O universal e o local na trajetória de Giancarlo de Carlo

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O universal e o local na trajetória de Giancarlo de Carlo

Fabiane Regina Savino Orientadora | Prof.ª Nilce Cristina Aravecchia Botas

Trabalho Final de Graduação | 2015 Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo



agradecimentos

Agradeço primeiramente à professora Nilce, pela sua gentileza em aceitar me orientar e por toda sua dedicação, empenho e paciência. Ao professor Faggin, quem me sugeriu estudar Giancarlo de Carlo. À Gabi, amiga de outras vidas, que sempre esteve ao meu lado e tanto me ajudou na realização desse trabalho, e ao Gui, pelas suas revisões, conversas e por sempre estar disposto a me ajudar. Por último, mas não menos importante, agradeço aos meus pais, Janete e Giovanni, e às minhas irmãs, Fernanda e Giovanna, pelo amor, apoio e incentivo que sempre me deram.



“L’architettura è troppo importante per essere lasciata agli architetti.” Giancarlo de Carlo



sumário 11

Introdução

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Parte 1 | A trajetória pessoal: Giancarlo de Carlo

33

Parte 2 | O universal: CIAM

49

Parte 3 | O local: Plano Ina-Casa

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Considerações Finais

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Bibliografia



introdução

introdução

Este trabalho partiu de uma intenção de aprofundar o estudo sobre o movimento moderno no âmbito da arquitetura. A historiografia corrente construída em torno deste assunto tendeu a legitimar os CIAM, Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, como o lócus preferencial da discussão sobre o papel social da arquitetura e sua relação com novas manifestações estéticas na primeira metade do século XX. Nos CIAM que foram criados no 11


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final da década de 1920 e ocorreram até a metade da década de 1950, eram discutidas questões inerentes à arquitetura, ao urbanismo e à figura do arquiteto, no desejo explícito de formular uma vanguarda arquitetônica independente do academicismo vigente. Os conflitos surgidos das distintas posições acerca das temáticas debatidas, que se acirraram ao longo da década de 1950 e que acabariam na dissolução dos Congressos, tem sido objeto da historiografia mais recentemente, e ainda receberam poucas reflexões em comparação às narrativas dedicadas aos seus anos gloriosos. Entende-se que é de imenso valor o legado intelectual deixado por este movimento, e de igual valor são as questões que surgiram para modificálo, inicialmente suscitadas por um grupo de arquitetos de uma geração mais nova, que participaram dos últimos Congressos e ficaram conhecidos como 12

Team X. Dentre eles, o italiano Giancarlo de Carlo ganha um enfoque maior neste trabalho, pela sua interessante trajetória que se inscreve entre a consolidação do movimento moderno a partir do CIAM e no início do questionamento da hegemonia desse movimento no âmbito do campo disciplinar. Além disso, a obra desse arquiteto, incluindo sua reflexão teórica, sua atuação política e sua realização profissional, é paradigmática para refletir sobre os argumentos universalizantes da arquitetura moderna e os limites culturais desenhados pela história de um lugar tão denso de significados como seu país de origem: a Itália. Giancarlo nasceu em 1919 na cidade de Gênova e viveu 86 anos. Para o objetivo deste trabalho, que é entender a relação entre as propostas universalizantes do movimento moderno e os limites e possibilidades de sua adequação ao território italiano, adotou-


introdução

se um recorte temporal na trajetória do arquiteto, em que as tensões advindas dessa problemática mais se explicitam. O ano de 1949 é especificamente importante por marcar o término da sua formação acadêmica como arquiteto pelo Istituto Universitario di Architettura di Veneza, além de coincidir com a criação da lei n° 43 de 28 de fevereiro de 1949 para a construção de habitação social para operários no contexto da reconstrução do pós Segunda Guerra Mundial, conhecida como Plano INACasa. O arquiteto recém-formado atuou no âmbito do Plano ao contribuir com onze de seus quinze primeiros projetos. Além disso, ele elaborou importantes projetos habitacionais segundo princípios por ele defendidos, como a ideia de projeto participativo e a leitura do contexto urbano, caros ao desenvolvimento de suas propostas. Sua teoria tornou-se prática em projetos como o complexo de habitação popular

e comércio de Matera (1956) e as casas para os trabalhadores Matteotti, em Terni (1970-75). Portanto, o recorte temporal selecionado para um estudo mais detalhado vai de 1949 a 1970. Este trabalho divide-se em três partes. A primeira trata especialmente do arquiteto e da sua trajetória pessoal, ao longo da qual se percebe sua ligação com o movimento moderno e sua participação na lei italiana em questão, além da sua atuação em outros setores da disciplina. Uma aproximação aos CIAM e o movimento moderno se dá na segunda parte, em que são descritas as realizações e os documentos importantes, bem como a estrutura da organização e alguns de seus membros mais importantes, até chegar aos conflitos que provocaram a dissolução dos Congressos. A terceira parte é dedicada ao estudo do Plano INACasa, o envolvimento do arquiteto no programa e a sua prática participativa 13


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na elaboração e construção do projeto, delineando mais especificamente os acontecimentos dentro do período escolhido da trajetória do arquiteto. Não se pretende aqui retomar a discussão integral de temáticas que já foram amplamente abordadas, e para as quais já foram dedicados livros inteiros, como as glórias e os desdobramentos do movimento moderno na arquitetura. O objetivo é contribuir para as discussões acerca dos conflitos no interior do movimento moderno entre 1949 e 1970, a partir de um recorte bem específico, buscando identificar na trajetória do arquiteto, elementos que foram fundamentais para a transformação do campo disciplinar a partir de então. O foco do trabalho é principalmente buscar a conexão entre os assuntos, identificando os pontos dissonantes e os que os aproxima.

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a trajetória pessoal: Giancarlo de Carlo

a trajetória pessoal: Giancarlo de Carlo

Imagem 1 Giancarlo de Carlo.

“Os anos 40 para De Carlo coincidiram com o período da sua formação superior. Na conjuntura dramática da primeira metade da década, tal percurso, todavia não se reduziu apenas ao currículo acadêmico, fundindose inseparavelmente com os eventos da guerra, a experiência da Resistência e o compromisso político na recuperação do pósguerra; tudo isso sobre o pano de fundo do vínculo com alguns 17


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circuitos intelectuais ativos da cena cultural milanesa daqueles anos.” (SAMASSA, 2014).

Giancarlo de Carlo nasceu na cidade de Genova, na Itália, no dia 12 de dezembro de 1919. Cursou Engenharia Industrial na Politécnica de Milão de 1939 a 42, iniciando pouco tempo depois o curso de Arquitetura. A década de 40 foi muito delicada para a Itália e para o mundo todo por conta da Segunda Guerra Mundial, que perdurou de 1939 a 1945. Além dos estudos acadêmicos, De Carlo tinha uma vida política ativa: simpatizante à Resistência italiana (movimento político anti-facista e antinazista), adere ao MUP (Movimento de Unidade Proletária) e entra em contato com arquitetos importantes como Franco Albini e Giuseppe Pagano¹ . Sem dúvidas, esses encontros tiveram um papel decisivo na orientação dos seus 18

interesses em arquitetura no geral, principalmente na cultura arquitetônica do movimento moderno. Apesar de ter iniciado o curso de arquitetura somente em 43, desde que estudava engenharia já tinha certo interesse pela profissão de arquiteto, e até seguiu algumas aulas como ouvinte. Iniciou seus estudos também no Politécnico de Milão, mas foi convocado a servir no exército italiano e ainda entre 1947 e 48 interrompeu os estudos por razões financeiras, praticamente aprendendo o ofício ao trabalhar com projetos arquitetônicos e urbanísticos no estúdio de Franco Albini. O momento era propício à profissão: na segunda metade de 48, a discussão sobre políticas de habitação no contexto da reconstrução e recuperação econômica nacional se colocava em primeiro plano. Neste mesmo ano De Carlo retoma os estudos e pede transferência para a IUAV (Istituto Universitario di Architettura

