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Apresentação Paulo Freire, nossa régua e compasso. A ideia de fundar a Cia. do Tijolo surgiu do desejo de criarmos um trabalho sobre a vida e a obra do poeta Patativa do Assaré. Desse primeiro impulso criativo e de um primeiro contato com os poemas de Patativa nasceu o show “Cante Lá que eu Canto Cá”, uma espécie de sarau literário e musical. Mas não era o bastante. Na medida em que nos aprofundávamos no universo do poeta, percebíamos que o show musical não seria o suficiente para abarcar a complexidade da obra e, principalmente, não revelava ao público a singularidade da trajetória de vida desse agricultor, poeta e cantador. Qual seria a melhor forma de levar Patativa aos palcos? Era preciso que se encontrasse um ponto de vista, um ponto de partida, para podermos LER Patativa e encará-lo sem nos perdermos na infinidade de assuntos dos quais ele havia ou sem cairmos na tentação de simplesmente dramatizar sua biografia. A luz veio numa conversa com o diretor Ilo Krugli e a educadora Rita Rozeno. Falávamos sobre o fato de o Brasil possuir um dos maiores índices de analfabetismo funcional do mundo e nos assombrávamos percebendo que isso acontece no país onde o grande educador Paulo Freire desenvolvera sua pedagogia do oprimido afirmando que era preciso ler o mundo, antes de ler as palavras. A conexão se fez imediatamente em nossas cabeças :Patativa foi um homem que estudou só seis meses e desenvolveu extraordinariamente em si as possibilidades poéticas, práticas, reflexivas no manejo da língua. Qual caminho percorreu Antônio Gonçalves da Silva até alçar vôo e chegar à Patativa? Talvez as concepções de Paulo Freire sobre o conhecimento e sobre o ser humano nos desse um norte para a leitura e para a análise da obra do mestre cearense. Desse encontro surgiu o nome Cia. do Tijolo, de um exemplo freiriano. O primeiro passo no processo de alfabetização do método criado por ele é o levantamento do universo vocabular dos grupos com que se trabalha; são palavras ligadas às experiências existenciais, profissionais e políticas dos participantes dos diferentes grupos. Foi assim que em Brasília, cidade ainda em construção nos anos 60, surgiu, entre os estudantes de Paulo Freire, a palavra TIJOLO, como palavra geradora.
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Desde o início, Paulo Freire nos acompanha. Participa silenciosamente de todos os nossos trabalhos. Raiz secreta e evidente. Juntamente com Patativa, Garcia Lorca, Eduardo Galeano, Frei Betto, Dom Helder Câmara, Nise da Silveira, Ivone Gebara, Mário Benedetti, Ilo Krugli, personagens cujas vozes assumimos, Paulo Freire dá a régua e o compasso de nossas concepções éticas, políticas e estéticas. Em Ledores no Breu, solo de Dinho Lima Flor, nosso pedagogo volta falante, surge mais uma vez como inspiração. Por Rodrigo Mercadante Escrevo esse texto de apresentação na primeira semana de 2017. Esse é o meu aqui, esse é o meu agora. Reflito sobre esses 3 últimos anos, tão estranhos, perigosos e obscenamente bárbaros em nosso país... (Alguns dirão, tentando minimizar o acento trágico dessa afirmação: o mundo todo está assim!... Bem, se por um lado esse pensamento conforta, por outro piora o mal estar, sendo só meio consolo). Estávamos reestreando Ledores no Breu naquele dia 15 de Março de 2015. O teatro, sede de um importante grupo de São Paulo, a Cia. do Feijão, fica no centro de São Paulo. Na nossa porta, uma manifestação que , segundo os organizadores, contou com a presença de um milhão de participantes. Algumas imagens que circulavam na internet ficaram bastante conhecidas como marcas desse dia: alguns seguravam cartazes pedindo intervenção militar, homens e mulheres envolvidos na bandeira brasileira bradavam: “meu partido é meu país”. Outros gritavam contra a corrupção vestidos com camisetas da CBF. Mas a imagem que mais nos chamou a atenção, foi aquela que mostrava um cartaz onde se lia: Basta de doutrinação marxista, Basta de Paulo Freire! Alí começava a se revelar claramente um mecanismo que iria dar o tom da disputa de narrativas que se acirraria até nossos dias. A apropriação por um pensamento conservador de determinados termos e práticas que circulavam até então no âmbito da esquerda, sua inversão de sentido e utilização contra os próprios princípios dos quais eram origem. O maior exemplo disso foi justamente o surgimento do projeto Escola sem Partido que
