queremos piorar nossa marca

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queremos piorar nossa marca por Fabio Lopez

(peeeeéééé) – Oi Wanda. – Oi seu Mário. Túlio da Kemps está aqui embaixo. – Porra... quarenta minutos esperando esse cara – manda subir logo Wanda, obrigado! Mário organiza pela quinta vez naquela tarde os prêmios de propaganda da associação extinta que seu pai presidia. Tira os papéis de cima do Mac e dá uma bagunçada no cabelo para não parecer tão coxinha. Está ansioso: é a chance de fazer um trabalho de visibilidade e finalmente tirar a agência do atoleiro. – Mário! Túlio é o cara do marketing da Kemps, importante corretora da cidade. Cresceram muito nos últimos três anos. – Túlio! Bem na hora, como está? Senta aí... Quer algo: um café, uma água, um redbull...? Sempre torce pro cliente não pedir o redbull. Porque não tem. – Não precisa, obrigado. (senta) Mário aproveita para fechar a porta. Percebe que toda a agência está atenta ao evento e um silêncio improvável domina o ambiente. Alguém digita ou finge digitar algo, mas é possível escutar as próprias pálpebras socando as olheiras, forjadas para ostentar sua compulsão por trabalho. Disfarça naturalidade no intuito de fantasiar segurança pros seus comandados – o time de zumbis criativos que mantém sob custódia no escritório. Todos estranham a falta de gel no cabelo. Fecha a porta. – E aí Túlio. Estou animado para te escutar... – Que bom, Mário. Então vamos logo ao que interessa! Túlio diz isso e abandona um envelope de papel pardo com as quinas levemente amassadas diante do publicitário de meia idade. Viu a cena num seriado, anos atrás, e desde então repete o mesmo ritual em reuniões. Mário pega o envelope, retira seu conteúdo com cuidado e olha pausadamente, fingindo articular algum tipo de análise crítica sobre o logotipo da Kemps, impresso num papel semi-glossy meio detonado. Não conclui nada, pois sabe que não há nada para dizer de útil. – Queremos refazer tudo – diz Túlio, sem demonstrar qualquer emoção. Mudar a logomarca e repensar todas as aplicações... Um dos donos viajou para Buenos Aires ali no começo do ano e disse que teve a ideia de refazer


depois que viu algo no saguão do hotel que lembrou nossa marca no espelho e ficou pensando se não seria hora de rever sei lá o que... Enfim – é uma oportunidade e queremos contar com vocês nessa missão. – Que bom, Túlio. Confesso que me antecipei e analisei um pouco sua logo pela semana (não teve tempo, na realidade) e acho que podemos dar um novo astral pro seu negócio. Refazer toda a tipía, levantar a Pantone, pensar num lance dinâmico pra assinar cada mídia de um jeito... Dá pra fazer algo muito bom, modernizar isso aí. – Então, Mário. Mas aí é que está... Queremos piorar nossa marca. –? Em dezoito anos de mercado, Mário já viu e fez muitas vezes isso acontecer, mas nunca escutou um cliente pedir escancaradamente algo semelhante numa reunião. É um daqueles momentos em que uma única porta se abre na sua frente e justamente por isso você não sabe por onde ir. – Pois é. No começo também ficamos um pouco na dúvida, mas é isso mesmo. Queremos piorar tudo. – Túlio... Que doido isso, cara. Me explica exatamente como vocês imaginam isso acontecendo... – Pois é, relaxa. A gente sabia que você ficaria surpreso. Uma agência como a sua, os prêmios... Pensamos em vocês por conta de dois trabalhos em particular. – ... – Um é a marca que vocês fizeram para a Vox Seguradora. – Ah não. Esse cliente é da Mapan. Chamaram um designer pra refazer a letra, ficou bem diferente, um pouco sóbrio demais e... – Ah... Bom. Não importa. – Claro. – O outro é a marca nova da Antuerpy. Essa é de vocês: azul, letra moderninha, fundo cheguei... – Sim, claro! Antuerpy é nosso cliente desde 2006. Mudaram tudo conosco, uma trabalheira da p... – Pois é... Mas ficou uma merda. –? – Ficou uma merda, Mário. Mas não tem problema. – Como assim...? (surpreso)


