande obra pública pela utilidade cívica do papel central de sociabilização e prestação dos cuidados de saúde à população da cidade e de quantos a visitavam, era um marco de poder e propaganda A ligação entre as duas praças fazia-se pela Rua Nova d’el Rei, que confluía na Rua Nova dos Mercadores. Nesta situavam-se as lojas mais variadas e sofisticadas de Lisboa, recheadas de produtos vindos do Oriente, África e Europa: sedas, brocados, damascos, veludos, tafetás, especiarias, porcelanas, bijutarias, livros, doçarias, medicamentos e muitos produtos exóticos. Na Baixa era intensa a atividade comercial: banqueiros, joalheiros, ourives, entalhadores. Os antigos bairros permaneciam, entretanto, ligados a atividades como a pesca (Alfama) ou

Lisboa, no futuro, será uma grande, rica e poderosa cidade, porque é de admirar o número de casas que se constroem. O rei fez nela um belo e rico palácio novo, onde agora vive, junto ao rio que é o porto. Dizem que é o mais belo porto da Cristandade. O qual é de água fresca e estende-se por uma légua de comprido em direção ao mar, sempre ao longo da cidade’’ Jan Taccoen van Zillebeke, 1514

indústrias de loiça (Mouraria). Participavam na vida febril de Lisboa, mas à margem do seu centro vital, onde a vida de rua era intensa. Seguindo e imitando D. Manuel, uma aristocracia viajada e uma nova burguesia enriquecida quis ter também residências junto ao rio. Arrasando ou reaproveitando partes do troço ribeirinho da Cerca Velha que corria do Terreiro do Paço para oriente, construíram-se vários palacetes. Entre estes está a Casa dos Bicos (1521-23, Francisco de Arruda), de Brás de Albuquerque, inspirada em modelos da arquitetura palaciana italiana renascentista, mas que, tal como outros exemplares da arquitetura civil da época, estava condicionada a estreitos loteamentos determinados pelo traçado urbano pré-exis-

tente. Possuir casa na Ribeira passou a ser um luxo que poucos alcançaram. Ainda na faixa ribeirinha localizamos as principais intervenções de carácter funcional, como a Ribeira das Naus, à ilharga do Paço da Ribeira, estaleiro naval onde se construíam e consertavam as embarcações; ou a Alfândega Nova (iniciada em 1515-17), armazém de recolha e distribuição de mercadorias que delimitava, a oriente, o Terreiro do Paço.

Monumentos de Belém Fora do coração da urbe, Lisboa alongava-se por uma faixa marginal de densidade urbana diversificada (mais expressiva para ocidente do que a oriente), que ia de Xabregas, onde ficava o Convento da Madre de Deus (1509-17), a Belém, onde se ergueram duas das grandes e emblemáticas edificações da época: o Mosteiro dos Jerónimos (com estaleiro desde 1502) e a Torre de Belém (Francisco de Arruda, 1515-1520). Pelo meio ficava o Paço Real de Santos, debruçado sobre o Tejo, onde D. Manuel residiu durante as obras do Paço da Ribeira, e que utilizou para muitas receções a cidadãos estrangeiros e altos dignitários. O mosteiro (traça inicial de Diogo Boitaca, substituído em 1516 por João de Castilho) era um símbolo arquitetónico e artístico relacionado com o programa de engrandecimento e valorização imperial do rei, que queria ser ali sepultado. Marcava, simbolicamente, o limite da cidade, tal como a Torre de Belém, arquitetura militar que integrava o sistema de defesa da barra do Tejo e construção de aparato que ostentava os emblemas régios. Este conjunto monumental de Belém, estrategicamente implantado em local onde pudesse ser visto por quantos demandavam Lisboa por mar, era a porta fictícia de entrada na cidade. Daqui até ao interior da urbe eram só quintas, jardins e campos, nas palavras do cronista Damião de Góis. Desta Lisboa cosmopolita, ribeirinha, aberta para o Tejo e para o mar, ficou um conjunto de representações inspiradas na sua relevância mundial, alimentada pelo fascínio e curiosidade que a cidade exercia nos europeus. Alguns visitaram-na, desenharam-na e descreveram-na. * Ana Cristina Leite é investigadora do Gabinete de Estudos Olisiponenses (CML)

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A FIGURA

MAGALHÃES ANTES DA FAMA A maior parte da vida do navegador decorreu ao serviço de Portugal, adquirindo, no Oriente e em África, a experiência nas artes de navegação e da guerra que lhe permitiriam levar a cabo o grande feito

F

ernão de Magalhães tornou-se famoso por organizar uma expedição marítima que largou de Sanlúcar de Barrameda em setembro de 1519, em busca de uma rota ocidental para a Ásia, a qual, depois da sua morte nas Filipinas em 1521, viria eventualmente a completar a primeira viagem de circum-navegação do globo, sob o comando de Juan Sebastián Elcano. Mas o que se sabe sobre a sua vida antes de ter passado a Espanha, para se colocar ao serviço de Carlos I? Diversas localidades portuguesas têm sido apontadas como berço do célebre navegador, nomeadamente Ponte da Barca, Ponte de Lima, Sabrosa e Porto. Na realidade, Fernão de Magalhães terá nascido na região do Porto, e muito provavelmente em Gaia, na margem sul do rio Douro, como sugerem alguns documentos de arquivos. Dois testemunhos portugueses um pouco mais tardios confirmam esta hipótese. Fernando Oliveira, um curioso escritor português, por volta de 1570 preparou uma cópia do relato de viagem de um anónimo participante da expedição magalhânica, que é conhecido como Viagem de Fernão de Magalhães, escrita por um homem que foi na companhia. A dado passo, refere que «entre os portugueses que descobriram Maluco foi um chamado Fernão 26 V I S Ã O H I S T Ó R I A

por Rui Manuel Loureiro* de Magalhães, natural da cidade do Porto em Portugal» (Valiére: 27-28). O segundo testemunho conserva-se numa curiosíssima obra intitulada Livro das antiguidades e cousas notáveis de entre Douro e Minho, e de outras muitas de Espanha e Portugal, da autoria do dr. João de Barros, e composta em 1549. Numa descrição relativa à cidade do Porto, este humanista refere que «os homens desta cidade são pela maior parte muito expertos na arte de marear, e se fazem ali grandes naus e navios, e dali foi natural o Magalhães, que achou outro caminho para a Índia, que foi homem habilíssimo» (Barros: 60). O célebre navegador era filho de Rui de Magalhães, alcaide-mor do castelo de Aveiro nos últimos anos do século XV, e de sua mulher Alda ou Aldonça de Mesquita, e terá nascido por volta de 1480. A primeira notícia segura que temos sobre ele é que nos primeiros anos do século XVI era morador da casa real, estando pois ao serviço de el-rei D. Manuel I. É nessa qualidade que embarca em Lisboa, em março de 1505, na armada de D. Francisco de Almeida, que ia investido no cargo de primeiro vice-rei do nascente Estado da Índia. Desde a histórica viagem de Vasco da Gama, em 1498, a Coroa portuguesa estava a construir no Oriente um informal império, constituí-

do por dispersos estabelecimentos costeiros, onde eram fundadas feitorias e fortalezas, que eram protegidas por navios poderosamente armados. A partir destas bases, os portugueses pretendiam intervir no tráfico das mais valiosas mercadorias orientais, canalizando-as para a Europa através da recém-aberta rota do Cabo. Anualmente, pois, largavam do Tejo armadas que transportavam de Portugal para a Índia meios técnicos e materiais, assim como renovados contingentes de homens.

Na Índia e na África Oriental A armada atingiu a costa ocidental da Índia em outubro de 1505, aportando a Cananor e Cochim, onde D. Francisco de Almeida negociou com as autoridades a construção de fortalezas portuguesas. Depois da partida rumo a Lisboa, em dezembro de 1505, alarmantes notícias chegaram à fortaleza de Cananor, sobre um iminente ataque do samorim de Calecute, que desde a primeira hora se revelara hostil à presença lusitana. Magalhães participou no confronto militar, que redundou numa vitória portuguesa sobre a frota de Calecute. O cronista Gaspar Correia, que viveu na Índia a partir de 1512, e que escreveria as Lendas da Índia, uma história do primeiro meio século de presença


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KUNSTHISTORICHES MUSEUM, VIENA

Retato de Fernão de Magalhães Pintado à volta de 1579, pertenceu à coleção do arquiduque Fernando II do Tirol e é cópia de um que já existia em 1533 na Lombardia, na coleção de retratos de Paolo Giovio

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MAGALHÃES // A FIGURA

ANOS DE AVENTURAS portuguesa no Oriente, refere-se a «Fernão de Magalhães, que em Calecute fora muito ferido» (Correia: II, 28). Em finais de 1506, Magalhães embarcou numa expedição comandada por Nuno Vaz Pereira, despachada para a costa oriental de África. Durante cerca de um ano, este contingente deu apoio aos estabelecimentos portugueses de Sofala, Quíloa e Melinde, ajudando a consolidar a presença lusitana na região, importante por permitir o acesso ao trato de ouro do Monomotapa. Nada de especial se consegue apurar sobre as atividades de Magalhães. Em outubro de 1507, Nuno Vaz Pereira e os seus homens estavam de regresso a Cochim, onde Magalhães terá estanciado até dezembro de 1508. Embarcou então na grande armada que o vice-rei D. Francisco de Almeida organizou para combater no litoral noroeste da Índia uma poderosa coligação de potentados indianos, apoiados por um contingente naval egípcio. Como escreve Gaspar Correia, Magalhães «foi no feito dos rumes» (Correia: II, 28), designação atribuída à batalha naval de Diu, na qual os portugueses, em fevereiro de 1509, infligiram pesada derrota às forças inimigas, consolidando o poder lusitano nos mares da Índia e assegurando a capacidade de intervenção no tráfico das mercadorias orientais. Em meados do mesmo ano, Magalhães encontrava-se novamente em Cochim. Durante cerca de quatro anos circulou, pois, incessantemente pelas margens da parte ocidental do Índico, participando em expedições e combates.

Malaca e mais além Em agosto de 1509 embarcou em Cochim, juntamente com o seu amigo Francisco Serrão, numa expedição comandada por Diogo Lopes de Sequeira. Este fidalgo, acabado de chegar de Portugal, trazia instruções para se dirigir a Malaca, a fim de reconhecer as regiões asiáticas mais orientais. Todas as notícias recolhidas pelos portugueses indicavam que as mais valiosas drogas e especiarias eram oriundas da Insulíndia, pelo que a Coroa estava interessada em fundar um entreposto naquela importante cidade malaia. Os portugueses permaneceram algumas semanas em Malaca, negociando um 28 V I S Ã O H I S T Ó R I A

1480 Data provável do nascimento de Fernão de Magalhães

1505 Março Magalhães parte de Lisboa 1 na armada de D. Francisco de Almeida

Morte de Magalhães

Cebu (Filipinas)

Setembro Magalhães em Cananor 2

1506 Novembro Embarca na armada de Nuno Vaz Pereira e visita Sofala 3 , Quíloa 4 e Melinde 5

2ª parte da volta ao mundo: Sevilha – Filipinas

1507

1508

Outubro Em Cananor e Cochim 6

Dezembro 2

Embarca na armada de D. Francisco de Almeida

1509

Junho

Fevereiro

Está em Cochim 6

Participa na batalha de Diu 7

Agosto Embarca na armada de Diogo Lopes de Sequeira

acordo com as autoridades locais, intercambiando mercadorias e, sobretudo, recolhendo informações de natureza estratégica. Mas, na sequência de um inesperado ataque à feitoria e aos navios portugueses, Diogo Lopes de Sequeira foi obrigado a retirar deixando em Malaca um grupo de prisioneiros. O cronista Fernão Lopes de Castanheda, que entre 1551 e 1561 publicou em Coimbra a sua História do descobrimento e conquista da Índia pe-

Setembro Está em Malaca 8

1510 Janeiro Embarca em Cochim com rumo a Lisboa mas naufraga nas ilhas Laquedivas 9 Março-Novembro Participa na conquista de Goa 10

los portugueses, refere-se repetidamente a Magalhães, que teve um papel muito ativo nos confrontos que marcaram a retirada portuguesa. Este aparece retratado como um experiente homem de armas, que se destaca pela solidariedade manifestada em relação aos companheiros, nomeadamente a Francisco Serrão, que socorreu em duas ocasiões. De regresso à Índia, em finais de 1509, Magalhães embarcou em Cochim logo no


1513 Janeiro Parte de Malaca com rumo a Cochim Fevereiro Parte de Cochim, com rumo a Lisboa

Lisboa 1 Sevilha 14 13

Agosto

Azamor

Diu 7

Goa 10 2 Cananor 9 6 Cochim Melinde 5 Quíloa 4

Malaca

8

11 12

Ilhas Laquedivas

Ilhas de Banda e de Amboino (Molucas)

Sofala 3 Rio da Prata

Chega a Lisboa e embarca na armada de D. Jaime, duque de Bragança, rumo a Azamor 13 , em Marrocos

1513-1514 Está em Azamor

1ª parte da volta ao mundo: Lisboa – Molucas FONTE José Manuel Garcia

1512

1511 Maio Embarca com Afonso de Albuquerque

Julho-Agosto

Setembro

Participa na conquista de Malaca 8

Regresso a Malaca da armada de António de Abreu

Novembro Poderá ter embarcado na armada de António de Abreu, visitando as ilhas de Banda 11 e Amboíno 12

início de 1510, num dos três navios que regressavam a Portugal, carregados de especiarias e outros produtos orientais. Contudo, duas destas embarcações viriam a naufragar nos baixos de Pádua, junto às ilhas Laquedivas. Castanheda destaca o papel determinante desempenhado por Magalhães, que assumiu a direção do grupo de náufragos, enquanto os capitães dos navios rumavam a Cananor em botes improvisados, em busca de socorro.

1514-1517 Em Lisboa, dedica-se a atividades comerciais

1517 Outubro Parte para Sevilha 14 , após romper com D. Manuel I

Posteriormente, o grupo de portugueses seria resgatado e transportado para Cananor. João de Barros, que publicou em Lisboa as suas três Décadas da Ásia, entre 1552 e 1563, relata o incidente e sugere que Magalhães decidira permanecer com os náufragos por lealdade «a um seu amigo» de baixa condição social que não fora autorizado a embarcar nos primeiros botes, alusão quase certa a Francisco Serrão (Barros: III, 374-375). É provável que

Magalhães tivesse perdido neste naufrágio muitas das suas posses, circunstância que o obrigará a continuar no Oriente durante mais alguns anos. Entretanto, Afonso de Albuquerque assumira as funções de governador do Estado da Índia, e estava a desenvolver, ou planeava fazê-lo, operações militares em diversas regiões da Ásia marítima, no sentido de consolidar a presença portuguesa com a aquisição de diversas bases estratégicas. Um dos objetivos prioritários era o território de Goa, dependente do sultanato de Bijapur, que foi conquistado pelos portugueses na sequência de uma prolongada campanha militar desenvolvida ao longo de todo o ano de 1510. Goa seria a partir de então a base central do Estado da Índia. Fernão de Magalhães terá decerto participado em algum momento da conquista de Goa, mas nada de especial se consegue apurar nas crónicas da época.

Terá estado nas Molucas? Em meados de 1511, Magalhães embarcou na armada que Albuquerque levou a Malaca e que, após fracassadas conversações com as autoridades do sultanato, levou a cabo a conquista daquela cidade em agosto desse mesmo ano. Com ele embarcou também o seu amigo Francisco Serrão. Albuquerque prosseguia o seu projeto imperial de estabelecer bases fortificadas portuguesas em lugares estratégicos da Ásia marítima, de forma a permitir uma intervenção global e sistemática nos principais tráficos orientais. E Malaca abria as portas para a Insulíndia e também para as regiões que bordejavam o mar do Sul da China, onde se situavam os locais de produção de muitas das mais valiosas mercadorias orientais procuradas pelos portugueses. Logo após a conquista de Malaca, e depois de iniciada a construção da fortaleza portuguesa, Albuquerque despachou emissários rumo a diversos outros destinos, com vista a assegurar a manutenção de ligações mercantis pacíficas e regulares. Rumo ao arquipélago de Maluco, de onde provinham especiarias tão valiosas como o cravinho, a noz-moscada e a maçã, seguiu uma armada comandada por António de Abreu, que largou de Malaca em finais de

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MAGALHÃES // A FIGURA

1511. A expedição, depois de costear a fieira de ilhas que de Java se estende para leste, visitou os arquipélagos de Amboíno e de Banda, para depois regressar a Malaca na segunda metade de 1512, com detalhadas informações geográficas e cartográficas. O capitão de uma das embarcações era Francisco Serrão, que, na sequência de um naufrágio junto à ilha de Madura, conseguiu atingir as ilhas de Maluco propriamente ditas a bordo de embarcações locais, aí se fixando até à sua morte em 1521. Especula-se se Fernão de Magalhães teria participado nesta expedição e, à falta de um testemunho inequívoco, podem ser invocados diversos argumentos nesse sentido. Primeiro, nas muitas dezenas de documentos produzidos em Malaca durante os anos de 1511 e 1512, que reportam as vicissitudes da fundação e gestão do novo estabelecimento português, não se encontra qualquer referência a Magalhães, o que poderia significar que ele estava ausente daquela cidade. Depois, Lopes de Castanheda, numa passagem da sua crónica, refere «que o mesmo Fernão de Magalhães fora testemunha» da viagem de António de Abreu, «tendo a certeza onde aquelas ilhas [de Maluco] jaziam» (Castanheda: II, 442). Em terceiro lugar, o já mencionado Fernando de Oliveira refere no seu relato da viagem de circum-navegação que Magalhães era um «homem entendido na arte da navegação e cosmografia, em especial pelo que aprendeu de um seu parente chamado Gonçalo de Oliveira, em cuja companhia foi ter àquela terra [de Maluco], do qual entendeu a verdade do sítio daquelas terras» (Valière: 26-27). Ora, em quarto lugar, as crónicas portuguesas referem que Gonçalo de Oliveira era precisamente o piloto do navio em que Francisco Serrão partiu de Malaca com rumo às ilhas das especiarias. Assim, não parece impossível que Fernão de Magalhães tenha também participado na viagem às ilhas mais orientais da Insulíndia, seguindo à ida no navio de Francisco Serrão, mas regressando desde Banda com António de Abreu. Aliás, ambos embarcaram juntos em Malaca, em janeiro de 1513, com rumo a Cochim, de onde Magalhães e Abreu prosseguiram de imediato para Lisboa, num dos navios da carreira da Índia. Magalhães en30 V I S Ã O H I S T Ó R I A

cerrava assim o seu segundo período oriental, com redobrada experiência naval e militar, e sobretudo na posse de alargados conhecimentos da geografia e da hidrografia de grandes porções da Ásia marítima.

Problemas em Marrocos Mal chegado a Lisboa, em meados de 1513, Fernão de Magalhães logo embarcou na grande armada que estava a ser preparada em Lisboa, sob o comando de D. Jaime, duque de Bragança, com vista à conquista de Azamor. D. Manuel I prosseguia a tradicional política de ocupação de posições sólidas no litoral marroquino. Na sequência da ocupação de Azamor pela força expedicionária portuguesa, Magalhães permanecerá durante alguns meses naquela praça marroquina. De volta a Portugal, seria acusado de irregularidades no desempenho das funções de quadrilheiro, pelo que foi obrigado a regressar a Marrocos para esclarecer a situação. Novamente em Lisboa, ter-se-á dedicado a atividades

A recusa régia de D. Manuel de lhe aumentar a pensão tocou fundo em Fernão de Magalhães, que decidiu desde logo expatriar-se

de natureza comercial, já que existem referências a verbas por ele recebidas, oriundas de mercadorias trazidas pelas naus da carreira da Índia. Uma hipótese sugestiva seria Magalhães ter mantido relações comerciais com Cristóbal de Haro, abastado mercador espanhol por esses anos estabelecido em Lisboa, onde estava intensamente envolvido em negócios ultramarinos, alguns dos quais respeitavam a mercadorias oriundas da Ásia mais oriental. Durante o ano de 1517, na sequência de um conflito de interesses com el-rei D. Manuel I, Cristóbal de Haro passou a Espanha, onde viria a assumir lugar de destaque no financiamento e gestão de expedições marítimas espanholas. E seria ele, pouco depois, um dos grandes impulsionadores do projeto magalhânico.

Rutura com o rei de Portugal Magalhães, entretanto, entrava também em conflito com o monarca lusitano. Como era habitual em homens de armas que retornavam a Portugal depois de um período de serviços ultramarinos, dirigiu a D. Manuel I, provavelmente em 1516, um requerimento de aumento da pensão que recebia enquanto fidalgo da casa real portuguesa. Mas, por razões algo obscuras, que parecem estar ligados ao seu período marroquino, o pedido foi terminantemente recusado. A recusa régia tocou fundo em Magalhães, que decidiu desde logo expatriar-se. O cronista Gaspar Correia, num Sumario da crónica de el-Rei D. João III, completado por volta de 1533, transmite uma versão sugestiva do rompimento entre o soberano e o seu súbdito. Magalhães, perante a recusa de D. Manuel I em conceder-lhe a recompensa que achava merecer, pediu-lhe «licença para ir buscar vida onde lhe fizessem mercê, ao que el-Rei respondeu secamente que ninguém lho não tolhia». Despeitado, o fidalgo português «se alevantou e saiu da casa onde el-Rei estava, logo rompendo o seu alvará de filhamento, e os pedaços deitou da mão» (Correia: 220). Pouco depois, Magalhães abandonaria Portugal para sempre, dirigindo-se a Sevilha, para se colocar ao serviço de Carlos I. Ainda na versão de Gaspar Correia, «vinha a o servir como ao maior príncipe


Malaca A cidade em cuja conquista pelos portugueses Magalhães participou, segundo um desenho de Gaspar Correia nas Lendas da Índia

do mundo que era», pois «sabia muito da arte esférica e das coisas do mar» (Correia: 200). Quando Fernão de Magalhães passou a Espanha, em outubro de 1517, teria uns trinta e muitos anos, e era um homem com larga experiência náutica e militar. Efetuara extensas e numerosas viagens marítimas, atravessando o Atlântico e cruzando todos os mares orientais, e participara em repetidas campanhas militares um pouco por todo o Oriente, e também no Norte de África. Adquirira um importante cabedal de conhecimentos sobre a navegação oceânica e sobre os espaços geográficos ultramarinos que estavam a ser explorados pelos portugueses. E tivera ocasião de conviver com pilotos, cartógrafos e geógrafos, absorvendo muito do seu saber inovador. Entretanto, o experiente navegador português trazia na bagagem algumas «cartas e poemas de marear», baseadas nas mais recentes explorações e especulações da cartografia lusitana (Barros: V, 629). Era, sem dúvida, um homem bem preparado para encabeçar um projeto inovador, de navegação para o Oriente pela via ocidental.

Azamor Assim surge representada no Civitates Orbis Terrarum a praça-forte marroquina onde Magalhães teve problemas no desempenho de funções oficiais

Resta apenas uma hipótese de trabalho. Não é de todo impossível que Cristóbal de Haro – que coincidentemente também abandonou Portugal na mesma conjuntura, igualmente insatisfeito com a resposta de el-rei D. Manuel I às suas solicitações – fosse o primeiro responsável pela partida de Fernão de Magalhães para Espanha. O financeiro e mercador burgalês, impedido de participar nos ricos negócios asiáticos dos portugueses, seria

o primeiro interessado em encontrar uma forma alternativa de aceder às ilhas das especiarias. E identificara Fernão de Magalhães como o homem certo para levar a cabo o projeto espanhol, acalentado há mais de duas décadas – desde os tempos de Cristóvão Colombo –, de abrir uma rota ocidental para o Oriente. * Rui Manuel Loureiro é professor do Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes e investigador do CHAM, Universidade Nova de Lisboa

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MAGALHÃES // A FIGURA

Magalhães em Espanha

O navegador foi bem acolhido na corte espanhola porque, munido de credenciais e já relacionado com empreendedores castelhanos em Lisboa, foi visto como o homem certo na hora certa

H

por Juan Gil*

ouve dois navegadores despeitados com o rei de Portugal que acorreram à corte espanhola com propostas de viagens que mudariam o rumo da história. Em 1486 um genovês, Cristóvão Colombo, chegou a Castela e ofereceu-se para descobrir o Oriente navegando para o poente. Em 20 de outubro de 1517, um português, Fernão de Magalhães, pôs pela primeira vez o pé em Sevilha, a capital do comércio com as Índias de Espanha, disposto a realizar um projeto semelhante: alcançar a Terra das Especiarias navegando sempre para oeste. Ambos os navegadores, que não tinham previamente realizado qualquer empresa extraordinária, foram recebidos com títulos e honrarias e, já convertidos em súbditos do monarca castelhano, estabeleceram família e criaram raízes em Espanha. No entanto, foi muito diferente o tempo que os dois descobridores tiveram de aguardar por uma resposta na corte. Colombo assinou com os Reis Católicos as Capitulações de Santa Fé ao cabo de sete anos de longa espera em Espanha. Magalhães conseguiu alcançar o seu intento em apenas cinco meses. A que se ficou a dever uma tão radical diferença de tratamento? A esta pergunta poderão responder, no caso de Magalhães, as considerações que depois teceu, pelas quais se verá, segundo creio, que o acaso nada teve que ver com o êxito da empresa das Especiarias. Antes de chegar a Castela, Magalhães manteve contactos com um importante grupo de espanhóis em Lisboa. Em 1517, quando se apresentou, em Sevilha, ao feitor da Casa de 32 V I S Ã O H I S T Ó R I A

la Contratación, Juan de Aranda, e este lhe exigiu credenciais, recorreu ao aval de dois mercadores de Burgos que residiam na capital portuguesa, Covarrubias e Diego de Haro; estes atestaram a boa condição e a valia do pretendente a descobridor. Ora, estes mercadores eram tudo menos insignificantes, já que pertenciam à fina-flor empresarial de Castela. Diego era irmão de Cristóbal de Haro, o ativo financeiro que possuía contactos em Bruxelas e financiara já uma viagem de descobrimento empreendida em 1514 por duas caravelas armadas por D. Nuno Manuel e por ele próprio. Um desses navios, depois de navegar 600 ou 700 léguas ao longo da costa oriental da América do Sul, atingira um cabo por detrás do qual se abria um grande golfo (o rio da Prata?); e o relato da viagem afirmava que desde esse promontório até Malaca – um termo pouco claro, visto não sabermos se se refere à cidade, à península malaia ou às Molucas – não mediavam mais de 600 milhas. A Terra das Especiarias estava, pois, quase ao alcance da mão. Encontrava-se já aí o cerne do projeto depois concretizado por Magalhães. Pois bem, tal como Magalhães, também Cristóbal de Haro abandonou Portugal em 1517, descontente com o rei luso, mas por outros motivos: tinham-no incomodado as restrições comerciais impostas por D. Manuel I aos seus negócios. O cronista Maximiliano Transilvano ligou as duas saídas de Portugal – a do navegador e a do mercador – como se ambas obedecessem a um mesmo motivo: «Estes, Fernão de Magalhães, português, e Cristóbal de Haro [dirigiram-se à corte] para

comunicar que ainda não se sabia de ciência certa se Malaca estava dentro da demarcação dos portugueses ou dos espanhóis, porque não se tinha podido achar uma razão infalível para fixar a latitude, mas que era seguro que o Golfão e os povos da China pertenciam à navegação dos castelhanos, e que o mais seguro de tudo era que as ilhas chamadas Molucas, de onde procediam todas as especiarias trazidas para Malaca, caíam dentro do ocidente dos castelhanos.» Não há motivo para colocar em dúvida esta afirmação do cronista, que dispunha de informação em primeira mão por estar casado com uma filha de Diego de Haro. De quanto dissemos depreende-se um facto de radical importância: a armada das Especiarias dirigida por Magalhães foi forjada em Lisboa nos escritórios dos comerciantes de Burgos, interessados em alcançar o mais rapidamente possível as Molucas por uma rota mais curta. De facto, naqueles tempos em que a mais absoluta ignorância reinava sobre o possível traçado do antimeridiano de Tordesilhas, muita gente pensava que não só as Molucas, mas até mesmo Malaca, se encon-


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Sevilha e o seu porto Esta vista geral da cidade andaluza é da autoria do pintor renascentista espanhol Alonso Sánchez Coello (c. 1531-1588)

travam sob a jurisdição de Castela, reduzindo consideravelmente a extensão do Golfão ptolemaico (que Colombo e, depois dele, todos os cosmólogos se identificaram com o Pacífico). Ainda nos mapas de Nuño García de Toreno (Turim, 1522) e Robert Thorne (1525), a linha de demarcação fazia cair Malaca no hemisfério pertencente à Espanha; um enorme absurdo, mas que ninguém poderia refutar com argumentos sérios. A ideia de Haro e Magalhães, como vimos, era mais modesta; em sua opinião, a Terra das Especiarias ficava, sim, debaixo da soberania castelhana, mas estava localizada nos seus confins: naquele canto eram colocadas «as ilhas [de] onde vem o cravo» no planisfério de Reinel», mapa esse enviado em 1519 por Magalhães a Carlos I de Espanha (Carlos V) como um reflexo fiel de suas conceções cosmográficas.

