Dossiê Cidade, teoria, etnografia Apresentação: Heitor Frúgoli Jr. e Laura Graziela Gomes s/morro varandão salão 3dorms: a construção social do valor em mercados imobiliários “limiares” Mariana Cavalcantii
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Condomínios Horizontais em Brasília: Elementos e Composições Cristina Patriota de Moura
AntropolíticA
ISSN 2179-7331
Para uma sociografia da sociologia urbana brasileira: a obra de Luiz Antonio Machado da Silva Jussara Freire e Lia de Mattos Rocha A “conquista” de Anhangüera: situação de fronteira na metrópole de São Paulo” Mônica de Carvalho
REVISTA CONTEMPORÂNEA DE ANTROPOLOGIA
A rtigos
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Durkheim e os primórdios da etnologia universitária Victor Karady Bebendo a bordo: tradição aprendida Elizabeth Espindola Halpern; Ligia Maria Costa Leite; João Ferreira da Silva Filho (in memorian) As continuidades do descontínuo. O trabalho policial e judicial em casos de “narcotráfico” na fronteira da Argentina com o Paraguai Brígida Renoldi Saqueos, ranchos, casetas, peajes, plazas “liberadas”, esquinas “calientes”, planes de contigencia, zonas de seguridad... ¿ Todos contra lo público? Pedro José García Sánchez A conquista da autonomia através dos mercados: Como pequenos agricultores mudaram sua forma de produzir e comercializar a produção em Ipê (RS) Daniela Oliveira, Marcelo Kunrath Silva e Sergio Schneider As trajetórias das esquerdas no Uruguai e na Argentina em perspectiva comparada Roberta Rodrigues Marques da Silva
Resenha Livro: LOPES, Luis Otávio do Canto. Várzea e varzeiros da Amazônia. 1. Ed. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2008. Autor da Resenha: Diego Corrêa Furtado
AntropolíticA
Notícias do PPGA Relação de dissertações defendidas no PPGA Relação de teses defendidas no PPGA IV Jornada de Antropologia dos Alunos do PPGA/UFF Revista Antropolítica: números e artigos publicados Coleção Antropologia e Ciência Política (livros publicados)
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Universidade Federal Fluminense
EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Rua Miguel de Frias, 9, anexo, sobreloja Icaraí - Niterói, RJ - CEP 24220-900
1° Semestre 2014
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No 36 - 1o semestre 2014
ISSN 2179-7331 Antropol铆tica
Niter贸i
n. 36
p. 1-347
1. sem. 2014
© 2014 Programa de Pós-Graduação em Antropologia UFF Direitos desta edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal F luminense – Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – CEP 24220-900 – Niterói, RJ – Brasil – Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21) 26295288 – http://www.editora.uff.br – E-mail: secretaria@editora.uff.br É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTA OBRA SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DA EDITORA.
Normalização / Revisão / Projeto gráfico, capa e editoração: Fabricio Trindade Ferreira ME Revisão de espanhol: Larissa Zanetti Revisão de inglês: Luiza Aragon Catalogação-na-Fonte (CIP) A636 Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia — n. 36, 1º sem. 2014, (n. 1, 2. sem. 1995). Niterói: Editora da UFF, 2014. v. : il. ; 23 cm. Semestral. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense.
ISSN 2179-7331
1. Antropologia Social. I. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Antropologia.
CDD 300
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor Sidney Luiz de Matos Mello Vice-Reitor Antonio Claudio da Nóbrega Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação Antonio Carlos Lucas de Nóbrega Conselho Editorial da Antropolítica Luiz de Castro Faria (PPGA/UFF) (In memorian) Ana Maria Gorosito Kramer (UNAM – Argentina) Anne Raulin (Paris X – Nanterre) Arno Vogel (UENF) Charles Freitas Pessanha (UFRJ) Charles Lindholm (Boston University) Claudia Lee Williams Fonseca (UFRGS) Daniel Cefaï (Paris X – Nanterre) Edmundo Daniel C. dos Santos (Ottawa University) Eduardo Diatahy Bezerra de Meneses (UFCE) Eduardo Rodrigues Gomes (PPGCP/UFF) João Baptista Borges Pereira (USP)
Comissão editorial da Antropolítica Laura Graziela F. F. Gomes (PPGA / UFF) Simoni Lahud Guedes (PPGA / UFF) Fábio Reis Mota (PPGA / UFF) Daniel Bitter (GAP/UFF) Arthur Pecini (UQAM) Secretária executiva Ana Fontes Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (UFPE) Lana Lage de Gama Lima (UENF) Licia do Prado Valladares (IUPERJ) Luís Roberto Cardoso de Oliveira (UNB) Marc Breviglieri (EHESS) Mariza Gomes e Souza Peirano (UNB) Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho (UFRJ) Raymundo Heraldo Maués (UFPA) Roberto Augusto DaMatta (PUC) Roberto Mauro Cortez Motta (UFPE) Ruben George Oliven (UFRGS) Sofia Tiscórnia (UBA)
Esta edição contou com recursos provenientes do Edital Auxílio Editoração Proppi/UFF 2014. EDITORA FILIADA À
SUMÁRIO EDIÇÃO 36
NOTA DOS EDITORES:-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..7
DOSSIÊ: CONFLITOS AMBIENTAIS: SABER ACADÊMICO E OUTROS MODOS DE CONHECIMENTO NAS CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS SOBRE GRANDES PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO Apresentação: Eliane Cantarino O’dwyer-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..- 11
A CRÍTICA DO “AMBIENTE” E O AMBIENTE DA CRÍTICA Henri Acselrad-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..- 27
A PESQUISA SOBRE CONFLITOS AMBIENTAIS E O ASSÉDIO PROCESSUAL A PESQUISADORES NO BRASIL Raquel Giffoni Pinto-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-. 49
ELEFANTES NAS SALAS ONDE OS PÚBLICOS ENCONTRAM A “CIÊNCIA”?: UMA RESPOSTA A DARRIN DURANT, “REFLETINDO SOBRE A EXPERTISE: WYNNE E A AUTONOMIA DO PÚBLICO LEIGO” Brian Wynne Introdução ao texto: Fabrina Furtado, Raquel Giffoni Pinto-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..- 83
ARTIGOS CLASIFICACIONES Y ESTIMACIONES EN LA GESTIÓN DE LA INFANCIA “COM DERECHOS VULNERADOS”. PRÁCTICAS COTIDIANAS DE INTERVENCIÓN EN UN DISPOSITIVO ESTATAL DEL CONURBANO BONAERENSE Agustín Barna-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.113
COTIDIANO E POLÍTICA DA LUTA POR MORADIA NO CENTRO DE SÃO PAULO Carlos Filadelfo -..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.149
O “UNIFORME” E O “COPO”: ENTRECRUZAMENTOS (DES)NECESSÁRIOS Elizabeth Espindola Halpern / Ligia Costa Leite -..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.179
ASSOCIAÇÃO DE PROFISSIONAIS E AMIGOS DO FUNK: PROTESTO POLÍTICO E FUNK- RESGATE NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RIO DE JANEIRO Luciane Soares Silva -..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.211
ADMINISTRAÇÃO DE CONFLITOS SEM TRIBUNAIS: OS NDEN-DEULI DO SUDESTE DA TANZÂNIA P. H. Gulliver-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.239
OLHARES CRUZADOS DESAFIOS PARA A INTERNACIONALIZAÇÃO DA PESQUISA: COMO FAZER TRABALHO DE CAMPO NO CANADÁ? Mirian Alves-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.305
RESENHAS PEREIRA, LUZIMAR PAULO. OS GIROS DO SAGRADO. UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE AS FOLIAS EM URUCUIA, MG. RIO DE JANEIRO: 7 LETRAS, 2010. Daniel Bitter-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.. 325
CAPUTO, STELA GUEDES. EDUCAÇÃO NOS TERREIROS: E COMO A ESCOLA SE RELACIONA COM CRIANÇAS DE CANDOMBLÁ. RIODEJANEIRO: PALLAS, 2012, 296 P. Kleverton Arthur De Almirante -..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..- 337
CONTENTS 36
DOSSIER ENVIRONMENTAL CONFLICTS: SCIENTIFIC KNOWLEDGE AND OTHER FORMS OF KNOWLEDGES IN PUBLIC CONTROVERSIES ABOUT HUGE DEVELOPMENT PROJECTS Presentation: Eliane Cantarino O’dwyer-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-. 11
ENVIRONMENTAL CRITICISM AND THE ENVIRONMENT OF CRITICISM Henri Acselrad-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-. 27
RESEARCH ON ENVIRONMENTAL CONFLICTS AND PROCEDURAL HARASSMENT OF RESEARCHERS IN BRAZIL. Raquel Giffoni Pinto-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-. 49
ELEPHANTS IN THE ROOMS WHERE PUBLICS ENCOUNTER ´SCIENCE`?: A RESPONSE TO DARRIN DURANT “ACCOUNTING FOR EXPERTISE: WYNNE AND THE AUTONOMY OF THE LAY PUBLIC Brian Wynne Introdução ao Texto: Fabrina Furtado, Raquel Giffoni Pinto-..-..-..-..-..-..-..-..-. 83
ARTICLES CLASSIFICATIONS AND ESTIMATES IN THE MANAGEMENT OF CHILDREN “WITH VIOLATED RIGHTS”. DAILY INTERVENTION PRACTICES IN A STATE DEVICE IN THE SUBURBAN AREA OF BUENOS AIRES. Agustín Barna -..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.. 113
EVERYDAY AND POLITICS IN THE STRUGGLE FOR HOUSING IN DOWNTOWN SÃO PAULO Carlos Filadelfo -..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..- 149
THE “UNIFORM” AND THE “GLASS”: (UN)NECESSARY CROSSOVERS Elizabeth Espindola Halpern, Ligia Costa Leite -..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..- 179
ASSOCIATION OF FUNK PROFESSIONALS AND FRIENDS: POLITICAL PROTEST AND FUNK-RESCUE IN RIO DE JANEIRO’S CHAMBER OF DEPUTIES. Luciane Soares Silva-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.. 211
DISPUTE SETTLEMENT WITHOUT COURTS: THE NDENDEULI OF SOUTHERN TANZANIA P. H. Gulliver-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.. 239
EXCHANGING PERCEPTIONS CHALLENGES TO INTERNATIONALIZING RESEARCH: HOW TO DO FIELDWORK IN CANADA? Mirian Alves -..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.. 305
REVIEWS PEREIRA, LUZIMAR PAULO.. THE SACRED ROUNDS: A ETHNOGRAPHIC STUDY ABOUT THE FOLIAS IN URUCUIA, MG. RIO DE JANEIRO: 7 LETRAS, 2010. Daniel Bitter-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-.. 325
CAPUTO, STELA GUEDES. EDUCATION IN TERREIROS: THE WAY SCHOOL GET IN TOUCH WITH CHILDREN WHO ARE FAITHFUL TO CANDOMBLÉ. RIO DE JANEIRO: PALLAS, 2012, 296 P. Kleverton Arthur De Almirante -..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..-..- 337
NOTA DE EDITORES A Revista Antropolítica tem se destacado pela capacidade de abrigar artigos originais de autores brasileiros e estrangeiros que se dedicam a problemáticas diversas, em campos etnográficos vastos. Portanto, tem privilegiado a circulação de pesquisas cujos enfoques são heterogêneos e a circulação internacional do conhecimento antropológico produzido contemporaneamente. A revista, nesses termos, está em estreita consonância com a consequente política institucional do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF no que diz respeito a consolidação de um canal de comunicação que permita a difusão e democratização da produção antropológica (e de outros campos das Ciências Humanas), acolhendo a produção intelectual de jovens e consagrados professores e pesquisadores do Brasil e do exterior. A orientação acadêmica da Revista está em sintonia com os pressupostos contemporâneos da qualificada produção intelectual por abrigar em seus números a heterogeneidade de temáticas, perspectivas e linhagens que encontram eco nas diferentes “escolas” do pensamento antropológico. No número 36, correspondente ao semestre de 2014, publicamos artigos de excelência reconhecida no campo intelectual das Ciências Sociais que vem fortalecer as redes de pesquisadores no Brasil e no exterior com as quais mantemos intercâmbios sistemáticos por meio de inúmeros convênios internacionais e parcerias institucionais. Iniciamos este número com a publicação do dossiê temático organizado pela professora Eliane Cantarino O’Dwyer, intitulado, Conflitos Ambientais: saber acadêmico e outros modos de conhecimento nas controvérsias públicas sobre grandes projetos de desenvolvimento. Os artigos tratam de diversas situações sociais nas quais se contrapõem “comunidades” minoritárias, tais como indígenas, quilombolas, populações tradicionais e outras, aos grupos econômicos e atores institucionais hegemônicos engajados em projetos desenvolvimentistas e modernizadores construídos no âmbito de Estados-Nação. O dossiê revela que estes projetos estão frequentemente envolvidos em controvérsias públicas, contestados por grupos que desenvolvem distintos usos Revista Antropolítica, n. 36, p. 7-8, Niterói,1. sem. 2014
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e sentidos de certos objetos, tais como ar, águas e sistemas vivos, não regidos pela lógica do mercado e da noção de propriedade privada. Na sessão de artigos, Augustín Barna, com seu texto intitulado CLASIFICACIONES Y ESTIMACIONES EN LA GESTIÓN DE LA INFANCIA “COM DERECHOS VULNERADOS”. Prácticas cotidianas de intervención en un dispositivo estatal del conurbano bonaerense, interroga-se, a partir de um trabalho de cunho etnográfico sobre as junções e injunções existentes nas políticas de proteção à infância, desvelando as redes e dramas que se constituem na relação entre os atores e as instituições. O artigo COTIDIANO E POLÍTICA DA LUTA POR MORADIA NO CENTRO DE SÃO PAULO, de Carlos Filadelfo, toma emprestado o Movimento Sem Teto do Centro como lócus privilegiado para compreender as complexas confecções do fazer a política a partir da vida cotidiana. O trabalho de Elizabeth Espindola Halpern e Ligia Costa Leite, intitulado “UNIFORME” E O “COPO”: ENTRECRUZAMENTOS (DES)NECESSÁRIOS, busca refletir sobre as formas de apropriação do álcool no interior da Marinha de Guerra, focando-se numa pesquisa de natureza sócio-histórica. Publicamos também, o artigo ASSOCIAÇÃO DE PROFISSIONAIS E AMIGOS DO FUNK: PROTESTO POLÍTICO E FUNK - RESGATE NA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIO DE JANEIRO, de Luciane Soares Silva, visa compreender determinados vocabulários de motivações de natureza cultural, como as rodas de funk se convertem em importantes dispositivos políticos de conformação das mobilizações coletivas e formas de contestação do acesso à cidade. Por fim, publicamos uma tradução de um importante artigo de P. H. Gulliver no qual se analisa sua etnografia sobre os Ndendeuli, cultivadores nômades do leste de Songea, sudeste da Tanzânia. Na sessão Olharez Cruzados, a pesquisadora Mirian Alves, em decorrência de sua experiência de campo no Canadá, lança instigantes interrogações sobre a produção internacionalizada do conhecimento antropológico. Os trabalhos originais ora apresentados neste número podem servir para a ampliação do diálogo e da pluralização dos olhares sobre o fazer antropológico.
Revista Antropolítica, n. 36, Niterói,1. sem. 2014
DOSSIÊ
Conflitos Ambientais: saber acadêmico e outros modos de conhecimento nas controvérsias públicas sobre grandes projetos de desenvolvimento Environmental Conflicts: scientific knowledge and other forms of knowledges in public controversies about huge development projects APRESENTAÇÃO: ELIANE CANTARINO O’DWYER Este dossiê, ao reunir artigos na temática dos conflitos ambientais, apresenta um conjunto de reflexões inovadoras sobre questões como os usos políticos da “incerteza científica”, liberdade acadêmica, assédio processual aos pesquisadores, o papel dos “especialistas” encarregados da “perícia científica oficial” e do “público leigo” nas tomadas de decisão em contextos de controvérsia pública. Neles se contrapõem “comunidades”,1 muitas delas autoidentificadas socialmente em categorias legalmente reconhecidas como indígenas, quilombolas, populações tradicionais e outras, aos grupos econômicos e atores institucionais que impulsionam projetos políticos que se pretendem hegemônicos mediante perspectivas desenvolvimentistas modernizadoras construídas no âmbito de Estados-Nação. Deste modo, programas desenvolvimentistas em curso no Brasil, quando objeto de controvérsias públicas, dão lugar, com frequência, a modos de resolução de conflitos que recorrem a noções de imparcialidade e neutralidade científicas para excluir outros modos de conhecimento e significações produzidos pelos atores sociais. 1
“The core of our meaning was that local-level politics occurs in communities where relations are ‘multiplex’ rather than ‘simplex’ (…) and where politics is incomplete in the sense that actors and groups outside the range of the local, multiplex relationships are vitally and directly involved in the political processes of the local group”. (Swartz 1968, p.1) Revista Antropolítica, n. 36, p. 11-25, Niterói,1. sem. 2014
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Ao diagnosticar os conflitos ambientais “como disputas por usos e sentidos diversos de objetos como o ar, as águas e os sistemas vivos, que se caracterizam por escapar ao domínio da propriedade privada e da regulação mediada pelos mecanismos de mercado” (vide Acselrad) e que, portanto, têm sido igualmente caracterizados como “conflitos cognitivos”, os autores desta coletânea, mediante estudos de caso sobre situações sociais, engendram uma “única história que se desenrola através de linhas de ação antagônicas mutuamente orientadas”. (GOFFMAN, 2010, p.18) As situações sociais constituem uma base analítica e estão referidas ao ambiente espacial completo no qual eventos decorrentes da definição de “metas públicas”,2 desenvolvimentistas nos casos examinados, permitem a compreensão de processos políticos que envolvem, por um lado, atores sociais e/ou “comunidades”, e por outro, agentes econômicos e grupos externos diretamente envolvidos nos processos políticos que se dão a nível local. (SWARTZ, 1968) Os eventos decorrentes da implantação de metas públicas definidas como desenvolvimentistas, ao contraporem atores sociais a interesses econômicos e governamentais nos modos de apropriação social de ecossistemas, contam igualmente com a participação do campo acadêmico e demais “especialistas” que têm divergido publicamente sobre o papel da ciência e da produção de um saber visando assegurar objetivos previamente estabelecidos, que exerce um poder de exclusão do “público leigo” com seu repertório de valores, significados e experiências de vida. Assim, Henri Acselrad, no primeiro artigo desta coletânea, busca estabelecer uma relação dialógica entre o debate ambiental no século XXI e o conhecimento do meio ambiente inserido em problemáticas territoriais, nas quais “escolhas técnicas e locacionais de empreendimentos” sobre recursos ambientais se contrapõem às “práticas espaciais”, segundo modos de fazer, criar e viver de “sujeitos coletivos”. Os chamados conflitos ambientais, que são a expressão dessas ações sociais que assumem arranjos assimétricos e relações de poder, tornam-se igualmente objeto de estudo, e os pesquisadores envolvidos na te2
“Politics, as I use the term, refers to the events which are involved in the determination and implementation of public goals and/or the differential distribution and use of power within the group or groups concerned with the goals being considered”. (Swartz 1968, p.1).
Revista Antropolítica, n. 36, Niterói,1. sem. 2014
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mática experimentam frequentemente condições públicas de questionamento do saber produzido a partir de relatos que contradizem respostas prontas ao modelo de “ordem social” definida como desenvolvimentista, espécie de fonte de salvação da economia, o que pode ser igualmente acompanhado de sanções negativas no campo intelectual e político. A restrição à “liberdade acadêmica” tem atingido pesquisadores que estudam os impactos ambientais de programas desenvolvimentistas, como apresentados no artigo, mediante “interpelações judiciais, interditos proibitórios, demandas de descredenciamento profissional, pressões sobre Reitorias de universidades contra projetos de pesquisa” em andamento, ações essas configuradas judicialmente como “assédio processual”, mesmo que em nome do “direito ao contraditório”. Tais “estratégias de inibição do debate acadêmico”, incluindo a criminalização de pesquisadores, como analisado pelo autor, fazem uso político da “incerteza científica”,3 sobretudo “alegando-se ausência de relações causais certificadas” no caso das rotinas banalizadas dos EIAs/RIMAs, como forma de desqualificar os questionamentos aos efeitos socioambientais dramáticos produzidos pela implementação de metas públicas definidas pelo projeto modernizador. A seguir, o artigo de Raquel Griffoni Pinto aborda a questão da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento e o saber” (BULOS, 2001, p. 1229), que é garantida no Brasil pela Constituição Federal de 1988 (artigo 206), e tem como beneficiária a universidade e instituições acadêmicas, versus o uso do poder político, direta ou indiretamente sobre o campo científico. Tal uso se dá mediante processos centrados em metas públicas caracterizadas como desenvolvimentistas, em torno das quais inexiste acordo entre as partes afetadas e envolvidas em conflito e competição pelos recursos socioambientais requeridos por forças econômicas e interesses definidos 3
Segundo o pensamento de Michel Foucault: “enquanto nas ciências naturais é sempre possível e geralmente desejável, que se estabeleça uma ciência normal e não contestada que define e soluciona problemas concernentes à estrutura do universo físico, nas ciências sociais, este saber normal e não contestado apenas indicaria que uma ortodoxia teria se instaurado, não através de um processo científico, mas por ignorar o fundamento e eliminar as ciências rivais. Isto significaria que a tarefa básica de explorar o fundamento das práticas e seu significado foi suprimida”. (Rabinow e Dreyfus 1995, p.180-181).
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como de Estado, que ameaçam a reprodução continuada de práticas sociais e culturais consideradas significativas a nível local. As situações sociais identificadas mediante formas de constrangimento exercidas à “liberdade acadêmica” são apresentadas no texto a partir do plano internacional contrastivamente ao contexto brasileiro, que segue parâmetros similares de controle da produção do conhecimento através de assédio processual, como os “interditos proibitórios”, que inibem e até impedem a presença de pesquisadores nas arenas públicas regionais e locais onde as atividades econômicas provocam os chamados danos ambientais, e da acusação de “danos morais” com o objetivo de restringir a divulgação dos resultados da pesquisa que problematizam os efeitos dos empreendimentos. A criminalização de práticas de pesquisa pelo uso de critérios ditos de imparcialidade e neutralidade do saber reformulados e regidos por outros regimes de “verdade e poder” representa, como analisado pela autora, uma tentativa de colonizar regras de produção do conhecimento internas ao campo científico e até conceituações debatidas entre seus pares com o fim de assegurar a exclusão de toda crítica. Por conseguinte, os usos da “incerteza científica” com objetivos de controle político pretendem reconfigurar espaços acadêmicos de reflexão livre que se dirigem às “margens do Estado”, compreendidas como lugares onde ocorrem formas de violência e autoridade construídas extrajudicialmente (DAS e POOLE, 2008, p. 29), o que igualmente levanta a questão da “elegibilidade das normas legais”, que permite “identificar as margens do Estado ao dirigir nossa atenção à onipresente incerteza das leis e à arbitrariedade da autoridade que busca assegurar a lei”. (ASAD, 2008, 61) Assim, em outros contextos políticos de reconhecimento de direitos culturais e territoriais pelo Estado brasileiro, quando a burocracia tem que eleger, sua escolha é, por definição, completamente livre e, por conseguinte, incerta, de tal modo que “a suspeita e a dúvida sobre a isenção do Estado passam a ocupar um espaço entre a lei e sua aplicação” (ASAD, 2008, p. 59). Na “incerteza das normas legais”, as margens do Estado deixam de constituir apenas
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espaços periféricos e reconfiguram novas práticas de governança como forma de controle sobre populações. (O’DWYER, 2014). O texto de Brian Wynne conduz a uma riqueza e multiplicidade de debates, controvérsias e questões presentes em contextos transnacionais, que convergem na crítica da expertise científica, utilizada para “legitimar práticas espaciais tidas por ambientalmente danosas” mediante a exclusão dos sujeitos sociais na tomada de decisões pela negação e não reconhecimento de outros modos de conhecimento produzidos pelas suas experiências de vida. Para compreender o papel do público leigo, sua compreensão pública da ciência e “explicar a divergência entre público e os experts”, o autor propõe uma abordagem crítica e (auto)reflexiva sobre a ciência – este “elefante na sala”, conforme sua expressão. Na construção dos argumentos ele reconhece as “habilidades de conhecimento do público” e dos significados (coletivos) socialmente produzidos como diferentes dos pressupostos científicos que envolvem intervenções de especialistas em domínios públicos. Contudo, essa diferença legítima tem sido constantemente negada pela institucionalidade científica, o que desqualifica e exclui as “preocupações públicas” do “debate e das decisões dos especialistas sobre uma questão do conhecimento como ‘o que são os riscos’” (ambientais, à saúde e à vida). A “ciência” nesses casos passa a atuar como “autoridade pública”, impondo-se desde fora, em nome de um conhecimento considerado publicamente arbitrário e situacionalmente sem significado pelos atores sociais. Para Wynne, a questão dos “encontros públicos com o domínio da ciência” passa pela problematização “sobre o que queremos dizer por ‘ciência’, como pesquisa e atividade de produção de conhecimentos especializados”, no que ele está de acordo, e “uma ‘ciência’ muito diferente, que está sendo implantada como tentativa de autoridade pública”, que é objeto de sua crítica. Além disso, ele argumenta sobre “a incapacidade das instituições dominantes que operam em nome da ‘ciência’, incluindo os organismos científicos, de reconhecerem que as questões políticas contestadas envolvendo a ciência não são questões científicas”, exclusivamente, nem são “simplesmente ‘políticas’ e, portanto, alocáveis a outros domínios e agentes institucionais”, mas
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“questões ‘públicas’, o que significa que identificar e abordar diferentes preocupações e significados públicos deve ser uma responsabilidade das instituições envolvidas”. Wynne reconhece, ainda, “enquanto princípio, a capacidade autônoma de cidadãos de coletivamente construírem significados públicos independentes”, pois de outra forma “acabamos com a cidadania democrática e a sociedade civil”. Deste modo, “falar de democracia a respeito da ciência”, não é “subsumir a cidadania ao cumprimento coletivo a partir de significados públicos externamente impostos, de forma ditatorial, em nome da ciência e do ‘risco’”, no caso de questões públicas como a energia nuclear e plantações geneticamente modificadas. Trata-se, segundo o autor, de uma “mudança no papel da ciência (desde os anos de 1950), de uma ciência que informa a política pública para uma ciência que, agora também, por padrão, provê a política pública de seus significados”. A partir das reflexões de Wynne podemos igualmente considerar e conceber a existência de práticas científicas disciplinares, como é o caso das ciências humanas e sociais, que não só informam a política pública, mas igualmente, podem aportar à política pública significados independentes produzidos pelos atores sociais nos processos políticos que envolvem metas públicas definidas mediante outros modelos de organização do espaço e exercício do poder. Tais práticas podem também ampliar e não restringir, segundo o autor, as questões definidas como “públicas”, e “do que seja o público, incluindo interesse público ou bem público”. Para concluir, retomo o contexto do debate responsável pela reunião desses artigos em um dossiê. O tema dos Conflitos Ambientais tem sido sistematicamente debatido nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), em Grupos de Trabalho (ou Seminários Temáticos) organizados em torno dessa questão, que se reúnem desde 2004. Os debates têm permitido contemplar uma grande diversidade de análises empíricas e os resultados das pesquisas realizadas por uma ampla rede de pesquisadores filiados a instituições de ensino e pesquisa em diferentes estados do país e até do exterior, em diálogo com a teoria possibilitam releituras críticas da chamada
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“questão ambiental”, bem como têm colocado em relação os aportes teóricos das diferentes disciplinas das ciências sociais. Assim, os conflitos ambientais passam a recortar um campo semântico próprio no qual categorias e noções dominantes sobre o tema são problematizadas na construção da “questão ambiental” como objeto de investigação científica. Esse balanço crítico positivo faz parte dos investimentos de (auto)reflexão que confluem na publicação deste dossiê. Principalmente após a realização de Mesa Redonda na reunião anual de 2008 da Anpocs sobre o tema dos “Conflitos ambientais e liberdade acadêmica”, ao contemplar “os casos de grupos de interesse e coalizões políticas cujos projetos são objeto de controvérsia ambiental e que procedem à interpelação judicial de pesquisadores, promovem campanhas públicas de intimidação, impetram ações judiciais contra cientistas, constrangem o direito à palavra e à informação, solicitam interditos proibitórios limitando o acesso a áreas de pesquisa, acionam conselhos profissionais para obter o descredenciamento de investigadores”, com o objetivo de discutir as condições de garantir a autonomia da produção científica. A minha participação nessa mesa redonda esteve também diretamente relacionada à experiência de atuação profissional na assessoria de laudos pericias da Associação Brasileira de Antropologia – ABA. Nesse ano de 2008, ao coordenar a referida mesa redonda na reunião da Anpocs, consultei amplo material divulgado na imprensa sobre o fazer antropológico em contextos de realização de laudos e relatórios de reconhecimento de terras indígenas e de quilombos. As críticas contundentes eram dirigidas a atuação de antropólogos nos processos de identificação e reconhecimento de terras indígenas e quilombolas, como no caso da matéria publicada na revista Veja (Edição nº 1999, 14 de março de 2007), “MADE IN PARAGUAI”. Ao denunciar a intenção da Funai de “demarcar área de Santa Catarina para índios paraguaios” no contexto dos estudos de impacto ambiental pela duplicação da BR 101, com a produção de relatórios sobre as áreas e comunidades Guarani afetadas em vários trechos da estrada, incluindo relatório de identificação e delimitação sobre os Índios Guarani Mbya e o zoneamento do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, foram omitidas informações etnográficas relevantes sobre as aldeias Guarani. De que as mesmas se inserem “na rede de relações de consan-
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guinidade e de afinidade que integram parentelas e grupos residenciais dispostos em diferentes localidades nas regiões sul e sudeste do Brasil (do RS ao ES), em Misiones na Argentina, no nordeste do Paraguai, o que pode ser verificado a partir dos dados genealógicos coligidos em campo”, e ainda, que “os Guarani de Morro dos Cavalos ocupam toda a área pleiteada tradicionalmente”, segundo resposta da antropóloga Maria Inês Ladeira, do Centro de Trabalho Indigenista – São Paulo, à mensagem enviada pelo repórter da revista Veja solicitando esclarecimentos sobre a matéria a ser publicada. Nesse mesmo ano de 2007, a campanha de descrédito ao trabalho dos antropólogos é dirigida a pesquisadores do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas (NUER), vinculado ao PPGAS/UFSC, que realizaram o relatório de identificação territorial da comunidade quilombola Invernada dos Negros, no município de Campos Novos, em Santa Catarina. Os ataques pessoais, nesse caso, mediante declarações feitas em Audiência Pública foram divulgados na imprensa por suposto “especialista” contratado pela parte contrária, como o Sr Hilário Rosa, que qualifica os resultados dos laudos produzidos, inclusive por outros antropólogos associados à ABA, como “falsos e mentirosos”. (Carta de Hilário Rosa: “Sobre a matéria publicada na coluna do jornalista Raul Sartori – A Notícia de 13/03/2007 – Guerra de Versão tenho a declarar o seguinte”.) Nem sempre as respostas tiveram garantidos os mesmos espaços nos grandes veículos de informação. Mesmo assim, a ABA tem se manifestado mediante notas públicas e em artigos de opinião, como a matéria publicada a partir de Carta Aberta da Associação Brasileira de Antropologia, em que o presidente da ABA anuncia termo de cooperação assinado com Ministério Público Federal - MPF, no qual a ABA se compromete a indicar peritos para a elaboração de laudos envolvendo demandas de minorias em processos judiciais, (...) assim contribuindo para ampliação das possibilidades de que indígenas, quilombolas e outras minorias exerçam o direito, previsto em nossa Constituição, de serem efetivamente ouvidas (...)
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[É destacado, ainda, que]: a antropologia, enquanto disciplina, tem uma longa trajetória na crítica ao etnocentrismo e aos preconceitos de uma maneira geral, quanto às implicações ético-morais do etnocentrismo e dos preconceitos quando estes se misturam com relações de poder, o que é uma ameaça permanente ao se tratar dos direitos de minorias. Isto é, uma arbitrariedade cognitiva que inviabiliza a compreensão transforma-se numa arbitrariedade normativa, caracterizando práticas de desrespeito e de abuso a direitos de todo o tipo. É a clara percepção do significado e implicações deste tipo de agressão que tem marcado a atuação política da ABA e da comunidade de antropólogos brasileiros em defesa de minorias contra as arbitrariedades do Estado e de grupos poderosos que, por incompreensão ou por interesses econômicos, frequentemente implementados em nome de políticas de desenvolvimento, não medem esforços para impor sua vontade e seu ponto de vista” (Cardoso de Oliveira 2007).
Passados quatro anos da matéria publicada na revista Veja, em 2011, é divulgada uma nota pública assinada pela Presidente da ABA Bela Feldman-Bianco, intitulada “Antropologia: Disparate e Oportunismo?”, em resposta as acusações da senadora da república, Kátia Abreu. Conforme a nota: como a mais antiga das sociedades científicas na área de Ciências Humanas no Brasil – fundada em 1955 – a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) se vê obrigada a esclarecer o que há de enganoso (...) nos frequentes pronunciamentos inverídicos em detrimento do trabalho do antropólogo, especialmente em suas pesquisas voltadas para o reconhecimento dos territórios indígenas e quilombolas no Brasil” (...). [Assim,] “em nome de uma pretensa insegurança jurídica, filtram-se as informações que de fato interessam ao público”, e conclui dizendo que “a titulação de territórios quilombolas e indígenas não é uma ameaça; ao contrário, é passo fundamental para a efetivação de uma sociedade plural e verdadeiramente democrática. (20/10/2011, © 2007 Abant - ABA - Todos os Direitos Reservados)
Sobre essas campanhas públicas de difamação, podemos considerar, lembrando Hannah Arendt, que “a falsificação deliberada e a mentira
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pura e simples, empregadas como meios legítimos de obter a realização de objetivos políticos fazem parte da história, (sendo que) a inverdade tem sido considerada quase sempre como um meio justificável nos assuntos políticos”. (ARENDT, 2007, p. 8, 9) Deste modo, dizer que os antropólogos inventam os grupos que são sujeitos de direitos individuais e coletivos é uma forma negligenciada de prestar atenção à natureza da ação social, “mediante a atitude de deformar, pelo pensamento e pela palavra, tudo aquilo que se apresenta claramente como um fato real” (ARENDT, 2007, p. 9), isto é, a existência de sujeitos coletivos que se autoatribuem a identidade indígena, quilombola, seringueiros e outras mais, com fins de reconhecimento de direitos territoriais ao Estado brasileiro. A “trama mentirosa” e as versões divulgadas na mídia pela modificação dos fatos foram “preparadas com a intenção pública de atingir a credibilidade” (ARENDT, 2007, p. 11) de pesquisadores envolvidos na produção de conhecimento sobre situações sociais de conflito ambiental e direitos territoriais, como propagandas organizadas por agentes do campo político visando sua própria imagem e a realização de objetivos definidos por grupos e coalizões de interesses econômicos e de poder. Deste modo, em nome de uma pretensa “insegurança jurídica” e de uma “segurança nacional” se exerce o poder de simplesmente filtrar as informações que de fato interessam ao público, ao interpretar à sua maneira e intenção o mundo social. Por fim, nas situações de pesquisa definidas igualmente como uma “antropologia da ação”4 prevalecem, por vezes, visões antagônicas sobre os modos de ocupação do espaço que envolvem atores sociais e instituições públicas, inclusive militares. Este foi o caso das comunidades do Mainã e Jatuarana, nas quais participantes das “oficinas de mapas” realizadas pelo Projeto Nova
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Empregamos o termo no sentido utilizado por Sol Tax: “Na tradição antropológica estudamos tais situações em primeira mão. Somos pesquisadores de campo. Realmente não posso imaginar a ação antropológica exceto em contextos de trabalho de campo. Vamos ao campo aprender alguma coisa nova sobre as circunstâncias em contextos de mudança e de resistência a mudança. Isto requer que nosso trabalho de campo inclua em uma única modelagem todas as pessoas envolvidas na situação de contato – uma tribo nativa e os missionários, negociantes, ou representantes do governo e residentes de outras culturas com as quais mantêm contato”. (Tax 1975, p. 515)
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Cartografia Social da Amazônia (PNCSA),5 manifestaram-se contrariamente às ações de deslocamento de famílias de uma área de treinamento militar do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), sediado em Manaus-AM, e às restrições impostas ao uso de recursos ambientais, segundo formas de reprodução camponesa de ocupação tradicional. No fascículo nº 37 publicado pelo PNCSA, em 2011, há depoimentos dos moradores das comunidades de Mainã e Jatuarana, que apresentam suas trajetórias de vida e de seus familiares vinculadas a esses lugares, assim como relatam os conflitos socioambientais com as ações de vigilância, fiscalização do Ibama e operações de intimidação e ameaça de “deslocamento compulsório” por parte de militares do CIGS. Por tais razões eles consideram que a “oficina de mapas” realizada pelo PNCSA tornou-se um instrumento importante para, em seus termos, “provar ao comando militar que as terras que nós estamos ocupando são nossas, não somos invasores como eles nos chamam”. (PNCSA, fascículo 37, p. 8) Dessa forma, tiveram como “documentar aonde nós moramos, aonde nós trabalhamos” (...) e “mostrar pro exército, pro INCRA e pro ITEAM, que nós existimos!” (idem), contrariando os mapas oficiais que ignoram sua presença. 5
O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) “tem como objetivo dar ensejo à autocartografia dos povos e comunidades tradicionais na Amazônia. Com o material produzido, tem-se não apenas um maior conhecimento sobre o processo de ocupação dessa região, mas, sobretudo uma maior ênfase e um novo instrumento para o fortalecimento dos movimentos sociais que nela existem. Tais movimentos sociais consistem em manifestações de identidades coletivas, referidas a situações sociais peculiares e territorializadas. Estas territorialidades específicas, construídas socialmente pelos diversos agentes sociais, é que suportam as identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais. A força deste processo de territorialização diferenciada constitui o objeto deste projeto.(...) Cada fascículo é resultado de uma relação social específica entre um povo ou comunidade tradicional e a equipe de pesquisadores. É o movimento social que busca o PNSCA para realizar a cartografia. A partir desse interesse manifesto, é realizada uma oficina de mapas com a participação de cerca de 30 agentes sociais e os pesquisadores membros do Projeto. Nela, os pesquisadores ensinam técnicas de GPS e de mapeamento, além de conversar com os agentes e coletar depoimentos sobre a história social e problemas da comunidade. Os agentes sociais produzem croquis, mapeando sua região e indicando quais os elementos relevantes para a sua composição. Em um segundo momento, sem a presença dos pesquisadores, os agentes sociais marcam, com GPS, os pontos do que consideram significativo de seu território. Na sequência, o PNSCA recolhe as informações das marcações de ponto e as georeferencia na base cartográfica, inserindo as ilustrações produzidas nos croquis. Essas ilustrações compreendem desenhos, esboços e reproduções de símbolos e objetos (remos, casas, embarcações, instrumentos de trabalho, animais, plantas etc.) que são transformados, a partir do trabalho da equipe de pesquisadores, em ícones para compor as legendas dos mapas. Simultaneamente, transcreve-se excertos de depoimentos e seleciona-se os que comporão o fascículo” (site http://novacartografiasocial.com)
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Qual a origem desse conflito? Segundo informações do fascículo produzido, em 1970 saiu publicado no Diário Oficial uma doação de área ao Exército para treinamento militar “onde já existiam várias comunidades” (idem, p.4). A sobreposição entre a área de treinamento militar e as posses de moradia e trabalho das famílias locais provoca muitos incidentes e nesse contexto os moradores passam a ser acusados de “invasão”. O mapa elaborado com a participação dos membros das comunidades da região do Puraquequara tornou-se para eles uma alternativa e meio de dar visibilidade a suas existências como coletividades que querem ser reconhecidas pelos modos próprios de vida na ocupação de um espaço florestal. A preservação da floresta mediante um modo de ocupação tradicional não faz dessas pessoas e “comunidades” que ali vivem exemplares da natureza e/ou “remanescentes” de formas de vida passadas que com a modernidade irão se extinguir.6 Ao contrário, o mapa georreferenciado mostra sua existência atual, que antecede inclusive a destinação desse espaço com fins militares. Acusados de serem “invasores”, os moradores sustentam: “não somos nenhum estrangeiro” (FASCÍCULO, nº 37, p. 9); “ninguém é invasor não; nós nascemos e nos criamos aqui” (idem). A despeito disto, há acusações que são inclusive objeto de inquérito policial militar, segundo as quais a ocupação dessas “terras devolutas” que nunca tiveram “dono”, estaria associada à “especulação imobiliária e à venda de terras” na região do Puraquequara. Essa forma de conceber a terra como mercadoria, utilizada inclusive com fins de especulação imobiliária, parece distante e sem relação com o ato, que gera a sobreposição do território, mediante a “doação” de terras devolutas para fins militares ignorando o fato da sua ocupação por famílias agricultoras extra6
Segundo Sol Tax: “A detailed map of the 1950 locations of Indian communities in the United States and Canada (43), distributed at the Chicago conference, showed clearly that, except for those removed to Oklahoma, almost all Indian communities still lived on parts of their aboriginal lands. It countered the myth of Indian disappearance and now provides a benchmark for understanding the movement since then of Indians to urban areas. The conference, with its more than 800 leaders in national Indian affairs, at least three-quarters of them Indians from all regions, religions, historical perspectives, and political persuasions, was a national media event that attracted international attention, exciting and genuine. It also appears to have been a turning point in modem American Indian history-the beginning of the end, perhaps, of the myth of the disappearance of Indians. It was probably the first time that Indians had ever been asked to express in public their collective hopes for their future. (TAX 1988, p.12-13)
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tivistas. Tudo indica que independentemente dos dados e informações (FASCÍCULO, nº 37), há uma “teoria” que orienta as ações de investigação militar em curso na região; assim “todos os dados que não concordam com ela têm sido rejeitados ou deliberadamente ignorados”. (ARENDT, p. 43) Tal modo de pensar a realidade parte do pressuposto que “as pessoas sempre agirão de formas bastante parecidas (...) movidas pelos mesmos desejos de poder e ganho, as mesmas esperanças de obtê-los”. (SAHLINS, 2006, p.10) Enfim, a cultura não importa, nem tem interesse, “quando comparada a uma natureza humana subjacente, à qual costumes e leis não podem resistir”, em função do “inato autointeresse” dos seres humanos. (idem) Assim, a guerra do Peloponeso, tal como descrita por Tucídides, que minimiza as diferenças culturais entre as culturas, ateniense e espartana, e favorece as semelhanças de suas naturezas, faz dessa história leitura obrigatória nas academias militares, como diz Sahlins, retomada ainda por escritores como Hobbes, Hamilton, Clausewitz e outros mais contemporâneos, segundo os quais “aparentes diferenças culturais (tornam-se) apenas expressões diversas e superficiais de uma natureza básica e autodignificada”. Ainda como argumenta, “o recurso à natureza humana deprecia a construção cultural de formas de vida humana”. (idem, p. 115) Mas reconhecer os pontos de vista de grupos, “comunidades” e/ou populações, suas formas de organização social e práticas culturais distintas não implica caracterizá-los como exemplares de sistemas socioculturais exóticos, a serem preservados na medida em que constituem um patrimônio nacional e, sim, trazer para discussão no âmbito de nossas disciplinas acadêmicas as relações de poder impostas na organização do espaço territorial pelo Estado-nação, pois “qualquer objeto (de estudo) que é subordinado e manipulado é em parte o produto de uma relação de poder, e ignorar este fato é não compreender a natureza deste objeto” (ASAD, 1973, p.18) Assim, remover as diferenças culturais, nas quais grupos e “comunidades” se reconhecem e se fazem reconhecer, da situação social e dos contextos de interação nos quais se encontram termina por “negar a existência de poder e hegemonia no mundo”. (BARTH, 1995, p. 65) Igualmente conceber a “cultura como um modo de conhecimento, que pessoas e grupos utilizam na ação social e em seu en-
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gajamento no mundo pode representar uma grande abertura entre nosso(s) conhecimento(s) (...) (científicos) e outros modos de conhecimento, (isto é) outras culturas, que podem operar contra a hegemonia acadêmica em nossas interações e concepções” (idem, p.66) mediante a incorporação de outros insights e experiências de vida.
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12. SWARTZ, Marc. Introduction. In: Swartz, Marc. Ed. Local-Level Politics: Social and Cultural Perspectives. Chicago, Illinois: ALDINE Publishing Company, 1968. pp.1-46. 13. TAX, Sol. Action Anthropology. In Honour of Sol Tax. Current Anthropology. v. 16, nº 4, December 1975. 14. ______. Pride and Puzzlement: A retro-introspective Record of 60 Years of Anthropology. Ann. Rev. Anthropology. 1988. 17: 1-21.
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A crítica do “ambiente” e o ambiente da crítica Environmental criticism and the environment of criticism Henri Acselrad Professor do IPPUR/UFRJ e pesquisador do CNPq; organizador dos livros Conflitos Ambientais no Brasil (Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2004) e Cartografia social, terra e território (ETTERN/ IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 2013). E-mail: henri@ippur.ufrj,br
Resumo O debate sobre “desenvolvimento” põe em pauta as diferentes estratégias de apropriação de espaços, ecossistemas e demais configurações socioecológicas. Em sua vertente crítica, este debate procura explicitar a diversidade de saberes e projetos associados aos diferentes sujeitos sociais que se referem a tais espaços. Tal processo de co-constituição do espaço e da diferença resulta, por vezes, em conflitos ambientais que expõem na esfera pública as perspectivas de sujeitos sociais que procuram dar às diferentes configurações socioespaciais sentidos diversos daqueles que lhes são atribuídos no âmbito do modelo de desenvolvimento dominante. Políticas “de conhecimento” e políticas “de desenvolvimento” atravessam os conflitos desencadeados em torno aos chamados impactos ambientais dos modos de ocupação territorial e das escolhas técnicas presentes nos grandes projetos minerários, hidrelétricos ou monoculturais. O presente trabalho procura discutir um conjunto de situações de pesquisa observadas no Brasil entre os anos de 2008 e 2012, em que as abordagens críticas dos conflitos ambientais – as que dão visibilidade à perspectiva dos próprios sujeitos cujas práticas são desestabilizadas por agressões ambientais – têm sua margem de autonomia constrangida por pressões provenientes de forças que se encontram situadas fora do campo científico. Palavras-chave: Conflitos ambientais, controvérsias científicas, liberdade acadêmica
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O sociólogo David Turnbull, estudioso das ciências, apontou a existência de uma relação histórica entre a constituição do espaço do conhecimento científico e o surgimento, em paralelo, de um conhecimento sobre o espaço.1 As técnicas da cartografia, diz ele, desenvolveram-se simultaneamente – e relacionadas – à constituição de um espaço próprio à ciência. Conhecer é, pois, também situar cada experiência e cada informação metodicamente construída em algum lugar no espaço de nossas competências intelectuais, no campo da abstração cognitiva. Esta consideração sugere, por analogia, outra: o conhecimento sobre o meio ambiente, em particular o modo como o debate ambiental tem se configurado desde o início dos anos 2000, parece, em grande parte, depender de um ambiente do conhecimento, ambiente este que – é o que procuraremos mostrar – tem se afigurado pouco propício ao exercício da reflexão e da capacidade crítica. Procuraremos desenvolver, a seguir, tal questão, segundo estas duas distintas vias de entrada – a do conhecimento do ambiente e a do ambiente do conhecimento. Historicamente, o capitalismo tendeu a acelerar a velocidade de circulação do capital, a “abolir o espaço por meio do tempo”. A partir do último quarto do século XX, descobre-se que há elementos do espaço que oferecem limites à compressão do tempo. O tempo do capitalismo estaria “fora dos eixos” e “deveria se curvar diante do espaço” – a acumulação acelerada estaria levando as empresas – dizem-nos os economistas do meio ambiente – a consumirem como renda seu “capital natural”, cabendo, pois, colocar limites à aceleração desta acumulação, privilegiar a “espacialização do tempo”, observar as determinações do local, as resistências e especificidades espaciais. Assim é que, na esteira de tais redescrições das problemáticas espaço-temporais, a questão ambiental emergiu na pauta das relações internacionais (Conferências da ONU, a partir de 1972), da fronteira tecnológica (via exploração dos recursos genéticos) e da linha de reestruturação dos direitos de propriedade (via pressão para Leis de Patentes e sobre conhecimentos tradicionais). A adjunção da questão ambiental às problemáticas territoriais propiciou 1
Turnbull, D. Masons, Tricksters and Cartographers, comparative studies in the Sociology of Scientific and Indigenous Knowledge. London: Routledge, 2000.
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também, por outro lado, uma crítica aos limites das abordagens convencionais sobre o espaço. Alguns autores dirão que a “queda da qualidade ambiental” veio juntar-se aos desequilíbrios regionais como um tipo adicional de “externalidade negativa” do crescimento econômico.2 Para outros, o meio ambiente é uma variável que vem somar-se aos atributos positivos do território: os padrões ambientais seriam fator adicional de promoção de economias urbanas e locacionais, ao lado do baixo custo da terra e da força de trabalho.3 Numa perspectiva crítica, porém, a incorporação da dimensão ambiental ao estudo dos processos espaciais ter-se-ia associado, antes, aos mecanismos de atribuição de novos sentidos aos territórios, considerando-se, em particular – diferentemente dos enfoques positivistas – que, também no que se refere à “ambientalização” do processos sociais, “a política e a economia estão inelutavelmente entrelaçadas com um substrato de cultura”.4 É neste contexto intelectual que emerge, no debate crítico sobre “desenvolvimento”, o entendimento da pertinência de estratégias que procuram se apoiar nas possibilidades oferecidas pela variedade de biomas, ecossistemas e demais configurações territoriais, fazendo valer a diversidade de saberes e projetos dos sujeitos sociais que se referem a estes espaços. No caso brasileiro, sabe-se que a expansão das fronteiras internas do mercado tem se materializado na instabilização de formas de produção relativamente autônomas, muitas delas baseadas na utilização de recursos de uso comum, responsáveis pela produção e reprodução da biodiversidade, das fontes de água e outros elementos daquilo que hoje nos é apresentado como recursos ameaçados de escassez e estratégicos para o futuro do país. Ora, com frequência crescente vemos comunidades urbanas de baixa renda, assim como grupos de ribeirinhos, seringueiros, geraiseiros, quilombolas e povos indígenas protagonizarem conflitos que exprimem a ausência de “acordo” entre as práticas espaciais que estes sujeitos desenvolvem e aquelas pertinentes aos 2
3 4
Cf. Cumberland, J.H. The Future of Regional Science and Ecological Economics. International Regional Science Review, v. 18, n.2, 1995, pp.171-176. Cf. Roberts, P. Sustainable Regional Planning. Regional Studies, v. 28, n.8, 1995, pp. 781-787. Cf. Berry, B.J.L. Whither "Regional” Science. International Regional Science Review, v. 17, n.3, 1995, pp. 249-296.
