Longe Daqui

Page 1

e quentes de Sophie estendidos para ela, no rosto rosado da filha, em suas sobrancelhas escuras; seu rosto às vezes é nítido como uma fotogravura, às vezes perde a nitidez e de repente some, como água lavando uma calçada riscada de giz. Ficam sentadas desse jeito durante uma hora, as cartas espalhadas na mesa de parquete; as lágrimas de Lillian escorrem sobre a blusa de Lorena, algumas de Lorena caem na manga de Lillian. Elas choram por suas filhas, pela gentileza, pelas coisas que o amor leva alguém a fazer.”

“No texto de Amy Bloom, uma frase pode ser mais significativa do que livros inteiros.” — The New Yorker “Bloom criou uma série extraordinária de personagens, situações e emoções. Longe daqui é simplesmente impressionante.” — Publishers Weekly

ISBN 978.85.209.2098-5

Capa: Karen Lau Imagem da capa: Sherrie Wolf, Fruit Plate at Yosemite Valley (collection of Harsch Investment Properties)

9 788520 920985

Amy Bloom

© BethKellyPhotography.com

“L illian pensa nos braços redondos

o

Amy Bloom nasceu em 1953. Tem contos incluídos nas coletâneas Best American Short Stories, O. Henry Prize Short Stories, The Scribner Anthology of Contemporary Short Fiction e várias antologias publicadas nos Estados Unidos e em outros países. Escreveu para periódicos como The New Yorker, The New York Times Magazine e Vogue. Sua coletânea de contos Come to Me foi finalista do National Book Award, e A Blind Man Can See How Much I Love You foi indicado para o National Book Critics Circle Award. Atualmente, mora em Connecticut e leciona escrita criativa na Universidade de Yale.

Longe daqui, romance da escritora america-

Longe Daqui

madeira seca”, escreve Bloom, e o reencontro com a filha se torna uma verdadeira obsessão, um fogo que não vai se apagar. Quando enfim chega ao Alasca, depois de inúmeros percalços e de se defrontar com todo tipo de gente, Lillian está exausta, machucada e terrivelmente abatida, seu corpo “é um mapa de dor” com marcas que contam sua história. Mas o amor materno que a impulsiona nessa longa viagem não se apaga.

o Amy Bloom

na Amy Bloom, conta a saga da jovem Lillian Leyb, que chega a Nova York depois de perder toda a família num sangrento pogrom em Turov, na Rússia, sua terra natal. Apesar de não ter dinheiro ou qualquer capacitação profissional e de não falar uma palavra de inglês, a moça está decidida a reconstruir sua vida no Novo Mundo, custe o que custar. É com essa determinação que se candidata ao emprego de costureira no teatro Goldfadn e acaba se tornando amante tanto do proprietário, Reuben Burstein, quanto de seu filho, Meyer Burstein, o galã dos espetáculos ali encenados, conhecido como o Ídolo das Matinês da Segunda Avenida. Aos poucos, a vida de Lillian parece começar a seguir seu curso num clima de normalidade, só interrompido pelos constantes pesadelos que a fazem acordar gritando toda noite. Até que um dia sua prima Raisele lhe traz uma notícia espantosa: ao contrário do que lhe haviam dito, sua filhinha, Sophie, estava viva. Daí em diante, Lillian embarca numa verdadeira odisséia que a leva do mundo do teatro iídiche, no Lower East Side de Nova York, até o distrito do jazz, em Seattle, e, de lá, ao Alasca rumo à Sibéria, passando pelo estreito de Bering. Neste seu mais recente romance, Amy Bloom revela mais uma vez qualidades que os leitores reconhecem e adoram em sua obra: seu humor e sua sagacidade, sua linguagem elegante, mas também irreverente, sua percepção aguda da paixão e do coração humanos. Em alguns momentos de Longe daqui, a prosa da autora é literalmente brilhante, como na passagem que descreve o impacto causado na personagem pela notícia de que Sophie não tinha morrido. “O nome de Sophie é um fósforo em


LONGE DAQUI

É sempre o mesmo sonho. Ela está morta. Também está cega. Tudo o que consegue ver é uma explosão vermelha no interior de suas pálpebras, como se estivesse deitada de costas no campo mais longínquo de Turov no dia mais claro de junho, fechando os olhos sob o sol do meio-dia. O mundo inteiro desapareceu, as árvores, os pássaros, as chaminés; não há nada além de um céu branco que baixa suavemente e que se transforma em seu lençol. Um pedaço de palha a cutuca na face, ela o afasta com a mão e sente o sangue seco no rosto. Esfrega os olhos e sente os fios de sangue que lhe cerravam as pálpebras. Rolam por sua face, e entram na boca, coágulos de sangue duros como grãos de pimenta; vão amolecendo em sua língua... ela os cospe na mão e a mão se tinge de vermelho. Ela vê tudo, agora, em todas as direções. O chão vermelho. O marido caído no vão da porta, coberto por um sangue tão espesso que endureceu o camisão de dormir que ele usava. Há coisas no chão entre eles: o bule de chá da avó em pedaços, o balde, de cabeça para baixo, o pano que penduravam para ter privacidade. A mão de alguém. A mãe dela está caída também, estripada como uma galinha através do avental, que cai como uma cortina tosca dos dois lados do seu corpo. Lillian está de pé, nua, no cômodo vermelho, e a cor recua, feito a maré. Seu pai está junto à porta de entrada, de rosto para baixo, ainda segurando o cutelo que usaria contra os intrusos. Seu próprio machado está enterrado fundo em sua nuca. A caminha da filha está vazia. Há uma outra mão no chão, ali do lado, e ela pode ver a linha dourada da aliança de Osip. Lillian acorda com seus próprios gritos. — Sonhos ruins? — pergunta Judith. Lillian faz que sim e Judith diz, com sensibilidade e delicadeza: — Não precisa me contar. E Lillian não lhe conta que ouvira os homens sussurrarem junto à janela do quarto delas, que as paredes da casa eram tão finas em alguns lugares que ouviu um homem tossir do outro lado e um segundo sussurrar e que sentiu que parara de respirar. A pequena Sophie estava deitada de bruços, sonhando,