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sob a aparente defesa de uma neutralidade pedagógica impossível, oculta o objetivo de privar os professores do direito de exporem suas ideias e frutos de suas pesquisas e interesses, além de inviabilizar a troca efetiva, honesta e legítima com os alunos. Pretender ligar o pensamento de Paulo Freire a práticas doutrinárias demonstra uma profunda ignorância em relação ao conteúdo de sua obra e é, acima de tudo e na maioria dos casos, exemplo de brutal má fé. Paulo Freire é fundamentalmente um pensador que estrutura sua pedagogia como forma de desenvolver a autonomia dos alunos, tratados já, a priori, como consciências que leem o mundo, operam no mundo e devem ser ouvidas com afeto, atenção e respeito. Seu pensamento é essencialmente a resistência a doutrinações de qualquer espécie. Paulo Freire, como sintetiza Marilena Chauí, “transforma um conjunto de ideias numa práxis efetiva. Transforma a educação numa ação social, cultural e política. A escola pensada e praticada por ele seria uma escola de transformação cotidiana de alunos e professores.” Uma iteração contínua entre consciências em que todos os envolvidos no processo estão juntos na experiência de aprendizagem tornando- se assim sujeitos de sua própria história. Na Sexta Feira recomeçaremos a encenar Ledores no Breu. Nosso desejo, a cada noite, é realizar um espetáculo Freiriano. Não o teatro das grandes utopias, mas o teatro circular das comunidades de base; não o teatro da verdade imposta a uma plateia silenciosa, mas um teatro que, assim como na prática consciente dos bons professores, deixa evidente suas opções políticas, éticas e estéticas libertando o público para dizer e pensar o que quiser. O teatro da construção coletiva e cotidiana de uma vida menos opressora, menos desigual, menos triste. Por Dinho Lima Flor Uma vez, eu ouvi de um colega, minutos antes de entrar no palco: A gente faz teatro é para os amigos. Dali a pouco, entrei e vi um bocado deles. Recebi de seus olhos uma causa afetiva que me serviu de farol no percurso daquela noite dos Ledores. A partir dessa frase, tive uma compreensão mais abrangente do que é a amizade. Tê-la é um abraço de causas coletivas, de sonhar juntos quando se está perto e se está longe, de poder falar de utopia, luta e esperança
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a toda hora, sem achar que são temas velhos, porque são temas de um poeta atemporal, que diz: O futuro é um coração antigo. Os amigos que andam nesse percurso e que fazem de seu ofício-militância-arte-teatro uma ágora de reuniões e manifestações, espaços épicos, celebrações pagãs, mostrando a contramão da história, são amigos que olham para você, para o seu trabalho e querem estar junto, querem encontros, querem festa e querem teatro. Por eles é que daqui a pouco eu entro aqui neste palco - com sala cheia ou menos cheia - e olho para os seus olhos de verdade. Por mais que pareça que eu estou com confiança demais, logo na primeira cena, por dentro, estou tremendo. Sabe por quê? Porque trago no meu matulão, essa espécie de bolsa onde carrego minhas provisões: Paulo Freire, Zé da Luz, Frei Betto, Cartola, Chico César, Ana Maria Carvalho, Patativa, Ledo Ivo, Luís Fernando Veríssimo e tantos outros grandes. Por eles, e principalmente pelos amigos, eu continuo sim, no respeito mútuo com quem veio me ver, nos assistir, torcendo para que, antes da pizza, haja discussão; para que, antes do aplaudir , haja um efeito; para que, antes da indiferença, haja uma agonia. E por eles eu digo que não temos que dar moleza para a plateia. Se ela sai de casa, pega carro táxi, ônibus, metrô, trem ou vem a pé, precisa que esse esforço seja honrado, não pode ser brincadeira oca. Não se pode brincar com a cara das pessoas. Cadê a conquista? Antes de mais nada, o público (eu, nós) precisa de assunto poético e político, ato de transgressão, energia de mão dupla, encontro de pessoas que estão neste planeta desgovernado e que precisam se juntar para conversar. E para conversar, ofereço Ledores no Breu a vocês que vieram nos assistir. Agradeço aos amigos, que como numa colcha de retalhos, deixaram seu pedaço por aqui. Eles são da Cia do Tijolo, do Ventoforte, do Redimunho, da Cia do Feijão, do Engenho Teatral, Sobrevento e de tantos outros que, quando precisamos de lugares de ensaios, discussões e afetos, sempre em suas casas oferecem um pedacinho de chão, um quartinho ou mesmo o teatro inteiro. Um abraço também aos amigos de Recife, Zé Manoel e Breno, que abriram a primeira janela para o Ledores olhar o mundo. E ao mais que amigo e diretor Rodrigo Mercadante. E os outros companheiros que vivem nessa jornada comigo: Thiago Clara França, Cida Lima, Artur Mattar, Alécio Cézar, Fábio Viana e, finalmente, aos novos amigos que me acompanharão nessa temporada.