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projetos ditos “de desenvolvimento”. Isto porque, dadas certas combinações de atividades, o “meio ambiente” constitui-se em veículo de transmissão do que certos sujeitos entendem ser efeitos indesejáveis, disseminados pela água, pelo ar, pelo solo e pelos sistemas vivos, efeitos estes capazes de fazer com que o exercício de uma atividade – em geral tida como “de grande impacto” – comprometa a possibilidade de outras práticas se manterem.5 A literatura tem caracterizado como conflitos ambientais aqueles em que certos sujeitos coletivos alegam que a continuidade das práticas espaciais necessárias à sua reprodução mostra-se comprometida pelas escolhas técnicas e locacionais de empreendimentos cujos efeitos sobre recursos ambientais não mercantis como o ar, as águas e os sistemas vivos são tidos por indesejáveis. Ora, é justamente nestes tipos de conflitos que se exprimem politicamente as mencionadas “determinações do local, as resistências regionais, as alteridades espacializadas”,6 ou, nos termos de Massey, “a co-constituição do espaço e da diferença”7 através da qual evidenciam-se as perspectivas dos sujeitos sociais que procuram dar às distintas configurações socioespaciais sentidos diversos daqueles atribuídos no âmbito do regime de acumulação dominante. É, por outro lado, no estudo destes tipos de conflitos que se têm concentrado as pesquisas sociais que reconhecem a potência política dos conflitos ambientais, vistos como disputas por usos e sentidos diversos de objetos como o ar, as águas e os sistemas vivos, que se caracterizam por escapar ao domínio da propriedade privada e da regulação mediada pelos mecanismos de mercado. Temos podido observar que, paralelamente à afirmação dos conflitos ambientais como objeto da pesquisa social, têm se verificado, no Brasil, casos em que pesquisadores deste tema veem-se confrontados a situações de pesquisa elas próprias conflitivas, notadamente quando responsáveis por empreendimentos postos em questão por seus estudos acadêmicos mostram-se dispostos a criar obstáculos ao desenvolvimento de tais investigações. O presente 5
Ressalte-se que na maior parte dos casos, as vítimas dos impactos indesejados pertencem a setores populares, de menor renda, com menor acesso aos processos decisórios e com menores possibilidades de se deslocar para fugir aos efeitos danosos da ação dos empreendimentos de grande impacto.
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Cf. Harvey, D. A Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
7
Cf. D. Massey. Pelo espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
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trabalho pretende discutir as condições de emergência de um tipo particular de situação de pesquisa em que a abordagem crítica dos conflitos ambientais – aquela que dá visibilidade à perspectiva dos sujeitos cujas práticas são desestabilizadas por agressões ambientais – vê sua margem de autonomia constrangida por pressões provenientes de forças situadas fora do campo científico.
Pesquisa social e assédio processual O conhecimento do espaço socialmente produzido passa pela identificação e consideração dos conflitos que atravessam tanto os processos espaciais como os cognitivos – ou seja, ele tem por condição de sua realização a possibilidade de que seja exercida e ouvida a capacidade crítica da sociedade e, nos casos e circunstâncias em que os processos espaciais motivam a construção de problemáticas por parte de disciplinas acadêmicas – da ciência. Se considerarmos a perspectiva da sociologia pragmática, segundo a qual haveria sempre uma inquietação crítica nas sociedades, mesmo quando nelas reina uma ordem aparente, os conflitos ambientais tendem a traduzir as tensões em torno aos padrões de apropriação do espaço associados aos modelos de desenvolvimento. Tal tipo de inquietação traduzir-se-ia, em geral, por recorrentes questionamentos de ordem semântica – sobre o sentido das coisas – assim como sobre o que importa e o que vale – de ordem deôntica – no modo como se organiza a vida social8 ou, em nosso caso, o espaço do “desenvolvimento”. Registre-se, porém, que nunca deixam de operar também, continuamente e em paralelo, dispositivos tendentes a modular e constranger o exercício da crítica, seja no campo especificamente intelectual, seja no âmbito do debate público em geral, dada a propensão dos sistemas políticos a evitar a incerteza e buscar, via de regra, assegurar a manutenção da ordem. No que diz respeito ao campo específico das ciências sociais aplicadas ao espaço, temos podido identificar a vigência de dispositivos de tal ordem, tendentes a constranger o exercício crítico no campo intelectual, materializando-se em diferentes pontos do país, em anos recentes, em certo número de casos de constrangimento às práticas de pesquisadores e de restrição à sua liberda8
L. Boltanski. De La Critique. Paris : NRF Galimmard, 2009.
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de acadêmica quando estes se dedicam a estudar o impacto de projetos de desenvolvimento sobre as diferentes práticas espaciais e, particularmente, sobre as condições de reprodução de grupos sociais subalternos: alguns processos judiciais foram abertos contra pesquisadores que mostraram danos ambientais a moradores (caso de uma siderúrgica no Rio de Janeiro), a terras indígenas (caso de empresa produtora de aguardente no Ceará) e a pescadores (por projetos turísticos irregulares do ponto de vista da ocupação de áreas litorâneas no Ceará); campanhas públicas de ameaça atingiram uma pesquisadora que elaborou parecer crítico sobre o Estudo de Impacto Ambiental de uma empresa siderúrgica no Mato Grosso; uma ação judicial foi impetrada contra profissionais que coordenaram os estudos de reconhecimento de territórios quilombolas no norte do Espírito Santo. Observa-se também a ocorrência de interpelações judiciais, interditos proibitórios, demandas de descredenciamento profissional, pressões sobre reitorias de universidades contra projetos de pesquisa em desenvolvimento, bem como um caso de presença de executivos de uma grande corporação no momento da defesa de uma dissertação acadêmica, adotando atitudes tendentes a constranger mestrando e orientador.9 Muitas destas ações remetem ao que a literatura jurídica tem entendido por assédio processual, categoria cuja construção decorre do fato que, com o avanço dos estudos jurídicos sobre o assédio moral, percebeu-se que a conduta abusiva extrapolava, por vezes, os limites da relação material e atingia a própria relação processual. No campo jurídico, assédio moral tem sido definido, em linhas gerais, como o cerco que se faz a alguém através de condutas ostensivas e/ou veladas, por diversos meios que exponham a vítima a constrangimento, humilhação, importunando e quebrando a resistência, fragilizando a vítima emocional e psicologicamente, com a finalidade de obter vantagem indevida. O assédio processual, por sua vez, apresenta-se como uma espécie 9
Em entrevista à presente pesquisa, a mestranda relatou que durante algum tempo representantes da empresa procuraram sua orientadora insistindo em uma reunião com ela, sem a presença da estudante, condição esta não aceita por ela. Tal insistência, completa ela, “só veio a cessar após a interferência do Ministério Público, que por conhecimento dos fatos através de minha orientadora, procurou a empresa para ratificar o meu estudo e do respaldo que este estudo tinha junto ao Ministério Público”; cf. Raquel Giffoni Pinto, A pesquisa sobre conflitos ambientais e o assédio processual a pesquisadores no Brasil, mimeo, Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2012, também publicado no presente volume.
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de assédio moral, sendo o conjunto de atos processuais usado, como sugerem os casos que nos interessam, como instrumento de desestímulo ao exercício da capacidade crítica da comunidade científica, e por extensão, da sociedade, resultando em vantagem estratégica adquirida pelo agente assediador, “geralmente sob a dissimulada alegação de estar exercendo o seu direito de contraditório e de ampla defesa”.10 Assim é que representantes de empresas – e, em certos casos, governos – que afirmam considerarem-se prejudicados por resultados de projetos de pesquisa, justificam suas ações alegando dano moral, conduta ideológica dos cientistas,11 crime contra a honra, uso indevido da imagem e do nome das empresas, assim como rejeitam críticas tidas por impróprias a estudos de impacto ambiental de seus projetos. Julgam também improcedentes os resultados de pesquisa que apontam, conforme o caso, danos de substâncias à saúde, efeitos poluentes de empreendimento industrial sobre a atmosfera, irregularidades em processos de licenciamento ambiental ou presença de comunidades tradicionais, indígenas ou quilombolas nas áreas afetadas ou pretendidas por projetos empresariais. Representantes da comunidade científica, por sua vez, manifestam-se “pela liberdade de expressão, autonomia e legitimidade da produção científica e tecnológica das universidades” e “contra qualquer tipo de intimidação, coerção ou impedimento da afirmação e autodeterminação de etnias”.12 Rejeitam o que entendem ser “processos de inquisição por se estar cumprindo com o papel do cientista na sociedade – o de informar so-
10
José Affonso Dallegrave Neto. Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho. 3.ed. São Paulo: LTr, 2009. Como ensina Mauro Paroski, o que caracteriza o assédio processual “não é o exercício moderado dos direitos e faculdades processuais, mas o abuso e o excesso no emprego de meios legalmente contemplados pelo ordenamento jurídico, para a defesa de direitos ameaçados ou violados”, cf. (Revista LTr. 72-01/33 apud Daniela Valle da Rocha Muller. Precisamos Falar Sobre Assédio Processual. mimeo, Rio de Janeiro, 2012.
11
Professor da UFC foi acusado de manipular “acólitos e sequazes entorpecidos de ideologia”. 19ª Vara Cível da Comarca de Fortaleza. Contestação. Ref. Processo n. 2007.0026.9629-9/0. Fortaleza, 7/4/2008, p.2.
12
Agência de Notícias Esperança (AnotE); AMCOSC – Associação de Moradores do Conjuntos São Cristóvão; Andes – Sindicato Nacional; Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH), Associação dos Docentes da UFC (Adufc); Associação dos Produtores Indígenas Pitaguary; Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI). “Ypióca tenta intimidar para calar os movimentos sociais”, Fortaleza, 5/6/2007.
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bre o que se estuda, sobre a área da qual se é especialista”.13 Sustentam igualmente que “os estudos realizados pela Universidade pública devem ampliar e difundir o conhecimento científico e que os esforços empresariais no sentido de inibir a divulgação da informação e tentar intimidar os pesquisadores” são “típicos do comportamento obscurantista e opressor que atenta contra a liberdade de informação fundamental em qualquer sociedade democrática”.14 Alegam que “a ciência não evolui no banco dos réus, mas no debate acadêmico”15 e que “a divulgação científica é um instrumento de construção da democracia e da cidadania”.16 Defendem “que as políticas públicas não sejam definidas pelos lobbies de empresas, e sim comprometidas com a defesa da saúde e do ambiente, como reza a Constituição Federal17” e denunciam “as estratégias da criminalização individual de pesquisadores por parte das empresas e de sua rede de interesses” como meio de “diluir o conflito político” subjacente a tais controvérsias.18 A judicialização das pesquisas científicas, onde pudemos observar, seguem-se, em certos casos, a momentos em que alguns de seus resultados chegam à esfera pública específica ao campo acadêmico, como no caso da disponibilização formal de dissertações em portal do Ministério da Educação na internet ou de sessão de defesa pública de dissertação. Outra parte sucede à divulgação de trabalhos acadêmicos encomendados por órgãos públicos – tais como pareceres técnicos utilizados como prova técnica em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal, levantamentos de “passivo ambiental” de atividades de empresas solicitados por Promotoria de Justiça, pesqui13
Débora F. Calheiros. Vergonhoso. 4/5/2006, http://www.riosvivos.org.br/Noticia/Vergonhoso+/9049, acesso em 8/11/2012.
14
Abrasco. Carta de apoio às pesquisadoras Raquel Maria Rigotto e Islene Ferreira Rosa da Universidade Federal do Ceará (UFC). <http://www.abrasco.org.br/publicacoes/arquivos/20100202002921.pdf>. Acesso em 8/11/2012.
15
<http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/507030-o-uso-do-amianto-no-brasil-a-ciencia-nao-evolui-no-banco-dos-reus-mas-no-debate-academico-entrevista-especial-com-hermano-albuquerque-de-castro>. Acesso em 8/11/2012.
16
Milanez, B. Moção de apoio à pesquisadora Débora Fernandes Calheiros São Paulo. RBJA, 15/4/2011.
17
Abracit, Abrasco, Abrea, ANMT, Cesteh/Fiocruz, Fiocruz, MS, Fundacentro, TEM, INCA, SBPT, SBT. Manifesto das entidades e profissionais da saúde. “Amianto: a polêmica do óbvio”. 9/3/2012. <http:// www.sinait.org.br/noticias_ver.php?id=5076>. Acesso em 8/11/2012.
18
Rede Alerta Contra o Deserto Verde. “Todo apoio ao parceiro Mazan”. Vitória, 8/5/2008.
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sa solicitada pelo Ministério Público Estadual/ Procuradoria Geral de Justiça ao Reitor da Universidade ou pareceres solicitados por órgão licenciador, apontando irregularidades em Relatório de Impacto Ambiental. Por fim, outras ações seguem-se a pronunciamentos de cientistas quando da divulgação de resultados de pesquisa através da imprensa. Dada, a propósito, a potência política dos conflitos tendo por objeto os espaços não mercantis – “ambientais” – que motivaram tanto as pesquisas em causa como as pressões externas sobre as mesmas que constituem o objeto de nossa discussão, cabe considerar, por um lado, as implicações políticas da ciência – que adquirem um relevo particular nos casos que nos interessam – como, por outro lado, as dinâmicas políticas internas à ciência, notadamente aquelas referentes ao manejo da incerteza científica que tende a vigorar neste tipo de objeto, seja através da oposição entre teorias, da maior ou menor abertura à consideração de múltiplos saberes, da opção entre diferentes modalidades de articulação analítica entre processos sociais e biofísicos ou do estabelecimento de relações causais entre eventos.
Ciência, incerteza e poder A ciência tem servido tanto para legitimar políticas, dando-lhes uma credibilidade usualmente associada aos procedimentos científicos,19 como, eventualmente, para, ao contrário, esvaziar a dimensão política de certos processos pela remissão de certos problemas sociais a um espaço de peritos autorizados a enunciar os saberes legítimos sobre tais questões.20 Certas correntes dos chamados estudos culturais da ciência, por seu turno, dirão que não há sentido em se por, desta forma, em relação “domínios que não existem ou nunca 19
“É fato que a ciência continua a ser a principal fonte de justificação política nos debates e decisões sobre questões ambientais e ao mesmo tempo a autoridade epistêmica dos experts está na base da cientificização das políticas ambientais nas últimas décadas”, cf. Lovbrand e Oberg, 2005, apud José Eduardo Viglio. Usos Sociais e Políticos da Ciência: expertise científica na definição de riscos/impactos ambientais”. In: XV Congresso Brasileiro de Sociologia, 2011, Curitiba. XV Congresso Brasileiro de Sociologia, 2011.
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Em contraste com o caráter, em princípio, inibitório da judicialização do debate científico, o processo inverso dito de “cientificização da lei” tem dado lugar a novos domínios para a pesquisa científica. Um corpo crescente de leis tem, assim, enfatizado a importância da evidência científica no processo legal, notadamente através do uso da genética em âmbitos forenses. Cf. João Arriscado Nunes, Helena Machado. Forensic Sciences and the (Re)configuration of Citizenship, Conference of the European Association for the Study of Science and Technology. New York: University of York, 2002.
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existiram separadamente”: ciência e política não se teriam definido como domínios separados de atividades ou competências, mas como estados distintos sob os quais se encontram objetos controvertidos que têm a vocação de compor um mundo comum. Para autores como Latour, por exemplo, ciência e política se confundem nas novas associações surgidas entre entes heterogêneos, assim como as mudanças observadas “na composição e na hierarquia dos seres reunidos em um mundo comum – em grande parte nascidos em laboratório em sentido amplo, incluindo o das ciências sociais, tais como micróbios de Pasteur, nanotecnologias, nuclear, por exemplo, são violentamente políticas”. Ora, as novas associações assim sugeridas – tais como, no debate ambiental, por exemplo, do tipo das que justapõem “sujeitos litorâneos + marés + atmosfera” ou “camponeses + seca + projeto de transposição de rio”, são, nos casos que nos interessam, associações analíticas e não objetais. Os entes que se mostram justapostos, com, supostamente, um mesmo status, o são, antes, se este for o caso, no plano analítico. Ou seja, esses entes, de distinto caráter e, muitos deles, preexistentes às operações cognitivas que os relacionam, são postos em associação, sim, por vezes de formas novas, mas enquanto objetos teóricos, objetos do conhecimento, pensados pelos próprios sujeitos sociais – ou, no caso específico das ciências, através de um processo de “ambientalização” do conhecimento científico, a saber, da observação do modo de relação estabelecido entre as práticas espaciais. O que há, portanto, de “novo” nestes objetos – ambientais – do conhecimento é que eles são pensados a partir da construção de relações entre as diferentes práticas espaciais – relações estas, no caso do meio ambiente, enunciadas publicamente como problemáticas. Os campos políticos e científicos, portanto, não parecem estar sendo, no objeto que aqui nos interessa, provocados por associações objetivas emergentes, tornando-se, como sugere Latour, relativamente confundidos em suas fronteiras, dado o caráter, segundo ele, ambíguo, do “fórum híbrido” em que emergem as ditas novas associações entre naturezas e sociedades, humanos e não humanos. As relações entre estes domínios mostram-se, isto sim, de vários modos, intensificadas quando da enunciação, pelos próprios atores, da relevância política da consideração de tais relações, antes pouco percebidas e examinadas,
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entre objetos, mediações e práticas. Ou, mais especificamente, vemos surgir novos discursos sobre o modo como certos objetos – por exemplo, as águas, o ar, o solo e os sistemas vivos – operam como “mediadores” – no sentido de meios de transmissão de efeitos – entre as distintas práticas espaciais. A este propósito, caberia, pois, considerar o fato de que os sujeitos tomam crescentemente como objeto do conhecimento – seja no IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), seja no debate sobre contaminação dos oceanos por vazamentos, sobre poluição do ar com material particulado etc. – as relações das práticas espaciais entre si, bem como suas implicações para o debate sobre o mundo comum, ou seja, daquilo que, supõe-se, concerne a todo mundo. Sabemos que o campo científico comporta, como vimos, uma política da ciência contemplando a disputa entre distintas teorias pela autoridade do dizer cientifico sobre as questões colocadas no seio da comunidade de cientistas. No campo político, por sua vez, outro tipo de “política da ciência” a se considerar é aquele configurado em torno da questão de “se e como” as políticas recorrerão à ciência para justificar suas escolhas. A capacidade de a ciência ajudar a definir ou legitimar políticas é, assim, antes de tudo, determinada no campo político. É neste último campo, portanto, que dar-se-á o debate através do qual, tal como nas situações de pesquisa que nos interessam, certos sujeitos procurarão criar obstáculos a que evidências produzidas na esfera científica possam repercutir na esfera política, levando a legitimar, eventualmente, a adoção de restrições à continuidade de certas práticas espaciais reconhecidas por instâncias estatais – dada a correlação de forças no jogo conflitivo – como capazes de comprometer, de forma tida por indesejável, a estabilidade das práticas de outros sujeitos. Encontrar-nos-emos longe, portanto, dos termos do debate referente ao ecologismo global, onde, nas palavras de Michel Serres “não depende mais de nós o fato de que tudo não dependa mais de nós”.21 Ao contrário, vemo-nos aqui frente a um jogo pesado de responsabilização e irresponsabilização.
21
Serres revê aqui o princípio estoico de que “o que não depende de nós é tudo o que não é operação de nossa alma”. cf. M. Serres. O Contrato Natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
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Na maior parte dos casos que pudemos examinar, tratar-se-ão, por certo, de empresas desejosas de judicializar embates estabelecidos entre distintas interpretações quanto aos efeitos de suas práticas, na expectativa de poder, ao constranger a fala crítica, prevenir ou retirar da esfera política os conflitos entre tais interpretações. Assim, as críticas associadas ou decorrentes das pesquisas que são objeto de processos judiciais – ou de outras operações de constrangimento do pensamento – questionam a legitimidade e, em certos casos, a legalidade de certas práticas empresariais, assim como os efeitos danosos de determinadas substâncias, os efeitos poluentes de emissões ou o desrespeito aos direitos de povos tradicionais. Os sujeitos da judicialização, por sua vez, buscam restringir o alcance da fala crítica, de modo a assegurar a realização das taxas de rendimentos esperadas de seus investimentos, preservando a imagem pública de suas marcas e das mercadorias que produzem – notadamente aquelas destinadas aos mercados internacionais – assim como das infraestruturas que exploram ou constroem. Isto posto, cabe perguntar: como analisar o diagrama de forças assim constituído, onde interagem fortemente o campo científico e o campo político na construção e no tratamento de questões e conflitos ambientais?
Controvérsia pública e apropriações sociais da incerteza A partir de dois debates sobre liberdade acadêmica e conflitos ambientais organizados em eventos científicos – em 2008 no Encontro Nacional da Anpocs e em 2010 no Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia – passamos a recolher informações referentes a iniciativas de constrangimento da autonomia de pesquisadores envolvidos direta ou indiretamente com temas ambientais. As redes digitais de comunicação entre pesquisadores foram as fontes através das quais os casos foram identificados. Entre 2008 e 2012, foram coletadas informações sobre 16 casos, sendo 13 deles diretamente relativos a conflitos ambientais e três referentes a disputas envolvendo o reconhecimento de direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais. Procuraremos discutir aqui, em particular, os 13 casos envolvendo conflitos ambientais, a saber, aqueles nos quais os pesquisadores recolheram observações de campo ou evo-
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caram conhecimento já estabelecido sobre o modo como o contato de pessoas com o amianto pode provocar câncer; que as emissões industriais de partículas de grafite podem provocar a doença do grafitismo; que a forma como uma empresa produtora de aguardente promoveu o bombeamento da água de terras indígenas prejudicou as condições de sobrevivência das comunidades ali instaladas; que o potencial poluidor da implantação de um polo siderúrgico teria interferência na cobertura vegetal e no modo de ocupação das terras, exercendo pressão sobre o quadro da saúde pública, entre outros. Ou seja, tratam-se de casos em que esteve em pauta o estabelecimento de relações causais entre processos socioecológicos, tidos, via de regra, como incertos. Se considerarmos a abordagem das propriedades culturais da ciência, vista a incerteza científica quanto aos processos de transformação socioecológica, as condições de validade, os compromissos sociais e morais da ciência aplicada ao meio ambiente tenderiam a expor-se com maior intensidade ao debate com a sociedade. A incerteza científica tenderia a tornar-se um alimento para a instauração de uma negociação sobre os limites socioculturais da ciência e a instauração de um processo social de aprendizagem sobre os limites da ciência apontaria para uma redefinição das relações entre ciências naturais e sociais: as ciências naturais tenderiam a se historicizar, reconhecendo-se múltiplas escalas de observação; as descrições dos processos seriam consideradas “mortais”, admitindo-se respostas múltiplas a uma questão única. Nos termos de Fabiani, “a evidenciação da incerteza não exprimiria o reconhecimento de uma impotência do saber racional, mas sim uma redefinição de seus critérios de produtividade”;22 ou seja, redefinir-se-ia o que se pode esperar socialmente da produção científica. Isto porque embora o mundo esteja sendo visto como um laboratório aberto ao olhar da mídia, ele mostra-se mais opaco do que nunca, já que quanto maior a informação, maior é a indeterminação das ações a empreender. Crescem os problemas levantados técnica e moralmente e reduzem-se, por sua vez, os meios de ação disponíveis. Enfrenta-se assim o paradoxo pelo qual a norma regulatória que se quer ver es22
Cf. Fabiani, Jean-Louis, “Principe de Précaution et Protecion de la Nature”, in O. Godard (org.). Le Principe de Précaution dans la Conduite des Affaires Humaines, Paris: INRA, , 1997, p.297-310.
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tabelecida tende a instaurar reflexividade e não necessariamente acordo. A incerteza, assim, tende a se reproduzir e o saber especializado não é mais visto como capaz de fechar o debate, mas sim de abri-lo em termos de valores. Neste contexto, a perícia, conclui Fabiani, é uma ilusão necessária que resulta numa negociação infindável sobre valores. Ora, nos casos que aqui procuramos examinar, o tratamento da incerteza não estaria apontando na direção da disseminação da lógica reflexiva cuja vigência é sugerida pelos estudos culturais da ciência. Na análise das relações estabelecidas, na experiência brasileira, entre campo científico e campo político, podemos observar, na área temática que nos interessa, não só uma fraca reflexividade, mas, em particular, a operação de mecanismos onde, com certa regularidade, específica a nossos contextos culturais e políticos, a incerteza científica – própria aos objetos “ambientais” – tem sido apropriada socialmente de modo a evitar que os resultados de pesquisa afetem a esfera política. No que diz respeito às políticas ambientais governamentais e empresariais em geral, temos visto prevalecer claramente uma lógica utilitária com relação à incerteza científica; ou seja, observam-se formas oportunistas de apropriação social da incerteza, via de regra como elemento constitutivo do que Beck chama de “irresponsabilidade organizada” – caracterizada pela irresponsabilização de tomadores de decisão, postergação de responsabilização e de adoção de medidas, transferência de responsabilidade para vítimas ou adoção de Termos de Ajustamento de Conduta que acomodam a transgressão legal, alegando-se a ausência de relações causais certificadas. Assim, a lógica do interesse tem, finalmente, constrangido as possibilidades de se evidenciarem as dimensões deônticas/valóricas dos debates no campo das ciências aplicadas aos conflitos ambientais. Ou seja, a incerteza científica em contexto de conflito ambiental no Brasil não tem levado à instauração de um debate sobre valores, mas, sim, tem favorecido uma pressão sobre a reflexão e sobre os próprios esforços de pesquisa, seja via financiamentos de projetos “market-friendly”, consultorias da chamada “indústria de EIAs/Rimas”, exigência da retirada do ar de sites que problematizam práticas empresariais incontroladas, oferta de premiações a trabalhos científicos por parte de grandes corpo-
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rações que são elas próprias objeto de pesquisas apontando irregularidades e práticas ambientalmente danosas, campanhas públicas de marketing favorável aos projetos de grande impacto, desqualificando os questionamentos da ciência da mudança socioecológica, e, por fim, como vimos, via ações judiciais de dano moral, interpelação judicial, interditos proibitórios, pressões por descredenciamentos profissionais etc. Nos casos que aqui nos interessaram, o debate – ou melhor, o litígio – não se inscreveu, como no campo científico seria de praxe, num confronto de argumentos construídos, cuja reflexividade cresce à medida em que se desenvolvem e estabilizam as lógicas argumentativas e onde a discussão sobre o quadro da troca de ideias é consubstancial à própria polêmica. Com efeito, confundem-se aqui duas formas matriciais distintas de disputa – por um lado, aquela cujos quadros de referência e estratégias dos atores são próprios ao debate acadêmico, e, por outro lado, quadros e estratégias que são próprios ao litígio judicial. Em ambas as formas, há, por certo, um primado do texto e do documento, embora estando a autoridade interpretativa dos fatos sob o efeito de questionamentos, acrescentando-se às formas convencionais de problematização dos procedimentos e resultados internas à comunidade acadêmica, a contestação da conveniência prática dos mesmos por entes sociais que consideram tais resultados improcedentes ou injustificados. O espaço do debate se desloca, assim, da cena convencional da discussão científica para outro teatro de controvérsias que pode compreender tanto a imprensa, como os tribunais, as audiências públicas, a rua, os sites da internet, e, embora sob uma nova configuração dramática, a própria sala de defesa de teses. Produzem-se também novas formas de sociabilidade, de escolha das armas e de ritos de enfrentamento – instituições científicas procuram negociar com empresas a retirada de processos contra seus pesquisadores, grupos sociais atingidos por efeitos ambientais procuram apoiar pesquisadores processados, funcionários de empresas postas em questão por resultados de pesquisa são mobilizados para ocupar as salas de audiências públicas. E, de forma mais ampla do que a que costuma ocorrer no cenário das controvérsias especificamente acadêmicas, a presença de terceiros, de um público mesmo que virtual, é sempre pres-
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suposta no teatro da discussão na qualidade de testemunhas. Estes terceiros são, por sua vez, objeto de táticas de mobilização de recursos e de aliados, sejam eles internos ou externos ao campo científico. O modo como, através do assédio processual, é reconfigurada a controvérsia, pressupõe, por certo, perspectivas de redução das margens de autonomia dos pesquisadores, como, por outro lado, amplia, em muito, o arco de incidência do litígio, posto que, para além das maneiras de fazer ciência, dos estilos de raciocínio e dos hábitos de pensamento adotados, é o próprio modo de existência social de indivíduos e de grupos que está em jogo. Não podemos excluir, inclusive, a possibilidade de que esta perda de autonomia de certo número de pesquisadores, em função dos desdobramentos e reações – ou, mais especificamente, da falta de reações – advenientes tanto no campo científico como fora dele, possa, ao longo do tempo, resultar em perda de autonomia do próprio campo científico e em alterações no modo de operação interno às atividade científicas, ao menos na específica área temática que esteja em pauta. Ou, nos termos de Bourdieu, a força das pressões externas ao campo científico nesta área temática poderia acabar por alterar a hierarquia de posições relativas dos pesquisadores e grupos de pesquisa no interior do próprio campo cientifico, acentuando, em particular, a clivagem entre a pesquisa crítica – via de regra, no caso que nos interessa, aquela que inclui no objeto de pesquisa a perspectiva dos que protagonizam temporalidades e espacialidades “outras” – e as ditas “propositivas”, em benefício destas últimas, apontadas – não só fora do campo cientifico – como realistas e socialmente úteis, em uma clivagem que põe em jogo não só aportes financeiros, mas a pertinência acadêmica de conteúdos, métodos e objetos. O sistema de retribuições científicas, tal como visto por Hagstrom (1965, apud Fabiani, 1997) na sociologia da ciência do início dos anos sessenta, corresponderia, segundo Trevor Pinch (1991, apud Fabiani, 1997), a um “modelo pré-capitalista” de troca, em um universo onde prevaleceria a honra do reconhecimento. O debate científico – então pensado como estável, amavelmente dialógico e esvaziado de sua sociabilidade conflitiva – era visto, como descreve criticamente Randall Collins, como “troca polida de doações
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informacionais” (Collins, 1975 apud Fabiani, 1997, p. 14). A judicialização do trabalho científico que ora nos ocupa, nos convoca, portanto, a uma realidade radicalmente oposta que, por contraste com a imagem de Pinch, poderíamos dizer estar em certa consonância com um regime pré-moderno de punição, no qual a autoridade externa a intervir, mesmo que indiretamente, nos “regimes de cientificidade” (Colliot-Thelène, 2004) seria, em nosso caso, o poder judiciário acionado por interesses corporativos. Assim é que as formas mais escolares e institucionalizadas da troca discursiva veem-se, por meio do assédio processual, subvertidas e, em lugar da dinâmica de intensificação dos procedimentos dialógicos ordinários, vemos prevalecer as dimensões disruptivas, os choques e ruídos que, sob as pressões provenientes de fora do campo científico, alteram os quadros da discussão e reconfiguram espacialmente os dispositivos de diálogo. O cenário assim descrito mostra-se compatível com a abordagem da sociologia da ciência que Camic (2011) chama de “no terreno”, destacando o modo como Bourdieu – segundo Camic, em certo contraste com seus próprios textos teóricos – historiciza o campo científico, adotando uma perspectiva em que posição relativa dos pesquisadores e grupos de pesquisa de diferentes tipos de investigação numa determinada área temática dispõem-se em um campo relativamente aberto, alterando-se ou reproduzindo-se a partir de dinâmicas internas ao campo cientifico, mas também em função de suas relações com outros campos da produção cultural ou com aqueles definidos pela detenção de outras formas de capital, incluindo, a propósito, o próprio campo burocrático das agências estatais. Nesta perspectiva, a competição usual entre disciplinas pode dar lugar, inclusive, a cooperação e alianças, como as que, em nosso caso, reúnem pesquisadores da Geografia, Saúde Coletiva e Antropologia, por exemplo, os quais, enquanto compartilham a crítica do etnocentrismo epistemológico no debate ambiental, configuram-se como objeto comum das práticas do assédio processual.
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Considerações finais A literatura sobre o papel da ciência em contexto de liberalização das economias aponta a vigência crescente da mobilização de um complexo acadêmico-industrial em nome da competitividade das economias nacionais: no caso dos EUA, por exemplo, denuncia-se a subordinação das pesquisas aos imperativos dos financiadores como o “lado obscuro” da relação entre ética de pesquisa e ética de negócios.23 No caso brasileiro, a desconsideração dos danos sociais e ambientais, particularmente quando estes afetam mais que proporcionalmente populações de baixa renda e grupos étnicos, constitui o lado obscuro da imposição da ética dos negócios – e do “desenvolvimento” – sobre a ética da pesquisa. Quando resultados de pesquisa parecem ameaçar as condições esperadas de rendimento dos investimentos por implicar em alteração de projetos, mudança de sua localização, imposição do respeito a normas e regulações estabelecidas etc., as pressões podem assumir uma dimensão judicial, destinada a dissuadir, desprestigiar, constranger, impedir ou paralisar o trabalho de pesquisa, e, consequentemente, a possibilidade dele alimentar o “debate sobre valores”. Enquanto num campo científico mais autônomo opera o controle mútuo e o julgamento dos pares, num campo menos autônomo, inconsistências podem ser ditas e, mesmo, bem recebidas com o apoio de agentes fortes fora do campo da ciência – seja no mercado ou no poder político.24 Quando a ciência, em condições de incerteza, questiona um empreendimento, o valor que costuma ser levado em conta tende a ser “o valor”. 23
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Vide a este respeito o documentário Inside Job, de Charles H. Ferguson, que, em 2010, colocou em pauta a desconsideração do conflito de interesses por parte de economistas da Universidade de Harvard que não divulgaram o fato de que seus estudos favoráveis aos derivativos, ativos que estiveram na origem de turbulências econômicas de 2008, haviam sido financiados por empresas do setor financeiro. Conforme assinalou o economista Laurent Maudit, “no mundo inteiro, a crise revelou laços de dependência de certos economistas com relação ao mundo da finança, senão mesmo um sistema de corrupção ou ao menos de ‘corrupção doce’, nos termos do célebre Prêmio Nobel de economia Paul Krugman”. Assim é que “em inúmeros países, os economistas passaram a explicitar ‘de onde’ eles falam. É o caso, a partir de há pouco, dos EUA. Na Universidade de Harvard, por exemplo, os economistas devem, por seu contrato de trabalho, divulgar em seus blogs um item batizado de “atividades externas”. cf. Laurent Maudit. Une révolte éthique se propage chez les économistes. Mediapart, 13/7/2012. <http://www.mediapart.fr/journal/economie/120712/une-revolte-ethique-se-propage-chez-les-economistes >. Acesso em 29/12/2012. Como desdobramento destes debates, na França, em 2011, a Toulouse School of Economics, adotou uma Declaração Deontológica, sendo seguida, em 2012, pelo Observatoire Français des Conjonctures Économiques (OFCE) e pela Paris School of Economics. cf. Laurent Maudit, op. cit. P. Bourdieu. Os usos sociais da ciência. São Paulo: UNESP/INRA, 2003.
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Neste contexto, a judicialização do debate científico vem reconfigurar o espaço dos dispositivos dialógicos, perturbando, pela ameaça direcionada a esta “gente altamente argumentativa” que são – nos termos de Collins25 – os cientistas, as regras do jogo e o modo de enquadramento das controvérsias.26 Reduz-se, assim, a capacidade da esfera pública discutir as implicações políticas da “co-constituição do espaço e da diferença”, processo que mencionamos acima ao evocar o modo como Massey27 refere-se à diversidade das lógicas e práticas sociais que constituem o espaço. Se considerarmos as análises que apontam a operação no Brasil dos mecanismos do que Harvey chama de “acumulação por espoliação”,28 estar-se-iam assim criando condições para uma espoliação da própria capacidade crítica da ciência, ou seja, de sua possibilidade de contribuir para o debate sobre valores e para a reflexão sobre o que se pode esperar socialmente da produção científica. Ao procurar problematizar o consenso desenvolvimentista em torno da “objetividade dos fatos” – aquela dos que pretendem afirmar como universal o ponto de vista particular dos dominantes – certos pesquisadores tendem a ocupar o lugar do intelectual crítico, cuja perspectiva não é a de mostrar que está certo, mas de tentar induzir uma mudança no clima moral do debate, fazendo com que, nos termos de Said, a “agressão seja vista como tal, a punição injusta de povos e indivíduos seja evitada, e que o reconhecimento da liberdade de direitos democráticos seja estabelecido como norma para todos e não para um punhado de eleitos”.29
25 26
27 28 29
R. Collins. Conflict Sociology: toward an explanatory science, New York: Academic Press, 1975. Jean-Louis Fabiani. Disputes, polémiques et controverses dans les mondes intellectuels. Vers une théorie hiistorique des formes de débat agonistique. In: Mil Neuf Cent – revue d´histiore intellectuelle, n. 25, 2007, pp. 45-60. Cf. D. Massey. Pelo espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. Almeida, A.W et al. Capitalismo globalizado e recursos territoriais. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010. E. Said, Falar a verdade ao poder. In: E. W. Said. Representações do intelectual, as conferências Reith de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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Abstract In the debate on environmental impacts of major projects, conflicting interests face each other and scientific and political controversies grow on. As the temporality of scientific controversy is not the same as the temporality of political debate, uncertainty takes place: the expertise tends not to close the debate, but rather to open it with respect to values. When environmental conflicts are replicated in cognitive conflicts, it is often noted pressures on the autonomy of the conditions of scientific knowledge’s production. This paper discusses cases where interest groups and political coalitions - whose projects are object of environmental controversy - file lawsuits against researchers, constraining academic freedom. Keywords: Environmental conflicts, scientific controversies, academic freedom
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A pesquisa sobre conflitos ambientais e o assédio processual a pesquisadores no Brasil Research on environmental conflicts and procedural harassment of researchers in Brazil. Raquel Giffoni Pinto Raquel Giffoni Pinto é formada em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em sociologia e antropologia. Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ. Atualmente é professora de sociologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). email: raquelgiffoni@gmail.com
Resumo A Constituição Brasileira de 1988 garante o exercício da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento. No que se refere à produção do conhecimento científico, o respeito a estes direitos mostra-se dependente de um conjunto de circunstâncias históricas que vão desde a capacidade dos órgãos do Estado fazerem valer as normas legais, até a demonstração de vitalidade nas formas de organização da sociedade em defesa do livre debate de ideias, passando pela autonomia adquirida pelas instituições científicas no desenvolvimento de suas atividades. Há que reconhecer, porém, a existência de forças que operam em sentido contrário ao exercício de tais direitos. E que mesmo na vigência de uma esfera pública, estas forças, associadas em geral a grandes interesses econômicos que atuam diretamente sobre o campo científico ou indiretamente pelos meandros do sistema político, podem constranger as margens de liberdade que são indispensáveis à realização de uma pesquisa acadêmica independente. Neste artigo procuramos caracterizar as ofensivas à liberdade de pesquisa verificadas no Brasil, no período de 2001 a 2012, através do relato de treze pesquisadores brasileiros cujos estudos tinham o potencial de criar um ambiente menos favorável à progressão dos projetos econômicos. Palavras chave: liberdade acadêmica; conflitos ambientais; assédio processual.
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INTRODUÇÃO A Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 206, garante o exercício da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento. No que se refere à produção do conhecimento científico, o respeito a estes direitos mostra-se dependente de um conjunto de circunstâncias históricas que vão desde a capacidade dos órgãos do Estado fazerem valer as normas legais, até a demonstração de vitalidade nas formas de organização da sociedade em defesa do livre debate de ideias, passando pela autonomia adquirida pelas instituições científicas no desenvolvimento de suas atividades. Há que reconhecer, porém, a existência de forças que operam em sentido contrário ao exercício de tais direitos. E que mesmo na vigência de uma esfera pública, estas forças, associadas em geral a grandes interesses econômicos que operam diretamente sobre o campo científico ou indiretamente pelos meandros do sistema político, podem constranger as margens de liberdade que são indispensáveis à realização de uma pesquisa acadêmica independente. Constrangimentos à liberdade acadêmica tendem a ser mais fortes em determinadas conjunturas e certos campos de investigação. As áreas que se revelam mais suscetíveis a pressões são aquelas que podem, pelos resultados de pesquisa obtidos, por em questão o andamento dos negócios de grandes corporações – ao questionar a benignidade social de certas mercadorias, apontar riscos associados a determinadas práticas, justificar restrições ao uso de certos produtos. Eis que no período histórico recente, em que a economia brasileira, notadamente a partir dos anos 1990, passou a depender fortemente da produção e exportação de commodities, da expansão das fronteiras do agronegócio, da mineração e da exploração de petróleo e gás, viu–se, no país, com maior frequência, a eclosão de conflitos ambientais e territoriais frequentemente associados a conflitos de ordem cognitiva. Pretendemos, no presente artigo, analisar as condições de produção do conhecimento sobre o tema dos conflitos ambientais em um contexto marcado pela hegemonia do ideário desenvolvimentista. Temos por conhecida a tendência dos agentes do desenvolvimentismo a considerar os impactos am-
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bientais do crescimento econômico como efeitos secundários e compensáveis do progresso. É neste contexto que vimos ser adotado, com certa frequência, por parte de representantes de interesses econômicos, o recurso a mecanismos jurídicos e extrajurídicos destinados a inibir o desenvolvimento de pesquisas cujos resultados lhes pareceram passíveis de concorrer para a criação de ambiente menos favorável à progressão de seus negócios. Em um primeiro momento, traremos alguns elementos do debate sobre a noção de liberdade acadêmica. Sendo um tema demasiadamente amplo, selecionamos apenas algumas ideias centrais para contextualizar o debate atual. No segundo momento, procuraremos caracterizar as ofensivas à liberdade de pesquisa verificada, no Brasil, em períodos recentes, identificando seus novos contornos e novos atores. Finalmente analisaremos treze casos de pesquisadores brasileiros cuja liberdade acadêmica foi ameaçada devido aos estudos que desenvolvem sobre as dinâmicas conflituais envolvendo empresas poluidoras e comunidades atingidas.
Breves considerações sobre o princípio da liberdade acadêmica Existem inúmeras conceituações para a noção de liberdade acadêmica é, porém, consenso nos documentos internacionais que a definiram tratar-se da liberdade assegurada aos profissionais da pesquisa para investigar, ensinar e publicar seus estudos, de acordo com normas éticas consensuadas pela comunidade acadêmica, sem o temor de sofrerem sanções e constrangimentos externos. A noção de liberdade acadêmica, tal como hoje a conhecemos, relaciona-se às ideias que floresceram nas universidades alemãs no final do século XIX, notadamente as propostas de Humboldt quando da criação da Universidade de Berlim, em 1810. A liberdade acadêmica envolvia três conceitos: Lehrfreiheit, Lemfreiheit e Freiheit der Wissenschaft. Lehrfreiheit refere-se à liberdade do professor realizar pesquisas e publicar as conclusões sem medo ou reprovação por parte da Igreja ou do Estado. Este conceito refere-se também à autoridade do professor determinar o conteúdo das suas disciplinas. Lemfreiheit significa o direito dos estudantes determinarem o curso de seus estudos e Freiheit der Wissenschaft diz respeito ao direito da universidade orga-
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nizar e controlar suas atividades internas (STACY, 2002). Este último conceito poderia equivaler ao que chamamos hoje de autonomia universitária. A definição de liberdade acadêmica na América do Norte foi influenciada pela concepção alemã; todavia, centrou-se quase exclusivamente na liberdade individual do professor e do pesquisador. Nessa perspectiva, a declaração de princípios da Associação Americana de Professores Universitários (AAUP) definiu, em 1915, a liberdade acadêmica como: “liberdade de investigar e pesquisar, liberdade de ensinar nas universidades e liberdade de expressão e de ação extramuros.” (AAUP’s Declaration of Principles, 1915 apud STACY, 2002, p. 310, tradução nossa). A Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: Visão e Ação, aprovada em Paris na Conferência Mundial sobre Educação Superior em 1998, tratou a noção de liberdade acadêmica não somente enquanto um conjunto de direitos, mas também de obrigações sociais. Em seu artigo 2o lê-se que as instituições de educação superior, seus funcionários e estudantes devem: “desfrutar de liberdade acadêmica e autonomia plenas, vistas como um conjunto de direitos e obrigações, sendo simultaneamente responsáveis com a sociedade e prestando contas à mesma.”.1 Neste sentido, para a antropóloga Débora Diniz a liberdade acadêmica, ainda que seja um direito específico, existe e deve ser garantida com uma finalidade intrinsecamente pública: “A liberdade acadêmica é um dos instrumentos que promovem a educação e a ciência como bens públicos.2”. No Brasil, a Constituição de 1934 em seu artigo 155, foi a primeira a garantir a liberdade de cátedra. Entretanto, durante a ditadura militar, tanto a liberdade acadêmica quanto a autonomia universitária foram gravemente suprimidas. O Ato Institucional n. 5 (AI-5) de 1968, e o Decreto-lei n. 477, outorgado em 1969, previam a punição de professores, funcionários e alunos que
1
Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: visão e ação, 1998. Disponível em: <http:// www.nepp-dh.ufrj.br/onu12-2.html>. Acesso em 07/01/2013.
2
Em benefício da coletividade, por Débora Diniz. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/ suplemento-sem-beneficio-da-coletividade-64675,0.htm>. Acesso em 20/06/2012.
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praticassem ações consideradas subversivas.3 Ante este decreto, muitos professores foram impedidos de trabalhar e os alunos de estudar nas universidades brasileiras. Já cientes das críticas e dos protestos que poderiam surgir os decretos de 1966 e 1967, que levaram a mudanças nos estatutos das Universidades, vinham acompanhados de atos institucionais que suspendiam as garantias vitalícias da cátedra e a estabilidade dos servidores, através de demissões, aposentadorias compulsórias etc. (CUNHA, 2006). Outras medidas emitidas pelo Governo Federal paralisaram os membros das instituições universitárias e, muito embora a Constituição de 1967 mencione a liberdade de cátedra, há uma ressalva quanto “à propaganda da subversão da ordem” (FÁVERO, 2004, p. 207). É somente na Constituição de 1988 que a liberdade no ensino e na pesquisa volta a ser consagrada como princípio do sistema educacional através do artigo 206: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (BRASIL, 1988). As tentativas de obstruir a liberdade acadêmica fazem parte da própria história da Universidade. A busca por sua autonomia, contra as ingerências eclesiásticas, estatais, partidárias ou mercantis é, conforme assinalou Cunha (2006) “coessencial à universidade” (CUNHA, 2006, p.14). E esta busca não foi fruto de um processo consensual. Leslie Green (2003) demonstra que, em muitos contextos, foi preciso questionar ou mesmo desobedecer a regulações para que a liberdade de pesquisa fosse garantida. 3
Segundo a revista da Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (ADUSP) as graves ações contra a liberdade acadêmica durante a ditadura militar são anteriores ao AI-5. Datam dos primeiros meses após o golpe os casos em que os reitores de importantes universidades foram substituídos por militares, como por exemplo, a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade Federal da Paraíba Ainda em 1964 o então reitor da USP Luiz Antonio Gama e Silva formou uma comissão secreta para investigar condutas “subversivas” na Universidade. Essa comissão propôs a suspensão dos direitos políticos de 52 pessoas entre elas professores, estudantes e funcionários (ADUSP, 2009). “A íntima articulação e cumplicidade entre as estruturas de poder da Universidade e a Ditadura Militar intimidavam docentes e estudantes e facilitavam a ação do aparato de repressão política, como demonstra a troca de correspondência oficial entre reitores, diretores e o DOPS.”. SILVA, Camila Rodrigues. Razões de sobra para se criar a Comissão da Verdade da USP, Revista Adusp, outubro 2012, n.p.
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Política, crítica social e liberdade acadêmica Para Hannah Arendt, assim como a libertação do trabalho era fundamental para aqueles que se dedicavam à “coisa política” na Grécia Antiga, igualmente necessário era afastar-se do âmbito da política para ingressar no espaço da “coisa acadêmica”. A libertação da política tornou-se a própria condição para a liberdade acadêmica. Platão, conforme Arendt, ainda poderia crer que a academia iria influenciar e conquistar a polis; todavia, para os seus sucessores, o que predominou foi a ideia de que era preciso garantir institucionalmente uma liberdade – e para um determinado grupo – entendida enquanto uma oposição entre: “a liberdade política da praça do mercado”; ao “mundo das opiniões mentirosas e do falar enganador” ao “mundo contrário da verdade e do falar adequado à verdade”; à arte da retórica, a ciência da dialética (ARENDT, 2006, p. 25). É desta forma que: o que se impôs e até hoje determina nossa concepção de liberdade acadêmica não é a esperança de Platão de, a partir da academia, determinar a polis, a partir da filosofia determinar a política, mas sim o afastamento da polis, a apolitia, a indiferença contra a política (ARENDT, 2006, p.25). Se liberdade e política, em Arendt, estão completamente relacionadas, não seria possível o distanciamento da política para obter a plena liberdade de conhecer. Nesta perspectiva, Edward Said argumenta que a receita usualmente empregada para livrar a universidade dos ditames políticos e outras ingerências externas pode ser pior que a “doença”. Ele explica que, após a discussão pública sobre cientistas políticos, antropólogos e sociólogos, que durante a Guerra do Vietnã, realizaram estudos para o Pentágono e a CIA,4 o lema da liberdade acadêmica estava sendo utilizado para afastar a academia dos problemas mundo cotidiano, a fim de torná-la “completamente imparcial”. Said, contudo, defende que, embora não seja uma arena imediatamente política, a uni4
Neste período, os EUA enviaram cientistas sociais também para América Latina, no âmbito do Programa Camelot, cujo objetivo era mapear os grupos revolucionários na região para promover uma “profilaxia da insurgência”. Sobre este tema, Sahlins alertou que a Antropologia corria um sério risco, visto que “o relativismo que reputamos necessário à etnografia pode vir a ser substituído pelo cinismo e a busca de um conhecimento objetivo de outros povos pode ser substituída por uma sondagem de suas fraquezas políticas” (SAHLINS, 2002).