Portugueses em Sevilha Tendo-se despedido para sempre de Portugal, Magalhães foi direto a Sevilha, onde chegou em 20 de outubro de 1517. A escolha da cidade não poderia ser mais acertada. O novo

monarca – um jovem quase imberbe nascido nos Países Baixos que mal falava espanhol – havia acabado de pisar a Espanha e seria aclamado rei em 7 de fevereiro de 1518 em Valladolid. Enquanto isso, seria conveniente entrar em contacto com os funcionários da Casa de la Contratación, o equivalente espanhol à Casa da Índia lisboeta, criada em Sevilha em 1503. Mas outro motivo muito poderoso impulsionou Magalhães – e, pouco depois, Rui Faleiro – a dirigir-se a Sevilha: a influência e o poder da colónia portuguesa (já castelhanizada) que se instalara na cidade.

A Casa de la Contratación, em Sevilha, era o equivalente espanhol da Casa da Índia, em Lisboa

De facto, em Sevilha refugiara-se a casa de Bragança quando D. João II, com razão ou sem ela, decidiu, em 1483, cortar a cabeça do seu varão mais eminente, o duque D. Fernando. Em Sevilha estabeleceram residência tanto D. João, o condestável de Portugal, como D. Álvaro, o mais inteligente de todos os irmãos, que se tornaria, pelas suas excelentes qualidades pessoais, presidente do Conselho de Castela; os filhos do duque decapitado, esses, cresceram na corte. Em 1517, os homens daquela geração desfrutavam de uma vida melhor. Viviam ainda em Sevilha a marquesa de Montemor (ou seja, Montemor-o-Novo), a viúva de D. João, e D. Jorge, filho de D. Álvaro. Como se compreende, a influência desses nobres era incalculável. A marquesa deixou uma marca indelével da sua passagem pela cidade andaluza, favorecendo a construção do convento de Santa Paula, que se tornou o panteão da família, e ainda hoje podemos admirar os veneráveis túmulos, com as suas figuras jacentes, na igreja hieronimita. D. Jorge, tal como o pai, foi um dos Vinte e Quatro (ou seja, vereador) da cidade e alcaide dos alcáceres e atarazanas (estaleiros navais),

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MAGALHÃES // A FIGURA

um cargo de grande responsabilidade de nomeação direta do rei. Por consequência, Fernão de Magalhães sabia muito bem o que estava fazer quando entrou em Sevilha. Não esqueçamos que a sua família tinha um relacionamento com a casa de Bragança, e que ele próprio havia participado na tomada de Azamor, uma vitoriosa jornada liderada em 1513 pelo duque D. Jaime e que durante muitos anos encheu de legítimo orgulho os seus descendentes. Era, pois, de esperar que D. Jorge de Portugal, primo direito de D. Jaime, acolhesse com benevolência em sua casa um cavalheiro ligado à sua própria estirpe.

Sogro e genro Mas há ainda mais. Um servo fiel, Duarte Barbosa, e sua mulher, Maria Caldeira, tinham acompanhado D. Álvaro no exílio. As façanhas de Barbosa nas guerras de Granada e de Navarra renderam-lhe um importante galardão: ser feito cavaleiro da ordem de Santiago, a mais ilustre das ordens espanholas. D. Álvaro e, mais tarde, D. Jorge distinguiram o velho servidor com a nomeação, também muito honrosa, para lugar-tenente do alcaide dos alcáceres e atazaranas, cargo que ocupou até à morte, numa prova não apenas de competência, mas também de acrisolada fidelidade. Quando, após a morte de D. João II, a família Bragança recuperou a sua influência em Portugal, D. Álvaro despachou um navio para a Índia em 1501, na armada de João da Nova. O capitão desse navio era outra vez o seu fiel servo Duarte Barbosa. É tentadora a ideia de

que Magalhães possa ter conhecido o servo de D. Álvaro na Índia, mas o navegador chegou à Índia em 1505, quando muito provavelmente Barbosa já havia encetado a viagem de regresso ao reino. De qualquer forma, os dois personagens devem ter mantido uma relação estreita antes de 1517, pois caso contrário não se explica que em menos de dois meses Fernão de Magalhães, que era tudo menos um galã bonitão (Bartolomé de las Casas, que o conheceu em fevereiro de 1518, descreveu-o como homem que «não tem muita autoridade, porque era pequeno de corpo, e por si só não parecia ser muito»), se tenha casado com uma das filhas de Barbosa, D. Beatriz; um casamento concertado, sem dúvida, como era costume na época, celebrado com grande pompa na igreja do Alcácer de Sevilha. Duarte Barbosa quis a Magalhães como um verdadeiro pai. Não só o alertou por carta acerca dos boatos que sobre ele corriam, como defendeu corajosamente a honra do genro, quando foi interrogado após a chegada da nau San Antonio a Sevilha em 1522. E havia ainda segredos de família: as arras (o equivalente ao dote pago pelo noivo) de Beatriz, numa choruda soma de 600 mil maravedis, foram pagas integralmente pelo noivo, conforme afirmou solenemente Barbosa em 23 de agosto de 1519; no entanto, consta do testamento

As tentativas anteriores A procura de um estreito que conduzisse diretamente à Índia era um sonho antigo da corte espanhola Cristóvão Colombo Cri Em 1503, durante a sua quarta viag viagem Vicente Pinzón e Juan Díaz Solís Vic Em 1508, empreenderam uma nav navegação para descobrir o estreito, que se julgava na América Central Juan Díaz Solís Jua Em 1516, tenta atingir a parte de trás de Castela de Ouro (costa oeste do Panamá). Morre durante a viagem

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Fernão de Magalhães Retrato do navegador num fresco pintado entre 1573 e 1575 por Giovanni Antonio Vanusino da Varese na Sala del Mappamondo da Villa Farnese, em Caprarola, Viterbo

que Magalhães apenas lhe entregou 300 mil; evidentemente, o bom velho concordou que o genro, em vez de satisfazer plenamente o dote, investisse o pouco dinheiro que restava na compra de mercadorias para resgates durante a viagem e, fazendo vista grossa ao que fora combinado entre os dois, assinou até a correspondente carta de quitação, num sinal da boa harmonia que reinava entre sogro e genro.

Os outros Duarte Barbosa Na Armada das Especiarias havia outro Duarte Barbosa, uma figura sobre cuja identidade se forjaram as mais desvairadas hipóteses, embora o rol da armada nos indique que era, de facto, «sobrinho do alcaide [o sogro de Magalhães]». A conduta deste Duarte Barbosa durante a viagem não foi propriamente exemplar. «O capitão pô-lo a ferros no porto de Santa Luzia, que é na costa do Brasil, porque queria ir para os índios, e passou-o para a nau Victoria como capitão dela; e fugiu para os índios na ilha de Cebu e esteve três dias sem vir à nau, embora o capitão Magalhães o tenha mandado chamar.» Isto lê-se na lista dos falecidos na viagem, provavelmente escrita por Martín Méndez. Pagou as suas culpas ao morrer no massacre


A. DAGLI ORTI/SCALA, FLORENÇA

de Cebu (1 de maio de 1521), em parte provocado pelos seus impropérios e despropósitos. Mas espera-nos ainda uma surpresa, pois entra agora em cena outro personagem com o mesmo nome, o que coloca uma pergunta difícil de responder: que relação existe entre o Duarte Barbosa residente em Sevilha e o Duarte Barbosa que foi escrivão da feitoria de Cananor e escreveu o Livro das coisas do Oriente? Noutro lugar presumi que deviam ser parentes, talvez primos. Mas há mais: com a chegada de Magalhães a Espanha começaram a proliferar traduções castelhanas as do Livro, em boa parte anónimas. Não vem especificado o nome do autor na cópia exisxistente na Biblioteca Colombina ou no conciso ciso resumo mantido no Arquivo das Índias; mas, s, num manuscrito conservado na Biblioteca te teca Nacional de Madrid, o nome de Barbosa sa é substituído pelo do grande navegador: «Este Este oto, livro compuso Fernando Magallanes, piloto, nte, lo qual el vio y anduvo.» Evidentemente, como já indicou Rui Loureiro, existe uma estreita ligação entre a chegada de Magalhães hães a Castela e esta eclosão de cópias, que, sem dúvida, foram apresentadas aos cortesãos ãos para corroborar a tese do descobridor. Não deve pensar-se que este tivesse chamado a si

a autoria do tratado, porque assim seria de esperar que o seu nome aparecesse em todos os exemplares. Noutro artigo, sugeri a ideia de que Magalhães havia colaborado neste trabalho, escrevendo a parte correspondente às regiões mais orientais, parte essa na qual se verifica também uma mudança de estilo (passa-se da terceira para a primeira pessoa). Sabemos ainda pelo cronista Francisco López de Gómara que Magalhães exibiu na corte, como um dos seus trunfos, um exemplar da «relação de Luys Bertomán, bolonhês».

Rui Faleiro juntou-se nt a Magalhãess em e Sevilha Sevilha, mass em breve se incompatibilizariam

É provável que assim tenha sido, pois não se deve ao acaso, evidentemente, que o impressor Juan Cromberger tenha publicado em 1520 em Sevilha o Ytinerário del venerable varón micer Luis Patricio Romano, en el qual cuenta mucha parte de la Ethiopia, Egipto y entrambas Arabias, Siria y la Yndia, traduzido pelo clérigo sevilhano Diego de Arcos. Magalhães aproveitou bem a sua estada em Sevilha, pois, além de se casar, fez amizade com Juan de Aranda, feitor da Casa de la Contratación. Tão-pouco esse relacionamento se deveu ao acaso: Aranda era de Burgos e, portanto, estava intimamente ligado aos Haro e aos Covarrubias. Como se vê, o descobridor, recebido pelos Barbosa como membro da família e protegido por D. Jorge, encontrou também o firme apoio de outro burgalês na Casa de la Contratación. A viagem estava na calha.

A loucura de Rui Faleiro Em novembro juntou-se a Fernão de Magalhães em Sevilha o seu velho conhecido Rui Faleiro. Os acordos realizados com Juan de Aranda desagradaram enormemente ao cosmógrafo, que, considerando-se preterido, teve uma viva discussão com Magalhães: a sua crescente irascibilidade começava a denotar já alarmantes sintomas de demência. Diogo Barbosa e Rui Lopes – o mordomo de D. Jorge de Portugal – mal conseguiram dissipar a raiva e reconstruir a amizade na base de uma efémera reconciliação. Tornava-se já urgente a ida à corte, aonde toda a nobreza espanhola fora jurar lealdade ao novo rei. Os portugueses empreenderam a viagem a Valladolid com a duquesa de Arcos, D. María Téllez Girón. Acompanhavam Magalhães o seu escravo – o famoso Henrique de Malaca – uma mulher de Sumatra e o seu pajem Cristóvão Rebelo; com Rui Faleiro ia o seu irmão Francisco, também cosmógrafo. Em Medina del Campo juntou-se à comitiva o feitor Juan de Aranda, que durante a viagem prometeu total apoio à proposta dos navegadores, desde que lhe concedessem um oitavo de todos os lucros da futura descoberta; uma extorsão iníqua (que mais tarde lhe valeu ser julgado) a que Fernão de Magalhães e Rui Faleiro acederam, não sem que este último se irritasse mais uma vez perante as exigên-

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MAGALHÃES // A FIGURA

MUSEU DO LOUVRE, PARIS

cias do feitor. O contrato foi assidurante a estada no navegador nado perante um notário de Vallaem Valladolid, e do seu feitor na dolid em 23 de fevereiro de 1518. Andaluzia aquando da permaO apoio do capital burgalês permitiu nência em Sevilha. Em vão. Os que Magalhães e Faleiro apresentasargumentos apresentados não sem a Carlos I uma dupla proposta dissuadiram Magalhães, que de contrato, escrita pelo próprio havia encontrado em Castela Aranda: primeiro expunham-se as uma consideração negada em condições que ambos solicitavam se Portugal. Temendo um ateno monarca financiasse a empresa; tado, diz-se que em Valladolid deois, as contrapartidas que oferemudava frequentemente de ciam se o risco fosse assumido por residência; mas não há registo armadores particulares (entenda-se de uma conspiração contra a Haro e companhia, sempre atentos sua vida. ao bom andamento dos negócios das O que aconteceu aos dois porespeciarias). Como se compreende, tugueses, já transformados em os representantes do rei nem sequer castelhanos? Rui Faleiro, vítilevaram em consideração a segunda ma da loucura, foi deposto da hipótese, optando por que fosse a capitania conjunta da armada Coroa a assumir a responsabilidade em 1519, ocupando o seu posto da empresa. Juan de Cartagena. Após um Não esqueçamos que a procura de efémero regresso à Covilhã em Carlos V Este é o nome pelo qual é mais conhecido Carlos I de um estreito que conduzisse diretabusca da mulher, Eva Afonso, Espanha, também imperador do Sacro Império Romano-Germânico mente à Índia era um sonho antigo que o abandonara, o infeliz cosda corte espanhola. Já Colombo o mógrafo, detido por D. Manuel havia tentado, sem êxito, na sua quarta vianovos capitães, dispostos a descobrir terras I e libertado a pedido de Carlos I, arrastou gem (1503); depois, os Reis Católicos tinham muito ricas num oceano desconhecido; os por Sevilha uma triste existência até à sua confiado a Américo Vespúcio e Vicente Yáñez mercadores esfregaram as mãos, pensando não menos triste morte. O irmão Francisco Pinzón a preparação da primeira Armada das nos lucros que obteriam com a nova rota procurou alojamento permanente na Casa de Especiarias, que nunca chegou a partir de para a Terra das Especiarias; e, finalmente, la Contratación e, casado em Sevilha, propôs Sevilha. Mas foi esse mesmo Pinzón, juntaos navegadores, enaltecidos pela ordem de em 1558 a conquista do rio Amazonas. Magalhães, como prova o seu testamento, mente com Juan Díaz de Solís (um português Santiago, tiveram a grande alegria de ver radicado em Lebrija, perto de Sevilha), que os seus desejos realizados, já que Carlos I feito em Sevilha em 24 de agosto de 1519, asempreendeu em 1508 uma navegação para concordou com quase todas as condições sentou morgadio em Castela, com a condição descobrir o estreito que se presumia localipropostas. O contrato final foi assinado em de que os seus descendentes perpetuassem o zar-se na América Central; e em 1516 Solís Valladolid em 22 de março de 1518. seu nome (na época, a mudança de apelido voltou a partir com a missão de atingir a parte era frequente). Antes de partir, nasceu-lhe um de trás da Castela do Ouro (ou seja, a costa D. Manuel I arrependido filho, a que puseram o nome do avô, Rodrigo. oeste do Panamá) e, daí em diante, navegar O rei de Portugal, lamentado tardiamente a Beatriz engravidou em 1519. A má sorte quis por águas desconhecidas umas 1700 léguas, sua arrogância, tentou conquistar a boa vonque todos os membros da família morressem sempre dentro da demarcação castelhana tade de Magalhães, esforçando-se por atraíantes do regresso da nau Victoria: Magalhães (observe-se que está aqui expressa a futura -lo através dos serviços do seu embaixador em Mactan, em 27 de abril de 1521; a mulher viagem de Magalhães). Infelizmente, Solís e os dois filhos em 1522. Diogo Barbosa mormorreu em 1516 às mãos dos índios no rio reu em 6 de outubro de 1524. Ninguém pôde da Prata antes de ter podido completar a desfrutar dos títulos e da herança daquele missão. Providencialmente, os recém-cheque poderia ter sido governador e adelantado gados portugueses vieram assim preencher das Molucas se a fortuna lhe tivesse sorrido. o vazio deixado pela morte prematura de Tão-pouco chegou a bom porto o processo Solís. Como que numa feliz conjunção dos posto à Coroa pela família Barbosa. astros, cumpriram-se as aspirações de todos * Juan Gil é catedrático da Universidade de Sevilha os personagens do drama; o rei encontrou e membro da Real Academia Espanhola

Lamentando a anterior arrogância, o rei de Portugal ainda tentou atrair Magalhães para a sua causa

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A BORDO

AS NAUS E OS HOMENS A frota de Magalhães transportava 240 homens naturais de nove países europeus. Os 34 portugueses ficaram estrategicamente distribuídos pelas diferentes embarcações ilustrações Delfim Ruas

Nau Trinidad Armada da Especiaria 240 137 34 24 19 9 5 4 2 1 5

tripulantes espanhóis portugueses italianos franceses gregos flamengos alemães irlandeses inglês outras nacionalidades

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61 TRIPULANTES Aprisionada por portugueses em outubro de 1522, em Ternate. Só quatro homens regressaram à Europa

CAPITÃO-MOR DA ARMADA E CAPITÃO DA NAU

Fernão de Magalhães 27-04-1521, Mactan A bordo, viajava o cronista italiano Antonio Lombardo (Pigafetta), e Juan de Morales, espanhol, médico bacharel e único cirurgião da armada


Comida de viagem Água, vinho, azeite, vinagre, biscoitos, toucinho, queijo, mel, anchovas, passas, peixe seco, alhos, grão, ervilhas, açúcar, arroz, figos, além da carne dos animais embarcados vivos para serem mortos e cozinhados a bordo

Sucessores Duarte Barbosa, João Lopes de Carvalho e Gonzalo Gómez de Espinosa Fonte: Fernão de Magalhães – Herói, Traidor ou Mito: a história do primeiro homem a abraçar o mundo, José Manuel Garcia, Manuscrito, 2019

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MAGALHÃES // A BORDO

Nau Victoria 45 TRIPULANTES Regressada a Sevilha a 6 de setembro de 1522, com 18 sobreviventes. Foi a única nau a completar a circum-navegação à volta do mundo. Teria 25,9 metros de comprimento

CAPITÃO

Luis de Mendoza

Espanhol de Granada 02-04-1520, Puerto de San Julián

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Sucessores Duarte Barbosa, Cristóvão Rebelo, Luís Afonso de Góis, Gonzalo Gómez de Espinosa e Juan Sebastián Elcano


Nau Concepción 45 TRIPULANTES Incendiada ao largo da ilha Bohol (Filipinas) a 2 de maio de 1521, por falta de tripulantes

A bordo esteve o mestre Juan Sebastián Elcano, antes de passar para a nau Victoria, que viria a comandar

CAPITÃO

Gaspar de Quesada Espanhol 07-04-1520, Puerto de San Julián

Sucessor Juan Rodríguez Serrano

Quis o capitão-general que a nau onde ia a sua pessoa tomasse a dianteira e fosse seguida pelas demais; para tanto e a fim de evitar que, durante as noites, as últimas perdessem de vista a primeira, fez colocar à popa desta um tacho de madeira ardente a que chamam 'farol'. Também ali mandou pôr uma lanterna” Antonio Pigafetta, cronista

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MAGALHÃES // A BORDO

Nau Santiago

33 TRIPULANTES Naufragada perto do rio de Santa Cruz (Argentina) a 3 de maio de 1520, devido ao mau tempo. Era a embarcação mais pequena da frota, com 20 metros de comprimento

CAPITÃO

Juan Rodríguez Serrano Espanhol de Badajoz 01-05-1521, Cebu

Quando o capitão fazia um sinal aos seus homens, estes respondiam de igual maneira, o que equivalia a dizer que todos os navios seguiam em conjunto. Se mostrava duas luzes, além da do farol, deviam as naus mudar de direção, ou para melhorar o rumo ou devido a ventos desfavoráveis. Quando acendia três luzes era sinal para arrear os cutelos, velas pequenas que se colocam sob a vela grande, sempre que o tempo é bom, a fim de tomar mais vento e acelerar a marcha'' Antonio Pigafetta, cronista 42 V I S Ã O H I S T Ó R I A


Nau San Antonio 56 TRIPULANTES Desertou no estreito de Magalhães em 8 de novembro de 1520 e chegou a Sevilha a 6 de maio de 1521, com 55 sobreviventes a bordo. Era a nau com maior capacidade, transportava a maioria dos víveres e media 24 metros

CAPITÃO

Juan de Cartagena Espanhol de Burgos. Abandonado 24-08-1520, Puerto de San Julián

Sucessores Antonio de Coca, Álvaro de Mesquita e Jerónimo Guerra

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MAGALHÃES // A BORDO

A vida a bordo das naus

Eram duríssimas as condições de habitabilidade dos navios, embora na época a vida em terra da maioria dos tripulantes também não fosse propriamente fácil

N

por Francisco Contente Domingues*

o dia 10 de agosto de 1519 saíram de Sevilha cinco navios, dirigindo-se para Sanlúcar de Barrameda pelo Guadalquivir e largando daí para o «mar oceano», como faziam todas as armadas que, desde as viagens de Colombo, seguiam a rota das Américas. Esta frota tinha, porém, uma história diferente. Ao comando estava um navegador experiente, Fernão de Magalhães, que já dera meia volta ao mundo ao serviço de Portugal. Acompanhavam-no uns 240 homens de várias nacionalidades, a maior parte vindos das regiões da Espanha, mas também portugueses, italianos e outros. Boa parte seriam homens de mar experimentados, mas é de supor não serem poucos os que nunca teriam entrado num navio, ou que teriam feito apenas as curtas viagens que na época se faziam por norma junto à costa. Ninguém poderia estar preparado para a viagem que então começava. O objetivo era mais longínquo do que o normal: a Carreira das Índias, que ligava Sevilha aos portos das Américas, fazia a viagem em dois meses ou menos. A armada que agora seguia para ocidente projetava encontrar um caminho marítimo até às Molucas e voltar pelo mesmo percurso, permitindo a abertura de uma nova rota de comércio com o Oriente, em alternativa à do Cabo, seguida pelos portugueses. Não sabiam quanto poderia durar a viagem e o retorno; mas ninguém teria dúvidas de que os meses se arrastariam. O que aconteceu depois ultrapassou seguramente as piores expectativas: o único navio sobrevivente regressaria a Sevilha três anos, um mês e doze dias depois. Nele vinham 18 44 V I S Ã O H I S T Ó R I A

homens, a maior parte doentes e em penosa condição física. Mesmo para os navegadores mais experientes que tinham embarcado no início, a experiência de mar seria, na grande maioria dos casos, a da travessia do Atlântico, nada que se pudesse comparar-se a isto.

Falta de espaço Que problemas enfrentavam os navegantes? Viajar numa nau dos inícios do século XVI significava em primeiro lugar uma evidente falta de espaço que condicionava a habitabilidade a bordo. No navio de Magalhães embarcaram cerca de 60 homens, mas a nau Victoria teria uns 20 metros de comprimento ou pouco mais e um pavimento corrido de popa à proa, com a parte central ao ar livre, sobre o qual se erguiam os castelos de proa e popa, ou seja, pequenas edificações com dois pisos à popa e eventualmente só um no da proa.

A evidente falta de espaço condicionava fortemente o dia-a-dia nas embarcações

O castelo de popa era o espaço nobre do navio, e aí se encontravam os aposentos do capitão. Ao contrário do que se poderia esperar, não há, porém, um padrão construtivo regular: os carpinteiros podem facilmente fazer gabinetes e camarotes para acomodar algum viajante mais ilustre que o requeira. Em condições normais, como a desta viagem, será de esperar que, além do camarote do capitão, os oficiais mais importantes tivessem os seus espaços reservados, embora sempre de dimensões muito reduzidas, suficientes para um catre e pouco mais. Quanto aos restantes, acomodar-se-iam alguns à proa e a maior parte na coberta, o pavimento corrido a todo o comprimento do navio sob o convés. Já foi sugerido que o navio de Magalhães tivesse duas cobertas, mas isso não é crível dada a sua dimensão. Seja como for, era o único espaço de abrigo para os tripulantes menos importantes, embora fosse de evitar. Na coberta permaneciam os doentes, o cheiro era fétido e a salubridade nenhuma, e aí se encontrava também o fogão que era acendido quando o tempo permitia para que os tripulantes pudessem cozinhar, enchendo o navio de fumo. Havendo bom tempo e espaço livre era, pois, preferível dormir ao relento no convés.


DELFIM RUAS

“ Bastariam os alojamentos para que as condições sanitárias fossem deploráveis. Abundando os ratos, as baratas e os piolhos, os dejetos dos doentes e os dos que não cuidavam de os lançar ao mar, e bem assim dos animais vivos, criavam os meios para que o navio fosse um cadinho de doenças, à parte das que eram devidas a uma dieta deficiente sob vários pontos de vista. Disenterias e outras doenças similares eram igualmente frequentes, mas não há dúvida de que a mais impressionante das maleitas que nesta época afligiam os mareantes era o escorbuto, que fatalmente aparecia nas viagens mais longas e não podia faltar numa expedição como a de Magalhães.

Alimentos e doenças O escorbuto, ou mal das gengivas, é uma avitaminose causada pela falta de vitamina C, com efeitos muito visíveis: os corpos inchavam, mas eram sobretudo as gengivas, ulceradas e volumosas, que causavam má impressão, além do hálito putrefacto. Os doentes ficavam com os dentes a abanar (frequentemente caíam todos) mas não perdiam a fome – pelo contrário, ficavam com o apetite aumentado, embora não se pudessem alimentar

senão de líquidos, justamente o que mais faltava a bordo. Pigafetta, que nos deixou o mais extenso relato da viagem, dá conta de que durante os três meses e três semanas que durou a travessia do Pacífico morreram assim cerca de 20 tripulantes, e mais 25 adoeceram. A alimentação rarefez-se: como não tiveram acesso a frescos comeram biscoito, mas «mais era o respetivo pó impregnado de vermes, do que, propriamente, bolacha. O melhor haviam-no os vermes devorado, e o restante exalava um cheiro fétido a urina de ratos». A bebida era evidentemente outro problema: «Bebemos água amarelada que de há muito estava putrefacta.» Não tardaram os navegadores a descobrir que o escorbuto se curava quando se faziam reabastecimentos, sobretudo com os refrescos, como chamavam aos citrinos, laranjas e limões, que procuravam sempre que podiam. Parecia milagre a forma como os inchaços desapareciam e os marinheiros voltavam a comer normalmente. Foram, porém, observações empíricas: os portugueses, por exemplo, que no regresso da Índia a Lisboa paravam usualmente na ilha de Santa Helena, perceberam que os marinheiros melhoravam muito depois de comerem aqueles frutos, mas

Faziam-se três quartos por noite; o primeiro ao anoitecer, o segundo (designado hora média) à meia-noite, o terceiro ao romper da manhã. Isto implicava a divisão das tripulações em três quartos: o inicial sob as ordens do capitão, ao médio presidia o piloto, o último cabia ao mestre. Antonio Pigafetta, cronista

atribuíram a cura do escorbuto também, se não sobretudo, aos «bons ares». A descoberta da causa da doença veio a ser creditada ao médico inglês James Lind, no século XVIII (Veja-se História de medicina portuguesa durante a Expansão, de Germano de Sousa, Lisboa, Temas Debates, 2013). A alimentação nas viagens de longo curso era necessariamente deficiente sob vários pontos de vista, dadas as condições de preservação dos alimentos. Ao princípio embarcavam-se alimentos frescos que se consumiam rapidamente antes de se deteriorarem, como vegetais, produtos lácteos e similares; também pequenos animais domésticos vivos, coelhos e galinhas, por exemplo (e nos navios maiores animais de grande porte, como vacas ou porcos). As galinhas eram particularmente apreciadas porque forneciam ovos e a canja era uma das principais terapêuticas dadas aos doentes; podiam atingir preços muito altos nos períodos de maior escassez. Mas a base da alimentação era o biscoito, um pão cozido duas vezes (para o bicho não entrar), e que por isso era preciso molhar em água ou vinho para se poder comer. A ração diária de biscoito era o sustento alimentar principal, além de alimentos em conserva, como os enchidos ou a carne e o peixe salgados. Os

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MAGALHÃES // A BORDO

frutos secos eram também embarcados em quantidade: figos, passas e ameixas, entre outros.