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TEXTOS DO ESPETÁCULO Por Frei Betto Qual a palavra que, quando dita, quando lida, quando escrita, será capaz de reinventar o mundo? NINA, A PALAVRA EU INAUGURA UM MUNDO. ...Dentro da palavra, existem muitas palavras. Varal, lapa, ara vala, para e PA, instrumento de remover terra; PA, sigla do estado do Pará; e Pã, divindade pastoril. Pala é leque e encerra ao menos quinze significados: peça de boné militar, cartão para cobrir cálice de missa, parte do vestuário e do sapato etc. Lavra é área de mineração, LA, símbolo do lantânio, VA, de volt-ampere, e VÃ, o que nenhuma palavra é em si, ao menos que equivocadamente pronunciada. Palavra se faz com uma só vogal, a primeira letra do alfabeto, e mais quatro consoantes. Há muitas palavras - a de Deus, a de honra, a do Rei que não volta atrás, e a que se dá para firmar um compromisso ou promessa. Palavra contém ala, que tem a ver com fila, ou parte de uma construção, e também ar, sem o qual não se pode respirar, também sentidos, significados, conceitos. Palavra tem mais valor quando entremeada de silêncios. Derramada assim, de boca aberta, esvai-se. Comprida nas ânsias, é pura angústia, faz mal. De bom é o que não se fala entre uma palavra e outra. E vem ai a palavra inaugurando o mundo. Mas as palavras pesam. Talvez porque seja a mais genuína invenção humana. Os papagaios não falam, apenas repetem. Não escapam de seus limites atávicos. O olho é a fonte da visão, como o ouvido da audição. A língua facilita à deglutição, como a traquéia, a respiração. No entanto a ânsia de expressar-se levou o ser humano a conjugar mente e boca, órgão da respiração e da deglutição, para proferir palavras. “No princípio era verbo”, reza o prólogo do evangelho de João. Deus é palavra e, em Jesus, ela se faz carne. A palavra fere, machuca, dói. Dita no calor aquecido por mágoas ou ira, penetra como flecha envenenada. A palavra salva... NINA. É brisa suave a reativar energias. Essa força ressurrecional da palavra é tão miraculosa que, por vezes, a tememos. Orgulhosos, sonegamos afeto, avarentos, engolimos a expressão de ternura; mesquinhos, calamos o júbilo, como se deflagrar vida merecesse um alto preço que o outro, a nosso parco juízo, não é capaz de pagar. Assim, fazemos da palavra, que é gratuita, mercadoria pesada balança. Vivemos cercados de palavras vãs, condenados a incivilização que teme o silêncio. Fala-se muito para se dizer bem pouco. Jornais, revistas, TV, telefones outdoors, e-mails, sites, facebook, estagran, zap zap, twiter, self, pau de self, ai pede, ai pode. – há demasiado palavrório e não se dá valor ao que se abusa. O silêncio não é o contrário da palavra. É a matriz. Talhada pelo o silêncio, mais significado ela possui. Vazio é a palavra mais bonita que existe porque não tem nada, fome a mais feia cheia de nossas maldades. Silêncio, vazio, nonada.