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versidade não pode estar livre dos problemas e das dinâmicas sociais das quais é parte: “É tão melhor perceber estas realidades que falar festivamente sobre a liberdade acadêmica de forma arejada e despreocupada, como se a liberdade real existisse, e uma vez existindo, ocorresse de maneira implacável e indiferente.” (SAID, 1994, p.14). Para que a universidade seja compreendida enquanto espaço plural, em que conhecimentos diversos e controversos possam emergir, Said sugere que a liberdade acadêmica tenha como modelo o viajante ou o migrante. Em contraste com o que ele nomeou de intelectual Rei, que seria o acadêmico autocrático sempre preocupado em defender as suas fronteiras, controlar o seu domínio sobre determinado conhecimento, o intelectual viajante é capaz de descobrir novos horizontes identitários, outras formas de viver e de conhecer. A imagem do viajante não depende de poder, mas sim de movimento, vontade de entrar em mundos diferentes, usar idiomas diferentes, e entender uma variedade de disfarces, máscaras e retóricas (...). Para fazer isso com dedicação e amor e com um sentido realista do terreno é, eu acredito, uma espécie de liberdade acadêmica no seu mais elevado sentido, uma vez que uma das suas principais características é poder deixar a autoridade e o dogma para o potentado. Existem outras coisas para pensar e desfrutar do que simplesmente você mesmo e seu domínio, coisas muito mais impressionantes, muito mais dignas de estudo e de respeito do que a autoadulação e autoapreciação acrítica. Para participar do mundo acadêmico é, portanto, entrar numa busca incessante pelo conhecimento e a liberdade (SAID, 1994, p.17, tradução nossa). John Dewey observou que as ciências sociais e as disciplinas humanas necessitariam de uma maior proteção para a realização de pesquisas; isso porque tais disciplinas estariam “mais estreitamente vinculado ao preconceito arraigado e a intensas reações emocionais” (DEWEY apud MASRI, 2011, p. 28, tradução nossa). Os objetos de estudo das ciências sociais estariam mais envolvidos no campo político, o que sugeriria que sofrem maiores pressões e ingerências de ordem política, cultural e econômica. Em seu ensaio sobre o campo científico, Pierre Bourdieu sugere que o desenvolvimento, sempre ameaçado, das ciências sociais advém do fato de que a disputa pelo poder de produzir e impor a represen-
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tação legítima do mundo social, a chamada autoridade científica, incide sobre o que está em jogo entre as classes sociais no campo da política (BOURDIEU, 1976). É importante mencionar que a perspectiva epistemológica da nova sociologia da ciência, ou social studies of science, questiona a premissa de que as ciências sociais estariam mais submetidas a constrangimentos e intervenções “externas” que as ciências naturais, uma vez que compreendem os conhecimentos e fatos científicos, ditos naturais, como construções culturalmente específicas, nas quais se entrelaçam atores, relações e práticas científicas, políticas e econômicas (KNORR-CETINA, 1982; LATOUR, WOOLGAR, 1997). Através de seus estudos no laboratório, observam como os fatos são fabricados, negociados, traduzidos em uma rede de atores sociais que é constituída não só por cientistas, mas por não cientistas, o que Knorr-Cetina chamou de arenas transepistêmicas (KNORR-CETINA, 1982). As campanhas de deslegitimação das pesquisas e dos pesquisadores, os processos judiciais, os assédios processuais protagonizados por empresas, proprietários de terras e associações empresariais, revelam a tentativa de limitar a disseminação da crítica social a seus projetos e atividades econômicas. Os casos que iremos analisar a seguir dizem respeito a cientistas que não foram indiferentes à política, nos termos de Arendt, e afetaram, de alguma forma, através de suas pesquisas e práticas docentes, as disputas sobre os usos e significados dos territórios e do conhecimento científico.
Liberdade acadêmica e o campo dos conflitos ambientais Se, historicamente, os principais adversários da liberdade acadêmica foram as instituições religiosas e o Estado, os processos contra acadêmicos e a censura aos resultados de suas pesquisas que examinamos estão sendo protagonizados por grandes empresas. Para Cunha (2006), o mercado, desde a segunda metade do século XX, atua no constrangimento da autonomia da Universidade. A influência do mercado no âmbito acadêmico se deve, entre outros fatores, aos crescentes custos das pesquisas científicas e diminuição ou estagnação dos financiamentos estatais. Financiados pelas empresas, que condicionam o recurso a contrapartidas imediatas, objetivas e privadas, os pesquisadores universi-
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tários não têm o público como interlocutor fundamental, mas clientes específicos com seus objetivos particulares e perplexidades próprias (MILLS, 1975). A busca de recursos no âmbito do mercado de bens e serviços passou a ser considerada um mecanismo que expressava a inserção das universidades na sociedade, de modo que os governos, ao reduzir as dotações financeiras (ou a não aumentá-las), empurravam as universidades para aumentar a prestação de serviços que obtinham valor no mercado. Assim, o ensino e a pesquisa passaram a ser definidos em função de sua característica como mercadoria vendável, quando não eram demandados diretamente pelas empresas interessadas (CUNHA, 2006, p.18). No plano internacional, são inúmeros os casos em que indústrias que lidam diretamente com recursos naturais influenciam e mesmo controlam a produção científica realizada por universidades. Recentemente, um importante caso de violação da liberdade acadêmica envolvendo grandes corporações aconteceu em Québec, no Canadá. Em 2008, foi publicado um livro do sociólogo Alain Deneault escrito em colaboração com Delphine Abadie e William Sache chamado Noir Canadá – Pillage, criminalité et corruption en Afrique, editado pela Écosociété. A obra trata das atividades das empresas canadenses petrolíferas e de mineração em atividade na África. O periódico Le Devoir noticiou o lançamento do livro e dias depois a editora recebeu um requerimento da empresa de mineração Barrick Gold, a maior empresa do mundo em exploração aurífera, acusando os autores, os editores e os membros do conselho administrativo. A editora foi objeto de uma ação por parte da Barrick Gold que previa uma compensação de cinco milhões de dólares canadenses por danos morais e um milhão de dólares referentes a danos punitivos. A empresa solicitou ainda uma ordem permanente que proibisse aos autores repetirem as acusações, tanto verbalmente quanto por escrito. Após alguns meses, foi realizado um acordo extrajudicial entre a editora, a mineradora e os pesquisadores, proibindo a divulgação do livro.5 5
Shields, Alexandre. Noir Canada - Entente entre Barrick Gold et Écosociété. Le Devoir, 19 de outubro de 2011. Disponível em: <http://www.ledevoir.com/societe/justice/333952/ noir-canada-entente-entre-barrick-gold-et-ecosociete>. Acesso em 29/11/2012.
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Nos Estados Unidos assédios processuais e constrangimentos como estes fazem parte de um conjunto de instrumentos jurídicos, usualmente chamados de SLAPPs, sigla de Strategy actions against public participation (Demandas estratégicas contra participação pública). Trata-se de uma: Ação civil pública alegando que o dano foi causado pelos esforços de indivíduos ou organizações não governamentais para influenciar a ação do governo sobre uma questão ou preocupação de interesse público (...). É instruída por um lado de uma disputa pública para punir ou evitar pontos de vista opostos. (CANAN; PRING, 1993 apud BEDER, 1995, n.p. Tradução nossa).
Conforme Beder (1995), esses processos raramente são vitoriosos, pois se baseiam em argumentações demasiadamente frágeis. Ainda na década de 1990, menos de 10% dos casos resultavam em vitórias para as empresas. No entanto, ao processar ambientalistas, militantes de direitos humanos, pesquisadores, as empresas não estão interessadas no espólio daqueles a quem ela denuncia “antes, suas armas são ameaçar, intimidar e afastar seus oponentes” (BEDER, 1995, n.p. Tradução nossa). Muitos juízes norte-americanos condenam as SLAPPs porque: O custo para sociedade em termos de ameaça à nossa liberdade é incalculável. Proibir o debate sobre essas questões privaria a sociedade dos benefícios do seu pensamento coletivo e destruiria o livre intercâmbio de ideias as quais são as marcas da nossa democracia (CANAN; PRING, 1993 apud BEDER, 1995, n.p. Tradução nossa).
Inúmeros pesquisadores e professores universitários norte-americanos já foram assediados processualmente através das SLAPP.6 Todavia, muitos estados dos EUA já possuem leis Anti-SLAPP.7 Embora longe de possuir esse 6
SLAPPs Targeting Academia. SLAPPs Against Academic Freedom. Disponível em: <http://www.anti-slapp.org/slapps-targeting-academia-2/>. Acesso em 10/06/2012.
7
“Neuwirth v. Silverstein: Court Grants Anti-SLAPP Motion in Politically Charged Online Dispute”, por Sam Bayard. California Defamation, Section 230. Publicado em 3/12/2007. Disponível em: <http://www. citmedialaw.org/blog/2007/neuwirth-v-silverstein-court-grants-anti-slapp-motion-politically-charged-online-dispute>. Acesso em 10/06/2012.
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conjunto de instrumentos jurídicos como as SLAPPs, o Brasil possui outros instrumentos jurídicos extrajurídicos que são utilizados, entre os quais o “Interdito Proibitório”. 8 De natureza preventiva, ele impõe ao réu determinadas proibições que visam proteger o proprietário “da turbação ou esbulho iminente.” (CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, Art. 932). Uma empresa de celulose e papel do Espírito Santo entrou com uma ação de interdito proibitório contra cinco pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo e militantes pró-demarcação das terras indígenas no norte do Estado. Nos termos deste interdito constava, conforme uma geógrafa requerida na ação, a proibição de criticar a empresa, enquanto pesquisadores e nas salas de aula, sob pena de multa de 100 mil reais por dia.
Falar a verdade ao poder: Uma análise dos casos brasileiros São múltiplas as estratégias das empresas e outros atores que visam restringir a divulgação de pesquisas que relacionem suas atividades a danos ambientais, sejam processos judiciais, telefonemas anônimos, desmoralização junto à opinião pública etc. Muitas vezes, essas diferentes ações estão presentes em um mesmo caso; entretanto, a utilização de uma ou de outra dependerá da conjuntura do conflito. A partir dos casos selecionados classificamos em jurídicas e extrajurídicas as ofensivas contra a liberdade acadêmica. As estratégias jurídicas consistem, notadamente, em processar pesquisadores por danos morais à imagem da empresa ou do proprietário, notificá-los para prestar esclarecimentos sobre suas pesquisas ou interceder, através de mandatos de segurança, junto ao órgão estatal a que o pesquisador presta serviços. Conforme Beder (1995) já havia observado, o litígio judicial é cada vez mais utilizado para intimidar as pessoas que são dificilmente influenciadas pela pressão de empregadores ou associações profissionais, como tende a ser o caso de pesquisadores das universidades e centros de pesquisa públicos. Tais litígios têm por intenção desqualificar e invalidar o conhecimento produzido, ao “personalizar” a discussão. As conclusões dos estudos seriam 8
Como o requerido pelo consórcio construtor da UHE de Belo Monte contra o Movimento Xingu Vivo para Sempre e outras quatro pessoas físicas participantes do Movimento. Interdito proibitório. Publicado em 04 de abril de 2012. Disponível em: <http://www.xinguvivo.org.br/2012/04/04/2283/>. Acesso em 29/11/2013.
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provenientes de diferenças particulares, fruto de “inimizades inóspitas” e não a partir da constatação de uma evidência científica. Se estas são as condições através das quais foram produzidas, conforme o arrazoado de advogados de empresas, o trabalho deve ser invalidado. Vale lembrar que todas as empresas envolvidas nos conflitos estudados pelos pesquisadores já respondiam processos judiciais ou estavam sendo fiscalizadas por órgãos ambientais. Todavia, ao assediarem formalmente os estudiosos, as empresas investigadas ou processadas transformaram-se em vítimas e os pesquisadores, em réus. No caso das estratégias extrajurídicas, quais sejam: a desmoralização do pesquisador ante a população local através da mídia ou de organizações de classe, perseguições pessoais veladas ou ameaças no próprio ambiente de trabalho etc. o foco estaria em desencorajar o pesquisador a prosseguir com sua atividade. Descreveremos, de forma breve, os casos brasileiros recolhidos entre 2010 e 2012 envolvendo pesquisadores, instituições públicas, fazendeiros, empresas privadas e publicas.9 A obtenção dos casos não foi tarefa simples, uma vez que tais constrangimentos não são divulgados de forma sistemática e mesmo quando conhecidos, nem todos os pesquisadores sentiam-se confortáveis para narrar suas experiências. Primeiramente apresentaremos os casos em que os pesquisadores foram submetidos a assédios processuais em razão 9
Um importante caso no qual uma empresa pública e um órgão estatal figuraram entre os atores que impediram o trabalho de pesquisadores aconteceu ainda na década de 1980. Foi o caso de um antropólogo da Universidade de Brasília e de um doutorando em antropologia da Unicamp. O antropólogo da UNB realizava estudos antropológicos com os índios Waimiri-Atroari desde 1981. Em 1987 ele iniciou uma pesquisa sobre o deslocamento compulsório de cerca de um terço do total da população indígena Waimiri-Atroari para outras partes da Reserva Indígena devido a formação do reservatório da Usina Hidrelétrica de Balbina. Meses antes da inundação foi instituído o Programa Waimiri-Atroari (PWAIFE), convênio da FUNAI com a empresa de energia que consistia em um programa de assistência aos indígenas. O PWAIFE, conforme o pesquisador, assumiu, à época, a direção da política indigenista na região e passou a exercer um controle seletivo sobre o ingresso de pesquisadores etnólogos independentes e impediu que antropólogos que não fizessem parte dos seus quadros ou não se submetessem às suas condições acompanhassem o processo. Nesta mesma ocasião um estudante de doutorado da Unicamp também teve sua pesquisa interrompida. Para impedir seus estudos nas aldeias, o pesquisador foi acusado pela empresa estatal de energia e pelo órgão estatal de ser agente do cartel de estanho internacional “usando índios como pretexto para tentar impedir o avanço de empresas de mineração privadas e nacionais sobre territórios indígenas”. Segundo o pesquisador, “o PWAIFE também organizou um Seminário em Manaus em 1990, durante o qual a minha tese de doutorado foi publicamente depreciada como ‘fofocologia’ por seu gerente.” (BAINES, 1996, p.19). Este, e outros casos mencionados, figuram o que se poderia chamar de pesquisas vigiadas (BAINES, 1991) impedindo o acesso à região, desqualificando a pesquisa e o pesquisador.
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da realização ou da divulgação de suas pesquisas10 e depois aqueles casos em que o assédio processual não foi a estratégia principal, mas a coerção pessoal.
Pesquisas envolvendo grandes empreendimentos e populações tradicionais CASO 1: • O primeiro caso de tentativa de criminalização da crítica científica a ganhar projeção nacional na comunidade científica, no período delimitado pela pesquisa, envolveu pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC), os índios Tremembé, a Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Estado do Ceará (Semace) e um grande empreendimento turístico que estava por ser construído em Itapipoca, CE. Este projeto, de capital espanhol, se apresentava como maior complexo turístico residencial do mundo e tinha um valor estimado de 15 bilhões de dólares. A área a ser construída era de 3,1 mil hectares e previa um aeroporto, destinado a turistas norte-americanos e europeus. Entretanto, estas terras pertenciam aos povos que tradicionalmente a ocuparam, os índios Tremembé de São José e Buriti. Em 2004, um geógrafo e uma antropóloga da UFC elaboraram um Parecer Técnico denominado “Estudos e levantamentos ambientais, antropológicos e arqueológicos na Terra Indígena Tremembé de São José e Buriti, município de Itapipoca/CE” a pedido da Associação Missão Tremembé e com apoio do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará. Neste parecer, os pesquisadores analisaram falhas e omissões no EIA-RIMA, como a desconsideração da presença e, consequentemente, dos danos que seriam causados aos indígenas. O parecer técnico foi utilizado como prova técnica em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal contra a Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará (Semace), que já havia licenciado o empreendimento, e contra o grupo espanhol. O projeto turístico teve sua licença de instalação suspensa por ação civil do Ministério Público Federal no Ceará ainda em 2004, da qual o parecer técnico constituiu-se como prova pericial. Em 2007, os empreendedores 10
Para preservar a identidade dos profissionais não mencionaremos seus nomes e o nome das empresas e empreendimentos que os constrangeram.
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interpuseram uma representação junto ao Crea-CE contra o geógrafo,11 alegando que ele teria elaborado o parecer técnico no exercício ilegal da profissão. Neste processo a empresa pedia que o parecer fosse considerado uma atividade profissional privada “por não possuir autorização acadêmica finalística da Universidade Federal do Ceará” e porque o profissional, não teria “habilitação em entidade de classe”. Com vistas a sustentar o pedido, a empresa apresentou cinco características na conduta do pesquisador, a fim de que fosse comprovado o exercício ilegal de profissão. A primeira delas foi a “ausência de isenção científica” e a alegação que a “atuação do professor tem cunho político”.12 A empresa alegava ainda que o professor “já descumpriu outras regras daquela IES conformando o que chamou de “exemplo de conduta profissional reprovável do professor” .13 A resposta do Crea-CE foi favorável ao pesquisador, levando em conta as análises científicas e independentes contidas no Parecer Técnico, a relevância acadêmica do pesquisador e sua qualificação nos serviços pertinentes à atividade de geógrafo e geólogo.14
CASO 2: • Estratégia semelhante ocorreu com a pesquisadora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Havia muitos anos que essa geógrafa se dedicava ao estudo das comunidades quilombolas no Norte do Espírito Santo, tendo produzido uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado sobre o tema dos conflitos ambientais envolvendo territórios quilombolas e áreas com monocultura de eucalipto. O cons11
“Versa o presente processo recurso sobre exercício ilegal de profissional no âmbito do sistema Confea-Crea, face à inobservância aos preceitos legais determinados pelas Leis 5.194/1966 (Regula o exercício profissional do sistema Confea/Crea), 6664/1979 (Disciplina a Profissão de Geógrafo) e 8455/1992, contra o Geógrafo e Geólogo (nome do pesquisador).” Conselho Regional de arquitetura, Engenharia e Agronomia do Ceará (Crea-CE). Representação da empresa contra o pesquisador. Processo n. 200718655, p 1.
12
Conselho Regional de arquitetura, Engenharia e Agronomia do Ceará (CREA-CE). Representação da empresa contra o pesquisador. Processo n. 200718655, p 2.
13
Conselho Regional de arquitetura, Engenharia e Agronomia do Ceará (Crea-CE). Representação da empresa contra o pesquisador. Processo n. 200718655, p 2.
14
Além disso, o Crea-CE, considerando que o geógrafo possuía o registro ativo no Crea-PE à época da atividade, ratificou que o parecer poderia ser admitido no âmbito do processo judicial e, por isso, indeferiu a representação impetrada pela empresa.
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trangimento judicial aconteceu quando a geógrafa coordenava a equipe responsável pela identificação e delimitação de territórios quilombolas no Norte do Estado. Este trabalho envolvia, além da Universidade, o Incra e a entidade jurídica representante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). O primeiro Relatório de Identificação e Delimitação Territorial (RTID) produzido foi referente à Comunidade de Linharinho, no município de Conceição da Barra, em 2005. A empresa de celulose, pretendente a terras que se encontram dentro dos limites do território identificado pela comunidade, apresentou um mandado de segurança contestando o RTID. Nela, a empresa questionou a imparcialidade da pesquisadora, a concepção de “quilombo” presente no relatório, solicitou a nulidade do processo administrativo e a suspensão da geógrafa da equipe do trabalho de campo. Conforme a empresa: Constata-se que a Equipe de Trabalho (...), é integrada pela geógrafa (nome da pesquisadora), que alimenta uma inimizade inóspita notória pela (nome da empresa). Tamanha a inimizade fomentada pela mencionada geógrafa, chegou ao cume ao escrever uma dissertação de mestrado (...) na qual indevidamente imputa à (Empresa) a responsabilidade por uma série de problemas que vão desde a destruição do meio-ambiente até a desestruturação do modo de vida das comunidades locais, enfatizando, inclusive, as comunidades de Conceição da Barra/ES, as quais foram objeto de trabalho do Relatório Técnico que teve sua participação. Soma-se a isso, uma série de artigos e ensaios publicados na internet, em jornais e revistas científicas, nos quais propaga sua ojeriza pela (nome da empresa) atribuindo à empresa a responsabilidade pelo “Deserto Verde” e por diversos males, o que gera, além do impedimento, situação de suspeição, a teor do artigo 20 da Lei 9.787/99 (...) Dessa sorte, a geógrafa jamais poderia ter feito parte da Equipe de Trabalho de campo que elaborou o Relatório Técnico de Identificação da Comunidade Quilombola de Linharinho. Com efeito, ela poderia ter se declarado impedida ou, quando menos, suspeita para participar de tal grupo, de modo a assegurar a imparcialidade do documento.15
15
Mandado de segurança apresentado pela empresa. Trecho do mandado enviado via correio eletrônico pela pesquisadora em 20 de abril de 2012.
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O Mandado de segurança apresentado pela empresa foi derrubado pelo Incra em primeira instância e encaminhado à segunda instância, no Rio de Janeiro, no qual a empresa obteve voto favorável. Finalmente foi à terceira instância, em Brasília, para o julgamento final e empresa obteve a anulação do RTID de Linharinho. A pesquisadora realizou ainda trabalhos referentes ao RTID da Comunidade de São Domingos e Santana (2005-2006), mas: “posteriormente, o INCRA informou que não mais me queria nas equipes técnicas, em virtude desses conflitos com a empresa”.16 A empresa, por sua vez, contratou profissionais das ciências humanas para questionar as identidades coletivas dos povos e comunidades tradicionais do norte do Espírito Santo, notadamente no caso dos índios Tupinikim e Guarani (BARCELLOS, 2008), mas também das comunidades quilombolas. Nos documentos da empresa encontramos a designação “comunidades negras”, nunca quilombolas.
CASO 3: • O geógrafo da Universidade Federal do Ceará, citado no Caso 1, também foi interpelado judicialmente por uma grande empresa agroindustrial que atuava no Estado. Seus representantes acusaram o pesquisador de ter sido o responsável indireto pela suspensão do selo ecológico atribuído à bebida produzida pela empresa e, consequentemente, por perdas suas financeiras. Os danos supostamente causados pelo geógrafo seriam oriundos, segundo a interpelação judicial, de afirmações feitas por ele em seminários e palestras nas quais abordava os impactos causados pela atividade da empresa à Lagoa Encantada, essencial à reprodução do povo indígena Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz/CE. O geógrafo foi acusado de promover uma “campanha caluniosa” contra a empresa e de manipular “acólitos e sequazes entorpecidos de ideologia”.17 O Ibama já havia produzido um laudo técnico ambiental sobre o estado de conservação da Lagoa da Encantada, devido à grande 16
Relato concedido pela pesquisadora à autora em 20 de abril de 2012. Em 2007, a geógrafa entrou com uma Ação de Indenização por Dano Moral, alegando difamação e injúria, mas, após duas Audiências com advogados da empresa, não havia, até o presente, recebido notícia a respeito.
17
19ª Vara Cível da Comarca de Fortaleza. Contestação. Ref. Processo n. 2007.0026.9629-9/0. Fortaleza, 7 de abril de 2008, p.2.
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mortandade de peixes verificada em 2006. Os técnicos identificaram uma série de irregularidades na qualidade da água, notadamente no ponto de captação da empresa. A empresa negou a existência daquele povo indígena, mesmo sendo uma etnia já reconhecida pela Funai. No processo a empresa argumentava que inexistia qualquer registro histórico que identificasse a presença de índios naquela área: (...) sendo oportuno assinalar que o nome “Jenipapo-Kanindé” foi criado por interessados no ressurgimento de índios no litoral cearense (...). Não há, em toda costa cearense, qualquer comunidade que tenha ou mantenha usos, costumes e tradições tribais.18
Para tanto a empresa contratou profissionais para elaborar um laudo sócio antropológico, apresentado nos autos, que negava a existência dos índios. Este relatório foi realizado, conforme a empresa, por um “famoso instituto” da Paraíba e assinado por supostos professores da Universidade Federal da Paraíba. Todavia não foram encontradas quaisquer referências ao referido instituto, nem indícios de que os profissionais contratados eram efetivamente professores da universidade.
CASO 4: • No início de 2012, um aluno egresso do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Ciências Humanas da Faculdade de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e a própria UFPA foram réus em um processo cujo autor não foi uma grande empresa, mas uma família pecuarista da Ilha de Marajó. A Dissertação de mestrado deste pesquisador analisava os danos causados aos pescadores pela grande concentração de terras na região e mencionava as propriedades desta família. A pecuarista impetrou uma Ação Ordinária de Dano Moral na qual alegou que a Dissertação continha afirmações “infundadas, inverídicas e denegritórias da imagem e reputação, não apenas da mesma, como também de sua família”.19 Para a configuração 18
19
Nota Pública. Disponível em : <http://www.observatorioindigena.ufc.br/oktiva.net/1983/nota/73713/>. Acesso em 20/06/2011. Ação Ordinária de Dano Moral. Processo 35947-07.2011.4.01.3900, p.4.
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do dano moral, foi justificado que o trabalho acadêmico ocasionava “um risco à incolumidade moral de uma família tradicional do Marajó, trazendo transtornos de cunho psíquico imensuráveis, ao criar, temerariamente, tese cientifica alicerçada em afirmações sem qualquer embasamento empírico”.20 Além de uma multa de 100 mil reais, a pecuarista exigiu a imediata retirada da dissertação dos portais do Ministério da Educação e da UFPA, medida tida como, “adequada para advertir o requerido quanto à ilicitude de sua conduta”.21 Conforme o pesquisador criminalizado, a sua dissertação foi fruto de um extenso trabalho de campo, contendo um grande número de entrevistas de pescadores da região, além de registros fotográficos. Referindo-se ao processo, o pesquisador pergunta-se: “Qual é a autoridade científica dos advogados e da processante para desqualificar esta pesquisa bem como estes professores de tradição na produção do conhecimento científico no Pará e no Brasil?”.22 A universidade não pode defendê-lo já que estava citada como ré no processo. Uma importante estratégia de defesa neste caso foi o apoio da comunidade científica. Estabeleceu-se uma rede de contatos nacionais e internacionais que manifestaram apoio e solidariedade ao pesquisador. A UFPA elaborou uma carta que circulou por muitas universidades e grupos de pesquisa no Brasil preocupados com o que chamaram de “judicialização dos pesquisadores”. A decisão judicial foi favorável ao pesquisador, a juíza federal assim explicou a sua decisão: “(...) entendo que pedido da autora viola a autonomia do pensamento científico, configurando-se ato de censura, o que é extremamente repudiável no nosso Estado Democrático de Direito.”.23
Pesquisas envolvendo informações do mundo corporativo CASO 1: • Em outubro de 2004, uma professora da Universidade Federal do Rio 20
Ação Ordinária de Dano Moral. Processo 35947-07.2011.4.01.3900, p. 2.
21
Ação Ordinária de Dano Moral. Processo 35947-07.2011.4.01.3900, p.12.
22
Entrevista para o Jornal da Associação de Docentes da UFPA. Queremos suas aspas, p.1. Enviado por correio eletrônico pelo pesquisador para a autora em 18 de julho de 2012.
23
Poder Judiciário, Justiça Federal de 1o Grau no Pará. Processo n. 35947-07.2011.4.01.3900. Decisão, p.3.
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de Janeiro desembarcou em Genebra para apresentar os resultados de suas pesquisas sobre contabilidade ambiental e os passivos ambientais das empresas siderúrgicas brasileiras em um encontro anual do International Standards Accounting Reporting (ISAR) na Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). Ainda no aeroporto foi recebida pelo representante brasileiro junto à ONU e, por seu intermédio, soube que o governo brasileiro não havia permitido a divulgação de sua pesquisa, sob a justificativa que a apresentação dos dados poderia prejudicar o mercado nacional do aço. Também em Genebra recebeu a notícia, via correio eletrônico, de que uma grande empresa siderúrgica, que era citada em seu estudo, havia interpelado-a judicialmente devido à publicação dos resultados de uma pesquisa de iniciação científica, da qual era orientadora, sobre a ausência de discriminação dos passivos ambientais das empresas em seus relatórios e balanços anuais. Os resultados deste estudo repercutiram na mídia nacional, notadamente em dois grandes jornais de São Paulo. Após esta ampla divulgação, e antes do evento do ISAR e da referida interpelação, o presidente do Instituto Brasileiro de Siderurgia procurou a pesquisadora, com um contador representante de cada empresa citada no estudo e pediram-lhe para que fizesse uma revisão do estudo e o publicasse novamente. Nas palavras da pesquisadora, eles desejavam uma espécie de retratação pública de sua parte. Algum tempo depois, a mesma pesquisadora foi convidada a apresentar sua pesquisa em audiência pública da comissão de meio ambiente no congresso nacional. Antes de sair de casa, ela recebeu ligação telefônica de um funcionário de uma grande empresa do setor de Petróleo, inquirindo sobre quais dados ela apresentaria.
CASO 2: • Outro importante episódio envolveu uma grande empresa de Petróleo e a pesquisadora da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – COPPE/
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UFRJ. Em sua tese de doutorado sobre as atividades de exploração e produção de petróleo, esta pesquisadora constatou que 19 plataformas de uma grande empresa estatal jamais tiveram licença ambiental, mesmo aquelas que começaram a operar após legislação que determina a obrigatoriedade de licença. Antes de elaborar a tese, a pesquisadora trabalhava no Escritório de Licenciamento Ambiental das Atividades de Petróleo e Nuclear junto ao Ibama. Ao longo desses anos de experiência no órgão ambiental, a pesquisadora pudera constatar irregularidades ambientais que acarretaram multas à empresa. Esta última tentou impedir a divulgação dos resultados da tese a partir de uma ação impetrada para cassar o direito de cátedra da pesquisadora.
Saúde pública e o uso político da incerteza científica CASO 1: • A liberdade para realizar pesquisas no âmbito da saúde pública foi objeto de processo judicial no caso de um pneumologista e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e de um engenheiro sanitarista da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio que se dedicaram à análise dos danos à saúde humana ocasionados por uma usina siderúrgica sediada no Rio de Janeiro. Desde a sua implantação, o complexo siderúrgico gerou uma série de alterações no modo de vida da população local. Na construção do píer e do porto da empresa, as obras de dragagem e a navegação de grandes navios criaram uma área de exclusão da pesca. A empresa também foi responsável pelo desmatamento de cerca de uma área de mangue, considerada Área de Preservação Permanente. Na época, a obra foi embargada pelo Ibama (GUIMARÃES, 2011). A pedido da população local atingida pelas obras da empresa, dois pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz ligados à Rede Brasileira de Justiça Ambiental elaboraram um parecer técnico sobre o relatório de impacto ambiental (RIMA) da empresa. Este parecer destacou as
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questões fundamentais não trabalhadas no RIMA, quais sejam: os riscos relacionados à emissão de efluentes líquidos, resíduos sólidos e, notadamente, emissões atmosféricas; a saturação da bacia aérea e a vulnerabilização da população que vive dos recursos naturais da Baía de Sepetiba. A empresa iniciou seu funcionamento em 2010 e logo nos primeiros dias a emissão de material particulado atingiu grande parte da população do entorno. Em decorrência deste episódio, o movimento dos atingidos pela siderúrgica solicitou à FIOCRUZ e à Universidade Estadual do Rio de Janeiro o atendimento aos moradores com graves problemas de saúde potencialmente relacionados à poluição. Nesse ínterim, foram realizados inúmeros seminários e debates públicos nos quais esses dados foram divulgados, algumas vezes pelos próprios pesquisadores. Em resposta, a empresa alegou que tais estudos representavam “acusações graves e infundadas” 24 e processou três pesquisadores por danos morais. Após ampla repercussão do caso e graves críticas das associações profissionais àquelas ameaças à liberdade acadêmica, a siderúrgica justificou-se, afirmando que acusava os pesquisadores não pelos estudos científicos produzidos, mas por declarações à imprensa ou em audiências públicas. “Houve coincidência (...) uma coisa não tem nada a ver com a outra” (...) A empresa estaria “questionando pessoas físicas e não a instituição”.25 Não era a renomada instituição que colocavam em xeque, diziam seus representantes, mas a “conduta ideológica” de alguns de seus cientistas. Este caso ilustra as estratégias de personalização do embate tendo em vista a tentativa de isolar e distinguir os pesquisadores da instituição em que trabalham, desmoralizando-os.
CASO 2: • A produção de conhecimento em saúde coletiva também passou por dificuldades no Ceará. Em 2009, uma professora do Departamento de Saúde 24
“Siderúrgica processa cientistas no RJ”. O Estadão. 1 de novembro de 2011. Disponível em: <http:// www.estadao.com.br/noticias/impresso-siderurgica-processa-cientistas-no-rj-793092,0.htm>. Acesso em 18/06/2012.
25
“Siderúrgica processa cientistas no RJ”. O Estadão. 1 de novembro de 2011. Disponível em: <http:// www.estadao.com.br/noticias/impresso-siderurgica-processa-cientistas-no-rj-793092,0.htm>. Acesso em 18/06/2012.
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Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e sua orientanda foram notificadas e interpeladas extrajudicialmente por uma empresa produtora de agrotóxicos que atuava há 15 anos em Maracanaú, CE. Esta interpelação foi motivada por uma pesquisa que tinha por objetivo: (...) aferição que indique, ou não, qualquer nível de poluição emitido pela empresa (...) em razão da delicada situação que atravessa considerável parcela da comunidade residente nas proximidades da empresa, acometida por doenças provavelmente ocasionadas pelos produtos químicos utilizados (...). 26
Esta pesquisa foi solicitada pelo Ministério Público Estadual/Procuradoria Geral de Justiça do Ceará ao Reitor da Universidade Federal do Ceará devido as inúmeras denúncias da comunidade do entorno da fábrica. Foi então instituída uma comissão Multidisciplinar de Estudo para subsidiar as ações do Ministério Público e o Reitor designou os membros da comissão. A mestranda em Saúde Pública da UFC que desenvolvia estudos sobre o conflito ambiental na comunidade de Novo Maracanaú contribuiu com os trabalhos da comissão. A pesquisa comprovou que os odores sentidos pela comunidade vizinha provinham das atividades da empresa e evidenciou a responsabilidade desta na contaminação atmosférica pela produção do agrotóxico Metamidofós.27 O relatório da pesquisa foi encaminhado ao Ministério Público Estadual e divulgado para as comunidades afetadas. Logo após a repercussão da pesquisa, a empresa notificou e interpelou, com pedido de explicações, as pesquisadoras. A interpelação refere-se às medidas judiciais cabíveis de reparação de danos sofridos pela empresa “em razão das ocasiões em que seu nome e imagem foram utilizados indevidamente”.28 A repercussão deste caso foi ampla, envolvendo moções das associações relacionadas à saúde pública no Brasil, das Universidades e do Conselho Nacional de 26
Carta de apoio às pesquisadoras da Universidade Federal do Ceará (UFC) da Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco).
27
Conforme a resolução da Anvisa este produto foi banido do mercado brasileiro em junho de 2012.
28
Nota de repúdio do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde do Ceará, 2009.
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Saúde. Todavia, as pesquisadoras da UFC, desde então, estão proibidas de citar o nome da empresa em público.
CASO 3: • O pesquisador da Fiocruz, já mencionado no caso envolvendo uma empresa siderúrgica do Rio de Janeiro, também sofreu constrangimentos em sua pesquisa sobre os danos causados pela indústria do amianto. Ele foi o responsável por diagnosticar, em uma trabalhadora da indústria do amianto, o primeiro caso de fibrose pulmonar crônica. O pesquisador elencou, em um artigo publicado em uma revista não científica, inúmeros danos à saúde humana causados pela referida fibra. Após a publicação deste artigo, o pesquisador foi notificado judicialmente a pedido do instituto que representa o setor de crisotila para dar explicações sobre suas pesquisas e publicações científicas. Este instituto solicitou que o pesquisador mostrasse “os registros de óbito e de diagnóstico de doença relacionado ao amianto identificados em pesquisas científicas que se deram com consumidores de telas e caixa d’água”.29 Sobre esta interpelação, o pesquisador afirmou: Isso é descabido, é uma inversão do ônus da prova, pois não tenho que provar que o amianto mata. Isso é literatura médica, o Inca inclusive afirma isso. Não sou eu quem diz. (...) A ciência não evolui no banco dos réus, mas no debate acadêmico. Se a indústria acha que o amianto pode ser utilizado porque há meios de controlá-lo, então traga seus estudos para os congressos acadêmicos, que os publiquem nas revistas médicas e vá para o debate científico. Sinto-me extremamente constrangido com a ação. Você fica parecendo um criminoso.30
Apostando na estratégia de fomentar controvérsias científicas para garantir a continuidade do uso do amianto, o mesmo instituto reúne em seu site alguns artigos de pesquisadores que contestam a opinião dos cientistas a fa29
Notificação enviada ao pesquisador pelo instituto empresarial. Disponível em: <http://idisa.jusbrasil. com.br/noticias/3016489/instituto-de-amianto-interpela-sanitarista>. Acesso em 29/11/2013.
30
“O uso do amianto no Brasil: ‘A ciência não evolui no banco dos réus, mas no debate acadêmico’. 1 de março de 2012. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/507030>. Acesso em 20/06/2012.
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vor do banimento do amianto e defendem a possibilidade de um uso controlado e seguro da substância. Sabe-se que além de complexas, as evidências científicas serão sempre sujeitas a dúvidas e contraprovas. É recorrente, neste contexto, o uso político do princípio da incerteza científica a fim de que a dúvida sobre os riscos paire sobre o debate público. Em 1969, um executivo da fabricante de tabaco Brown & Williamson disse, em um memorando, o que seria o cerne da estratégia empresarial para possíveis controvérsias no campo científico: “A dúvida é o nosso produto, uma vez que ela é o melhor meio de competir com o ‘body of fact’ que existe na cabeça do público em geral” (MICHAELS, 2005, n.p.). David Michaels apresenta inúmeros casos em que indústrias reconhecidamente poluidoras ou que produzem materiais perigosos à saúde humana financiaram estudos científicos a fim de produzir evidências contrárias àquelas publicamente aceitas sobre seus produtos. O autor defende que este processo teria se acentuado durante a gestão de G.W. Bush, que, como nenhum outro, facilitou e institucionalizou a estratégia corporativa de “manufaturar incertezas”. Enfatizar a incerteza em nome dos grandes negócios tornou-se um grande negócio em si. As firmas especializadas na defesa de produtos tornaram-se consultores experientes e bem sucedidos em epidemiologia, bioestatística e toxicologia. Na verdade, agora é incomum que a ciência por trás de qualquer proposta de saúde pública ou de regulação ambiental não seja desafiada, não importa quão poderosa a evidência (MICHAELS, 2005, n.p.). Pelo uso político da incerteza científica, empresas procuram postergar a proibição ou a regulação de seus produtos sob a justificativa de que mais pesquisas precisam ser realizadas para a obtenção de evidências. É desta forma que são legitimadas a continuar sua produção, pois se a evidência é ambígua, a ação reguladora é injustificada (MICHAELS, 2005). Sabe-se que a incerteza científica não é sinônimo de impotência dos pesquisadores ou dos métodos utilizados, mas algo inerente à ciência, guardando em si a potencialidade de gerar reflexões sobre os valores e o direcionamento do conhecimento científico. As ciências sociais e o seu maior relacionamento com o saber local tendem a mostrar a extensão das zonas de incerteza e seu caráter irredutível, aprofun-
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dando dúvidas levantadas por especialistas das ciências naturais. Todavia, se esta incerteza científica pode contribuir para o amadurecimento do processo social de aprendizagem sobre os limites socioculturais da ciência (WYNNE, 1994), vimos acima o recurso a estratégicas baseadas no uso oportunista da incerteza. Neste quadro, responsabilidades são pulverizadas responsabilidades e projetos controversos do ponto de vista ambiental são validados. A irresponsabilidade organizada, tal como definida por Ulrich Beck, aplica-se à transferência de responsabilidade para as vítimas, alegando a ausência de relações causais certificadas. É desta forma que interesses econômicos e políticos não raro desqualificam pesquisas científicas cuja consideração levaria à redução de seus lucros ou mesmo investem recursos próprios no financiamento de estudos que venham contradizer as críticas e dar legitimidade a seus projetos.
Constrangimentos, desqualificação e violência CASO 1: • No que se refere aos constrangimentos extrajudiciais, o caso mais grave refere-se ao antropólogo, doutorando em Antropologia na UFRJ. Este pesquisador é indígena Guarani-Kaiowá e realiza pesquisas na aldeia indígena Kaiowá, em Mato Grosso do Sul. Em abril deste ano, ele e sua família foram ameaçados de morte na entrada da aldeia Pirajuí-Paranhos, MS. O pesquisador narrou os acontecimentos em uma carta, que circulou entre programas de pós-graduação e redes sociais, ganhando projeção. Ele foi abordado por um homem quando estava no caminho da aldeia. Segue uma parte do relato: (...) O homem começou me pedir documento pessoal e do carro; passou a me interrogar. Entreguei a ele os documentos, ele olhou meu documento e falou: “Hã! você é o (nome) né!?, o que veio fazer por aqui? Hoje vamos conversar seriamente! (...) Você é inteligente, né? Que bom!” Enquanto isso, a minha esposa gestante de 7 meses e as crianças irmãzinhas dela começaram a chorar dentro do carro. O homem, ao ouvir o choro, falou-me naturalmente: “Você tem filhos e esposa, né? Gosta dela e de teus filhos? hein? Fala! Você vai perder tudo, ela
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que você ama e filhos que gosta, vai perder (...) Não estou não sozinho não; somos muitos. Você não está fazendo o trabalho que presta”. Referindo-se à ocupação da terra e pesquisa antropológica (...) Mais ou menos por 40 minutos, ele me falou: “Vai embora daqui! Nunca mais quero ver você por aqui.”. 31
Violações como esta fazem parte do cotidiano dos Guarani-Kaiowá constantemente ameaçados por grandes fazendeiros na região. Neste caso, a luta pelo território e a pesquisa antropológica estiveram relacionadas, sendo que esta última contribuiu também para a legitimação da primeira.
CASO 2: • Nem sempre as tentativas de constrangimento de pesquisadores se dão em espaços externos às universidades. Em 2007, uma aluna do curso de mestrado da Unimontes, em Montes Claros, Minas Gerais, identificou na plateia de sua defesa de mestrado funcionários da empresa por ela estudada. A pesquisadora fazia parte do Núcleo Integrado de Estudos Ambientais, coordenado pela Promotoria de Justiça, e participara, com representantes de órgãos ambientais, professores e pesquisadores, de um projeto que tinha por objetivo fazer um levantamento do “passivo ambiental” das empresas plantadoras de eucalipto na região Norte de Minas. Foi desta forma que a pesquisadora obteve o acesso a determinada empresa da região e realizou algumas visitas às suas áreas de plantio, bem como uma entrevista com uma assistente social da empresa que fora utilizada em um parecer técnico desenvolvido pelo grupo de fiscalização da Operação Raízes do NIEA. Para a sua própria pesquisa de mestrado, a então aluna do programa de mestrado da Unimontes, fez inúmeras solicitações de entrevistas à empresa, através de ofícios encaminhados por e-mail. A empresa respondeu dizendo que a pessoa responsável por conceder a entrevista não estava disponível. Meses depois, apenas algumas perguntas foram respondidas. Alguns dias antes da defesa da dissertação, a empresa entrou em contato telefônico com a pesquisadora. Desejava ter acesso ao trabalho antes da defesa e solicitava infor31
Nota da Comissão de assuntos indígenas (CAI) da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) sobre a intimidação contra o antropólogo e indígena Guarani-Kaiowá, publicada em 10 de abril de 2012.
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mação sobre a data da apresentação. Embora não tenha informado esta data, a pesquisadora foi surpreendida pela presença dos funcionários da empresa em sua apresentação. Segundo o relato da pesquisadora: Durante minha apresentação, por diversas vezes, eles riram, fizeram comentários entre eles e sacudiram a cabeça em sinal de reprovação. Ao final, eles se aproximaram da mesa da banca examinadora, abordaram minha orientadora, pedindo-lhe nome completo e telefone de contato (...) vim a saber por parte de minha orientadora, que durante algum tempo eles a procuraram insistindo em uma reunião com ela, onde era necessária a minha ausência. Condição esta não aceita por ela. Insistência que só veio a cessar após a interferência do Ministério Público, que por conhecimento dos fatos através de minha orientadora, procurou a empresa para ratificar o meu estudo e do respaldo que este estudo tinha junto ao Ministério Público.32 Poder-se-ía pensar que, se a defesa de uma Dissertação ou Tese é uma ocasião aberta ao público em geral, não haveria problema algum na presença de funcionários da empresapor academia. Todavia, como vimos, a empresa tentou monitorar os rumos da pesquisa antes da defesa, evento público e cujos desdobramentos poderiam causar danos à imagem da empresa. Esta ação ostensiva de constrangimento à autora não teria sido suficiente, o que explicaria o assédio feito à orientadora do trabalho.
CASO 3: • Em 2001, um laboratório de pesquisa do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) elaborou um parecer sobre o relatório de Impacto Ambiental de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) a ser construída em Aiuruoca, na região sul de Minas Gerais. Dentre outras irregularidades, a construção da PCH violaria a Lei 11.428, de 2006, a chamada Lei da Mata Atlântica. A notícia da instalação desta hidrelétrica mobilizou grupos ambientalistas da região e moradores das áreas de influencia da PCH, igualmente contrários ao projeto. O movimento de resistência à barragem contava com a assessoria técnica de pesquisadores da UFMG e da Universidade Federal de Viçosa. Conforme a coordenadora do grupo: “Nós 32
Relato concedido pela pesquisadora à autora no dia 8 de fevereiro de 2012.
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lemos, avaliamos e traduzimos o EIA/RIMA para a comunidade”;33 a partir deste encontro, cientistas e público leigo, houve a possibilidade de “desvendar os erros dos relatórios”.34 A emergência de um amplo debate público sobre a PCH e as frequentes críticas ao projeto, que vinham também dos órgãos ambientais estatais e federais competentes, tencionou as relações entre os atores em disputa. A empresa de energia e o governo municipal, temendo o crescimento da resistência ao projeto, procurou o grupo de pesquisa em dois episódios: através de uma convocação à coordenadora do laboratório, feita pelo então prefeito da cidade, a prestar esclarecimentos sobre sua postura contrária ao empreendimento e a tentativa de intimidação, por parte da empresa executora, do projeto, quando um de seus representantes se dirigiu até o local do campus universitário onde se situa o grupo de pesquisa.35 As tentativas de constranger as críticas do grupo de pesquisa não tiveram maiores repercussões. O amplo debate público contribuiu para que o licenciamento da PCH fosse arquivado em julho de 2012.
CASO 4: • Ao contrário do caso acima, em que a própria comunidade fez parte do processo que ensejou o estudo da universidade, os pesquisadores da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e da Embrapa enfrentaram o forte apoio local ao empreendimento siderúrgico que deveria ser instalado no Pantanal. Ameaças como “fora os que não querem o desenvolvimento de Corumbá!”, “vamos expulsá-los à bala!”, “eles ganham em dólar!”, “são ligados a organizações internacionais”, “são marajás, que ficam encastelados em suas boas casas, enquanto você trabalhador desempregado está passando necessidade”,36 foram difundidas por carros de som na cidade de Corumbá, Mato Grosso do Sul. Essa abordagem ofensiva foi uma resposta a divulgação de um parecer elaborado pelos pesquisadores da UFMT e da Embrapa 33
Boletim UFMG, n.. 1370 - Ano 29. 10/10/2002.
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Boletim UFMG, n. 1370 - Ano 29. 10/10/2002.
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Informações concedidas via correio eletrônico pela pesquisadora e coordenadora do grupo.
36
Palavra contestada. Por Andreia Fanzeres. 17/5/2006. Disponível em: <http://www.oeco.org.br / reportagens/1603-oeco_16821>. Acesso em 20/5/2013.
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apontando irregularidades no Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do projeto de uma usina siderúrgica, em 2005. O parecer sobre o RIMA havia sido solicitado oficialmente pelo órgão licenciador, o Instituto de Meio Ambiente Pantanal/Secretaria Estadual do Meio Ambiente e pelo Ministério Público Estadual. A campanha difamatória na mídia local foi denunciada pelo Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (Sinpaf). Uma parte da população que vivia basicamente da produção rural se opôs ao projeto e houve outras mobilizações contrárias à siderúrgica também nas audiências públicas. A bióloga, que há mais de 20 anos trabalha com ecologia e ecotoxicologia de ecossistemas aquáticos e que participou ativamente do estudo temeu por sua integridade física, ante o clima de tensão que dominou Corumbá. Meus amigos e colegas de profissão estão me aconselhando a não ir à Audiência Pública de hoje em relação ao empreendimento (Nome) Siderurgia Ltda. (...) por estarem apreensivos em relação à possibilidade de agressões físicas e morais contra a minha pessoa e contra os demais técnicos que realizaram pareceres por solicitação oficial da Sema/Imap e da Promotoria Pública Estadual. 37
Algumas reflexões a guisa de conclusão As empresas que se acreditam prejudicadas por trabalhos acadêmicos alegam, frequentemente, a ausência de neutralidade científica dos estudos elaborados pelos pesquisadores que são por elas processados. Aquelas pesquisas que não mencionam ou não relacionam danos ambientais ao desenvolvimento de suas atividades são apresentadas por esses mesmos agentes econômicos como axiologicamente neutras e, por isso, científicas. É como se, em seus termos, ciência neutra fosse aquela que não trouxesse em si qualquer potencial para ampliar o debate político sobre determinadas intervenções no território ou sobre controle social do uso produtivo de determinadas substâncias. Trata-se, pois, da defesa de uma ciência economicamente eficaz, não autorizada a problematizar ou controverter. 37
Depoimento feito pela pesquisadora em 4 de maio de 2006, via correio eletrônico.