Problemas de conservação Dispomos da lista dos alimentos embarcados no início da viagem de Fernão de Magalhães, num total de 22 toneladas e três quartos de sólidos e líquidos, sendo principalmente: água (82 pipas a cerca de 600 litros a pipa); azeite (100 arrobas a c. de 14-15 litros a arroba); vinagre (40 arrobas); toucinho (41 arrobas); queijos (19 arrobas); mel (11 arrobas); anchovas (150 pipas); passas (15 arrobas); e ainda pescado seco, alhos, grão, ervilhas, açúcar, arroz e figos, entre outros. A conservação dos alimentos era um problema, porque tudo era guardado em pipas e tonéis de madeira, o que propiciava deficientes condições de preservação, sobretudo para os líquidos – além de que não eram obstáculo para baratas e ratos, cuja urina e dejectos se encontravam amiúde no meio dos alimentos. A água, muitas vezes, só se conseguia beber tapando o nariz. Como seria de esperar, nas zonas de calor tórrido os alimentos deterioravam-se ainda mais rapidamente. Havia ainda outro problema, documentado na época: os contratadores, encarregados de abastecer os navios à partida mediante um pagamento fixo, entregavam por vezes os víveres já em más condições, o que reduzia o tempo em que os tripulantes dispunham de alimentos frescos. Assim sendo, os reabastecimentos eram muito importantes. Normalmente, a preocupação dos mareantes era obter frutas e carne (se pudessem caçar), combustível (lenha) e sobretudo água fresca. Quando havia contacto com populações, as trocas podiam aumentar o reabastecimento, como se pode ver neste passo de Pigafetta relativo a uma paragem no Brasil: «Conseguimos ali farto abastecimento de galinhas, batatas, ananases muito doces que, em verdade, são dos melhores entre os frutos, carne de anta, parecida com a de vaca, cana doce e infinidade de outras coisas (…) Por um anzol ou uma faca permutamos cinco ou seis galinhas; por um pente, um casal de gansos; por um espelho ou umas tesouras, peixe em quantidade 46 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Coberta da Victoria Os carpinteiros erguiam por vezes tabiques de madeira para delimitar pequenos espaços (réplica existente em Punta Arenas, Chile)

suficiente para dez homens; por um guizo ou uma fita, uma canastra de certas batatas que, em paladar, lembram as castanhas e em comprimento os nabos. Por um rei de cartas, das que servem para jogar em Itália, deram-me seis galinhas.» Nas paragens também se pescava, mas isso acontecia por igual no decurso das viagens.

Fome e ‘stress’ A fome entrava nos navios com alguma frequência, sobretudo nos percursos marítimos mais longos, quando não se podia fazer reabastecimentos. A passagem do Pacífico foi particularmente penosa para a armada de Magalhães. Além do biscoito reduzido a pó, comeram serradura e até as peles de boi usadas nos mastros, depois de demolhadas durante quatro ou cinco dias na água do mar e postas de seguida em cima das brasas. Nessa altura pagava-se meio ducado por uma ratazana, mas nem as havia em quantidade suficiente; pode ter-se uma ideia do que isto significa se se disser que um ducado é igual

Urina e dejetos de ratos misturavam-se com os alimentos; a água, muitas vezes, só se conseguia beber tapando o nariz

a 375 maravedis, e um quintal (um pouco menos de 60 quilos) de biscoito valia 170 maravedis em 1519, ou seja, o preço de uma ratazana no alto-mar... Longas viagens implicavam nesta época grandes provações. A menor não seria a disciplina férrea que imperava a bordo. À medida que aumentava o tempo de viagem crescia também o stress entre os tripulantes, e aumentavam as ocasiões de conflito, potenciadas às vezes por questões sem importância. No porto de San Julián, não longe da passagem que mais tarde teria o seu nome, e onde a armada permaneceu de 31 de março a 24 de agosto de 1520, Fernão de Magalhães enfrentou uma rebelião encabeçada pelo número dois da armada, Juan de Cartagena, que reprimiu com toda a firmeza: Cartagena, o vedor da armada, foi abandonado à sua sorte com um padre, e outros dois conjurados foram esquartejados, um dos quais em vida. Magalhães fez julgar os sublevados, sendo 40 condenados à morte, sentenças que não se executaram por a armada não poder perder de súbito um número tão elevado de tripulantes. Houve, porém, execuções por crimes vários ao longo de toda a jornada. Mas a dureza do quotidiano e da justiça não seriam muito diferentes em terra e no mar (excetuando situações extremas). Muitos tripulantes, nos dias normais de navegação, não sentiriam, assim, grande diferença quanto à sua vida do dia-a-dia. * Francisco Contente Domingues é professor do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa


Revoltas e castigos

ocasião, Álvaro de Mesquita foi preso e substituído por Sebastián Elcano no comando da San Antonio. Nas lutas travadas, o sublevado Gaspar de Quesada apunhalou Juan de Elorriaga sem que os golpes fossem mortais, mas não foi esse o caso dos que o alguazil Gonzalo de Espinoza, fiel ao comandante, aplicou a Luis de Mendoza, que sucumbiu à agressão. Quesada foi decapitado e esquartejado por ordem de Magalhães. Quanto a Juan de Cartagena, saiu desta história ao ser abandonado, com o padre Juan Sanchez de la Reina, algures na costa, apenas com uma espada e um naco de pão. Alguns outros sublevados, entre os quais o cosmógrafo André de San Martín, foram submetidos ao suplício da polé, que consistia em atar os braços da vítima a uma corda, pelas costas, e elevar o corpo num mastro fazendo-o em seguida tombar bruscamente sem no entanto tocar no chão; os ombros da vítima ficavam deslocados e a dor era muito intensa.

A maior odisseia marítima foi vivida num permanente ambiente de desconfiança, intranquilidade, ameaças e traição, a traduzir-se em motins

U

A fuga da 'San Antonio'

BIBLIOTECA NACIONAL DE ESPANHA

ma das regras ditadas por Fernão de Magalhães antes de encetar a viagem consistia no seguinte: todos os dias, ao entardecer, os quatro outros navios deveriam aproximar-se da Trinidad e saudar o comandante com a frase «Dios os salve, capitán-general y maestro, y buena compañia» (porque a língua franca utilizada era, compreensivelmente, o castelhano). Uma tarde, por alturas da costa da Guiné, Juan de Cartagena, comandante da San Antonio, mandou um marinheiro saudar assim: «Dios os salve, capitán y maestro, y buena companhia.» Faltava o atributo «general», e tanto bastou para que Magalhães exigisse a Cartagena que passasse ele próprio a vir saudá-lo e de forma correta. O comandante da San Antonio não só ignorou a ordem do português como omitiu as saudações durante três dias. Cartagena, que era um grande de Espanha, não simpatizava com Magalhães por ser um mero fidalgote e ainda por cima português – mas também por não concordar com a rota por ele ordenada. Nos finais de outubro de 1519, o mestre da Victoria, Antonio Salomón, foi apanhado a sodomizar o grumete Antonio Varesa. Os comandantes costumavam fechar os olhos a estas situações, mas não foi essa a atitude de Magalhães, que, face à hostilidade dos outros comandantes, decidiu mostrar-se como um chefe inflexível. Salomón foi julgado, condenado à morte e executado a 12 de dezembro. Durante o julgamento, Magalhães ordenou a prisão de Juan de Cartagena. Este ofereceu resistência e apelou a outros oficiais, mas não foi correspondido. Cartagena foi posto a ferros no porão da Victoria, à guarda de Luis de Mendoza, e substituído no comando da San Antonio por Antonio de Coca. A maior rebelião ocorreria, porém, no início de abril de 1520, no porto de San Julián,

Fernão de Magalhães O comandante português foi muito contestado por oficiais espanhóis

na atual Argentina. No dia 1, as tripulações revoltaram-se, uma vez mais sob a liderança de Cartagena, que recuperara a liberdade, secundado por Luis de Mendoza e Gaspar de Quesada. Aos já antigos preconceitos dos espanhóis contra o português Magalhães juntavam-se a dureza da vida num meio tão hostil como é a Patagónia. Magalhães e os marinheiros que lhe permaneceram fiéis conseguiram, no entanto, levar a melhor sobre os revoltosos. Nessa

Um último incidente deve ser mencionado: a deserção da San Antonio, em novembro de 1520. Essa nau tinha sido enviada, com a Concepción, a explorar o estreito de Magalhães. Voltaram depois para trás e reuniram-se ao resto da frota. Os quatro navios prosseguiram em conjunto pelo estreito, até Magalhães mandar uma segunda vez a San Antonio e a Concepción em reconhecimento. Novamente reunidos, os quatro barcos avançaram mais, não tardando porém que o comandante enviasse novamente em exploração a Concepción e a San Antonio. A primeira destas naus reapareceu passados dias, mas a tripulação da San Antonio, aproveitou a oportunidade para se pôr ao fresco, rumo a Espanha – aonde chegou em segurança. À entrada do Pacífico, a esquadra estava reduzida à Trinidad, à Victoria e à Concepción. Foram estes três navios que levaram a cabo a primeira travessia do maior oceano do mundo, batizado por Magalhães de Pacifico por se ter mostrado bonançoso, mas também, possivelmente, por se terem acalmado os ânimos a bordo após toda esta série de incidentes. Luís Almeida Martins

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MAGALHÃES // A BORDO

Tripulantes e profissões Quem era quem e o que lhe competia fazer a bordo das naus

por Francisco Contente Domingues ilustrações Delfim Ruas

CAPITÃO Autoridade máxima a bordo de cada navio, ao capitão cabia decidir em última análise sobre todos os aspetos, particularmente relativos ao dia-a-dia a bordo, à justiça e ao comando dos homens. O capitão era, no fundo, um representante do armador, e em matéria disciplinar dispunha do poder de vida e de morte. Quando um navio ou uma armada tinha uma missão militar ou diplomática, o capitão assumia por igual tais funções. Não interferia, porém, na navegação, cuja responsabilidade cabia inteiramente ao piloto. Aliás, ao contrário do que se crê muitas vezes, os capitães não eram normalmente versados nesta matéria, antes eram escolhidos pela capacidade e características pessoais adequadas ao comando. As armadas tinham ainda um capitão-mor, que era capitão do seu próprio navio mas que, simultaneamente, comandava superiormente todos os navios, tripulantes e passageiros. À nau em que ia embarcado chamava-se nau capitânia, e o respetivo piloto era o piloto-mor da armada. 48 V I S Ã O H I S T Ó R I A

TONELEIRO Era o artífice especializado na construção e manutenção dos tonéis e pipas, principais recipientes contentores de carga a bordo. A oscilação do navio provocava estragos nos tonéis, por mais bem estivados que estivessem, competindo ao toneleiro a sua reparação.

GRUMETES E PAJENS Os grumetes eram jovens aprendizes de marinheiro; embarcados desde a adolescência, competiam-lhes os trabalhos mais pesados, como a limpeza diária do convés, e coadjuvavam os marinheiros nas suas tarefas; se a vida a bordo era dura, as suas eram-no particularmente. Os pajens, também jovens, serviam como criados das pessoas de alta estirpe.

ESCRIVÃO Tomava nota do que se passava de significativo fora do âmbito estrito da navegação: por exemplo, de tudo o que era carregado a bordo. Registava em ata o que carecia de comprovativo formal, servindo ainda de notário.

BARBEIRO Para além da sua função específica, assistia o cirurgião nos tratamentos; se era preceituada uma sangria, era o barbeiro que lancetava o doente e o vigiava.

MESTRE Encarregado da manobra no navio e ordenante direto dos mareantes, era quem comandava as operações do quotidiano. Se o piloto mandava amainar as velas, era ao mestre que incumbia dar as ordens diretas aos marinheiros e assim tratar de que se acendesse o fogão, de que o navio fosse limpo e tudo o mais que preenchia a rotina a bordo. O mestre era a terceira pessoa na hierarquia de bordo. A tripulação era dividida em três grupos que asseguravam os quartos (normalmente de quatro horas). Pigafetta dá conta de que, pela noite, os três quartos eram assegurados primeiro pelo turno do capitão, ao anoitecer; à meia noite era o do piloto, e o do mestre ao amanhecer. O mestre era secundado pelo contramestre.


DESPENSEIRO Cuidava da despensa, ou seja, guardava os mantimentos e velava pela sua correta entrega aos tripulantes no dia-a-dia.

PILOTO Era o responsável pela navegação, isto é, pela condução do navio no mar, e o único a responder pelo seu sucesso. Os capitães não interferiam por norma, até porque a esmagadora maioria desconhecia os rudimentos da arte. (Há um caso excecional na navegação portuguesa da época: o capitão-mor da armada de 1611 quis obrigar o seu piloto a desviar a rota que este pretendia seguir, o que este recusou, mas foi obrigado a ceder perante a insistência do capitão, obrigando-o todavia a assinar um auto em que assumia toda a responsabilidade pelo desvio.) Tarefa simples quando se navegava junto à costa, a navegação em alto-mar obrigou os pilotos a dominar os rudimentos da navegação pelos astros, além do uso dos instrumentos como o quadrante ou o astrolábio, a agulha de marear e as cartas náuticas utilizadas desde a Idade Média. O piloto era coadjuvado pelo sotapiloto e tinha ainda por obrigação escrever o diário de bordo, onde registava diariamente as incidências da navegação.

CARPINTEIRO Responsável pelo dia-a-dia da manutenção de uma estrutura que era toda ela de madeira, podia ter funções extraordinárias, por exemplo colocando painéis de madeira para separar espaços de acomodação das pessoas mais importantes a bordo. Por vezes representavam-se autos a bordo, e era o carpinteiro que construía o palco.

MARINHEIRO Homem do mar encarregado das manobras e da estiva dos navios, sob o comando do mestre e do contramestre, e em geral de tudo o que fosse necessário.

CIRURGIÃO Normalmente, havia um a bordo de cada navio, e era coadjuvado nos tratamentos pelo barbeiro e no apoio aos doentes pelos eclesiásticos embarcados. Na armada de Magalhães seguia apenas um, embarcado na Trinidad.

CALAFATE Encarregado de colocar o calafeto, ou seja, as matérias utilizadas para preencher o interstício das tábuas. Sendo praticamente impossível que estas de sobrepusessem perfeitamente, a qualidade e a colocação do calafeto era essencial para garantir que no navio não entrava água descontroladamente. O calafeto tendia a sair com o bater das ondas durante a navegação, pelo que se recorria com muita frequência aos serviços do calafate.

ALGUAZIL/MEIRINHO Oficial de justiça nos navios espanhóis, equivalente ao meirinho nos portugueses. Exercia os castigos impostos aos delinquentes e vigiava os prisioneiros.

VEDOR Estava incumbido de fazer a contabilidade do que competia à fazenda real.

Outras categorias a bordo Capelão, intérprete, ferreiro, bombardeiro, sobressalente

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MAGALHÃES////AABORDO BORDO

Desbravar os mares

A viagem de Magalhães – que ia apetrechado com toda a tecnologia anteriormente desenvolvida pelos portugueses – surgiu na continuação de um esforço que vinha de trás por José Manuel Malhão Pereira*

H

á 500 anos navegava a frota de Fernão de Magalhães entre o Rio da Prata, de onde tinha largado a 2 de fevereiro de 1520, e o Porto de S. Julián, mais de mil milhas ao sul, tendo ali fundeado em 31 de março. Magalhães iria concretizar o sonho de Colombo, chegando à Ásia navegando por oeste, estabelecendo uma nova carreira, a das Filipinas, de modo idêntico à das Antilhas, concretizada por Colombo. De acordo com a carta que Carlos I enviou a D. Manuel I, a armada de Magalhães «não irá nem tocará em parte que prejudique em qualquer coisa ao vosso direito (…) o primeiro capítulo e mandamento nosso que levam os ditos capitães, é que guardem a demarcação e que não toquem de nenhuma maneira e sob graves penas nas partes, e terras e mares que pela demarcação a nós nos estão assinaladas e nos pertencem e assim o guardarão e cumprirão; e disto não tenhais nenhuma dúvida. Sereníssimo e mui excelente rei e príncipe, nosso mui caro e mui amado irmão, ...» (Carta redigida em Barcelona, a 28 de fevereiro de 1519.) 50 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Tudo se passaria como planeado por Carlos I, se Fernão de Magalhães demonstrasse que as ilhas das especiarias estavam dentro do hemisfério espanhol do Tratado de Tordesilhas. Mas tal não se veio a verificar, como os factos a seguir indicaram. Todas estas ações só foram, porém, necessárias e possíveis depois de cerca de um século de explorações marítimas no Atlântico, levadas a cabo pelos portugueses, que pelas conhecidas razões económicas, sociais, políticas e geográficas chegaram pelo alto-mar ao Índico, ao Sueste Asiático, ao mar da China e às tão desejadas ilhas das especiarias, estabelecendo, pela primeira vez na história da humanidade, relações comerciais, políticas e sociais utilizando a via marítima de longo curso. Notem-se ainda as viagens dos nossos companheiros ibéricos às Antilhas com Colombo, o estabelecimento da Carreira das Antilhas, as explorações na América Central e portos do Pacífico, que Balboa avistou em 1513.

Em áreas restritas Na realidade, até meados do século XIV, período correspondente às primeiras expedições

portuguesas e espanholas às Canárias, os mares do mundo eram navegados em áreas restritas. No Mediterrâneo europeu e no também designado «Mediterrânio asiático» (Pacífico Noroeste), as distâncias são curtas, como se depreende das características físicas das áreas em causa. As técnicas náuticas são simples e não requerem grande sofisticação. Contudo, no índico Norte e costa oriental africana, os árabes desenvolveram um so-

Ampulheta Uma forma de medir o tempo que ajudava a conhecer a posição do navio. Foi assim que os tripulantes da Victoria descobriram, em Cabo Verde, que tinham ganho um dia na volta ao mundo. Os fusos horários serão criados mais tarde


dado que navegavam entre milhares de ilhas bastante próximas, o que não impediu que necessitassem de desenvolver interessantes métodos de navegação, onde a astronomia e a geografia física estavam contidas.

Navegação de alto-mar

Carta de Pedro Reinel, de 1504 A primeira carta de marear com escala de latitudes. Notem-se as escalas de distâncias e as teias de rumos que divergem do centro de rosas dos ventos, que permitem o traçar dos rumos durante a condução da navegação

fisticado conjunto de regras, que incluíam a astronomia, mas as suas navegações eram essencialmente ao longo e perto da costa africana e ao longo do paralelo em latitudes baixas no Índico Norte e ao sabor das monções. Nas ligações marítimas entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa, que se intensificaram a partir do século XII, as navegações eram difíceis, devido às condições meteorológicas frequentemente adversas, mas navegava-se quase sempre à vista de costa e a técnica náutica não necessitava também de grande sofisticação. Note-se, contudo, que entre muitos outros fatores, a razão das qualidades marinheiras dos povos do Mediterrânio e da Península Ibérica são mesmo o terem que vencer, homens e navios, estas dificuldades da navegação no Atlântico. Na Polinésia, as navegações tinham também um caráter relativamente simplificado,

Por motivações de tempo e de lugar que não iremos desenvolver, nasceu na Europa a verdadeira navegação de alto-mar ainda no século XIV, iniciada durante as viagens de espanhóis e portugueses de e para as Canárias, seguindo-se a colonização da Madeira, a descoberta, ou redescoberta dos Açores em 1427 por Diogo de Teive e sua posterior colonização. Esta última descoberta terá sido motivada pela necessidade de, no regresso das Canárias, bolinar contra o vento nordeste dominante até se encontrar os ventos de oeste, que sopravam à latitude dos Açores. A dobragem do cabo Bojador, em 1435, mostrou aos portugueses o verdadeiro problema da navegação ao longo da costa de África: o vento persistente do Nordeste, que impossibilitava, ou muito dificultava o regresso à pátria. As viagens para sul do cabo Bojador e a experiência sucessivamente adquirida com as realizadas ao longo da costa de África durante a vida do infante D. Henrique, originaram a técnica da volta pelo largo, que permitiu o regresso de qualquer navio de vela, mesmo de pano redondo, dos portos do Sul. Portos do Sul que, sucessivamente, foram sendo visitados cada vez mais a Sul, culminando com as viagens de Diogo Cão em 1482 e 1483 e, finalmente, com a de Bartolomeu Dias, que entrou, em 1488 nas águas do Índico. Notem-se as distâncias percorridas numa viagem de regresso da Min e imagine-se o tremendo esforço a que navios e homens eram sujeitos, navegando à bolina cerrada durante mais de um mês e sem ver terra. Veja-se também a extensão e dificuldade técnica e humana da viagem de Bartolomeu Dias, que entrou nas águas do Índico, dobrando o cabo da Boa Esperança. Está provado também que o infante D. Henrique se preocupava com uma eventual passagem para o Oriente no Oeste ou Noroeste do Atlântico. E a ocupação e colonização dos Açores proporcionou à Coroa portuguesa (e as outras entidades que a ela recorreram também ainda no século XV) uma excelente

Contrariamente ao que opinam os antigos e algumas pessoas que por ali têm passado com frequência, enfrentamos, na altura de catorze graus, os embates de muitas rajadas de impetuosos ventos e de correntes aquáticas, antes de atravessar a linha. Isto impossibilitou o prosseguimento da viagem e compeliu-nos, a fim de obstar ao naufrágio das naus, a ferrar todas as vetas; desta sorte andamos à mercê do mar, aguardando o fim da tempestade que era muito furiosa. (…)» Antonio Pigafetta, cronista

base para veleiros dela partirem e a ela regressarem. E muitas expedições visitaram as costas nordeste das atuais Américas, como as dos Corte Reais. Continuando com a conquista do Atlântico, seguiu-se Colombo, que aproveitou a sua análise do regime de ventos do Atlântico, já experienciada durante os longos anos que viveu em Portugal, e que abarcou o Atlântico Norte em viagem larga, explorando a área deste mar e da área das Antilhas em mais três viagens.

A conquista do Atlântico Finalmente, depois de eventuais expedições ao Atlântico Sul para o reconhecimento do

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MAGALHÃES // A BORDO

seu regime de ventos, deu-se a conquista definitiva do Atlântico, com Vasco da Gama. A partir da sua ida e do regresso da mítica Índia, os europeus passaram a contactar os povos do Índico, do Sueste Asiático e do Pacífico Noroeste, através da via oceânica do alto-mar, e nas sucessivas viagens que se prolongaram por mais de 500 anos, pela primeira vez na história da humanidade, homens e mulheres foram sujeitos ao tremendo esforço físico e mental correspondente à vida em espaço limitado, ao desconforto daí decorrente, às deficientes condições higiénicas, etc. As expedições que mais se aproximam da data da viagem de Fernão de Magalhães e que com essa viagem estão mais relacionadas são as de António de Abreu às ilhas das Especiarias, sendo piloto de um dos três navios o famoso Francisco Rodrigues, autor de valiosa cartografia da área em causa. Foi também nesta viagem que embarcou como comandante de um dos navios Francisco Serrão, personalidade tão importante na vida de Magalhães. Veja-se nas imagens a reconstituição das viagens de ida e de volta, onde se verifica a necessidade de aguardar monção favorável na ilha de Ceram. Pela primeira vez também, os navios de vela da época tiveram de se adaptar a novos desafios, pelo que a construção naval sofreu poderoso incremento. Mas todas estas viagens só foram possíveis depois de um gradual e bem-sucedido estudo de técnicas náuticas que permitiram situar o navio no alto-mar, depois de se começar a perder de vista as referências costeiras. Verificou-se então que as técnicas usadas pelos europeus uropeus no Mediterrâneo e na costa atlântica já não eram sufiuficientes para concretizar ar aas cada vez mais alargadas viagens de explora-ção. Tratava-se não só ó de explorar o oceano, o, navegando a cada vez ez maior distância do porto orto de partida, mas também m de regressar a esse porto em segurança, navegando no o alto-mar durante mais de um mês. Para isso, os 52 V I S Ã O H I S T Ó R I A

portugueses, que até às expedições às ilhas Canárias navegavam com técnica idêntica à usada no Mediterrânio, recorrendo à navegação estimada de rumo e distância, às cartas portulano rumadas, ao uso da agulha magnética e técnicas complementares, ao navegarem durante largos períodos no alto-mar sem referências terrestres necessitaram de desenvolver um método que permitisse posicionar-se no mar com técnicas mais fiáveis e rigorosas, que lhes permitissem voltar ao porto de destino com segurança.

A latitude do lugar Então, recorrendo à cultura greco-árabe e judaica existente na Península Ibérica, um elemento novo se acrescentou ao rumo da agulha, à carta rumada e à distância apreciada a olho. a latitude do lugar. Esta coordenada passou a determinar-se a bordo primeiramente com recurso à Estrela Polar. Mais tarde, quando as navegações passaram o Equador e se perdeu a Polar de vista, passou a usar-se o Sol na passagem meridiana. E mais tarde, já no século XVI, foi usado o Cruzeiro do Sul. De todos estes astros, que se observavam em determinados momentos da sua posição relativamente ao observador, era necessário determinar a altura em relação ao horizonte do lugar. Para isso, usou-se para as estrelas o quadrante e mais tarde a balestilha. Para o Sol, o mais adequado foi o astrolábio. Todos estes instrumentos foram adaptações para uso no mar do dos que já se usavam em

Nocturlábio Instrumentos para determinar a hora noturna. Usando a Estrela Polar, que está muito próxima do Pólo Norte Celeste, consegue-se medir as sucessivas posições da esfera celeste durante a noite em redor do Pólo

'Livro de Marinharia de João Lisboa' isboa' A imagem auxiliava os pilotos a determinarem a latitude por observação da Estrela rela Polar

terra. O astrolábio descendeu do astrolábio planisférico greco-árabe e o quadrante adrante de um instrumento com várias outras funções, unções, já usaa do em terra. A balestilha, instrumento umento também usado em terra, terá sido eventualmente ventualmente adaptado ao uso no mar por influência do uso no Índico de instrumento com princípio semelhante, o kamal, que Vasco o da Gama ali encontrou e que foi até descrito mais tarde por pilotos portugueses nos Livros de Marinharia. Na imagem da carta náutica de Pedro Reinel, de 1504, está inserta a evolução dos d mesmos. Nesta carta vemos também uma escala de latitudes, as escalas de distâncias (ou troncos das léguas), a teia de rumos irradiando das rosas dos ventos graduadas em quartas, os recortes das costas e outros elementos gráficos. Mas para a condução da navegação, tornou-se fundamental a recolha de informação sobre as costas das ilhas e continentes, nomeadamente as profundidades, o tipo de marés existentes e os sinais que permitissem, na ausência de longitude determinada, alguma segurança a distância à costa. Esse conjunto de informações foi sendo compilado ao longo dos anos, originando os importantes roteiros. Outro importantíssimo elemento a ter em consideração foi o conhecimento da existência da declinação magnética ou variação da agulha, e do seu uso para a condução da navegação. Estes, aliados à cartografia e ao desenvolvimento dos métodos e instrumentos, permitiram navegar em segurança no alto-mar.