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Confissão de Caboclo Pelo Poeta Zé da Luz Seu doutô sou criminoso, sou criminoso de morte, tô aqui pra me entregá. Vosmicê fique sabendo, quando a muié traz a sorte de atraiçoá o isposo, só presta pra se matá. Nunca pensei seu doutor que a mão negra do destino, merguaisse as minhas mãos nos sangue dos assassinos. Li peço um grande favo antes de vossa mercê, me butá daqui pra fora: É a licença do douto pra eu li contá minha istóra. Sinhô, doutô delegado, digo a vossa sinhuria qui inté ontem fui casado, com a muié que em vida se chamou Rosa Maria. Faz dez meses que se gostemos, faz oito que fumo noivo, faz sete que se casemos. Nós casemos e nós vivia como pobre, é verdade, mas a gente se sentia rico de felicidade. Pras banda que nós morava, no lugar Chão – da – Cutia, morava também um cabra chamado Chico Faria. Esse cabra antigamente tinha gostado de Rosa, chegaram inté a ser noivo. Mas não fizeram a introsa do casamento, pru mode Mané Uréia de Bode que era padrinho de Maria tê desmanchado essa prosa. Entonce, Chico Faria, adispois qui nós casamos, em conversa as vez dizia que um dia me dava fim pra se casar com Maria. Dessas coisas eu sabia, mas nunca dei importança. Tinha toda confiança na muié qui eu tanto amava ou mais mió adorava com toda minha sustança. Depois disso, o meu rijume era vivê trabaiano sem da muié tê ciúme. A muié, pru sua vez, nunca me deu cabimento, deu pensá que ela fizesse um dia um farcejamento. Mas seu doutô tome tento no resto da minha istóra, que o ruim chegou agora. Se não me falta a memória, Já faz assim uns três mês, que o cabra Chico Faria, todo prosa, todo ancho, quage sempre, mais das vez, avisitava o meu rancho. Por ali desconfiado, Como quem quer e num quer, eu fui vendo qui o marvado tentava minha muié. Ou tentação ou engano, eu fui vendo a coisa feia, por derradeiro eu já tava com mosca detrás da uréia. Os tempo foram passando e o meu receio cada vez ia omentando. Seu doutô, vá iscutando! Ontem já de tardezinha, meu cumpade Quinca Arruda, me chamô pra nós dançá, Num samba lá na Varginha, Na casa de Mestre Duda. Mestre Duda é um cabôco, Um tocadô de premêra, É o imboladô de coco Mais bom daquela ribêra. Entonce, Rosa Maria, sempre gostou de sambá. Mais porém, discunfiada,
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Me dixe já de noitinha qui pru samba ela num ia, qui tava muito infadada, precisava se deitá. Eu fiquei discunfiado Com a preposta da muié. Dispois qui tomei café, Quage puro, sem mistura, cum a faca na cintura, fui pru samba , fui sambá. Cheguei no samba, doutô, repare agora o senhor, quem era que tava lá? O cabra Chico Faria, Que quando foi mi avistando, foi logo me preguntando: Cadê Sá Dona Maria, num veio não, pra dançá? Não sinhô, ficou in casa, pru caboco arrispondi. Sintí entonce uma brasa, queimando meu coração. Nunca mais pude tirar, as palavra desse cabra da minha imaginação. Perdi o gosto da festa e não pude dançá não. O cabra, pru sua vez, não dançava, seu doutô, de vez in quando me olhava, Com o olhar de um traído. Meia noite, mais ou menos, se adispidindo dos povo, disse: - Adeus, que eu já vou. Quando ele se arritirou, Eu tombém me arritirei, atrás dele, sim sinhô. Ele na frente, eu atrás, se o cabra andava depressa, eu andava muito mais. Noite iscura cumo breu! Nem eu avistava o cabra, nem o cabra via eu. Sempre andando sempre andando, ele na frente eu atrás, já nem se escutava mais a voz do fole tocando na casa do mestre Duda. A noite tava mais preta que a consciência de Judas. Sempre andando sempre andando, eu fui vendo seu dotô que o malvado ia tomando, direção de minha casa, minha casa sim sinhô. Já bem pertinho do terreiro eu me escondi pro detrás de um pé de trapiazeiro. Abaixadinho escondido, prendi a respiração, abri os olhos e os ouvidos, pra mió ver e uvi, quá era sua intenção. Seu dotô repare bem, o cabra oiando pra trás, do mesmo jeito que faz o ladrão pra ver alguém. Não tendo visto ninguém na minha porta bateu. De lá dentro uma voz, bem baixinho arrespondeu. Ele entoce cá de fora quem tá batendo sou eu. De repente abriu-se a porta. Ai seu dotô nessa hora, a esperança tava morta, tava morto meu amor. No escuro uma voz falou: taqui seu chico uma carta que a tempo tinha escrevido pra mandar pra vóis micê. Pro favor não leia agora, vá simbora, vá simbora que quando chegar em casa, tem muito tempo pra ler... Quando minhas oiça uviu, as palavra que Maria Dizia pru desgraçado, Eu fiquei amalucado, Fiquei quage cumo um louco, ou mió, cumo um cabôco quando tá cheio de isprito. Dum sarto cumo um cabrito eu tava nos pés do cabra, e sem querer dei um grito: Miseráve! E arrastei minha faca da cintura. Eu vi naquela hora doutô, o Chico Faria na bêra da serputura. Mas o cabra teve sorte, sempre nessas circunstança, os hôme foge da morte. Correu o cabra doutor tão vexado que deixou a carta cair no chão.