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Ainda que o conflito ambiental já estivesse instaurado antes da realização das pesquisas em tela, observamos um importante ganho de legitimidade das reivindicações das comunidades ao longo dos processos de pesquisa e após a divulgação de seus dados. Alguns estudos, por exemplo, foram realizados a pedido do Ministério Público ou levados até o poder público pela própria comunidade afetada, trazendo à tona conflitos que eram antes escamoteados ou desconsiderados. As pesquisas e as análises críticas de biólogos, sociólogos, médicos, geógrafos etc. construídas em diálogo com o saber dos sujeitos sociais impactados pelas atividades empresariais parecem ter intensificado as disputas pelo poder sobre os sentidos e os usos dos recursos naturais e dos territórios. Este esforço em falar a verdade ao poder, nos termos de Said (2005), talvez seja o motivo dos inúmeros constrangimentos e perseguições a pesquisadores, assim como a instituições públicas e autônomas. O que caracteriza tais tipos de pesquisa é o fato dos pesquisadores estarem em permanente diálogo com os saberes ditos leigos, reconhecendo a autonomia das coletividades na construção de seus entendimentos públicos. Esses sujeitos sociais proporcionaram, para além de informações sobre a localidade, reflexões que questionam a epistemologia hegemônica que dita um determinado modo de se fazer ciência, evidenciando, assim, as dimensões político culturais do campo científico. Desse encontro frutífero emergem múltiplos e distintos conhecimentos que repercutem no debate público. Abre-se então espaço para a contestação de projetos com impactos ambientais controversos, bem como surgem também ameaças e constrangimentos aos pesquisadores e seus métodos de pesquisa, num processo de criminalização da dissonância cognitiva. As discussões acerca da relevância da liberdade acadêmica em um contexto de agravamento das desigualdades ambientais e de despolitização do debate sobre as questões ecológicas nos remete à importância atual do papel dos intelectuais. Wright Mills, em um ensaio intitulado: “O que significa ser um intelectual” diz que muitos destes, considerando-se impotentes ante as questões que analisam, não mais fazem julgamentos ou exigências, deixando-se levar por uma profunda quietude em suas rotinas profissionais e pela ausência de autocrítica aos chamados conflitos de interesses. Ante este cenário, Mills
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reafirma o potencial político dos intelectuais: Apesar de tudo isso, há algo nos intelectuais e na vida intelectual que os pressiona fortemente a assumir esse papel político de transcendência e julgamento. Há, de fato, muitas coisas, mas a primeira delas é que é simplesmente verdade que pensar de uma maneira realmente livre e ampla é, como se diz, ‘criar problemas’, questionar e, no devido tempo, exigir e julgar (MILLS, 2009, p. 89). Semelhante à crítica de Mills, Edward Said insiste no papel público do intelectual, que teria como função “levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los) isto é, alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações” (SAID, 2005, p. 26). Mesmo sob constrangimentos, estes pesquisadores assumiram a dissonância e levantaram problemas que são “sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete” (SAID, 2005, p. 26). As ameaças aos pesquisadores brasileiros mostram a fragilidade das instituições ante interesses empresariais, mas revelam também a possibilidade de que, em contextos adversos, intelectuais afirmem sua função pública.
Abstract The 1988 Brazilian Constitution guarantees the freedom to learn, teach, research and disseminate the knowledge. With regard to the scientific knowledge’s production, the respect for these rights shows itself dependent on a set of historical circumstances ranging from the ability of government agencies to ensure the law to the demonstration of vitality in the ways of society organization in defense of free debate of ideas through the autonomy gained by scientific institutions in the development of their activities. However, we must acknowledge that there are forces working in the opposite direction to the exercise of such rights; and also that even in the presence of a public sphere, these forces, generally associated to large economic interests which act directly on the scientific field or indirectly by the political system, may constrain the freedom that is essential for the achievement of an independent academic research. In this paper we characterize the offensive against freedom of research in Brazil, from 2001 to 2012, through the report of thirteen Brazilian researchers whose studies had the potential to create an environment less favorable to the progression of economic projects. Keywords: Environmental conflicts, academic freedom, procedural harassment
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“Elefantes nas salas”1 onde os públicos encontram a “ciência”?: Uma resposta a Darrin Durant, “Refletindo sobre a expertise: Wynne e a autonomia do público leigo” “Elephants in the rooms” where publics encounter “Science”?: A response to Darrin Durant, “Accounting for expertise: Wynne and the autonomy of the lay public” Brian Wynne Brian Wynne é Professor de Estudos da Ciência e Diretor Associado do Conselho de Pesquisa Econômica e Social do Reino Unido (UK ESRC, na sigla em inglês) do Centro para os Aspectos Econômicos e Sociais da Genômica (CESAGen), na Universidade de Lancaster.; e-mail: b.wynne@ lancaster.ac.uk Publicado originalmente em Public Understanding of Science, 2008, 17: 21-33. Tradução de Patricia Bonilha
Resumo O texto discute a questão da divergência entre o saber público e o saber perito, criticando o chamado “modelo de déficit público”, frequentemente adotado como esquema explicativo por órgãos científicos, políticos e empresariais. Em resposta à crítica de Durant, segundo quem o autor outorgaria um status de reflexividade aos atores leigos, destituindo os especialistas de sua própria capacidade reflexiva, o artigo sustenta que as habilidades de conhecimento, assim como as capacidades hermenêuticas coletivas e independentes de cidadãos, não respondem à ciência como nós a compreendemos, mas, sim, com seus próprios significados coletivos. Palavras-chave: Compreensão pública da ciência, saber leigo, saber perito.
1
Nota da tradutora: "Elephant in the room" é uma expressão idiomática pouco comum em português, cujo significado é que algo óbvio está sendo ignorado e/ou que há uma questão ou um problema que se está preferindo não discutir, ignorar. "Um elefante em uma sala" é algo que não teria, a princípio, como ser ignorado; portanto, se está sendo ignorado é porque foi feita a escolha de ignorá-lo, de optar por questões tangenciais ou irrelevantes em vez de lidar com a questão principal. Revista Antropolítica, n. 36, p. 83-110, Niterói,1. sem. 2014
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APRESENTAÇÃO Fabrina Furtado Fabrina Furtado, Doutoranda em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ, mestre em Economia Política Internacional pela Universidade de Warwick da Inglaterra (2001) e formada em Economia e Relações Internacionais pela Universidade de Reading da Inglaterra (2000). E-mail: f.furtado7@gmail.com
Raquel Giffoni Pinto Raquel Giffoni Pinto é formada em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em sociologia e antropologia. Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ. Atualmente é professora de sociologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). email: raquelgiffoni@gmail.com
Conflitos ambientais articulam-se, com frequência, a conflitos cognitivos. Nas controvérsias desencadeadas em tais situações, são, via de regra, evocados tanto saberes leigos como saberes científicos. Atores do campo científico – em geral, das ciências ditas duras – são, com frequência, mobilizados para fornecer elementos que permitam legitimar práticas espaciais tidas por ambientalmente danosas e criticadas por sujeitos sociais que julgam estar sendo, por estas práticas, atingidos de forma indesejável. A percepção popular dos efeitos indesejados de tais práticas é, por vezes, apresentada como pouco capaz de restituir relações causais pertinentes e empiricamente comprováveis. São abordagens críticas aquelas que procuram valorizar as falas dos sujeitos sociais atingidos, considerando que estas permitem problematizar a propensão à vigência de certo etnocentrismo aplicado à análise dos efeitos das práticas espaciais – notadamente das formas dominantes de apropriação do espaço sobre as demais. Nos casos conhecidos de assédio processual a cientistas sociais que estudam conflitos ambientais – questão tratada no presente dossiê – o que os representantes dos interesses que se consideram prejudicados por tais pesquisas procuram inibir é o desenvolvimento de estudos que busquem construir um quadro mais complexo dos litígios, dando conta de um diagrama de forças que compreenda o amplo conjunto dos saberes envolvidos nas controvérsias, incluindo, por certo, os saberes leigos.
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No campo das ciências sociais, constituiu-se, a partir de meados dos anos 1980, uma área temática para dar conta das interfaces entre saber leigo e saber perito, assim como do modo como se expressam a preocupação e o entendimento públicos correntes acerca de fatos científicos e tecnológicos. É neste domínio – da chamada “compreensão pública da ciência” – que se deu uma interessante polêmica entre Brian Wynne e Darrin Durant. Para Wynne, as fronteiras entre ciência e não ciência são socialmente construídas; o conhecimento científico incorpora culturas e valores particulares – e não só “verdades confiáveis”. O conhecimento científico não seria apenas contestado e contestável, mas haveria mesmo uma indeterminação do conhecimento na própria noção de “confiança” no saber científico. Para Wynne, a perícia científica oficial tenderia a aplicar um saber universalístico que desconsidera especificidades locais, tais como condições diferenciadas de solo, modos de uso de equipamentos etc., que os sujeitos leigos, por sua vez, tendem a conhecer melhor. Para ele, o saber perito é, com frequência, difundido junto ao público para fins determinados de persuasão, o que termina por gerar certa desconfiança pública para com a perícia das ciências duras. Em alguns de seus estudos de caso, Wynne sustenta que tende a ocorrer uma desconsideração perita a respeito do saber local, ao lado de frequentes esforços oficiais em produzir deferência pública para com a perícia. Sendo portadores de certa crítica da indeterminação social dos modelos científicos, os detentores do saber leigo local tenderiam a exprimir, por sua vez, certo descontentamento com relação à perícia. Ou seja, os sujeitos leigos situados nas localidades onde se dão processos controversos de tal ordem perceberiam as implicações políticas das simplificações cientificas. Em seu artigo “Accounting for expertise: Wynne and the autonomy of the lay public” (“Refletindo sobre a expertise: Wynne e a autonomia do público leigo”), publicado em 2008, Darrin Durant analisa criticamente a noção de Public Understanding Of Science (P.U.S.) “compreensão pública da ciência”, tal como adotada por Brian Wynne. Para Durant, Wynne outorga um status de reflexividade aos atores leigos, mas, ao mesmo tempo, estaria destituindo os especialistas de sua própria capacidade reflexiva. Se esta noção de “com-
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preensão pública” eliminou a lacuna de conhecimento entre os especialistas e o público leigo, teria estabelecido outra, de ordem ontológica. Durant parte da teorização de Wynne sobre a modernidade tardia e seus debates sobre o papel dos especialistas e do público leigo na tomada de decisões: sua primeira discussão dá-se por uma comparação entre as ideias de Wynne e as de Beck e Giddens e, a segunda, em diálogo com os trabalhos de Collins e Evans. Wynne se opõe a três aspectos principais da tese de Giddens e Beck, a saber, de que teria havido: (a) uma transformação sócio-histórica na modernidade – de simples para reflexiva; ou seja, da confiança automática nos peritos para a confiança escolhida e calculada; (b) uma sustentação epistemológica realista a respeito dos riscos; e (c) a consideração da ciência enquanto epítome da instituição moderna autorreflexiva. Na leitura de Durant, por sua vez, Wynne veria o risco como um fenômeno cultural e hermenêutico, uma espécie de intrusão nas identidades sociais, compreendendo a ciência como uma instituição social menos autorreflexiva. Sendo assim, uma reforma política da ciência só ocorrerá se o papel cultural autoproclamado e assumido pela ciência enquanto agente de significados públicos for desafiado. A solução de Wynne para o problema da modernidade envolveria então uma “reflexividade institucional”; a solução não seria a de recorrer a mais ciência, distribuída de forma igualitária, mas, sim, a menos “cientificismo”. A ciência deveria ser menos determinística e mais ambígua nas suas identidades culturais; mais flexível e aberta, portanto, para a negociação nas suas interações com o público leigo. Sob a óptica de Durant, Wynne entenderia que a apropriação do conhecimento por parte do público leigo seria mediada não por sua capacidade de entender as informações técnicas, mas pela confiança e pela credibilidade que investem nos representantes e nas instituições científicas. A confiança e a credibilidade seriam as variáveis dependentes e dinâmicas que derivariam das relações sociais, das redes e identidades. O conhecimento seria então uma função da solidariedade social mediada por elementos relacionais de confiança, dependência e identidade social. Assim sendo, a análise de Wynne implicaria na construção da compreensão enquanto processo de formação de identidade social.
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Durant afirma que para Wynne os modelos prescritivos do ator leigo são impostos por especialistas não reflexivos, esvaziando estes atores públicos leigos das suas habilidades culturais e hermenêuticas como forma de responder às intrusões nas suas identidades. A solução proposta por Wynne seria a de melhorar essa realização através da transformação dos sistemas de especialistas em um fórum para a cultura e não somente para o conhecimento. Este projeto reconhece que a reforma da ciência exige uma “mudança institucional dos seus modos de organização, controle e relações sociais” e a expressão de identidades sociais. A questão para Durant é a de saber se estes dois elementos do projeto – reforma estrutural e identidades sociais – funcionam juntos. Neste ponto, Durant identifica uma contradição nos trabalhos de Wynne no que se refere ao fator explicativo da base da reflexividade. Wynne, em uma nota de rodapé, afirma que “nenhum ator social é naturalmente reflexivo” e que é possível sugerir a existência de “uma simples lei de reflexividade”, tal como, digamos, “a reflexividade é inversamente proporcional ao poder”. Assim, ela seria fruto de uma relação estrutural e não de uma identidade social, tal como Wynne assumia como conceito explicativo mais fundamental. Se a “lei de reflexividade” está baseada em uma relação estrutural, então porque afirmar que “o programa de reflexividade proposto se fundamenta nas identidades sociais?”, questiona Durant. Wynne parece reconhecer esta ambiguidade, mas quer um instrumento teórico que aponte para a identidade social, preservando assim a autonomia do ator em face às relações sociais de controle. Durant conclui que Wynne tem seu próprio modelo prescritivo do público enquanto agente reflexivo (não realizado), em contraste com o ator com “juízo embotado” (judgemental dope), escravo da rotina e tradição. Essa análise determinaria a solução para a ciência: a reformulação das instituições científicas via contribuições externas ao problema, enquadrando-as. Argumenta ainda que a teoria de Wynne permanece acidentalmente assimétrica com respeito ao diagnóstico do problema do comportamento dos especialistas e da participação pública. A proposta de “reforma institucional dos modos de organização, controle e relações sociais da ciência”, de Wynne, é direcionada aos cientistas e instituições científicas, que seriam a fonte do problema, por causa da “falta de reflexividade das
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instituições e atores científicos”. Neste ponto, Wynne introduz as “dimensões de poder e relações sociais” para demonstrar que a reflexividade científica encontrase “amarrada nos confins ideológicos comuns”. Desta forma, pergunta Durant: “é possível que a perspectiva da ‘compreensão pública da ciência’ atribua demônios aos cientistas para exorcizá-los e anjos ao público para validar seu envolvimento, de forma análoga à afirmação de que devemos confiar nos cientistas porque eles têm acesso especial à verdade?”. A estas avaliações críticas, Brian Wynne procurou responder em seu artigo “Elefantes nas salas onde os públicos encontram a ‘ciência’?: Uma resposta a Darrin Durant, ‘Refletindo sobre a expertise: Wynne e a autonomia do público leigo’” que apresentamos a seguir.
Introdução Durant fez um admirável trabalho ao digerir pelo menos treze das minhas publicações sobre as interações do público com a ciência durante um determinado período, mostrando considerável resistência e paciência, além de uma notável capacidade analítica e de um espírito crítico construtivo.2 Contudo, algumas, embora não todas, de suas leituras sobre o meu trabalho nessa 2
Enquanto "o público" e "seus" misteriosos feitos e imaginações relacionados à "ciência" tornaram-se recentemente o foco de intenso interesse, parece-me que ainda não abordamos as questões principais. Em primeiro lugar, nosso campo deveria basear-se mais em trabalhos históricos mais amplos da filosofia política, além de incluir a resposta de Dewey ([1927] 1991) à rejeição de Lippman ([1927] 2002) a respeito do público apenas como "um fantasma". No entanto, isso seria muito mais do que fazer uma simples (e mórbida) "filosofia política do risco", que é como alguns estudiosos a imaginaram (por exemplo, Kusch, 2007). Os artigos de autores como Dario Gamboni (pp.162-95), Simon Schaffer (pp.196-202) e Noortje Marres (pp. 208-17), em Latour e Weibel (2005), fornecem os princípios desta nova perspectiva. Mas é surpreendente como, sistematicamente, a maioria dos textos da corrente dominante da filosofia política e da democracia deliberativa, apesar de suas importantes percepções em outros aspectos, deixa de abordar as implicações das históricas mudanças nos papéis políticos e culturais da ciência para os seus temas. Para conhecer apenas dois exemplos emblemáticos comuns, ver Benhabib (1996) e Bohmann e Lutz-Bachmann (1997). Relacionado a isso - o suposto objeto de tais significados e respostas públicas, a "ciência" (e o risco) em si, precisa ser mais cuidadosamente problematizada, diferenciada e desmontada (para simplificar, doravante, me refiro à "ciência" sem o contínuo uso das aspas, mas mantendo por completo a intenção de questionar o que é o significado desta referência comum). As ¨culturas do conhecimento científico" que permeiam, configuram e, talvez, obscurecem essas relações não têm sido suficientemente analisadas, especialmente nas suas sutis e variadas formas de interconstrução com os universos das políticas públicas, da controvérsia, da economia, da política e da "não política". Nós não podemos conduzir pesquisas relevantes sobre os públicos em relação à ciência de forma apropriada a não ser que também examinemos criticamente o “elefante na sala” – ou seja, o que é essa "ciência" que supomos que as pessoas experimentam e entendem em cada uma dessas situações. O tom crítico dessas observações iniciais não se refere a Durant; trata-se de um necessário prólogo contextual. Tento abordar estes aspectos mais amplos, aqui inevitavelmente de modo apenas indicativo, em resposta às suas observações mais específicas sobre o meu trabalho.
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área compartilham alguns importantes equívocos com outras discussões críticas de meus trabalhos, amplamente citadas (por exemplo, COLLINS e EVANS, 2002, 2003; KERR, 2004; KUSCH, 2007). Assim, ao mesmo tempo em que expresso o devido respeito às ideias individuais de Durant, também faço mais algumas observações gerais, em parte para responder àquelas outras leituras da minha crítica ao chamado “modelo de déficit público” como forma de explicar a divergência entre o público e os experts.3
O que está em jogo: conhecimento especializado ou preocupações e significados? O trabalho que Durant discutiu reflete minhas compreensões em desenvolvimento a respeito dos entendimentos – por parte de cientistas sociais, cientistas naturais e outros atores políticos – dos “públicos” que se constituem nos campos da compreensão pública da ciência (public understanding of science), das relações entre ciência e política, ou entre ciência e sociedade. Claro que isso tem sido realizado no âmbito das interações públicas com a expertise científica; mas em somente um aspecto faz sentido perguntar sobre as formas de “expertise” que os diversos públicos podem ter, e para quais delas eles têm direitos de reconhecimento. Como outros (por exemplo, COLLINS e EVANS, 2002, 2003; KUSCH, 2007), Durant assegura que esta é a questão essencial. Não compartilho desta premissa. Meu trabalho iniciou-se a partir de uma perspectiva diferente da que poderíamos chamar de dominante nesta área, assumindo sempre a relacionalidade como o fundamento ontológico do ser e do saber.4 Uma implicação disso foi mencionada anteriormente – 3
Confrontado com o curioso paradoxo do repetido abandono oficial de tais formas de explicação da divergência pública, seguido quase ao mesmo tempo pela invenção de novas versões, sugeri, de acordo com a perspectiva deste artigo, que esta obsessão pelo modelo de déficit público por parte dos órgãos científicos, políticos e industriais devem ser vistos como um indício de diagnóstico para outras questões mais profundas nessas culturas institucionais que fazem esta aparente autocontradição (ver, por exemplo, WYNNE, 2006a, 2007). Não é culpa de Durant que ele não tenha visto esses artigos mais recentes e, de qualquer maneira, a questão do modelo de déficit não é o seu foco.
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Durant reconhece isso, porém tende a prestar demasiada atenção na diferença entre "relações sociais" e "identidade" no meu trabalho, como explicado mais adiante. Outro elemento distinto deste ponto de partida ontológico é também o que pode ser visto como inspirado no interacionismo simbólico, e em Gofmann (1971) como teoria social. Este é o axioma em que, em interação social, indivíduos ou organizações estão incessantemente imaginando, de forma antecipada, os pontos de vista e expectativas dos significativos outros, e se comportando em relação a essas expectativas e respostas imaginadas.
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não podemos abordar o desafio da “compreensão pública” da ciência sem, ao mesmo tempo, abordar também a ambígua questão da própria “ciência” (e as suas construções normativas do público), como empírica, teórica e normativa. Esta continua sendo a questão principal. Como explico adiante, Durant e esses outros autores parecem ter reduzido as minhas questões mais amplas às suas próprias premissas inquestionáveis, quando são justamente estas premissas que tenho tentado contestar. Historiadores como Shapin e Schaffer (1985) demonstraram, por exemplo, que desde os seus dias mais iniciais, sob a forma de filosofia natural e experimental, a ciência contou, em suas práticas epistêmico-culturais, com públicos imaginários, ao mesmo tempo refletindo-os e realizando-os, frequentemente de forma tácita. Tenho, por essa razão, sempre considerado as declarações sobre habilidades de conhecimento do público, as preocupações públicas, capacidades hermenêuticas coletivas e independentes de cidadãos (de fazer sentido, dar significado) como tendo sido feitas em relação com as asserções científicas institucionais dominantes e presumíveis. As pessoas não estão respondendo à ciência como nós a compreendemos. Elas estão trabalhando com seus próprios significados (coletivos), não com os nossos. Isso é verdade, por exemplo, nas minhas percepções sobre a questão da confiança relacionada ao tema do risco e às chamadas atitudes em torno do risco; as chamadas preocupações públicas em torno do risco são sempre preocupações públicas sobre suas relações sociais de dependência – e isto, o fazem racionalmente. Assim, a hipótese dominante de que as questões públicas envolvendo riscos são questões de risco constitui um grave erro, que apresenta amplas ramificações; um erro que é perpetrado não somente por instituições científicas e políticas, mas também por muitos cientistas sociais. Esta ênfase, ontologicamente fundamentada na necessidade de reconhecer as diferenças hermenêuticas (de significados e preocupações, portanto, de enquadramento “da(s) questão(ões)”) também se reflete no que eu disse sobre as preocupações e as capacidades de conhecimentos do público em relação às intervenções científicas em domínios públicos. Desse modo, a maioria das queixas, incluindo as de Durant, ainda que de um modo particular,
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sobre minha alegada romantização das capacidades e conhecimentos do público leigo parece ser fundada em mal entendidos na incompreensão a respeito do ponto de partida radicalmente diferente que eu tomei. Aqui, o principal ponto de discórdia que eu tenho com críticos como Collins e Evans (2002, 2003), Kusch (2007), ou críticos parciais como Kerr (2004; e talvez Durant?) não é, como eles parecem supor, sobre o alcance da “expertise leiga”. É, mais fundamentalmente, sobre o que eles supõem ser a base das divergências do público com relação às perspectivas de cientistas, quando estas ocorrem. Estas não são divergências de a respeito de quem detém o conhecimento, ou não só isso – sobre significados, preocupações, relações e formas de vida. Enquanto estes colegas desejam reduzir as questões públicas ao conhecimento e, portanto, à “expertise”, ou à sua ausência, eu quero insistir nas dimensões de significados e preocupações contestadas (e, portanto, no que é considerado relevante), e na negação da legitimidade desta diferença por parte das instituições científicas.5 5
Aqui eu apenas sinalizo um problema para desenvolvê-lo em outro lugar. Essa é a natureza intrinsecamente ditatorial deste processo de negação cultural institucional das preocupações daqueles cidadãos que não correspondem facilmente aos interesses e preocupações dominantes - ditatorial porque é imposto, de forma presunçosa, sobre as populações pelos governos, geralmente em nome da ciência, sem o menor indício de reconhecimento, negociação ou responsabilidade sobre quais são as preocupações que devem ser abordadas, por exemplo, em processos regulatórios que são estruturados apenas como "avaliação de risco". Aqui, filósofos políticos e jurídicos, como Agamben (2005), e anteriormente Walter Benjamin e Carl Schmitt, descreveram a condição da política moderna como um "estado de emergência", em que as formas normais de contrato político entre Estado e cidadania, em que as garantias constitucionais de direitos, responsabilidades e liberdades básicas dos cidadãos, são suspensas por referência a condições excepcionais - de emergência e desordem incipiente - que afirmam prevalecer. Os debates filosóficos se baseiam na questão de que se hoje em dia, este estado de "emergência" de insegurança por parte das autoridades institucionais não é mais para ser visto como temporário, já que é sempre realizado no contexto de modos garantidos de restaurar o constitucionalismo democrático normal, ou se, por várias razões, agora se tornou a norma, e permanente. Agamben utiliza o conceito de "o campo", como em campos nazistas de concentração de judeus, para exemplificar o que ele afirma ser este estado geral de dissolução dos direitos e de identidades cívicos - de reconhecimento humano (distinto da sobrevivência biológica apenas). À primeira vista, isso parece extremo, mas o que é notável no contexto atual é apenas como essa discussão filosófica deixa de examinar como a tecnociência como cultura pública moderna, ordem e autoridade, especialmente desde os meados dos anos de 1950 e com a chegada da era das armas nucleares (ver Weart, 1988), foi instalada como prática de facto, claro que não explicitamente formalizada em lei, de negação da legitimidade, das capacidades, de cidadãos coletivamente articularem preocupações independentes e significados públicos que não podem ser domesticados e controlados por formas científicas de representação. Estas diferenças são fundamentalmente políticas, ou seja, por quais formas de sociedade, necessidade social e relações sociais queremos lutar a favor e contra. Deixam, então, que tal conflito e diferença, assumidos como são pela ciência como o discurso dominante público, sejam conduzidos indiretamente, em nome da ciência; e a profunda diferença e alteridade, às quais respostas cidadãs indicam, mas que são ameaçadores para as autoridades imbuídas com reflexos expressamente científicos e culturais, são, assim, negados, em vez de direcionados para o que são. Discursos de risco,
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Tenho, portanto, dito que essas preocupações públicas não são predominantemente preocupações sobre ser ilegitimamente desqualificado e excluído do debate e das decisões dos especialistas sobre uma questão de conhecimento como “quais são os riscos?”,6 que Collins e Evans e a maioria das próprias instituições políticas e científicas supõem ser a questão de política pública. Elas dizem respeito, antes, à imposição supostamente hegemônica das preocupações tidas por relevantes – e, portanto, das questões de conhecimento tidas por relevantes e dos conhecimentos tidos relevantes – a serem reconhecidas em primeiro ligar no quadro público de sentidos relativo ao assunto em pauta. Isso normalmente envolve uma redução das complexas questões multidimensionais envolvidas na avaliação das inovações tecnológicas sociais à questões de risco científico.7 Enquanto Collins e Evans parecem querer fazer uma separação entre estas questões de atribuição de significados públicos, por um lado, e as questões de conhecimento, por outro, como questões “políticas”, reservando estas últimas para serem tratadas por outras instituições mais democráticas, este tipo de esquema formal deveria considerar as complexidades observáveis tais como o fato de que estas dimensões “científicas” e “políticas” nunsutilmente institucionalizados como as chamadas "questões de risco públicas", são a forma definitiva desta negação e exclusão autoritárias, não só das preocupações, mas das capacidades autônomas e dos direitos legítimos dos cidadãos comuns. Como filósofos políticos (GUTMANN, 2003; BENHABIB, 1996) expressaram, fundamentalmente, as questões subjacentes chamadas "questões de risco" e as controvérsias dizem respeito ao (não) reconhecimento dessas diferentes preocupações, capacidades (e assim também, mas derivadamente, os saberes) dos cidadãos que são ignorados em nome da "ciência". Esta redução apolítica de questões, e a consideração dos cidadãos e das suas diferenças da cultura de base científica como inábeis, portanto, não presentes, não podem ser consideradas como brutalmente deliberadas, violentas ou totalitárias, como os campos de concentração nazistas. No entanto, pode-se ver alguns elementos fundamentais de identidade em termos da recusa ditatorialmente presumida e imposta de reconhecimento moral, desta vez obscurecida por discursos científicos e mistificações. 6
Esta é a origem do "problema de extensão" de Collins e Evans (2002), no qual eles afirmam que, propostas como a minha, para reconhecer o conhecimento e a capacidade do leigo, potencialmente expandem a participação leiga em deliberações tecnocientíficas ao ponto do ridículo. No entanto, eu abordava um tema diferente que eles se recusam a reconhecer, que é o de reconhecer as legítimas, mas muitas vezes diferentes bases hermenêuticas e ontológicas desses saberes e preocupações cidadãs, e as preocupações que estes grupos de cidadãos, muitas vezes, portanto, têm sobre a falta de reconhecimento de suas realidades por parte dos peritos institucionais. Isso não é falta de reconhecimento especializado de sua experiência putativa.
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Durant parece estar imaginando o mesmo quando ele se refere (DURANT, 2008: 10) à "solução de Wynne [para a alienação pública que eu vejo como causada pela falta de reconhecimento pelas instituições especialistas] é aumentar a satisfação através da expansão de sistemas especialistas... em um fórum de cultura, não apenas de conhecimento." É difícil ver como se poderia abordar o que tenho em mente através de "a expansão de sistemas especialistas", que parece ainda estar constrangida dentro da reinstituição de um quadro monolítico de significado coletivo que afirmo ser o problema central.
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ca são muito claramente separáveis e que, pelo contrário, devem ser vistas como constituindo-se mutuamente, na prática. Além disso, como elas são apresentadas em público puramente como “ciência”, a “ciência” inevitavelmente atua como autoridade pública e, portanto, invariavelmente carrega incontáveis compromissos normativos. Ou seja, trata-se de uma política “apolítica”.8 Esta “ciência” está imbuída de, e moldada, por imaginações não declaradas e, portanto, sub-repticiamente normativas, do público como vazio e ameaçador. Por exemplo, chamar questões públicas sobre novas tecnologias que envolvem risco, mas que também envolvem muitas outras questões, de “questões de risco”, é afirmar: (i) que as preocupações e os significados públicos são exclusivamente relativos a riscos; e (ii) que a divergência pública em relação aos pronunciamentos de especialistas deve ser, portanto, devida à rejeição ou desconhecimento público da ciência do risco. Assim, na medida em que o argumento do déficit público apresentado como explicação para as divergências públicas nos assuntos envolvendo riscos técnicos é abandonado, ele vai sendo reinventado porque as premissas impostas quanto aos significados para o público não permitem nenhuma outra conclusão lógica para explicar a divergência pública (WYNNE, 2006a, 2007). Assim, o modelo de déficit está morto – vida longa ao modelo do déficit!
Públicos (e cientistas) como agentes reflexivos ou irreflexivos? Por que “um ou o outro”? Considerando meus próprios pontos de partida ontológicos situacionais e relacionais, estou um tanto aliviado que Durant não tenha encontrado, ou tenha sido educado demais para ressaltar, mais inconsistências e contradições em um conjunto de trabalhos desenvolvido através de vários contextos e casos em um período de cerca de vinte e cinco anos. No entanto, uma importante inconsistência identificada por ele é a tensão entre o “público” visto, de um lado, como um coletivo de sujeitos individuais reflexivos; e de outro, como atores de “juízo embotado” e vazio, cumprindo de modo comportamen8
Ver, por exemplo, Wynne e Felt (2007: ch 4), e Wynne (2007). Isso é apenas onde a falta de problematização da "ciência" (pública), acima referida, bate pesado – e isso lamentavelmente por importantes analistas de estudos científicos como Collins.
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talista os ditames de qualquer norma sociocultural prevalecente no seu entorno. Minha perceptível oscilação entre estes modelos de atores públicos “subsocializados” e “sobressocializados” é de fato relevante, como observou Durant. Enquanto um “elefante” – o público – está claramente na sala, o outro é deixado inquestionado dada sua condição inerente, de elefante, de não falar. Como Durant indica, mas apenas obliquamente (e, portanto, sem aprofundar), as mesmas questões sobre reflexividade ou “juízo embotado” dizem respeito à ciência como uma instituição e a cientistas ou peritos como atores individuais. Assim, a própria ideia de “reflexividade institucional [de peritos]” que eu evoco em Wynne (1993), reconhecendo-a como uma contradição-em-termos, também entra em foco como um ponto de interrogação. Durant afirma, de modo melancólico, que fui bem sucedido em desconstruir e estabelecer uma divisão epistêmica entre públicos leigos e especialistas somente para substituir isso por uma diferença ontológica essencial (de um tipo particular). Embora eu tenha sempre acreditado que tais conflitos são principalmente ontológicos – sobre formas de vida e relações – por trás das suas diferenças epistêmicas representadas, minha diferença ontológica não é, de modo algum, aquela presente na leitura de Durant. Para começar, claro que há diferenças epistêmicas – quer dizer, diferenças de poder – entre cientistas e não cientistas9 sobre questões técnicas relevantes para o treinamento científico. Mas uma segunda menos óbvia diferença epistêmica é função de uma diferença também ontológica (e hermenêutica) mais básica; e aqui, diferentemente do primeiro caso, as questões epistêmicas não são “fechadas” e determinadas por um quadro estabelecido de seja qual for a cultura de expertise a que se tenha atribuído autoridade. Ao contrário, elas são (ou, de preferência, deveriam ser) abertas a respeito do quais são as preocupações, portanto, questões e, portanto, conhecimentos relevantes? E que prioridades e objetivos sociais imaginados ajudam a definir os critérios para que um conhecimento seja tido como válido? Por exemplo, se for dada prioridade à sustentabilidade ambiental de longo prazo, isso pode demandar 9
Isso não precisaria ser dito mas, aparentemente, apesar de tê-lo dito o suficiente, parece que penso diferente, porque isso não é, obviamente, tão supérfluo como pode parecer.
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princípios epistêmicos integrais e compreensivos, inevitavelmente em detrimento da precisão e (pois) exclusão e controle (artificial). Na maioria dos conflitos públicos envolvendo ciência, essas são as diferenças epistêmicas substantivas – e tacitamente ontológicas (e hermenêuticas) –, sobre que questões o conhecimento deveria abordar e, portanto, que (combinações de) conhecimentos deveriam estar em jogo.10 Desse modo, ambiguamente, o conhecimento deve ser considerado válido ou não válido de acordo com seu status proposicional-probatório ou com a sua relevância para o tratamento da questão reconhecida (ou ambos). Em questões públicas envolvendo ciência, essas duas formas de validade são, com frequência, confundidas, (ou também, como ocorre em Collins e Evans (2002, 2003), reduzidas ao status proposicional-probatório), de modo que a diferença normativa ontológica real é, portanto, silenciosamente suprimida em favor de compromissos dominantes. A ciência é implicada nesta política porque esta política silenciosa ocorre em nome da ciência aquiescente. A esta altura, deve estar claro que não entendo por que Durant fez tanto estardalhaço sobre a minha “ereção” da diferença “ontológica” entre especialistas e públicos – exceto que sua ideia desta diferença ontológica é totalmente diferente da minha. Sua versão centraliza o que ele considera ser minha afirmação “ontológica” essencialista, de que especialistas são intrinsicamente não reflexivos, enquanto os públicos são intrinsecamente e implacavelmente reflexivos (DURANT, 2008, p.10). Como ele também observou, eu sugeri uma lei inversa da reflexividade, que é inversamente proporcional ao poder, mas, reclama (Ibid) que eu a “enterrei” em uma nota de rodapé. Nas situações em que analisei as interações entre público e ciência, onde a ciência estava sendo promulgada como uma tentativa contestada de autoridade pública, para além das proposições científicas, o alcance relativo da auto reflexividade era, como descrevi – muito maior para os públicos receptores sem poder do que para os cientistas mergulhados, enquanto agentes, no nexo institucional entre política, assessoria científica, economia política e poder. Mas isso não significa que 10
Tais conflitos ocorrem com frequência em relação aos conflitos científicos também, mas são mal interpretados como deterministas e, assim, resolvidos apenas por melhores evidências ou cálculos.
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esta diferença representava um reflexo das qualidades essenciais de seus sujeitos. Para esclarecer, continuo afirmando esta diferença, embora nem remotamente do modo como Durant coloca, enquanto uma afirmação da diferença intrínseca e ontológica da reflexividade entre cientistas e públicos. Ao contrário, abro caminho para exatamente o que afirmei na nota de rodapé “enterrada” no texto: a reflexividade dos atores é uma função de seu poder situacional e das suas condições institucionais sociais relacionadas. Não estou interessado em categorizar as diferenças de conhecimento, ou diferenças de reflexividade “ontológicas” entre atores leigos e especialistas. As diferenças são contingentes; o que não significa, de modo algum, que elas sejam facilmente revisadas, ou sem substância. Minha perspectiva analítica situacional pode também ser mantida com respeito à enfadada questão da “autoreflexividade” da ciência. Neste caso, Durant, como muitos outros, falha em não distinguir entre “ciência” como cultura de pesquisa e busca de conhecimento científico e “ciência” como aspirante ao conhecimento com autoridade pública.11 Vale também ressaltar que, o que seria uma excelente discussão e conexão, realizada por Durant, sobre o debate da reflexividade nos estudos da ciência entre, por exemplo, Bloor e Lynch (e mais recentemente, entre Bloor e Latour) e o meu em torno dos encontros públicos com o domínio da ciência, falha, no entanto, exatamente pela falta da problematização com a qual iniciei meu texto, ou seja, sobre o que queremos dizer por “ciência” em tais do11
O último, é claro, barganha sobre a imagem pública do anterior, pela sua autoridade; e a fusão dos dois se insere nesta política: assim mais uma razão para enfatizar a distinção, que é mais ainda decepcionante quando o trabalho de estudos da ciência não consegue fazer isso. Para a "ciência" assumida como pesquisa científica, eu adotaria a abordagem de Barnes e Bloor (1982; BARNES et al., 1996), reconhecendo que há muito mais auto reflexividade coletiva aqui. Isto se manifesta quando pressupostos e compromissos que poderiam, de outro modo, permanecer incontestados e assumidos como princípios normativos de tendências funcionais no sentido do dogmatismo das culturas científicas disciplinares (KUHN, 1962) tornam-se sujeitos em vez de desafio e contestação. No entanto, como Barnes e Bloor observaram, isso não é apenas porque, como Popper colocou, os cientistas são intrinsecamente auto desafiados e intransigentemente provisórios como um coletivo. Usando, entre outras coisas, o detalhado trabalho empírico sobre ciência de Kuhn, eles argumentaram contra a sabedoria convencional de que na medida significativa em que a ciência investigatória consegue mostrar tal auto desafio coletivo e, assim, abertura intelectual, trata-se de uma função contingente de três principais características estruturais da ciência: (i) seu elevado grau de extensão e dinâmica diferenciação em muitas subculturas científicas; (ii) sua alta mobilidade de profissionais científicos entre estas diferentes comunidades de conhecimento; e (iii) a natureza extremamente competitiva da cultura científica em geral. Assim, a ideia de uma diferença essencial sobre reflexividade como uma diferença decisória entre culturas de peritos leigos e científicos não é algo que eu teria reconhecido. Eu levo a sério o aspecto da relacionalidade.
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mínios. Os intercâmbios de estudos científicos sobre esta questão têm sempre focado na ciência como pesquisa e atividade de produção de conhecimentos especializados, enquanto a minha argumentação tem se dado sempre em torno de uma “ciência” muito diferente, ou seja, aquela que está sendo implantada com pretensões a autoridade pública.
Relações sociais e identidade como fatores explicativos: diferenças contingentes Durant questiona a aparente oscilação entre, por um lado, o uso de “relações sociais” como um fator explicativo para a formação das crenças dos públicos leigos em relação à ciência e, por outro lado, como “identidade social”. Assim como acontece com a questão da reflexividade, ele vê minha distinção como essencialista, enquanto eu não reconheço isso de modo algum. Tenho sido bastante explícito ao dizer que, para mim, identidade social tem de ser entendida como uma função das relações sociais (mesmo se, algumas vezes, para algumas pessoas, estas relações podem ser tão estáveis ao ponto de serem identificadas enquanto uma relativamente inequívoca “identidade social”, polivalente e sempre emergente, como também se gostaria de reconhecer). O caso do criador de ovelhas de Cúmbria, próximo à usina de reprocessamento nuclear de Sellafield, depois da precipitação radioativa de Chernobyl, é, aqui, ilustrativo. Esta precipitação que caiu sobre as montanhas e ovelhas de Cúmbria foi identificada pelas autoridades britânicas como a causa dos impactos severos (cientificamente administrados) sobre o gado ovino. No entanto, vários fatores levaram à crença generalizada da responsabilidade local de Sellafield pela contaminação; fator anteriormente ocultado. O irmão de um agricultor, como também outros vizinhos no vale, trabalhou na usina de reprocessamento, além de ajudá-lo na fazenda. Ao contrário das conhecidas representações românticas em torno da criação de ovelhas em colinas, as relações sociais e as identidades eram múltiplas e heterogêneas. Como este agricultor explicita e repetidamente afirmou em entrevista, acreditar que Sellafield era, pelo menos parcialmente, responsável por esse dano – como muitos outros agricultores acreditaram – prejudicaria o compromisso local com a usina e o papel central da mesma na economia e sociedade local. Isso ameaçaria as (algumas
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das) próprias valiosas relações sociais e de identidade do irmão do agricultor. No entanto, seus contatos agrícolas mais distantes – que também eram parte central de suas relações sociais e de identidade – acreditaram nesta causa local (e disseram isso para mim) mesmo sendo muito cuidadosos ao dizer isso de forma mais aberta e direta nos círculos locais onde isso importava. Ele estava passando por um problema de identidades e crenças contraditórias, enraizado em sua prática simultânea de relações sociais incompatíveis, em diferentes redes de significados outros; e ele foi articuladamente autorreflexivo em sua ambivalência a respeito disso. Assim também foram os outros que acreditaram, por boas razões, na responsabilidade parcial de Sellafield, mas que não queriam perturbar as relações locais disputando abertamente a versão oficial científica e política de total inocência de Sellafield. Estes atores relativamente impotentes não poderiam ou não fariam o que a poderosa ciência e política institucional é frequentemente capaz de fazer com tais contradições: exteriorizá-las através da negação cotidiana. Assim sendo, não posso reconhecer aqui uma distinção clara entre “identidade social” e “relações sociais”. O fato de uma ou de outra ser enfatizada é, acredito, uma questão contingente.12
Reimaginando as conclusões das pesquisas sobre “compreensão pública da ciência” Da mesma forma, a questão da “distribuição da reflexividade” levantada anteriormente também é contingente. Assim, o elemento chave da troca de ideias entre Lynch e Bloor sobre como devemos entender o ator-sujeito do conhecimento – reflexivo ou de juízo embotado? – é a questão que Bloor coloca de que, nos termos de Durant (2008, p. 12), “algum tipo de juízo embotado é necessário: fatos sociais intencionais (tais como atos de autorreferência) repousam sobre disposições não intencionais (ou seja: hábitos, costumes, natureza 12
Aqui não posso fazer muito mais do que citar, em apoio total, Bonnie Honig (1996: 275): " The social dimensions of the self ’s formation as a subject-citizen require and generate an openness to its continual renegotiation of its boundaries and affiliations in relation to a variety of (often incommensurable) groups, networks, discourses, and ideologies." [Cuja tradução livre feita pela tradutora é: "As dimensões sociais da formação do eu como sujeito-cidadão exigem e geram uma abertura para sua contínua renegociação de seus limites e filiações em relação a uma variedade de (muitas vezes incomensuráveis) grupos, redes, discursos e ideologias."] Obviamente, tais redes e relações sociais não são casuais, mas também não são totalmente e de forma determinista selecionadas pelos sujeitos. A questão é a entrelaçada qualidade mútua de "auto identidade" e "relações sociais", e sua múltipla fluidez, pelo menos nas complexas sociedades modernas.
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biológica) (BLOOR, 2004, p. 596-7)”. Podemos ser “cegamente conscientes” porque o “automatismo” está sempre embutido nos processos de socialização. Como também afirmou Bloor, esta é a questão central no que diz respeito as instituições. As instituições e pelo menos algum tipo de “embotamento de juízo” são essenciais como formas coletivas de economia social que tornam a vida social viável. Não podemos voltar aos princípios iniciais o tempo todo. Mas em qualquer dada situação estas não são propriedades essencialistas, reflexivas ou irreflexivas. Os sujeitos reflexivos de Lynch não são eliminados por este hábito institucional de induzir o “embotamento do juízo” ou, nos termos de Bloor, a automaticidade. O alcance e as distribuições de cada tipo de qualidade são funções das condições sociais, culturais e institucionais. Assim, nem todo comportamento institucional – e podemos incluir a ciência aqui – é de atores com o juízo embotado. Como eu disse (WYNNE, 1993), a reflexividade está sempre em tensão com este caráter social essencial de rotinização, e nenhum “grau de reflexividade” deve ser essencializado, mesmo que possa ser observado, em maior ou menor grau, em determinadas situações. Durant critica (p. 11) meu silêncio sobre este debate da reflexividade no que diz respeito a meu diálogo crítico com Collins e Evans em 2003 já que eu tinha me referido a ela em 1996, e sugere que “este é um silêncio instrutivo, já que este debate prefigurava uma característica implícita do debate da ‘Terceira Onda’: modelos de ator [Collins e Evans vs. Wynne, et al.]”. Mas a questão é que, assim como definir o que é “perito” com respeito a “leigo” nunca foi a minha principal preocupação, a discussão sobre “modelos de ator” também nunca foi o ponto central das minhas controvérsias com Collins e Evans, e nem de nenhum outro trabalho meu. Minha questão com Collins-Evans foi coerente com a forma como frequentemente me posiciono em torno, geralmente, das próprias instituições e não com relação aos amigos sociólogos. Isto tem a ver com a relutância destes autores em reconhecer a incapacidade das instituições dominantes que operam em nome da “ciência”, incluindo os organismos científicos, reconhecerem que as questões políticas contestadas envolvendo a ciência não são, como eles assumem, somente questões científicas como “risco”. São questões públicas, o que significa que a identificação e o tratamento das dife-
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rentes preocupações públicas deve ser uma responsabilidade das instituições envolvidas. Elas não são simplesmente “políticas” e, portanto, alocáveis a outros domínios e agentes institucionais, como teria feito Collins. Esta demarcação categórica não pode ser justificada uma vez que muitas dessas preocupações são sobre ciência. Por exemplo, sobre como a ciência foi inexplicavelmente estabelecida como um agente fundamental de uma economia política baseada em promessas científicas não factuais; de como a ciência está configurada para exagerar o que ela pode controlar e prever; e, provavelmente, também sobre a rejeição autoritária – por parte da política operando com aceitação científica implícita em nome da “ciência” – das preocupações e dos diferentes significados públicos relacionais como sendo inexistentes ou sem expressão.13
Romantizando os públicos? Ou mobilizando a política e a diferença O problema da insistente imposição ditatorial deste quadro analítico “apolítico” cientificista sobre a vida pública é totalmente obscurecido pela erudição acadêmica que insistentemente foca a atenção em questões secundárias como a de categorizar a perícia ou discutir se são os públicos ou os cientistas que sabem mais. Essa absurda preocupação acadêmica reforça o diktat14 cientificista de significados públicos “apolíticos” e impostos. Esta imposição como uma forma de política, e o papel da ciência nela tem sempre sido a minha preocupação central. As acusações, às quais rejeito, de que construí uma narrativa romântica a respeito do perito leigo que sabe mais do que os cientistas também cai nessa armadilha porque refletem e reforçam a postura normativa dominante de que o significado atribuído pelo público nessas questões que envolvem a ciência não é uma questão cívica, mas sim devidamente dada pela ciência. Tomemos por exemplo a incompreensão e o uso indevido feitos por Kusch (2007) da minha clara afirmação de que todo cidadão democrático é legitimamente um ator em contestação com instituições peritas. Ele a apresenta como uma afirmação de Wynne sobre a qualificação de todos os cidadãos pa13
Eu não acho que os acadêmicos deveriam se desculpar pela inevitável política que esse tipo de agenda de pesquisa envolve, embora nós devemos ser claros sobre isso, como eu explico brevemente em Wynne (2006b).
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Noção historicamente ligada ao Tratado de Versalhes e que designa vontade imposta pela força (nota da tradutora).
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ra envolverem-se em deliberações de experts em torno de propostas de políticas, como as relativas aos riscos ambientais e à saúde por plantações transgênicas (geneticamente modificadas), ou a probabilidade de explosão de uma usina nuclear. No entanto, eu estava claramente me referindo à capacidade de todos os cidadãos de se envolveram na negociação do significado público (dominante) em torno das questões específicas a serem abordadas quando “uma questão pública” emerge. Esta deturpação reflete presumível imposição do autor das mesmas velhas estruturas cientificistas de significado sobre estas questões, ou seja, os significados dos especialistas – isto é, apenas questões científicas – que, então, definem as questões e preocupações públicas a serem abordadas. No entanto, esta declaração de Wynne nunca conteve tal afirmação. Fiz uma referência explícita (WYNNE, 2003), por exemplo, em resposta a Collins e Evans (2002), à minha conhecida questão de que as preocupações e significados públicos legitimamente diferem das dos peritos (e entre si, muitas vezes, também), e que todos os cidadãos são, em princípio, legítimos participantes no que deveria ser a negociação deliberativa de tais significados públicos. Esta responsabilidade pelo enquadramento de sentidos não é uma questão de especialista. No entanto, cego para esta questão dos significados públicos abertos, Kusch, ao contrário, assume-a como sendo uma afirmação de Wynne de que todos os cidadãos democráticos têm, no mínimo, o mesmo conhecimento (ou conhecimento superior) que o perito! Logo, Wynne é um romantizador populista! Kusch apenas, presumivelmente, impôs seu próprio objeto de referência à minha afirmação sobre a qualificação do público, excluindo o meu próprio objeto de referência no processo. Desse modo, ele julgou minha afirmação em oposição ao seu próprio critério arbitrariamente imposto! Kerr (2004) realiza uma distorção semelhante, embora mais temperada e mais surpreendente, para chegar a uma crítica semelhante da minha suposta romantização das capacidades de conhecimento do público. Sua crítica é ainda mais surpreendente já que esta autora reconhece plenamente que as preocupações dos cidadãos comuns (em relação às inovações da genômica, em seu próprio trabalho) são ignoradas, com frequência, sem nenhum problema, pelas instituições científicas e políticas. Assim, ela também implicitamente reconhe-
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ce a questão da diferença ontológica e hermenêutica que tenho sublinhado. Estas leituras equivocadas pressupõem exatamente aquilo que eu estava explicitamente questionando, ou seja, a afirmação de que a única questão pública em jogo é a aquela – propositiva – para a qual a perícia relevante pode ser dirigida. Quando percebemos que a questão fundamental diz respeito ao modo como várias preocupações e significados públicos distintos – em acréscimo às questões científicas de risco –são elementos de preocupação legítima que a questão pública reconhecida deverá contemplar, ou pelo menos, reconhecer para com ela negociar, e só excluir por motivos justificáveis, fica claro que todos os cidadãos democráticos estão, em princípio, qualificados para participar legitimamente em tais negociações coletivas – isto é o que afirmei e continuarei afirmando. A questão é que as qualificações e as negociações referem-se àquilo que é reconhecido como entendimento público coletivo e, portanto, a respeito das perguntas e saberes que devem ser considerados relevantes e, não apenas, a respeito de uma questão propositiva qualquer em si.