Quadrante Este instrumento, grad graduado entre 00 e 900, usava-se para determinar a altura de e estrelas ou do Sol, o que permitia obter a latitude

Determinar a longitude Outro importantíssimo elemento a ter em consideração, foi o conhecimento da existência da declinação magnética ou variação da agulha, e do seu uso para a condução da navegação. Durante o período anterior à viagem de Magalhães, o tema foi estudado, tendo até um importante piloto, João de Lisboa, proposto em 1514 um método para determinar a longitude pela variação da agulha. Terá sido este o método é d que R Ruii Faleiro F l i d desenvolveu l e que apresentou a Fernão de Magalhães, para ser usado na viagem para determinar a longitude, tendo, contudo sido, como se sabe, Andrés da San Martin quem na realidade o usou, visto Faleiro não ter embarcado. Convirá, a propósito da longitude e do perigo das aterragens em costas inóspitas, conhecer os vários métodos usados pelos marinheiros lusos para se aproximarem da costa com relativa segurança. O básico consistia em navegar ao longo do paralelo do porto de destino, determinando a latitude todos os dias ao meio-dia e corrigindo o rumo para se manterem sempre nesse paralelo. Para avaliar a proximidade da costa usavam-se os sinais, isto é, a coloração das águas, as plantas flutuantes e a observação do voo das aves ou a existência de outros animais aquáticos, como por exemplo as cobras marinhas, que os roteiros diziam que existiam a determinada distância da costa ao aterrar em Goa. Outro meio, usado já nas primeiras viagens

da Carreira da Índia anteriores à viagem de Magalhães foi - por exemplo, na aproximação ao Cabo da Boa Esperança, que se demandava navegando ao longo do seu paralelo - medir com frequência a variação da agulha, tendo em conta que no Cabo a mesma era nula.

Passada que foi a linha equinocial, perdemos a tramontana [estrela polar] e navegamos Su-Sudoeste, que é um vento colateral entre Sul e Oeste, até alcançar a terra chamada Verzin [Brasil], em vinte e três graus e meio do pólo antártico, a qual sai e se prolonga do Cabo Santo Agostinho que fica a oito graus do citado pólo» Antonio Pigafetta, cronista

Foi este o processo que se vulgarizou mais tarde, e que mostrou ser extremamente efit cciente, tendo-se verificado que a ideia de João de Lisboa de considerar que a declinação d magnética variava de lugar para lugar regum llarmente, e de acordo com os meridianos, eestava errada. O próprio Fernão de Magalhães e o seu piloto Andrés de San Martín testemunharam p eeste facto durante a sua memorável viagem. Estes métodos, aliados à cartografia, ao coE nhecimento da latitude com suficiente rigor n e ao desenvolvimento dos métodos e instrumentos permitiram navegar em segurança m no alto-mar, tendo-se, porém, «vivido» sem n cconhecer a longitude com rigor até princípios do século XVIII. d Foi com estes métodos e instrumentos que Magalhães não só navegou com segurança ao M llongo das costas brasileiras já reconhecidas por Pedro Álvares Cabral, Gonçalo Coelho, p João Dias de Solis e Américo Vespúcio, como J ttambém depois descobriu e atravessou um ttormentoso estreito, cruzando em seguida, no ssentido leste-oeste, o mais vasto dos oceanos. E foi bem provido de instrumentos e cartas, ccomo o demonstra a relação contida no documento nº 87 do Archivo de Indias de Sevilla na Collecçión general de documentos relativos a las islas filipinas. E muitas dessas cartas estavam em branco e foram enriquecidos com nova e importante informação. Mas Magalhães, tendo em conta o principal objetivo da sua missão, tinha, naturalmente, a grande preocupação de determinar a longitude por métodos fiáveis. Tal só se concretizou com algum rigor por métodos astronómicos, que também tinham sido propostos por Rui Faleiro, tendo o seu piloto Andrés da San Martín obtido alguns bons resultados. Foi esta uma grande inovação nas viagens marítimas de descobrimento. Magalhães descobriu para o mundo o último elo da cadeia do alto-mar, podendo considerar-se que a partir dessa altura ficaram todos os povos em contacto ininterrupto pela via marítima. * Malhão Pereira é oficial superior da Armada, ex-comandante do Navio-Escola Sagres e doutorado em História e Filosofia das Ciências

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MAGALHÃES // A BORDO

O armamento

Aa armada arr ia mal m artilhada, só com peças de ferro forjado, quando na época os navios de guerra já andavam com peças de bronze, muito mais époc bem provida de bestas, escopetas e outras armas eevoluídas. Estava Estava t ofensivas defensivas, rocas de pedra, já muito usadas o e de d ef eefensivas, s,, mas não llevou e roca roc por portugueses e que portugu gu gues u ses e espanhóis esp q e poderiam poderia am ser de a d grande utilidade, utii nomeada eadamentee na n batalha eem q que Fern não de M n Magalhães morreu mor nomeadamente Fernão por Fernando n Gomes G Pedrosa* Ped edrosa*

Armas de fogo A portáteis

Peças dee artilharia Eram 80 as peças de e artilharia embarcadas, s todas de ferro forjado o e de câmara separada, ad maras. Especificando: do 11 com duas ou mais câmaras. bombardas grossas,, três passa-muros,, sete onetes) e 59 berços. os falcões (ou falconetes) as eram as mais p pesadas As bombardas grossas e pedra s e disparavam balas de pedra. Os passa-muros disparavam balas de ferro ou de chumbo com dados de ferro. Cada berço pesaria cerca de 90 quilos, e cada falcão mais. Os berços e os falcões disparavam balas de chumbo com dados de ferro. Não iam a bordo rocas de pedra, chamadas noutros países lanternas, que eram sacos ou caixas com metralha, constituída por pedaços de pedra, ferro, pregos, etc. No momento do disparo o saco ou caixa rasga-se e os pedaços, soltos, formam um cone de dispersão. Qualquer peça de artilharia podia disparar balas ou rocas, ou ambas em simultâneo. As lanternas teriam sido muito úteis, em especial ães na batalha em que Fernão de Magalhães morreu. 54 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Iam embarcadas 50 escopetas. A terminologia não era rigorosa, podendo usar-se indiferentemente as palavras escopeta, espingarda ou arcabuz. A nau Trinidad levou 12, com 12 frascos (ou cornos) para a pólvora grossa e 12 polvorinhos para a pólvora fina. A informação relativa a esta nau é a mais completa e deve estar correta. Cabendo em média dez escopetas a cada nau, a Trinidad, que era a capitânia e levava mais tripulantes, transportava também mais escopetas. Uma carta régia de 20 de agosto de 1518 mandou comprar 70 quintais de pólvora e cinco quintais de salitre, mas da pólvora acabaram por ir só 50 quintais. Era uma viagem prevista para dois anos, e nunca houve intenção de economizar pólvora; pelo contrário, várias vezes se disparou toda a artilharia para impressionar os nativos, ou durante as missas. Seguiam embarcados 14 conceituados bombardeiros – alemães, franceses, flamengos e um inglês. Certamente, iam fazendo e refinando a pólvora. Esta fabricava-se a bordo em almofarizes ou morteiros, pulverizando e misturando muito bem salitre, enxofre e carvão de madeira. A nau Trinidad levou 12 quintais, duas arrobas e set sete libras de pólvora grossa e um barril peq pequeno de pólvora fina.


Armas defensiv defensivas

AS PEÇAS AQUI FOTOGRAFADAS ESTÃO EXPOSTAS NO MUSEU MILITAR DE LISBOA

Armas m brancas ofensivas fe O armamento mamento sem m ser de fogo consistia em 60 bestas com om 360 dúzias de as, 95 dúzias de da dardos, 10 dúzias setas, de gorguzes, mil lanças, as 200 piques, seis chuços, seis hastes de lanças, 230 hachas has (machados) e cinco oa arpéus com ia para aferrar. Cada navio vio levou um cadeia arpéu éu para, em caso de abordagem, da o çar para a proa do navio adversário. er lançar ada pique teria cerca de 25 ou 2 26 Cada mos (5 m). Os dardos e os gorguzes ze palmos o armas de arremesso e algumas são ças também. Chuços são hastes de lanças deira com a ponta de ferro aguçada. madeira acha (ou acha) chama-se também a À hacha achado c ou archa. Se o número de machado ipulantes pul tripulantes à partida foi de 234 (61 ri id , 55 na San Antonio, 44 na na Trinidad Trinidad, oncepción cepc , 43 na Victoria e 31 na Concepción, ntiago g ),, impressiona i a quantidade Santiago), e piques ue (2 (200) e de hachas (230), de ase uma ma destas es armas por homem. quase ma grande nd la lacuna diz respeito às Uma spadas, po o mencionadas, mas espadas, pouco ue seriam quase q e uma por homem, que mo era uso em armadas m como espanholas 1532, nu da época. Em 15 numa expedição anizada por Hernán e C organizada Cortés em dois uenos bergantins tin com m 53 homens, pequenos os levaram espada, ad punhal nh e rodela todos d (escudo).

A armada rma levou cem c cossoletes com as suas armad armaduras de braços, espaldeiras ras e capacetes; seu barbotes cem peitos com os seus arn e dois e casquetes; um arnês toda as suas cossoletes com todas peças para Fernão de Magalhães; e 200 rodelas (escudos). Na (escu Trinidad nidad foram 24 peit peitos com as suas espaldeiras, 24 celadas, spal 22 barbotes, otes, 48 b braçais, rodelas. Quase 22 casquetes e 50 0 ro rod todos os tripulantes levaram, de pois, armamento defensivo. Um arnês é uma ar armadura completa. Um cosso cossolete, uma armadura leve para o peito. Celada, casco e ca casquete são variedades de ca capacetes. Espaldeiras são peças destinadas à proteção das omo omoplatas.

Para saber mais: Alonso de Chaves, Quatri partitu en cosmografia práctica y por otro nombre Espejo de Navegantes, transcrição, estudo e notas de Paulino Castañeda Delgado, Mariano Cuesta Domingo e Pilar Hernández, Instituto de Historia y Cultura Naval, Madrid, 1983, José Toribio Medina, El Descubrimiento del Oceano Pacifico (…), Santiago de Chile, Imprenta Elzeviriana, 1920. Martin Fernández de Navarrete, Colección de los viajes y descubrimientos que hicieron por mar los españoles desde fines del siglo XV (…), tomo IV, Madrid 1837. Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Afrodite, 1980 Relazione del primo viaggio intorno al mondo (1524), Istituto editoriale italiano, a cura di Camillo Manfroni, 1956, edição eletrónica http://www.liberliber.it/ biblioteca/licenze/. * Fernando Pedrosa é capitão-de mar-e-guerra e membro da Academia d de Marinha

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TTEMA // CABEÇA

influência, tanto na corte portuguesa como na espanhola, e assim foi acumulando o capital que lhe permitiu viabilizar financeiramente a frota enviada às ilhas Molucas. Durante os anos em que teve negócios na capital portuguesa, Haro interessou-se pelas viagens à costa da América meridional, muito provavelmente à procura de um novo caminho marítimo para as Índias e para a cobiçada rota das especiarias. Em 1514 foi um dos patrocinadores da expedição portuguesa ao rio da Prata, em busca de uma passagem para o Pacífico. Mais tarde, agastado com D. Manuel I, com quem se tinha zangado, transferiu-se para Sevilha em 1517. Naturalmente, viu uma oportunidade de lucrar com a viagem que Magalhães se propunha fazer às Molucas, produtoras de cravo e outras especiarias muito apreciadas na Europa. Historiadores, como o espanhol Juan Gil, admitem a hipótese de ter sido o mercador burgalês a convencer o navegador português a apresentar o seu projeto ao monarca espanhol, já depois da recusa da Coroa portuguesa.

GETTY IMAGES

O poder do dinheiro

Na rota do comércio Os maiores portos atraíam gente de toda a Europa. Na imagem, o porto de Bruges no século XV

O triunfo dos mercadores

Magalhães recebeu o patrocínio do monarca espanhol, mas sem o apoio dos investidores de Burgos a sua viagem dificilmente se teria cumprido

O

por Clara Teixeira nome de Cristóbal de Haro sobressai entre todos os que participaram nos preparativos da viagem de Fernão Magalhães. Não era navegador como ele, nem cosmógrafo como Rui Faleiro, nem embarcou numa das cinco

56 5 6 VISÃO H I S T Ó R I A

naus que em 1519 partiram de Espanha em direção aos mares do ocidente. Natural de Burgos, um importante centro financeiro de Castela, fez parte da elite de mercadores que investiu grandes somas de dinheiro nas expedições de D. Manuel I ao Oriente. Ganhou

O apoio financeiro à frota de Magalhães viria a ser assegurado por um grupo de mercadores-banqueiros, entre os quais se destacaram, além de Cristóbal de Haro, o bispo de Burgos, Juan Rodriguez de Fonseca, e o capitão de uma das naus, Juan de Cartagena. No seu livro sobre a epopeia magalhânica, o visconde de Lagoa menciona igualmente o patrocínio de Afonso Gutierrez, da família alemã Fugger, e de Duarte Barbosa, sogro de Magalhães. Além da repartição proporcional dos lucros da viagem, depois de descontada uma pequena parte para «o fundo de resgate dos cativos cristãos e outras obras pias», os investidores exigiam ainda o direito de transacionarem mercadorias nas expedições seguintes para o mesmo destino. O navegador português estaria tão seguro deste patrocínio que, perante as hesitações iniciais do monarca Carlos I, terá equacionado avançar apenas com o suporte de capitais privados. O planeamento financeiro da viagem não foi pacífico. Inicialmente, Magalhães e Faleiro pensaram exigir a décima parte dos ganhos futuros – se tudo corresse bem, as naus re-


gressariam carregadas de especiarias –, mas a proposta terá recebido a oposição dos mercadores burgaleses. O astuto feitor da Casa de la Contratación de Sevilha, Juan de Aranda, também ele natural de Burgos, conseguiu convencê-los a moderar as suas pretensões. No memorando enviado à corte, que pode ser consultado no Arquivo espanhol das Índias, a dupla portuguesa apenas pede ao monarca espanhol «un veintavo de todo» o lucro da expedição, para além de títulos e de direitos sobre a governação das terras descobertas, extensíveis aos herdeiros. A proposta não passou logo no crivo dos conselheiros do rei, que rejeitaram grande parte do seu conteúdo, mas a maioria das exigências de Magalhães e Faleiro acabou por ser aceite antes da partida. Para isso, terá contribuído a credibilidade dos navegadores portugueses, o lobby português à época residente em Sevilha, mas também o apoio dos mercadores burgaleses. A 22 de março de 1518, Carlos de Habsburgo atribuiu a Magalhães e ao cosmógrafo Rui Faleiro (este acabaria por não embarcar, depois de um desentendimento entre ambos) os títulos de capitães da armada, concedendo-lhes, para além dos privilégios acima referidos, um salário de 50 mil maravedis (moeda usada desde o século XII). Ano e meio depois, quando a frota partiu de Sanlúcar de Barrameda, as benesses salariais já atingiam quase o dobro, chegando aos 8 mil maravedís mensais, segundo o historiador espanhol Sergio Sardone.

A ascensão de Haro Convencido – ou esperançoso – de que as Molucas se situavam na metade espanhola do mundo definida pelo Tratado de Tordesilhas, Cristóbal de Haro, com outros particulares, terá financiado a aventura de Magalhães com uma quantia de cerca de 1,8 milhões de maravedis. Esse valor representaria cerca de um quinto dos mais de 8 milhões de maravedis gastos na viagem. A única nau – a Victoria – que regressou à costa espanhola, carregada de especiarias, tornou a aventura bastante rentável para a Coroa, mercadores, tripulantes e herdeiros. Já depois da chegada da embarcação comandada por Elcano, Carlos I fundou, na cidade galega da Corunha, a Casa de la

O PREÇO DA AVENTURA A obra do Visconde de Lagoa, publicada na década de 1930, dá-nos a relação dos custos envolvidos nos preparativos da armada magalhânica, em 1519. A título de curiosidade, a viagem de Cristóvão Colombo, em 1492, custara cerca de sete vezes menos (1 167 542 maravedis)

8 334 335* Custo total

3 912 241*

Custo das cinco naus, adquiridas em segunda mão e em más condições, depois de reparadas e equipadas com armas e munições

415 060*

Cartas de marear e instrumentos náuticos (quadrantes, astrolábios, compassos, bússolas, ampulhetas)

1 589 551*

Provisões (vinho, azeite, peixe, carne, queijos, legumes)

1 154 504*

Soldo de quatro meses adiantado aos 237 tripulantes

1 679 769*

Artigos para troca e permuta (panos, utensílios de metal, tesouras, espelhos)

8 334 335*

Custo total da frota (depois de deduzidos 416 790 maravedis do valor do material deixado em terra)

6 454 209*

Financiamento da Coroa espanhola

1 880 126*

Financiamento de Cristóbal de Haro

*EM MARAVEDIS Nota: A estes valores, acrescem os salários e compensações pagos no final da viagem aos sobreviventes e aos herdeiros dos tripulantes desaparecidos, que são dificilmente quantificáveis.

Contratación de la Especiería, indicando Cristóbal de Haro para as funções de feitor. Com essa nomeação, a cidade de Burgos reforçou o seu papel de eixo financeiro da rota das Índias, facilitado pelas ligações atlânticas com Lisboa e Antuérpia, principais entrepostos de comércio das especiarias orientais e poiso habitual dos mercadores burgaleses, alemães, italianos e flamengos. Esse terá sido o objetivo do rei-imperador: ter um banqueiro capaz de mobilizar grandes quantias em Espanha, Portugal, Flandres e Alemanha. E Haro era o homem certo para o cargo. Sob a sua orientação, terão sido afetos ao projeto espanhol das especiarias mais de 78,5 milhões de maravedis, metade dos quais saídos do bolso de investidores privados. Consciente de que a Coroa não teria meios para manter o comércio na nova rota das Molucas, Carlos I pediu ajuda financeira aos súbditos de Castela e Aragão, uma proposta quase de imediato alargada ao Sacro Império Romano-Germânico, de que era imperador. Entre os que acederem ao pedido encontravam-se os alemães Fugger e Welser, com interesses no comércio das especiarias em Espanha e também em Portugal. Desde o regresso da frota de Vasco da Gama a Lisboa, em 1499, que vários mercadores estrangeiros, designadamente alemães e italianos, procuravam estabelecer-se em território português para fazerem negócios com a Coroa. Como os Imhoff e os Hirschvogel de Nuremberga, os Hochstetter de Augsburgo e os Welser-Vohlin, ou os Marchionni, Affaitati e Sernigi, oriundos do que é hoje Itália. A Coroa tinha privilégios, em termos de preços e quantidades, mas os mercadores podiam adquirir tudo o que pudessem transportar nas naus por si financiadas, sob licença régia. No regresso a Lisboa, a carga era-lhes entregue depois de liquidados os tributos devidos à Casa da Índia. O lucro com o comércio de especiarias podia atingir três ou quatro vezes mais do que o investimento, mas se uma das embarcações naufragava, a perda era total. Contudo, não foi o azar que «empurrou» os mercadores-banqueiros de Lisboa para Sevilha, mas sim a política monopolista de D. Manuel I, quando chamou a si o exclusivo do comércio da pimenta.

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MAGALHÃES // A VIAGEM

A VIAGEM

TRAVESSIA ASSOMBROSA

A odisseia de Fernão de Magalhães foi a mais espantosa de todos os tempos. Uma síntese das incidências do percurso, até à trágica morte do comandante

ALAMY/FOTOBANCO

por José Manuel Garcia

Estreito de Magalhães

58 V I S Ã O H I S T Ó R I A


Cebu, noite de 26 de abril de 1521. Imaginemos Fernão de Magalhães recolhido no seu camarote da nau Trinidad tentando descansar antes da batalha que iria travar no dia seguinte na ilha de Mactan, na que seria a 13.ª escala de uma viagem em que já havia percorrido 35 mil quilómetros. Terá então feito o balanço do que sucedera durante aquela tão tormentosa expedição que durava há já um ano, oito meses e seis dias desde que a armada deixara Sevilha, a 10 de agosto de 1519? Essa tão fantástica como verdadeira jornada divide-se em duas grandes partes. A primeira, e mais pequena, foi realizada por mares já antes navegados, num percurso desde a Península Ibérica ao rio da Prata. Só depois surgiu a parte mais extensa e inovadora, aquela em que se descobriu metade do mundo percorrendo «mares nunca de antes navegados». Com efeito, foi então que decorreram as grandes etapas à descoberta da costa da América do Sul até aí desconhecida, entre o rio da Prata e o estreito de Magalhães; do próprio estreito de Magalhães; de todo o oceano Pacífico; finalmente, das Filipinas. Acompanhemos então Fernão de Magalhães pelo essencial da sua grande aventura.

VISÃO H I S T Ó R I A

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MAGALHÃES // A VIAGEM

Conseguimos ali farto abastecimento de galinhas, batatas, ananases, muito doces, que, em verdade, são dos melhores entre os frutos (…) Por um anzol ou uma faca Rio de Janeiro permutamos cinco ou seis galinhas; por um AGOSTO DE 1519 JANEIRO DE 1520 pente, um casal de gansos; por um espelho SEVILHA ´ RIO DA PRATA ou umas tesouras, POR MARES ANTES NAVEGADOS peixe em quantidade FOI DA CAPITAL DA ANDALUZIA que saiu a nado a armada e Magalhães ter feito entrar mais suficiente para dez armada que ia em busca da especiaria. A largada quatro. Os navios foram ainda ancorar durante homens» dois dias na Ponta Roxa, onde carregaram pez das suas cinco naus ocorreu na manhã de 10

As citações que acompanham este texto são do livro Navegação e Descoberta da Índia Superior e ilhas Molucas, de Antonio Pigafetta, cronista que acompanhou a viagem segundo o Visconde de Lagoa, 1938 60 V I S Ã O H I S T Ó R I A

de agosto de 1519, tendo sido então disparada a artilharia de bordo como forma de saudação. A armada desceu o rio Guadalquivir até à foz, tendo ficado ancorada frente ao porto de Sanlúcar de Barrameda. Só alguns dias mais tarde os capitães deixaram Sevilha, nos batéis dos respetivos navios. Magalhães aproveitou os últimos dias na cidade para fazer o seu testamento e despedir-se da jovem mulher, Beatriz Barbosa, do pequeno filho Rodrigo e do sogro, Diogo Barbosa. Em Sanlúcar de Barrameda os tripulantes aguardaram por tempo adequado para zarpar e participaram nos últimos preparativos para a viagem, tendo Magalhães ordenado que todos se confessassem antes de partir. Finalmente, veio o grande dia 20 de setembro de 1519, em que a armada deixou o porto e rumou a sudoeste. A primeira escala fora da Península Ibérica verificou-se logo a 26 de setembro, em Tenerife (Canárias), onde se reforçou o abastecimento de água e lenha e se procedeu a um pequeno reajustamento na tripulação: os 237 homens tripulantes passaram a 240, visto um ter abando-

para calafetar as embarcações. A 3 de outubro, a armada rumou a sul, passando entre as ilhas de Cabo Verde e o continente africano. Foi junto da Serra Leoa que Magalhães iniciou a viragem para sudoeste. Teve aí de enfrentar os primeiros atos de rebeldia contra a sua autoridade por parte de Juan de Cartagena. Acabou por entregar o rebelde à guarda de Luis de Mendonza, capitão da Victoria, tendo-o destituído da capitania da nau Santo Antonio, que passou para Antonio de Coca. Depois de algumas dificuldades de navegação antes e durante a travessia do equador, os navios aproximaram-se, a 29 de novembro, do cabo de Santo Agostinho, no nordeste do Brasil, rumando depois para sul até chegarem ao Rio de Janeiro a 13 de dezembro. Por, aparentemente, Magalhães desconhecer o topónimo já existente, chamou Santa Luzia à baía, por lá ter chegado no dia dessa santa. A região já estava bem explorada desde 1502 pelos portugueses, que até ali haviam erguido em 1503 uma feitoria referenciada como Cabo Frio, a fim de recolherem pau-brasil. Entretanto, em 1516 haviam-na transferido para Pernambuco.


A opulentíssima terra de Verzin, m maior aior do que a Espanha, França e Itália,, em conjunto, é pertença do rei de Portugal; os seus habitantes nem são cristãos nem adoram coisa alguma. lguma. Vivem de harmonia com as prescrições da natureza, mais como bestas do que como seres humanos»

20 SETEMBRO 15199

Açores Aço A res

Lisboa

SSanlúcar lú de d Barrameda B d

Madeira

Antonio Pigafetta, cronista, sobre o Brasil

Tenerife

A escala no Rio de Janeiro resultou de uma proposta feita pelo piloto português João Lopes de Carvalho, que dali queria levar consigo um filho mestiço de 7 anos, fruto da relação que tivera com uma índia brasileira aquando da sua estada na referida feitoria entre 1511 e 1516. Ali, os tripulantes abasteceram-se largamente de galinhas e outros animais; água; batata-doce e vários tipos de frutos, como o ananás. Antonio Pigafetta, sempre atento ao ambiente que o envolvia, registou alguns costumes dos índios tamoios do grupo tupi-guarani que ali habitavam, com os quais foram mantidas boas relações e trocados vários produtos. Um dos comportamentos que observou com maior espanto, numa altura em que se encontrava com Magalhães, foi o de uma jovem índia a roubar um grande prego que achara na nau Trinidad e a escondê-lo na vagina. Durante esta escala, em que se fez sentir intenso calor, Magalhães entregou a capitania da San Antonio ao seu primo Álvaro de Mesquita; nomeou João Lopes Carvalho piloto-mor da armada; mandou celebrar duas missas em terra e no dia 20 de dezembro fez executar Antonio Salomón, na sequência da sua anterior condenação por práticas homossexuais; este foi o primeiro tripulante a morrer durante a viagem. A 27 de dezembro de 1519, Magalhães deu ordem de partida e a armada rumou a sul. A 10 de janeiro de 1520 foi avistado o cabo de Santa Maria (atual Punta del Este, no Uruguai), onde se abria para ocidente o largo estuário do rio

da Prata, que já havia sido identificado em 1514 pelo piloto João de Lisboa. Nos dias seguintes, os navios exploraram o estuário em busca da tão desejada passagem para o «mar do Sul», como então era chamado o oceano Pacífico, mas acabaram por verificar que por ali só havia água doce. Durante esta quinta escala da viagem assinalou-se um local que foi denominado Monte Vidi, que depois veio a estar na origem do nome da cidade de Montevideu. Junto ao rio da Prata foi recolhida água, lenha e peixe. Estabeleceram-se contactos com índios querandi, que se mostraram muito esquivos. A 3 de fevereiro a armada começou a atravessar a foz do rio da Prata, percurso este concluído a 7 de fevereiro, quando rumou a sul. ´´

Canárias

Cabo Verde

Serra Leoa

Oceano Atlântico

Cabo de Santo Agostinho

29 NOVEMBRO 1519

Brasil

Rio de Janeiro Cabo Frio

13 DEZEMBRO 1519 10 JANEIRO 1520

Montevideu

Se Sevilha

1 000 Km

Cabo de Santa Maria Rio da Prata VISÃO H I S T Ó R I A

61


MAGALHÃES // A VIAGEM

Cabo de Santa Maria

Montevideu Rio da Prata

8 FEVEREIRO 1520

Bahía de San Matías

24 FEVEREIRO 1520

Golfo de San Jorge

Patagónia

Bahía de Los Trabajos

Puerto de San Julián

Puerto de Santa Cruz

31 MARÇO 1520 26 AGOSTO 1520

21 OUTUBRO 1520 Cabo das Onze Mil Virgens

Estreito de Magalhães

62 V I S Ã O H I S T Ó R I A

200 Km

FEVEREIRO DE 1520 OUTUBRO 1520

RIO DA PRATA ´ CABO DAS ONZE MIL VIRGENS RUMO AO ESTREITO DEPOIS DE ULTRAPASSADO O RIO DA PRATA, a armada de Magalhães, progredindo «por mares nunca de antes navegados», começou a revelar uma parte do mundo que ainda era desconhecida dos europeus. Inicialmente, os navios passaram por locais inóspitos da costa argentina mas não encontraram aí a desejada passagem. Magalhães acabou por se deparar com um tempo muito frio e cada vez mais tempestuoso, que impedia a navegação, e por isso mandou invernar e esperar por condições atmosféricas que permitissem continuar a viagem. A sexta escala que a armada fez decorreu num sítio aonde chegaram a 31 de março de 1520 e a que foi posto o nome de Puerto de San Julián. Havia seis meses e 11 dias que Magalhães deixara a Andaluzia e agora a armada iria ali ficar ancorada quatro meses e 24 dias, pois só dali partiriam a 24 de agosto de 1520. A 1 de abril, Magalhães mandou celebrar uma missa em terra por ser domingo de Páscoa, e foi precisamente nessa noite que nos navios San Antonio, Victoria e Concepción se iniciou um motim contra o capitão-mor. Alegadamente, um ato tão grave de indisciplina teria resultado

da circunstância de Magalhães não ter indicado aos capitães e pilotos a rota que seguia, mas na prática visava o regresso dos navios a Espanha, pois três dos capitães castelhanos não estavam habituados às duras lides do mar e consideravam que a missão falhara. O motim foi dirigido por Gaspar Quesada, Luis de Mendonza e Juan de Cartagena, que se dirigiram à nau San Antonio, onde prenderam Álvaro de Mesquita e apunhalaram o mestre do navio, Juan de Elorriaga. No sentido de sufocar a rebelião, Gonçalo Gómez de Espinosa, guazil (responsável pela justiça) da armada, que se mantinha fiel a Magalhães, foi por este enviado a 2 de abril à San Antonio e aí matou Luis de Mendonza. Nesse mesmo dia, o português Duarte Barbosa, sobrinho do sogro de Fernão de Magalhães, foi num batel com mais 15 homens e apoderou-se da Victoria. Depois de um ambiente tão tenso e violento em que chegou a fazer disparos de artilharia, os três navios revoltosos acabaram por se render. Gaspar de Quesada foi preso e julgado tendo sido degolado e esquartejado a 7 de abril, para assim servir de exemplo do que poderiam sofrer aqueles que se voltassem a revoltar. Quanto a