1. Franco Albini (1905-1977) e Giuseppe Pagano (1896-1945) foram importantes figuras do Racionalismo italiano.


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2. Segundo Jean Louis Cohen o entendimento da arquitetura no mundo contemporâneo deve ir muito além das construções representativas, considerando as novas funções, as respostas a demandas sociais cada vez mais diversificadas, a produção teórica, a interface com a arte e o design, etc. COHEN, J. 2013, p.10-17.

di Veneza) onde, após uma intensa série de exames, consegue terminar formalmente seu percurso de formação acadêmica em 1949. É também importante ressaltar sua aproximação com Carlo Doglio (1915-1995) nos anos da Resistência, sendo este um arquiteto, urbanista e professor universitário que traduziu para o italiano, importantes obras como o livro The Culture of the Cities, de Lewis Mumford, além de outros. Foi através dele que Giancarlo foi introduzido ao pensamento anárquico e com ele participou de eventos libertários, como o encontro de Canossa, na Puglia em 1948 (SAMASSA, 2014). Na ocasião, Giancarlo apresenta um texto que escreveu sobre o problema da casa, indicando que esta questão coincidia com o problema da cidade no geral. Logo, a solução estava no plano urbanístico, que deveria ser concebido coletivamente, uma vez

que era de interesse de todos, e, mais que resolver problemas de transporte e tráfego, deveria questionar os reais problemas da região, da cidade e da casa (ibid.). Percebe-se pelo seu discurso que ele defendia uma ação conjunta e participativa, o que pode ser interpretado como uma revolução na concepção do planejamento urbano. Além do trabalho projetual e da vida política, seu sucesso no mundo da cultura arquitetônica também é ligado ao campo docente e às publicações em revistas e livros, em que expõe os resultados do seu estudo crítico do movimento moderno. Seu interesse e empenho em estudar o levou a publicar o livro Le Corbusier: Antologia Critica degli Scritti, antes mesmo de terminar a faculdade de arquitetura, em 1945. Sua trajetória representa bem aquilo que Jean-Louis Cohen chamou de campo ampliado da arquitetura² . O começo da sua carreira como 19


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arquiteto foi fortemente marcado por uma lei de 1949 conhecida como “Plano Fanfani” (homenagem ao ministro que a promoveu) ou “INA-Casa”, que estabelecia medidas para ampliar o acesso à moradia, facilitando o financiamento e a construção de casas para os trabalhadores. Onze dos quinze primeiros projetos de De Carlo no início da década de 50 foram para esse Plano, além dos dezesseis assentamentos de grupos de casas em pequenas cidades que projetou. Um de seus projetos para o INACasa, em Baveno (1951-52) causou-lhe certa desilusão: alguns anos depois de sua construção, o arquiteto sentouse num bar em frente ao conjunto para tomar um café num domingo e observar os habitantes dos edifícios. Escreveu sobre essa experiência para a revista Casabella Continuità (n. 201 de 1954), da qual era redator, sobre o seu desânimo ao perceber a “insensatez 20

de seus cálculos” (DE CARLO, 1954, p. 29) e os erros de seu projeto, ao notar a forma com que as pessoas estavam se apropriando dos espaços por ele projetados. Ambientes destinados à passagem e acesso foram ocupados como espaços de permanência e usados para estender roupas molhadas. O que mais lhe chamou a atenção foi “a procura dos habitantes por espaços coletivos, de socialização, e esse uso imprevisto dos espaços, subversivo aos ditames do funcionalismo racional os quais foram usados na sua concepção” (ibid).

Imagem 2 Detalhe do conjunto INA-CASA de Baveno.


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Anos mais tarde, na década de 60, na esteira de outros arquitetos de sua geração, De Carlo desenvolveria a ideia do “projeto participativo”, defendendo a participação dos futuros habitantes na definição espacial da arquitetura com o uso desejado e com seus modos de apropriação dos espaços; por que não incluí-los desde a fase de concepção do projeto, deixando de lado o princípio da autoridade técnica do arquiteto? A ideia resultou em um de seus livros mais conhecidos, L’architettura dela partecipazione de 1973, e sua experiência de projeto participativo data de 1970-75, quando planejou juntamente com os futuros moradores, um conjunto de casas para operários em Terni, na Umbria, conhecido como Villaggio Matteotti. “Em termos de proposição participativa, a experiência de projeto de Vila Matteotti, em Terni, é um dos projetos mais significativos da obra do

arquiteto.” (BARONE e DOBRY, 2004, p.27).

Imagem 3

Villaggio Matteotti. Essa Vila já existia como construção, mas localizava-se em uma área um pouco afastada do tecido urbano da cidade de Terni, próxima a Roma. Giancarlo foi chamado para reestruturar o bairro, a fim de aumentar sua densidade habitacional. 21


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Ele apresentou cinco propostas aos operários, dentre elas duas mais complexas e modificadoras, sendo uma destas a escolhida pelo sindicato da fábrica. Ainda, trouxe para expor aos moradores outros projetos de outros países, no intuito de enriquecer seu repertório e fazê-los entrarem em contato com outras questões, como a viabilidade econômica da obra. Por fim, foram criadas 15 tipologias diferentes, modulares, para atender às necessidades das diferentes famílias e tornar o ambiente externo mais interessante e variado. (ibid.)

Imagem 4 Modelos de tipologias residenciais para a Vila Matteotti.

Claramente o projeto participativo apresenta dificuldades e 22

impasses na sua realização, porém De Carlo:

“[...] não buscava adesão e consenso na proposta participativa do projeto de Terni, mas provocar uma ampliação da capacidade de decisão dos moradores no próprio espaço a ser construído e fazer valerem seus direitos e necessidades, reconhecidos por eles próprios ao longo do processo. [...] O espírito de solidariedade e o reconhecimento da importância do espaço público, mesmo diante de um processo mais aberto e inclusivo, permaneceram como conceitos frágeis em face da apropriação do espaço privado.” (ibid., p. 30)


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Imagem 5 Moradora da Vila Matteotti.

Com isso, percebe-se de certa forma sua vontade de repensar o papel do arquiteto em um sentido cívico; vontade de dar outra conotação política à arquitetura, alternativa àquela artística ou à científica - projetar com os habitantes e não para eles. No início dos anos 50, além dos projetos para o Ina-Casa, também se envolveu em alguns projetos na cidade de Urbino, a reestruturação da Sede da Universidade em 1952 (que o fez conhecer e criar uma grande amizade com o reitor Carlo Bo) e um projeto de casas para os funcionários (1954). Isso

o fez ganhar certo reconhecimento na região, o que o levou a ser convidado a desenvolver o primeiro Plano Regulador Geral (PRG) da cidade de 1958 a 64, importante projeto de escala urbana de sua carreira. Assim continuou focado em projetos maiores na década de 60, colaborando com o Plano Intercomunal de Milão (1961-65) e mais tarde foi encarregado da redação do Plano detalhado do centro histórico e do centro dirigido de Rimini (1970-72), quando pôde experimentar o projeto participativo numa escala urbana. Paralelamente aos projetos, desde que terminou a faculdade, Giancarlo lecionava em Veneza. Começou como assistente voluntário, mas logo ganhou aulas próprias sobre os temas ‘elementos arquitetônicos’, ‘monumentos importantes’ e ‘características dos edifícios’, até que pouco a pouco foi se direcionando para o planejamento territorial e 23


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urbano. Foi professor da IUAV até 1982 quando se transferiu para a Universidade de Gênova, ministrando aulas de composição arquitetônica até 1989, quando se aposenta aos 70 anos. Além do importante projeto para Rimini, também foi na década de 70 que fundou o ILAUD (International Laboratory of Architecture and Urban Design) mais especificamente em 1976, que permaneceu ativo sob a sua direção até 2003. O ILAUD era uma espécie de associação livre entre universidades, basicamente europeias e norte-americanas, com atividades permanentes durante o ano todo nas suas sedes e cursos de verão em diferentes cidades da Itália. O objetivo desse laboratório era debater, projetar e pesquisar sobre os problemas do ambiente físico, tendo em mente que a arquitetura e o urbanismo são parte do mesmo problema e que, portanto, pensar neles separadamente não fazia 24

sentido. Os resultados desses cursos de verão eram muito interessantes, uma vez que formavam grupos de estudantes de diferentes nacionalidades que trabalhavam juntos, debatendo entre eles e seus professores, desenhando e participando das diversas atividades: conferências, apresentações de trabalho, visitas arquitetônicas e espetáculos. Além de projetar e dar aulas, Giancarlo também tinha uma carreira jornalística. Trabalhou de 1953 a 57 na redação da revista reavivada por Ernesto Nathan Rogers, a Casabella Continuità, sendo essa uma grande oportunidade para o jovem arquiteto de entrar no debate nacional sobre arquitetura; pediu demissão por discordar da maneira com que Rogers estava levando a direção da revista. Torna pública sua decisão em uma nota divulgada no exemplar de número 214, último em que participou, no qual


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escreve, sob o título Una Precisazione: “[...] o passado, o presente, as falhas, as falências, as tensões, os acordos, as dissensões, tudo é trazido de volta e suavizado em uma coexistência histórica sem contradições: Wright, Corbusier, Gropius, Mies van der Rohe se identificam como disfarces de um único personagem.” (DE CARLO, 1957).