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Dei de garra do papé, O portadô da traição, machuquei nas minhas mão, A honra, doutô, a honra, Daquela farsa muié. Depois oiando pra carta, tive pena, pode crê, De não tê prindido a lê nas letra ali escrivida, O que dizia Maria, pro marvado traídô. Tive pena, sim sinhô, mas que haverá de fazê, se nunca prindí a lê? Maria me atraiçuou, Essa muié qui um dia, jueiada nos pé do artá, Jurou em nome de Deus, que enquanto tivesse vida, havera de mi honrá e mi amá cum todo amô. Cum perdão de seu doutô, Quando vi o miseráve, na iscuridão da noite, dos meu zóio se iscondê, sem dexá nem sombra inté. Entrei pra dentro de casa pra me vingá da muié. Doutô, qui hora minguada. Maria tava ajueiada, Chorando cum as mão posta, Cuma quem faz oração... Oiando pra eu pidia, pelo Calice, pela ósta, pelo amô qui eu li amava, qui eu num fizesse isso não. Eu tava seu dotor, cego de raiva, cego de paixão. Sem dizê uma palavra, agarrei das suas mãos, levantei ela pra riba e interrei inté o cabo, O ferro da parnahyba pru riba do coração. Sarvei a honra, doutô, sarvei a honra, apois não. Dispois qui vi Maria cair sem vida no chão, vim falá cum vosmicê, vim cunfessá o meu crime e mi intregá a prisão. Se seu doutô num credita, se sou criminoso ou não, tá qui a faca assassina, e o sangue nas minha mão. Cumo prova da traição, tá qui a carta, douto, li peço um grande favor, antes de vossa senhoria me mandá lá pras prisão, me leia aqui essa carta pr’eu sabê como Maria, preparava a traição. Seu Xico Xã da Cutia. Digo a vossa sinhuria, qui só li faço essa carta, pro sinhô fica sabendo, qui eu não sou muié qui o sinhô tá intendendo. Se o sinhô continua cum seus dibique atrevido, o jeito que tem é contá tudo, tudo à meu marido. O sinhô fique sabendo, qui cum seu descaramento, não faz nunca eu quebra o sagrado juramento que eu jurei nos pé do artá, no dia do casamento. Se o sinhô é inxirido, incontrou uma muié forte. O nome do meu marido, eu honro inté minha morte. Sou de vossa sinhuria, sua criada Maria. Doutô, doutô me arresponda, O qui é qui eu tô ouvindo. Vosmicê leu a carta, não leu, Ou tá... tá me iludindo? Doutô, meu Deus, doutô, Maria tava inucente... Mi arresponda, pru favô. Matei Maria inucente... Pruquê, seu doutô, pruquê?
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Matei Maria somente, Pruquê num prindi a lê, infeliz de quem não lê uma carta de abc. Mangine agora o doutô, quanto é grande o meu sofrê. Sou duas vez criminoso. Que castigo seu doutor, que miséria, que horrô! Que crime não saber lê.
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Provocação por Luis Fernando Verissimo A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão. A segunda provocação foi à alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso. Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz. Foram lhe provocando por toda a vida. Não pode ir à escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme. Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava. Estavam lhe provocando. Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava. Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma. Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou. Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: - Violência, não!