– Pô Mário, a marca é uma merda: os efeitos, a letra, as aplicações estouradas e o movimento forçado... é muito ruim. Túlio afirma tranquilo e abre um leve sorriso: sabe o que está acontecendo. Mário ainda não, pois os sinais que recebe são confusos. Esperava um falso elogio qualquer e ainda não conseguiu classificar se o que está ouvindo é algo bom ou ruim – mas o cliente parece animado, não pode cortar o clima. Sente uma leve falta de ar e se ajeita, inutilmente, sem saber muito bem como demonstrar o que também não sabe estar sentindo. Aprendeu que NUNCA deve contrariar um cliente, muito menos um cliente EM POTENCIAL. Sabe que o projeto é mesmo ruim, mas ninguém nunca falou. Como tudo que a agência sempre fez até hoje – sem brilho ou qualidade – jamais deixou um cliente insatisfeito. Por um breve momento, questiona se há algo de errado no que faz... Para quem está trabalhando, afinal? Ia começar a falar, um tanto afoito, quando Túlio continuou: – Mário, calma cara. Sei que parece estranho, mas é isso mesmo: eu vim aqui piorar a nossa marca e conto com a sua agência pra isso. Nós dois sabemos que a marca da Antuerpy é ruim. Mas é isso que a gente quer! – ...Certo, certo. Eu só não entendi muito bem a estratégia de vocês... – Então. Esse é o ponto. Nós queremos APENAS a estratégia. A marca deve piorar! Carrega no texto de apresentação e a gente vende esse peixe lá dentro da Kemps. Mas eu preciso duma marca ruim pra acabar de vez com a frescura. – Ahh... Algo começa a fazer sentido. Mário segue tentando reestabelecer seu amor-próprio equilibrando-se desconfortavelmente na cadeira cara comprada em uma ponta de estoque. Está mais calmo. No final das contas vai fazer o que sempre fez. – Queremos mudar a marca. Essa marca Kemps é antiga, e tem essa aura de qualidade que atrapalha boa parte das ações de comunicação da empresa. A gente quer fazer co-branding, co-working, creative development, você sabe o que é? – Claro! (que não) – A gente quer fazer parceria com cigarro, anunciar em puteiro, busmídia, a porra toda! – Busmídia, lógico. – Olha pra marca... Tem cara de busmídia? Não tem cara de povão, Mário. Tem esse lance alinhado, certinho, essa letra de viado, essa Pantone cor de cortina... A gente quer poder mexer na NOSSA marca, fazer o que quiser com ela... Tinha um livro lá na sala, você precisava ver que sacanagem. Manual de não sei o que –


– De marca. Não fazemos isso aqui. – Isso!... Porra, o livro era uma piada e não deixava fazer nada com a marca. Assim que eu cheguei da Sunset cheio de tesão pra trabalhar me jogaram isso no colo e disseram: decora. Eu decorei foi a minha lixeira com ele! (gargalha alto) Mário acompanha a risada, foi treinado pra isso. – Por sorte o Arnaldo veio com essa história de Buenos Aires... Eu já estava passando a pasta, puto da cara com a falta de ousadia dos caras. – Entendo... Podemos alinhar isso tudo. – Mário, eu quero a classe C! Eu quero surfar essa onda do bolsa-ajuda, do bolsa-qualquer-merda, do minha-casa-minha-vila. A gente quer um suburbano na propaganda gastando dinheiro... geração Y, Datena, cartão de crédito sustentável... Inovação, porra! – Sim... – Então. Queremos que piore a marca! (empolgado) – Sim, sim... Achei um pouco estranho o jeito como colocou no começo, mas... entendi. Na realidade naquela marca da Antuerpy, eu estava de férias e a equipe que tocou o proj... – Não Mário, falei da Antuerpy, mas podia ser qualquer outra. O que vocês fazem aqui é BOM, porque é tudo RUIM. Queremos isso! A campanha da Antuerpy ficou muito... a marca animada no final... um toque de mestre ela brilhando! Ninguém vê alinhamento, letrinha, cor de lencinho da vovó... O sujeito vê Antuerpy brilhando e fala: UAU, me enraba. É isso! Mário não recorda a campanha, mas lembra do efeito. – Quando cansar a gente volta aqui e muda, e vira do avesso essa criança de novo. – Podemos fazer. Mas vai precisar de pesquisa. – Claro. Quanto tempo? – Dois dias. – Fechado.

maio de 2014


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