Nos anos seguintes participou da série “Estrutura e Forma Urbana” da editora independente de Alberto Mondadori, Il Saggiatore, e entre 1967 e 81 foram publicados também 24 títulos de uma série de textos sobre autores e arquitetos essencialmente estrangeiros, muitos dos quais ainda não tinham traduções na Itália. Esses documentos representaram um instrumento indispensável aos estudiosos de

arquitetura e urbanismo da época, algo que abriu novos horizontes do conhecimento da disciplina. Uma outra realização importante de De Carlo foi a fundação da revista trimestral Spazio e Società que, do ponto de vista do conteúdo, chamava: “a atenção para a arquitetura e para o fenômeno urbano e territorial, dando peso aos aspectos sociais e antropológicos implicados no fenômeno arquitetônico e urbano, e expandindo o olhar sobre o mundo, até sobre as sociedades não ocidentais. Um compromisso que permaneceu constante foi aquele de não cair, por argumentos nem linguagem, no estreito âmbito das ‘revistas de setor’, desenvolvendo por sua vez uma ideia multidisciplinar da arquitetura”. (SAMASSA, 2014) 25


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Quanto à sua experiência no debate teórico, foi convidado a fazer parte, em 1948, do Movimento de Estudos pela Arquitetura (MSA), uma associação formada em Milão entre 1945 e 46, por inciativa de arquitetos presentes na cena milanesa como, por exemplo, Marco Zanuso e Lina Bo. O Movimento foi uma das muitas iniciativas que surgiram depois da guerra, na esperança de dar uma qualidade de vida melhor à sociedade italiana ao contribuir com uma nova arquitetura para reconstruir a cidade. Foi um espaço aberto de elaboração da cultura arquitetônica moderna internacional, em um período delicado e crucial para o país, o da reconstrução pós-bélica. Giancarlo chega a ser até presidente do MSA e permanece envolvido até o seu declínio, que coincidiu com aquele dos CIAM, por volta de 1960. Coincidência que não é mero acaso, pois reflete um declínio do 26

movimento moderno em geral. Em 1953 De Carlo foi convidado a fazer parte da nova geração dos CIAM indicado também por Ernesto Rogers, aumentando o número de membros italianos nos prestigiosos congressos. Sua maior participação se deu no encontro em Otterlo, 1959. Inicialmente, fez um discurso que tornou-se um texto sob o título Talk on the Situation of Contemporary Architecture, em que ele basicamente expõe suas ideias sobre o movimento moderno. Os projetos apresentados pelos italianos, principalmente a Torre Velasca de Rogers e o edifício residencial e comercial em Matera de Giancarlo, sofreram duras críticas que interpretavam os trabalhos como uma arquitetura que fugia das marcas do movimento moderno.


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Imagem 6 Edificio residencial e comercial em Matera.

Provavelmente a crítica foi influenciada também pelo artigo Neoliberty. The italian retretat from modern architecture, publicado meses antes por Reyner Banham na revista The Architectural Review (1959, n. 747, p.231), após a visita do crítico inglês ao pavilhão italiano da Expo ‘58 de Bruxelas. O ocorrido serviu para alimentar sua discordância à maneira dogmática de se entender o movimento moderno, sobretudo quando era identificado somente através dos aspectos meramente formais e estilísticos dos edifícios. Em Otterlo também se consolidou sua aproximação

com um grupo de jovens arquitetos que tinham sido os organizadores do décimo encontro dos CIAM de Dubrovnik, em 1956. Sem muitas formalidades como lista de adesões, hierarquias, funções ou organismos, nasce o chamado Team X, do qual De Carlo, Jaap Bakema, Aldo van Eyck, Georges Candilis, Shadrach Woods e Alison e Peter Smithson eram alguns dos membros mais ativos. “O Team X foi capaz de atualizar a discussão sobre arquitetura, fosse aos conteúdos ou às maneiras, mantendo-a ancorada às realizações e à prática da projetação (qualquer aproximação de históricos ou críticos aos seus encontros era vista com extrema desconfiança). O seu nascimento dos cenários dos CIAMs (considerado uma instituição pesadamente hierárquica, por ora perdida na burocracia de suas práticas) foi 27


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também provavelmente um sinal interno da cultura arquitetônica de uma mudança de época que, em geral, foi amadurecendo em sociedades ocidentais no final dos anos 50 e que logo resultaram em anos de protesto.” (SAMASSA, 2014)

Ana Cláudia Castilho Barone, em seu livro Team 10: arquitetura como crítica, afirma que De Carlo, em comparação com os outros membros do Team 10, foi o arquiteto que mais deu valor ao caráter político da arquitetura: “sua produção teórica e prática evidenciam a preocupação em encontrar os meios de inserção política e social da arquitetura e do urbanismo” (BARONE, 2002, p.148). Ele se destacou por utilizar-se de dois métodos de concepção de projeto: “a participação do usuário no processo e a leitura dos contextos urbanos onde cada projeto 28

se insere” (ibid.) Estes dois exercícios marcam praticamente toda a sua trajetória como arquiteto, sua produção teórica e prática, demonstrando seu interesse por uma arquitetura mais democrática, e comprometida com o meio, cultura e tradições dos usuários. Suas obras datadas dos anos 80 e 90 demonstram duas linhas de pesquisa mais recentes: uma dedicada ao tema da estrutura como elemento expressivo e outra ao tema da articulação do espaço em geometrias complexas. Isso se deu por conta de uma mudança ocorrida na passagem dos anos 80 na Itália; a prática do projeto participativo tinha encontrado nos anos 70 uma renovação popular³ , “mas nas décadas seguintes não era mais uma instância de primeiro plano para uma sociedade voltada ao ‘desapego’, uma sociedade hedonista, que passava por uma crise radical das ideologias” (SAMASSA, 2014).

3. O reconhecimento popular chegou até nas composições de artistas musicais. Giorgio Gaber (19392003) foi um conhecido cantor e compositor italiano, intérprete da primeira música de estilo rock italiana; entre 1972-73 escreve uma música de nome La Libertà em que diz “la libertà non è uno spazio libero, libertà è partecipazione”.


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4. Rigidez das ideias de Le Corbusier, que será explicada na segunda parte deste trabalho.