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Joaquim Por Paulo Freire Seu nome era Joaquim, quando eu o conheci tinha aproximadamente 50 anos. Foi aqui nessa sala que Joaquim se levantou um dia durante o processo de alfabetização, foi ao quadro, ao quadro negro; apanhou o gis e escreveu sua primeira palavra, a palavra NINA e quando acabou de escrever Nina, ele deu uma gargalhada nervosa que quase não terminava. Era como se tivesse sacudindo pra fora uma pedra de cima dos ombros, que há séculos repousava nele. Sai pedra, eu embarco sozinho, é o fim do caminho. Eu percebi nos olhos dele, na cara dele, nos beiços dele, uma espécie de alivio centenário, percebi o gosto pra briga, o gosto pra lutar pra sair de dentro do labirinto. E eu disse: Joaquim que passa que há contigo? Ele riu, olhou pra mim e disse: Puxa, professor Paulo Freire, Nina é o nome de minha mulher.
Por Dinho Lima Flor Essa história que se escreve que vem do macaco até o homem é feita de muito sangue manchando a terra, muito traço traçado nas paredes das cavernas, nas pedras letradas dos índios. Cada palavra dita, cada palavra escrita, cada pedaço dessa história é uma provocação. Cada passo desletrado é passo sem destino, chicoteando o lombo dos meninos e das meninas pobres com o bico agudo das canetas bic. O zoom analfabeto, analfabeto bruto carvão, gente riscado dos cadernos, gente corroída no escuro. Meu Deus apesar de tudo essa gente ainda brinca nas periferias, nos quintais e terreiros cutucando a esperança.
Cena da Maria Sebastiana Viúva Narrador – Abre a porta Maria, abre que eu aprendi uma coisa e quero te mostrar. “Convidei a comadre Sebastiana Pra cantar e xaxar na Paraíba. Ela veio com uma dança diferente E pulava que só uma guariba [2x] E gritava A, E, I, O, U. A E I O U, São as vogais, Maria que a gente aprendeu. Maria Sebastiana Viúva e nenhuma de suas treze irmãs conheciam as letras traçadas no papel. Seu pai, pai de homem nenhum, pai de de 14 meninas, decidiu que nenhuma delas iria pra escola aprender o alfabeto. Isso porque não teve nenhum filho homem com braços fortes para machucar a terra, para agriculturar a terra. A, E, I, O, U... Maria tinha uma amiga que ia pra escola e um dia pediu pra sua amiga Yaiá ensinar uma lição.
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Maria – (música) Eu não seu lê yaia, é só você me emprestar sua cartilha que eu também quero aprender. Yayá – Tá bom Maria, eu já sei a família das letras, então bóra, pega o lápis? Maria – Lápis? eu não tenho lápis. Yaiá – Se não tem lápis, escreve com uma tabica. Agora pega o caderno. Maria – Caderno, eu também não tenho. Yaiá – mulher, como estás pobre, não tem caderno nem lápis, então pega a madeira e escreve no chão (pega o carvão), Maria começando: caderno terra, lápis na mão, primeira lição: a, e, i, o, u. agora a palavra Maria que é PARAIBA. Maria – O que é Paraíba? Yaiá – Paraíba Maria é o estado aonde a gente está pisando, aonde a gente nasceu e faz parte de uma país chamado Brasil. Yaiá – Agora é você, começa com a direita. Maria – Eu sou esquerda Yaiá. Yaiá – Começa Maria. Maria – Yaiá que vergonha começar. A, E, I, O, U – P A R A I B A, masculina, mulher macho sim senhor. BRASIL, meu Brasil brasileiro... O primeiro lápis de Maria foi uma tabica, uma madeira magra ferindo o chão para extrair letras e sentidos, o caderno de Maria foi o caderno terra para mais tarde cutucar a pátria. Maria foi figura forte nas comunidades eclesiais de Base e um dia perguntaram a ela: Dona Maria, o que é comunismo pra senhora? Maria – Comunismo pra mim é o comum comigo, comum contigo, comum com nós todos. Quem perguntou – Dona Maria a senhora é comunista? Maria – Se for assim, eu sou comunista até a morte. Escreve aí, se é assim eu sou. Assinado, Maria Viúva! MÚSICA DE JACKSON DO PANDEIRO Eu não sei ler, iaiá. É só você me emprestar tua cartilha Que eu também quero aprender. É um A é um B, é um C É um C, é um B e é um A. A cartilha que ensinou a você. Também pode me ensinar. Eu também quero aprender. Escrever, ler e somar. Subtrair e dividir. Fazer conta de somar. Não quero diminuir. O bom é só multiplicar. Narrador – Não ler, dói. Mas ler e não entender a sentença dói muito mais. Doloroso crime em dobro.