CONCLUSÕES A crítica de Durant sobre o que ele afirma ser uma romantização do público refere-se à minha suposta afirmação de sua maior reflexividade essencial em comparação com a dos cientistas. Espero ter explicado porque não aceito isso. Isto posto, evapora-se, então, a queixa da romantização, pelo menos no caso de Durant. No caso do suposto conhecimento em si, ao contrário de tais alegações, como as de Kusch (2007) e até mesmo de Kerr (2004, p. 138-142), nunca expressei qualquer crença romântica idealizada no sentido de que “os públicos sabem mais que os cientistas”. Esta falsa descrição da minha posição só reforça a redução normativa científico-institucional da multiplicidade de coletivos ontológicos e epistêmicos em jogo na sociedade em geral – o que Irwin e Michael (2003) chamam, a partir Rabinow (1996), de “assembleias etno-epistêmicas” – a uma posição cientificista hegemônica. A capacidade cívica coletiva, a “multiplexidade” e a diferença enquanto agência independente foram eli-
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minadas neste processo, e subordinadas à agência tácita do saber-poder político e econômico vigente. Minha questão não diz respeito a quem tem o melhor conhecimento, mas sobre como, em questões públicas, múltiplos saberes, refletindo diferentes preocupações prioritárias, são geralmente proeminentes e têm de ser respeitados, validados tanto quanto possível, e, se necessário, negociados em conjunto (embora não se deva supor uma unidade ou consenso). Desse modo, minhas afirmações nunca foram pouco qualificadas ou descontextualizadas do tipo “os públicos sabem mais do que vocês [cientistas e peritos]”. Em vez disso, estavam voltadas para dizer que “os públicos sabem mais do que você acha que eles sabem” (isto é, relacionalidade e alteridade); e que “eles sabem mais, sobre algumas questões relevantes, do que você” (isto é, diferença ontológica). Falei também, como explicado anteriormente, da qualificação, em princípio, cívica universal de estar envolvido na negociação democrática coletiva de tais significados públicos, o que não deve ser confundido, como Durant e outros têm feito, com qualquer alegação suposta, mas espúria, de qualificação cívica universal para negociar conhecimentos especializados propositivos.15 É difícil entender como estudiosos sérios puderam ler as minhas interpretações e análises relacionais de estudos de caso como se fossem afirmações incondicionais de uma idealizada superioridade de conhecimento público sobre os especialistas. A única maneira que eu posso compreender esta persistente incompreensão, na qual eu não incluo Durant, é de supor que estes autores não entenderam ou decidiram rejeitar, este argumento relacional e ontologicamente (e epistemicamente) fundamental. Eles têm, ao contrário, reproduzido a enraizada ideologia institucional cultural dominante, individualizada e reducionista, que nega as diferenças e é efetivamente anti cosmopolita e obcecada com a apresentação de uma imagem de controle, não importa quão inconcebível 15
Collins e Evans (2002, 2003) dispensam minha ênfase sobre essa dimensão da qualificação leiga - eu não uso o termo expertise leigo já que eu acho que ele não é apropriado aqui - como simplesmente a qualidade humana geral de "sociabilidade." Isso seria suficiente se não fosse o fato de que o âmbito do exercício cívico de tal possível sociabilidade tem sido radicalmente atenuado pela subsunção de grande parte do domínio dessa negociação em discursos públicos científicos presuntivamente enquadrados que são, por definição, exclusivos, não só em relação às próprias questões propositivas, mas também, mais problematicamente, em relação a negociar a soberania adequada de tais conhecimentos sobre áreas de legítimas contestação social e diferença. Ver, por exemplo, Young (1996).
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isto pareça na prática. Esta afirmação implícita dos compromissos ontológicos dominantes também adota uma política não declarada em nome da “ciência”, ou seja, de que apenas definições cientificistas instrumentais do significado público devam ser reconhecidas como significados e preocupações públicas legítimas, e que outras diferentes articulações sociais legítimas de significados e preocupações coletivas não existem. A meu ver, este é mais um exemplo do que, estendendo-se o modelo do déficit público às racionalizações do dissenso público, Laclau (2005) estava dizendo quando se referiu a “o ‘povo’ e a produção discursiva do vazio”. Nesses processos históricos, “o público” é uma construção imaginada e indiretamente realizada pela ciência e pela política. Estas performances projetam uma forma normativa substantiva de “público” que reflete as preocupações e inseguranças institucionais dominantes (incluindo inseguranças sobre ter de abordar a diferença humana ontológica genuína, a diferença epistêmica na forma de ignorância e incerteza, e, assim, reconhecer a falta de controle). Essas qualidades da cultura política institucional científica dominante, que sistematicamente nega os legítimos “outros” relacionais, são o que o campo acadêmico da “compreensão pública da ciência” deveria ajudar a iluminar, enquanto fatores negligenciados que moldam as reações do público ao que é chamado de ciência. Por isso, esta exclusão do relacional, até mesmo enquanto pergunta, não é em si um compromisso meramente epistémico, mas um compromisso normativo ontológico. Se não reconhecemos, enquanto princípio, a capacidade autônoma dos cidadãos de coletivamente construírem significados públicos independentes, o que, naturalmente, requer também o reconhecimento de suas capacidades intelectuais estruturadas de modo independente (existe alguma forma de prática competente que não seja também, de algum modo, epistêmica?), apagamos a cidadania democrática e a sociedade civil.16 É uma contradição em termos falar de democracia a respeito da ciência e, ao mesmo tempo, subsumir a cidadania a aceitação coletiva de significados públicos exter16
Ver Szerszynski e MacGregor (2006) que, de acordo com Arendt, discutem a falta de autenticidade de noções de agência cidadã enquadrada e imposta a partir dos próprios cidadãos e coletividades de fora.
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namente impostos, de forma ditatorial, em nome da ciência e do “risco”. Assim, a condição implícita para o reconhecimento dos cidadãos pelas instituições políticas instruídas pela ciência seria a de que eles acolhessem a estruturação reducionista de problemas e significados tal como eles são impostos por essas instituições políticas e seus especialistas. Isso significaria, por exemplo, aceitar o que Collins e Evans (2002) afirmam, no sentido de que uma questão pública como a energia nuclear é “apenas” uma questão sobre se ela é segura (e, portanto, aceitar a proposição absurda de que o parlamento já decidiu democraticamente todas as outras questões não técnicas como também a própria definição das questões técnicas). O mesmo aplica-se às plantações geneticamente modificadas, que têm sido insistentemente definidas por instituições políticas especializadas como apenas uma questão científica de risco.17 Este tipo de condição para o reconhecimento continua significando a efetiva anulação de uma política democrática constituída através da negociação entre agentes livres da sociedade civil, um legislativo democrático e instituições políticas afins, agências estatais e outros órgãos legítimos. Reconhecer e abordar essa diferença parece ser uma ameaça para as instituições políticas dominantes “enculturadas” na ciência e que, implicitamente, veem “o público” e a diferença tácita que ele representa sob a forma de uma ameaça fundamental de desordem. Argumentei em outro texto que essa rejeição, que ressoa um pouco com a noção de “Estado de Exceção” discutida por Agamben (2005), e a profunda atenuação da política descrita por Arendt (2005), pode ser atribuída à poderosa e pouco notada mudança no papel da ciência que vem 17
Neste caso, uma dimensão ética das preocupações públicas também foi mais tarde reconhecida em princípio (GASKELL et al., 1997; GASKELL e BAUER, 2006), mas significativamente de uma forma que só reforça a minha tese. Assim, a questão ética de organismos geneticamente modificados (OGM) foi reconhecida, mas excluída como uma questão pública, coletiva, de duas maneiras conectadas: primeiro, preocupações éticas, como a questão "brincando de Deus", foram definidas apenas como questões individuais privadas, portanto, tratáveis através da rotulagem e da livre escolha individual privada no mercado; em segundo lugar, preocupações éticas públicas sobre exagero institucional de controle e de conhecimento das futuras consequências foram reduzidas à avaliação de risco e entregues de volta para os cientistas, assim, como efeito, alimentando a preocupação que era para resolver; uma terceira forma de interesse público, sobre a falta de benefícios e a falta de debate social sobre questões de benefícios, acaba de ser ignorada (mas ver UK ACRE, 2007) por causa da tradição capitalista regulatória de que qualquer produto apresentado por qualquer promotor de decisão regulatória, por definição, é igual ao benefício social prospectivo, porque o empresário livre definiu que seria assim. Para uma discussão mais aprofundada ver WYNNE (2001).
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ocorrendo desde os anos de 1950, de uma ciência que informa a política pública para uma ciência que, agora, também provê a política pública com seus significados. Com isto quero dizer que, primeiro, imaginações técnico-científicas de inovações em um amplo leque de áreas da vida social tornaram-se os fins imaginados da política pública, criando as condições da adoção das inovações para esses fins; e, mais especificamente, quando tais inovações potenciais se defrontam com questões sociais, praticamente a única forma pública de preocupação, e, portanto, a única questão pública reconhecida pelas instituições políticas, é a do “risco”. Este, portanto, inadvertidamente ou não, torna-se o significado público pelo qual tais questões são definidas como questões públicas. Gostaria de sugerir que as ciências sociais, especialmente aquelas que afirmam lidar com a relação entre os públicos e a ciência, tenham a responsabilidade de questionar essas concepções, em lugar de reproduzi-las e reforçá-las. Com o devido respeito, acho que Durant, por omissão, navegou próximo demais deste lamentável turbilhão. Ele não está só. Parece especialmente irônico que uma instituição historicamente voltada a associar-se a um ethos cosmopolita de abertura, como é a ciência, caminhe, cada vez mais na direção oposta. Que típicos integrantes do público tenham sempre – e por uma boa razão – desejado compreender a ciência em termos de suas realidades institucionais, de suas formas de propriedade, controle, imaginação e direção, e não apenas, ou mesmo principalmente, em termos do conteúdo técnico, é algo que tem sido reconhecido no nosso campo há anos (Wynne, 1991). Estas dimensões da “ciência” e suas versões do que seja o “público”, incluindo “interesse público” ou “bem público”, continuam requerendo atenção.
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Abstract The text discusses the current divergence betweeen public knowledge and expert knowledge, criticizins the so-caled “public déficit model”, frequently presented as explanation by scientific, political and industrial institutions. In response to Durant´s criticis, according to in which the author gives a satatus of reflexivity to lay actors, denying to specialists their own reflexive capacity, the article sustains that the knowledge habilities, as well as the collective and independent hermeneutic citizens capacities, don´t respond to science as we understand, but in their own collective meanings. Key-words: Public undeerstading of science, lay knowledge, expert knowledge
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Artigos
VERSÃO APROVADA E REVISADA 20/09/14
Clasificaciones y estimaciones en la gestión de la infancia “con derechos vulnerados”. Prácticas cotidianas de intervención en un dispositivo estatal del conurbano bonaerense Agustín Barna FFYL/UBA- CONICET. Argentina
Resumen Este artículo procura avanzar en la caracterización de las modalidades contemporáneas de gestión de la infancia “con derechos vulnerados” en contextos signados por la desigualdad social. Basado en un trabajo de campo etnográfico en un dispositivo estatal en la conurbación de Buenos Aires, focalizo en las actuaciones de los agentes institucionales y en sus interacciones con los “beneficiarios”, que configuran la dimensión más cotidiana de la “política de protección integral de derechos de la infancia”. A través de la reconstrucción en profundidad de una situación etnográfica, busco dar cuenta de una serie de clasificaciones y estimaciones que operan de maneras no necesariamente visibilizadas, estructurando los formatos de intervención social sobre niños y sus familias, particularmente de sectores subalternos. Estos procesos clasificatorios, habitualmente mutables, precarios e informales resultan, en muchas ocasiones, en situaciones fuertemente dilemáticas que son vividas como verdaderos dramas personales, tanto para los administradores como para los administrados. Se argumenta que estos procesos no son necesariamente desviaciones del “paradigma de los derechos del niño” producto de su fallida implementación, como suelen sostener ciertos abordajes de corte normativo. Sostengo, más bien, que dan cuenta de la singular imbricación, propia de la gestión de la infancia en la contemporaneidad, entre ciertas racionalidades -asociadas a nociones como la autonomía, el consenso o el compromiso-, encarnadas en el lenguaje moral de los derechos y el gobierno de las familias desestructuradas. Palabras clave: Gestión de la infancia, Derechos del niño, Etnografía del estado
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Classifications and estimates in the management of children “with violated rights”. Daily intervention practices in a state device in the suburban area of buenos aires. This article seeks to advance in the characterization of contemporary modalities of management of children “with violated rights” in contexts marked by social inequality. Based on an ethnographic fieldwork in a state device in the suburban area of Buenos Aires, Argentina, I focus on the actions of institutional agents and their interactions with the “beneficiaries” that shape the everyday dimension of the “policy of comprehensive protection of the rights of the children”. Through in-depth reconstruction of an ethnographic situation, I seek to account for a number of classifications and estimations that operate in ways not necessarily visible, structuring formats of social intervention on children and their families, particularly from subaltern sectors. These classification processes, usually mutable, precarious and informal, often result in highly dilemmatic situations that are lived as true personal dramas for both administrators and those administered. It is argued that these processes are not necessarily deviations from the “rights of the child paradigm” due to failed implementation, as certain normative approaches tend to affirm. I rather argue, that they expose a unique overlap, proper to the management of childhood in contemporary times, between certain rationalities -attached to notions such as autonomy, consensus or compromise- embodied in the moral language of rights and the govern of unstructured families. Keywords: Management of childhood, Children right´s, Ethnography oh the state
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INTRODUCCIÓN En este artículo1, que se inscribe en mi investigación doctoral, analizo, desde una perspectiva etnográfica, algunas dimensiones del dinámico proceso clasificatorio y de estimación sobre niños y familias que se despliega cotidianamente en un dispositivo estatal local de gestión de la niñez del conurbano bonaerense, en la república Argentina. Focalizo en las actuaciones, las prácticas y los sentidos de los agentes estatales encargados de la intervención sobre los niños y familias en su nivel más interaccional y territorializado. Me interesa destacar la singularidad que adquiere este proceso en un contexto en donde los trabajadores estatales deben transitar su práctica cotidiana, entre otras dimensiones, condicionados por la encrucijada entre los encumbrados postulados morales derivados del enfoque de derechos del niño y los contextos de desigualdad social. De este modo, presentaré una breve caracterización sobre el proceso de institucionalización del enfoque de derechos del niño en nuestro país. Luego intentaré explicitar algunos dilemas que, si bien atraviesan al régimen internacional de los derechos del niño (Pupavac, 2001), entiendo que asumen características singulares en cada contexto local. Posteriormente, reconstruyo una experiencia etnográfica in extenso que permitirá analizar algunas de las problemáticas que intento abordar en este escrito. Finalizo este trabajo con algunas reflexiones que, recuperando la situación reconstruida, pretenden aportar en la caracterización de dinámicas singulares inherentes a los modos contemporáneos de gestión de las infancias subalternas. Proceso de adecuación normativa y reconfiguración institucional para la protección y promoción de derechos del niño en el contexto argentino La república Argentina ratifica su adscripción a la Convención Internacional de los Derechos del Niño (CIDN) y, con la reforma constitucional de 1994, la incluye en su Constitución Nacional. Esta inclusión solo tiene alcance decla1
Una versión preliminar de este trabajo fue presentada en el GT38 – Famílias e ações estatais de gestão: práticas, moralidades e estratégias de la 28ª. RBA, en julio de 2012, en São Paulo. Agradezco los generosos y enriquecedores comentarios realizados por Adriana Vianna, Maria Gabriela Lugones y, particularmente, a Paula Mendes Lacerda que me brindo una detallada y comprometida devolución del trabajo.
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mativo, ya que la Ley 10.903 de Patronato de Menores2 continúa vigente hasta el 2005, momento en que se sancionan las Leyes de Protección de Derechos de Niños y Niñas, redactadas siguiendo los artículos centrales de la CIDN. La Ley Nacional 26.061 De protección integral de los derechos de las niñas, niños y adolescentes funciona a modo de marco, para que luego cada provincia, acorde a los principios federales de nuestra Constitución Nacional, delimite sus estrategias de intervención a través de su propia legislación. Así, la provincia de Buenos Aires, luego de un arduo y disputado proceso legislativo que insumió más de seis años efectivizó en el año 2007 (cfr. Lopez, 2010), la promulgación e implementación de la Ley N° 13.298 De la Promoción y Protección Integral de los Derechos de los Niños. La Ley dispone la implementación a nivel municipal, con financiamiento provincial, de un sistema que debe recibir las demandas por “derechos vulnerados de niños y niñas” y desarrollar estrategias para su “restitución”. La adscripción de los Municipios a la Ley 13.298 es optativa y se consagra mediante la realización de un convenio entre los gobiernos locales y el área de niñez provincial. Si bien no hay datos oficiales actualizados, se estima que 118 de los 134 municipios que conforman la provincia de Buenos Aires firmaron el convenio3. Sin embargo, debido a diversas cuestiones, la implementación del sistema de protección de derechos incluso en los municipios conveniados es altamente heterogénea. La irregularidad en el traspaso de recursos provinciales hacia los municipios; la escases de diagnóstico, planificación y capacitación previa; la disparidad de las capacidades institucionales y de voluntad política a nivel local; los variados contextos socioeconómicos locales y las diversas trayectorias individuales y colectivas de los equipos de trabajo municipales generan un escenario donde, con solo cruzar la calle que separa un municipio de otro, podemos encontrar una política de intervención sobre la niñez abismalmente diferente. De esta forma, la implementación del enfoque de derechos, asume en Argentina una forma diferente a la que tomó en nuestro vecino país de Brasil, en el cual el ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente, si bien se asemeja en 2
Promulgada en octubre de 1919.
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http://www.contactopolitico.com.ar
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términos conceptuales por ser ambas adaptaciones de la CIDN, no solo data de mayor antigüedad, sino que funciona como única legislación para todo el territorio nacional y se implementa centralizadamente, pese a que la Constitución brasileña también se rija por principios federales. La herramienta central de la nueva ley provincial son los servicios locales de protección de derechos de niños, dependientes de los gobiernos locales, encargados de sustituir a los juzgados de menores como los ámbitos para la demanda de problemáticas sociales asociadas a la niñez y de articular con otras dependencias, estatales y no estatales, mecanismos para revertirlas. Entre el año 2009 y 2011 realicé una investigación etnográfica en los diversos dispositivos dependientes del servicio local de promoción y protección de derechos de niños4 del municipio de La Matanza5, un complejo dispositivo institucional formalmente inaugurado a principios del 2007. Los derechos del niño como horizonte moral: dilemas globales localmente encarnados Hecha esta somera presentación, me interesa detenerme brevemente a trazar una articulación entre las producciones globales, las tematizaciones regionales y, por último, las intervenciones cotidianas sobre niños en contextos locales atravesados por la desigualdad social, instancia que ha sido el foco de mi investigación etnográfica. El enfoque de derechos de niño y su singular cristalización en la CIDN se ha convertido, en las últimas dos décadas, en algo más que la más exitosa6 normativa global impulsada por la Organización de Naciones Unidas (ONU). Con una multiplicidad de actores intervinientes –tanto globales y transnacio4
A continuación me referiré a ellos como servicios locales, no solo a los fines de agilizar la lectura, sino porque es de este modo como suele denominarse por los diversos actores involucrados con él.
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La Matanza es el partido más extenso (325.71 km2) y más poblado (1,772,130 hab.- censo 2010) de los 24 partidos que conforman el conurbano bonaerense, un gran conglomerado urbano y semirrural que envuelve a la Capital Federal. La Matanza es uno de los partidos con mayores índices de pobreza y desigualdad social, sin embargo, también se destaca por su fuerte desarrollo de organizaciones de base y movimientos sociales que surgen al calor de uno de los procesos de ocupación y asentamientos populares más importante del conurbano (Manzano, 2007).
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El “éxito” refiere no solo a su casi universal ratificación (los únicos países que no ratificaron su adscripción a la CIDN son Estados Unidos, Somalia y, la recientemente independizada, Timor Oriental), sino también a su carácter vinculante, por el cual los países que adscriben debe adecuar su legislación nacional y los dispositivos de gestión de la infancia a los parámetros de la Convención.
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nales, como locales en cada contexto de implementación- se fue configurando en nuestro país una cierta retórica propia de los derechos del niño con una penetración inusualmente profunda en los más variados ámbitos asociados a la niñez. María Gabriela Lugones (2012) denomina a este proceso como la producción de una vulgata7 de los derechos del niño, en tanto único marco reflexivo (políticamente) correcto que define los contornos dentro de los cuales puede hablarse de la infancia y su administración. Claudia Fonseca y Andrea Cardarello, tempranamente alertadas sobre estos procesos, propusieron pensarlos en torno a la categoría de frentes discursivos, entendiéndolos como los procesos de construcción de sentido en donde convergen acciones estatales, de medios de comunicación, ONG´s y organismos transnacionales. Siguiendo a Scott (1996) procuran analizar la cuestión de los derechos humanos en términos de procesos discursivos –epistemologías, instituciones y prácticasque producen los sujetos políticos y dan forma a sus blancos privilegiados de acción (Fonseca y Cardarello, 2009). Entiendo que el proceso de constitución de un frente discursivo no recupera homogéneamente la totalidad de los postulados presentes en la CIDN, sino que, atravesado por singularidades específicas de cada contexto, refuerza ciertos tópicos en detrimento de otros. Ciertos tópicos resaltan en nuestro contexto nacional y local, en discursos de múltiples y variados actores sociales, en letras de legislaciones, políticas, programas y proyectos, en reivindicaciones de movimientos sociales y políticos y en la cotidianidad de los diversos espacios de intervención sobre la niñez. La idea el niño cómo sujeto de derecho universal antes que menor objeto de la intervención tutelar, la desjudicialización de las problemáticas asociadas a la pobreza, la desinstitucionalización de niños y la promoción del ámbito familiar como el idóneo para su desarrollo, fueron y son algunos de los tópicos centrales que constituyen el difuso frente discursivo por los derechos del niño en nuestro contexto nacional. Estos tópicos se retroalimentan con el enfoque de derechos del niño como concepto más abstracto y abarcador: por un lado, se nutren de él para justificarse, y por otro, mediante una singular si7
La autora aplica la metáfora de la vulgata, en alusión a la Vulgata Editio que fue la traducción al latín de uso corriente de la Biblia, realizada por San Jerónimo a inicios del siglo V, con el objetivo de facilitar el entendimiento de los textos sagrados.
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nécdoque, pretenden encarnar el propio enfoque de derechos. Es decir, por ejemplo, la idea del infante como sujeto universal de derechos deriva de los tratados de derechos del niño pero, al mismo tiempo, encarna la esencia –el espíritu mismo- de estos tratados. Estos tópicos configuran así, un horizonte moral8 donde ciertos imperativos se axiomatizan y parecen, al menos en su dimensión enunciativa, potentes imanes de sentido con propiedades inobjetables, y autoexplicativas. Los derechos trascienden así, el espectro específico de la normatividad –convenciones, leyes, políticas- , para convertirse en un poderoso lenguaje moral (Lugones, 2012; Schuch, 2009; Vianna, 2002) creador de efectos de sentido, con consecuencias materiales, que inciden no solo en reformas legislativas y reconfiguraciones de competencias institucionales, sino también en la actuaciones estatales de intervención cotidiana sobre niños y niñas. He podido observar el poder moral de estos tópicos a lo largo de mi trabajo de campo, en las aspiraciones, angustias y dilemas que experimentan los agentes estatales, así como en sus prácticas cotidianas en dispositivos locales de gestión de la niñez. Gran parte de los trabajadores de estos dispositivos en Matanza tienen un fuerte compromiso con las problemáticas de niñez que en muchos casos precede y excede su relación laboral estatal actual. De hecho, muchos de ellos son reclutados por sus experiencias de trabajo en movimientos sociales, políticos, religiosos o pedagógicos asociados a la infancia. De modo que estos tópicos morales se interrelacionan y se encarnan en valores políticos, filosóficos o salvacionistas propios de las singulares trayectorias de estos trabajadores. En nuestro contexto nacional, el tópico asociado a la desinstitucionalización de los niños y su contrapartida, la entronización del ámbito familiar como el idóneo para su desarrollo, cobró una fuerza singular. Esto supuso un pasaje de la institucionalización compulsiva de niños con argumentos, de corte higienista y positivista, propia del denominado abordaje tutelar (Daroqui 8
Cuando me refiero a la dimensión moral que constituye al enfoque de derechos, me inspiro en parte en la concepción del hecho moral, socialmente construido, propuesto por Durkheim. En particular en su énfasis en el carácter deseable de lo moral, que se articula con su carácter de autoridad, previamente desarrollado por Kant: “La obligación o el deber no expresa, pues, sino uno de los aspectos, y un aspecto abstracto, de lo moral. Una cierta 'deseabilidad' es otro carácter, no menos esencial que el primero” (Durkheim, 1951).
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y Guemureman, 1999), a una lógica de intervención que supone a la familia como el entorno idóneo para su desarrollo, limitando los causales de institucionalización a motivos de extrema gravedad en los que la vulneración de sus derechos provenga del núcleo familiar. Íntimamente relacionado, se plantea que este pasaje debe acompañarse de otro que mute las prácticas autoritarias, compulsivas y selectivas, por otras donde prime la negociación, el consenso y el respeto por la voz del niño. Así, estos enunciados ideales –niño como sujeto universal de derechos, desinstitucionalización, retorno a la familia- configuran un entramado de nociones con una fuerte carga moral, cuyas fronteras individuales se vuelven difusas y se superponen unas con otras, aunque los núcleos duros de cada uno de ellos se mantengan inteligibles. Este proceso de mutación, tanto en el plano normativo e institucional como en el discursivo y moral, nos invita a repensar cómo se reconfiguran las prácticas de intervención social sobre los niños y sus familias en los contextos actuales, en los cuales los agentes estatales operan en una encrucijada entre los encumbrados tópicos morales del enfoque de derechos y las contradicciones del mudo social. Este giro “hacia la familia” supone a los trabajadores que operan en la dimensión más cotidiana e interaccional de la política de niñez la producción constante de estimaciones sobre la idoneidad de una familia para preservar al niño en su hogar, o por el contrario, dilucidar si la situación es de tal gravedad que requiere su separación del núcleo familiar. Al mismo tiempo, los valores asociados a la negociación, el acuerdo y la elaboración consensuada de estrategias que vienen de suyo con la “novedosa” concepción del niño como sujeto de derechos, impone a los agentes estatales la necesidad de producir constantes clasificaciones informales sobre los niños, que permitan estimar, entre otras cosas, si es confiable, responsable u honesto o, por el contrario, manipulador, mentiroso o conflictivo. Estas clasificaciones y estimaciones devienen en la toma cotidiana de dilemáticas decisiones que suelen estar signadas por sentimientos de angustia, inquietud e incluso culpa por parte de muchos trabajadores. El resultante es la producción cotidiana de prácticas, rutinas y modalidades que configuran un sistema cla-
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sificatorio y estimatorio mutable y dinámico que retroalimenta los mecanismos de intervención formalizados. Hasta aquí intenté argumentar que el enfoque de derechos del niño pone en juego mucho más que una dimensión puramente normativa, ya que, al encarnarse en los diversos contextos locales, produce determinados tópicos que operan como imperativos morales. Intentaré, a continuación, desde la reconstrucción de una situación etnográfica in extenso, poner en movimiento algunos de estos tópicos. A través de un recorte de la vida cotidiana (Heller, 1994) -en tanto dimensión condensadora de múltiples niveles contextuales- en un servicio local encargado de “restituir derechos de niños”, se busca dar cuenta cómo, por ejemplo, los imperativos del niño como sujeto universal de derechos o la entronización de la familia, son tensionados en el fragor de las intervenciones cotidianas por la necesidad de los trabajadores de producir diversas clasificaciones sobre los niños y sus familias, no exentas, a su vez, de dilemas y tensiones. Se intentará asimismo demostrar cómo, otros imperativos morales de la política contemporánea de niñez, tales como la ponderación del dialogo y el conceso moldean las intervenciones cotidianas y las interacciones entre administradores y administrados. Sobre el final del texto se pretende profundizar en el análisis para reflexionar sobre como algunas de estas dimensiones configuraron el tratamiento institucional del “complejo caso de Sheila”. El servicio local de protección de derechos de la matanza: “atender casos” y “restituir derechos vulnerados” En los diversos municipios bonaerenses los “Servicios Locales de Protección de Derechos de Niños”, dependientes del poder ejecutivo local, son los encargados de las prácticas de “restitución de derechos”. El servicio local de Matanza cuenta actualmente con aproximadamente 80 trabajadores entre profesionales, operadores y personal administrativo, y divide sus actuaciones en dos grandes áreas, por un lado el “área de atención de casos”, y por otro el “área programática”. En la primera, la atención de casos en alguna de las tres oficinas distribuidas en el amplio territorio matancero conforma la actividad central del trabajo cotidiano de los técnicos y operadores. Las modalidades habituales de actuación suponen la recepción de demandas sobre una amplia gama
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de problemáticas de “niños y niñas con derechos vulnerados” y la “articulación”, con otras dependencias, estatales y no estatales, para revertirlas. La segunda se conforma por una serie de programas y proyectos destinados a intervenir sobre problemáticas específicas, por ejemplo: niños y jóvenes en conflicto con la ley, o niños en situación de calle. En ambos, “el caso” es la carne del trabajo cotidiano de los técnicos y operadores. La casuística es la forma por excelencia en que se estructura y ordena la intervención cotidiana en los servicios locales. Esta lógica casuística supone el uso de dispositivos específicos para las interacciones con los “beneficiarios”, algunos de los cuales podemos ordenar en dos grandes conjuntos que, en la práctica –tal como veremos en la situación etnográfica reconstruida- se presentan fuertemente imbricados: aquellos que se tramitan mediante la oralidad y aquellos que se articulan en torno a la escritura Entre los primeros se destacan las instancias de encuentro cara a cara entre agentes estatales y “beneficiarios”, tales como las entrevistas, las reuniones, las charlas, las visitas. A través de estos dispositivos los agentes estatales movilizan prácticas que combinan la persuasión, el consenso, el compromiso, y el aconsejamiento aunque también eventualmente la imposición y la sanción. Ciertamente, estos procesos orientados a conducir conductas no son unilineales, no solo porque la forma que asumen varía según las improntas personales de los agentes estatales que los llevan adelante, sino también porque conviven con espacios de negociación y resistencia por parte de los “beneficiarios”, aunque siempre enmarcados en asimétricas relaciones de poder. Los segundos refieren al importante corpus documental que se produce habitualmente en el servicio local y resulta nodal en los procesos de intervención en el marco del enfoque de derechos del niño. Cotidianamente se producen, se envían, se leen, se anexan y se archivan variadas actas acuerdo, actas compromiso, informes y medidas de protección, entre otros. Son producciones que cumplen diversas funciones que van desde generar información centralizada sobre los “casos” para facilitar intervenciones multiactorales o prolongadas en el tiempo, hasta plasmar administrativa y simbólicamente “compromisos” de niños, familiares o miembros de “la comunidad”. Si bien esta producción documental tiende a hacer más legible a las poblaciones objeto y,
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por ende, más eficaz tanto el control y la vigilancia como la provisión estatal, también permite canalizar disputas interinstitucionales en torno a responsabilidades e incumbencias, tensiones entre agentes en relación la legitimación de identidades profesionales y diferendos sobre los modos idóneos de realizar intervenciones concretas (cfr. Barna, 2013). Los equipos de trabajo de cada sede de atención de casos o programa, suelen tener uno o dos coordinadores, un “equipo técnico de profesionales” (psicólogos, sociólogos, antropólogos, abogados y trabajadores sociales) y operadores, que suelen ser personas sin estudios superiores, históricamente vinculadas a las problemáticas de niñez, usualmente en experiencias de militancia social, política o religiosa. Los operadores suelen tener a cargo el “seguimiento pormenorizado de casos”, lo que incluye encuentros con familiares, visitas a instituciones y variadas gestiones para y con los/as niños/as. En la situación etnográfica que reconstruiré a continuación los agentes estatales que interactúan con Sheila son exclusivamente técnicas, es decir no participa ningún operador/a, no necesariamente por las características del caso, sino por el criterio territorial con el que en esta sede de atención de casos se distribuía el trabajo cotidiano. Efectivamente, quienes intervinieron en el “caso de Sheila” eran trabajadoras sociales, porque a ellas les correspondían todos los “casos” provenientes del barrio de residencia de Sheila y su madre. Ambas han pasado los cuarenta años y tienen casi dos décadas de experiencia en diversos espacios vinculados al trabajo con infancia en contextos marcados por la desigualdad social. Antes de ingresar al servicio local, unos tres años atrás, ambas esgrimían una extensa trayectoria de trabajo en el sector educativo inicial y primario en escuelas públicas y/o comunitarias frecuentadas casi exclusivamente por una población muy pobre. Si bien en el servicio local los operadores suelen jactarse de su habilidad para recorrer los barrios populares e interactuar con sus habitantes de maneras que, los técnicos, pese a su saber experto, difícilmente logren (cfr. Barna y Gallardo, 2014), a Ana y Lorena –las técnicas que intervienen centralmente en el “caso de Sheila”- todos en el servicio les reconocen su capacidad para “caminar las calles” y “llegarle a las familias”.
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Sheila Llego a una de las sedes de atención de casos del servicio local, una mañana particularmente fría del mes de julio del 2010, alrededor de las 11 horas. Cuando entro, dos técnicas están hablando sobre “un caso”. Las dos se ven preocupadas y alteradas. Lorena está poniendo al tanto a Ana que recién llega. Lorena le cuenta a Ana que Sheila -de 16 años- está esperando en una habitación contigua. Se reponen mutuamente datos del caso y rápidamente caigo en cuenta que es “un caso muy complejo”, que viene siendo esporádicamente intervenido desde el 2008 y que la situación tiene muchos ribetes e implica a múltiples sujetos: Shelia, sus dos hermanos de 4 y 7 años, la madre, el padre, la abuela materna, su novio Brian de 19 años y, por añadidura, la familia de Brian, amén de diversos actores institucionales. A continuación intentaré reponer el panorama.
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Reconstrucción de “un caso”9 Durante el año 2008 se dieron tres situaciones cruzadas que configuran la complejidad “del caso de Sheila”. Por un lado, la madre de Sheila presentó una denuncia policial por abuso sobre uno de sus hijos contra su marido y padre de Sheila, aunque luego cuando fue citada por el servicio junto al niño aparentemente abusado para profundizar en la situación se desdijo totalmente y afirmó que en realidad ella estaba despechada porque el marido la abandonó por otra mujer y su forma de vengarse fue hacer la denuncia por abuso. Sheila será la única que sostenga inclaudicablemente a lo largo de los años que su padre abusó de su hermano. Claudia, psicóloga especializada en lo que cotidianamente se denomina en el servicio ASI10, fue la encargada de realizar aquella entrevista. Ella me cuenta que entrevistó, en su momento, al niño su9
Es importante hacer una breve aclaración. En este escrito, hago referencia en diversas oportunidades al “caso”, categoría fuertemente polisémica, con usos de larga tradición tanto en ámbitos de investigación como en espacios de intervención. En lo que respecta al universo de la investigación, se suele referir a lo que se dio a llamar “estudios de caso” (Stake, 1995; Yin, 1994), herramienta metodológica originalmente diseñada desde abordajes médicos o psi, pero rápidamente incorporada a las ciencias sociales, con particular énfasis a las ciencias de la educación y la sociología. Los estudios de caso se reconocen como representantes destacados de la tradición cualitativa (o interpretativa) de investigación social y, si bien comparten multiplicidad de recursos metodológicos con la perspectiva etnográfica y se nutren mutuamente, no son necesariamente la misma cosa. La metodología de estudio de casos podría definirse como una descripción intensiva, holística y un análisis profundo de una entidad singular, un fenómeno o unidad social (Stake, 1995), mientras que, tal como yo la entiendo, la etnografía supone un abordaje disciplinar que –entre otras definiciones posibles- al producir un recorte de la vida cotidiana (Heller, 1994), permite recuperar desde allí los contenidos históricos que otorgan sentidos específicos a los procesos sociales y políticos más generales. Es decir, destacando las prácticas y la subjetividad de los actores, permite reconstruir las relaciones, los conocimientos y procesos locales, en tanto “síntesis” de relaciones, prácticas y concepciones que han sido generados en diversos momentos del curso social (Ezpeleta y Rockwell, 1983).
A
lo largo de este trabajo, al referirme “al caso” estaré aludiendo siempre a su carácter de categoría nativa, es decir a los usos, más ligados al campo de la intervención, que circulan entre trabajadores, funcionarios y literatura especializada, relacionados a problemáticas de infancia. y sin embargo, una cierta simultaneidad entre ambos. Es decir, los trabajadores del servicio hablan del “caso de Sheila” y circunscriben y delimitan así su universo de actuación, lo cual se solapa en parte con el recorte de investigación que realizo en este escrito. A primera vista, podría interpretarse que mi trabajo también es sobre “el caso de Sheila”, sin embargo eso no es enteramente correcto. El recorte que realizo en este artículo es más bien el de una situación etnográfica, es decir mi propia reconstrucción de una serie de sucesos, que si bien se estructuran en torno al “caso de Sheila” – no como objeto dado, sino como proceso dinámico construido antes, durante, y posiblemente después del período observado- incluyen procesos más abarcadores que, al dar cuenta de actuaciones de agentes administradores y sus interacciones con los administrados, resultan centrales para mi interés de caracterizar las modalidades que asume en la contemporaneidad la gestión de la infancia en contextos de desigualdad social.
Ha
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Correspondiente a: Abuso Sexual Infantil
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puestamente abusado y que en su opinión no había indicios contundentes del abuso, que el discurso del nene sonaba armado y muy similar al de los adultos denunciantes. Que si bien no se puede ser determinante en esos casos, ese tipo de cosas la hace sospechar. Sin embargo, la causa penal contra el padre de Sheila sigue vigente y, aunque diversos trabajadores me contarán que el proceso no avanza en la justicia, pesa sobre él “una perimetral”, es decir una ordenanza judicial que no le permite acercarse ni a su familia, ni a las inmediaciones del hogar. Casi simultáneamente la abuela materna de Sheila, al ser consultada por el servicio se ofrece a cuidar a sus tres nietos en su casa. Al ser entrevistada ella denuncia a su hija (madre de Sheila) por descuido con sus nietos y afirma que los tiene abandonados. Afirma también que Sheila miente y que no puede sostener una coherencia en los relatos, que está mal con su novio y que él la maltrata. Asimismo sostiene que su yerno, es un buen hombre, incapaz de hacer las cosas de las que se lo acusa. A juicio de los técnicos del servicio intervinientes en ese momento, la abuela era la única con características adecuadas para constituirse en “referente” de Sheila y sus hermanos, y promueven la mudanza a su hogar. Sin embargo las cosas no funcionarán bien y al poco tiempo comienzan las acusaciones cruzadas. Sheila acusa a la abuela de permitirle el acceso a su hogar al supuesto abusador y la abuela afirma que la relación de Sheila con Brian es tan violenta que le resulta imposible sostener la situación. Sus hermanos vuelven con su madre y Sheila comienza un periplo en donde rotará sistemáticamente de casas entre la de su madre, la de la familia de su novio y la de algunos conocidos del barrio. Un tiempo más tarde Sheila queda embarazada de Brian y se instala definitivamente en la casa de él y su familia, a 20 metros de distancia de la casa de su madre. Con seis meses de embarazo Sheila llega al hospital con marcas de golpes y contracciones, se realiza un parto prematuro y el bebe nace muerto. El hospital se comunica con el servicio que vuelve a intervenir. En ese momento Sheila denuncia a Brian por violencia, según me cuentan luego distintos técnicos del servicio, incitada por una trabajadora social del hospital. Si bien desde el hospital afirman que los golpes recibidos por Sheila son el cau-
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sal del parto prematuro y consecuente muerte del bebé, pese a la insistencia de los trabajadores del servicio, ningún médico lo asienta por escrito y solo lo afirman oralmente de manera informal. Elaboran solamente un informe donde consta la pérdida del bebé y la presencia de hematomas en diversas partes del cuerpo de Sheila. Según me contaron muchas veces y lo pude vivenciar en carne propia, ese tipo de situaciones donde algún actor institucional “no se juega” y asienta por escrito formalmente aquello que sostiene “off the record” son una penuria habitual en el servicio local, ya que, en el marco de la denominada corresponsabilidad11, donde las incumbencias y responsabilidades de los actores son constantemente disputadas y negociadas, ese tipo de documentos son insumos importantes para avanzar en las “estrategias” que se diseñan para intervenciones a mediano plazo. El servicio indicó a Brian que debía hacer tratamiento psicológico y seguir una serie de pasos y, mientras tanto, no debía tener vínculo con Sheila, aunque, por supuesto, absolutamente todos son conscientes de la imposibilidad del servicio para hacer cumplir tales disposiciones. Se acordó que se mudaría de la casa de Brian a lo de una prima a la que Sheila personalmente le había solicitado que la albergue. Pronto se supo que la persona que la albergaría no solo no tenía ninguna relación de parentesco con ella y que Sheila había mentido deliberadamente, sino que nunca se mudó con ella. Al mismo tiempo que comenzaba desdecirse y a afirmar que Brían no le había pegado, sino que solo había forcejeado un poco con ella y que la pérdida del bebé se debía a los exigentes trabajos domésticos que había realizado. Desde allí recomenzó el periplo de Sheila y se perdió del espectro de legibilidad del servicio.
Secretos, mentiras y dilemas Hoy, casi dos años después de estos sucesos, Sheila espera ser atendida en la habitación contigua. Según comentan Ana y Lorena, porque la madre la echó de la casa y también tuvo un conflicto en la casa del novio. Ambas, ha11
La corresponsabilidad es uno de los novedosos elementos que distingue a la ley 13.298, como una herramienta que permitiría “sustituir la práctica de la derivación”. La letra de la ley estipula: “la construcción de relaciones de corresponsabilidad e interdependencia con el objeto de promover, proteger y restituir derechos en forma integral”. art.21
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cen y harán a lo largo del día repetidas menciones –a veces en clave de chiste, a veces enojadas, otras reflexionando sobre qué estrategia seguir- sobre lo difícil que es trabajar con Sheila, ya que es “muy mentirosa y manipuladora”. Dicen que llevan años con esta situación, que primero dice una cosa y luego dice otra, que firma y acuerda cuestiones con el servicio y luego, cuando sale no cumple nada. Entre risas recuerdan cómo, allá por 2008, ella prometía que no vería más al novio y después al asomarse por la ventana veían que se encontraba con él en la esquina del servicio. Ana se dirige hacia la habitación donde espera Sheila, le pido si me permite acompañarla a la entrevista y me dice que sí. Entramos en la oficina donde espera Sheila. Ella es morocha, de tez muy clara y ojos verdes. De contextura delgada y no muy alta. Esta vestida con una campera de cuero ajustada, un jean y abraza una mochila de Jesse James, famoso boliche del oeste del conurbano bonaerense. Ana la saluda desde lejos, me señala y dice “él es Agustín” y le pregunta “cuál es el problema esta vez”. Es evidente que ya se conocen. La habitación en la que entramos es fría, solo algún grado más que en el exterior invernal, el pequeño calefactor eléctrico no logra calentar el ambiente. Las paredes están decoradas con algunos afiches con estética de jardín de infantes. En uno hay una foto de un niño con guardapolvo blanco en una bicicleta que es empujado por un joven rubio y gallardo. Abajo se lee algo así: “yo soy un niño y tengo derecho a que me traten como tal. Quiero que me acompañen y que me mimen”. En el medio del ambiente hay dos escritorios juntos que hacen las veces de uno muy amplio. De un lado hay 3 sillas, en una de las cuales está sentada Sheila, del otro lado también hay 3 sillas, Ana y yo nos sentamos en dos de ellas. Ana comienza a indagar a Sheila y ella cuenta una sucesión de hechos de manera algo inconexa y mezclando diversos momentos cronológicos. Cuenta sobre el padre, de cómo “tocaba y le enseñaba a masturbarse a su hermanito de 6 años”, luego se refiere a una situación que pasó unos días atrás, cuenta que su madre no se ocupaba de los nenes y el más chico venía con fiebre y ella planteó que había que llevarlo al hospital, finalmente lo llevó al hospital y la madre fue detrás. Allí apareció el padre aparentemente alertado por la madre.
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Comenzó una discusión y Sheila tenía al nene en brazos “y no sé si ellos flashearon12 que me iba a llevar al nene o qué, pero de repente empezaron a forcejearme para sacármelo y después empezaron a pegarme”. Luego de esa situación, la madre la echó, y en lo del novio donde estaba durmiendo, hace algunas noches tuvo una pelea con una hermana de Brian y también se tuvo que ir. Cuenta que la noche anterior durmió en la comisaria de la mujer donde le dieron cobijo y que esta mañana la habían mandado al servicio a ver como se resolvía la situación. Luego me enteraré que desde la comisaria llamaron al servicio y ellos le indicaron que la envíen para allí a la mañana siguiente. También supe luego que esa misma mañana temprano estuvo en el servicio la mama de Sheila y se entrevistó con Lorena. Según me cuenta la propia Lorena, la madre declaró que no tiene ninguna intención de que su hija viva con ella, ni tampoco quiere que tenga contacto con el novio y su familia. Firmó un acta acuerdo13 en donde se declara a favor de que su hija vaya a un hogar de transito para luego buscarle un hogar convivencial “acorde a sus necesidades14”. Ana le pregunta si ella tiene un lugar donde la puedan recibir y quedarse ahí, porque en la casa no puede quedarse y con Brian por el tema de la denuncia por violencia, tampoco. Ella piensa un poco y da el nombre de una señora Beatriz, aunque dice no tener su teléfono con ella. Ana le plantea que por lo pronto seguramente tenga que ir a algún hogar, seguramente la casa de abrigo15 hasta que pueda pensarse alguna estrategia para que ella pueda estar en algún lugar. Este es el primer momento en que la veo quebrarse a Sheila, antes la veía nerviosa pero con cierto control de la situación, en este momento los ojos se le llenan de lágrimas y se angustia. Dice que no quiere dejar a sus hermanos en manos de su madre, que sabe que ella le va a permitir el contacto con el abusador de su padre. Luego de un rato más de charla, Ana le dice que volvemos en un rato, que vamos a arreglar algunas cosas, que nos espere. 12 13
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Flashear: Slang rioplatense que refiere en este caso a hacerse una idea errónea sobre algo o alguien. Documento de uso habitual en el servicio donde se registran los “acuerdos” y las “estrategias” a seguir con los diversos actores involucrados. Modismo que suele acompañar los escritos que se refieren a internación de niños y niñas. Institución dependiente del servicio zonal diseñada cómo hogar de transito para ofrecer una alternativa para permanencias breves de niños y niñas.
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Entro con Ana de nuevo a la oficina del equipo, donde hay varios trabajadores y Ana visiblemente ofuscada dice en voz alta: “Esta piba me vuelve loca, me miente todo el tiempo, no sé qué vamos a hacer”, conjuntamente repasan algunas de las “mentiras” de Sheila y Lorena concluye “cambia el discurso según lo que le conviene, si se pelea con el novio lo denuncia, y después quiere volver con él y se desdice”. Luego de diversas gestiones telefónicas Ana consigue que alberguen a Sheila por una noche en la casa de abrigo y al día siguiente se mude a un hogar semi rural gestionado por un grupo evangelista de larga tradición en militancia social a nivel barrial. Le ofrezco a Ana que cuente con mi auto si hay que hacer algún traslado, práctica habitual en mis visitas debido a la escasez de móviles oficiales. Luego de una charla Ana organiza los pasos a seguir y plantea que Lorena y yo llevemos a Sheila a buscar su ropa para llevarla luego al hogar. Volvemos a la oficina donde espera Sheila, esta vez acompañados además por Lorena. Ana se sienta con un acta acuerdo en sus manos y le comienza a decir que la situación es complicada, que no puede volver a la casa mientras los problemas con la madre no se resuelvan (no le dice del acta acuerdo que firmó la madre aprobando su institucionalización), que ella sabe que no puede estar con Brian, al menos hasta que él demuestre que está haciendo algo para cambiar sus conductas violentas y que con la abuela tampoco puede ir. Y prosigue diciendo que, mientras se trabaja en una estrategia, lo mejor para ella va a ser que esté en un hogar. Nuevamente se le llenan los ojos de lagrimas y visiblemente angustiada Sheila pregunta “¿pero por qué no puedo ir a mi propia casa?” Ana le pregunta por qué quiere ir a su casa si se lleva tan mal con la madre. “Porque es mi casa, yo quiero tener mi casa, estar cómoda, ¿no tengo derecho acaso?” Ana baja la voz a un tono más comprensivo y contesta que entiende que ella quiera estar su casa, pero como están las cosas con su madre y con Brian al lado y todos los problemas que se generan, ahora es imposible. Luego Ana le pregunta el apellido de esta señora Beatriz, Sheila duda un momento y luego le dice Heredia. Ana se detiene en seco, levanta la vista y la mira a Sheila a los ojos y le dice “este es el mismo apellido de la chica que dijiste que era tu prima, ¿es algo de ella?” “sí, es la mamá” contesta tímidamente
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Sheila. Ana visiblemente enojada dice “Ah bueno, ahora sí que me estoy poniendo nerviosa. ¿Me estás diciendo que querés ir de nuevo a vivir al lugar donde nos mentiste que ibas a ir y nunca fuiste?”. “No, no. Ella es la mamá, pero la chica no vive con ella, es en otra casa”. El malestar de Ana se incrementa y la confronta diciendo que si ella sigue mintiéndoles en la cara, afirmando una cosa y después haciendo cualquier otra, nada de esto tiene sentido. Sheila insiste en que esa señora efectivamente le ofreció vivir con ella, y que el tema de la falsa prima ya lo explicó antes, que la chica creía que para que le dieran la guarda tenía que ser familiar y por eso mintió. Ana le contesta: “Sí, Sheila, pero acá tengo un acta firmada por vos diciendo que te vas a quedar con tu prima, y ni te quedaste ni es tu prima, nos mentís descaradamente en nuestra cara. Nosotros pensamos una estrategia para tratar de hacer lo mejor para vos, pero para eso necesitamos que vos cumplas con lo que te comprometes. Que nos demuestres que podemos confiar en tu palabra. Este hogar que te ofrecemos es para que puedas estar en un lugar mientras vemos como arreglar la situación, pero es importante que entiendas que vos no podes ver a Brian, esto ya lo hablamos muchas veces, si vos no cumplís con eso yo personalmente hago una denuncia y Brían puede terminar preso, porque yo no puedo consentir que vuelva a pasar lo mismo que pasó cuanto te pegó y perdiste al bebé”.
Sheila aclara que él no le había pegado sino que habían forcejeado. Ana se enoja y dice que ella misma denunció la golpiza y que hay informes de los médicos que enfatizan un hematoma en la panza y atribuyen a eso la pérdida del bebé (lo cual, como vimos, no es enteramente cierto). “Vos no podes cambiar todo el tiempo lo que decís, sino siento que me estás tratando de tonta. Yo necesito saber que vos vas a cumplir con lo que acordamos, porque ahora decís que solo forcejearon, pero se perdió un bebe por culpa de esa violencia y en cualquier momento te puede pasar algo grave a vos”. Luego le cuenta que en el hogar donde va a ir nadie la obliga a quedarse que no es una cárcel, que ella puede irse cuando quiera, que por eso es tan importante que ella colabore aportando su granito de arena.