A aproximação do movimento neo-racionalista La Tendenza com o movimento pós-moderno também contribuiria para um certo isolamento de De Carlo. A Tendenza foi uma das correntes italianas que procuravam rever as premissas do movimento moderno, cruzando-as com referências culturais regionais na tentativa de fugir do universalismo nivelador do funcionalismo; a figura que se destacou no grupo pela originalidade e profundidade de suas teorias foi Aldo Rossi. O que era estranho aos princípios de De Carlo era o anseio de uma recuperação formalista do passado, essencialmente nostálgica, que se uniu à autonomia da forma e à ideologia do monumento. Isso fez com que Giancarlo se sentisse cada vez mais isolado e descolado de uma sociedade que não estava mais interessada em participar nos processos de organização do espaço físico. Esse período da sua

atividade profissional foi mais solitário, quando os únicos grupos agradáveis a ele eram a redação da revista Spazio e Società, os organizadores do ILAUD e seus colaboradores de escritório (Giancarlo de Carlo Associati). Giancarlo falece em 2005, em Milão. O legado de suas obras projetuais e teóricas é principalmente a luta pela construção de uma coletividade mais livre, com a participação de todos, mas que não tira o impulso criativo do arquiteto, sendo este encarregado de trazer inovação para enriquecer o debate participativo e aumentar o repertório daquela coletividade. Ao estudar seu trabalho, pode-se dizer que ele foi um arquiteto modernista que se contrapunha à rigidez corbusiana⁴. Sua trajetória permite identificar uma série de conflitos no interior do campo disciplinar da arquitetura, especialmente após a Segunda Guerra Mundial; 29


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ao mesmo tempo, também permite vislumbrar a relação entre o desejo de universalidade do movimento moderno e as necessidades, condições, cultura e história locais.

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o universal: CIAM

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Imagem 7 Grid

O século XX foi um período de acontecimentos marcantes: tempo de Guerras Mundiais absolutamente devastadoras, crises econômicas, mudanças políticas e os avanços tecnológicos trazidos pela nova etapa da II Revolução Industrial. Foi uma era de grandes mudanças em vários setores da vida em sociedade, acompanhadas de transformações nas mentalidades e nos costumes. No campo da arquitetura 33


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não poderia ser diferente. Se a sociedade como um todo se modifica, sua organização espacial tem que se modificar para atender às suas novas necessidades. Esta segunda parte do trabalho procura entender as transformações significativas para o campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo, que ocorrem a partir da década de 1920 na Europa, quando alguns arquitetos, com o objetivo de criar uma vanguarda arquitetônica antitradicionalista, organizaram congressos internacionais de arquitetura. “Fundado na Suíça em 1928 por um grupo de arquitetos europeus, o CIAM, que se refere a uma organização e a uma série de congressos, foi a principal força criadora de um sentido unificado daquilo que hoje é conhecido como Movimento Moderno em arquitetura. Muitos 34

dos seus membros e ideias eram muito conhecidos no mundo da arquitetura, ainda que existam poucos relatos coerentes de sua história.” (MUMFORD, 2002, p.1).

Essas reuniões, conhecidas como CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), ocorreram no período de 1928 a 1956 e tiveram como alguns de seus principais líderes Le Corbusier, Sigfried Giedion¹ e Josep Lluís Sert² , com a proposta de adotar uma linguagem arquitetônica universal que marcasse a ruptura com o sistema clássico, que estivesse em consonância com as transformações tecnológicas e sociais, e que respondesse aos problemas urbanos típicos do advento da cidade industrial. Desde o final do século XIX entrara em crise a hegemonia do sistema clássico e do ensino acadêmico. Na busca de novas linguagens

1. Sigfried Giedion (1888-1968) foi um historiador de arte suíço e primeiro secretário geral do CIAM. 2. Josep Lluís Sert (1902-1983) foi um arquiteto e urbanista espanhol e presidente do CIAM de 1947 a 56.


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destacaram-se, no início do século XX, um conjunto de escolas, estilos e movimentos culturais que envolviam a música, a pintura, a literatura, escultura e arquitetura; manifestações que se inclinavam a formas mais abstratas. O objetivo desta segunda parte do trabalho é estudar os desdobramentos desse processo, sobretudo na sua institucionalização no âmbito dos Congressos Internacionais. Ainda que seja possível relativizar o papel dos CIAM como único deflagrador da cultura arquitetônica que marcou o século XX, também é incompleto pensá-la sem o papel fundamental desempenhado por esses congressos, principalmente no que se convencionou chamar de movimento moderno. Ao todo foram 10 encontros em 28 anos de intensas mudanças no mundo todo, metade realizados antes da Segunda Guerra Mundial, metade depois. O movimento se consolida

depois da Segunda Grande Guerra, em um momento crítico que exigia medidas urgentes para reconstruir cidades inteiras devastadas pelas batalhas. Além de tudo, se fazia necessário repensar no papel do arquiteto frente às novas demandas sociais. A estrutura do CIAM era relativamente simples. Havia uma Assembléia Geral que deveria se encontrar a cada ano ou a cada dois anos conforme convocada pelo presidente, e o CIRPAC (Comitê Internacional para a Resolução dos Problemas da Arquitetura Contemporânea), proposto por Le Corbusier no primeiro Congresso, em La Sarraz, Suiça (1928). Os membros do CIRPAC “eram chamados ‘representantes’, com ao menos um representante de cada grupo nacional do CIAM. O CIRPAC tinha como função planejar e comunicar as decisões tomadas em cada um dos Congressos” (PILLING, 2011). 35


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Os CIAM ainda contavam com organizações nacionais, entre as quais se destacou o grupo ASCORAL (Assembleia de Construtores para uma Renovação Arquitetônica) a delegação francesa, liderada po Le Corbusier e filiada às suas ideias puristas. Desse grupo também faziam parte os principais membros executivos que organizaram alguns dos Congressos Internacionais como Le Corbusier, Joseph Louis Sert e Sigfried Giedion. Os encontros podem ser estudados como eventos independentes, mas a divisão proposta por Kenneth Frampton em seu livro “História Crítica da Arquitetura Moderna” (1997) que os separa em três fases, nos auxilia a iniciar a análise sobre os encontros. Frampton parte da liderança dos diferentes grupos para caracterizar o que entende como três etapas distintas da história dos congressos: a primeira, que vai de 1928 a 33, encabeçada pelo 36

grupo de arquitetos de língua alemã, discutira basicamente questões sobre o padrão mínimo de vida, altura ideal e espaço entre blocos, focando no uso mais eficiente dos materiais utilizados e do solo; a segunda fase, que vai de 1933 a 47, teve um domínio maior de Le Corbusier e dos franceses, com ênfase em debates sobre o planejamento urbano e a cidade funcional, sobre a qual foi redigida, a partir das discussões do IV CIAM (1933), a Carta de Atenas; por fim, entre 1947 e 53 o grupo inglês teria se sobressaído, com debates sobre a esterilidade abstrata da cidade funcional, apontando a importância de trabalhar para um ambiente físico capaz de satisfazer as necessidades emocionais e materiais do homem e a preocupação com as qualidades concretas e específicas do lugar em contraposição às ideias universalizantes que haviam caracterizado, de formas distintas, as duas etapas anteriores.


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3. Ao final do IV CIAM, o Congresso publicou o que chamou preliminarmente de Constatations (observações) em francês e Festellungen (resultados) em alemão. A Carta de Atenas de Le Corbusier, publicada em 1943 em Paris, é uma versão expandida do texto Constatations, publicado em vários jornais europeus de 1933 em diante

Entretanto, ainda que se possa reconhecer essa divisão, é evidente a grande influência e a liderança de Le Corbusier em todos os encontros que, devido ao seu trabalho militante por uma série de países em todo o mundo, disseminou o “modo corbusiano” de pensar a arquitetura e o urbanismo, que pelo poder de sua eloquência potencializou suas ideias em escala mundial. O documento mais significativo originado dos CIAM foi a Carta de Atenas, resultado da versão de Le Corbusier sobre as discussões do IV encontro³ , sobre o tema da Cidade Funcional. Sendo um documento que trata da escala urbana, era baseado na crença de que a cidade deveria ser separada por “zonas” que seguiriam as quatro funções propostas por Le Corbusier: habitação, trabalho, recreação e transporte. É um documento que parte do estudo de várias cidades para chegar em regras aplicáveis a

todas elas, segundo critérios racionais, para melhorar a vida da sociedade. O inconveniente dessas regras era a natureza da problematização, que excluía muitos aspectos importantes, como particularidades das diferentes cidades do mundo. Além disso, o ser humano era reduzido a um padrão único, gerando soluções essencialistas que partiam de um referencial europeu. Esses preceitos criados em prol de solucionar o problema da organização das cidades ganharam o adjetivo “moderno” por serem regras ideológicas que enfatizavam questões funcionais. Como aponta Frampton, tais ideais pautavam-se no objetivo de introduzir dimensões normativas e métodos de produção eficientes como um primeiro passo para a racionalização da indústria da construção. A arquitetura ligava-se assim, ao momento histórico, à política e à economia, e, nesse caso, a realidade era o mundo industrializado; 37