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Os pobres na estação rodoviária Por Ledo Ivo Os pobres viajam. Na estação rodoviária eles alteiam os pescoços como gansos para olhar os letreiros dos ônibus. E seus olhares são de quem teme perder alguma coisa: a mala que guarda um rádio de pilha e um casaco que tem a cor do frio num dia sem sonhos, o sanduíche de mortadela no fundo da sacola, e o sol de subúrbio e poeira além dos viadutos. Entre o rumor dos alto-falantes e o arquejo dos ônibus, eles temem perder a própria viagem escondida na névoa dos horários. Os que dormitam nos bancos acordam assustados, embora os pesadelos sejam um privilégio dos que abastecem os ouvidos e o tédio dos psicanalistas em consultórios assépticos como o algodão que tapa o nariz dos mortos. Nas filas os pobres assumem um ar grave que une temor, impaciência e submissão. Como os pobres são grotescos! E como os seus odores nos incomodam mesmo à distância! E não têm a noção das conveniências, não sabem portar-se em público. O dedo sujo de nicotina esfrega o olho irritado que do sonho reteve apenas a remela. Do seio caído e túrgido um filete de leite escorre para a pequena boca habituada ao choro. Na plataforma eles vão o vêm, saltam e seguram malas e embrulhos, fazem perguntas descabidas nos guichês, sussurram palavras misteriosas e contemplam os capas das revistas com o ar espantado de quem não sabe o caminho do salão da vida. Por que esse ir e vir? E essas roupas espalhafatosas, esses amarelos de azeite de dendê que doem na vista delicada do viajante obrigado a suportar tantos cheiros incômodos, e esses vermelhos contundentes de feira e mafuá? Os pobres não sabem viajar nem sabem vestir-se. Tampouco sabem morar: não têm noção do conforto embora alguns deles possuam até televisão. Na verdade os pobres não sabem nem morrer. (Têm quase sempre uma morte feia e deselegante.) E em qualquer lugar do mundo eles incomodam, viajantes importunos que ocupam os nossos lugares, mesmo quando estamos sentados e eles viajam de pé.
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Por Rodrigo Mercadante Aquele náufrago incapaz de entender o mapa de estrelas que indica o caminho de volta pra casa, ou o homem perdido que não sabe ler o destino nas linhas traçadas no céu, o pai do inconsciente confessando não saber ler o que deseja uma mulher, expectador atônito diante da metáfora intransponível do poeta. Imigrante vagando em terra de língua estrangeira ou nos labirintos das grandes cidades, doente perdido diante das bulas de remédio, ou das conversas de um doutor que sabe de sua vida e de sua morte, um pequeno planeta vagando à deriva sem saber de si. Tantos analfabetismos, tantos! Tantos, tantos analfabetismos. Analfabetismo funcional, analfabetismo político, e porque não falar em analfabetismos éticos, estéticos e afetivos... INTELIGIVEIS. Mas há aquele mais prosaico, cruel, palpável: o analfabetismo completo do homem vagando num LABIRINTO de sinais da grande cidade, incapacitado por um defeito social, vítima de uma tortura diária no seu ir e vir constantemente proibido. CHORA-SE PORQUE VIVENCIA NAQUELE INSTANTE ALI, o deslugarlugar nenhum, a deshora. QUASE NINGUÉM PERCEBE ESSA TORTURA DIÁRIA, mas é uma tortura constante, diária o ALFABETISMO. É UMA TORTURA DIÁRIA DA MAIS ALTA GRAVIDADE.