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Ana redacta el acta en la que expone que la joven Sheila “solicita que el servicio arbitre los medios necesarios para un seguro retorno al hogar”. También que Sheila se compromete a cumplir lo acordado. Ana se lo da a leer y Sheila, casi sin leerlo y entre lágrimas, lo firma. Mientras nos preparamos con Lorena para ir junto con Sheila a buscar sus pertenencias a lo de Brian y luego llevarla a la casa de abrigo donde pasará la noche, me acerco a ver como está, ya que lleva más de media hora sola en la habitación. Charlamos un poco y, entre muchas otras cosas, me cuenta que está muy angustiada, que le preocupa irse al hogar y dejar a sus hermanitos con su madre, no solo porque no los cuida, sino porque “anda con todos los tipos del barrio” y por 20 pesos deja que el padre infrinja la perimetral, entre a la casa y esté con los nenes. La veo realmente muy angustiada y no sé qué hacer para calmarla. Luego de un rato más de charla, ella se calma un poco y le digo que tengo que ir a preparar las cosas para salir. Entro en la oficina del equipo y en tono de chiste les digo a Lorena y Ana, que ellas son unas arpías, que esta chica está realmente angustiada y que me puso mal verla así. Ellas asienten y Lorena me dice “sí, la primera vez que vino, yo también me puse mal, después cuando me caminó16 veinte veces, se me pasó. Ahora soy inmune”.
Diecisiete Luego de comer algo, Lorena, Sheila y yo partimos rumbo a la casa de Brian a buscar las cosas de Sheila. Todas las calles del barrio de Sheila son de tierra y me sorprende ver lo embarradas que están teniendo en cuenta que la última lluvia fue hace casi una semana. Las casas son pequeñas y humildes, a medio terminar, la mayoría de material, pero hay también de chapa y tablones de madera, no hay veredas salvo algo de pasto en algunos casos. Jaurías de perros van de un lado a otro y bastante gente camina por el barrio saltando charcos y esquivando el barro. Llegamos a una esquina en donde al auto ya le cuesta demasiado andar y el riesgo de estancarnos en el barro es mucho, así que lo dejamos ahí y seguimos a pie. Ahora somos nosotros los que salta16
Caminar: Slang rioplatense que refiere en engañar, manipular. Inducir.
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mos charcos y esquivamos el barro. Caminamos un par de cuadras y Sheila señala una casa cuadrada blanca, pequeña y en mal estado y dice que esa es su casa y dos casas más a la izquierda la de Brian, está algo más retirada hacía el fondo y en el frente un gallo juguetea con una gata en una superficie que mezcla yuyos con barro. En la puerta hay un joven, vestido con jean un buzo y una gorrita, camina nervioso de un lado a otro mientras nos mira fijamente. Avanzamos hasta llegar a él. Tiene los ojos rojos, hay un instante de silencio, luego rompe en un llanto frenético y empieza a gritarnos cosas mientras se agita cada vez más y mueve los brazos gesticulando ampulosamente. Lorena y yo estamos en silencio por unos instantes. Sheila se mantiene en silencio al lado. El joven, que rápidamente me doy cuenta es Brian, está realmente angustiado y alterado. Entre un llanto desconsolado nos grita frases inconexas cosas como: “¿Por qué se la llevan?, si ella no hizo nada y la re puta de la madre tiene a los nenes tirados y el hijo de puta del violador viene a la casa y ella le abre la puerta por 20 pesos” “ ¿Quién va a hacer algo? nadie hace nada con la mujer esa de mierda y el otro hijo de puta y ustedes vienen y se la llevan a ella” “¿Y quién se va a ocupar de que los nenes ahora que se la llevan? están dejando a dos nenes con esos soretes”. Casi no podemos hablar porque él no para de gritar, de a poco comienza Lorena a decirle que “nadie se lleva a nadie, que estamos buscando justamente la mejor alternativa. Que ella no se va para siempre, solamente hasta que se pueda arreglar esta situación que él mismo está describiendo”. Brian sigue muy alterado, los mocos le chorrean, la boca se le empasta y se mueve frenéticamente. La posibilidad de que la violencia se torne física se me hace evidente y me doy cuenta que no sé qué debería hacer en ese caso. En un momento Lorena, con sus casi 40 años y mucho tiempo de experiencia de trabajo con sectores populares me mira con los ojos bien abiertos, se corre unos centímetros hacia atrás y yo, frente a frente con Brian, interpreto que debo asumir algún tipo de rol masculino sobre la situación, aunque no tengo mucha idea cual sería. Casi instintivamente intervengo y le hablo a Brian, me sorprendo a mí mismo diciéndole que va a estar bien, que todos tenemos que pensar lo mejor para Sheila, le insisto con el hecho de que nadie se la está llevando, que ella viene por su propia voluntad,
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porque se da cuenta que necesita salir de esta situación que la tiene mal y que eso no significa que él la va a perder. Él, que nunca se dirigió a Sheila, deja de mirar a Lorena y se refiere exclusivamente a mí, yo trato de hablar pausadamente y transmitir calma, mientras una sensación de inquietud por intervenir tan activamente en una dinámica que estoy indagando, crece en mi interior. Sheila, que se mantuvo callada y al margen todo el tiempo, da un paso al frente y, sin dejar de mirar el suelo, comienza a entrar a la casa, Brian, algo más calmado, suspende su diálogo conmigo y entra atrás de ella, al mismo tiempo que una señora pequeñita de unos 50 años sale de a casa. Está arrugada, tiene el pelo teñido de negro, viste un jogging y está bastante encorvada. Es la mamá de Brian. Nos saluda y Lorena dice que va a aprovechar para acercarse a la casa de la madre de Sheila para que firme una de las copias del acta acuerdo de la mañana que quedó sin firmar. Durante los 20 minutos que me quedo solo con la madre de Brian ella me habla de Sheila, su hijo y de su desgarradora historia. Dice que ella no puede hacerse cargo de Sheila. Lo dice con culpa y tristeza. Agrega que es buena chica, que el problema no es ella, sino Brian, que ya no puede más, que él es muy violento, que a ella misma una vez le rompió la cabeza y otra el brazo. Cuenta que antes Brian era normal pero que hace cuatro años tuvo una operación muy complicada de trasplante hepático, que estuvo 24 horas como muerto y que los médicos le dijeron que nunca más iba a ser el mismo. Que antes de eso era un chico bueno y tranquilo, pero desde eso quedó mal, un poco loco y muy violento. Que los médicos le dijeron que tiene un 17% de locura. No solo me impactó esa necesidad de cuantificar la locura, sino que el número elegido, en la simbología quiñielera17 sea la desgracia, difícil encontrar un término que describa mejor lo que sentí en ese momento en relación a la vida de estas personas. Cuenta que Sheila y Brian son muy pegotes, pero que la relación es muy complicada, muy violenta, que a donde van generan caos. Cuenta que la madre es un desastre, que tiene a los chicos a la miseria, que de repente no van por dos semanas a la escuela porque ella no se ocupa, anda de noche con tipos y duerme durante el día y los nenes andan por ahí. 17
La quiñiela es un tipo de lotería muy popular en Argentina
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Sheila es una chica difícil también, pero es buena chica, si no fuera por ella, no sabe qué sería de los nenes, ya que ella siempre se ocupó de ellos como pudo. Mientras la escucho y recuerdo los fragmentos que fui recogiendo durante todo el día sobre “el caso” de Sheila, pienso que una parte sustancial de la tarea de los trabajadores del servicio local se debe tratar de esto: de cortar, zurcir y reacomodar retazos de narraciones de personas sobre su propia vida; que les permita producir un especie de meta-narrativa que describa y clarifique la situación problemática de “vulneración de derechos”; que construya un escenario inteligible donde ubique a los diversos actores involucrados; que organice las acciones y los sucesos en una sucesión cronológica aprehensible y coherente; que logre, a fin de cuentas, producir un relato que permita estructurar las actuaciones hacia un horizonte que, aunque difuso y cambiante, opere como –utópica- línea de meta de la intervención. Sin embargo, esto no es nada fácil. Esos fragmentos narrativos no son neutrales y eso complejiza aún más las posibilidades de construcción de la meta-narrativa estructuradora de las acciones estatales. No solamente porque quienes producen esas narraciones son actores con intereses en el campo de fuerzas de lo narrado, o por el propio carácter fragmentario y precario de las narraciones que difícilmente puedan (re)presentar la complejidad de la vida social y familiar o, incluso, por las relaciones de poder que condicionan la producción de cada una de ellas, sino también porque, a los ojos de los agentes estatales, las propias narraciones cambian constantemente su estatus –por ejemplo entre creíbles o falaces- al calor de las clasificaciones que pesan sobre sus productores –por ejemplo honesto o mentiroso-. Luego de unos 20 minutos, vuelve Lorena de la casa de la madre. Más tarde me contará indignada que la madre la recibió “como si estuviésemos hablando de la compra del almacén, firmó sin preguntar nada, no mostró ni interés, ni preocupación, ni deseos de saludar a su hija que juntaba la ropa a dos casas de distancia”. Finalmente salen Sheila y Brian. Ella con la misma cara con la que llegó, algo ausente, algo seria. Él mucho más calmado que a nuestra llegada, aunque sigue lagrimeando y moqueando. Sheila trae una bolsa de consorcio negra con
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toda su ropa. Luego de esto hay una breve despedida. En un abrir y cerrar de ojos estamos caminando hacia el auto y ninguno de los tres mira para atrás. Le pregunto a Sheila si quiere sacar algo de su casa o hablar algo con su madre y me dice que no. Parece que por primera vez en mucho tiempo madre e hija están de acuerdo en algo, ninguna quiere ver a la otra, siquiera para despedirse. Salimos hacia la casa de abrigo, nuevamente en mi auto y en este caso se suman Ana y otra trabajadora más, ya que la casa de abrigo queda en camino hacia su casa y la jornada de trabajo está llegando a su fin. En la casa de abrigo todo se sucede muy rápidamente, Ana y Lorena hablan con una encargada de la institución. Luego las tres se acercan a Sheila, Ana y Lorena le dan un beso rápido a Sheila y le dicen que la van a ir a visitar pronto y enfilan para el auto. Luego yo le doy un abrazo y las sigo. Siento que el saludo fue algo apurado y desamorado, especialmente pensado en lo que está viviendo la chica en este momento. Como leyendo mi mente Ana, mientras caminamos hacia el auto, dice, “no importa cuánto tiempo pase o cuántas veces haga esto, este momento siempre me parte el alma, me destroza, se me cae toda la estructura” y Lorena asiente y acota “es durísimo, estamos siempre todos a punto de moquear, además tenés que irte rápido antes de que cambie de opinión, en estos casos ponerte meloso es lo peor que podés hacer”. Reflexividad, angustias y (cada vez más) dilemas Tres semanas más tarde, otra fría mañana de invierno, llevo en mi auto a Ana para visitar a un niño internado en un hogar. Durante el viaje nos ponemos a charlar sobre el caso de Sheila, me cuenta que entrevistaron al hermanito de Sheila y que finalmente concluyeron que su padre lo había abusado, dado que el nene contó muchos detalles y que pronto procederían a detenerlo. Me sorprende enterarme que el supuesto abuso que, con tanto énfasis, había denunciado Sheila y que parecía ser una más de sus mentiras, había mutado adquiriendo status de verdad. Le pregunto a Ana que impacto tuvo en el servicio ese giro y si habían cambiado el enfoque en el caso. Ana me contesta:
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“Cuando salta esto y el hermanito de Sheila cuenta lo que pasó, fue un terremoto terrible en el servicio, el equipo se sacudió mucho. Evidentemente no nos pudimos correr y ver desde afuera. Es una familia muy complicada, la mamá de Sheila está muy loca, la abuela, que fue la que en su momento se comprometió a salvaguardar a los chicos, terminó habilitándole el paso a este hombre. La familia de Brian también es muy complicada. Primero dijo que iba a colaborar con la situación y luego terminó diciendo que el problema era su hijo y que la golpeaba a Sheila. Todo el entorno de Sheila es complicado. El hecho de que ella desde que se internó no quiera ver al novio nos da un indicio de que ella estaba pidiendo ayuda para zafar de este chico. Ella durante todo su discurso a lo largo de estos años dijo y se desdijo mil veces, eso hace muy difícil creerle. Cómo sabes en qué creerle y en qué no, cuando ya te mintió mil veces. Te agarra mucha bronca, pero yo quizás me tendría que haber dado cuenta que ese desdecirse constante era porque estaba inmersa en una situación que no podía manejar, pero es realmente muy difícil. Por ejemplo creo que ni cayó en cuenta que ella perdió el bebé porque el chico le pegó en la panza. Nosotros fallamos en eso, pero tampoco nos acompañó el equipo del hospital que son los que no hacen la denuncia cuando ella pierde al bebé, yo le pedí al médico que haga la denuncia pero él no se jugó. Lo decía oralmente pero no quiso hacer la denuncia y nosotros sin un certificado médico que constate que la pérdida del embarazo fue por un golpe no podemos hacer nada.
En el tema del abuso falló el diagnóstico de nuestro equipo de ASI y eso no puede pasar. Pero también era difícil, la primera vez que vienen a hablar con la psicóloga de ASI, la propia mamá dice que inventó lo del abuso para vengarse del hombre que se había ido con otra mujer y eso ya desdibujó todo. Típico caso de mamá despechada que acusa al tipo de abuso, la psicóloga por eso parece que ya desmereció el discurso. Cuando Sheila nos empieza a insistir con el abuso deberíamos haber parado las antenas pero, por otro lado, sabíamos que Sheila nos había mentido con distintas cosas… entonces todo era realmente complicado. ¿Dónde está el límite? ¿Cómo sabés en qué creerle y en qué no, si ella ya traicionó tu confianza? ¿Imagináte si le crees todo a todos? Vas de un lado a otro haciendo más líos de los que resolvés….”
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Si bien Ana se caracterizó durante todo mi trabajo de campo por su capacidad de reflexionar sobre su propia práctica de forma honesta y crítica, me sorprendió lo profundo y descarnado de su análisis en este caso, es evidente que el tema le caló profundo y la hizo reflexionar mucho. Su narración expone lo complejo e inasible que resultó en el caso de Sheila construir una meta-narrativa que se mantenga en el tiempo y permita sostener un horizonte más o menos delimitado hacia donde guiar la intervención. Seguimos nuestro viaje hablando de otras cosas y unos instantes antes de llegar Ana, por su propia voluntad, retoma el tema que parece no haberse ido nunca de su cabeza. “Mirá, te voy a contar un historia. Yo no me olvido más, yo empezaba a trabajar acá y aparece un caso de un chico en situación de calle, de unos 16 años, con problemas de consumo, muy complicado. Lo llevo a un centro de día18 para empezar a hacer talleres, el chico dice que sí, que va a ir, que se da cuenta que es la última oportunidad que le da la vida y la va a aprovechar. Empieza a venir todas las semanas al servicio a contarme las recetas que estaba haciendo de pan saborizado, me contaba que, cuando él amasa, el educador se da cuenta cómo está él por el modo en que le pega a la masa. Todo un relato muy creíble y yo muy ligada afectivamente con el chico. Un chico muy solo al que nadie le deba pelota. De repente desaparece. A las dos semanas aparece todo dado vuelta con pegamento en todo el buzo. Llamo al centro de día para ver qué pasó y me dicen que el chico nunca había ido, ni una sola vez. Yo todas las semanas le daba plata para moverse e ir a los talleres y no solo yo me lo creí, todos en el servicio se lo creyeron. Y te sentís una estúpida. Yo tendría que haber llamado antes al centro de día, pero realmente para mí no cabía la posibilidad de que mienta, estaba 100% confiada….y con Sheila pasó lo mismo entendés…. pero al revés”.
La empatía con el otro parece, para el oficio de trabajador del servicio local, no ser necesariamente –o al menos no siempre- una buena consejera. En una tarea donde habitualmente se toman decisiones que inciden en la vi18
Instituciones, en la mayoría de los casos a cargo de organizaciones no estatales de variadas procedencias y orientaciones que, mediante la firma de convenios con el Estado provincial o municipal, “recibe casos” del servicio local. Cómo su nombre lo indica, los niños pasan allí parte del día y realizan actividades usualmente caracterizadas como “talleres”, ya sean recreativos, de formación en oficios, capacitación o reflexión.
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da de las personas, muchas veces atravesadas por tramas cargadas de sufrimiento, la emotividad esta flor de piel y apegarse a la meta-narrativa producida en el entorno institucional – aunque no por ello necesariamente estática- , que delimite hechos, actores y rumbos a seguir puede resultar una herramienta para –como dice Ana- no “andar de un lado a otro haciendo más líos de los que resolvés”. Sin embargo, los caminos a transitar lejos están de ser unívocos y predefinidos. Como nos describe Ana en esta última reflexión, no confiar puede ser tan peligroso como confiar y ambas pueden producir intervenciones contraproducentes
Reflexiones finales A diferencia del denominado “enfoque tutelar” o de la “situación irregular”19, en la que la clasificación operaba institucionalmente, segregando niños de menores, y destinando para cada una de estas figuras recorridos institucionales diferenciados (Carli, 1992; Daroqui y Guemureman, 1999), resulta habitual que los promotores del “paradigma de la protección integral” (García Méndez, 1997; Konterllnik, 2004) destaquen la superación de esta antinomia mediante la universalización abstracta del niño sujeto de derechos propuesta por el “nuevo paradigma”. Sin embargo, como traté de dar cuenta en este artículo, el imperativo jurídico-moral de la universalidad del niño sujeto de derechos pese a pretenderlo, lejos está de anular las clasificaciones sobre los niños, aunque las relegue a una dimensión menos visibilizada e institucionalizada. Patrice Schuch (2009) afirma que, en un contexto que enfatiza la universalización de la infancia sin universalizar las condiciones para garantizarla, proliferan las clasificaciones que culpabilizan a los cuidadores, tanto los padres como los agentes de intervención, aquellas personas percibidas como fracasadas en la protección de los derechos de la infancia. Los agentes estatales sumergidos en las contradicciones del mundo social, sin los medios suficientes para suplir las deficiencias de las políticas estatales, viven estas contradicciones bajo la forma de dramas personales. Ahora bien, según lo que explora19
Como se suele nominar al “paradigma” o “doctrina” imperante durante la hegemonía del Patronato del Estado entre principios del siglo XX y comienzos del XXI
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mos aquí, la encrucijada entre el tópico moral de la universalidad del niño sujeto de derechos y las contradicciones del mundo social parece imponer a los agentes otra problemática agregada: la necesidad de generar mecanismos –a veces precarios, a veces cambiantes, habitualmente dilemáticos y siempre informales- de clasificación de niños y estimación de atributos familiares, para estructurar las intervenciones cotidianas. En muchos casos los esfuerzos de los agentes estatales se centran en ponderar ciertas condiciones clave para representar(se) un escenario inteligible. Una suerte de meta-narrativa que, anclada en múltiples, fragmentarias y disputadas narrativas, ordene prácticas, sucesos, sujetos e instituciones en una lógica aprehensible para la intervención. La lúcida reflexividad de Ana nos permite hurgar en los profundos dilemas que les imponen a los agentes estatales situaciones, como la de Sheila, en las cuales los mojones donde asirse para estructurar una intervención, son nebulosos y poco firmes. Entiendo que, en este caso en particular, las construcciones de sentido tales como manipulador o mentiroso y sus contrapartes de confiable u honesto ofrecen categorizaciones – lábiles y disputadas- que permiten cierta operativización de las estrategias de intervención en los contextos actuales de exigencia de negociación y consenso en las políticas de “protección integral” de niños y niñas. Estos procesos clasificatorios, no por mutantes y dilemáticos, están exentos de positividad y productividad. De hecho, estas dinámicas categorizaciones que se construyen cotidianamente son centrales a la hora de estructurar las intervenciones sobre niños y sus familias hacia un rumbo determinado. Las estimaciones sobre el carácter manipulador y poco confiable de Sheila, pero también sobre la incapacidad de los diversos adultos de su entorno de alcanzar, a los ojos de los agentes estatales, niveles mínimos de responsabilidad, fueron claves en las decisiones institucionales sobre la gestión de sus problemáticas cotidianas. Una de las dimensiones que atraviesa toda la situación etnográfica reconstruida es lo que he dado a denominar el imperativo de la co-gestión de la infancia, es decir la exigencia –ya sea en su dimensión formalizada en tanto “corresponsabilidad”, o circulando tácitamente como aspiracional moral- de la participación multiactoral en la resolución de las problemáticas asociadas a
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la infancia. Algunos de los actores centrales interpelados en este proceso son los propios niños y niñas y sus “familiares”, “referentes” o “responsables”. El caso de Sheila, como tantos otros que habitualmente transitan por el servicio local, encarna una de las tensiones más significativas que signa la cotidianidad de las políticas de niñez ancladas en el enfoque de derechos: la familia de Sheila, contraparte ideal en la co-gestión de su protección, se presenta en este caso como su mayor amenaza. Su madre irresponsable, su padre abusador, su abuela cómplice y su novio violento tensionan un imperativo contemporáneo que sostiene que la tarea del Estado es “ayudar a las familias a ayudar a sus integrantes” y encaminan el destino de Sheila a una indefectible temporada internada en una institución. Por distintos motivos, las clasificaciones que pesan sobre estas personas los sitúan en una posición donde la autoridad moral de cada uno de ellos está demasiado erosionada como para constituirse en un referente20 con posibilidades de incidir en la vida de Sheila. Su vida y su entorno cercanos estaban desmadrados21. Las estimaciones sobre Sheila no marcaron solamente la perspectiva de los dispositivos administrativos sobre ella, también alcanzaron las miradas institucionales sobre otra situación: el hipotético abuso del padre sobre su hermano. Que Sheila, que más de una vez había demostrado mentir explícitamente y tergiversar situaciones según sus intereses, acuse a su padre de abusador, no hacía más que reforzar un hipotético status de falsedad sobre el episodio. Simétricamente, cuando el abuso fue adquiriendo un status de verdad, la legitimidad de sus narraciones también mutó, y consecuentemente se tensionaron los atributos de escasa confiabilidad que pesaban sobre Sheila. Asimis20
El término es habitualmente utilizado por agentes estatales tanto en diálogos formales e informales como en los documentos producidos (actas, medidas, informes). Incluso cuando no es explicitado, la búsqueda de un sujeto (o más de uno) que asuma diversos grados de responsabilidad y compromiso en el bienestar de un niño, suele ser una estrategia central en muchas intervenciones cotidianas.
21
Esta noción, utilizada por María Gabriela Lugones (2012), resulta singularmente sugerente, en tanto, al menos en el castellano rioplatense, moviliza distintas imágenes. Por un lado, asociadas a aquello que está desestructurado o desgobernado –enquilombado en un leguaje coloquial pero también cargado de sentidos- pero, simultáneamente – o quizás consecuentemente- a situaciones donde la presencia de lo parental y especialmente lo maternal (des-madre) se presenta desfigurada y cuestionada. Como vimos a lo largo de este trabajo, una parte significativa de los problemas que vive Sheila, según la interpretación de una multiplicidad de diversos actores –incluida la propia niña- se origina en la falta de responsabilidad y cuidado que su madre les prodigó a ella y a sus hermanos.
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mo, tras la recalibración de las estimaciones sobre el carácter de Sheila, al dejar de ser calificada como mentirosa empedernida, crecieron sus posibilidades de ser considerada referente para la gestión de la vida de sus hermanitos, ya que los agentes estatales comenzaron a evaluar la posibilidad de internarlos junto con ella. Así, las clasificaciones sobre Sheila y las estimaciones sobre las problemáticas familiares que la rodeaban también tiñeron los destinos de sus dos hermanitos. Las clasificaciones resultan aparentemente indispensables, no solamente para la administración de la infancia desestructurada, sino intrínsecas a la intervención social, en la medida en que, el fin último de toda clasificación es poder predecir el comportamiento de lo que estamos clasificando y orientar las intervenciones en función de esa predicción. Mary Douglas (1973), al investigar sobre la construcción social de sistemas clasificatorios sostiene que estos presentan severas dificultades para lidiar con aquello que para la taxonomía aparece como ambiguo y pone en tensión la propia construcción clasificatoria. Situar a Sheila en el lugar de mentirosa o, por el contrario de honesta, deriva en consecuencias materiales concretas para su vida y para la de otros – por ejemplo sus hermanitos y también su padre. El problema es que las dinámicas de la vida social suponen muchas veces una complejidad y ambigüedad tal que puede resultar irreductible a las categorías tipologizantes como las que circulan en estos sistemas informales de clasificación y configuran las meta-narrativas destinadas a estructurar las intervenciones estatales. Por otra parte, resulta ineludible enmarcar los procesos aquí caracterizados en las reflexiones tardías de Michel Foucault22 en torno al gobierno de las poblaciones y en sus múltiples continuadores congregados en lo que se ha denominado la governmentality literature (Foucault, 2006; Rose, 2006; Rose et al, 2006; Rose y Miller, 1992, entre otros). En términos generales y esquemáticos lo podemos definir como las intrincadas interdependencias (Rose y Miller, 199) entre determinadas racionalidades políticas y las tecnologías de gobierno destinadas tanto al el gobierno de sí como la conducción de la conducta de 22
Me refiero particularmente a los cursos brindados en el Collège de France entre los años 1977 y 1980, así como en diversas entrevistas y conferencias brindadas en ese período.
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los otros. Las racionalidades políticas son entendidas como campos discursivos de configuración cambiante, en cuyo marco se produce una conceptualización del ejercicio del poder, mientras que las tecnologías de gobierno refieren a mecanismos prácticos y aparentemente nimios, ritualizados y casi naturalizados por su aplicación habitual en la práctica cotidiana, a través de los cuales las autoridades buscan “instanciar” la práctica de gobierno (De Marinis, 1999; Rose y Miller, 1992). En lo que, para gran mayoría de estos autores es la racionalidad imperante en estos tiempos, la neoliberal o liberal avanzada, se producen moralidades que ponderan a un sujeto que es permanentemente estimulado a responsabilizarse, a ser activo, a tomar su destino en sus propias manos y a gestionar su vida como una empresa prospera (Rose, 2006). Paralelamente las tecnologías de gobierno –entre otras modalidades- tienden crecientemente a gobernar a través de la comunidad –Gemeinschaft- y el espacio de las relaciones próximas (De Marinis, 1999). Como ya alertara Patrice Schuch (2009) resulta particularmente sugestiva la interpenetración entre estas racionalidades liberales y tecnologías de gobierno con el lenguaje moral de los derechos del niño que construye “sujetos de derechos” autónomos, ya no pasivos “objetos de intervención” y que supone la creciente responsabilización de las familias en la gestión de las infancias desestructuradas. Afirmar, sin embargo, que las intervenciones sobre niños en el marco de los modos contemporáneos de gestión de la infancia conllevan prácticas de administración de conductas y regulaciones de la vida familiar, no debe llevarnos a visualizar estos procesos de maneras homogéneas, unilineales, ni mucho menos premeditadas. Como se intento dar cuenta aquí, los agentes estatales que, en sus actuaciones cotidianas, instituyen las políticas de niñez diariamente, lo hacen atravesados por múltiples tensiones materiales, simbólicas y morales que generan no pocos dilemas y que configuran escenarios de intervención altamente complejos y heterogéneos. Ciertamente hemos podido ver cómo estas dimensiones se ponían en juego a lo largo de la situación etnográfica reconstruida. Sheila es interpelada repetidamente a dialogar, explicar, consensuar y plasmar tales consensos, con la práctica jurídico-simbólica de la firma de documentos, suscribiendo decisio-
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nes para su propia vida que no necesariamente habían sido tomadas por ella. La performance que guía esta sucesión de acciones ritualizadas, es claramente la de la interacción entre sujetos –idealizadamente- autónomos y responsables. Aunque podríamos preguntarnos en qué consiste la autonomía de Sheila, que parece erigirse menos como la posibilidad de construir su propia vida y más como la de transitar dentro de las reglas morales de origen transnacional que ponderan las relaciones no violentas, las intervenciones consensuadas y la negociación de los conflictos y que, al operar como horizontes morales internalizados, son movilizadas por los diversos agentes estatales. Si bien en un plano formal y ritual su autonomía sigue siendo ponderada (imposición consensuada para la internación en hogar, firma de acta plasmando “su voluntad” de hacerlo, etc.) en el plano de las relaciones concretas, el estatus de mentirosa que pesaba sobre Sheila, atentaba contra la posibilidad de que su autonomía ganase cierta preponderancia en la toma de decisiones sobre su propia vida. Su erosionada capacidad para comprometerse parecía disminuir proporcionalmente su margen para incidir en el consenso sobre su vida y su entorno. Las categorías nativas de consenso y compromiso, que circulan en la cotidianidad del servicio local, parecen constituir parte del entramado central de las modalidades de gobierno de las poblaciones (Foucault, 2006; Rose y Miller, 1992) desplegadas en el marco de la gestión de la infancia de sectores subalternos. El consenso refiere al imperativo que estructura el enfoque de derechos, tanto en su dimensión institucional y normativa como en los horizontes morales de muchos trabajadores estatales de niñez y supone una forma de participación23 tanto del niño “con derechos vulnerados” como de los diversos adultos de sus escenarios de vida próximos (Santillán, 2012) en los rumbos que la intervención “para restituir derechos” asumirá. Complementariamente, el compromiso, parece ser la contracara indisociable del consenso. Es decir los niños- jóvenes y los adultos de su entorno cercano son “invitados a participar” en la definición de las “estrategias” pero, como contrapartida deben asumir un rol determinante en los procesos de (auto) gestión y (auto) re23
Sobre la construcción de la necesidad de –una determinada forma de- participación familiar, en particular en relación a la escolarización de los niños, recomiendo ver el trabajo de Laura Cerletti, por ejemplo: (2010).
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gulación de las propias problemáticas. Así como el consenso opera como un imperativo moral para los agentes estatales –en muchos casos presentándoles escenarios dilemáticos-el compromiso parecería representar el contra-don o la retribución moral esperada –y exigida- a los niños y sus familias. El estatus de mentirosa, manipuladora y poco confiable que pesaba sobre Sheila “hablaba” de su incapacidad para establecer compromisos, y fue un factor determinante para que los agentes estatales no pudieran confiar en ella para consensuar salidas alternativas a la internación. La angustia que en los agentes estatales despertaba el hecho de “ser engañadas”, de “no poder confiar” en Sheila, parece encarnar no solamente un sentimiento de traición frente al quiebre del ciclo de don (consenso) y contra don24 (compromiso) que configura la lógica implícita de la interacción entre administradores y administrados bajo el enfoque de derechos el niño, sino también una evidencia de cierto fracaso en la constitución de un sujeto confiable, indispensable para el desenvolvimiento del arte de conducir conductas bajo las modalidades contemporáneas de gestión de la infancia. Así, en las interacciones enmarcadas en el espacio de lo estatal –entendido como procesos y efectos materiales y simbólicos (Troulliot, 2001), no como estructuras institucionales delimitadas- se ponen en juego procesos hegemónicos que, entrelazando racionalidades globales con tematizaciones locales, impulsan la construcción de marcos discursivos y actitudinales comunes (retoricas de protección y derechos, pero también de responsabilidad, compromiso, honestidad y consenso). Sin embargo, este proyecto lejos está de plasmarse en logros consolidados, sino que se configura en una construcción tensionada y disputada por múltiples actores (tanto agentes estatales como “beneficiarios”), siempre incompleta, inacabada y continuamente recreada en relación a cambiantes condiciones de posibilidad.
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Por referencias sobre la teória del don ver Mauss, 2009.
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Cotidiano e política da luta por moradia no centro de São Paulo1 Everyday and politics in the struggle for housing in downtown São Paulo Carlos Filadelfo Doutorando em Antropologia Social na Universidade de São Paulo (USP), Professor Convidado da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e pesquisador do Hybris – Relações de Poder, Conflitos e Socialidades (USP e UFSCAR).
Resumo O Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) é um movimento de moradia que articula famílias de baixa renda com o objetivo de obter atendimento por programas habitacionais públicos. Este artigo pretende discutir etnograficamente a articulação entre cotidiano e política das práticas e discursos do MSTC a partir de uma ocupação do movimento, na região central de São Paulo. O objetivo é compreender como esforços de coletivização são empreendidos na construção do MSTC enquanto sujeito coletivo. Para isso, abordo três aspectos da ocupação: i) narrativas sobre seu início em que há uma valorização de ações coletivas; ii) a heterogeneidade do conjunto de seus moradores e como ela converge em uma só coletividade; e iii) o controle do cotidiano da ocupação por sua coordenação para favorecer tanto o bem estar de seus moradores como os processos de negociação com o poder público. Palavras-chave: Antropologia Política; Antropologia Urbana; centro de São Paulo; coletivização; movimentos de moradia.
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Este artigo apresenta reflexões etnográficas a partir de pesquisa de campo que realizei sobre o MSTC, entre 2006 e 2008. Um dos resultados desta pesquisa foi a minha dissertação de mestrado (FILADELFO, 2009). Revista Antropolítica, n. 36, p. 149-178, Niterói,1. sem. 2014
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INTRODUÇÃO O Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) é um movimento de moradia que articula famílias de baixa renda com o objetivo de obter atendimento por programas habitacionais públicos. Considerando que o centro de São Paulo é a região da cidade com melhor infraestrutura e oferta de serviços, trabalhos e acessibilidade e que, por outro lado, concentra muitos imóveis abandonados, esse movimento tem atuado prioritariamente nessa região, reivindicando o acesso à moradia permanente. Para isso, adota como principal instrumento político a realização de ocupações de muitos desses prédios como forma de denúncia de seu abandono e com o intuito de que sejam transformados pelo poder público em moradia popular.2 O MSTC foi criado em 2000 e atua em boa parte do território paulistano. Com uma estrutura organizacional bem articulada e ramificada em vários bairros da cidade, o movimento conta com grupos de base, responsáveis pela inserção de novos integrantes para a transmissão de conhecimento sobre a forma de atuação e maneiras de se conseguir casa própria. Além dos grupos de base, o movimento também é constituído por associações de moradores das ocupações e projetos habitacionais já conquistados. Esse movimento de moradia é composto por diferentes indivíduos e famílias, constituindo uma coletividade a partir do acionamento da expressão “luta por moradia digna”3 para denotar o caráter conflituoso, atribulado e difícil de obtenção da casa própria. Essa expressão é acionada para justificar a necessidade de práticas coletivas e organizadas, a partir da conformação de um grupo social coeso em torno do mesmo objetivo e legitimação de certas pessoas no papel de lideranças, características responsáveis pela construção de um “movimento de moradia”. 2
O uso de “ocupação” em vez de “invasão”, ao contrário do que a imprensa costuma noticiar, se justifica pelo uso que os integrantes do MSTC fazem dessa expressão como maneira de legitimar suas práticas: ocupação de algo abandonado ou “sem função social da propriedade”, como estipula o Estatuto da Cidade, a fim de que seja desapropriado pelo poder público e transformado em moradia popular e não “invasão” que denota características ilegais.
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Ao longo do artigo, expressões, discursos, narrativas e categorias nativas estarão escritos entre aspas.
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Essa coletividade é construída e, a todo tempo, reafirmada e problematizada nos discursos, práticas e representações de seus integrantes, processo que chamo de ‘coletivização’. Esse termo, embora não seja uma categoria nativa, foi elaborado por mim a partir de uma derivação de termos e expressões utilizadas por integrantes do próprio movimento. Era muito recorrente a acepção de que as práticas tinham que ser coletivas e organizadas e não individuais, a partir da conformação de um grupo social em torno do mesmo objetivo. Tem-se, assim, um esforço permanente de produção do MSTC, pois há uma apreensão de que a conformação desse grupo social é instável, fluida, inconstante.4 Com efeito, suas conformações identitárias e discursos, práticas e representações só podem ser apreendidos a partir de um maior foco nas relações nas quais o movimento se insere. Parafraseando Marilyn Strathern (2006), o MSTC seria uma espécie de objetificação de múltiplas relações, ou seja, só adquiriria corpo e sentido a partir da análise das relações que permeiam o campo da luta por moradia no centro de São Paulo.5 Além das relações internas ao movimento, existem relações com outros movimentos de moradia e movimentos sociais, com agentes e instituições do poder público, assessorias técnicas de arquitetura, advogados, ONGs, intelectuais, simpatizantes, partidos políticos, instituições culturais e religiosas, só para citar algumas. O MSTC, portanto, se situa e é continuamente produzido a partir de uma ampla rede de múltiplas relações. No entanto, neste artigo o foco será principalmente nas relações internas entre seus integrantes no cotidiano de uma de suas ocupações, que são espaços acionados como marcas distintivas da atuação do MS4
Ver, a esse respeito, Wagner (1974), que propõe uma abordagem etnográfica que não trate os grupos sociais como apriorísticos ou como ponto de partida de análise. Ao contrário, a etnografia deveria privilegiar os processos relacionais, com atenção à forma como os nativos se criam socialmente. Inspirando-me nesse autor, dou especial ênfase à apreensão de como essa coletividade é elaborada e problematizada do ponto de vista nativo.
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Para Strathern (2006, p. 267), objetificação é “a maneira pela qual as pessoas e as coisas são construídas como algo que tem valor, ou seja, são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação”. Alfred Gell (1998) realiza um interessante exame sobre a obra Gênero da Dádiva, de Marilyn Strathern, que torna mais clara a acepção de relações da autora. De acordo com este autor, Strathern analisa o sistema de relações de troca na Melanésia, tomado como sistema ideal e não real, pensando essas relações como sendo necessariamente entre termos, mas os próprios termos são constituídos a partir das relações nas quais participam. Assim, os termos trocados (objetos) ou os responsáveis pelas trocas (pessoas) são objetificações de relações, só adquirindo sentido e forma a partir da análise das múltiplas relações nas quais estão inseridos.
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TC enquanto sujeito coletivo. Assim, a ocupação, seu cotidiano e suas lógicas internas adquirem uma importância fundamental para a análise das práticas políticas do MSTC. Portanto, este artigo pretende discutir etnograficamente a articulação entre cotidiano e política das práticas e discursos do MSTC a partir de uma ocupação do movimento localizada na Avenida Prestes Maia, na região central de São Paulo. O objetivo é compreender como esforços de coletivização são empreendidos na construção do MSTC enquanto sujeito coletivo. A articulação entre cotidiano e política das práticas dos movimentos sociais não é novidade na bibliografia sobre o tema. Desde os anos 1970, uma ampla bibliografia, de diversas orientações teórico-metodológicas, se dedicou a análises dos chamados novos movimentos sociais, que emergiam nesse período nas periferias da cidade de São Paulo. Uma das vertentes analíticas, a chamada antropológico-cultural (BAIERLE, 1992) ou cultural-autonomista (DOIMO, 1995), se dedicou mais detidamente à articulação entre cotidiano e política.6 Essa vertente, que compreendia autores como Evers (1984), Caldeira (1984), Cardoso (1987), Durham (2004), dentre outros, proporcionou uma contribuição fundamental, ao trazer o cotidiano como dimensão central de análise. Nessa chave, os novos movimentos sociais representavam uma nova forma de se fazer política, distinta dos partidos políticos e dos sindicatos, com uma forma de atuação, portanto, não simplesmente institucional, mas produzida e reafirmada no cotidiano de seus integrantes. Cotidiano marcado por carências e negação de direitos que orientavam sua emergência como sujeitos coletivos que adotavam formas inéditas de luta e reivindicação por bens, serviços e direitos. O cotidiano era, nesse sentido, não só uma dimensão concreta que orientava suas práticas políticas, como também uma dimensão a ser levada em conta analiticamente. 6
Tal corrente analítica, com foco na autonomia e espontaneidade dos “novos movimentos sociais” e seu caráter anti-Estado, focalizaria as “matrizes e impactos culturais presentes das novas práticas e experiências movimentistas” (FELTRAN, 2005, p. 34), mas também a partir de um diálogo com perspectivas marxistas. Obviamente foge aos objetivos deste artigo realizar uma ampla revisão bibliográfica sobre as diferentes abordagens sobre movimentos sociais. Faço aqui apenas um rápido apontamento sobre um campo de estudos que se deteve sobre o cotidiano das práticas dos movimentos, no interior do qual se destacam pesquisas de caráter etnográfico. Para revisões bibliográficas de diferentes perspectivas dos estudos sobre os movimentos sociais, ver Cardoso (2004), Doimo (1995) e Feltran (2005).
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Essa contribuição é inegável, mas aqui há uma diferença fundamental em relação ao contexto histórico e político tematizado por essa bibliografia. Trata-se não só de movimentos que se deslocaram das periferias para a região central de São Paulo, como o cotidiano aqui se refere a uma dimensão produzida politicamente. Ou seja, as ocupações são realizadas por famílias previamente integrantes do MSTC e todo o cotidiano é regulado pela coordenação desse movimento, o que embaralha as fronteiras entre cotidiano e política nas suas práticas e discursos. Por outro lado, boa parte dessa bibliografia partia de definições apriorísticas de movimentos sociais, que reificavam uma coletividade específica, com repertórios de ação coletiva muito bem claros e com uma identidade única e claramente discernível. Eu, ao contrário, não parto de definições apriorísticas do MSTC, mas realizo um esforço de compreensão de como se dá a elaboração dessa coletividade relacionalmente. Neste caso, principalmente nas relações cotidianas no interior da ocupação. Portanto, há continuidades com a produção bibliográfica anterior, mas realizo aqui uma etnografia de um movimento social a partir de uma perspectiva teórico-metodológica distinta. Assim, pretendo discutir três aspectos da ocupação: i) narrativas sobre seu início em que há uma valorização de ações coletivas; ii) a heterogeneidade do conjunto de seus moradores e como ela converge em uma só coletividade e iii) o controle do cotidiano da ocupação por sua coordenação para favorecer tanto o bem estar de seus moradores como os processos de negociação com o poder público. A partir desses três eixos, busco explorar como as relações na ocupação compreendem esforços de coletivização no sentido de fazer com que sua heterogeneidade interna, suas diversas segmentações e multiplicidades identitárias ressoem na conformação de uma coletividade que consiga um objetivo que seria comum a todos: o atendimento por programas habitacionais.
Narrativas sobre o início da ocupação A ocupação do prédio localizado na Avenida Prestes Maia pelo MSTC por mais de quatro anos constituiu um forte elemento simbólico de todo o amplo campo em torno do direito à moradia das classes populares no centro
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de São Paulo. Essa ocupação tornou-se foco de múltiplas atenções agregando atores dos mais diversos, sendo responsável por uma grande visibilidade pública da luta por moradia.7 De acordo com relato de Manoel Del Rio,8 uma das principais lideranças do MSTC, houve, entre 2000 e 2001, interesse da coordenação do movimento pelo prédio que estava abandonado há mais de 15 anos. Aproximadamente nessa época havia saído o PAR (Programa de Arrendamento Residencial) da Caixa Econômica Federal,9 o que teria ocasionado uma “febre para procurar prédio para apresentar para o PAR”: Então, nós fomos lá com o arquiteto e com o corretor, visitamos lá e o arquiteto começou a fazer o projeto e nós começamos a fazer a negociação com o proprietário. Aí pedimos reunião na Cohab, fomos lá com o proprietário... Aí, a Cohab falou que era possível, mas que o proprietário tinha que resolver o problema da documentação. E aí ficou essa negociação, aí quando esgotou essa negociação, que o Hamuche [proprietário do imóvel] não legalizava, então, agora a gente ocupa, mas paralelamente a isso, nós formamos o grupo da Prestes Maia. Então quando esgotou, não dá a negociação, então nós ocupamos. E aí, então, propusemos reiniciar a negociação; ocupamos e fizemos a renegociação novamente com a prefeitura. Quando o proprietário entrou com a reintegração de posse, eu entrei com recurso, aquelas coisas, mas não valeu nada. O que valeu mesmo foi que a prefeitura entrou e fez um ofício para o juiz dizendo que estava negociando o imóvel, então segurou a reintegração naquele início. 7
Para mais detalhes, ver Filadelfo (2009 e 2010).
8
Manoel Del Rio é uma das mais antigas lideranças do MSTC. Inicialmente envolvido com o movimento estudantil, posteriormente se envolve com o movimento sindical e gradativamente centra suas ações na luta por moradia digna de operários de fábricas na região da Mooca, em sua maioria moradores de cortiços. Participa, em 1991, da fundação da Unificação das Lutas dos Cortiços (ULC), primeiro movimento com atuação predominante no centro. Depois, devido a divergências internas, sai desse movimento, junto a outras lideranças, e participa da fundação do Fórum de Cortiços e, posteriormente, do MSTC.
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O PAR foi um programa habitacional do governo federal, financiado pela Caixa Econômica Federal (CEF) e posteriormente desativado quando houve a criação do Programa Minha Casa Minha Vida. Destinava-se a famílias de baixa renda em grandes centros urbanos. A família atendida pagava um valor mensal de acordo com sua renda por 15 anos, e ao final desse período a família tinha a opção de comprar o imóvel onde morou devendo pagar o saldo residual. Em São Paulo, o PAR desapropriou alguns imóveis e os repassou através de arrendamento a famílias de movimentos de moradia que negociaram diretamente com a CEF, além de realizar investimentos em parceria com a prefeitura municipal (FCV, 2006; MARQUES e SARAIVA, 2005).
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Mas aí, nós fomos organizando, o pessoal falava que não dava para morar muita gente. E a gente: ‘não, dá para morar, vamos arrumar e tal e tal’.
Ivateni de Araújo, coordenadora geral do MSTC,10 por sua vez, justificou o ato de ocupar o prédio como algo necessário frente ao fracasso das negociações e à situação das famílias sem condições adequadas de moradia: Um prédio vazio, há mais de 17 anos, o proprietário com uma dívida de IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano], a gente com uma demanda com as famílias com carta de despejo na mão. Então a gente fez um documento, encaminhou para a Secretaria Municipal de Habitação, reivindicando que esse prédio fosse reformado e repassado para as famílias por um programa habitacional para elas. De baixa renda. E aí ficou dois anos na mesa de negociação; enquanto isso, muitas famílias foram para a rua. Então, é importante lembrar assim, primeiro a gente levanta a situação do imóvel, leva para a mesa de negociação, faz o estudo de viabilidade, certo? Caso não tendo condições, é onde a gente ocupa. E todas as ocupações foram encaminhadas dentro de uma plenária do movimento, onde os coordenadores, junto com representação das famílias, falaram: ‘Olha, não tem jeito, temos que ocupar’. Antes, a gente tenta negociar, tenta abrir negociação, tenta encaminhar sem que tenha necessidade de ocupar. Caso não tendo jeito, aí a gente ocupa. E aí, a negociação precisa continuar, porque aí com a ocupação, torna-se até mais emergencial, porque as famílias que estão ali realmente necessitam de um atendimento. O objetivo não é de ocupar por ocupar, é ocupar para um futuro atendimento, de preferência definitivo.
No dia 3 de novembro de 2002, algumas centenas de pessoas arrombaram o cadeado do portão de acesso pela Rua Brigadeiro Tobias e lá se instala10
Ivaneti ascendeu gradativamente à coordenação do MSTC, vinda de sua base. Sua trajetória, desde o trabalho como boia-fria no interior de São Paulo ao trabalho como empregada doméstica em Ribeirão Preto, passando pela maternidade precoce, adquire um caráter de precariedade de condições de moradia, de vida e de saúde de suas filhas quando da sua vinda para São Paulo, acompanhando o marido no seu novo trabalho. O desemprego do marido levou à redução do orçamento, que por sua vez teve como consequência a necessidade de morar em cortiços e dificuldades para obter alimentação até não poder mais pagar aluguel e ir morar na rua com sua família. A inserção no movimento de moradia, à época ainda o Fórum de Cortiços, se deu através de seu marido. Ambos começaram a participar das reuniões de um grupo de base e ocuparam o antigo hospital Matarazzo, na região da Avenida Paulista.
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ram provisoriamente, na ansiedade do risco de uma ação da polícia militar de expulsão das pessoas envolvidas. O prédio é composto por dois blocos: um voltado para a Rua Brigadeiro Tobias, número 700, de nove andares; e o outro de 22 andares na Avenida Prestes Maia, número 911. Originalmente funcionava no prédio a Companhia de Tecidos, cuja entrada era pelo bloco menor, onde ainda consta o nome da antiga empresa em sua fachada. A tecelagem foi à falência, o que ocasionou o abandono do local por alguns anos. Há mais de 20 anos o imóvel foi arrematado em leilão por Eduardo Amorim e Jorge Hamuche, empresários do ramo de tecidos. No entanto, eles mantiveram o imóvel sem nenhum uso, além de não quitarem as dívidas acumuladas de IPTU e nem terem a documentação de propriedade regularizada, o que acabou por dificultar as negociações posteriores em torno da possível desapropriação do imóvel. Durante boa parte do tempo em que esteve abandonado, o prédio era ponto de tráfico de drogas e de usuários, identificados como “nóias”, e de prostituição. Além de suas amplas dimensões, capazes de comportar muitas famílias que vinham de condições precárias de moradia, a localização do prédio correspondia a um grande atrativo para muitos dos integrantes do movimento. A Prestes Maia é uma das avenidas de maior circulação de São Paulo, com grande concentração de variados tipos de serviços e uma das mais completas infraestruturas da cidade, com ampla oferta de transportes e instituições de saúde e educação. O prédio localiza-se muito próximo à Estação da Luz, o que corresponde a fácil acesso ao metrô e ao trem metropolitano; além disso, a região oferece linhas de ônibus para boa parte da cidade de São Paulo. Mas um dos principais motivos da ocupação foram as oportunidades de geração de renda que essa região oferece, já que a maioria dos futuros moradores já trabalhava na região como ambulantes, catadores de material reciclável e, no caso principalmente de mulheres, faxineiras. Moradores oriundos de outras regiões não centrais também poderiam aproveitar toda a oferta de infraestrutura e de atividades do centro paulistano. No dia da ocupação, os integrantes do MSTC encontraram um espaço sujo, ainda com muito entulho da Companhia de Tecidos, com toda sorte de
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insetos e muitos ratos. O subsolo do prédio, que depois se transformaria no principal espaço de sociabilidade da ocupação e de maior visibilidade externa, estava alagado, cheio de lixo e entulho. Os ocupantes se fixaram em um dos primeiros andares e logo instalaram uma cozinha comunitária e espalharam colchões para que as pessoas pudessem dormir. Como não houve despejo imediato, foram chamados muitos integrantes do MSTC que já participavam dos grupos de base do movimento e que estavam aguardando alguma moradia, ainda que provisoriamente em ocupações. Os novos ocupantes deram início a um mutirão de limpeza que durou alguns meses até que o prédio pudesse ser transformado num espaço habitável com condições de acomodar as 468 famílias que ali se fixariam. Os números variam, mas todos afirmam que foram necessários muitos caminhões de lixo para retirar todo o lixo e entulho do local. Foram designadas comissões encarregadas das partes elétrica e hidráulica, que realizaram “gatos” para fornecimento de energia. A entrada de água pela rua era constante, como mostrava o subsolo submerso. Alguns moradores, então, instalaram uma bomba para drenar toda a água para fora e montaram uma rede de encanamento para os primeiros andares e, posteriormente, para uma caixa de água no topo do prédio, para que a partir daí a água fosse distribuída para os outros andares. Seu Severino11 me relatou que no dia da ocupação, havia aproximadamente 250 famílias. No início só havia fornecimento de água e luz até o 15º andar, então muitas famílias saíram temporariamente para a ocupação da Rua Plínio Ramos, coordenada pelo MMRC (Movimento de Moradia da Região Central), e depois voltaram quando a água foi instalada em todos os andares. Tal relato mostra como as fronteiras entre os diferentes movimentos são fluidas, já que há um fluxo de moradores entre as diferentes ocupações não se restringindo ao pertencimento a um movimento específico, mas principalmente a relações de parentesco e amizade. 11
Um dos coordenadores da ocupação (coordenava o seu andar), Seu Severino era catador de material reciclável e criou uma biblioteca no subsolo do prédio a partir de 600 títulos que havia coletado no lixo. Com o tempo a biblioteca aumentou com muitas doações de livros e dotou a ocupação de grande visibilidade pública por atrair muitos visitantes e ser objeto de reportagens da mídia impressa e televisiva (cf. FILADELFO, 2009). Seu Severino foi um dos meus principais interlocutores durante o trabalho de campo.