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o trabalho artesanal deveria dar lugar à “adoção universal de métodos racionais de produção” (FRAMPTON, 2003, p.327). Portanto, o movimento moderno teria como premissas uma organização rígida, racional, formalista, universalizante e funcional do espaço. Como sugere Ana Barone, esse modelo teria se consolidado com base em alguns acontecimentos: “A hegemonia interna dos CIAM legitimou-se na disputa interna entre dois grupos de liderança, o alemão e o francês. Além disso, a insistência em alguns temas tidos como centrais nas discussões levantadas foram essenciais para a legitimação dessa hegemonia. Esses temas foram a habitação social e a cidade funcional. Outro importante fator que levou à consolidação da hegemonia foi a centralização da gestão interna dos Congressos em um comitê 38

formado por Walter Gropius, Le Corbusier, Sigfried Giedion, José Luis Sert e Cornelius van Eesteren. Eles determinavam o rumo das discussões, fazendo enfraquecerem outros grupos que levantassem temas incompatíveis com seus interesses práticos.” (BARONE, 2002)

Principalmente após a Segunda Guerra Mundial, muitos integrantes do CIAM demonstraram interesse em discutir questões específicas de seus países, buscando soluções para a situação particular que estavam vivendo, mas constantemente membros importantes como Le Corbusier insistiam em propor o debate sobre as aplicações da Carta de Atenas e seus desdobramentos. As políticas internacionalistas do movimento moderno começaram a ter sua validade universal questionada e as divergências


o universal: CIAM

4. Piero Bottoni (1903-1973) foi um arquiteto racionalista italiano, que seguia os preceitos funcionalistas do movimento moderno. Participou do IV CIAM de onde foi criada a Carta de Atenas.

internas aos comitês aumentaram. Isso, somado ao surgimento de uma nova geração de arquitetos que começaram a frequentar os Congressos e disseminar novas ideias, culminou com o fim dos CIAM. Esse grupo de arquitetos mais jovens ficou conhecido como Team X, e entre eles estava o italiano Giancarlo de Carlo. Por conta da guerra, depois do V CIAM de 1937, os encontros só voltaram a acontecer depois de 10 anos. Como já dito, os CIAM se consolidaram após a Segunda Guerra Mundial, coincidindo com esse delicado momento histórico. O primeiro encontro do pós-guerra se deu em 1947 em Bridgewater, Inglaterra, sob o título “Nossas cidades podem sobreviver?”, e foi dedicado a restabelecer contatos e rever a produção de arquitetura nos dez anos que antecederam o evento. Outro Congresso importante para a abordagem proposta aqui foi o

VII. O único encontro realizado na Itália que se deu no ano de 1949 (de 22 a 31 de Julho), mesmo ano em que Giancarlo de Carlo se forma em arquitetura, depois de sua trajetória cheia de inconstâncias. A reunião ocorreu em Bergamo, cidade medieval localizada a 50 quilômetros a leste de Milão. Bergamo foi escolhida em detrimento de Praga, não só pelo fato de esta ter recentemente se tornado comunista, mas também por Bergamo ter um significado especial na história do urbanismo: foi lá que Piacentini, em 1906, começou a planejar seu primeiro centro de cidade monumental, um exercício de design urbano neoRenascentista (MUMFORD, 2002, p.184). O VII CIAM foi organizado por Enrico Peressutti e contou com a participação de aproximadamente cem membros, com discursos de abertura feitos pelo prefeito de Bergamo, Piero Bottoni⁴ e Sert, que ressaltou o centro histórico medieval de Bergamo como 39


o universal e o local na trajetória de Giancarlo de Carlo

uma “cidade de escala humana”, contrastando-a com o “caos das grandes cidades modernas”. Na sequência, quem falou foi Le Corbusier, apresentando o tema básico do Congresso, o seu Grid e suas vantagens, para depois explicitar que o objetivo daquele encontro era a elaboração de uma “Carta de Habitação” (ibid.); essa carta não tinha sido discutida previamente como programa para esse congresso, mas seria um esforço importante dos trabalhos do CIAM até 1956. Quanto ao Grid, já havia sido apresentado por Le Corbusier e pelo grupo francês no VI CIAM (1947) e era um desdobramento da Carta de Atenas. Consistia em um sistema para organizar graficamente informações sobre projetos urbanos em painéis de 21x33 cm, que poderiam então ser montados em telas maiores de até 120 painéis (MUMFORD, 2002, p.181). Esses 40

painéis eram compostos por tabelas que cruzavam informações sobre as quatro funções do Le Corbusier com outras variáveis como ocupação do território, equipamentos, legislação, etc. Oficialmente, este segundo encontro após a Segunda Guerra deveria ter dois temas, “A Carta de Atenas na Prática” e a “Síntese das Artes Principais”, porém no convite para o Congresso, feito pelo ASCORAL, mencionava-se apenas o primeiro tema, subdividido em “Planejamento” (urbanismo) e “Estética”. Os acontecimentos anteriores ao congresso em questão também merecem atenção, no intuito de exibir fatos que elucidem aquela situação histórica. Na Itália, um grupo de arquitetos, incluindo Ernesto Nathan Rogers, vinha trabalhando em um projeto urbanístico para Milão, o “AR Plan”, criado para participar de um concurso patrocinado pelo Município


o universal: CIAM

em 1945. Esse projeto era basicamente uma revisão do Plano Principal de Milão de 1934, com o acréscimo de um novo zoneamento da cidade dentro das quatro funções da Carta de Atenas (habitar, trabalhar, circular e recrear), e o restauro do centro histórico. Mumford constrói um raciocínio interessante sobre o distanciamento dos italianos com relação às ideias dos CIAM: “Enquanto a estratégia de restaurar centros históricos dentro do contexto do replanejamento global nunca tivesse sido rejeitada pelo CIAM, na situação do pós-guerra italiano esse aspecto do urbanismo assumiu uma importância crescente, e paradoxalmente ajudou eventualmente a alimentar as várias reações contra o CIAM que vieram à tona nos anos de 1960, notavelmente no trabalho de Aldo Rossi, um estudante de

Ernesto Rogers.” (MUMFORD, 2002, p. 183).

Depois desse projeto urbanístico, o grupo se voltou para o desenvolvimento de um distrito experimental de edificação popular na periferia da cidade, o QT8 (Quartiere Triennale 8), para a oitava edição da Trienal de Milão, em 1947. Por conta das péssimas condições das casas na cidade naquela época, a Trienal foi inteiramente dedicada ao tema da habitação. O projeto do QT8 foi liderado por Piero Bottoni e consistia em um distrito urbano dividido em quatro unidades de bairro, previstas para abrigar 3.300 pessoas. Apresentava diferentes tipos de habitações, bem como implantações e inovações tecnológicas, afirmando o lado experimental do projeto. Essas iniciativas mostram que, logo após a Segunda Guerra Mundial, o problema 41