“ Porto de Santa Cruz

Juan de Cartagena, devido à sua elevada condição social, foi condenado a ficar degredado em terra quando a armada deixasse o local, tendo sido então acompanhado pelo padre rebelde Pedro Sánchez de la Reina. Mais 40 homens foram condenados à morte, mas Magalhães perdoou-os considerando que se os executasse ficaria com poucos tripulantes para continuar a viagem. Um deles foi Juan Sebastián Elcano, que mais tarde se haveria de notabilizar na história da viagem. Com tenacidade e habilidade, Magalhães conseguira restabelecer a sua autoridade impondo a ordem que permitiria continuar a enfrentar as enormes dificuldades que se adivinhavam, a começar pelo facto de terem de ali enfrentar aquela inesperada, longa e dolorosa invernada. Magalhães mandou montar um acampamento em terra e reparar as naus. Como por ali havia água, lenha, peixe, aves e outros animais, foi possível a manutenção dos tripulantes, apesar do frio intenso que se fazia sentir e do racionamento de alimentos que teve de ser feito. A tenacidade demonstrada por Magalhães em prosseguir a viagem foi apoiada pela maior parte da tripulação, que o seguia revelando não

Certo dia lobrigámos casualmente um homem nu, de estatura gigantesca, que, junto à margem, dançava, cantava e cobria a cabeça com pó. O capitão-general determinou que um dos nossos se lhe aproximasse e, em sinal de paz, o imitasse em seus gestos. (…) Se bem que proporcionado, era de tamanha corpulência que nós lhe ficávamos pela cintura. Tinha a face larga pintada de vermelho, à exceção das órbitas que eram amarelas, e das bochechas onde figuravam desenhados dois corações» Antonio Pigafetta, cronista, sobre Puerto de San Julian

querer desistir deste tão ousado e duro empreendimento. Durante o tempo que ali passaram, o cosmógrafo André de San Martín conseguiu determinar a longitude de Puerto de San Julián como estando a 610 a ocidente de Sevilha. Tal registo está correto, o que dá credibilidade às medições de longitudes feitas ao longo da viagem, algumas das quais ficaram registadas com bastante correção por Francisco Albo no diário da viagem que ia mantendo. No início de maio de 1520, Magalhães mandou que a nau Santiago fosse fazer uma exploração para sul a fim de ver se conseguia encontrar o acesso ao «mar do Sul». Foi então descoberto um rio,, a q que foi p posto o nome de Santa Cruz, perto do qual essa nau se afundou a 3 de maio, devido ao mau tempo. Os tripulantes conseguiram, porém, salvar-se e chegar, ainda que com grandes dificuldades, ao Puerto de San Julián. Só dois meses depois de a armada ali ter chegado é que apareceu um nativo, a que se seguiram outros. Eram caçadores nómadas de aspeto bastante primitivo, nunca antes vistos pelos europeus. Estes teuelches causaram grande espanto devido à sua elevada estatura, pelo que foram chamados «patagões». As relações entre os europeus e os nativos foram inicialmente pacíficas, mas depois surgiram conflitos, tendo Magalhães aprisionado alguns, que vieram a morrer pouco depois. Enquanto ali esteve, Magalhães mandou colocar uma cruz numa elevação a que chamou Monte de Cristo e nomeou Juan Serrano capitão da Concepción e Duarte Barbosa da Victoria. A 24 de agosto de 1520, Magalhães ordenou a partida da armada, mas pouco depois verificou que, afinal, as condições atmosféricas continuavam a ser adversas. Teve, por isso, de fazer uma nova escala. O sítio escolhido para mais esta invernada forçada foi determinado a 26 de agosto junto do recém-descoberto rio de Santa Cruz. Após ter reabastecido de água, lenha e peixe, só a 18 de outubro de 1520 é que a armada retomou a viagem. Magalhães sentiu então uma grande ansiedade, apesar de manter a sua perseverança em encontrar a tão desejada passagem. A sua tenacidade era tal que chegou a declarar estar disposto a ir até aos 750 de latitude sul. ´´

VISÃO H I S T Ó R I A

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Estreito de Magalhães 28 NOVEMBRO 1520

Cabo das Onze Mil Virgens

21 OUTUBRO 1520

Cabo Deseado

Fuga da nau San Antonio Baía das Sardinhas

100 Km

Encontramos, no dia em que se celebram OUTUBRO DE 1520 NOVEMBRO DE 1520 as onze mil virgens, ESTREITO DE MAGALHÃES um estreito cujo FINALMENTE, A PASSAGEM cabo recebeu a invocação das onze mil UMA DAS MAIORES PROEZAS de Maga620 km que efetivamente possui, sendo a largura virgens, em memória lhães foi alcançada a 21 de outubro de 1520, muito variável. de tão assinalado quando conseguiu descobrir o estreito que ligava O estreito recebeu em 1525 o nome de Maos oceanos Atlântico e Pacífico, o que aconteceu galhães, ainda que este o tivesse denominado milagre. O estreito ao passar o cabo das Virgens, ou das Onze Mil «Canal de Todos os Santos» e Pigafetta tenha em questão mede Virgens (atual Punta Dungeness). escrito que «a almejada passagem foi batizaMagalhães mandou as naus San Antonio e da com o nome de estreito da Patagónia». Este cento e dez léguas, cronista, maravilhado com a região então desConcepción explorar o estreito que se avistara ou quatrocentas e coberta, exclamou, encantado, que não haveria para saber se era, ou não, um rio. Depois de uma «no mundo um país mais bonito e um estreito ansiosa espera de alguns dias, ambas regressaram quarenta milhas, de melhor que aquele». disparando a artilharia em sinal de júbilo por comprimento; em terem descoberto a tão procurada passagem: o Magalhães foi avançando pelo estreito, adfacto de a água ser salgada e profunda provava mirando as altas montanhas cobertas de neve largura tem meia légua que não se tratava de um rio. e florestas. Ao chegar a uma determinada zona pouco mais ou menos. mandou a Concepción e a San Antonio exploráO estreito não teria sido descoberto sem a -la, tendo sido então que esta última nau fugiu. incrível resiliência de Magalhães, que, 32 anos Dá acesso a outro Com efeito, o seu capitão, Álvaro de Mesquita, depois de Bartolomeu Dias ter descoberto, em mar, denominado mar 1488, a passagem do sudeste de África que foi aprisionado e ferido pelo piloto português haver uma ligação marítima entre os Estêvão Gomes, que se revoltou e a 6 de maio Pacífico, e é circundado provava oceanos Atlântico e Índico, podia dizer que de 1521, ordenou o regresso a Sevilha, com 55 por montanhas descobrira a passagem pelo sudoeste da América tripulantes. Enquanto Magalhães esteve junto do rio das que permitia passar do Atlântico ao Pacífico. altíssimas, cobertas Após a exploração desta passagem, calculou-se Sardinhas à espera de novidades trazidas por de neve» que teria umas 110 léguas de extensão (cerca de aqueles navios, enviou para sul um batel do qual Antonio Pigafetta, cronista 64 V I S Ã O H I S T Ó R I A

651 km), número que se aproxima dos cerca de

saíram alguns homens que, a 13 de novembro de


Terra do Fogo, Patagónia AGE/FOTOBANCO

Do punho do comandante 1520, subiram a um alto monte de onde conseguiram avistar o «mar do Sul». Quando Magalhães soube desta notícia, chorou de alegria. A armada só entrou no Pacífico a 28 de novembro de 1520, mais de um mês depois da entrada no estreito, tempo que em grande parte foi perdido em busca da San Antonio. Entretanto, foi chamada Terra do Fogo à zona a sul do estreito, por nela se terem avistado o que se pensava serem fogueiras. Prevendo a continuação de uma viagem ainda muito longa, foi possível proceder no estreito à recolha da maior quantidade possível de água e de peixe. Enquanto os tripulantes aguardavam o regresso da nau Victoria, que Magalhães mandara ir até à entrada do estreito para ver se encontravam a San Antonio, foi comida e armazenada em vinagre grande quantidade de uma espécie de aipo selvagem rico em vitamina C e com propriedades antiescorbúticas. Isso contribuiria para que, durante a extensa travessia do oceano Pacífico que ia seguir-se, se tivessem registado poucos casos fatais de escorbuto, doença que dizimava as tripulações dos navios em viagens longas por falta de vitaminas e alimentos frescos. ´´

A 21 de novembro de 1520, Magalhães enviou mensagens aos seus homens para saber o seu parecer acerca da continuação da viagem «Eu, Fernão de Magalhães, cavaleiro da Ordem de Santiago e Capitão geral desta armada, que Sua majestade envia ao descobrimento da especiaria, etc. Faço saber a vós, Duarte Barbosa, capitão da nau Victoria, e aos pilotos, mestres e contramestres dela, como eu tenho sentido que a todos vós parece cousa grave estar eu determinado de ir adiante, por vos parecer que o tempo é pouco pera fazer esta viagem em que imos. E porquanto eu sou homem que nunca enjeitei o parecer e conselho de ninguém, antes todas minhas cousas são praticadas e comunicadas geralmente com todos, sem que pessoa alguma de mim seja afrontada, e por causa do que aconteceu no porto de São Julião sobre a morte de Luís de Mendonça, Gaspar de Quesada e desterro de João de Cartagena e Pero Sanches de Reina, clérigo, vós outros com temor deixais de me dizer e aconselhar tudo aquilo que vos parece que é serviço de sua majestade, e ndes dito e aconselhado: errais bem, e segurança da dita armada, e não mo tendes ao serviço do imperador-rei, nosso senhor, e iss contra o juramento e pleito e ando, da parte do dito Senhor, menagem que me tendes feito. Polo qual vos mando, e da minha rogo e encomendo, que tudo aquilo lo que sentis que convém à nossa jornada, assim de ir adiante, como de nos da um per tornar, me deis vossos pareceres per escrito cada emos de si, declarando as cousas e razões por que devemos ir adiante ou nos tornar, não tendo respeito a cousa alguma por que deixeis de dizer a verdade. Com as quais razões e pareceres direi o meu, e determinação inação r.» pera tomar conclusão no que havemos de fazer.»

VISÃO H I S T Ó R I A

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América do Norte

China 16 MARÇO 1521

Filipinas

6 MARÇO 1521

Oceano Pacífico Norte

Samar

Guam

13 FEVEREIRO 1521

(Ilha dos Ladrões)

Malaca

Ilhas Molucas

Equador

Passagem pelo Equador

25 JANEIRO 1521 Ilha de São Paulo

Austrália

Ilha 1 FEVEREIRO dos Tubarões 1521

Oceano Pacífico Sul 28 NOVEMBRO 1520 Cabo Deseado

2 000 Km

Estreito de Magalhães

NOVEMBRO DE 1520 MARÇO DE 1521

FILIPINAS ´ O OCEANO DESCONHECIDO DEPOIS DA NOTÁVEL PROEZA de descobrir e ultrapassar o estreito, Magalhães realizou um feito ainda mais audacioso: atravessar o oceano Pacífico, a que então tivera acesso. Com efeito, ousou enfrentar intrepidamente um imenso e desconhecido espaço aquático, cuja imensidão calculara de uma forma bastante próxima da realidade – o que transparece no planisfério de 1519 que os cartógrafos Pedro e Jorge Reinel haviam traçado segundo as suas ideias. Em contraste com a difícil navegação feita entre o rio da Prata e o fim do estreito de Magalhães, a armada teve a felicidade de percorrer pela primeira vez em condições náuticas favoráveis o oceano que tinha pela frente. Por isso o denominou Pacífico, nome que veio a substituir o até então usado «mar do Sul». A travessia dos mais de 18 mil quilómetros que vão desde a saída do estreito de Magalhães até às ilhas dos Ladrões (Guam) durou 105 dias. Durante esse tempo, a maior dificuldade com que se confrontaram os 166 tripulantes da armada que empreenderam esta etapa decisiva da viagem foi a fome por que passaram, e que os forçou a consumir alimentos muito racionados e que 66 V I S Ã O H I S T Ó R I A

se iam degradando cada vez mais, a ponto de terem sido obrigados a ingerir couros e ratos. Ainda assim, até chegarem às ilhas dos Ladrões apenas se registou a morte de nove tripulantes, o que terá resultado de terem comido o acima mencionado aipo selvagem. Note-se, contudo, que os alimentos embarcados em Espanha estavam planeados para uma viagem que se estimava durar dois anos. Ao sair do estreito, a 28 de novembro de 1520, Magalhães ordenou a progressão da armada rumo ao norte, seguindo muito ao largo da costa chilena. A 18 de dezembro, a uns 320 S, quando estariam já a norte da ilha Juan Fernández, o capitão-mor ordenou uma arrojada investida em mar aberto e desconhecido rumo a noroeste. Durante essa travessia só foram encontradas duas pequenas ilhas desabitados, onde não puderam reabastecer-se. O equador foi ultrapassado a 13 de fevereiro de 1521, a cerca dos 1600 O. A armada deveria então ter seguido sempre para ocidente, pois Magalhães sabia que as Molucas estavam situadas junto ao equador, mas as condições de navegação obrigaram-no a ir até perto dos 130 N para poder


Ilha de Guam

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apanhar o vento leste forte e estável que nessa latitude permitia dar uma grande velocidade aos navios. A 6 de março, Magalhães avistou duas ilhas, a mais importante das quais era a de Guam. Chamou-lhes ilhas dos Ladrões, porque os seus habitantes se revelaram bastante primitivos e roubaram vários tipos de bens. Quando Magalhães viu que eles tinham retirado o batel amarrado à popa da Trinidad irritou-se, foi a terra com 40 homens armados e mandou matar uns sete nativos, além de incendiar umas 50 casas e muitas canoas. Depois desta manifestação de força foi recuperado o batel e recolhida alguma água e alimentos.

A descoberta das Filipinas Magalhães ordenou que a armada deixasse Guam a 9 de março de 1521 e nos oito dias que se seguiram foram percorridos uns 2100 quilómetros. Na manhã de 16 de março foi avistado o sul da ilha de Samar e a ilha de Saluan. Chegara-se, finalmente, a um território asiático – concretamente o arquipélago que mais tarde foi denominado Filipinas. Desde que deixara o estreito e até descobrir aquelas ilhas desconhecidas dos europeus, a que

Fernão de Magalhães deu o nome de São Lázaro, a armada navegara mais de 20 mil quilómetros. Tinha passado um ano, cinco meses e 16 dias desde a partida de Sanlúcar de Barrameda. A 17 de março de 1521, Magalhães avançou até à ilha de Homonhon, então deserta, a que chamou «Aguada dos Bons Sinais» por nela terem encontrado boas fontes e vestígios de ouro. Aí foram armadas duas tendas para abrigar doentes e logo se iniciou a necessária recolha de água e lenha, tendo-se comido um porco trazido de Guam. Durante os oito dias que durou a estadia nessa ilha, Magalhães foi diariamente a terra para acompanhar a recuperação dos doentes. Depois de ali ter ancorado, a armada recebeu a visita de nove homens que vinham da ilha de Saluan numa embarcação e que foram bem recebidos, ainda que não se tivessem entendido através da linguagem. Os tripulantes da armada começaram então a receber peixe, vinho de palma e fruta, com destaque para os cocos e as bananas. A 25 de março de 1521, a armada deixou aquele local e, depois de ter passado por várias ilhas, chegou à de Limasava a 28 de março.

Permanecemos três meses e 20 dias sem conseguir alimento fresco, o que nos obrigou a comer biscoito que mais era o respetivo pó impregnado de vermes, do que propriamente bolacha. O melhor haviam-no os vermes devorado e o restante exalava um cheiro fétido a urina de ratos» Antonio Pigafetta, cronista

VISÃO H I S T Ó R I A

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MAGALHÃES // A VIAGEM

Um erro de cálculo É muito importante, para compreender a viagem de Magalhães, o que o piloto Francisco Albo registou no seu diário da viagem sobre a chegada da armada às Filipinas: «Aos 16 do dito [mês de março] vimos terra e fomos a ela ao noroeste, e vimos que saía a terra ao norte, e havia nela muitos baixos e tomamos outro bordo do sul, e fomos dar noutra ilha pequena e ali surgimos, e isto foi o mesmo dia, e esta ilha se chama Suluan, e a primeira se chama Yunagan. Aqui vimos umas canoas e fomos a elas, e elas fugiram, e esta ilha está em 90 2/3 da parte do norte, e estão em longitude da linha meridiana 1890 até estas primeiras ilhas do arquipélago de São Lázaro.» Por estas referências se deduz que, desde o início, Magalhães ficou informado, pela longitude calculada por certo pelo astrónomo Andrés de San Martin e registada por Francisco Albo, de que a ilha de Saluan estava situada a 189º a ocidente da linha de demarcação determinada pelo Tratado de Tordesilhas, a qual passava a cerca de 470 28’ O, a ocidente da zona de Belém do Pará, no Brasil. Por tal motivo foi percebido que aquelas ilhas acabadas de descobrir, passados que eram os 1800 de Terra pertencentes aos castelhanos (metade dos 3600 do círculo do planeta), já estavam integradas no hemisfério pertencente a Portugal. Tal facto iria marcar o comportamento de Magalhães nas Filipinas e poderá explicar a estranha circunstância de ter ficado 43 dias naquelas ilhas pobres em vez de rumar às ricas Molucas aonde se propusera ir.

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Quando Magalhães estava a aproximar-se deste território foi contactado por oito homens a bordo de uma embarcação com os quais foi possível estabelecer um primeiro diálogo graças à intervenção de Henrique, que falava malaio, uma língua que ali era entendida. Este escravo de Fernão de Magalhães, originário de Malaca ou de Samatra, passou a partir de então a ter grande destaque como tradutor e intermediário nos contactos efetuados entre os exploradores e as populações da região. Os contactos que durante sete dias Magalhães ali estabeleceu com o rei local foram positivos e a armada pôde abastecer-se de arroz e outros alimentos, antes de, a 4 de abril, partir para Cebu, a ilha mais importante da zona. A 31 de março de 1521, domingo de Páscoa, Magalhães dirigiu-se a terra com uns 50 tripulantes para assistir à primeira missa celebrada nas Filipinas ´´

ABRIL DE 1522

CEBU ´

NOVOS AMIGOS AO MEIO-DIA DE 7 DE ABRIL DE 1521, a armada ancorou frente à povoação de Cebu, o principal centro de comércio da região, o que ficou atestado por ali se encontrar fundeado um junco proveniente do Sião (Tailândia). Na ilha havia abundância de arroz, porcos, cana-de-açúcar, vinho de palma e vários tipos de frutas e produtos vindos de fora como era o caso da canela, do gengibre, da seda e de porcelanas. Alguns desses produtos eram originários da China e de vários locais do Sudeste Asiático. Também ali foi detetado ouro, mas não se provou ser em abundância. O rei da ilha, que se chamava Humabón, foi então contactado com o propósito de ali se fazer comércio e obter o maior número de provisões possível. Inicialmente, as relações foram um pouco tensas, até o soberano local se aperceber das vantagens que poderia alcançar daqueles estrangeiros. O relacionamento passou então a ser muito cordial. Aproveitando-se dessa situação, Magalhães começou a instigá-lo a converter-se ao cristianismo e a prestar obediência a Carlos V, dizendo-lhe que se o fizesse obteria benefícios. Humabón aceitou as propostas de Fernão de Magalhães e converteu-se

aparatosamente ao cristianismo, juntamente com muitos dos seus súbditos, tendo também prestado vassalagem ao monarca europeu. Magalhães permaneceu nas Filipinas entre 16 de março e 27 de abril de 1521. Podemos questionar-nos sobre a razão de uma estadia tão prolongada para lá do reabastecimento da armada, tanto mais que as iniciativas ali realizadas nada tinham que ver com a sua missão e o território não possuía riquezas. Ao tentarmos responder a esta questão temos de considerar que o objetivo da expedição de Magalhães consistia em ir às Molucas, que ele poderia calcular estarem perto das Filipinas, pois estando estas a cerca de 100N bastava continuar a navegação para sul até se aproximar do equador, onde elas se situavam. Tenhamos em conta que a ilha de Cebu dista da de Ternate, nas Molucas, apenas uns 400 quilómetros por mar, para sul. Certamente, Magalhães seria capaz de fazer essa viagem a realizar em latitude, sendo esta facilmente determinada com bastante rigor. O que é fulcral nesta problemática é ter Magalhães obtido informações sobre as Molucas quando esteve em Cebu, como o explicitou claramente Pigafetta ao registar a informação de que «antes de falecer o capitão-general, recebemos ali notícias de Maluco». Tal facto revela que Magalhães tinha noções sobre a localização das Molucas antes de ter partido para o combate que viria a ser-lhe fatal. Com efeito, seria estranho que numa cidade como Cebu, onde o comércio era importante, não se soubesse onde ficavam, aproximadamente, as vizinhas Molucas. Uma das pessoas que o saberiam por certo era o bem informado comerciante muçulmano do Sião (Tailândia) que ali se encontrava. Sabendo-se em Cebu que essas ilhas eram o objetivo de Magalhães, é natural que aí lhe tivessem comunicado a sua localização, o que, aliás, se demonstra pelo facto de ele ter recebido «nova» de tais ilhas. Ao impor a religião cristã e a autoridade de Carlos V na região, Magalhães vivia uma fase mística e estava empenhado na criação de um protetorado espanhol na zona. Com esta morosa e complexa iniciativa de evangelização da população de Cebu, ele estaria, pois, a tentar consolidar o domínio espanhol naquelas ilhas e talvez a compensar a consciência do fracasso da sua missão, pois não acreditaria já poder provar que as Molucas eram castelhanas. ´´


Cebu, Filipinas

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Lambunao

Samar

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Suluan Homonhon

Cebu

17 MARÇO 1521

Leyte

7 ABRIL 1521

Cebu Negros

Mactan

27 ABRIL 1521

Dinagat Siargao Bohol

28 MARÇO 1521

Limasava

40 Km

Mindanao

VISÃO H I S T Ó R I A

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MAGALHÃES // A VIAGEM

Confio nos esforços de Vossa Senhoria Ilustrissima, para que a fama de tão nobre capitão se não extinga nos tempos mais chegados. Entre outras virtudes, ele possuía a de enfrentar os maiores adversidades com mais constância que ninguém. Sabia, como nenhum de nós, suportar a fome, e o mundo não tinha quem o igualasse na compreensão das cartas marítimas e de navegação. E a verdade de tudo isto é publicamente atestada pelo facto de ninguém possuir então o engenho e arrojo necessários à circun-navegação do globo, que ele quase levou a termo» Antonio Pigafetta, cronista

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ABRIL DE 1522

MACTAN A MORTE TRÁGICA DE FERNÃO DE MAGALHÃES TARDE DE 27 DE ABRIL DE 1521. Tal como fizemos inicialmente ao atribuirmos a Magalhães uma retrospetiva da sua viagem na noite de 26 de abril, podemos agora imaginar uma cena passada no dia seguinte, para entender o que se passou na fatídica data. Imaginemos então Pigafetta no batel onde embarcara, a olhar os corpos ensanguentados de Fernão de Magalhães, Cristóvão Rebelo, Juan de Torres, Rodrigo Nieto, Antón de Noya, Francisco de Espinosa e Pedro Gómez, que jaziam na praia rodeados de uma multidão de aguerridos nativos que gritavam vitória. Ferido e em estado de choque, «Antonio Lombardo», como Pigafetta era conhecido, chorava incrédulo a morte do seu adorado capitão e tentava perceber como se materializara o pesadelo que vivera naquele dia. Magalhães revelara uma grande temeridade na sua ânsia desmedida de exibir e consolidar o seu poder nas Filipinas, em nome de Carlos V. Tal atitude passava pelo desejo de favorecer o rei de Cebu enquanto súbdito do imperador, para lhe agradar com um exemplo concreto da sua força. Este poder permitiria ao rei aliado submeter pessoalmente um dos senhores rebeldes da pequena ilha de Mactan, denominado Lapu Lapu. O seu propósito era que este prestasse vassalagem ao rei de Cebu e, por intermédio dele, a Carlos V, o que ele se recusava a fazer. Pigafetta contou a origem do conflito fatal de uma forma muito simples, ao referir que, a 26 de abril de 1521, «Zula, um chefe daquela ilha Mactan, enviou ao capitão-mor um filho com duas cabras, dizendo-lhe que não lhe mandava tudo o que tinha prometido por causa do outro chefe, Celapulapu, porque este não queria obedecer ao rei de Espanha; mas que se na noite seguinte lhe mandasse só um batel cheio de homens, na noite seguinte ele o ajudaria a combate-lo. O capitão-mor determinou ir com três batéis». Pigafetta e os seus companheiros rogaram muito a Magalhães «que não fosse, mas ele contestou que um bom pastor não deve abandonar a seu rebanho». Tal resposta revela o ambiente de excessivo misticismo que Magalhães então

vivia, já que ao evocar a imagem do «bom pastor» estava a equiparar-se a Cristo. Os tripulantes foram obrigados a aceitar a teimosia do capitão-mor em não ceder o lugar de chefia a outro e a sua desobediência às ordens de Carlos V (que o proibira de entrar em conflitos). Não aceitou sequer a ajuda do rei de Cebu, visto querer mostrar-lhe a superioridade bélica dos seus guerreiros. Pigafetta referiu então que: «À meia-noite partimos sessenta homens armados com capacete e couraça juntamente com o rei cristão, o príncipe e alguns chefes e vinte ou trinta ibalangués (navios locais). Chegámos a Mactan três horas antes da alvorada. O capitão não quis combater então, mas mandou dizer pelo mouro que se quisessem obedecer ao rei de Espanha e reconhecessem o rei cristão por seu senhor e dar-nos o nosso tributo, seriam amigos; mas se não, que reconheceriam a força de nossas lanças.» Os nativos de Mactan decidiram resistir e por isso Magalhães, ao raiar do dia 27 de abril de 1521, mandou desembarcar 49 homens, 13 dos quais levavam arcabuzes. Quando saíram dos batéis ficaram m com água pelas coxas, tendo avan avançado nessas condições durante uma distância considerável, até chegarem à praia. Os restantes 11 homens ficaram aram a guardar os batéis, pois estes não puderam aproximar-se da praia por causa do fundo de rochas. Magalhães não teve assim em conta que ficava muito longe daqueles pontos de apoio para uma eventual retirada e lhe ficava a faltar o contributo tributo decisivo da artilharia neles instalada. Em terra, mais de 1500 guerreiros esperavam os invasores. Magalhães mandou logo incendiar uma aldeia nas as proximidades da praia. Esta opecicatou mais a raiva dos nativos, que ração ainda acicatou m muito aguerridos. Segundo Pigase mostravam fetta, os tiros e as setas disparados pelos homens de Magalhãess teriam causado apenas umas 15 baixas nos inimigos, migos, pois estes encontravam-se longe e movimentavam-se mentavam-se com rapidez. Depois de muitos disparos, sparos, a pólvora esgotou-se e os nativos, aproveitando veitando o cansaço dos invasores,


Ilha de Mactan, Filipinas

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que sofriam com o peso p das armaduras e o calor, aproximaram-se em grande número e acabaram por o matar, enquan enquanto os companheiros fugiam com a água pelos joelhos. jo Pigafetta ainda viu v Magalhães na sua fase agonizante, tendo d declarado que ele, «ao cair, vendo-se atacado pel pelos inimigos voltou-se muitas vezes para ver se estávamos est nos batéis». Após o combate, os nativos recusaram-se a entregar os corpos dos d invasores tombados, que seriam usados como troféus.