2

amy bloom

sugando a ponta da colcha. Os homens empurraram a porta com os ombros, com força, e Lillian pegou Sophie. As paredes foram violentamente sacudidas, juntamente com a porta, mas era uma casa velha, madeira velha, barro velho, todo perfurado de buracos da espessura de um lápis, e o reboco aos poucos começou a cair em torno do portal. A parede ia ceder num minuto. Lillian tapou a boca de Sophie com a mão. A menina arregalou os olhos e Lillian a sentiu pressionar os lábios na palma úmida de sua mão, dando beijinhos no escuro. Lillian sussurrou no ouvido de Sophie: — Nem uma palavra, ketzele. No cômodo de fora, um homem que nenhum dos Leyb jamais vira enterrou a lâmina de um machado no pescoço do pai dela e Lillian segurou Sophie com mais força. Osip se levantou no quarto escuro; a lua brilhou por um breve momento, iluminando-o, e a última visão que Lillian teve do marido foi a de um sujeito alto e magro num camisão de dormir marfim, tateando a sua volta à procura dos óculos. Um homem cujo pai tinha rebanhos que pastavam não longe da cevada dos Leyb o apunhalou quando ele entrou no outro cômodo, e o corpo de Osip caiu diante da cortina que usavam como divisória. Ele se arrastou na direção da porta da frente. Lillian envolveu o pescoço e os ombros de Sophie com o cachecol de lã azul, enfiando as pontas dentro de sua camisolinha. Osip gritou. Lillian deslizou a janelinha até abri-la e levantou Sophie. Beijou-a na testa. — Vá correndo para o galinheiro — ordenou Lillian. — Esconda-se atrás das galinhas. Em silêncio. Rápido. Amo você. Ela levantou Sophie e a empurrou para fora, segurando-a até o último segundo possível, para que a queda não fosse muito grande. Talvez tenha dito amo você baixo demais, pensa nisso o tempo todo, mas não podia dizer de novo, não podia gritar para o quintal. Ouviu o baque do corpinho de Sophie, ouviu-a dizer Ai, ai, com muita coragem. Ouviu os passos hesitantes de Sophie, enquanto esta se dirigia ao galinheiro. Lillian empurrou o pequeno colchão e a boneca de Sophie para baixo de sua cama e ergueu os olhos, deparando-se com um homem que entrava, afastando a cortina. Ele a fitou, avaliando suas próprias opções, ou talvez já se arrependendo dos eventos daquela noite (aqueles mortos não iam trazer de volta o gado do pai; talvez não fossem nem mesmo os judeus que tivessem amaldiçoado seu pai, afinal de contas). Houve um longo momento em que o único som no outro cômodo era o ruído de dois homens juntando objetos de valor (a taça do kiddush, um pequeno


longe daqui

3

porta-retrato de prata, uma panela de cobre — não havia mais nada) numa fronha; não levou tempo algum e, além disso, ela ouvia o assobio fraco e persistente do policial que passava, arrastando uma vareta pela cerca. O homem veio na direção de Lillian com a faca e também ela avaliou suas próprias opções. Levantou-se e encarou o homem, pensando que uma briga longa e uma morte lenta dariam a Sophie mais chances. Atirou-se na direção dele com a clareza vagarosa, que se encrespava, do desastre físico. O homem arremeteu contra a camisola de Lillian, cortando-a da axila até quase a barra, e o tecido esvoaçou ao seu redor. Deitada ao lado de Judith naquela cama quente e estreita, sua pele se arrepia com o choque do ar frio da noite, quando apenas segundos antes estava suando. Transformou as mãos em garras, para atacar os olhos azuis dele, injetados de sangue, mas mesmo assim de um azul celeste, e ele estendeu o braço para cortar Lillian de verdade, e o policial chamou os homens pelos nomes desta vez. Ergueu a voz de um modo amigável e firme, como se tivesse surpreendido garotos quebrando garrafas atrás de um celeiro ou incomodando uma garota no mercado. “Vão para casa, camaradas. Uma longa noite para todos — vão para casa agora. Já basta.” E o homem apunhalou Lillian uma vez no peito, do ombro até o quadril, depois sacudiu a cabeça, como se ela o tivesse feito perder tempo. O policial chamou novamente. O homem esticou as pernas para passar por cima dos corpos dos pais de Lillian e do marido dela e um deles derramou no chão uma xícara de chá; podia ter sido apenas um acidente, um momento de descuido enquanto ele limpava a faca na toalha de mesa da mãe dela. Então, os três saíram pela porta da frente e foram embora, seguindo adiante, na direção oposta à do galinheiro.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.