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da reconstrução na Itália tornouse elemento de estudo relevante e necessário. As características dos resultados positivos obtidos com o QT8 têm certa ligação com o Plano INACasa, objeto de estudo da terceira parte deste trabalho. Para este congresso particularmente (ainda falando sobre o encontro em Bergamo), as respostas dos membros do CIAM às solicitações do grupo organizador ASCORAL não foram muitas. Giedion comentou sobre a quantidade espantosamente pequena de respostas ao seu pedido de projetos a serem expostos em Bergamo e se preocupou ao perceber dois meses antes do evento que “não havia uma ideia do que se poderia esperar dos exemplos do Grid no CIAM de Bergamo” (MUMFORD, 2002, p.185). Os grupos latino-americano e norte-americano não responderam, demonstrando que, com uma 42

participação ínfima, é difícil dizer que os trabalhos apresentados no CIAM de Bergamo representassem a arquitetura moderna que estava sendo construída numa escala mundial. Além disso, nenhum trabalho de arquitetos modernos já conhecidos como Mies Van der Rohe, Walter Gropius, Marcel Breuer ou Alvar Aalto foram exibidos, por exemplo. Pode-se supor que todos já sentissem que não havia espaço diante da hegemonia francesa, o que já causava desconforto e contraposições. Ainda, as razões pela seleção dos trabalhos que foram apresentados não foram explicitadas. Porém, muitos trabalhosde diferentes países foram expostos no congresso: projetos na França, Itália, Alemanha, Holanda, Canadá, Reino Unido, Suécia, Argentina, Brasil, Peru e Colômbia. Interessante destacar esses três últimos: o principal projeto brasileiro mostrado foi o Conjunto Residencial

5. Paul Lester Wiener (1895-1967) foi um arquiteto alemão naturalizado americano, moderno, cujo importante projeto urbano feito com Sert para Bogotá era baseado no crescimento populacional e da cidade para prever habitação e espaços de recreação para a população. 6. Unidade de vizinhança é também um desdobramento da Carta de Atenas, um modelo funcional em que os edifícios habitacionais deveriam ser cercados por áreas verdes e tangenciados pelas vias de trânsito de passagem, preser-


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vando a vida comunitária. Entretanto, essa concepção urbanística está bastante relacionada aos desdobramentos do movimento das cidades jardins dos EUA, cujas reelaborações de Clarence Perry e Clarence Stein propunham a organização de bairros horizontais servidos por equipamentos públicos essenciais, como modelo de expansão para a cidade de Nova York. 7. As manzanas são as tipologias construtivas que tinham como referência o traçado tradicional, característico de muitas cidades

Prefeito Mendes de Moraes, conhecido como Pedregulho, do arquiteto Affonso Reidy de 1947, ainda que o arquiteto não tenha participado do congresso. Sua inspiração teórica e seu método provêm da estética e dos princípios defendidos por Le Corbusier - na atenção dada às tecnologias usadas na construção, na economia dos meios utilizados “e nas preocupações funcionais estreitamente relacionadas às soluções formais: controle da luz e ventilação, facilidade de circulação” (FRACALOSSI, 2011). Os projetos de Sert e Wiener⁵ para Lima e Chimbote (Peru) e Tumaco (Colômbia) pareciam ter sido feitos para explicitar as preocupações dos arquitetos quanto a estética, expressão popular e centros cívicos, esses últimos com tanta ênfase que pareciam um tipo de “quinta função”, além das quatro corbusianas. O fato é que os projetos, segundo seus autores, uniam uma tradição local com técnicas modernas,

explicitando a vontade por parte deles de propor revisões significativas na cidade funcional. Na realidade, a maioria dos projetos mostrados em Bergamo seguia a linha corbusiana da Unitè d’Habitation com edifícios verticalizados que condensavam habitações e equipamentos coletivos. Entretanto, estudando aqueles realizados no Peru e na Colômbia, percebem-se algumas mudanças no modo de pensar o projeto, como a consideração com a cultura e tradição locais, além da incorporação do conceito da unidade de vizinhança⁶ por Sert que a mesclava com a concepção das tradicionais manzanas⁷. Além disso, muitos arquitetos demonstravam críticas ao Grid e à Carta de Atenas, que consideravam desfavoráveis quanto às distâncias para caminhar. O Grid se apresentava como difícil de compreender, necessitando de comentários dos autores que o 43


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explicassem melhor. Outro comitê que estudou os resultados apresentados pelo Grid, percebeu dois pontos de vista quanto à questão da habitação nas cidades: uma baseada nas ideias de Le Corbusier e tendo como exemplo sua Unité d’Habitation, poderia ser aplicada em qualquer contexto; a outra apontava para diferentes aposentos projetados de acordo com circunstâncias demográficas e condições locais específicas. Vários grupos sugeriram que um estudo destes problemas fosse levado ao próximo congresso para ser discutido (MUMFORD, 2002, p.191). O encontro de Bergamo foi dividido em partes: os dois primeiros dias foram focados em reuniões de pequenos grupos (comissões), seguidos por mais dois dias de sessões plenárias, em que os arquitetos se reuniam em grande número em uma assembleia. Cada sessão tinha um tema 44

a ser discutido, sendo “As aplicações da Carta de Atenas” e “Relatório sobre as Artes Plásticas”. No primeiro dia de plenária, Le Corbusier fez o discurso de abertura e disse que o CIAM desenvolveria uma “Carta de Habitação” naquele Congresso, mas sem especificar ou explicar mais claramente o que deveria ser este documento. As discussões então seguiram várias direções, com membros trazendo a tona questões como projetar grandes áreas verdes em países quentes que não dispunham de muita água, ou questões de densidade, poluição do ar, cidades pequenas e a escala de projeto, cada grupo pensando nas preocupações específicas de seus países ou nos contextos em que projetavam. O tema do segundo dia demonstrou uma tentativa de trazer as discussões de volta para as questões estéticas; o argumento em

europeias, sobretudo espanholas, cujo partido era a circunscrição das quadras urbanas, conformando pátios no interior dos perímetros definidos por massas construídas. A essa forma construtiva, partindo da morfologia urbana, contrapunha-se a tipologia moderna, que partia da organização interna do edifício, relacionando com funções de insolação e ventilação em detrimento ao desenho da cidade pré-existente. Sert buscava um híbrido desses dois partidos na configuração de suas unidades de vizinhança para Bogotá.Para apro-


o universal: CIAM

fundamento desses partidos verificar PANERAI, CASTEX e DEPAULE, 1986.

consideração era o de esclarecer como uma colaboração entre arquitetos e artistas poderia resultar em uma síntese das artes, e se o “homem da rua” seria capaz de apreciar tal síntese. Mais uma vez a sessão foi cheia de opiniões divergentes, sendo quase impossível resumir os resultados. (ibid., p. 193) Estudando apenas um dos congressos e observando tantas discordâncias internas somadas à dificuldade de se manter certas discussões sugeridas pelos grupos dominantes, pode-se concluir que este modelo de reunião não duraria muito mais tempo. O ponto principal que levou ao declínio dos congressos não eram as opiniões divergentes quanto a um assunto específico, pois o debate era necessário, mas sim a sua estrutura interna, que mantinha uma hierarquia de poder clara e temas pré-estabelecidos que não mais se relacionavam com a realidade, em prol de anunciar

critérios universais da arquitetura e do urbanismo modernos. Depois desse encontro ocorreram mais três, sendo que o VIII na Inglaterra em 1951, pretendia discutir o coração da cidade. Mais uma vez ocorreram embates e cada vez mais se evidenciava a existência de uma nova geração participando do CIAM, com ideias bem desenvolvidas sobre a questão da cidade moderna e que buscava mais espaço para suas proposições nos debates. Esse grupo ficou conhecido como Team X, porque ficou responsável pela organização do décimo encontro em Dubrovnik. Seus principais integrantes eram Jacob Bakema, Georges Candilis, Alison e Peter Smithson, Aldo van Eyck, Shadrach Woods e Giancarlo de Carlo. Eles acabaram propondo a dissolução dos CIAM e, em seu lugar, buscavam discutir a humanização dos espaços produzidos pela arquitetura moderna, 45


o universal e o local na trajetória de Giancarlo de Carlo

ou seja, pensar não só na produção rigorosa da arquitetura funcionalista, mas nas inter-relações sociais no espaço construído. A intenção fundamental desse grupo seria enfim: “questionar a validade desses princípios universais a partir da noção de que o homem se organiza em comunidades, que desenvolve a necessidade de se diferenciar, se identificar com o local onde habita, criar vínculos sociais e apreender o espaço a partir de seus próprios valores culturais” (BARONE, 2002, p.61).

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o local: Ina-Casa

o local: Ina-Casa

Imagem 8 Distrito La Feltre, Milão.