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Como no prédio, antes de ser abandonado, funcionava uma indústria têxtil, os diferentes andares eram depósitos, galpões de armazenamento e oficinas, não havia divisórias e sim um único e amplo espaço livre em cada andar. A partir da ocupação, houve uma divisão dos andares em “espaços” para as famílias construírem seus “barracos” ou “quartos”, como os moradores tendiam a nomear suas habitações. Pessoas idosas ou com alguma deficiência de locomoção tinham prioridade para ficar nos andares mais baixos. Além disso, houve a tendência de fixar pessoas que partilhavam de laços de parentesco e de origem no mesmo andar. Como o prédio possuía muitas janelas em cada andar, o critério de definição de cada espaço era ter uma janela, de forma a permitir um arejamento adequado para cada família. Os moradores realizaram divisões com tábuas de madeirite, aproveitando muito do próprio entulho que estava no prédio. Portas foram improvisadas ou adquiridas em restos de construções da região. Cada “espaço” passou a ser um misto de sala, quarto e cozinha. Em cada andar, havia apenas um banheiro para o uso de todos os moradores. Foram instalados vasos sanitários, apenas um chuveiro elétrico (para evitar sobrecarga elétrica), pias e tanques para lavar roupa e louça. Como a entrada principal no início do processo era pela Rua Brigadeiro Tobias, esse bloco passou a ser chamado de A, enquanto o maior, de 22 andares, de frente para a Avenida Prestes Maia, foi nomeado bloco B. Esse quadro geral da ocupação foi relatado por muitos moradores, com poucas variações. Pode-se perceber como na construção da narrativa há um esforço de legitimar a construção coletiva de um espaço pelo MSTC, a partir de uma forte organização, capaz de transformar um imóvel abandonado e sem uso, numa região privilegiada como o centro de São Paulo, em algo capaz de melhorar as situações de moradia de seus integrantes. A construção narrativa permite vislumbrar os resultados obtidos a partir do processo de coletivização das famílias envolvidas no ato da ocupação que, nesse caso específico, acionam discursivamente a idéia de pertencimento a uma coletividade identificada como o MSTC. Conforme será visto a seguir, a ocupação Prestes Maia reflete um impor-
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tante espaço a partir do qual foi possível realizar uma etnografia que revela como a heterogeneidade dos moradores convergia num sentido comum delimitando política e cotidianamente o MSTC.
Trajetórias, identidades, discursos e práticas dos moradores Em entrevista realizada com uma das coordenadoras da ocupação, ela me disse: “Todo mundo que está aqui estava nessa situação: ou despejado, ou para ser despejado, ou morando de favor”. Além disso, ela me explicou que a opção pelo centro era devido ao fato de ser uma região de fácil acesso à saúde, educação e trabalho e que qualquer pessoa deveria exercer seu “direito de escolher onde quer morar”. Com efeito, embora houvesse moradores originários de outros grupos de base do MSTC de outras regiões, a grande maioria das pessoas com quem travei relações durante o trabalho de campo já residia no centro anteriormente à ocupação. O principal tipo de moradia anterior nessa região eram os cortiços ou “pensões”.12 Se os cortiços eram uma das poucas formas acessíveis de se morar no centro, a inserção no movimento costumava se justificar justamente pelo objetivo de se conseguir moradia definitiva com melhores condições nessa região, para fugir aos altos valores de aluguel. As principais maneiras pelas quais os moradores tomaram conhecimento sobre o MSTC foram através de divulgação realizada por coordenadores em cortiços ou de cartazes colados em postes e pontos de ônibus, assim como por divulgação de pessoas que já estavam no movimento, com quem os novos integrantes mantinham relações de amizade, profissionais, mas principalmente de parentesco. Era comum, por exemplo, que migrantes recém-chegados 12
Os cortiços são arranjos habitacionais comuns para grande parte dos integrantes dos movimentos de moradia atuantes na região central da cidade. Com efeito, o movimento de moradia do centro de São Paulo embrionário, a partir do qual se originaram todos os outros movimentos, foi a Unificação das Lutas de Cortiços (ULC), formada a partir da reunião de reivindicações, antes isoladas, de moradores de cortiços (FILADELFO, 2009; ARAVECCHIA, 2005; BLOCH, 2007; KOHARA e CARICARI, 2006). Em relação aos moradores da Prestes Maia, o termo “pensões” era amplamente utilizado em detrimento de “cortiços”. Mas os dois se referiam basicamente ao mesmo tipo de arranjo habitacional: casas que contavam com muitos quartos alugados, banheiros e lavanderias comuns. A maioria dos moradores sempre aludia às pensões como muito caras para seu reduzido orçamento, frente às freqüentes condições insalubres desses lugares. Outra queixa frequente era a da exploração dos intermediários na cobrança do aluguel e das taxas de água e luz.
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tivessem algum parente de seu local de origem participando de algum grupo de base ou mesmo morando na ocupação, que os convidava a participar. Outro fato recorrente em muitos dos casos das inserções no MSTC era a resistência inicial a participar. Muitos só tinham ouvido falar em “sem-teto” pelos noticiários televisivos. Via de regra, as coberturas midiáticas sobre as ocupações tendiam a estigmatizar os sem-teto como “baderneiros”. Era comum o relato de que familiares de integrantes do movimento ficavam preocupados ao verem na televisão algum despejo violento perpretado pela polícia militar. Geralmente quem me relatava esse tipo de situação imediatamente complementava como, apesar dos riscos, a inserção no movimento havia sido fundamental para a melhoria da sua vida, para o aprendizado de como reivindicar seus direitos e de que “com luta é possível obter sua casa”. Por outro lado, muitos entravam no MSTC e se dispunham a morar em uma ocupação por realmente não terem condições de pagar aluguel. Uma frase muito repetida pelos coordenadores em relação às condições pregressas à ocupação era “ou come ou paga aluguel” e a expressão “entrar para a luta” era comumente utilizada para se referir à sua inserção no movimento.13 Se para alguns moradores morar na ocupação representava o não pagamento de aluguel e ainda o objetivo de obter sua casa própria através do movimento, para outros a ocupação acabava por ser uma representação simbólica da perda do padrão de vida anterior, pois ou haviam ficado desempregados, ou seus negócios tinham falido ou estavam passando por outros problemas de ordem pessoal. É claro que por mais que haja aproximações entre as condições de vida dos diferentes moradores, a opção pela inserção no movimento pode ser considerada subjetiva. Em muitas conversas com esses moradores no seu cotidiano, foi possível perceber que a busca pela casa própria carregava em si uma alta carga simbólica. Muitos costumavam se referir à sua futura casa sempre a partir do uso de pronome possessivo: “meu canto”, “meu chão”, “meu teto”, “minha casinha”, “meu pedacinho de chão” foram expressões muito corriquei13
Para os moradores da Prestes Maia, as diferenças entre os movimentos de moradia não eram muito objetivadas. A maioria dos seus integrantes os considera todos semelhantes e a escolha pelo MSTC e não por outro movimento se dava muito mais por questões circunstanciais do que por afinidade ideológica.
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ras durante o trabalho de campo. O conjunto desses relatos considerava a casa própria, muito mais do que apenas representar a não preocupação com o gasto mensal de aluguel e consequentemente com a melhoria da qualidade de vida, símbolo de espaço de privacidade, liberdade e segurança. Nessa chave, a casa a ser adquirida representaria um espaço próprio, onde o morador poderia exercer sua independência, não se subjugando às regras impostas pelo proprietário, e seus rendimentos mensais seriam investidos tanto para a compra como para possíveis reformas, além de oferecer melhores condições para os filhos do que as que os pais tiveram.14 Embora se pudesse pensar que haveria uma identificação plena entre os moradores, já que todos moravam sob mesmas condições e compartilhavam o objetivo de obtenção da casa própria através do movimento, foi possível perceber diversas segmentações internas à ocupação. Havia, por exemplo, uma estigmatização em relação ao bloco A. Quando iniciei meu trabalho de campo, o bloco B, de frente para a Avenida Prestes Maia, correspondia à entrada principal da ocupação. Contando com 22 andares amplos com uma média de 13 famílias em cada andar, foi o bloco apresentado por Seu Severino quando da minha primeira visita ao prédio. Quando ele explicou que esse era o bloco B e havia o bloco A, menor, logo mostrei interesse em conhecê-lo. Ele se mostrou relutante, já que este outro bloco era mais desorganizado e estava em piores condições de limpeza e manutenção, uma vez que seus moradores viriam, em grande parte, de favelas. Em outra visita de estudantes universitários, que acompanhei, o nosso guia também disse que o bloco A era um “favelão”. Alguns moradores do bloco B, quando se queixavam de moradores que jogavam lixo pela janela, falavam que os do bloco A eram ainda piores. O bloco A, de frente para a Rua Brigadeiro Tobias, contava com nove andares de amplitude muito menor do que os do bloco B, sua disposição espacial era de um estreito corredor com os espaços de cada lado, e um pé direito menor, o que deixava o ambiente mais escuro do que o do outro bloco. Alguns moradores do bloco A, com quem conversei sobre essa separação, atribuíam 14
No campo das ciências sociais, muitos autores se debruçaram sobre o tema dos sentidos da casa própria para as classes populares urbanas. Ver, por exemplo, Durham (2004), Kowarick (2000).
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essa estigmatização às diferenças físicas entre os dois blocos e também ao resultado de um incêndio acidental que danificou alguns dos andares. Além disso, pode-se dizer que havia uma multiplicidade de pertencimentos e de categorias identitárias15 entre os moradores da ocupação, principalmente pelos diferentes tipos de trabalho desempenhados e locais de origem. A atividade que mais ocupava os moradores era a de camelô, mas também se encontravam catadores de material reciclável, garçons, manicures, faxineiras, seguranças. Boa parte deles escolheu morar no centro por ser uma região com grande oferta de serviços e oportunidades para esses tipos de atividades. Quanto à origem, tinha-se uma grande maioria de nordestinos, além de pessoas de outros países da América do Sul, dos quais se destacavam muitos bolivianos, que trabalhavam principalmente em confecções dos bairros do Brás e do Bom Retiro, localizados na região central de São Paulo. Essa multiplicidade identitária acabava por orientar certas relações de sociabilidade interna da ocupação. No décimo primeiro andar do bloco B, por exemplo, todas as famílias partilhavam de laços de parentesco e eram provenientes do estado do Maranhão; elas inclusive promoveram algumas festas no subsolo com música reggae, ritmo muito popular no seu estado de origem. Já no sexto andar, foram fixadas pela coordenação somente famílias bolivianas porque, de acordo com um boliviano com quem conversei, todos se entendiam, então o indicado seria eles ficarem juntos. Em relação aos nordestinos, não pude perceber muitas estigmatizações ou segmentações internas por origem. As relações de alteridade com os bolivianos eram muito mais visíveis, pois estes eram tratados, por alguns, a partir de certa exotização: “Esse povo tem uns costumes estranhos, tomam sopa direto, não se incomodam de dormir no chão”. Além disso, nas reuniões, a dificuldade de leitura dos sobrenomes dos bolivianos sempre provocava risos de quem lia listas de presença e, invariavelmente, entre a plateia. Por outro lado, o tipo de trabalho desempenhado acabava por condicionar distintas formas de ocupação e frequência do centro da cidade. Os 15
Utilizo identidade aqui no sentido proposto por Manuela Carneiro da Cunha (1985) como uma elaboração situacional, contrastiva e política.
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camelôs são um exemplo disso, ao ocuparem ruas de maior circulação para um melhor acesso a potenciais compradores. A condição de algumas pessoas enquanto catadores de material reciclável, atividade também muito disseminada entre os moradores, condicionava igualmente distintas relações com os espaços comuns do prédio e a necessidade de habitação na região central da cidade. Eles construíram duas salas no subsolo do prédio para realizar armazenamento, separação e organização do material coletado para venda a depósitos de reciclagem. Quanto ao centro, este era tido como a melhor região para encontrar materiais recicláveis e os catadores circulavam com suas carroças durante todo o dia pela região do prédio em busca de sua fonte de renda. Em relação à reciclagem, o trajeto de catação de Seu Severino é ilustrativo da relação com o entorno: catava nas redondezas, no Bom Retiro e na Pinacoteca (a partir de um acordo para pegar papelão). Após separação do material, vendia para depósitos, principalmente na Favela do Gato e na Avenida do Estado, perto da Ponte Pequena, ambos também na região central. Havia, dessa forma, apesar de aproximações das trajetórias de seus moradores e de suas condições socioeconômicas, multiplicidades de pertencimentos, distintas categorias identitárias. Pode-se dizer que há um princípio de segmentaridade orientando as relações internas à ocupação entre os integrantes do MSTC,16 uma vez que as diferentes configurações identitárias acabavam por pressupor consequentemente diferentes modalidades de segmentaridade. Se em determinadas situações cotidianas, o trabalho e a origem podem determinar distintas formas de interação social e relações de pertencimento ao chamado “movimento”, pode-se dizer que há um conjunto de segmentaridades lineares (DELEUZE e GUATTARI, 1996) – ligadas a atividades, processos ou episódios – entre os moradores, que correspondem à inevitável 16
A noção de segmentaridade foi desenvolvida por Evans-Pritchard e Meyer-Fortes, nas décadas de 1930 e 1940, para explicar a integração de sociedades de linhagem que não contavam com aparelho estatal (EVANS-PRITCHARD, 2005 [1940]). No entanto, Deleuze e Guattari (1996) e Goldman (2001, 2006) propõem que a noção de segmentaridade não se restringe às sociedades de linhagem e nem ao modelo piramidal Nuer. Seu alcance deve ser ampliado, uma vez que o princípio de segmentaridade é universal na constituição das relações políticas: “O princípio de segmentaridade significa apenas que oposição e composição formam sempre uma totalidade indecomponível” (GOLDMAN, 2006, p. 144).
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heterogeneidade entre eles. Essas segmentaridades lineares levavam, assim, à composição de segmentos que extrapolavam os limites da ocupação e do próprio MSTC, devido a composições com atores e grupos externos a partir de vínculos trabalhistas e de parentesco, por exemplo, e mesmo pertencimento a outros movimentos, como de catadores e movimentos feministas. Havia também uma modalidade de segmentaridade circular (DELEUZE e GUATTARI, 1996), ou seja, de círculos de pertencimento e sociabilidade mais restritos a mais amplos. No cotidiano da Prestes Maia, por exemplo, havia relações mais próximas em cada andar, a partir de relações de vizinhança e a divisão de tarefas como limpeza, mediadas pelo coordenador do andar; posteriormente o pertencimento à ocupação e a subordinação à sua coordenação geral; e, por último, o pertencimento ao MSTC. Portanto, a partir dos processos de coletivização dentro e fora da ocupação, quando os moradores acabavam por compor um sujeito coletivo de ação sob a rubrica de MSTC, também situacionalmente em resposta política a uma determinada conjuntura, essas diferentes segmentações reuniam-se contrastivamente ao Estado numa modalidade de segmentaridade binária (DELEUZE e GUATTARI, 1996). É claro que essas diferentes modalidades de segmentaridade não correspondem a tipologias estanques de relações, pois haveria uma predominância de uma modalidade apenas situacionalmente, a partir de diferentes pontos de vista. Como afirmam Deleuze e Guattari (1996, p. 84): “Mas sempre estas figuras de segmentaridade, a binária, a circular, a linear, são tomadas umas nas outras, e até passam umas nas outras, transformando-se de acordo com o ponto de vista”. No entanto, é importante ressaltar que muito embora seja impossível falar num único discurso e numa única clivagem identitária, havia certas aproximações de trajetórias dos moradores e ressonâncias nos diferentes discursos quanto à categoria “sem-teto”, pois essa categoria era acionada para mostrar a importância da “luta” pela casa própria. A ausência da casa própria, definidora da categoria “sem-teto”, é a marca da luta do movimento tomado enquanto coletividade.
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Assim, a categoria “sem-teto” tendia a ser acionada enquanto marcador de identidade dos integrantes do movimento. O uso de tal categoria, ainda que possa ser referido genericamente às pessoas que não têm condições de obter casa própria, a partir da pesquisa de campo ficou claro que “sem-teto” é uma categoria identitária acionada para caracterizar integrantes dos movimentos de moradia, em geral, e do MSTC, em particular. É uma categoria política, incorporada pelos atores a partir de sua inserção no movimento, ainda que essa incorporação também implicasse diferentes conotações, principalmente no cotidiano. Os moradores tendiam a acionar a categoria “sem-teto” cotidianamente de maneira jocosa, a partir da apreensão de seu caráter estigmatizante, além de se referirem ao conjunto de moradores da ocupação ou de integrantes do MSTC. As queixas recorrentes sobre as difíceis condições de vida e de trabalho, frequentemente dificultadas pelas ações da polícia como a atividade de camelô, além da dificuldade de se obter casa própria a partir dos baixos rendimentos eram explicadas muito mais pelo fato dessas pessoas serem “pobres” do que por serem “sem-teto”. Percebe-se, assim, situacionalmente e contrastivamente, o acionamento identitário da categoria pobre, muito mais utilizada do que sem-teto. Se havia, por vezes, relações de alteridade dos moradores com a coordenação, identificando o movimento como exterior às famílias, em outras situações era possível perceber modulações desse vínculo de pertencimento ao movimento. A Promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital do Ministério Público do Estado de São Paulo, como entrou com vários pedidos de despejo, adquiria situacionalmente um caráter aglutinador.17 Representada por muitos moradores como uma mulher insensível, era tida como a inimiga do “nosso” movimento. Havia, assim, além do fator aglutinador, a construção de uma contra-imagem (BHABHA, 2005) às famílias da ocupação, servindo de coletivização do movimento, ou seja, o movimento era pensado enquan17
É importante frisar que houve acentuadas variações no poder judiciário em relação à ocupação. As ênfases dos processos jurídicos recaiam ora no seu caráter apenas ilegal, defendendo o despejo imediato das famílias, ora no caráter precário das condições de habitação, assim como, por vezes cobravam a necessidade de um atendimento definitivo e digno para suas famílias. Para mais detalhes, ver Filadelfo (2009).
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to sujeito coletivo e não mais apenas como coincidente com a coordenação.18 Esse tipo de representação da promotora pode ser generalizado para o chamado “governo” que, muitas vezes, é pensado enquanto um bloco unívoco. O governo é acionado enquanto uma contra-imagem (BHABHA, 2005) ao movimento, responsável pela conformação da imagem do MSTC que reforça certas características situacionalmente sob a forma de um grupo social. O que pode ser elucidado por alguns comentários freqüentes de alguns moradores, como: “Se desocupar, vai aumentar a população de rua. O governo prefere deixar o prédio com rato e barata do que a gente” (ou, às vezes, com “pobre”, “necessitado”, “sem-teto”).19 Assim, a categoria “sem-teto” é percebida a partir das situações e discursivamente, refletindo a reivindicação pela casa própria a partir da ausência e de maneira contrastiva ao poder público. A ação do movimento se faz necessária uma vez que faltaria ao poder público o esforço de atender essas famílias através de programas habitacionais no centro da cidade. Desse modo, normalmente não é tanto a categoria “sem-teto” que é acionada contrastivamente ao Estado, mas a ação ou luta do movimento por moradia. Com efeito, mesmo essa ressonância identitária ocorria apenas em algumas situações, pois estavam em jogo, além da já citada multiplicidade identitária, diferentes acepções sobre o pertencimento ao movimento, o cumprimento das regras internas da ocupação e práticas que escapavam ou eram capturadas dentro da estrutura pré-determinada de controle interno da ocupação. A seguir, mostro como havia um esforço de coletivização dos moradores da ocupação, no sentido de seguir as regras internas a fim de melhorar as condições de coabitação na ocupação e de favorecer as negociações com o poder público. 18
“Cada objetivo é construído sobre o traço daquela perspectiva que ele rasura; cada objeto político é determinado em relação ao outro e deslocado no mesmo ato crítico” (BHABHA, 2005, p. 53). A contra-imagem do Estado é, assim, definidora de uma identificação política do MSTC.
19
Embora em muitos momentos, o Estado fosse singularizado, minha pesquisa revelou que ele também obedecia a princípios de segmentaridade nas suas relações com o MSTC. Havia uma complexa articulação entre os dois polos dessa relação a partir de fatores como vínculos partidários, relações pessoais, diferentes programas habitacionais, as diferentes funções inerentes aos três níveis de governo e às diferentes instituições públicas responsáveis por programas habitacionais.
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Controle interno do cotidiano Quando iniciei minha pesquisa de campo na ocupação Prestes Maia, as 468 famílias já estavam instaladas nos dois blocos. Seu cotidiano já estava condicionado pelas regras internas aprovadas em assembleia geral com todos os moradores.20 Na portaria do prédio era possível observar a normatização da organização interna visível num regulamento, afixado na entrada, que denotava normas rígidas de comportamento coletivo, como controle de horários de entrada e saída e da esfera privada das famílias moradoras, como a proibição de bebidas alcoólicas e de brigas familiares. Para ser aceito como morador da ocupação, era preciso que o interessado não tivesse problemas de dependência alcoólica e de drogas e que apresentasse certificado de que não possuía antecedentes criminais. Ele deveria participar inicialmente de algum grupo de base e morar primeiro nos últimos andares, exceto idosos e deficientes, já que o prédio não possuía elevador. O texto do regulamento se iniciava da seguinte forma: O objetivo deste Regulamento é estabelecer regras claras que garantam condições dignas de convivência coletiva às famílias moradoras. Este Regulamento após ser discutido e aprovado em Assembleia Geral, torna-se a LEI DA OCUPAÇÃO. [maiúsculas do próprio texto]
Além da coordenadora geral da ocupação e de um vice coordenador geral, a coordenação da Associação de Moradores da Prestes Maia era composta por coordenadores dos andares. Para cada andar foi designado um coordenador, responsável por mediar conflitos e garantir o respeito ao regulamento interno e o rodízio de limpeza dos espaços comuns, inclusive dos banheiros. Todos os dias havia limpeza, e cada família era responsável pela limpeza em um dia. Os horários eram definidos pela própria família, a partir de sua disponibilidade 20
Essas regras não foram criadas para essa ocupação específica, mas guardam continuidades normativas com outras ocupações centrais, do MSTC e de outros movimentos de moradia. Também se aproximam da organização interna de mutirões autogestionários de construção de moradia em bairros periféricos cuja gestão e execução ficava a cargo das próprias famílias, integrantes dos movimentos de moradia que haviam conquistado o atendimento. Em todos esses casos, os principais objetivos dessas regras são próximos: boa convivência, qualidade de vida, dignidade de habitação e trabalho e favorecer negociações com o poder público.
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de tempo. Os próprios moradores, assim, passaram a ser responsáveis por toda a limpeza e manutenção do espaço, o que o tornou mais adequado a comportar tantos residentes. Regularmente ocorriam as reuniões da coordenação da ocupação, no subsolo do prédio, para decidir encaminhamentos e decisões a respeito das questões internas, principalmente em relação ao desrespeito do regulamento interno. Tanto coordenadores como moradores consideravam esses momentos muito importantes para a organização interna. Além dessas reuniões, havia assembleias com a participação de todos os moradores para passar informes e esclarecimentos sobre as contínuas ameaças de despejo e negociações com o poder público, e sobre decisões referentes a manifestações e outras ações coletivas do MSTC (isoladamente ou com outros movimentos de moradia e aliados políticos). A maioria dos moradores não participava das reuniões na sede do movimento, o que transformava as assembleias em momentos importantes para a transmissão de informações e decisões tomadas pela coordenação. O desrespeito ao regulamento interno podia levar a formas de punição do morador, desde uma advertência à expulsão da ocupação. O termo comumente usado para quem fosse expulso era “excluído”. Assim, tive acesso a muitos relatos sobre pessoas “excluídas” devido a problemas com bebida, brigas familiares e entre vizinhos, problemas com drogas e muitos outros casos, tratados como desrespeito à organização interna. Além do regulamento interno afixado na portaria, por vezes a coordenação geral produzia cartazes reforçando certas regras específicas que vinham sendo desrespeitadas. Como exemplo, reproduzo dois textos afixados nos diferentes andares: Comunicamos a todos moradores, se forem pegos mexendo em qualquer parte elétrica do prédio sem autorização, o mesmo será punido ou até mesmo com a exclusão do prédio. Ass.: A coordenação geral Estamos comunicando a todos moradores que a partir desta data o andar que for pego fazendo estoque de lixo ou jogando pela janela vai ser autuado com uma multa no valor de 150,00 reais.
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A higiene deste prédio faz parte de um respeito com os outros companheiros. Ass.: A coordenação geral
A coordenação geral, portanto, era a instância que decidia coletivamente o tipo de punição a ser empregada. Mas antes disso, os diferentes coordenadores exerciam esse papel de controle nos seus andares. Os coordenadores dos andares, por exemplo, tinham especial atenção ao controle das brincadeiras das crianças. Elas não podiam jogar futebol, andar de patins e “bagunçar” muito, por causa da organização, mas, também devido aos fios que atravessavam os espaços comuns, para evitar risco de incêndios. E em geral, todos tinham que “deixar tudo organizado do jeito que achou”. Afixado num andar, por exemplo, encontrava-se o seguinte aviso, assinado por sua coordenadora: Todos os moradores: Fazer a limpeza do andar no seu dia certo. Quem não fizer a limpeza vai para a coordenação. Por favor, manter os dois banheiros e a lavanderia limpos e organizados. Não deixar restos de comida na pia nem nos ralos para evitar entupimentos. Limpeza é saúde.
A expressão “ir para a coordenação”, que aparece no texto acima, era amplamente utilizada e costumava ser o primeiro aviso para que ações de desrespeito ao regulamento interno não se repetissem. Por outro lado, as qualidades pessoais dos coordenadores acabavam por ser acionadas enquanto condicionantes de uma melhor ou pior organização ou limpeza dos diferentes andares. Os andares mais sujos e sem tanta organização seriam consequência de certo descaso de seus coordenadores. No terceiro andar do bloco A, por exemplo, coordenado por Tia Romilda,21 ela me disse que seu andar se distinguiria dos 21
Tia Romilda era assim chamada por ter sido cozinheira da cozinha comunitária inicial da ocupação, antes da divisão dos espaços, o que segundo ela fez com que muitos a tratassem de maneira carinhosa. Frequentadora da Igreja Universal do Reino de Deus, morava com seu marido muito doente e tinha como rendimentos apenas sua aposentadoria. Frequentemente se queixava da falta de programas habitacionais para idosos em que ela pudesse comprar de fato seu imóvel, ter “sua casinha”. Segundo ela, os programas contam com contribuições mensais que, ainda que reduzidas, não compram o imóvel, seriam espécies de “aluguéis”. Usou como exemplo a Vila do Idoso no bairro do Pari, da prefeitura, que atenderia idosos
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demais por ser muito limpo e bem cuidado, já que ela seria “rigorosa” na cobrança do rodízio de limpeza. Assim sendo, havia um contínuo esforço por parte da coordenação de coletivizar as diferenças internas no sentido do respeito dessas regras, esforço também partilhado por muitos dos moradores da ocupação. Nesse sentido, as principais críticas dos moradores em relação a seus vizinhos costumavam ocorrer justamente quando aconteciam desrespeitos a esse regulamento interno, como sujeira, brigas e não pagamento das taxas mensais.22 Os autores dessas críticas atrelavam diretamente o respeito às regras e ao coletivo como fundamental para a obtenção da casa própria no centro: “Como é que quer morar no centro se não consegue respeitar os vizinhos, se não tem higiene, se não respeita a limpeza do prédio?”. A relação estabelecida pela frase acima entre o respeito ao controle interno e a obtenção da casa própria no centro indica a necessidade de politização do cotidiano da ocupação. Ou seja, é impossível pensar o cotidiano da ocupação sem considerar o fato dessas famílias serem integrantes de um movimento de moradia que visava obter-lhes atendimento por um programa habitacional. Para que as negociações com o poder público fossem satisfatórias, era necessário que a ocupação servisse de modelo de organização, freqüentemente apontado pela coordenação como importante para o atendimento no centro e não na periferia, como será discutido a seguir.
A politização do cotidiano Oferecer “condições dignas de convivência coletiva”, “qualidade de vida” e “bem estar” às famílias costumava ser a principal justificativa enunciada pelos coordenadores para essa gestão interna das famílias, mas tais práticas também eram utilizadas com o objetivo de legitimação pública do MSTC, além de favorecer as negociações com o poder público. com rendimentos de um a três salários mínimos. Ela se referia ao Centro como “coração de Jesus” por ter tudo de que precisasse, ainda que dissesse que o “verdadeiro centro” era na Paulista, pois era onde estavam os “magnatas”. 22
Havia uma taxa de condomínio de R$ 50,00 para os gastos mensais como despesas com manutenção, material de limpeza, água e luz.
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Na ocupação Prestes Maia, o número de 468 famílias era amplamente divulgado em qualquer manifestação, pela mídia e em qualquer mesa de negociação. Essa divulgação servia não apenas para definir a quantidade da demanda a ser atendida pelo poder público como tratar “família” como uma categoria moral, ou seja, a fim de sensibilizar tanto a mídia como o poder público, assim como pessoas que poderiam contribuir para uma maior agilidade do processo de atendimento.23 Por outro lado, o MSTC realizava, na ocupação, esforços contínuos de orientação das condutas dessas famílias de maneira a favorecer o atendimento pelo poder público. Um exemplo disso pode ser dado a partir das negociações em torno do atendimento às famílias da ocupação, quando já havia sido conquistado e definido. As negociações se davam principalmente entre Ivaneti de Araújo e Walter Abraão Filho, Diretor Comercial da COHAB, instituição habitacional de alcance municipal responsável pelo cadastramento de todas as famílias e da execução do atendimento. Ivaneti relatou numa assembleia de moradores da ocupação Prestes Maia sobre uma reunião com Walter, que teria sido muito “produtiva”. Discutia-se, então, como se daria o atendimento das famílias que sairiam da ocupação e morariam em prédios comprados e reformados no centro de São Paulo. Na reunião, Walter Abraão disse que os prédios comprados não poderiam ser “favelizados”. Ivaneti contrapôs a esse risco o que ela chamou de “briga” durante anos na ocupação para combater lixo, ter higiene e não ter varal de roupas de frente para a avenida. Muitas pessoas, nesse momento, queixaram-se do acúmulo de lixo que tornaria a ocupação “mais feia”. Ivaneti alertou que se as pessoas não tomassem cuidado nos novos locais de moradia, a vizinhança poderia fazer um abaixo-assinado para retirá-las. Disse que gostaria que as pessoas não fossem tratadas como “sem-teto” ou “ex-sem-teto”, o que demonstra o acionamento situacional do termo a partir de uma carga simbólica depreciativa e estigmatizante. Em outro momento, houve uma situação em que conflitos se instaura23
A exemplo de José Celso Martinez Correia, ator e diretor do teatro Oficina, e Eduardo Suplicy, senador do estado de São Paulo pelo PT, que estiveram na ocupação e se manifestaram publicamente a favor das “famílias necessitadas”.
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ram em relação ao atendimento no centro da cidade dos “sem-teto”. Quando já havia ocorrido a desocupação da Prestes Maia, continuavam as negociações sobre compras de prédios com verba federal para o atendimento de parte das famílias da ocupação. Um dos prédios se localizava na Rua Avanhandava, o que gerou problemas nas negociações para que famílias do movimento lá se fixassem.24 Ivaneti explicou como nessa rua havia “restaurantes chiquérrimos”, com “calçada privatizada” e que teve que ouvir na mesa de negociação que se as famílias da Prestes Maia se mudassem para lá, ia ter pagode, som alto e outras práticas que não condiriam com a frequência local. Ela se mostrou muito indignada e triste com essas afirmações e a não aceitação pelo entorno do prédio. Em outra ocasião, disse sentir “vergonha e dor no coração ao mesmo tempo” pela estigmatização sofrida, mas acabou aceitando não reivindicar o prédio, porque ela havia sido informada sobre até mesmo um possível abaixo-assinado para retirar as famílias. E, por último, transcrevo trecho de uma entrevista com Solange, uma das principais coordenadoras do MSTC, sobre a importância do controle interno da ocupação, que sintetiza as principais análises aqui realizadas: C: Lógico que tem essa preocupação com a qualidade de vida das pessoas que estão lá, mas isso também influencia nas negociações? S: Nas negociações. Porque se você não mostra organização, você não negocia. Para dar um exemplo aí, tem o pessoal [de outro movimento]. Quando ele deixava tudo sujo, que entrava droga e tudo, ele não tinha nada. Hoje não, ele consegue alguma coisinha [referência a atendimentos habitacionais] porque tem mostrado organização. Se você vai para a mesa, o que a gente defende numa mesa de negociação? Que são famílias de baixa renda, mas são trabalhadores que querem moradia digna. Agora se o cara mostra, quando tem visita, que o prédio está uma imundície, que as crianças estão abandonadas... Que tipo de organização é essa? Que tipo de credibilidade eu posso levar para o governo? Então a gente bate muito forte, não só nas ocupações que estão hoje, mas sempre foi que tem que ter organização. Isso para o bem-estar das 24
A revitalização da Rua Avanhandava, capitaneada pela família Mancini, costuma ser apresentada como um exemplo bem sucedido de “revitalização” do centro de São Paulo, por atrair uma frequência de setores de maior poder aquisitivo. Ver, a esse respeito, Folha de S. Paulo, 19/1/2007.
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famílias, que já estão morando num lugar que não é o ideal e se não tiver uma higiene, uma organização, não vai para a frente. Vira baderna. Já pensou um prédio, você entra no prédio e não tem portaria? É a casa da Mãe Joana, entra quem quer. Então, existe regulamento nas ocupações para ser seguido. E tem aqueles que nunca seguem, aí começam a receber as advertências. Então, é o que eu falo, o movimento não exclui ninguém, a família se exclui porque não segue as regras e regras são feitas para serem cumpridas. Se todo mundo tivesse uma formação, primeiro não estaria numa ocupação. Porque se todo mundo tivesse, e é merecido, estaria todo mundo estudado, com um bom emprego, sem precisar recorrer, não existiria nem movimento. Como não tem isso, a gente procura fazer o melhor. Então, muitas das famílias que vêm com a gente não têm formação, mas formação não é sinônimo de educação e respeito. Então, a gente procura fazer com que haja respeito. É o que eu sempre falo, morar em coletividade é difícil, então tem que ter respeito com o vizinho, tem que ter respeito com a própria pessoa, senão não vai para frente.
A partir das análises sobre o controle interno e os exemplos logo acima, percebe-se como a esfera cotidiana e privada era fortemente regulada pelas lideranças num esforço de legitimação pública do movimento, além de oferecer condições de bem estar às famílias. Isso indica que as dimensões políticas e cotidianas das práticas e representações do movimento articulavam-se de forma a pautar suas ações junto ao poder público, notadamente as de negociação para o atendimento das famílias sob sua coordenação por programas habitacionais. Assim, havia um esforço de moralização (DONZELOT, 1986) dessas famílias, no sentido de moldar seus comportamentos, suas condutas para que não mais fossem considerados sem-tetos ou favelados, para que pudessem ser respeitados e obter atendimento em locais e empreendimentos dignos. Ou seja, o MSTC é responsável pela construção da dignidade dos moradores da ocupação para que eles tenham direito à moradia digna. Nesse sentido, muitos discursos dos movimentos de moradia classificam essas famílias como “famílias de trabalhadores”, como é possível verificar na narrativa de Solange acima. O uso de “trabalhadores” também corresponde a uma moralização dessas famílias, uma vez que aquela categoria se opõe a termos estigmatizantes e de
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moral considerada inferior como “bandidos” e “vagabundos”.25 As categorias acionadas pelo movimento são, dessa maneira, percebidas em relação, sempre contrastivamente a outras categorias. Pode-se também perceber como há um esforço contínuo do MSTC contra a possibilidade de incriminação (MISSE, 2008) de suas práticas. Esse esforço corresponde a uma prática política, de regulação do cotidiano, que busca combater ações do poder público que visariam, na perspectiva das lideranças, a “criminalização dos movimentos sociais”, deslegitimando suas ações e impedindo o atendimento habitacional no centro de São Paulo, em favor das periferias paulistanas, territórios privilegiados historicamente para políticas públicas habitacionais.26 Com efeito, todos os movimentos com os quais entrei em contato consideram que sua “força política”, ou seja, sua capacidade de obter vitórias no atendimento habitacional de suas famílias, é diretamente proporcional à maior organização e mobilização de suas famílias. Há, assim, um verdadeiro governo (FOUCAULT, 1995 e 2008; DONZELOT, 1986) das famílias por parte da coordenação dos movimentos de moradia, no sentido de conduzir a conduta de suas famílias, de lhes oferecer qualidade de vida, de estruturar suas práticas. No entanto, é claro que essas famílias têm uma agência fundamental nesse processo, não são mero alvo passivo da ação dos coordenadores, mas a todo tempo questionam, apoiam, participam ou respaldam suas ações e seu papel enquanto seus representantes.
25
Para uma discussão sobre os sentidos morais e políticos em torno da articulação plástica e variável entre as categorias “trabalhadores” e “bandidos”, ver Feltran (2007).
26
Chalhoub oferece uma interessante genealogia dessas práticas de estigmatização e criminalização das classes populares e de seus arranjos habitacionais. Analisando a destruição do Cabeça de Porco, cortiço carioca, em 1893, o autor o considera um marco histórico de “toda uma forma de conceber a gestão das diferenças sociais na cidade”, que parte de dois pontos fundamentais: a aproximação descritiva entre classes pobres e classes perigosas e o surgimento da ideia de que a gestão urbana é pretensamente objetiva, técnica e científica, obscurecendo seus reais interesses políticos e classistas (CHALHOUB, 1996, p. 19-20).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS A ocupação Prestes Maia durou até meados de 2007, quando as famílias foram atendidas e realocadas. O atendimento às famílias foi resultado de uma, até então, inédita articulação de instituições responsáveis por programas habitacionais dos três níveis de governo – federal, estadual e municipal – que ofereceu duas opções aos moradores da Prestes Maia: empreendimentos já prontos em Itaquera, na periferia paulistana, ou obter atendimento no centro de São Paulo (cf. FILADELFO, 2009). No entanto, se as famílias que optaram por Itaquera foram atendidas rapidamente, as que optaram por continuar no centro foram atendidas muito lentamente, seja por impasses na liberação de verba, seja por preços elevados para a compra de imóveis no centro. Apesar dessa lentidão, a coletivização das famílias moradoras da ocupação é tida por muitos dos integrantes do MSTC como um dos principais fatores que levaram ao atendimento. Coletivização ocorrida pela convergência de heterogeneidades e pelos efeitos do controle interno do cotidiano da ocupação, responsável por uma maior visibilidade e legitimidade pública e política da Prestes Maia. Embora as relações internas à ocupação não tenham sido as únicas responsáveis, pois como alertado anteriormente, a constituição do MSTC enquanto um sujeito político é condicionada por múltiplas outras relações, a configuração relacional aqui abordada pôde lançar luz às ocupações como estratégia política fundamental para o atendimento pelo poder público. O conceito de segmentaridade complexifica essas relações porque permite vislumbrar os processos contínuos de oposição e composição não só responsáveis pela elaboração de um movimento de moradia ou conjunto de moradores residentes da ocupação, como outras relações de composição que extrapolam essas fronteiras. Ou seja, a luta por moradia no centro de São Paulo comporta uma ampla rede de relações que em determinadas situações se condensa em movimentos de moradia, mas que não se limita a eles. Nesse sentido, mesmo a partir de um lócus etnográfico específico, a ocupação Prestes
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Maia, foi possível apreender parte dessa ampla rede de relações em torno da questão da moradia popular no centro de São Paulo, da qual o MSTC é uma das coletividades possíveis.
Abstract The Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) is an urban social movement for housing which articulate low income families with the aim of being attended by governmental housing projects. This article seeks to discuss ethnographically the articulation between the everyday and political dimensions of the pratics and discourses of MSTC at an occupied building by the movement in downtown São Paulo. The purpose is to understand how efforts of collectivization are undertaken for the production of the MSTC as a collective subject. For this purpose, I address three aspects of the occupied building: i) narratives about its beginning in which there is a good appreciation about collective actions; ii) the heterogeneity of their residents and how this converges in only one collectivity; and iii) the control of occupied building everyday by its coordination to promote both the welfare of its residents as the processes of negotiation with the government. Key-words: Collectivization; downtown São Paulo; Political Anthropology; Urban Anthropology; urban social movements for housing.
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O “uniforme” e o “copo”:entrecruzamentos (des) necessários Elizabeth Espindola Halpern Doutora em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ, Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ, Psicóloga e Capitão-de-Fragata da Marinha do Brasil.
Ligia Maria Costa Leite Doutora em Comunicação pela UFRJ e Professora Colaboradora do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
Resumo Uma pesquisa qualitativa etnográfica foi realizada em um ambulatório especializado em dependência química da Marinha do Brasil, no período de 2005 a 2009, e em dois grupos terapêuticos no ano de 2010, durante 24 sessões, por meio de observações participantes. Objetivou-se investigar a extensão da influência da instituição naval na construção do alcoolismo dos pacientes militares. Como resultado, emergiram dois eixos centrais, o “uniforme” e o “copo”: o primeiro diz respeito à profissionalização militar; o segundo refere-se às peculiaridades do consumo de álcool durante o expediente laborativo naval. Por meio de uma análise sócio-histórica, interessou examinar como ambos foram historicamente constituídos, elucidando sua influência sobre os modos de ingerir bebidas no ambiente naval. Concluiu-se que a Marinha brasileira facilita a produção de alcoolistas entre seus integrantes em razão de seu posicionamento ambíguo quanto ao uso de etílicos no trabalho, oscilando entre a punição dos militares e o estímulo, alegando que o consumo de bebidas faz parte das tradições navais. Ademais, os pacientes se amparam no álcool por variadas razões que colocam em questão se o seu uso seria, afinal, (des)necessário. Palavras-chave: Marinha; marinheiros; uniforme; álcool; trabalho.
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INTRODUÇÃO A conexão entre a vida nos oceanos e o consumo de álcool, presente no senso comum, convida à evocação de cenas onde marujos ébrios comemoram seus feitos em tavernas. Passeiam pelo imaginário popular camaradas embriagados e descontraídos, cúmplices de farras clandestinas, braços erguidos para mais outro brinde, após longos dias de labuta no mar. Canecos exigentes diluem desavenças e acentuam parcerias. Tradições etílicas têm acompanhado a vida dos navegantes desde os tempos imemoriais e atualizam-se nas organizações militares, inclusive na Marinha brasileira. O álcool patrocina a agregação, fazendo-se presente de forma oficial e extraoficial, intrínseco aos códigos de ingresso e de permanência em grupos. Entretanto, mais do que no mar, é no ambiente urbano que as sociabilidades relacionadas à ingestão de bebidas alcoólicas são exercitadas de maneira singular pelos marinheiros. A urbe converte-se em palco das relações sociais, espaço reflexivo para pensar as formas de construção das interações sociais, objeto privilegiado que faz parte do escopo de estudo da antropologia urbana. Trata-se de uma dimensão etnográfica do cotidiano, reveladora de um estilo de vida citadino. É no retorno à rua, na hora do “licenciamento” (liberação para sair do trabalho), nos becos e nas esquinas, que homens fardados tecem uma complexa rede de relacionamentos interpessoais. Embora ligados por laços tênues, modos de beber são reeditados cotidianamente, envolvendo-os desde a maquinação, até o momento em que se dirigem aos bares, esquinas, cantos, colos e colchões bolorentos dos cafofos.
Campo Trata-se de uma pesquisa realizada no Centro de Dependência Química (CEDEQ) do Hospital Central da Marinha, ambulatório pioneiro dentre as Forças Armadas brasileiras, criado em 1997, especializado no tratamento a usuários de substâncias psicoativas. A maior parte dos pacientes faz parte da carreira das Praças,1 ou seja, de uma maioria numérica da organização 1
As Praças (usada no feminino) de carreira são distribuídas por Corpos; suas graduações hierárquicas são as seguintes: Marinheiro, Soldado, Cabo, Terceiro-Sargento, Segundo-Sargento, Primeiro-Sargento e Suboficial (CARREIRA DE PRAÇAS – MARINHA DO BRASIL, 2012). Revista Antropolítica, n. 36, Niterói,1. sem. 2014
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naval que compõe a base da pirâmide da cadeia de comando. Os Oficiais,2 raramente se tratam em grupo no CEDEQ, optando por consultas particulares. A terapia em grupo progride ao longo de cinco fases: grupo Motivacional, Fases I, II, III e grupo de Consolidação, duas vezes por semana, com duas horas de duração. O tempo mínimo de permanência gira em torno de um ano e meio, variando conforme a evolução individual. Espera-se que o indivíduo alcance a abstinência e experimente mudanças nas suas formas de agir e pensar. As fases possuem um número mínimo de sessões e de atividades a serem realizadas, embasando-se em técnicas comportamentais, nos 12 Passos e nas 12 Tradições dos Alcoólicos Anônimos. Por influência dessas diretrizes, o CEDEQ privilegia o atendimento em grupo, acreditando que a ajuda mútua facilita a superação da adicção. O grupo Motivacional, a primeira etapa do tratamento, objetiva estimular o paciente a aderir ao tratamento, encorajando-o a lutar pela sua abstinência e recuperação. Os pacientes observados, cerca de 10 integrantes em cada grupo, eram Praças, desde Marinheiros a Suboficiais, na faixa etária entre 21 e 62 anos.
Método Este artigo resulta de uma pesquisa etnográfica densa (HUGHES, 1960; GEERTZ, 1973/2008) sobre a influência da MB na produção do alcoolismo dos pacientes assistidos no CEDEQ. Realizou-se uma observação participante (MALINOWSKY, 1922/1984) neste Ambulatório, de 2005 a 2009, e em dois grupos terapêuticos, em 2010, durante 24 sessões. No entanto, o aprofundamento suscitado pela própria investigação convidou à realização de uma análise sócio-histórica a respeito da profissionalização e modernização da instituição militar naval, sobre a construção do modelo de militar em vigência e suas relações com os Estados nacionais. Ademais, ela ajudou a compreender como o uso de bebidas alcoólicas foi sendo normatizado e reprimido, dentro de uma estratégia de controle dos corpos, fundamental para a consolidação da identidade militar. Permitiu analisar como o con2
A ordenação hierárquica dos Oficiais é feita por círculos e, dentro deles, por postos, o mais alto é o de Almirante-de-Esquadra, o mais baixo o de Segundo-Tenente.
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sumidor de etílicos, inserido no universo militar, começou a ser identificado como alcoólico e, ao mesmo tempo, como desviante de um determinado padrão idealizado. Tal exame contribuiu para conferir uma dimensão ampliada à discussão sobre o consumo de álcool no trabalho naval, agregando importantes fatores que participam da produção de “bebedores navais”, conferindo destaque aos aspectos históricos, sociais e culturais que contribuíram para a configuração atual da MB e de seus profissionais. Assim, determinados conceitos tais como: pátria, guerra, Marinha do Brasil, militar, nação, dentre outros, precisaram ser examinados a fim de não naturalizá-los. Vale ressaltar que não houve um compromisso com a “verdade” dos acontecimentos buscando localizá-la ou comprová-la, acompanhando a cronologia dos fatos, mas sua relevância face aos relatos dos pacientes. Considerando que a pesquisadora fez parte do próprio campo da pesquisa, como Psicóloga e Encarregada do CEDEQ, ficou evidente que sua neutralidade seria impossível. Mais do que a precisão da informação, buscou-se a profundidade da penetração e a participação ativa da pesquisadora e dos indivíduos observados (BAKHTIN, 1992), procurando compreender as possíveis relações entre os sujeitos envolvidos e o contexto, integrando o individual com o social, processo intermediado pela pesquisadora como ser social, parte da investigação (FREITAS, 2002). Algumas das referências bibliográficas foram obtidas de fontes primárias, enquanto outras, de secundárias, mormente textos relativos à bibliografia da disciplina cursada pela pesquisadora Historiografia do recrutamento militar ministrada pelo Professor Vitor Izecksohn. As informações foram ressignificadas com a escuta dos pacientes, colocando em marcha um processo de aprendizagem e de transformações para todos os envolvidos, permitindo rever conceitos cristalizados pelo senso comum, até então apartados de uma reflexão crítica. Por conseguinte, para examinar os efeitos do consumo do álcool no ambiente laboral na atualidade decidiu-se por retroceder ao tempo do alvorecer da Era Moderna para iluminar os significados da conexão entre o trabalho naval (“uniforme”) e a produção do alcoolismo (“copo”).