Magalhã Estátua de Magalhães Em Punta Arenas, no Chile, ergue-se um belo monumento mo ao navegador portug português

Uma leitura possível desta trágica ação seria a errada expectativa de um sucesso fácil, idêntico ao da intervenção na ilha dos Ladrões. Afigura-se, no entanto, mais provável que Magalhães tivesse assumido uma prática desprendida do amor à vida levando a cabo uma iniciativa tão temerária como despropositada – quase como um ato de desespero e angústia, talvez resultante de ter alcançado a consciência de que a sua missão falhara. Quando Pigafetta voltou a pegar na pena para continuar a relação da viagem, depois de ter narrado a tragédia que vivera registou de forma tão comovente como expressiva uma sentida homenagem ao seu tão admirado chefe: «Mataram o espelho, a luz, o amparo e o nosso verdadeiro guia.»

VISÃO H I S T Ó R I A

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MAGALHÃES // A VIAGEM

Estreito de Magalhães Imagem de satélite e rota seguida pela armada

Passagem para um novo mundo

O descobrimento do estreito de Magalhães simboliza uma mudança na forma de pensar e representar a Terra

E

por Mauricio Onetto Pavez*

m setembro de 1522, após quatro anos de navegação pelos diferentes oceanos do mundo, a nau Victoria, com 18 pessoas a bordo, fundeava de novo em Sanlúcar de Barrameda. Inicialmente, partira com quatro outras naus e um total de 237 homens oriundos de diferentes zonas de Europa, mas a dureza da viagem fez que só regressasse esta embarcação, comandada pelo espanhol Juan Sebastián Elcano. O seu capitão e líder durante os dois primeiros anos tinha sido o português Fernão de Magalhães, que, por meio deste grande empreendimento marítimo, tentava encontrar na América uma via para chegar ao continente asiático e fazer negócios com as especiarias. Um mês depois de a única nau sobrevivente chegar a Espanha, Maximilianus Transylvanus, secretário de Carlos V, escreveu, de Valladolid, uma extensa carta em latim a Mattaüs Lang, arcebispo de Salzburgo, expondo-lhe 72 V I S Ã O H I S T Ó R I A

as consequências desta viagem. A missiva, que posteriormente foi impressa em vários pontos da Europa, informava que, graças à expedição concebida por Fernão de Magalhães, a Espanha adquiria a posse de novas terras: as afamadas e «verdadeiras» ilhas Molucas. Segundo a carta, a expedição demonstrara que os limites impostos pelo Tratado de Tordesilhas não tinham sido bem calculados e que novas terras, ricas em especiarias, pertenciam desde então a Espanha. Contudo, este não foi o único dado relevante sublinhado. A carta apresentou também a passagem que permitira aceder ao Oriente, e que posteriormente seria batizada de estreito de Magalhães. Este escrito foi o primeiro de uma série de documentos que dizem respeito à expedição. Pouco depois apareceram os testemunhos de Pigafetta e de outros marinheiros que compunham a tripulação, que replicaram ou confirmaram parte das informações contidas na carta.

O texto de Transylvanus não escondeu a relevância do significado da descoberta, na América, de uma passagem que permitia aceder ao Oriente, nem tão-pouco o significado de existir uma rota a ligar todos os mares. Pelo contrário, propôs que esta viagem fosse considerada a mais importante da história. Para o secretário do rei, o regresso a Sanlúcar devia ser considerado a maior façanha náutica da história, visto que se havia assim completado a primeira circum-navegação e aberto a possibilidade de pensar um novo mundo. Graças à descoberta do estreito de Magalhães e à posterior circum-navegação, a Terra como planeta, tanto nas dimensões geográfica, filosófica, cosmográfica como histórica, encontrou as referências definitivas que lhe permitiram definir-se a partir de diferentes pontos de vista e escalas. Estes novos ângulos podem ser observados em áreas tão distintas como a astrologia ou o universo da geopolítica.

Desmentir os antigos Tais alterações foram exteriorizadas na carta a partir das especiarias e dos seus novos limites, muito diferentes dos conhecidos até à data. Com efeito, a expedição de Magalhães desmentira tudo o que, desde a Antiguidade, haviam escrito reputados pensadores, como Heródoto ou Plínio, não só acerca dos locais onde encontrar as especiarias, mas também sobre os limites do mundo conhecido. Na carta propõe-se que as ideias da Antiguidade sejam consideradas «falsas e fabulosas». A experiência de passar o estreito e de completar a primeira circum-navegação convidava, de certa forma, a que se deixasse de acreditar naquilo em que espacialmente se apoiavam os antigos para estabelecer as suas ideias. A missiva exemplificou isto com o caso da ilha Taprobana, situada no oceano Índico: «Há que saber que no lugar que Ptolomeu e Plínio e os outros cosmógrafos puseram a Taprobana não há agora ilhas que possam por alguma razão ser tomadas como a Taprobana.» A carta representou ainda esta transformação dos limites espaciais através de um colocar de questões acerca das perceções e dos conceitos tidos sobre os elementos, pessoas e naturezas que conformavam o mundo


GETTY IMAGES

O estreito e a Terra do Fogo A região cartografada num atlas holandês do século XVII

da época. Por exemplo, o texto evidenciou que as imagens dos povos longínquos, muitas vezes descritos pelos antigos como monstros, não eram válidas, visto que a nova experiência de circulação demonstrara a sua inexistência. Lê-se a dado passo da carta: «Quem acreditará daqui em diante que existem Monoscellos (ou stípadas), Spithameos (pigmeus) e outros semelhantes, que são mais monstros do que homens, que os antigos escritores nos deixaram escrito que havia, agora que os castelhanos navegando contra o meio-dia e virando para o poente, e os portugueses indo até ao Oriente passando muitos graus adiante do Trópico de Capricórnio, verificaram, descobriram e acharam tantas e tão estranhas terras; e finalmente, estes nossos espanhóis que nesta nau agora voltaram, tendo dado uma volta ao orbe universal, nunca viram nem ouviram falar por onde andaram que em algum tempo haja havida ou haja semelhantes homens monstruosos.»

A importância do estreito O aparecimento de estreito de Magalhães não funcionou só como uma passagem ou uma referência territorial a unir oceanos. A sua importância radica no facto de a partir daí se ter forjado a descoberta de uma consciência de como pensar o (novo) mundo no seu conjunto (Terra), bem como

Quem acreditará daqui em diante que existem Monoscellos (ou stípadas), Spithameos (pigmeus) e outros semelhantes, que são mais monstros do que homens (...), agora que os castelhanos navegando contra o meio-dia e virando para o poente, e os portugueses indo até ao Oriente passando muitos graus adiante do Trópico de Capricórnio, verificaram, descobriram e acharam tantas e tão estranhas terras» Extrato de carta do secretário de Carlos V, Maximilianus Transylvanus, ao arcebispo de Salzburgo, outubro de 1522

sobre a forma de experimentá-lo comercial e imaginariamente. Desde então, assistimos a um despertar daquilo que se entende como consciência-mundo e podemos denominar passagem-mundo o referido estreito, dada a complexidade de papéis que desempenha. É esta abertura ao mundo, conectando e criando por sua vez diferentes mundos culturais, que nos permite denominar assim o estreito de Magalhães. A este processo de restruturação espacial, que traçou novos limites do mundo fazendo que os territórios adquirissem uma dimensão política distinta à escala global a partir do princípio de circulação que foi imposto pela primeira circum-navegação e que provocou uma ressignificação das conceções sobre a natureza e o humano, deve ser entendido não só como uma mudança na perceção espacial do mundo, mas como uma mudança na sua habitabilidade. Este processo começou com a aparição da América, em 1492, a que se seguiu uma série de discussões eruditas em torno dos limites do ecumenismo e do universo travadas ao longo das primeiras décadas do século XVI. Foi, porém, a circum-navegação do planeta encetada por Magalhães e finalizada por Elcano em 1522 que permitiu verificar que era possível a habitabilidade em todas as zonas da Terra. Foi esta expedição que rompeu o molde das conceções da habitabilidade impostas na Antiguidade e na Idade Média. Significativamente, o continente americano foi o laboratório deste processo e o grande receptáculo da sua experimentação, de tal maneira que a sua configuração política e territorial está por ele marcada. A descoberta do estreito de Magalhães e a primeira circum-navegação sublinham que se tratou de uma revolução global impulsionada por um conceito de conexão distinto do que os europeus tinham conhecido e dominado durante séculos no Mediterrâneo. Revela-nos ainda que essa revolução aconteceu nos antípodas do seu «mundo do saber» e numa territorialidade desconhecida, no extremo incógnito do «Novo Mundo». * Mauricio Onetto é doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e professor na Universidade Autónoma do Chile, em Santiago

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MAGALHÃES // A VIAGEM

Outras terras, outras gentes Dos ameríndios aos filipinos, passando pelos polinésios, muitos foram os povos contactados pela esquadra por Francisco Garcia

A

Alguns vocábulos destas gentes de Verzin Farinha Hui Anzol Pinda 74 V I S Ã O H I S T Ó R I A 74

Faca Tacse Pente Chigap

Guizos Itanmaraca

pós a saí saída ída de Sevilha ída Se – conta Antonio Pigafetta afe – a armada fez uma para um paragem agem par pa para se abastecer nas Caná n Ca Canárias árias e depois de rumou a sul, ul, fazendo fazen ndo uma breve ndo b passagem por C Cabo o Verd Verde e pela região da costa da Guiné. Guiné ui é. Foi alguns nss dias mais ma tarde, passada já a linha lin nha do equador, eq que as naus chegaram chega aram m à Terra Te de Verzim – a palavra u utilizada tilizada ad d pelos italianos descrever pau-brasil –, mais para descre p ever o pau au por conhecida nh po or Brasil. Uma ma vez em m terra, os tripulantes tiveram a o ve oportun oportunidade nidade de realizar trocas de bens be com m os locais, lo ocais, nomeadamente nom facas, pentes, en pequenos pe pequeenos espelhos espel e tesouras, por galinhas, nh batata-doce, batat at ta-doce, a ananás e carne de anta, cuja a textura t ura se assem assemelha à de vaca, segundo o cronista. n De D tal forma fo os índios brasileiros se deslumbravam deslum sl mbravam br e achavam que faziam bons negóci negócios óc os com c os o marinheiros europeus, que o escri escritor riit itor venez vveneziano diz terem conseguido trocar uma um ma carta ma ar de d rei de ouros por seis galinhas. p Pigafetta descrevee o Brasil a l ccomo um lugar rico c em produtos dee toda a espécie e e mais extenso t do que a Espanha, Esp panha, a França F e a Itália juntas. nt Refere, porém, porém m, que os brasileiros b são um povo p que se guia a pelas leis da natureza e nada segue nenhuma que não n idolatra nad da nem se cristã. religião iã como a crist tã. Conta n que geralme geralmente ente home homens e mulheres andavam a nus e que muitos m er eram capazes de viver até at aos 125 an anos nos de ida idade, chegando alguns a atingir os 140; 1 que a sua fisionomia é tão o avantajada a quanto a dos europeus comuns; que q possuem possueem um tom de pele azeivezes, embora não fossem tonado e que q por vez zes, embo canibais, comiam co a carne c dos inimigos i como ato de vingança. ga Tanto homens m como com mo mulheres mulher pintavam o corpo (em particularr a zona da cara) e na sua


Caçadores zambales Ilustração do Códice Boxer, elaborado no final do século XVI, representando uma das etnias que povoavam a ilha de Samar, nas Filipinas

maioria tinham o cabelo curto e lanudo, tendo ausência de pelagem nas restantes partes do corpo, uma vez que recorriam à técnica da depilação.

Receção calorosa Quanto à indumentária, que era pouca ou nenhuma, alguns apresentavam uma espécie de jaqueta feita com penas de papagaio e os homens tinham perfurações cilíndricas com algumas polegadas de comprimento na zona dos lábios. Regista que os habitáculos (conhecidos por boi) onde as pessoas dormiam em redes de algodão (hamacs) eram muito espaçosos e estavam suportados por vigas. A lareira era normalmente colocada num local central do chão do boi e chegava a ser partilhada por umas cem pessoas. Quanto às embarcações (canoas) que usavam, diz que estes as criavam

a partir dos troncos de árvores e que conseguiam carregar entre 30 e 40 indivíduos. Pigafetta deu conta de algumas situações em que os índios pretendiam obter bens materiais (por exemplo, um machado ou uma faca) e em retorno enviavam raparigas para satisfazer sexualmente os marinheiros. Opina que este povo seria facilmente convertido, pela sua natureza e pela bondade de espírito com que receberam os marinheiros. Aliás, o episódio que estabeleceu esta forte amizade é explicado por uma coincidência feliz, pois quando a armada atracou no Brasil chegaram também as chuvas que puseram termo a um longo período de seca. Os locais atribuíram isso à chegada dos europeus e assim receberam-nos calorosamente. Um dos episódios mais caricatos que Pigafetta testemunhou com Fernão de Magalhães foi quando uma das raparigas que subiram a

Alguns habitantes furam as orelhas por forma a permitir-lhes passar os braços através dos orifícios que ali fazem. São cafres, isto é, gentios, e andariam nus se não fosse um pano, tecido com a casca de certas árvores, que lhes tapa os sítios pudendos. Aos chefes é porém reservado o uso de panos de algodão bordados a seda nas extremidades, por meio de agulhas. São nutridos, tatuados, e de cor escura; untam-se com óleo de palma e de noz da Arábia, como medida preventiva contra o sol e os ventos. O cabelo é muito preto e cai até à cintura. Possuem adagas, sacas, lanças, ornamentadas com oiro, escudos, dardos, arpões, redes de pesca parecidas com t-rizali, e barcos semelhantes aos nossos» Antonio Pigafetta, cronista

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MAGALHÃES // A VIAGEM

bordo de um navio roubou um prego comprido e o escondeu sorrateiramente entre a genitália. Antes de encontrarem o estreito que receberia o nome de Magalhães, os marinheiros europeus contactaram com povos do sul da atual Argentina, a que chamaram patagões por serem de elevada estatura e terem os pés grandes; a sua terra ficou, por isso, conhecida por Patagónia.

A ilha dos Ladrões Pigafetta conta que, entrado março do ano de 1521, e quando já tinha percorrido largas léguas no oceano Pacífico, a armada descobriu um grupo de três ilhéus que atualmente pertencem às ilhas Marianas, dos quais um se destacava por ter uma grande montanha. Aí, Magalhães quis parar para recolher aprovisionamentos, embora tal não tenha sido possível porque um grupo de insulares dirigiu-se aos navios, em embarcações para tentar roubar aos visitantes o que fosse possível. Conseguiram mesmo levar um batel que estava preso à popa de uma das naus. Magalhães decidiu então ir a terra com 40 homens armados e retaliar os ladrões queimando cerca de 50 edificações de madeira, bem como várias canoas dos insulares. Recuperado o batel, regressaram aos navios e seguiram viagem. Pigafetta descreve que durante a luta os nativos feridos com flechas tentavam desesperadamente arrancá-las do corpo e acabavam por morrer dos ferimentos e da perda de sangue. Os insulares montaram-se nas suas canoas e fizeram uma perseguição aos navios, arremessando pedras aos europeus. Pigafetta diz até que a azáfama era tanta que alguns indivíduos erguiam peixes com as mãos como se os quisessem vender, enquanto outros choravam e arrancavam os cabelos em desespero. Escapada à persegui-

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Casal da realeza A etnia Tagalog era a segunda maior do arquipélago filipino. A maioria dos seus membros residia na cidade de Manila e arredores

ção, a armada continuou o seu caminho e em meados de março chegaram a uma ilha a cerca de 300 léguas da dos Ladrões, a que davam o nome de Zamal (a ilha filipina de Samar).

Novas amizades Mais tarde encontraram a ilha de Humunu (Homonhom, Filipinas) que estava desa-

bitada, e Magalhães decidiu que iriam ali descansar. Dois dias depois aproximou-se uma barca com nove homens e o líder do grupo sinalizou, por gestos, que vinha em paz. Feliz com a atitude pacífica dos locais, Magalhães ordenou que lhes dessem comida e outros presentes (barretes vermelhos, espelhos, pentes, guizos ou objetos de marfim); os locais ofereceram em troca vinho de palmeira, figos, cocos e peixe. Pigafetta dedica mesmo alguns parágrafos à descrição do manancial

Vocábulos dos gigantes patagões Comer Mechiere Peixe Hoi

Sobrancelhas Occhechel Olhar Chonne

Coxas Chiane Pano encarnado Terechae


BIBLIOTHÈQUE NATIONALE DE FRANCE -

Mapa do Atlântico Norte O Atlas de Lopo Homem, de 1519, já continha ilustrações dos povos, da fauna e da flora do Novo Mundo

de utilizações que este simpático povo dava ao coco. Admirado por usarem este fruto para fazerem vinho, pão e vinagre, chega a pormenorizar o processo utilizado para a obtenção de óleo. O chefe da tribo era descrito como um homem velho com brincos de ouro nas orelhas e os seus súbditos mais próximos apresentavam pulseiras também de ouro nos braços e lenços amarrados à cabeça. Quanto aos habitantes das ilhas mais próximas, Pigafetta refere que estes aparentavam ter os lóbulos das orelhas tão alongados que daria para serem trespassados com um objeto da grossura de um braço humano. A nudez era um fator comum relativamente a outros povos encontrados ao longo da viagem, embora no caso desta tribo muitos indivíduos usassem um pedaço de casca de árvore para cobrir a genitália. No caso de se tratar de um chefe, normalmente usava uma tira de algodão bordada a seda nas extremidades. Em finais de março de 1521, a armada deu com a ilha de Limassava, onde havia fogueiras acesas. Uma embarcação conduzida por oito locais veio ao encontro dos visitantes e Magalhães ordenou ao seu escravo Henrique, proveniente de Samatra, que servisse de intérprete para que pudesse perceber o ânimo dos locais. O comandante convidou-os a subir a bordo, mas estes, desconfiados, não o fizeram. Numa tentativa de se mostrar amigável Magalhães enviou-lhes algumas ofertas. Ao receberem-nas, os insulares voltaram a terra para mostrá-las ao seu rei, que, sentindo-se curioso, comandou dois barcos grandes apinhados de gente até perto da armada. Hemrique trocou algumas palavras em malaio com o rei da ilha e, logo após, alguns

Todos estes vocábulos [dos patagões] são entoados na garganta, porque assim o exige a pronúncia daquelas gentilidades. Os termos citados ensinou-mos o gigante que tínhamos a bordo, o qual, havendo pedido ‘capac’, ou seja, o pão extraído da raiz que eles usam como tal, e ‘oli’, que significa água, me viu anotar essas palavras. Quando, com a pena na mão, lhe perguntei outros vocábulos, o interpelado compreendeu-me» Antonio Pigafetta, cronista locais subiram. O rei ficou na sua embarcação, mas ao saber que os visitantes tinham boas intenções para com o seu povo quis oferecer uma barra de ouro e uma cesta com

gengibre ao capitão português. A oferta não foi aceite e no dia seguinte Magalhães enviou o seu servo a terra para que informasse o rei de que a armada vinha em paz e que os marinheiros estariam dispostos a pagar por aprovisionamentos vitais. Para negociar melhor, o rei aceitou ir ao navio acompanhado de alguns dos seus homens e, num gesto de amizade, abraçou o português e ofereceu-lhe três vasos de porcelana cheios de arroz cru. Em troca, Magalhães ofertou-lhe uma túnica de pano vermelho e amarelo e um barrete vermelho, e presenteou os acompanhantes do rei com espelhos e facas. A amizade estabeleceu-se e Magalhães mandou vestir um dos acompanhantes do rei com uma armadura completa, para lhes provar a resistência da mesma. Demonstrou ainda o poder das armas de fogo, o que conquistou os locais pela surpresa e a novidade. O rei quis levar dois europeus a terra para lhes dar a conhecer as riquezas da sua ilha. Um destes foi Pigafetta, que pôde assim conhecer em primeira mão alguns costumes locais. Chegado o Domingo de Páscoa, no último dia de março, Magalhães mandou a terra o capelão acompanhado de vários marinheiros para organizar uma missa. Os marinheiros beijaram a cruz e o rei e os seus súbditos quiseram também participar no ritual, imitando – sem saberem bem porque o faziam – todo o procedimento. Depois de uma dança de espadas, trouxe-se a cruz com os cravos e a coroa de espinhos e ajoelharam-se todos diante dela, sendo feita a promessa de que em nome de Carlos I de Espanha a iriam erguer no ponto mais alto da ilha.

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MAGALHÃES // A VIAGEM

Prisioneiros dos portugueses Alguns dos tripulantes da Trinidad e da Victoria regressaram à Península Ibérica privados da liberdade, depois de viverem trepidantes aventuras

A

1 de junho de 1522, o comandante da fortaleza de Malaca, Jorge de Albuquerque, recebia dois cativos espanhóis muito debilitados. A sua captura não fora acidental. As antenas do Estado da Índia estavam atentas a todo e qualquer europeu estranho à Coroa portuguesa desde 1520, quando D. Manuel enviara Jorge e António de Brito para a Índia com a dupla missão de intercetar a armada de Magalhães e construir uma fortaleza nas Molucas. Capturados em Timor por Pero Soares de Sousa e levados ao porto malaio por Álvaro Juzarte, o grumete Martim de Ayamonte e o soldado Bartolomé Saldaña confessam que se tinham escondido na selva após desertarem da nau Victoria, da armada de Magalhães, quando esta se aprestava a regressar a Espanha pelo cabo da Boa Esperança. Esta confissão é depois corroborada pela armada de Jorge Brito – que virá a saber pela tripulação de um junco de Java que os espanhóis tinham estado nas Molucas – e pela captura do genovês Alonso Cota, aprisionado em Banda quando lá fora comerciar a partir de Tidore. Os portugueses confirmam então a notícia 78 V I S Ã O H I S T Ó R I A

por Alexandre Monteiro* que receavam desde que Magalhães zarpara de Sevilha em 1519: os espanhóis tinham conseguido atingir as ilhas das Especiarias pelo Pacífico. Mas recuemos até às Molucas e a 21 de dezembro de 1521, dia em que a Trinidad e a Victoria, as duas naus sobreviventes da armada de Magalhães se viram forçadas a seguir cada uma o seu destino. A âncora da Trinidad ficara presa no fundo. Levada a nau pelas águas, o choque fora transmitido às obras vivas, alquebrando-se a quilha. Com a água a jorrar para dentro do navio, a tripulação descarregou parte da mercadoria e utilizou mergulhadores locais para verificar os estragos. As avarias eram tão severas que a Victoria partiu sozinha para Timor, até

Com a Trinidad envolta num odor pestilencial e a tripulação incapaz de resistir, os portugueses facilmente a tomaram

porque a monção que lhe permitiria chegar ao Índico estava quase a terminar.

A nau Trinidad Forçados a permanecer em Tidore, perdidos os ventos favoráveis, 57 europeus dedicam-se à reparação da nau, enquanto três artilheiros são destacados para a ilha de Halmaera, a maior das Molucas. Ali permanecerão até 1526, quando serão encontrados pela expedição de Loaísa. Reparada a Trinidad, esta zarpa sob comando de Gomez de Espinoza a 6 de abril de 1522, com 50 toneladas de cravo e 54 homens, um dos quais o português Pedro Lourosa, feitor em Ternate. Prosseguindo para norte, passa as Marianas e alcança a latitude do Japão. Mas, se era fácil ir das Molucas até às Filipinas, o regime de ventos naquela altura do ano tornava impossível a progressão para oriente – a rota de torna-viagem só viria a ser descoberta em 1565, por Urdaneta. Depois de dias de um frio glacial, um tufão, ventos contrários e uma sucessão de mortes a bordo, Espinoza decide regressar às Marianas. É nestas ilhas que desertam quatro


espanhóis, um dos quais acabará por regressar à frota e dois serão mortos por nativos. O último, Gonzalo de Vigo, será também encontrado pela expedição de 1526. Com 33 homens a menos, Espinoza regressa às Molucas a 1 de novembro. É em Halmaera que descobre que António de Brito tinha atacado Tidore, destruindo a feitoria espanhola e capturando os europeus lá deixados. Sem âncoras, só com sete homens capazes, Espinoza envia a Ternate Bartolomé Sanchez, pedindo a Brito que lhe mande víveres e âncoras. A resposta deste foi pôr a ferros o escrivão espanhol e enviar de encontro à Trinidad um contingente armado, comandado por Gaspar Galo. Com a Trinidad envolta num odor pestilencial e a tripulação incapaz de resistir, os portugueses facilmente a tomam, confiscando armas, cartas, equipamento de navegação, diários de bordo e os pertences pessoais da tripulação. É certamente por esta via que chega aos arquivos portugueses a Relação da viagem feita por um piloto genovês, provavelmente Leone Pancaldo. Levada a Trinidad para Ternate, a amarra da sua única âncora rebenta numa tempestade e o navio dá à costa. Alguma da artilharia e da madeira salvada é utilizada na construção

do forte português, trabalhos em que os espanhóis são forçados a participar. Lourosa, o português que partira com estes, é declarado traidor e decapitado. Brito, indeciso entre decapitar também os oficiais espanhóis ou mantê-los prisioneiros, aprisiona em Ternate os pilotos Bautista e Pancaldo, o escrivão Sánchez, o carpinteiro Antonio e o calafate Bazabal. Os restantes 17 são remetidos para Malaca, com escala em Banda e Java, viagem a que não sobreviverão quatro europeus. Na prisão em Malaca morrerão mais quatro, enquanto o escravo africano de Espinoza é oferecido à irmã do capitão da fortaleza. De Malaca, os espanhóis seguem para Ceilão e depois para Cochim. Nessa viagem, um dos juncos de transportre desaparece, e com ele mais três europeus. Apenas oito chegam a Cochim, onde encontram Vasco da Gama, então vice-rei da Índia, que os coloca na prisão. Libertá-los-á mais tarde, para que esmolem pela vida nas ruas da cidade. Espinoza, que não sabe escrever, paga a um escriba português por uma carta, que envia dissimuladamente a Carlos V. Espinoza pede ajuda ao imperador, alegando que os portugueses os tratam pior do que os mouros tratam os escravos cristãos na Berberia. Entretanto, morrem mais dois espanhóis.

Cabo Verde Habitantes do arquipélago, numa imagem italiana do século XIX, e (na página ao lado) a vila da Praia, em Santiago, numa representação de 1589

Um terceiro, Juan Rodriguez, consegue embarcar para Lisboa, de onde será libertado, conseguindo chegar a Sevilha. Já Bautista e Pancaldo conseguem entrar clandestinamente numa nau portuguesa. Descobertos na ilha de Moçambique, são novamente postos a ferros e obrigados a mendigar. Bautista morrerá em Moçambique. Pancaldo reincide em ser clandestino noutra nau da Índia. Novamente descoberto, é aprisionado em Lisboa. Só será libertado em 1527. Da Índia, os restantes três sobreviventes da Trinidad – Ginés de Mafra, Espinoza e o norueguês Hans Bergen – serão enviados para Lisboa, aonde chegarão prisioneiros em julho de 1526. Com a morte de Bergen no Limoeiro, dos 54 sobreviventes da Trinidad apenas quatro conseguirão retornar a Espanha.