Texto Lei da Gravidade Por Dinho Lima Flor Narrador – Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, já querendo me preparar pra dormir, quando escuto os cascos dos cavalos, vindo em direção da minha casa, minha casa sim senhor. Espiando pelo o buraco da fechadura, percebi que o assunto a ser tratado era sério, diante da cara amarrada do prefeito que vinha montado no cavalo da frente. Na chegança do tropel, o prefeito foi o primeiro que apeou, depois o filho dele e mais uns dez lambe botas. E sabendo que eu estava ali o prefeito foi logo me chamando: - Ô Zé carne de cu, abre aí que eu quero falar com tu? Eu tinha um ódio desse apelido, mas o que eu ia fazer, se era o prefeito que estava me chamando de Zé carne de cu, eu dá-lhe um tiro? Já tô indo seu prefeito, me dê um minutinho. O minutinho passou, abri a porta de baixo, depois a de cima, ele entrou e foi logo dizendo porque veio até minha casa. Dizia que não agüentava mais o atraso das águas na cidade e que queria levar água encanada para o povo e como eu era funcionário do esgoto, quer dizer da empresa que cuida do esgoto, das águas e do saneamento; ele queria saber de mim se o poço da cidade era capaz de suportar o evento da encanação, e se eu articulasse essa história com os homens da capital com contrato e tudo, eu podia ser o candidato a prefeito com apoio irrestrito dele: Eu Gosto, gosto, gosto. No outro dia fomos fazer a visitação do poço para saber se o mesmo tinha capacidade para suportar o evento da encanação. Senhor prefeito isso aqui
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não é poço de nada não, isso aqui é uma cova de mijo, isso aqui vai dá em crise hídrica. O problema desse poço senhor prefeito é a lei da gravidade. GRAVIDADE É, grave idade, gravida idade? É senhor prefeito é a lei da gravidade. Gravidade foi o olho que ele estufou para mim, montou no cavalo e desembestou até a casa do presidente da câmara o Durval do Bode. Prefeito – Olhe Bode, parece que não vamos conseguir levar água encanada pro povo não, porque tem uma lei nojenta chamada lei da gravidade que proíbe a condução das águas para as torneiras. Faça o seguinte Bode, reúna hoje todos os vereadores e derrube com essa lei, porque uma lei derruba a outra. Bode – É óbito senhor prefeito, é óbito que a gente vai derrubá-la. Nossa administração aqui na câmara municipal é inspirada em Eduardo Cunha. Olhe seu prefeito, se tem uma lei severa, nós cria outra mais dura pra acabar com a severa. Ói no Brasil já teve um AI1, AI2, AI3, AI4, AI5, nós cria o AI6 do município. Narrador – Pois os vereadores se reuniram pra votar a lei da gravidade e teve um veredito, e o bode foi levar o resultado ao prefeito. Prefeito – Como é Bode, derrubo-la? Bode – Não seu Prefeito, nós descobriu que a tal lei da gravidade é uma lei federal e nós é município.
Por Patativa do Assaré Aquelas aves, coitadas! Com suas pernas quebradas por minhas cruéis baladas perdiam até seus ninhos. Estas causas recordando, eu fico triste pensando que agora é que estou pagando, as pernas dos passarinhos. Isso a gente matava quase que não era com tanta precisão de comer aquela carne, e sim pela curiosidade, aquele prazer de matar, que é até uma crueldade, mas a gente mesmo não pensa naquilo, não é? Quer saber se é um cabra danado, viu? E mata, mocó, asa branca, jacú, juriti e cotia e outras das águas, que nos invernos apareciam na beira das lagoas.... Galinha d´água, mergulhão, pato do peito branco, patola e paturi. Mas depois foi que eu comecei a criar pena, veio aquele pensamento de que aquilo era mesmo uma crueldade. Comecei a criar pena e pena, coisa de pássaro. Sabe como foi? Vou lhe contar como foi, viu? Eu passei minha infância em grande pobreza, mas uma infância alegre e cheia de beleza. É que eu tinha oito anos e nem era alfabetizado ainda, e foi que eu ouvi uma mulher ler pela primeira vez um folheto de cordel.... Coisa que eu nunca tinha assistido, então eu fiquei maravilhado com aquilo, com aquela linguagem tão bonita. Aquelas rimas, aquela beleza de expressão. Tudo aquilo me deixou tão encantado, que eu soube que poderia reproduzir tudo aquilo lá. Dalí continuei sempre procurando quem tinha cordel para ler para mim. E depois que eu fui alfabetizado, tudo melhorou. Depois da leitura do cordel pela a mulher, passei de matador a imitador de passarinho. Cada um com sua voz, com sua canção diferente, tudo aquilo gravado e guardado em mim.
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Ficha técnica Atuação: Dinho Lima Flor Direção: Rodrigo Mercadante Assistente de Direção: Thiago França Pesquisa de Luz: Milton Morales e Cia do Tijolo Trabalho Corporal: Joana Levi Dramaturgia e Cenário: Dinho L. F. e Rodrigo M. Figurino: Dinho Lima Flor e Karen Menatti Música composta: Jonathan Silva Contra-regra: Cida Lima Identidade Visual: Fábio Viana Fotografia: Alécio César Produção: Cia do Tijolo
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