1. A Itália permaneceu sob o regime fascista por 21 anos, de 1922 a 1943, chefiado por Benito Mussolini (1883-1945).

Ao final da Segunda Guerra Mundial a Itália, bem como vários outros países europeus, viu muitas áreas de seu território devastadas. Era necessário urgentemente um plano para reconstruir a nação, tanto física como psicologicamente¹ . Um dos caminhos a seguir foi através da arquitetura e do urbanismo: “[...] construir significava concentrar e não dispersar, permitir ao homem reencontrar na sua casa a serenidade 49


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perdida, e no seu ambiente, em contato com os outros, a medida da própria humanidade” (MARTA, 1962, p. 3). O projeto de lei aprovado pelo Parlamento italiano em 28 de fevereiro de 1949 relacionava a produção habitacional com uma intervenção mais ampla do Estado, para retomar o desenvolvimento econômico no Segundo Pós-Guerra. As medidas contidas no projeto pretendiam aumentar a taxa de emprego dos operários, facilitando a construção de casas para os trabalhadores. Era o início do plano INA-Casa. O nome “INA” vinha das iniciais do Istituto Nazionale delle Assicurazioni² , que teve um papel importante na administração do plano. O seu financiamento era realizado através de um sistema misto com participação do Estado, dos donos de fábricas e dos operários. As questões arquitetônicas e urbanísticas eram coordenadas pela 50

gestão do INA-Casa, cujo presidente era o arquiteto Arnaldo Foschini (18841968), que era também decano da Faculdade de Arquitetura de Roma e diretor da Associação dos Arquitetos (BIAGI, 2013). A gestão era consciente da inexperiência do Estado em planos como esse, sendo o INA-Casa um experimento novo no campo da produção habitacional italiana. O Plano parecia ser a primeira real ocasião de se promover uma grande reconstrução, e as unidades de habitação que formariam bairros inteiros e até distritos, mostravam-se como grandes oportunidades de moldar o crescimento urbano desordenado das décadas anteriores e dar acesso a um lar digno a famílias de baixa renda. Sendo assim, os gestores do Plano, pensando nos usuários de seus alojamentos, se colocaram um objetivo:

2. O INA é um ente público especializado no monopólio italiano de seguros de vida.


o local: Ina-Casa

3. A Itália situase no hemisfério norte, acima do Trópico de Câncer. Em dois terços de seu território o clima é mediterrâneo, enquanto que a porção norte apresenta clima continental. Os imóveis que apresentam face norte são prejudicados em termos de insolação natural pois não recebem incidência direta dos raios solares durante todo o ano.

“[...] fazer as próprias acomodações responderem às exigências dos trabalhadores. Portanto, [a gestão] realizou estudos e pesquisas no campo arquitetônico e urbanístico, promoveu investigações junto às famílias que seriam contempladas para acertar suas preferências quanto ao tipo de soluções de edifícios, catalogou as reclamações vindas de inspetores técnicos, testadores e beneficiários a fim de individuar os inconvenientes funcionais e construtivos de maior importância.” (INA-CASA, 1961).

Essas pesquisas transformaramse em diretrizes que deveriam ser levadas em consideração pelos arquitetos e engenheiros projetistas, e colaboradores do novo programa. Os apartamentos deveriam ter uma clara

distinção entre a área diurna e noturna, sendo esta última dotada de lavanderia, despensa, banheiro e quartos; nenhum apartamento poderia ter mais de um cômodo com face norte³ , todos os apartamentos deveriam ter ventilação transversal com pelo menos duas janelas opostas e uma superfície útil específica para cada tipo de alojamento: 50 m2 para apartamentos de 2 quartos, 70 m2 para os de 3, 90 m2 para os de 4 quartos e 110 m2 para os de 5 quartos. Quanto aos edifícios, a diretriz principal era que uma distância entre eles deveria ser proporcional às alturas, tal que todos os apartamentos pudessem receber o mínimo de insolação, principalmente no inverno. Uma vez entendido que esse plano contribuiria com a formação do ambiente urbano no geral, o INA-Casa ainda recomendava aos projetistas que deveriam ser evitadas as repetições infinitas e monótonas do mesmo tipo 51


o universal e o local na trajetória de Giancarlo de Carlo

de habitação; por meio das entrevistas com os futuros moradores, verificou-se a preferência das famílias por edifícios mais baixos, escadas internas, cozinha separada da sala de estar, banheiros dentro dos apartamentos e locais para guardar scooters⁴ . (ibid.) Tendo em vista a data em que entrou em vigor este plano e os acontecimentos no VII CIAM em Bergamo, que ocorreu no mesmo ano, cabem algumas observações sobre o momento em que vivia a arquitetura na Europa em geral, e na Itália particularmente. Considerando que o movimento moderno dos CIAM se consolidou após a Segunda Guerra Mundial, os preceitos da Carta de Atenas estavam sendo seguidos por muitos arquitetos que precisavam reconstruir cidades devastadas. Era um documento de suposta validade universal, uma vez que havia sido resultado de um congresso internacional de arquitetura, 52

para o qual contribuíram as ideias de inúmeros arquitetos de muitos países. Entretanto, suas diretrizes previam uma ruptura com a história para poder focar na tecnologia e funcionalidade modernas e alguns arquitetos italianos demonstravam certa dificuldade em suas regras, já que muitas de suas cidades eram constituídas por malhas urbanas consolidadas durante períodos históricos muito longos. De imediato, parecia ser incompatível exercer os preceitos rígidos da Carta sobre traçados urbanos tão complexos do ponto de vista físico. Giancarlo de Carlo representa certa convergência ideológica entre os intelectuais que procuravam pensar no resguardo de aspectos culturais e em meios de satisfazerem as necessidades dos usuários. Tal movimento encontrava respaldo nas ações do governo italiano que incorporou tais propostas na criação desse Plano de alcance

4. Scooter é um tipo de motocicleta muito popular nas cidades italianas como meio de locomoção. Sobretudo nas cidades de traçados históricos, elas proporcionam flexibilidade para a mobilidade em ruas estreitas. Além disso, são veículos muito baratos e acessíveis para amplos segmentos da população. A incorporação dos estacionamentos de scooters nos conjuntos habitacionais do INA-Casa é um indício da preocupação da instituição em adequar o projeto de massificação e ampliação


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do acesso à moradia de modo a incorporar os costumes e as necessidades da população local, vinculando o plano aos aspectos mais caros à manutenção de traços da cultura italiana.

nacional, que procurava acenar para toda a população italiana. O ponto de vista mudava: ao invés de se estudarem cidades e delas surgirem soluções universais, como o ocorrido com a Carta de Atenas, partiase da consulta aos usuários, de suas aspirações e de suas necessidades, para além do estudo erudito dos problemas urbanos. Importante destacar que os próprios membros do CIAM já demonstravam um desejo de discutir novos assuntos, apesar de seus líderes estabelecerem o debate sobre as mesmas pautas de outrora. É o que se conclui dos acontecimentos que marcaram o VII encontro em Bergamo, como já destacado anteriormente, apesar de os projetos escolhidos para serem expostos naquele congresso, em sua maioria, seguirem os preceitos racionalistas. Essa dualidade entre os projetos expostos no congresso e a

necessidade de debater novos temas comprova que havia uma urgência de revisão das pautas em torno a disciplina. A pergunta que surgia era: seria mesmo possível chegar a regras, ou a elementos formais de uma linguagem, que fossem comuns para toda a disciplina arquitetônica? Naquilo que pode ser lido como uma tentativa de diálogo entre os ideais dos CIAM e as preocupações com a identidade italiana, o Plano INACasa criou livretos, como cartilhas de diretrizes, para os arquitetos participantes, no intuito de orientá-los sobre as diferentes formas de projetar as unidades. Nesse ponto, a iniciativa se aproximava da Carta de Atenas, já que procurava definir elementos comuns que norteassem a produção pública de habitação na Itália.