A nau Victoria A Victoria, como sabemos, decidiu regressar pela rota do cabo da Boa Esperança, que dobrou. Até cruzar o equador tinham-lhe morrido 21 homens. Com a maior parte da tripulação doente ou moribunda do escorbuto, Elcano decide dirigir-se a Cabo Verde, ancorando a 19 de julho no porto de Santiago. Ali, Elcano envia a terra o seu escrivão, Martin Mendez.Este contará que a nau faria parte de uma frota que regressava das Índias Espanholas e que, apanhada por uma tempestade, necessitava de provisões e reparações. As autoridades portuguesas começam por acreditar, mas essa crença não irá durar muito. Primeiro, porque Elcano se vê obrigado a comprar provisões e escravos para o manuseio das bombas, não com ouro, que não tem, mas com cravo, uma mercadoria obviamente proveniente da metade portuguesa do mundo e não das Américas. Depois, porque a 14 de junho, o escaler já não volta da cidade – Simón de Burgos, português residente em Espanha, confessara que a Victoria era a única nau sobrevivente da frota de Magalhães. Com apenas 22 homens e com os portugueses a aparelhar quatro caravelas para apresar a nau, Elcano decide fugir. A Victoria chegará a Sevilha com três indonésios e 18 europeus. * Alexandre Monteiro é investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa

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MAGALHÃES // A VIAGEM

Sevilha

8 set 1522

Cebu

27 abr 1521 Equador

Meridiano de Tordesilhas 47° 28’ O Antimeridiano de Tordesilhas 132° 32’ E

O fim da aventura

Foi sob o comando do até então obscuro Juan Sebastián de Elcano que a armada regressou ao ponto de partida

N

por José Manuel Garcia

o dia 6 de setembro de 1522, a primeira coisa que Juan Sebastián Elcano fez ao chegar a San Lúcar de Barrameda como capitão da nau Victoria foi escrever uma curta missiva a Carlos V dando-lhe conta da viagem que acabara de realizar. Nela teve o cuidado de destacar: «Mais saberá vossa alta majestade que aquilo que mais devemos estimar e considerar é que descobrimos e rodeámos toda a redondeza do mundo, indo para o ocidente e vindo pelo oriente.» Ao saber do resultado da expedição, Carlos V ficou muito espantado com o feito concluído por Elcano e os

8 80 VISÃO H I S T Ó R I A

seus 17 companheiros. Não era aquilo que havia sido combinado quando aprovara o projeto de Magalhães, em 1518. Nessa altura determinara que a armada, após a chegada às Molucas, regressasse pelo mesmo caminho da ida, ou seja, pelo então chamado «mar do Sul» (o oceano Pacífico) que o navegador se propusera descobrir, proibindo que passasse pelos domínios portugueses no oceano Índico. Essa determinação não fora cumprida porque Magalhães havia sido morto a 27 de abril de 1521 e Elcano, com a autoridade de ter passado a ser capitão da Victoria, quando deixou as Molucas decidiu que


o melhor era tentar concluir a viagem de regresso a Espanha continuando a seguir para ocidente até chegar ao porto de origem. Antes quis arriscar a passagem pela parte portuguesa do mundo do que voltar pelo imenso oceano Pacífico, cuja forma de regressar à vela era ainda desconhecida. Mas, atendendo a que a nau vinha carregada de especiarias que cobriam o investimento feito com a armada, e dado que Elcano alegou que as Molucas estavam na parte da Terra sob o senhorio de Carlos V, conforme Magalhães lhe dissera, o monarca acabou por não pôr em causa a sua ação e recompensou-o até com um brasão em que se inscrevia um globo terrestre com um cinta onde se lia o mote latino: «Primus circumdedisti me» (Foste o primeiro a circundar-me). Carlos V mandou que que Elcano e mais dois sobreviventes da expedição fossem a Valladolid para lhe contarem pessoalmente a história da viagem. Depois, também Pigafetta foi falar ao monarca, tendo-lhe oferecido um livro em que relatava a viagem. O que estes e outros escreveram e disseram permite-nos reconstituir o que se passou na viagem desde que Magalhães morreu. Após a tragédia de Mactan foi escolhido para comandar a armada Duarte Barbosa, um português da confiança de Magalhães, sobrinho do seu sogro Diogo Barbosa, ao qual já havia atribuído o comando da Victoria no Puerto de San Julián, depois de ele o ter ajudado a derrotar o motim que se dera na armada. À terrível derrota na batalha de 27 de abril de 1521 frente aos homens de Lapu Lapu, em que Magalhães perdeu a vida, seguiu-se, logo a 1 de maio, um massacre de 25 tripulantes da armada, em Cebu. Tal catástrofe ocorreu quando se decidira retomar a viagem para finalmente ir às Molucas, o que seria feito depois de se receber um presente em joias que o rei de Cebu, convertido ao cristianismo, prometera dar a Carlos V, sendo a entrega acompanhada de um banquete de despedida. Na manhã de 1 de maio, 26 homens desembarcaram e dirigiram-se ao local do banquete. De súbito, foram atacados e deu-se então o morticínio.

Sábado, 6 de setembro de 1522, entrámos na baía de San Lucar, com 18 homens somente, a maior parte doentes, resto dos 60 que partiram de Maluco [Molucas]. Alguns morreram de fome, alguns fugiram na ilha de Timor e alguns foram mortos em virtude dos seus delitos. Desde o dia em que partimos daquela baía de San Lucar até ao presente, tínhamos feito catorze mil e quatrocentas e sessenta léguas e, mais ainda, tinhamos completado a circulação do mundo, de levante a poente Antonio Pigafetta, cronista

A longa busca das Molucas O piloto português João Lopes de Carvalho passou então a dirigir a armada e logo ordenou a partida. A 2 de maio mandar incendiar a nau Concepción na ilha de Bohol, considerando que os 113 sobreviventes da armada eram insuficientes para manobrar os três navios que restavam. A grande desorientação que se seguiu levou a que nos meses seguintes a armada andasse sem rumo em vez de ir para sul, em direção às Molucas, que se sabia estarem no equador. As duas naus andaram a navegar aparentemente em busca de navios para assaltar, de ilhas para se abastecer e de cidades onde pudesse haver riquezas para fazer comércio. Assim se explica a ida ao Brunei, onde as naus chegaram a 8 de julho de 1521 e de onde tiveram de fugir a 29. Foi ainda quando estavam na ilha de Bornéu que, a 16 de setembro, João Lopes de Carvalho deixou de ser capitão-mor, devido a mau comportamento. Espinosa, embarcado na Trinidad, passou então a comandar a armada, enquanto Juan Sebastián Elcano assumiu um papel de protagonista ao ser nomeado capitão da Victoria. De assinalar que a sua participação em eventos da armada não foi mencionada desde que estivera ativamente envolvido no motim de Puerto de San Julián e fora depois perdoado por Magalhães. Foi a 8 de novembro de 1521, passados sete meses e sete dias desde a partida de Cebu, que finalmente os dois navios chegaram às Molucas, mais especificamente à ilha de Tidore. As autoridades da vizinha ilha de Ternate recusaram-se a negociar com os espanhóis, pois permaneciam fiéis aos portugueses, com p quem haviam estabelecido boas relações desq de que, em 1512, Francisco Serrão ali chegara. d

O regresso O tripulantes souberam então por Pedro Os de Lourosa, um português residente nas d Molucas, que uma expedição enviada por M D. Manuel vinha à procura deles e estaria a D aproximar-se. Perante tal ameaça, as duas a naus foram rapidamente carregadas com cravinho e outras especiarias e, a 21 de dezembro de 1521, a Victoria deixou Tidore. A Trinidad, contudo, teve de ali ficar para

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MAGALHÃES // A VIAGEM

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Chegada da Victoria a Sevilha O momento da conclusão da viagem recriado numa gravura de 1807

receber uma reparação profunda, pelo que apenas a 16 de abril de 1522 partiu para norte, com o objetivo de atravessar o oceano Pacífico e assim chegar ao Panamá, o que Magalhães previsivelmente teria feito se fosse vivo. O problema é que esta nau, ao ter chegado corretamente aos 420 de latitude norte a 10 de agosto de 1522, tinha deixado passar havia pouco tempo a altura certa para fazer a desejada viagem para oriente. Não podendo avançar e tendo já sofrido muitas baixas, foi assim obrigada a regressar às Molucas. Espinosa teve mesmo de solicitar a ajuda dos portugueses que já estavam em Ternate para que os fossem buscar, os tripulantes da nau não eram capazes de a manobrar. A 24 de outubro de 1522 a Trinidad chegou a Ternate e afundou-se aí pouco depois. Os 17 tripulantes que nela haviam sobrevivido foram presos, tal como o haviam sido os quatro que tinham ficado numa feitoria deixada em Tidore. Desses homens, apenas cinco conseguiram regressar à Europa, entre os quais Espinosa, que aportou a Lisboa em 1526, e de onde foi libertado alguns meses depois. Entretanto, a 25 de janeiro de 1522 a Victoria chegou a Timor, que deixou a 8 de fevereiro rumo a ocidente. É curioso assinalar que António de Brito, que saíra de Lisboa em 1520 numa armada portuguesa com a missão de perseguir e prender Magalhães se ele chegasse às Molucas, estava nesse mesmo mês de fevereiro na vizinha ilha de Banda à 82 V I S Ã O H I S T Ó R I A

espera de tempo favorável para seguir para as Molucas. Como desconhecia que ali perto estava aquela nau, não pôde capturá-la. A Victoria acabou por percorrer, com muito frio e a meter água, o sul do oceano Índico, para poder escapar aos navios portugueses que navegavam mais a norte e a teriam capturado caso a encontrassem. Com os tripulantes a padecerem de muita fome, atingiu a África do Sul e, com grande dificuldade, conseguiu passar o cabo da Boa Esperança a 19 de maio de 1522. Para se alimentarem os homens dispunham apenas de arroz e água. Com cada vez mais baixas, a nau chegou a 9 de julho de 1522 à ilha de Santiago, em Cabo Verde, onde ainda foi reabastecida pelos portugueses. Porém, a 14, quando estes se aperceberam de que a Victoria vinha das ilhas das especiarias, prenderam 12 tripulantes e um nativo das Molucas que ia no batel. A nau fugiu rumo aos Açores de onde seguiu com bom vento até Sanlúcar de Barrameda que atingiu a 6 de setembro de 1522.

Magalhães e os seus homens são dignos de eterna memória, pois foi graças a eles que a Terra ficou a ser conhecida tal como é

Pigafetta fez então o balanço da viagem: «De sessenta homens que compunham a tripulação quando saímos das ilhas Maluco, não restaram mais que dezoito», a que acresciam quatro habitantes das Molucas. Esses homens teriam percorrido «mais de catorze mil quatrocentas e sessenta léguas, dando a volta completa ao mundo». A expedição só acabou oficialmente quando chegaram a Sevilha, a 8 de setembro de 1522, isto é, três anos e 28 dias desde que de lá haviam saído, a 10 de agosto de 1519. Importa assinalar, contudo, que os referidos 18 tripulantes não foram os únicos sobreviventes da primeira volta de seguida ao mundo, pois há que acrescentar-lhes os 12 capturados em Cabo Verde, que mais tarde regressariam a Espanha, tal como aconteceu com cinco sobreviventes da Trinidad. Foram pois, 35 os homens que deram essa volta. Numa carta escrita em 1522, Maximiliano Transivano enalteceu a extraordinária viagem da seguinte forma: «Estes marinheiros são realmente mais dignos de serem celebrados com eterna memória do que aqueles argonautas que navegaram com Jasão até à Cólquida.» Nós vamos muito mais longe e afirmamos que são dignos de eterna memória Fernão de Magalhães e todos os seus companheiros, pois foi graças a eles que a Terra ficou a ser conhecida tal como ela é. Defendemos por isso que, perante a grandiosidade imortal de um tal feito, se lhes deveria erguer um memorial com os seus nomes para que estivessem bem vivos e à vista de todos.»



MAGALHÃES // A VIAGEM

Para memória futura Se Antonio Pigafetta é o mais conhecido dos cronistas da circum-navegação, muitos são os relatos mais ou menos contemporâneos que dela nos chegaram

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por Ana Paula Menino Avelar*

o longo do século XVI, tempo em que a Europa redefinia fronteiras territoriais e procurava o domínio de novos espaços marítimos, as monarquias ibéricas registavam a sua História, nela inscrevendo os seus discursos imperiais. É neste contexto que se insere a expedição magalhânica, através da qual se consolidava a estratégia de alargamento do domínio espanhol. Com efeito, desde o início do século que Espanha procurava um estreito entre as Américas que permitisse navegar para as ilhas das especiarias por outra rota que não a «portuguesa» rota do Cabo, disputando, assim, o domínio imperial com Portugal. Várias expedições concorreriam para este desígnio, como as de Vicente Yáñez Pinzón e Juan Díaz de Solis nas Caraíbas (1508); a de Vasco Núñez de Balboa, que avistou o oceano Pacífico (1513); a de Díaz de Solis, que iniciou a exploração do rio da Prata (1515-1516); e, finalmente a que, em 1519, partiria sob o comando de Fernão de Magalhães. Importa observar de que forma foi, então, registada a ação deste navegador. Em 1522, aquando da chegada da nau Victoria, Carlos V recebeu em Valladolid alguns dos sobreviventes da expedição, nomeadamente o seu comandante Juan Sebastián Elcano.

era aí referido como «comandante determinado e esclarecido varão português» que tinha servido Portugal, após o que, «de mal com seu rei», partira ao serviço do imperador. Entre os presentes naquela audiência contava-se igualmente Antonio Pigafetta que, em Sevilha (1519), se colocara ao serviço de Magalhães, e autor daquele que será o mais conhecido relato desta expedição, devido ao seu testemunho vivo, intenso e encantatório. Pigafetta retrata Magalhães como um «gentil-homem» português que, «com glória», percorrera o oceano, liderando a expedição até à data da sua morte. Nas versões do relato que chegaram até nós, Pigafetta refere que entregara a Carlos V um livro por si escrito onde narrava o dia-a-dia da viagem. O seu texto seria impresso inicialmente em francês (Paris, 1526), seguindo-se uma versão em italiano (1536). Tanto este como o de Maximiliano Transilvano seriam incluídos logo no primeiro tomo (1550) de uma das mais importantes compilações de viagens, a Delle navigationi et viaggi, de Giovan Battista Ramusio.

A compilação de Ramusio Pioneiro no modo como projetou a sua obra, Ramusio selecionou para a sua versão italiana as narrativas antes conhecidas noutras

Transilvano e Pigafetta Nesta audiência encontrava-se igualmente o secretário do imperador, Maximiliaen von Sevenborgen, também conhecido como Maximiliano Transilvano. A este se deve a carta nesse ano enviada ao cardeal de Salzsburgo e que seria impressa em Colónia em 1523, com um título evocador das ilhas Molucas, embora nela fossem narradas as atribulações da viagem e enaltecida a «inaudita» navegação de Sevilha até aos «mares austrais». Magalhães 84 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Também entre nós a expedição é referida nas crónicas régias e nas que descrevem a presença portuguesa fora da Europa

línguas, as quais eram apresentadas através de uma coerente estrutura histórico-geográfica, providenciando ao leitor informações sobre os novos espaços geográficos então procurados pelos europeus. Entre os outros relatos desta expedição, ao tempo manuscritos, contam-se o Diario ó derrotero del viage de Magallanes, de Francisco Albo, que estivera junto de Elcano na referida audiência; a Navegaçam e Vyagem que fez Fernando de Magalhaes de Sevilha pera Maluco no anno de 1510, atribuída ao genovês Leone Pancaldo; um relato anónimo de uma testemunha presencial da viagem de Fernão de Magalhães atribuído a Martin de Ayamonte; um outro escrito também anónimo encontrado na Biblioteca da Universidade de Leida,


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Primeira edição de Pigafetta Perdido o original italiano, a mais antiga versão conhecida é a que foi publicada em Paris, ilustrada pelo autor (aqui, a ilha dos Ladrões)

cujo autor terá igualmente acompanhado a expedição; e ainda o Libro que trata del descubrimiento del estrecho de Magalhanes, de Ginés de Mafra. Existem ainda relações ou cartas onde é possível colher dados de vária ordem, como, por exemplo, os custos e os gastos da armada, o rol dos mantimentos, as inquirições levantadas aquando da rebelião de Gaspar de Quesada contra Fernão de Magalhães, as notícias das especiarias que chegaram ao reino, as respostas dadas por Juan Sebastián Elcano, capitão da nau Victoria, por Francisco Albo, seu piloto, e por Hernando de Bustamante y Cáceres, identificado como barbeiro e cirurgião da mesma nau, ao alcaide Santiago Díaz de Leguizamo. Estas fontes têm estado na origem de várias descrições,

por vezes romanceadas, da expedição e dos seus atores.

Nos contextos imperiais A par dos textos que se confinam à descrição da viagem, há um conjunto de outras narrativas cujo tema central é a figura de Carlos V e o seu império extraeuropeu. Nelas, a viagem surge no contexto de outros eventos históricos, sendo a sua relevância assinalada no âmbito de um domínio imperial. No primeiro caso destacam-se as crónicas sobre Carlos V de Francisco López Gómara, Prudencio de Sandoval, Alonso de Santa Cruz ou Juan Ginés de Sepúlveda; no segundo, as obras de Pedro Mártir de Anglería, Francisco López Gómara, Gonzalo Fernández de Oviedo e Bartolomé de las Casas.

Também em Portugal a expedição e os seus protagonistas mereceram atenção quer nas crónicas régias de Damião de Góis, Jerónimo Osório, Gaspar Correia, Frei Luís de Sousa e Francisco de Andrade sobre D. ManueI I e D. João III, quer nas que se dedicavam à presença portuguesa no espaço extraeuropeu. Entre as histórias gerais sobre o império, assinala-se uma sucinta referência a Magalhães e à sua expedição no Tratado dos descobrimentos antigos e modernos, de António Galvão (1563), o qual já antes escrevera sobre as «cousas de Maluco». Ainda neste âmbito assumem relevância as Lendas da Índia, de Gaspar Correia, a História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses, de Fernão Lopes de Castanheda (1551-61), e a Ásia (1552-63), de João de Barros, obras que expõem com algum detalhe tanto a ação de Magalhães ao serviço de Portugal, como a sua expedição sob os auspícios de Carlos V. Assiste-se aqui, todavia, a uma nítida alteração do perfil traçado de Fernão de Magalhães: a imagem do servidor empenhado, que concorreu para a concretização de desígnios da Coroa portuguesa, dá lugar à do homem que serve a Coroa espanhola, pondo em causa os interesses de Portugal. Tanto em Portugal como em Espanha, a figura de Magalhães persistiria ainda noutro solo literário, o da épica. No canto X de Os Lusíadas, ele é retratado por Luís de Camões como quem «de seu Rei mostrando-se agravado,/ Caminho há de fazer nunca cuidado». Magalhães passaria o estreito que adotaria o seu nome e percorreria outro mar, outra terra que ficaria onde «com suas frias asas, o Austro a esconde».E o poeta Alonso de Ercilla y Zúñiga, em La Araucana, referiu-o como o primeiro homem que «abriu caminho entre dois oceanos, dando-lhe assim, para sempre, o seu nome». * Ana Paula Menino Avelar é professora associada da Universidade Aberta

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MAGALHÃES // CONHECIMENTO

CONHECIMENTO

O MUNDO ANTES E DE A grande viagem revelou a verdadeira configuração do planeta, que passou a ser visto de uma forma diferente por José Manuel Garcia* 86 V I S Ã O H I S T Ó R I A


Mapa-mundo Sobreposição sobre um mapa atual do planisfério feito em Sevilha, em 1519, por Jorge e Pedro Reinel para Fernão de Magalhães, no qual se pode perceber a sua visão do mundo. Apesar de as ilhas Molucas serem colocadas erradamente na parte esquerda do mapa, indicando que pertenciam ao domínio de Castela, já se expressa a noção da grande amplitude do oceano Pacífico antes de este ter sido atravessado. De realçar ainda a colocação do Brasil muito a oriente da sua posição real

POIS DE MAGALHÃES VISÃO H I S T Ó R I A

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MAGALHÃES // CONHECIMENTO

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oi graças à grande viagem concebida e realizada por Fernão de Magalhães entre 1519 e 1521 que se modificou a visão do mundo até então existente. Podemos mesmo afirmar que o tempo de Magalhães está na charneira da forma como se passou a ver o espaço do nosso planeta, pois foi essa tão importante viagem que permitiu nada mais nada menos do que, finalmente, conhecer a Terra tal como ela é. Com «ousança de falar», como disse Fernão Lopes, e glosando Arnold Toynbee quando este famoso historiador britânico expressou a ideia de haver uma época antes e outra depois de Vasco da Gama, também nós ousamos afirmar que há um conhecimento do mundo antes e outro depois da grande viagem iniciada por Fernão de Magalhães em 1519 e concluída por Sebastián Elcano em 1522.

A Terra antes Ao recuarmos ao tempo em que Magalhães nasceu, isto é, a cerca de 1480, verificamos que prevalecia então na Europa a velha imagem do mundo gerada por Ptolomeu no século II d.C. e que começara a ser divulgada na Europa a partir de inícios do século XV. 88 V I S Ã O H I S T Ó R I A

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BIBLIOTECA MEDICEA LAURENZIANA, FLORENÇA

O mundo conhecido dos Antigos Cópia da Cosmographia, de Ptolomeu, executada entre 1466 e 1468

Antes de Magalhães Planisfério português anónimo, de outubro de 1502, conhecido por «mapa de Cantino»

Tanto este modelo geográfico como outros registados em mapas medievais vieram a ser postos em causa pelas observações realizadas durante os Descobrimentos quatrocentistas e quinhentistas, os quais suscitaram novas cartas de marear, que os portugueses passaram a traçar e foram depois copiadas na Europa. Os portugueses, ao passarem o equador em 1472 e o cabo da Boa Esperança em 1488, alcançaram uma melhor visão do mundo, mas ainda assim, nesse tempo de transição da antiga para a nova representação da Terra, o mais que se conseguiu foi a imagem que Henricus Martellus criou cerca de 1489 nos

mapas em que registou pela primeira vez o cabo da Boa Esperança, mas onde continuou a traçar a Ásia à maneira de Ptolomeu.

Lisboa era o centro do mundo. Quem queria ir do Brasil à China só o poderia fazer a partir da capital portuguesa

O planisfério de Cantino Pouco mais de uma década após a realização dos mapas de Martellus foi possível a um cartógrafo português que ficou anónimo concluir em Lisboa, em outubro de 1502, um planisfério que aí foi comprado por 12 ducados por Alberto Cantino para de seguida o enviar ao duque de Ferrara, Hércules de Este. Foi por isso que tal mapa ficou conhecido por «planisfério de Cantino». Nele se registava uma imagem do mundo com proporções mais corretas e amplas do que as que até então haviam sido vistas: a África já se aproximava bastante da sua forma real; na Ásia precisara-se a posição e a forma da Índia; e no Ocidente surgia um mundo novo marcado pela primeira representação do Brasil e de outras terras a que, a partir de 1507, alguns começaram a chamar erradamente América, nome que


BIBLIOTECA ESTENSE UNIVERSITARIA, MODENA

Carta dos oceanos Índico e parte do Pacífico, de Pedro Reinel, 1517 ou 1518. Encontrava-se em Munique quando foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial

se veio a impor contra o do seu descobridor, Cristóvão Colombo. Este genovês ainda estava vivo, e alegadamente a pensar que tinha descoberto a Ásia, quando, a 25 de março de 1505, Magalhães partiu de Lisboa na Carreira da Índia rumo ao Oriente, que de seguida percorreu em toda a sua extensão até 1513. Seria em 1521 que ele viria a concretizar de facto o projeto de Colombo, ao ter ido à

Ásia por uma via ocidental, conseguindo assim completar o essencial do grande ciclo dos Descobrimentos. O grande navegador português alcançou assim experimentalmente o pleno conhecimento da forma da esfera terrestre. Lisboa era então um centro do mundo, pois quem queria ir desde o Brasil à China ou às Molucas, ou passar por muitas zonas de África só o poderia fazer a partir da

capital portuguesa. Enquanto Magalhães esteve em Lisboa revelou muito interesse no conhecimento da geografia do mundo, como evidenciou João de Barros ao afirmar que a «sua ida pera Castela [em 1517] andava no seu ânimo de mais dias [desde 1516], que movida do acidente do [mau] despacho [que D. Manuel lhe deu em 1517]. E prova-se: porque, antes de o ter, sempre andava com pilotos, cartas de marear e altura de este-oeste [isto é, a determinação dos valores das longitudes]». Para percecionarmos o conhecimento que Magalhães alcançara da forma da Terra entre 1505 e 1519 é de considerar a melhor cartografia que se fazia no seu tempo: a que era concebida por portugueses. Estes atestaram então um cada vez melhor conhecimento da geografia do planeta, enquanto no resto da Europa se continuava a seguir os velhos modelos ptolemaicos, mais ou menos retocados pelas informações recolhidas de adaptação de mapas portugueses ou espanhóis que aí chegavam, sobretudo a partir de um modelo básico semelhante ao contido no planisfério de Cantino de 1502. Nesse sentido, basta ver a imagem publicada em 1516 por Martin Waldseemüller na sua «Carta marina», isto

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MAGALHÃES // CONHECIMENTO

Depois da viagem Planisfério português atribuído a Pero Fernandes, 1543

é, três anos antes do planisfério traçado por Jorge e Pedro Reinel em 1517 com as ideias de Magalhães.

A obra de Francisco Rodrigues De entre as obras que Magalhães poderia ter conhecido e que contribuíram para a formação da imagem que ele tinha do mundo, somos levados a destacar a de Francisco Rodrigues, um piloto e cartógrafo português que estava em Malaca em 1511 e que de seguida fez o primeiro atlas moderno da História, concluído na Índia em 1515 e no ano seguinte enviado para Portugal. Quando Magalhães esteve em Malaca, entre 1511 e 1513, ou durante a viagem que fez às Molucas do Sul, entre 1511 e 1512, terá por certo visto o desenho da região e as ilhas do Sudeste Asiático tal como Francisco Rodrigues em 1511 o adaptara da carta de um piloto de Java. Desse mapa constavam quatro ilhas das Molucas, identificadas como sendo aquelas «donde vem o cravo». Era aí que Magalhães queria ir em 1516 e 1517 para nelas se reencontrar com o seu amigo Francisco Serrão, que para lá havia ido em 1512. Se os mapas de Francisco Rodrigues são 90 V I S Ã O H I S T Ó R I A

aqueles que melhor revelam a imagem da Ásia que Magalhães poderia ter antes de ir para Espanha, há a considerar que, quer em Lisboa quer depois em Sevilha, ele trabalhou com dois dos mais importantes cartógrafos portugueses da época: Pedro Reinel e seu filho Jorge Reinel, autores dos melhores mapas que então era possível traçar. Duas das suas obras chegaram até nós e são essenciais para compreendermos o ambiente cartográfico em que Magalhães preparou a sua grande viagem. Uma das referidas cartas foi feita por Pedro Reinel em 1517, ou mais provavelmente em 1518, e nela se representava com o rigor possível a parte da Terra que vai de Angola às Molucas. A outra obra aqui considerada é a mais importante de todas para se perceber o planeamento da viagem de Magalhães, pois consiste no planisfério que foi traçado em Sevilha nos primeiros meses de 1519 por Jorge Reinel e concluído por Pedro Reinel. Nele se apresentavam as ideias de Magalhães com uma amplitude de visão planetária que nunca antes havia sido registada na cartografia. Estamos perante um dos mapas mais importantes da História da Cartografia, che-

gado ao nosso conhecimento por uma cópia luxuosa que Magalhães mandou fazer para oferecer a Carlos V em 1519, e que lhe custou 12 ducados, o mesmo preço do planisfério que Cantino havia mandado fazer em 1502 em Lisboa. É de realçar que nesse planisfério a forma de representar as diversas partes da Terra corresponde ao pensamento de Magalhães, que o próprio deixou registado numa lembrança que escreveu e enviou a Carlos V em setembro de 1519, pouco antes de iniciar a sua viagem.

O ‘Atlas Miller’, de Lopo Homem Há ainda a considerar uma terceira obra famosa neste panorama da cartografia do mundo que antecedeu de perto o início da viagem de Magalhães, em 1519. Referimo-nos ao conjunto de onze folhas soltas com mapas ricamente iluminados formando um atlas da autoria exclusiva de Lopo Homem vulgarmente denominado Atlas Miller, do nome de um seu antigo proprietário. Esta obra foi mandada fazer por D. Manuel em 1519 a esse seu «cosmógrafo» e destinava-se a uma oferta diplomática. Admitimos a possibilidade de que tivesse querido oferecer a obra a Carlos


paralelo na cartografia portuguesa, como se pode ver nomeadamente nas cartas que foram feitas por esse tempo por autores portugueses, nas quais já se representava a Insulíndia com o realismo possível, como é o caso quer da acima citada carta do Índico atribuída a Pedro Reinel, de 1517, ou mais provavelmente de 1518, quer a do planisfério de Jorge e Pedro Reinel, de 1519. De notar que o traçado da zona das Molucas, naquele mapa, é semelhante à que se verifica neste planisfério.