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Imagem 9 Fascículo INA-Casa

Ainda que a Carta de Atenas pretendesse um alcance muito maior, universal, o conceito geral de estabelecer diretrizes a serem seguidas pelos projetistas dos bairros do INACasa demonstram que havia o desejo, por parte daqueles que conceberam o Plano e também do Estado italiano, de estabelecer pontos comuns na produção dos distintos arquitetos responsáveis pelos inúmeros projetos habitacionais. 54

Tais livretos se apresentavam como manuais criados a partir de premissas com o objetivo de atribuir valor à arquitetura: “[...] fascículos que recolhiam em si argumentos, recomendações, orientações, esquemas, exemplos, para ‘guiar’ mais do que codificar a projetação de alojamentos, edifícios, núcleos e distritos, na tentativa de atribuir a todas as intervenções uma certa qualidade tecnológica, arquitetônica e urbana, evitando, ao mesmo tempo, uma aprovação excessiva das conquistas do plano.” (INA-Casa, 1961)

A diferença maior está aí: os exemplos dados não tinham uma finalidade normativa, e sim serviam de modelos passíveis de interpretação e reelaboração, pois seguiam as exigências e diferentes condições dos


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contextos locais. Os pré-moldados, apesar de parecerem uma boa ideia em situações emergenciais como esta do pós-guerra, foram pouco utilizados nos projetos do INA-Casa; quando eram utilizados, destinavam-se ao uso específico em um conjunto particular e não para o emprego em projetostipo. Cada projeto deveria respeitar as peculiaridades do meio em que se inseria e ser pensando em concordância com o seu entorno. Ao mesmo tempo em que se observava o uso de elementos regionais vernaculares em alguns conjuntos, refletindo o desejo de muitos arquitetos de quebrar com o passado recente, outros apresentavam características modernas, particulares aos projetos daqueles que trabalharam no período fascista, indicando continuidade com o momento histórico. (PILAT, 2009) Essa dualidade aponta mais uma vez a liberdade que tinham os arquitetos na

concepção projetos sem ter que seguir regras rígidas ou um estilo específico. O plano INA-Casa de moradia para operários construiu mais de 350 mil unidades (PILAT, 2009, p.4) habitacionais por toda a Itália durante dois períodos de sete anos (1949-56 e 1956-63) o que também representou grande desenvolvimento para o país, com a criação de milhares de empregos. Os conjuntos habitacionais particularmente merecem atenção, porém o foco principal desta narrativa é a ideia que há por trás das construções. Através do contato com os usuários, o plano deu voz aos trabalhadores e suas famílias a participarem da concepção das suas casas, provendo habitações de qualidade para as classes de baixa renda. Giancarlo participou do Plano com alguns projetos, e o mais famoso deles ficou conhecido como Quartiere Feltre, em Milão, sob a coordenação de 55


o universal e o local na trajetória de Giancarlo de Carlo

Gino Pollini (1903-1991) e colaboração de outros nove colegas. O conjunto foi criado na segunda metade do Plano, entre 1957-61 e neste caso a equipe de arquitetos propôs a construção de dois tipos de edifício, um conjunto principal de cinco blocos de dez andares alinhados, e um conjunto mais baixo, com edifícios de quatro andares. O primeiro conjunto resguarda uma área verde e uma escola primária, enquanto que o segundo procura dar continuidade ao tecido urbano consolidado, onde prevalecem as construções mais baixas. Essa escolha projetual demonstra um diálogo do conjunto com a cidade: enquanto que os edifícios menores se relacionam com o tecido histórico de Milão atuando como uma “passagem gradual entre o pré-existente e os edifícios altos” (LUCCHINI, 2011), os mais altos se relacionam com elementos “de escala maior como o Parque Lambro e o rio 56

[Lambro]” (ibid.), que cercam o lote. A ligação entre Giancarlo e o Plano INA-Casa não é meramente projetual. A aproximação se dá na medida em que há em ambos a preocupação pela criação de uma arquitetura engajada socialmente, com a concepção dos espaços construídos que levem em consideração todas as características do meio em que se inserem. A ideia de projeto participativo de De Carlo se refletiu no Plano exatamente no ponto em que a gestão considerou a opinião dos futuros contemplados como algo que seguramente traria melhorias ao programa. A ideia fundamental era que o arquiteto detém as técnicas e outras ferramentas para conceber um projeto arquitetônico e urbanístico, mas a partir do momento em que pondera a opinião daquele que vai habitar seus espaços, revela-se aberto ao debate. Na concepção de Giancarlo, ouvir o


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usuário é tão importante como melhorar o seu repertório, uma vez que para ele a participação é um “veículo de educação e cultura” (BARONE e DOBRY, 2004). No INA-Casa as famílias eram ouvidas, e sua opinião se mesclava com o saber do arquiteto para resultar nos tantos conjuntos habitacionais que marcam um momento de avanços materiais e sociais na história italiana.

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considerações finais

considerações finais Giancarlo foi uma figura importante no cenário italiano a partir do final da década de 40. Seu envolvimento nos grupos anti-fascistas da Resistência e seu contato com importantes arquitetos como Giuseppe Pagano, contribuíram muito na sua visão de mundo, bem como o meio em que viveu. A realidade e cultura de seu país certamente têm sua marca na forma de pensar do arquiteto. Sua trajetória forneceu muitos 59


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elementos para os debates sobre a arquitetura e a figura do arquiteto na segunda metade do século XX. Por um lado, seu engajamento nos debates do campo disciplinar, primeiro no CIAM, depois no Team X, revela sua preocupação em pensar no sentido social do trabalho do arquiteto junto com o debate internacional. A cultura italiana era parte fundante da própria cultura europeia desde o Renascimento, e com tal estava na origem das discussões sobre a autonomia do campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo. Ao mesmo tempo, a dimensão humanista dessa cultura esteve na base da própria formação de Giancarlo, não só no sentido disciplinar, mas também político. E foi exatamente o sentido político que despertou em toda a Europa, e mais ainda na Itália impregnada por sua densa herança cultural, o descontentamento com as promessas universalizantes que 60

haviam orientado todo o Ocidente desde o Iluminismo, mas cujo sentido de progresso tinha levado à devastação causada pela Segunda Guerra. Assim, Giancarlo de Carlo foi ativo na desconstrução dos ditames modernistas no âmbito do grupo Team X e foi também um dos pioneiros na Itália da defesa da participação no projeto arquitetônico e urbano. Sem deixar de citar seus projetos mais importantes, o foco principal desse trabalho foi a pesquisa das suas contribuições no campo teórico. A aproximação de De Carlo ao projeto participativo se desenvolveu ao longo de anos, e claro que não foi uma trajetória isenta de dificuldades e contradições; porém, mais do que observar se a forma de seus edifícios correspondiam ao seu discurso, o mais importante é o momento da sua fala que tangencia as responsabilidades do arquiteto. Para ele, mais do que


considerações finais

possuir conhecimentos técnicos, o arquiteto deve compreender o meio em que vai projetar nos seus aspectos geográficos, culturais e históricos. Tudo isso para dar à arquitetura uma escala humana, pensar nos espaços tendo em mente as necessidades e anseios do usuário. A participação comunitária na concepção dos seus projetos habitacionais se aproxima ainda mais dessa escala: passa do ser único (padrão impessoal) presente no pensamento do movimento moderno, para o ser coletivo que se encontra no bairro e na cidade. Para Giancarlo de Carlo, a tomada de consciência do indivíduo na esfera coletiva e pública o tornaria livre e responsável por sua tarefa enquanto cidadão.

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bibliografia

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Imagem 2 Fonte: Revista Casabella Continuità, n. 201 de 1954, p.31. Imagem 3 Fonte: http://www.ribaj.com/culture/ broken-dreams Imagem 4 Fonte: http://www.revistas.usp.br/posfau/article/viewFile/43369/46991

fonte imagens

Imagem 5 Fonte: http://www.ribaj.com/culture/ broken-dreams

Capa Fonte: https://www.pinterest.com/giuliascotto/mat/

Imagem 6 Fonte: https://www.pinterest.com/ pin/348888302361798786/

Imagem 1 Fonte: http://www.designculture.it/giancarlo-decarlo.html

Imagem 7 Fonte: MUMFORD, Eric. The CIAM discourse on urbanism, 1928- 1960. Cambridge: MIT Press, 2002.

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