BIBLIOTECA NACIONAL AUSTRÍACA, VIENA

Depois de Magalhães

V, para tentar mostrar ao rei de Espanha a inviabilidade da proposta de Magalhães em querer viajar até às Molucas por ocidente. Em face da representação do mundo patente nessa obra, Carlos V poderia concluir que não valeria a pena apoiar a realização de tal viagem. Como esta, contudo, acabou por se fazer, D. Manuel, ao sabê-lo, teria mandado parar a realização de um tão dispendioso atlas que, por isso, ficou por acabar. A fundamentação desta hipótese encontra-se no contraste que ali há entre as boas representações de grandes zonas da Terra, como por exemplo o Brasil e o Índico, com as imagens onde se apresentavam regiões para oriente da Malásia, que têm traçados muito diferentes dos que já se conheciam. Com efeito, tais regiões foram registadas com uma configuração fantasiosa e propositadamente deturpada e confusa, além de terem traços ptolemaicos que os portugueses tinham verificado não corresponderem à realidade da geografia que iam descobrindo. É ainda de realçar que no mapa-múndi desse atlas não há na América do Sul uma passagem que do ocidente do oceano Atlântico conduza ao então chamado «mar do Sul», o

que por certo terá sido feito com a intenção de mostrar a inviabilidade da tese de Magalhães que por aí queria encontrar uma passagem para ir às Molucas. Perfilhamos esta interpretação, pois em 1519 já se conhecia bem em Portugal quer a Indonésia até às Molucas quer a China e o rio da Prata. Além do mais, tal imagem do mundo com a falta de ligação entre os dois oceanos não está expressa no mapa do Brasil desse mesmo atlas, pois neste não se registam terras ao sul do rio da Prata, visto não serem conhecidas, ao contrário do que se fantasiava e erradamente se registava naquele mapa-múndi. O essencial é perceber que a forma da Ásia mais longínqua deste famoso atlas não tem

Para percecionar a forma como a Terra foi vista após a viagem de Magalhães podemos observar a cartografia hispânica produzida a partir de 1522, a qual passou a revelar toda a amplitude da Terra. Ainda assim, e por razões políticas, alguns dos mapas que então foram feitos patenteiam limitações e deturpações na exposição da forma e dimensão do mundo. Tal é o caso revelado no primeiro mapa feito em 1522 por Nuno Garcia de Toreno logo a seguir à chegada de Elcano. Com efeito, nele se registou pela primeira vez a representação das Filipinas e foi dada uma nova forma às Molucas, acrescentada à que fora expressa no planisfério dos Reinéis, de 1519, além do registo de outras ilhas e de se continuar a refletir influências ptolemaicas já ultrapassadas. Nesta obra registam-se propósitos políticos deturpadores da realidade geográfica, como é o caso da falsidade da colocação de Malaca na parte do hemisfério espanhol, piorando muito mais a posição já errada que Magalhães tivera sobre a localização das Molucas. De realçar ainda o facto de nesse mapa não se apresentar o oceano Pacífico desde o estreito de Magalhães até às Filipinas.

O cartógrafo Diogo Ribeiro

A cartografia concebida por portugueses demonstrava melhor conhecimento do planeta do que os velhos modelos ptolemaicos

Terá sido o mesmo Nuno Garcia de Toreno quem traçou mais dois planisférios, um ainda em 1523 e outro em 1525, onde já constava a ampla representação do Pacífico. Ainda assim, os mapas que melhor refletem o resultado da viagem de Magalhães, apesar de também estarem deturpados por razões de origem política para favorecer os interesses de Carlos V nas Molucas, são os que foram feitos pelo cartógrafo português Diogo Ribeiro.

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BIBLIOTECA ESTENSE UNIVERSITARIA, MODENA

MAGALHÃES // CONHECIMENTO

'Planisfério Castiglione' Este mapa-múndi, de 1525, é atribuído a Diogo Ribeiro

Este tinha ido para Sevilha em 1519, quando Jorge e Pedro Reinel lá foram preparar o seu já mencionado planisfério, e foi ele quem produziu cartas para a viagem de Magalhães, tendo por base o padrão expresso naquela obra. Ficou em Sevilha e foi responsável pela preparação de planisférios, sendo o primeiro que dele se conhece o chamado Planisfério Castiglione. Esta obra é a mais rigorosa que foi feita após a viagem de Magalhães/Elcano, apesar de conter a falsa atribuição das Molucas a Espanha. Foi neste planisfério que se registou pela primeira vez o nome de «Estrecho de Fernam de Magallaes». Para lá dos planisférios de Diogo Ribeiro, aquele que está mais próximo da ampla imagem do mundo que os portugueses tinham depois da viagem de Magalhães é o que se encontra na Österreichische Nationalbibliothek (Biblioteca Nacional Austríaca), em Viena, que poderá ter sido feito pelo cartógrafo Pero Fernandes em 1543. Esta magnífica peça da cartografia portuguesa, luxuosamente iluminada talvez por António Fernandes, foi possivelmente concebida para D. João III a oferecer a Carlos V a fim de lhe lembrar o acordado sobre a posse portuguesa das Molucas, das Filipinas e da China, que ficavam do lado da Terra pertencente a Portugal, de acordo com o estipulado quer no Tratado de Tordesilhas de 1494 quer no Tratado de Saragoça de 1529. Este planisfério enaltecia, assim, a perspetiva portuguesa da partilha do mundo, em contraponto com a que havia sido exposta nos planisférios produzidos por Diogo Ribeiro, 92 V I S Ã O H I S T Ó R I A

ainda em defesa das ideias de Magalhães, para quem trabalhara. O mapa português que está em Viena reflete ao mais alto nível, e com o maior valor científico que era possível, alcançar na Europa as dimensões do mundo, mesmo que defendendo a posição oficial da Coroa portuguesa quanto aos ambiciosos domínios imperiais que reivindicava, desde a zona do rio da Prata até às áreas do longínquo Oriente. Apesar de problemas políticos, todos estes mapas revelavam ter-se alcançado um cálculo das longitudes que mostrava ter a Terra muito

Os mapas feitos a seguir à viagem de Magalhães foram deturpados para favorecerem os interesses espanhóis nas Molucas

maiores dimensões do que havia sido suposto antes da viagem de Magalhães, ainda que este, como já vimos, o tivesse admitido antes de partir. O impacto cultural da viagem de Magalhães foi enorme na forma como se passou a ver o mundo, quer em mapas quer em textos. Destes limitamo-nos a dar o exemplo de algumas bem sugestivas frases escritas num Tratado da sphaera (esfera), por perguntas e respostas a modo de dialogo, que ficou anónimo e que tem sido atribuído a D. João de Castro, mas que talvez tenha sido escrito por João de Barros entre 1531 e 1533. Nele se refere o seguinte sobre a existência dos antípodas e o erro da inabitabilidade de certas partes da Terra: «A experiência que se tem acerca disto é que a navegação destes nossos tempos revolveu já o mundo todo, e revolve ainda agora bem de vezes; porque além da nau do Magalhães, que navegou toda a esfera em roda, depois disto, fazendo os portugueses sua navegação para os últimos términos do mundo orientais, e os outros espanhóis para os ocidentais, por vezes se encontraram, e acabaram de rodear todo este globo em Maluco. E assim por toda a redondeza dele acharam mares que se navegam e terras que se habitam como estas nossas, bem contrárias umas das outras; e todas elas andam e navegam direitos e carregam para o centro, como nós per cá. (...) Esteve todo o mundo neste erro até que os portugueses, por uma parte, e os outros espanhóis, por outra, navegaram e descobriram o mundo todo, e acharam que a tórrida zona é habitada e povoada como as outras.»


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Coleira de escravo doméstico, séc. XVIII: «Este preto é de Agostinho de Lafetá do Carvalhal de Óbidos»

NOS TEMPOS DA ESCRAVATURA ARTIGOS DE FILIPE RIBEIRO DE MENEZES, IRENE FLUNSER PIMENTEL, LUÍS FARINHA, LUÍS SALGADO MATOS E ANICETO AFONSO

Da Antiguidade ao século XX, como viviam e eram tratados os escravos

• O tráfico negreiro de África para o Brasil • O papel de Portugal • Os cativos cristãos • A invenção da liberdade • O trabalho forçado

O FRANQUISMO N.º 51 · FEVEREIRO 2019 CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL

N.º 49 · OUTUBRO 2018 CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL

A farsa dos últimos anos • O médico comunista que acompanhou o ditador • Como se manteve no poder • A vida privada

PORTUGAL

Os antecedentes • As ligações a Salazar e a Portugal Oposição e repressão • O isolamento internacional O milagre económico • A transição para a democracia

N.º 52 · ABRIL 2019 CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL

ASCENSÃO E QUEDA DE SALAZAR

N.º 48 · AGOSTO 2018 CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL

nº 52

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VIVER NUM PAÍS A PRETO-E-BRANCO, por Pilar del Río

ESTUDANTES CONTRA O PODER

As lutas do século XIX • A greve de 1907 • A crise de 1962 em Lisboa e em Coimbra • Os acontecimentos de 1969 em Coimbra • Anos 70, na agonia do regime

COMPLETE A SUA COLEÇÃO nº 53

nº 54

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O FUTURO DE MACAU 20 ANOS APÓS A TRANSFERÊNCIA, por Rocha Vieira

COMO TUDO COMEÇOU, HÁ 80 ANOS

N.º 56 · DEZEMBRO 2019 CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL

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Depoimento de Maria Teresa Horta

N.º 55 · OUTUBRO 2019 CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL

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AO LONGO DOS TEMPOS

• Homossexualidade na Grécia antiga • Roma, o ‘gabinete secreto’ • O sexo na Bíblia • Amantes dos reis e das rainhas• A prostituição em Portugal • Escândalos da I República e do Estado Novo • A revolução sexual nos anos 60

• Das Guerras do Ópio ao falhanço da primeira República • Mao e a construção do comunismo • Os 70 anos da República Popular • O corte com a URSS e a Revolução Cultural • O preço de Tiananmen, 30 anos depois • De Deng Xiaoping a Xi Jinping • Macau, a China ‘portuguesa’

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A CHINA MAOISTA

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N.º 53 · JUNHO 2019 CONTINENTE – €4,90 PERIODICIDADE BIMESTRAL

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IA ÓRA ST RI HITÓ DAHISAS TA M NIC LE COTÂ MPAL RI COOC S B IAM LHA OG, U IL OLÉM AS ONEL D CR B No tempo de Aljubarrota • Catarina de Bragança na corte de Westminster O apoio inglês durante a Guerra Peninsular • Os vinhos do Porto e da Madeira A chegada do 'foot-ball' • A crise do Ultimato • As duas Guerras Mundiais

nº 56 *

AMOR E SEXUALIDADE

UMA ALIANÇA COM MAIS DE SEIS SÉCULOS

PORTUGAL E INGLATERRA

nº 55

II GUERRA MUNDIAL • A invasão da Polónia e a ‘Blitzkrieg’ • As manobras de Hitler para anexar a Áustria e a Checoslováquia • A ascensão do nazismo • O fascismo italiano • O imperialismo japonês • Portugal em 1939

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MAGALHÃES // REGISTOS

O ‘agravado lusitano’ Como é visto Magalhães por Camões n’Os Lusíadas e pelos cronistas Castanheda, João de Barros, Gaspar Correia e Damião de Góis

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por Isabel Almeida*

omecemos pelo que é irrefutável. N’Os Lusíadas, são dois os lugares onde se recorda Fernão de Magalhães, de modo alusivo ou em explícita menção. No canto II, vemos Júpiter sossegar Vénus, sua filha, inquieta pelas ciladas que Baco, ameaçando a expedição do Gama, teimava em urdir. Perentório e elogioso acerca dos portugueses, o deus máximo anuncia «casos futuros», a uma escala global, que se estende do Oriente ao Ocidente, do Norte ao Sul: «[…] nunca se verá tão forte peito,/ Do gangético mar ao gaditano,/ Nem das boreais ondas ao estreito/ Que mostrou o agravado lusitano,/ Posto que em todo o mundo, de afrontados,/ Ressuscitassem todos os passados.» (II, 54) Adiante, já perto do fecho do poema, também num registo profético (ou, na verdade, pseudoprofético), é de novo uma voz extraordinária – a da deusa Tétis – que revela, ao Gama e a seus companheiros, segredos do o que na «pousada dos humanos» havia de acontecer: « […] Mas é também razão que, no Ponennte,/ Dum Lusitano um feito inda vejais,/ Que, e, de seu Rei mostrando-se agravado,/ Caminho ho há de fazer nunca cuidado.// Vedes a grande de terra que continua/ Vai de Calisto ao seu u contrário pólo, […] Ao longo desta costa que ue tereis,/ Irá buscando a parte mais remota/ O Magalhães, no feito, com verdade/Português, s, porém não na lealdade./ Dês que passar a via mais que meia/ Que ao Antártico Pólo o ~ estatura quasi giganteia/ vai da Linha, Dua a/ Homens verá, da terra ali vizinha,/ E mais is avante o Estreito que s’arreia/ C’o nome dele le agora, o qual caminha/ Pera outro mar e terra ra que fica onde/ Com suas frias asas o Austro a esconde.» (X, 138-141) Repare-se: nos dois grandes momentos em que, recorrendo a um engenhoso e so94 V I S Ã O H I S T Ó R I A

lene expediente (a pseudoprofecia, típica da tradição épica), o poeta integra na sua obra a história de um tempo posterior ao da viagem narrada, Fernão de Magalhães não é esquecido. Camões insiste em evocar o descobridor do estreito «que s’arreia/ C’o nome dele agora» – o estreito que consentia a passagem do oceano Atlântico para o Pacífico e que praticamente constituía, na cartografia da época, o limite meridional da terra cognita. Mais, Camões insiste em fazer de Magalhães uma caracterização enigmática e contraditória: «agravado», «no feito, com verdade/ Português, porém não na lealdade». Que significam estas palavras? Que relações implicam?

Os cronistas Para responder a tais perguntas, precisamos de considerar a historiografia em que Os Lusíadas se alicerçam. De facto, o alcance do adjetivo «agravado» e a dupla ou híbr híbrida definição do navegador (português no feito; fe não

Camões insiste em fazer de Magalhães uma caracterização enigmática e contraditória

português na lealdade) só são compreensíveis à luz das crónicas quinhentistas. Ora, ter em conta essas fontes, basilares para Camões, torna evidente, não apenas o que o poeta assimilou, mas sobretudo a escolha que, a partir das suas leituras, realizou e que fala por si. Fernão Lopes de Castanheda, na História do Descobrimento e Conquista da Índia, e Gaspar Correia, nas Lendas da Índia, foram unânimes em chamar «agravado» a Magalhães; João de Barros, que na sua Terceira Década da Ásia implicitamente o faz, privilegiou o apelido de «indinado». O mesmo é dizer que (explicando porquê, aliás) os três reconheciam a Magalhães razões de queixa. Todavia, nos seus relatos, Barros, Castanheda e Correia depressa convertem o ofendido em ofensor. Barros, sem prescindir de notar, no passado africano de Fernão de Magalhães, suspeitas de fraude e de insubordinação, lamenta a transferência para o serviço de


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'Ferdinandes Magalanes Lusitanus' Alegoria à viagem do navegador português, da autoria de Jan van der Straet (Stradanus), publicada em 1591

Carlos V, a iniciativa da exploração do estreito e a disputa desencadeada acerca do direito ao controle das Molucas e do negócio do cravo; Castanheda e Correia, embora com variantes, seguem rumo afim. Assumidos pelos cronistas ou incorporados como discurso alheio, argumentos veementemente condenatórios acumulam-se nestes textos: o ato de Magalhães fora cousa do «demónio», «enfermidade»,«fantesi[a] de doudos», «traição», «grande treição». Camões, ao invés, prefere um tom sóbrio, aproximando-se da posição de Damião de Góis, que na Crónica do Felicíssimo Rei D. Emanuel deplorara os «desgostos e gastos» devidos a Magalhães, mas vincara a «fama» por ele ganha, «que todo o mar da banda do sul e o estreito que descobriu, per onde lá passou, se chamam de seu sobrenome e chamarão até fim do mundo». Ambíguo, o poeta, se aponta a quebra de lealdade, não

rasura por inteiro o louvor de quem a protagoniza; dela, como quem sugere um nexo de causalidade (ou uma justificação), não separa a memória do agravo; e a fórmula sinuosa, criada para designar essa quebra («não [português] na lealdade»), funciona como uma lítotes – um estranho processo retórico, que, buscando a intensidade expressiva, promove em simultâneo a dissimulação.

Intervenções censórias Muito distinto, no canto IV d’Os Lusíadas, é o tratamento dos irmãos de Nuno Álvares Pereira que em Aljubarrota haviam combatido por D. João de Castela: «Menos é querer matar o irmão/ Quem contra o Rei e a Pátria se levanta.» (IV, 32). A sua reprovação, como «tredores», atinge níveis que, pelo menos em alguns contextos, soaram como escandalosos. Por exemplo, nas edições do poema datadas de 1584, 1591 e 1597, os irmãos do

Condestável deixam de ser «arrenegados», para receberem epítetos mais discretos («inconstantes», «rebelados», «ingratos»…); nas duas traduções castelhanas impressas em 1580 (uma em Alcalá de Henares, a outra em Salamanca), idêntica metamorfose se observa. Comedidos, os passos relativos a Fernão de Magalhães não sofreram censura. Que, durante a Monarquia Dual, teriam seu melindre, percebe-se pelo trabalho dos tradutores de 1580 («con verdad Magallanes enel hecho/ Portugues, pero no enel leal pecho», na versão estampada em Alcalá de Henares; «Magallanes en hechos marinero/ Mejor, que Portugues, ni Cavallero», na versão publicada em Salamanca) e pelo teor de comentários preparados sobre Os Lusíadas por autores como Manuel Correia, D. Marcos de S. Lourenço ou Manuel de Faria e Sousa. Magalhães era uma personagem incómoda num quadro em que conceitos como fronteira ou identidade acendiam especiais paixões. Sem dúvida, porém, quando Camões escreveu os seus versos, Fernão de Magalhães era já uma figura que dividia opiniões, e a ambivalência do poeta dá que pensar. Afinal, o próprio Camões se mostra n’Os Lusíadas como um agravado: «A troco dos descansos que esperava,/ Das capelas de louro que me honrassem,/ Trabalhos nunca usados me inventaram,/ Com que em tão duro estado me deitaram» (VII, 81). No retrato que moldou de Magalhães, compreendendo-o e admirando-o, embora sem lhe perdoar a opção, não custará, pois, admitir que Camões esboçou um alter ego, do qual se distinguiu enfatizando a fidelidade ao rei, o amor ao «ninho […] paterno». Magalhães, que o poeta não abdica de lembrar como símbolo do herói sujeito à ingratidão, bem poderá ter valido, a seus olhos, como um espelho imperfeito: um termo comparativo, tão eloquente na semelhança que oferecia quanto na diferença que levava a destacar. * Isabel Almeida é investigadora e docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

VISÃO H I S T Ó R I A

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MAGALHÃES // LIVROS

Para saber mais

A exploração marítima mais arrojada da História inspirou os cronistas da época mas também historiadores e biógrafos da atualidade. Há muito para ler sobre o navegador português. Eis alguns títulos por Clara Teixeira

Fernão de Magalhães

Le Voyage de Magellan (1519-1522)

Herói, traidor ou mito: A história do primeiro homem a abraçar o mundo

La relation d’Antonio Pigafetta et autres témoignages

José Manuel Garcia Manuscrito, 2019

Coordenação de Xavier de Castro em colaboração com Jocelyne Hamon e Luís Filipe Thomaz Chandeigne, 2010

Fernão de Magalhães foi morto antes de dar a volta ao mundo ao serviço da Coroa espanhola mas, neste livro, o historiador José Manuel Garcia demonstra como, mesmo depois de desaparecer, o navegador português foi o primeiro a concluir a circum-navegação da Terra. Como? Em duas etapas. Entre 1505 e 1512, Magalhães terá feito a primeira metade da viagem, navegando para oriente até às ilhas Molucas, sob patrocínio do rei D. Manuel de Portugal. Posteriormente, entre 1519 e 1521, alcançou as Filipinas (muito próximas das Molucas, a cerca de 100 N) rumando para ocidente, desta vez ao serviço de Carlos I de Espanha. O relato das peripécias da mais longa e difícil viagem marítima da História é o ponto de partida para compreendermos a tenacidade do português, profundo conhecedor da arte de navegar, assim como a forma como planeou e dirigiu a expedição que o tornou imortal. O livro inclui diversos mapas (antigos e atuais) com o trajeto das naus comandadas por Magalhães, além de um curioso quadro com os dados dos 237 tripulantes (nome, naturalidade, filiação e parentesco, navio, função, data do regresso ou da morte) da armada magalhânica.

Os testemunhos diretos da epopeia marítima de Magalhães foram reunidos pela primeira vez neste livro coordenado por Xavier de Castro, pseudónimo de Michel Chandeigne. Nele, podemos saborear as aventuras de viagem relatadas com muita cor pelo cronista de bordo, o italiano Antonio Pigafetta, acompanhadas por mapas magnificamente ilustrados, extensas notas dos autores do livro, bem como por vasta informação sobre os tripulantes, as naus, o comércio de especiarias e ainda uma cronologia da viagem. Na segunda parte, são publicados 27 documentos, quase todos produzidos na época em que decorreu a expedição e que, segundo os autores, clarificam e complementam a descrição de Pigafetta. Entre eles estão as missivas enviadas pelos soberanos das Molucas à Coroa portuguesa, dando conta das incursões espanholas no território, e relatos de membros da tripulação, como Francisco Albo, Martín de Ayamonte, Juan Sebastián Elcano, Gómez de Espinosa e Ginés de Mafra. No total, são mais de mil páginas reunidas por um antigo professor de Biologia do Liceu Francês de Lisboa que fundou, em meados dos anos 80, a editora parisiense Chandeigne, especializada em obras sobre os Descobrimentos portugueses e em poesia portuguesa. O autorcoordenador contou com a colaboração de Luís Filipe Thomaz, historiador especializado na presença portuguesa no Oriente e autor de outras obras sobre Magalhães, e da tradutora Jocelyne Hamon.

96 V I S Ã O H I S T Ó R I A


A Primeira Viagem em Redor do Mundo Antonio Pigafetta 2ĂľFLQD GR /LYUR

O relato da histórica expedição de Fernão de Magalhães, assinado pelo cronista de bordo, Antonio Pigafetta, acaba de ser novamente traduzido (do espanhol, em vez do original escrito em italiano ou mesmo da versão em francês) e publicado em Portugal após um interregno de vårios anos desde a edição das Publicaçþes Europa- AmÊrica, entretanto esgotada. O testemunho do italiano, de Vicenza, que participou na viagem de circum-navegação, foi publicado pouco depois do regresso da expedição a Sevilha. Pigafetta, que se autointitulava patrício vicentino, cavaleiro de Rodes, era de origem fidalga e foi cronista, explorador e geógrafo. Terå ido para Espanha a tempo de obter um bilhete de ingresso na armada magalhânica. As suas impressþes da viagem, às quais deu o título Navegação e Descoberta da �ndia Superior, constituem, ainda hoje, a mais importante fonte de informação sobre as peripÊcias da travessia marítima e as privaçþes enfrentadas por Fernão de Magalhães, Sebastiån Elcano e a restante tripulação. O italiano foi um dos poucos sobreviventes que completaram a circum-navegação da Terra, três anos depois da partida das naus.

FernĂŁo de MagalhĂŁes

MagalhĂŁes, o Homem e o seu Feito

Para AlĂŠm do Fim do Mundo

Stefan Zweig AssĂ­rio & Alvim, 2017

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A epopeia do navegador português Ê aqui narrada com uma destreza literåria que prova como por vezes a realidade ultrapassa mesmo a ficção. O historiador e biógrafo norte-americano Lawrence Bergreen, formado em Harvard, articula de forma minuciosa os pormenores históricos dos relatos contemporâneos da expedição para contar, em jeito de literatura de viagens, os perigos e as peripÊcias que a armada enfrentou ao longo dos cerca de mil dias que mudaram as noçþes cartogråficas sobre o mundo e a forma de navegar os oceanos. Descrita como uma jornada aventurosa, a viagem Ê relatada com rigoroso detalhe e aborda aspetos como a ciência nåutica, a saúde e a doença, a geografia, as lendas, línguas e costumes dos povos nativos com os quais a tripulação vai tendo contacto ao longo do tempo. AlÊm de ter escrito este completo retrato de Magalhães, Bergreen Ê tambÊm autor de biografias de outras personagens históricas como Al Capone, Louis Armstrong, Marco Polo, Cristóvão Colombo e Giacomo Casanova.

A biografia do navegador, da autoria do austríaco Stefan Zweig e publicada originalmente em alemão em 1937, Ê talvez a obra que mais contribuiu para a popularidade da epopeia da circum-navegação. Em 2017 foi reeditada em Portugal. O autor, desaparecido em 1942, aos 60 anos, teve a ideia de biografar Magalhães e de contar a mais extraordinåria odisseia na história da humanidade durante uma viagem marítima entre a Inglaterra e a AmÊrica do Sul. No regresso à Europa, contactou diversos historiadores, cartógrafos e tambÊm o português Visconde de Lagoa, que na mesma dÊcada de 30 publicava o seu próprio relato sobre a vida e a viagem do navegador. Reeditada entre nós em 2017, a pesquisa de Stefan Zweig resultou numa história, bem contada, de uma grande aventura por mares nunca dantes navegados. Zweig, de ascendência judaica, foi um dos mais importantes escritores europeus da primeira metade do sÊculo XX. Poeta, ensaísta, dramaturgo e biógrafo, elegeu a novela e o conto como gÊneros preferidos.

VISĂƒO H I S T Ă“ R I A

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MAGALHÃES // IDEIAS

Constelação Magalhães

Em E m outubro ou uttub ubrro o de de 1994 19 1 99 94 4 desintegrou-se de es sin inte teg grro ou u- e u-s na n a densa den nsa sa atmosfera atmo ttm mo os sffe era ra venusiana. ve en nus usia usi iana a.

O português mais famoso de sempre «emprestou» o seu nome a locais, objetos e até a animais. Estes são os mais conhecidos

Sistema de Navegação Magalhães (GPS) Um dos primeiros sistemas mundiais de GPS, criado na Califórnia, foi lançado em 1989 e recebeu o nome do explorador português.

Computadorr Magalhães O portátil azul de baixo custo, destinado às crianças do 1º ciclo do ensino básico, foi uma das bandeiras do Plano Tecnológico de José é Sócrates. Montado em Portugal, sob ara licença da Intel, foi exportado para lívia, países como a Venezuela e a Bolívia, embora aí tenham recebido outras designações.

Crateras Magalhães ães A mais conhecida, descoberta em 1976, fica no hemisfério sul de Marte e apresenta uns consideráveis 105 quilómetros de diâmetro. As outras duas situam-se na Lua, na margem do Mare Fecunditatis, e são designadas por Magalhães e Magalhães A. 98 V I S Ã O H I S T Ó R I A

Grande de e Pequena Nuvens de Magalhães As duas galáxias as anãs, satélites da nos nossa, lho nu no hemisfério rio sul. Os são visíveis a olho o an ano 964 a.C. registos mais antigos são do afetta no seu relato da viagem Referidas por Pigafetta uando oae expedição as avistou de Magalhães, quando em 1520, dura nte te a travessia do Pac Pacífico, durante receberam de pois o nome do navegador p naveg gador depois português.

Sonda Magalhães

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Lançada em maio de 1989, a sonda espacial da NASA chegou ao planeta Vénus a 10 de agosto de 1990. Durante quatro anos realizou o levantamento cartográfico mais completo do planeta (cerca de 98% da sua superfície) por meio de um radar.

A espécie, que habita nas águas temperadas da América do Sul, foi avistada durante a viagem de circum-navegação. No seu relato, Pigafetta designou as exóticas aves por «gansos». Medem entre 50 e 70 centímetros, pesam no máximo cinco quilos e vivem até aos 20 anos.




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