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O “uniforme” O “uniforme” representa a profissionalização do militar que se fez ao longo de uma trajetória aqui nomeada de enfardamento (HALPERN; LEITE, 2014). Trata-se de um processo de assimilação dos valores e preceitos militares até conformarem uma “mentalidade” ou um “espírito”, capaz de fazer do indivíduo um “membro” do “corpo” militar e servidor da pátria. O enfardamento se desenrola de duas formas: por um lado, ele se atualiza diariamente no seio institucional por meio de diversas estratégias de formatação aplicadas no recrutamento, seleção e treinamento ao longo da carreira, incutindo os valores e preceitos militares, formas de ser e de se comportar. Por outro lado, o enfardamento ocorreu no transcurso da história, desde quando o audaz marujo que enfrentava os mares desconhecidos em busca de tesouros se converteu em um integrante fardado da pirâmide hierárquica, especializado no manuseio de equipamentos de navegação sofisticados. O exame sobre as fundações da instituição naval e do seu profissional por meio da análise sócio-histórica tem em conta que ambos, da forma como passaram a ser concebidos, têm uma trajetória histórica e uma origem e bases sociais. Acredita-se que ambos sejam efeitos da racionalidade científica moderna, cujo paradigma mecânico tornou-se o padrão de inteligibilidade para a compreensão do mundo, dos indivíduos e seus relacionamentos. Subjacente à palavra “uniforme” identifica-se o surgimento de uma cosmovisão que se tornou hegemônica no mundo contemporâneo ocidental com a Renascença, (LUZ, 1988). Trata-se de uma terminologia historicamente produzida, derivada da racionalidade presente naquele contexto que foi palco das transformações nas relações de poder, sociedade, política, economia e cultura, intensificadas com a Revolução Industrial. Tais alterações ocorreram nesse recorte sócio-histórico não apenas de forma objetiva, com o estímulo à exploração das terras longínquas, como também de maneira subjetiva, afetando os modos de ser, pensar e agir dos indivíduos, impregnando o campo discursivo. A presença de certas terminologias e categorias foi um dos efeitos dessa cosmovisão, geralmente associadas às metáforas das máquinas: sistemas, circuitos, dispositivos, peças e aparelhos que, por sua vez, se atualizaram em diversas instituições.
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O “uniforme”, como indumentária militar, foi idealizado para trajar o soldado-cidadão, integrante do exército nacional permanente. Trata-se de uma derivação da lógica imbuída da ordem e civilização, visando o controle e disciplina dos indivíduos, comprometida com o positivismo lógico e influenciada pelo paradigma mecânico newtoniano. O soldado-cidadão substituiu o emprego dos mercenários dos exércitos temporários dos Estados dinásticos, onerosos e pouco confiáveis (TILLY, 1996). O exército moderno foi um reflexo do Estado, considerando que o fortalecimento da unidade nacional dependeria da assimilação da ideia da obrigação militar, acatamento às leis e pagamento de impostos (PALMER, 2001). Por conseguinte, os Estados fizeram as guerras, e as guerras fizeram os Estados, já que elas ajudaram os governos a construírem suas bases institucionais (TILLY, 1987). A guerra foi um pretexto para a conscrição nas fileiras, voluntária ou forçada, cimentando a concepção inovadora de patriotismo, “ideia-argamassa” que deu solidez ao exército nacional, atribuindo um elo transcendental entre a pátria e os soldados, como obrigação moral e dever universal. O conceito historicamente construído de pátria tinha como meta conclamar o povo a demonstrar um amor incondicional a ela, em um apelo à sua emotividade, acionando a dimensão moral dos combatentes para oferecer, sem resistência, a própria vida em sacrifício (GILBERT, 2001). Nesse contexto, o governo central procurou homogeneizar o povo impondo o emprego de uma mesma língua, religião, moeda e instrumentos legais, a materialização dos símbolos nacionais, construindo sistemas de comércio, transporte e comunicações, buscando o fortalecimento dos seus vínculos com os cidadãos. Para convencê-los a se lançarem em combates, o Estado deveria “(...) controlar suas multiplicidades, utilizá-las ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua atividade graças a um sistema de poder suscetível de controlá-los” (FOUCAULT, 1979, p. 105), tais como peças da engrenagem que deveriam ser treinadas. Para tal, criou-se uma estrutura de comando calcada na hierarquia e disciplina, condição de funcionamento da organização militar. A uniformização dos cidadãos afigurou-se como uma estratégia de controle social, não apenas para que eles pudessem permanecer nos exércitos,
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como também para não fugirem do recrutamento. O Estado precisava das organizações militares para intervir nas populações. Embora haja uma tendência a considerar que o Exército e a Marinha seriam instituições muito antigas e perenes, a constituição do Exército e da Marinha se fez no decorrer de um longo caminho, até que ambos tivessem uma configuração com uma estrutura e características organizacionais, com uma identidade nacional. A formação da instituição naval e a de seus profissionais são produções históricas; elas não ocorreram de modo linear, ao contrário, foram atravessadas por “avanços” e “rupturas”. Ambos tinham uma função social naquele contexto. “É a situação de mudança de uma comunidade inteira que cria as condições para o surgimento de uma nova ocupação e determina o curso de seu desenvolvimento” (ELIAS, 2006, p. 89). Este autor esclarece que a Marinha e seu profissional resultaram de um processo de tentativa e erro que durou mais de 100 anos, procurando superar tensões entre grupos, desajustes e discrepâncias entre as instituições e as necessidades em vigor. Somente após alcançar certo grau de ajustamento entre as demandas institucionais e sociais, superando conflitos internos, a profissão e a instituição naval foram cristalizadas. A despeito da supremacia naval do Império Britânico a partir do final do século XVI, na Idade Média ainda não havia uma “Marinha”, o mesmo contingente militar era usado nos combates em terra e no mar. As embarcações destinavam-se aos propósitos comerciais, de pesca e bélicos, servindo apenas de transporte às ações beligerantes dos gentlemen acompanhados de seus escudeiros, uma associação temporária. Esse quadro foi alterado quando passou a haver a luta pelo domínio das rotas marítimas recém-descobertas e pela posse das terras além-mar, obrigando a Inglaterra e outras nações a desenvolverem recursos marítimos para enfrentarem as rivalidades no mar. A expansão imperialista inglesa promoveu a divisão das forças militares em terrestres e navais, sendo que as operações marítimas foram divididas quanto aos seus objetivos, comerciais e militares. “Segmentos da frota e do Exército unidos e finalmente fundidos formaram, no curso do tempo, um novo establishment especializado, uma esquadra militar conhecida como Marinha” (ELIAS, 2006, p. 94). O estágio inicial do nascimento do “oficial-de-Marinha” britâni-
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ca ocorreu em meio a um emaranhado de injunções e disjunções entre grupos distintos e, ao mesmo tempo, interdependentes. Inexistia um quadro institucional impessoal que caracterizou a potência militar naval, a ser nomeado de “Marinha” após cerca de dois a três séculos. No Brasil, conquanto já houvesse um poder naval desde 1549, ele era comprometido com os interesses da metrópole e da classe dominante colonial, predominantemente lusitano (CARVALHO, 1928). Embora a Marinha seja considerada a mais antiga das Forças Armadas do Brasil, sua antiguidade parece se justificar por ter sido derivada da Marinha Portuguesa, com “(...) a fixação, em solo brasileiro, do embrião de onde se originaria, década e meia após, a Marinha Imperial brasileira” (CAMINHA, 1974, p. 7). Apesar de parte da estrutura, pessoal e navios da Marinha ter sido importada de Portugal, o núcleo da futura Marinha do Brasil não se configurava como uma instituição com um aparato administrativo-burocrático. As Forças Armadas foram uma novidade histórica, tanto do ponto de vista da sua estrutura e características organizacionais, como no que se refere ao desempenho de suas funções no âmbito da política interna (ARIAS NETO, 2006). Aos poucos, a MB organizou-se para auxiliar o Estado a instituir a ordem política centralista em favor da unificação e centralização institucionais, criando, em 1841, as capitanias de portos nas províncias marítimas do Império, possibilitando a formação de uma reserva naval (SILVA, 2001). O poder naval foi fundamental para ampliar e consolidar a autoridade do governo Imperial sobre a nação que estava em processo de construção, espalhada ao longo de uma extensa fronteira marítima (MARINHA DO BRASIL, 2013). Há que se ter em mente que o Brasil ainda procurava se tornar uma nação, considerando que os Estados-nação seriam sociedades altamente integradas, caracterizadas por uma interdependência funcional progressiva entre grupos humanos e estratos sociais capazes de engendrar tensões estruturais, conflitos e disputas, superáveis ou não. Algumas sociedades europeias tornaram-se Estados-nação a partir da segunda metade do século XVIII, com uma figuração inspirada nos ideais iluministas, baseada em classes cujos membros seriam iguais perante a lei e desiguais apenas social e economicamente. Com
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efeito, “(...) eles fizeram-se “nacionais” em conexão com mudanças específicas na distribuição de poder entre governantes e governados, e entre os estratos sociais de suas sociedades – o que afetou a própria natureza da estratificação” (ELIAS, 2006, p. 159-160). Em contraste, apesar da proclamação da independência no Brasil, a nação demorou a ser construída justamente por falta dessa integração. Segundo Carvalho (1995), não havia como consolidar uma identidade nacional se grande parte da população de 7,5 milhões de habitantes se mantinha apartada dos mecanismos de participação política por não gozar das garantias dos direitos civis; cerca de 30%, era composta de escravos, seus habitantes eram predominantemente analfabetos e viviam longe das cidades, dispersos na imensa extensão territorial do país, obstando a construção da cidadania. Em meados do século XIX, apesar de possuir uma face externa que indicava que o Brasil era um país organizado, com um congresso eleito, partidos políticos, códigos legais avançados e um poder judiciário organizado, sua face interna revelava a existência de uma nação fictícia. A identidade nacional era formada por oposição ao sentimento antilusitano e anti-inglês. A imagem nacional não emergiu do povo, mas decorreu das visões da elite e dos setores dominantes. A guerra contra o Paraguai, que durou cinco anos, de 1865 a 1870, foi a primeira experiência de vulto que alavancou a criação da identidade nacional, mobilizando grande parte da população, dando relevo à bandeira nacional e aos primeiros heróis militares: Caxias, Osório, Mena Barreto e Barroso. Nesse panorama, a Marinha foi uma peça fundamental para afiançar a constituição e a integridade do aparelho de Estado Nacional brasileiro, assim como para ajudar na formação social brasileira, até porque, no final do século XIX e inicio do século XX, buscava-se reorganizar o espaço físico dos centros urbanos, procurando higienizar, disciplinar e organizar os grupos sociais (LUZ, 1982). Em conformidade com os novos padrões que determinaram o homo urbanus, fruto do processo civilizatório, esperava-se construir as bases das Forças Armadas com o suporte de um contingente supostamente hígido e produtivo, segundo o ethos do trabalho, à luz do sistema de valores e da redefinição política e identitária do sistema republicano.
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Inspirando-se nos modelos europeus, a realização sistemática de exercícios físicos passou a ser incentivada nas Forças Armadas brasileiras em meados do século XIX, visando a “(...) manutenção da boa forma do combatente e ferramenta eficaz de disciplinarização das tropas” (SILVA; MELO, 2011, p. 339-340). Objetivava-se transmutar a imagem negativa dos quartéis, espaço social tido como suspeito e lugar de desonra que abrigava os homens solteiros perigosos. Era preciso amalgamar a ideia de uma vida militar associada ao dever varonil respeitável no imaginário da sociedade. Com efeito, aos poucos, a “escória” dos séculos XVIII e XIX (MCBETH, 1977; COSTA, 1995; MENDES, 1998; NASCIMENTO, 2001), recrutada à força nas esquinas, nos becos e nas tavernas, para ajudar a manter a cidade limpa e organizada, foi substituída pelo novo papel social do militar, mediante sua profissionalização. A Marinha de outrora foi paulatinamente convertida pela racionalidade mecanicista em uma organização administrativa, burocrática e operativa, abandonando a marinhagem. Iniciou-se a substituição dos militares portugueses, dos oficiais de elite e dos mercenários, constituindo-se uma carreira militar que requeria a instrução especializada, dando margem à valorização do talento (SCHULZ, 1994). Gradualmente, os oficiais navais desenvolveram uma mente cientificamente treinada para lidar com a complexidade do navio moderno e sua sofisticação tecnológica (ELIAS, 2006). Na verdade, a Marinha brasileira encontrava-se defasada em relação às outras nações por não ter adquirido os avanços tecnológicos da época, como a propulsão a vapor, em substituição à navegação à vela. Era preciso implantar um programa de reestruturação naval, incluindo a organização marítima e a educação da oficialidade (ARIAS NETO, 2001). Com a República, foram traçados os rumos para o reaparelhamento naval para incorporar as inovações tecnológicas na navegação. Logo, o serviço militar precisou ser visto como “o instrumento de fortalecimento do patriotismo, onde a caserna seria o filtro da ‘índole negativa’ do brasileiro, assinalando três pontos básicos para a existência do patriotismo: consciência, coesão e disciplina” (LUZ, 1982, p. 46). O Exército e a Marinha procuraram convencer o público de que o serviço militar era viril, que os quartéis eram um típico lar nacional e que os mili-
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tares eram uma família vitoriosa. A cultura militar encorajava a hipermasculinidade, estimulando demonstrações públicas através de confrontos violentos e conquistas sexuais. Desejava-se superar o temor da população de vir a sofrer violência sexual, tendo em vista que a homossexualidade era um obstáculo ao recrutamento voluntário (BEATTIE, 2004). O “uniforme” refere-se à profissionalização do militar em consonância com o projeto de edificação do Estado Nacional que, por sua vez, contava com o apoio das emergentes organizações militares que colaboraram para constituí-lo e conservá-lo. Baseando-se no modelo do soldado-cidadão, disciplinado e obediente, foram construídas estratégias no passado, mas que continuam a ser aplicadas e reproduzidas, introjetando a identidade militar na mentalidade do sujeito, configurando o processo do enfardamento. Uma das estratégias adotadas de modelagem, segundo o novo protótipo prescrito, foi atrair menores entre 10 a 18 anos de idade para as escolas militares: Indivíduos embriagados, violentos e pouco responsáveis com a rotina e preceitos militares tornavam-se indesejados pelos oficiais, e para isso estudavam soluções diversas: educação, cortes de salários, recrutamento principalmente de meninos (a fim de formar o “caráter” do indivíduo desde a mais tenra idade) e modificar mesmo a lei.3 Essa última, sem dúvida, foi a mais imediata e a que interveio diretamente nas formas de disciplinamento a bordo (NASCIMENTO, 2010, p. 70). O ensinamento militar precoce tornou-se uma forma de modelar o jovem segundo os costumes e valores dos futuros militares, transmutando a pecha negativa que era associada ao recrutamento, sobretudo na Marinha de Guerra (NASCIMENTO, 2001; 2004). “O distanciamento da família, os salários baixos, o trabalho em alto-mar repleto de perigos e o convívio com pessoas recrutadas à força afugentavam boa parte dos interessados” (NASCIMENTO, 2004, p. 317). Outra tática foi a de constituir uma “reserva naval” para a Armada formada pela “população marítima” após meados do século XIX. Para tal, inten3
Esta lei referia-se à Legislação Penal e Militar da Armada ainda prevaleciam, ou seja, ao Regimento Provisional da Armada e seus Artigos de Guerra.
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sificaram-se os mecanismos de controle sobre o “tempo social” dos pescadores e mareantes, visando seu recrutamento nas capitanias dos portos das províncias marítimas. O interesse em recrutar esses homens livres nacionalizados requeria a destruição de seus modos de vida e cultura tradicionais. O seu ofício, até então regido pelo “tempo natural” e atrelado a uma produção artesanal que desconhecia o tempo do relógio, foi submetido à hierarquia e disciplina, inculcando-se uma nova ética de trabalho em suas rotinas (SILVA, 2001). O “uniforme” sinaliza que o capitalismo socializou e domesticou o corpo enquanto força de trabalho (FOUCAULT, 1979). A noção de tempo desvinculou-se de um “tempo natural”, de um tempo ditado pela natureza; ele passou a ser marcado por horários, controlando os indivíduos (FOUCAULT, 1975/2007). O capitalismo atrelou a noção de tempo ao ritmo do trabalho fabril mecanizado, vinculado às necessidades de produção (SANTOS, 2006). Em resposta, os padrões de normalidade na sociedade moderna ocidental foram definidos; em contraposição, o mau uso do tempo e do espaço seria censurado, não mais como uma exigência feita ao indivíduo, mas à coletividade, de forma compulsória. Em contraste, tudo aquilo o que não era passível de padronização ou uniformização ganhou uma conotação negativa. Desde o final do século XVIII, quando o Estado emergiu como o grande planejador dos processos sociais, o corpo do trabalhador moderno foi sendo apropriado pelo saber médico como objeto de dominação e de controle. A prática médica ocupou um lugar hegemônico, estabelecendo um elo estreito entre higidez e capacidade produtiva (SILVA FILHO, 1990). O indivíduo saudável passou a ser aquele que trabalhava, atendendo às necessidades empregatícias; o “doente” transformou-se no sujeito que não produzia, requerendo cuidados médicos, com vistas à sua recuperação. Interpretada como doença/vagabundagem, em particular entre os integrantes da classe subproletária (habitantes de áreas como favelas e cortiços, que sobrevivem de subempregos), a incapacidade de trabalhar precisaria ser domesticada e controlada com a intervenção médica de modo a sanar tal impossibilidade (DEJOURS, 1987). No Brasil Imperial, a medicina dos higienistas atuou como “polícia médica”, embasada nas noções de “medicina política”, instituindo um controle ao
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cumprir um programa de higiene pública, refletindo a aliança entre medicina e Estado (COELHO, 1999). Ela se baseava na ideia de que a saúde e a prosperidade da família dependiam de sua sujeição ao Estado, sobretudo objetivando converter o universo familiar à ordem urbana. Deste modo, as famílias da elite foram se sentindo responsáveis pela ordem e desenvolvimento do Estado, ajudando a edificar o povo e o Estado brasileiro: “Amor à família e amor ao Estado começavam a identificar-se” (COSTA, 1979, p.148). Adiante, no início do século XX, com a ordem republicana e capitalista no Brasil, foram propostas práticas de intervenção saneadora e reorganizadora do espaço físico das cidades brasileiras, contribuindo para a própria formação social brasileira, no sentido de higienizar, disciplinar e organizar a vida das populações (LUZ, 1982). Chalhoub (2001) assinala que esta obra “civilizadora” buscou identificar os “desordeiros” e os “vadios”, pertencentes às “classes perigosas” do mundo da ociosidade, transformando-os em “trabalhadores”. De modo a não comprometer a rotina de produção, foi preciso separar, de forma rígida, as esferas do lazer e do trabalho, que passaram a ser regidas por horários fixos, sendo preciso exercer uma vigilância permanente sobre o trabalhador. Esse esforço se fez junto com o movimento de urbanização e higienização do espaço público, convocando a medicina social para ordenar a cidade e o indivíduo. Os modos de dominação do sujeito pelo seu corpo ocorreram em várias esferas da vida social, inclusive na vida militar, onde seria preciso: “Adestrar corpos vigorosos, imperativo de saúde; obter oficiais competentes, imperativo de qualificação; formar militares obedientes, imperativo político; prevenir a devassidão e a homossexualidade, imperativo de moralidade” (FOUCAULT, 1975/2007, p. 145). Uma das maiores expressões do poder disciplinador na esfera militar naval do Brasil ocorreu com o emprego dos castigos corporais, amparado pelo Regimento Provisional4 (PORTUGAL, 1796) e seus Artigos de 4
O Regimento Provisional para o Serviço da Armada Real, de 20 de junho de 1796, delegava poderes aos comandantes para manterem a disciplina da esquadra e dos navios. Em anexo, estavam os Artigos de Guerra, de 26 de abril de 1800, que equivaliam a um código penal militar na Marinha portuguesa, compostos por 80 artigos que tratavam das punições para os crimes e faltas dos militares a bordo. Os delitos mais graves deviam ser julgados e sentenciados pelo Conselho de Guerra, ao passo que os mais leves, pelo Tribunal do Convés (NASCIMENTO, 2001).
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Guerra (PORTUGAL, 1800) aprovados pela Coroa portuguesa, inspirados no Código do Conde de Lippe, considerado bárbaro, que foi a base da legislação militar portuguesa e brasileira (SCHAUMBURG-LIPPE, 1763): Durante quase todo o século XIX, essa publicação esteve sobre a mesa de cada um dos comandantes dos navios e quartéis pertencentes à Marinha de Guerra brasileira. Através deles, o comandante encontrava os instrumentos para punir qualquer indivíduo que atentasse contra a disciplina e a polícia nas embarcações (NASCIMENTO, 2001, p. 33). Segundo este autor, as chibatadas perante a guarnição perfilada em formatura tinham objetivos pedagógicos e corretivos, sendo que as expressões de dor e sofrimento com as pancadas mediam em que grau eles teriam sido atingidos. A ausência dessas evidências frustraria o alcance da redenção pelas faltas cometidas, o reconhecimento do poder disciplinador do comandante e o ensinamento através do exemplo. “O castigo físico era, enfim, o purificador do espírito” (p. 44). As frequentes reincidências dos faltosos, denotando insubordinação e desobediência, revelavam as condições de seu recrutamento, especialmente o repúdio à conscrição forçada. Se, por um lado, a grande maioria dos marinheiros assentou praça por imposição das autoridades públicas comprometidas com a “limpeza” urbana, por outro lado, muitos deles eram escravos fugidos que se faziam passar por libertos para se esconderem na “farda”. Embora esse artifício tivesse a pretensão de ser secreto, destaca-se a elevada proporção de negros entre os marinheiros, considerando que, em 1910, seu percentual chegava a ser de 90%. Tanto os marujos, quanto os escravos, eram vítimas do rigor da chibata, porém, diferenciavam-se apenas pelo fato dos marinheiros serem “livres”. Na prática, esses militares também aspiravam à liberdade, uma existência sem os castigos e sem a vigilância exercida até nas horas de lazer, sobretudo por terem sido arrancados das ruas pela truculência policial5 por serem considerados potencialmente perigosos. Com o advento da República, o discurso civilizador se fez presente em âmbito jurídico, nas leis federais e municipais, interferindo no cotidiano da 5
“Até o inicio do século XX, as Forças Armadas não abriram mão do apoio da polícia em assuntos de alistamento” (NASCIMENTO, 2004, p. 316).
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população, como por exemplo, ao impedir o cidadão de andar pelas ruas sem sapatos ou paletó (CARVALHO, 2008). O empenho do novo regime político de controlar o povo pode ser observado com o fato do Código Penal de 1890 ter entrado em vigor antes que a própria Constituição de 1891 fosse promulgada. A qualificação do contraventor foi expandida e passou a incluir os aspectos relativos à pobreza, à falta de meios de subsistir e à ausência de moradia, tipificada pelo artigo 399 desse Código (PIERANGELLI, 1980). Já no artigo 300 do Regulamento no 120 de 1842, o rótulo de “vagabundo” era dado àquele que não tinha domicílio fixo, uma profissão ou ofício habituais, renda ou meios para subsistir (TINÔCO, 1886). Segundo Engel (1998/1999), tratava-se de uma categoria imprecisa de vadios formada por aqueles que vagavam ou viviam nas ruas da cidade sem ocupação regular, moradia, nem meios para subsistência. Geralmente eram conduzidos pela polícia ao hospício, ou recrutados à força, “protegendo” as famílias honradas de sua influência negativa. Subjacente a esse ponto de vista, jazia o nacionalismo militarista derivado do modelo prussiano do século XX que acentuava a importância da família nuclear heterossexual como um alicerce necessário à estabilidade social e símbolo para a nação. “Implícita na metáfora da guerra estava a ideia de que um país derrotado se tornava uma nação de emasculados, incapazes de proteger a virtude coletiva” (BEATTIE,2004, p. 274). Enfim, passou a predominar uma nova ética que procurava incutir na ideia do labor um significado positivo, substituindo a anterior apologia conferida ao ócio (CHALHOUB, 2001). Portanto, a lógica do disciplinamento e da uniformização, ao normatizar condutas em conformidade com bulários, manuais e regulamentos, acabou identificando e expondo uma legião de marginais que não conseguiram se inserir neste novo cenário, ou melhor, que não se mostraram aptos a vestir o “uniforme”.
O “copo” Desde outrora, quando os marinheiros desafiavam águas hostis remando ao som das batidas do tambor, o álcool já servia de bálsamo para suavizar a aspereza da vida no mar e para matar a sede, sendo que, até o século XVII,
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a água e a cerveja eram os recursos preferenciais para saciá-la. Segundo Pack (1995), a conservação da água era difícil, não apenas por inexistir um método de destilação que impedisse que ela ficasse repleta de algas, como também pela incerteza do seu reabastecimento em algum porto; a cerveja, por sua vez, azedava em poucas semanas, sobretudo pela sua baixa qualidade. Quando o rum foi introduzido nos navios da Marinha Real inglesa, por ocasião de um ataque à Jamaica, encontrou-se uma solução para saciar a sede, uma vez que ele se mantinha em bom estado por muito tempo. Graças a ele, a permanência no mar foi significativamente ampliada, viabilizando a expansão mercantilista. Todavia, como não havia um modelo a ser seguido pela ausência de regulamentos padronizados e de códigos de instruções para a Marinha Real inglesa até 1731, cada comandante definia as suas próprias regras para o consumo de rum no seu navio. Assim, a distribuição diária de rum6 tornou-se uma prática corriqueira nas embarcações, apesar da constatação dos problemas à saúde física e moral da tripulação decorrentes do álcool. Para minimizar os acidentes, enjoos e o consumo abusivo, em 1740, o Almirante Vernon reformulou a prática da ração de rum introduzindo a cerimônia do Up Spirits e criando uma receita que deu origem ao grog, adicionando ao rum, limão, água e açúcar. Ademais, ele propôs sua distribuição em horários fixos, das 10 às 12 horas da manhã e das 16 às 18 horas da tarde, visando o bom desempenho das atividades que requeriam sobriedade. Adiante, nos tempos do Almirante Nelson, herói britânico das guerras napoleônicas do século XIX, o grog era compartilhado ao som da flauta ou do violino. Em sua homenagem, a ração diária de rum ficou conhecida como Nelson’s blood, tornando-se parte da cultura, vida e imagem da Marinha inglesa, influenciando outras Marinhas (PACK, 1995). No Brasil, a cachaça era a bebida predileta, amplamente distribuída como parte da ração diária da tripulação. Segundo Azevedo (1870), a aguardente era a bebida favorita servida no jantar, sendo substituída pelo vinho quando chegavam aos portos estrangeiros. Greenhalgh (1998) salienta que, após a independência do Brasil, atribuiu-se ao convívio com a oficialidade ingle6
Correspondendo a de cerca de ¼ml de rum (half pint of rum).
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sa contratada para guarnecer a Marinha, o aumento generalizado de adeptos das “bebidas espirituosas”: Em pouco, esse hábito tornava-se vício e o abuso da medida vinha a ser causa da maior parte dos atos de indisciplina que se produziam amiúde a bordo dos navios e estabelecimentos militares e que chegavam, por vezes, a assumir a gravidade da desordem e do motim (p. 17).
Nos dias de licença, ao se sentirem livres das rotinas fatigantes e rígidas, os marinheiros invadiam as ruas, buscando prazer, alegria e sexo, sendo vistos nas festas religiosas, sambas, prostíbulos, quiosques, casas de jogos e praças. “Ficar ébrios com tanto aguardente e provocar as tais desordens eram problemas corriqueiros na vida dos marinheiros, e eles sabiam muito bem que os morcegos [policiais] estariam prontos para atacar e reprimir tais atos” (NASCIMENTO, 2001, p. 105). O alcoolismo tornou-se um problema crônico no Império, alimentado pelo fornecimento de cachaça às praças, vide Portaria da Secretaria D’Estado dos Negócios da Guerra de 18 de setembro de 1824, estendida à Marinha (APEB,7 1825 apud JUNQUEIRA, 2005). Herança da esquadra portuguesa implantada na legislação brasileira desde os tempos da independência, os Artigos de Guerra (PORTUGAL, 1800) especificavam as faltas ou crimes em que podia incorrer a tripulação naval e os castigos correspondentes. Por meio deles, o comandante de um navio tinha amplos poderes para aplicar o castigo, livre para decidir a qualidade e a quantidade do castigo, tal como ocorria no caso da embriaguez, não devendo exceder o número de 25 chibatadas por dia (GREENHALGH, 1998). Na prática, os Artigos de Guerra eram falhos, sendo que o artigo 80 dava ampla margem de interpretação, permitindo a aplicação de castigos desproporcionais às faltas cometidas e excessivamente severos (NASCIMENTO, 2010). Com o Decreto no 8.898 (BRASIL, 1883), procurou-se limitar o arbítrio do comandante, regulando a aplicação dos castigos e os graus de punição. A título de ilustração, o “embriagar-se no 7
APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Colonial e Provincial. Quartel General do Comando das Armas – 1825. Maço 3365.
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mar” correspondia às letras “D” ou “H” de uma tabela, prevendo “seis a dez chibatadas” ou “prisão solitária por quatro dias, ou na coberta por seis dias, com ferros”, respectivamente (GREENHALGH, 1998; NASCIMENTO, 2001). O ato de beber a bordo na Marinha Imperial era aceito desde que não ocorresse a embriaguez, seja no mar, em serviço ou ao retornar da licença. As bebidas eram consumidas durante o trabalho e nas licenças, nas bases, no lar, nas tavernas, quartéis e bordéis. Há estudos que indicam que o álcool era oferecido aos camaradas na “(...) esperança de obter seus favores, diminuindo as inibições e levando-os a submeterem-se a seus ‘desejos libidinosos’” (BEATTIE, 2004, p. 283). Todavia, era imperativo respeitar as normas relativas à distribuição diária das rações de aguardente. Portanto, não era permitido tomar rações além da sua quota, nem vendê-las ou comprá-las, cabendo “serviço dobrado por dois ou três dias ou duas horas de exercícios de pelotão de infantaria”, para o primeiro caso, e “prisão solitária por cinco dias, ou na coberta por seis dias, com ferros”, para a segunda falta (BRASIL, 1883). No fundo, ainda prevalecia o espírito do Regimento Provisional: “Que feveramente fe prohiba que ninguém venda a bordo vinho, ou agoas ardentes8” (PORTUGAL, 1796, p. 5). Apesar da influência dos costumes ingleses na Marinha norte-americana, a ração de rum foi abolida pelo Presidente Lincoln em 1862; e, em 1914, foram proibidos o consumo e a introdução de bebidas alcoólicas a bordo de qualquer embarcação, organização e espaços militares. Na Marinha britânica, o resultado de pesquisas com marinheiros embarcados revelaram que o consumo do álcool estava associado ao grande número de internações psiquiátricas e aos casos graves de indisciplina. Com efeito, em 28 de janeiro de 1970 ocorreu um grande debate a respeito da questão da ração de rum na House of Commons que culminou com a abolição da prática do Nelson’s blood por ser incompatível com a complexidade das tarefas e sofisticação dos equipamentos dos navios modernos (PACK, 1995). Na MB da atualidade, constatou-se que o beber a bordo é uma tradição aprendida e estimulada ao longo da carreira (HALPERN; LEITE; SILVA FILHO, 2010), embora a embriaguez ainda seja enquadrada como uma contravenção 8
Na publicação original, a letra “f ” está no lugar da letra “s”.
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disciplinar segundo o Regulamento Disciplinar para a Marinha (RDM9). Este documento é composto por 84 itens considerados como contravenções disciplinares, passíveis de punições. Dentre eles, o item 35 diz: “apresentar-se em Organização Militar em estado de embriaguez ou embriagar-se e comportar-se de modo inconveniente ou incompatível com a disciplina militar em Organização Militar”. Porém, no cotidiano laborativo, a MB se divide entre o estímulo e o rechaço ao consumo de etílicos, aspecto que tem sido estudado como um fator que ajuda a constituir certos “desviantes” no seio institucional (HALPERN; LEITE; SILVA FILHO, 2010; HALPERN; LEITE, 2011a; 2011b; 2013a; 2013b).
Entrecruzamentos (des)necessários Os “entrecruzamentos (des)necessários” relativos ao “uniforme” e o “copo” referem-se aos possíveis efeitos da interseção entre estes dois universos: o do trabalho naval e das sociabilidades, associados ao consumo de etílicos. Ambos revelaram-se centrais na experiência dos pacientes do CEDEQ a partir dos resultados obtidos com a etnografia e observação participante, apresentados em outras oportunidades (HALPERN; FERREIRA; SILVA FILHO, 2008; HALPERN; LEITE; SILVA FILHO, 2010; HALPERN; LEITE, 2010; 2012a; 2012b; 2011a; 2011b; 2013a; 2013b). Como foi sinalizado, o consumo do álcool tem sido apontado como uma prática inerente à vida de bordo e, ao mesmo tempo, como um fator perturbador no interior das embarcações desde os tempos de outrora. No entanto, por ser visto como uma tradição naval importante, sua presença na jornada laborativa tende a não ser questionada na MB, a não ser que esse consumo ultrapasse os padrões esperados e que seja associado à ocorrência de atos de insubordinação, indisciplina ou violência. De fato, a etnografia e a observação participante revelaram que, embora a MB tenha criado esse Ambulatório desde 1997, assim como outras instâncias responsáveis pelas ações de prevenção e desintoxicação, constatou-se que não há uma reflexão ou discus9
Este Regulamento (DECRETO, 1983) tem por propósito a especificação e a classificação das contravenções disciplinares e o estabelecimento das normas relativas à amplitude e à aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.
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são sobre as razões do alcoolismo, embriaguez ou das recidivas. Os episódios de intoxicação costumam ser contornados pelo viés administrativo ou disciplinar; os reincidentes, que prejudicam a rotina diária, são encaminhados para orientação ou tratamento. Segundo as informações dos pacientes militares do CEDEQ, a despeito do contido no RDM, o consumo de álcool nas unidades da MB costuma ser incentivado, desde que o indivíduo obedeça às técnicas de socialização do “bom bebedor”, segundo as prescrições institucionais tacitamente estabelecidas. O sujeito até pode se embebedar e cometer erros no trabalho, mas se ele ficar quieto, recolhido no alojamento, dissimulando sua embriaguez, conclui-se que ele “sabe beber” (ou “sabe se conter”). Para que as bebidas sejam acessíveis, é fundamental que se conheça o manual de produção, de uso e de ingestão. A transferência geracional destes saberes inclui o processo de aprendizagem sob dosagens repetidas, para permitir a confiante identificação dos efeitos reconhecidos pelo ampliado e ampliável catálogo de motivos (NEVES, 2004, p. 8). Porém, caso ele exponha abertamente o seu estado, deixando o Comando em evidência, o seu superior hierárquico será compelido a agir ostensivamente, enquadrando e punindo o subordinado. Esta situação perturba o “equilíbrio” e a “previsibilidade” do cotidiano laborativo, colocando em xeque o manejo administrativo e a liderança da autoridade militar. Quando a intoxicação alcoólica torna-se evidente, ela se torna um ponto de inflexão a partir do qual os regulamentos passam a incidir no militar, requerendo o registro oficial da embriaguez nos assentamentos do militar e sua subsequente punição. As frequentes recaídas e a sucessão de faltas cometidas associadas ao uso do álcool ajudam a colocar um rótulo de “desviante” nesses indivíduos (HALPERN; LEITE; SILVA FILHO, 2010; HALPERN; LEITE, 2011b; 2012a). Em resposta, eles vão ficando cada vez mais suscetíveis aos erros e às punições, convertendo-se em refugos humanos (BAUMAN, 2001). No entanto, o desvio não é uma qualidade intrínseca do indivíduo, mas resultado de uma relação social (ação coletiva) entre “desviantes” e “não desviantes”, sendo que os primeiros são acusados ou identificados pelos segundos, pelo uso bem sucedido de um
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rótulo de outsider (BECKER, 1963; 1977). O desviante é produzido por regras impostas e inventadas pelo grupo, devendo ser aplicadas publicamente para ratificar as fronteiras entre o que se estipula como certo e errado. Normas amalgamadas a valores que, por serem ambíguos, servem a interesses particulares, conferindo interpretações variadas às regras. Estas, por sua vez, são acompanhadas por agências e funcionários de imposição encarregados de cumprir a missão institucional (BECKER, 1977). Na MB, essa dinâmica empurra o sujeito dissonante à posição marginal por um segmento da coletividade naval (HALPERN; LEITE, 2011a; 2011b; 2012b; 2013a; 2013b). Desde os tempos da conscrição forçada até a atualidade, observa-se uma figuração entre as seguintes posições: desviantes/outsiders (praças) e estabelecidos (oficiais), que são relativas, dependendo do grau de coerção sobre as partes. Tendo em vista que elas têm uma relação de complementaridade e de interdependência, as praças tendem a ser compelidas a ocuparem espaços de inferioridade e de submissão perante os oficiais, internalizando crenças depreciativas a seu respeito (HALPERN; LEITE, 2011b; 2013a). Obedecendo às características intrínsecas da cadeia de comando, essas figurações de dominação se reproduzem, estabelecendo novos gradientes de poder (ELIAS; SCOTSON, 2000). No século XIX, essa figuração era assegurada pelo oficialato com os castigos corporais, visando manter a hierarquia e a disciplina nas embarcações e reafirmar sua autoridade com as manifestações públicas de sofrimento do infrator. Os casos de insubordinação e de indisciplina, muitas vezes inflamados pela aguardente, acabavam desmoralizando o comandante e irritando os oficiais (NASCIMENTO, 2004). Ainda hoje, o RDM (BRASIL, 1983), o Estatuto dos Militares (BRASIL, 1980), a Ordenança Geral para o Serviço da Armada (OGSA) (BRASIL, 1987), dentre outros regulamentos, contribuem para demarcar as fronteiras entre o “normal” e o “marginal”, tendo em vista que são guias para ser um militar. Isto se aplica de forma particular às praças, alvo preferencial do RDM, embora o artigo 5º explicite que o regulamento se dirige a todos os militares indistintamente. Os itens que se seguem exemplificam algumas das falhas que podem ser consideradas como contravenções disciplinares, conforme constam
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do artigo 7º do RDM: “portar-se sem compostura em lugar público” (item 34); “contrair dívidas ou assumir compromissos superiores às suas possibilidades, comprometendo o bom nome da classe” (item 36); “estar fora do uniforme determinado ou tê-lo em desalinho” (item 41). Vê-se que é muito fácil identificar uma falha no indivíduo à luz desse regulamento, seja um deslize nos seus modos ou no uso dos uniformes, deixando evidente a natural vulnerabilidade de um militar. O RDM se coaduna com a percepção sobre a falha humana relacionada com a ideia de insuficiência, como se existisse um comportamento correto a ser adotado, a ser controlado, disciplinado e punido: A ordem é restabelecida com a aplicação exemplar do Regulamento, código ético-moral, legitimador dos padrões normativos de condutas e definidor dos critérios de normalidade. Com a punição, a homeostase é recuperada, não em função da Lei, mas pelo interesse contingencial em cumpri-la. Trata-se de um dispositivo regulamentar que tende a ser aplicado de acordo com as circunstâncias, movido por políticas, por afetos ou desafetos, ou pelas emoções motivadas por medos ou paixões. Aspectos subjetivos da autoridade militar são determinantes para motivar a “canetada” e o “carimbo”, que sentencia e sela uma marca intransponível e absoluta, atribuindo um “rótulo” perene na carreira e subjetividade do subordinado (HALPERN; LEITE, 2012b, p. 77). A determinação ou o agravamento do alcoolismo dos pacientes parece relacionar-se com um sentimento de inadequação quanto ao que se espera deles, incapazes de corresponder com o preconizado nos regulamentos navais. Um sentimento de desajuste também esteve presente entre os marujos recrutados à força (NASCIMENTO, 2001). Acredita-se que os episódios de violência, de insubordinação, bebedeira e distúrbios a bordo possam ser vistos como efeitos de um contexto adverso, como foi o caso da conscrição forçada. Na atualidade, os efeitos negativos das condições, processos e organização do trabalho naval foram apontados como capazes de impulsionar o militar em direção ao “copo” (HALPERN; FERREIRA; SILVA FILHO, 2008; HALPERN; LEITE, 2013a; 2013b). A sucessiva identificação de erros, seguida de punições, dirigidas ao corpo ou à subjetividade, ainda produz uma legião de desviantes.
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Tanto no passado, quanto no presente, instaurou-se um círculo vicioso que tende a acentuar o estigma negativo que, em algum grau, permanece aderido nesses indivíduos apesar dos esforços civilizatórios empreendidos há mais de um século. Pelos relatos dos pacientes, o contínuo reconhecimento de erros acaba provocando desgaste mental e estresse, podendo facilitar o consumo abusivo e a construção do alcoolismo. E, no dia a dia da organização naval, observa-se a presença de uma ambivalência institucional perante a ingestão de etílicos e uma inconstância na aplicação dos regulamentos. Adicionalmente, constatou-se que não existe uma conduta uniforme e coerente dentro da organização diante do consumidor, seja ele leve, moderado ou dependente do álcool. Muito pelo contrário, parece existir uma variedade de respostas, com o emprego de procedimentos aleatórios: ora aplicando-se a lei, ora incentivando o consumo, ora encaminhando para tratamento, ora desligando-o do serviço ativo, acentuando-se as diferenças de tratamento e de abordagem entre os grupos das praças e dos oficiais (HALPERN; LEITE, 2010, p. 109). A palavra “tradição” costuma ser evocada pelos integrantes para justificar o hábito de beber em múltiplas circunstâncias. A tradição etílica de outrora no universo naval ainda é usada como pretexto para beber na atualidade, ganhando proeminência sobre a razão, imune a qualquer argumentação lógica que questione sua ingestão durante a jornada de trabalho. Com a desculpa de ser uma tradição, esse costume é naturalizado como se fosse intrínseco à experiência do indivíduo em sociedade, blindando mudanças de comportamento e de atitudes. “Muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas” (HOBSBAWM, 2008, p. 9). Investindo-a com o rótulo da normalidade, não é possível haver contraposição, passando a ser reforçada e reeditada, com ou sem o consentimento dos superiores hierárquicos, envolvendo todos os segmentos da pirâmide hierárquica, desde os oficiais, com as patentes mais altas (Almirantes), até as praças menos graduadas (Soldados e Marinheiros).Por conseguinte, cria-se um muro que bloqueia o exame sobre seus possíveis significados. O beber encontra-se disponível em múltiplas oportunidades: comemorações, coque-
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téis, festividades e reuniões, além de estar imiscuído nas “fainas” (tarefas diárias), sobretudo para ajudar a concluir as atividades mais árduas. Estudos que demonstram que existem relações significativas entre a disponibilidade do álcool e de oportunidades de beber ritualizadas, destacando que a percepção do consumo de etílicos entre amigos e parceiros de trabalho acentua o desenvolvimento do ato de beber (AMES; GRUBE, 1999; HALPERN; FERREIRA; SILVA FILHO, 2008; HALPERN; LEITE, 2010; 2011a; 2011b; 2012b; 2013a; 2013b). Ao mesmo tempo em que o “copo” se faz “necessário” para aliviar o estresse laborativo e para amortecer conflitos no seio da pirâmide hierárquica, servindo de refúgio e alento, por outro lado ele acaba tornando-se “desnecessário” por acentuar diferenças, consolidar estigmas e incitar o emprego de soluções disciplinares para problemas complexos, envolvendo questões sociais, culturais, institucionais e econômicas. O álcool tornou-se um denunciador das tensões nas relações de poder entre homens fardados, suavizando os embates presentes desde a época do recrutamento militar forçado, à caça dos “imprestáveis” para completar as fileiras desguarnecidas, sob a mira da chibata (GREENHALGH, 1998). No âmago do processo de urbanização, marcado pela diversidade e complexidade, a despeito da circulação dos novos códigos socioculturais, o álcool continua a desnudar aspectos intersubjetivos e contraditórios da experiência cotidiana e no interior das instituições militares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS O uso do álcool na vida naval, mais do que ser um traço patológico, faz parte de uma prática constitutiva do vínculo social, um modo de vida, um traço da cultura, cujas funções sociais ou simbólicas mudam de acordo com o contexto de seu uso (DOUGLAS, 1987; FAINZANG, 2007). A dimensão sociocultural do consumo de etílicos, tal como um discurso, aponta para uma forma de sociabilidade, viabilizando o alcance de uma esfera ampliada de compreensão sobre seus processos, desnudando a existência de uma problemática social e cultural para além de seu aspecto médico e legal. O discurso clás-
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sico da biomedicina oficial não consegue abarcar todos os meandros do fenômeno do alcoolismo, fazendo-se necessário um olhar que valorize os aspectos históricos, sociais e culturais envolvidos. Em suma, objetivou-se esclarecer como o “uniforme” e o “copo” são produtos do mundo moderno que tem dirigido seus esforços visando pasteurizar a heterogeneidade dos indivíduos de modo a atenderem às exigências da economia de mercado. Ambos derivam do processo de formação do Estado Moderno, quando se estabeleceu uma nova forma de legitimação do poder que determinou complexos sistemas de controle e disciplinamento, traçando mapas inéditos de orientação sociocultural, associados a padrões específicos de individualidade (VELHO, 1995). A implantação de um modus vivendi distinto, por um lado, instituiu um inventário de costumes citadinos e de normas legais modelares e, por outro lado, motivou a exclusão das camadas populares, delineando a fronteira com o submundo urbano (O’DONNELL, 2008). Ainda hoje, o “uniforme” e o “copo” se entrecruzam, evidenciando que o homem contemporâneo, agrilhoado pela vida urbana apressada, se ampara no gole gelado para extravasar as pressões diárias. Seria o “copo” uma válvula de escape (des)necessária?
ABSTRACT An ethnographic study was conducted in an outpatient clinic specialized in chemical dependency of the Brazilian Navy, during 2005 to 2009, and in two treatment groups in 2010, for 24 sessions, through participant observations. This study aimed to investigate the extent of the influence of the military organization in the construction of the military patients’ alcoholism. As a result, emerged two aspects, the “uniform” and “cup”: the first one regards to the military professionalization; the second refers to the peculiarities of the consumption of alcohol during the workday. A socio-historical analysis was undertaken in order to examine how both were historically constituted, elucidating their influence on the modes of drinking beverages in the naval environment. It was concluded that the Brazilian Navy facilitates the production of alcoholics among its members due to its ambiguous position regarding the use of alcohol during the working hours, oscillating between the punishment of the military and encouragement, claiming that the consumption of alcohol is part of the naval traditions. Furthermore,
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patients seem to take refuge in alcohol for various reasons that put in question if its use would ultimately be (un)necessary. Keywords: Navy; sailors; uniform; alcohol; work.
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Associação de Profissionais e Amigos do Funk: Protesto Político e Funk-Resgate Association of funk professionals and friends: political protest and funk-rescue in Rio de Janeiro’s Chamber of Deputies Luciane Soares da Silva Doutora em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro; professora Associada da Universidade do Norte Fluminense Darcy Ribeiro; pesquisadora do Núcleo de Estudos da Exclusão e da Violência (NEEV-UEBF).
Resumo As tensões entre cultura e ordem urbana se acirraram com a proibição da realização de bailes funk na cidade do Rio de Janeiro. Em 2009, um grupo de compositores de letras, mestres de cerimônias, intelectuais e movimentos sociais se reuniram em torno de uma pauta que reivindicava o retorno dos bailes. Este artigo apresentará o processo de constituição deste grupo de artistas. A partir de um repertório de ações políticas pouco convencionais, como rodas de funk em espaços públicos, estes artistas têm pautado importantes discussões sobre o direito à cidade. A partir de entrevistas, análise documental e uma etnografia, este artigo retoma os principais movimentos de constituição da Apafunk (Associação de Profissionais e Amigos do Funk) entre 2009 e 2011, objetivando problematizar o protesto político e o repertório de ação coletiva empregado na descriminalização de um dos movimentos culturais mais relevantes no cenário urbano contemporâneo: o funk carioca. Palavras-chave: protesto político, cultura, ordem urbana, mobilização.
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INTRODUÇÃO “Eu só imploro a igualdade pra viver doutor, no meu Brasil, que o negro construiu”. MC Júnior e MC Leonardo, Rap da Igualdade
Este artigo tem como tema a organização da Associação de Profissionais e Amigos do Funk – Apafunk. A partir da bandeira de que “o funk é cultura” este coletivo, criado em 2008,1 teve acolhimento por deputados da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e conseguiu de forma exitosa levar uma pauta reivindicativa que exigia a revogação da Lei 5.265,2 de autoria do deputado Álvaro Lins. Esta lei obrigava os realizadores de bailes funk e festas rave a solicitar permissão à Secretaria de Estado de Segurança, informando a expectativa de público, número de ingressos colocados à venda, bem como hora de início e finalização dos bailes. Em relação aos bailes funk, estas exigências dificultavam sua realização, principalmente por pequenas equipes, com menos estrutura para corresponder às exigências legais instituídas. O principal argumento a ser desenvolvido neste artigo, propõe pensar a cultura como um recurso3 (YUDICE, 2006) empregado no questionamento da mercantilização de uma manifestação cultural de comunidades periféricas. Ao ocupar o espaço público com as rodas de funk, a Apafunk produziu não só uma inovação das formas possíveis de ação coletiva, mas, também colocou em pauta a cultura a partir das margens, criticando ao mesmo tempo o Estado e as equipes de som. O Estado, por proibir os bailes, e as grandes equipes, pela forma de apropriação do funk (quanto aos temas atuais e relações de trabalho). 1
Para mais informações sobre a criação da Apafunk, ler: LAIGNIER, Pablo. Rodas de Funk, remixando música e política com alegria. Trabalho apresentado no XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2012.
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A íntegra da sessão da Alerj está disponível em http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/69d9030724460 2bb032567e800668618/ede57aa198e6e98d8325746d00606539?OpenDocument. Acesso em 06/10/2013.
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A cultura assume um lugar central na globalização, como um recurso, ela conteria elementos importantes para os agenciamentos da sociedade civil. A performance de grupos e comunidades torna-se importante para produção de discursos e mesmo para geração de renda local a partir da criação de bens associados a um tipo de consumo “cidadão”. Neste sentido, pensar cultura como recurso é pensar também a capacidade destes grupos de afirmação identitária frente às agências globais.
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Para compreensão do processo de constituição da Apafunk, será adotado o conceito de repertório (TILLY, 1976) como um conjunto de formas de ação. A ação da Apafunk poderia ser classificada como fazendo uso de um repertório de tipo flexível (em oposição ao rígido, típico das autoridades), como uma alternativa para grupos fora das instituições políticas. Dentro da temática relacionada às formas de ação coletiva, a Apafunk seria um exemplo instigante para o campo de estudos atuais reunidos sob o grande tema do confronto político, que abarca também os movimentos sociais e revoluções.4 O confronto político tem início quando, de forma coletiva, as pessoas fazem reivindicações a outras pessoas cujos interesses seriam afetados se elas fossem atendidas (MCADAM, TARROW, TILLY, 2009). As reivindicações vão desde súplicas humildes até ataques brutais, passando por petições, reinvindicações através de palavras de ordem e manifestos revolucionários. O confronto, portanto, depende da mobilização, da criação de meios e de capacidades para a interação coletiva (idem, p.12 ). No momento em que a Apafunk passou a realizar suas atividades públicas, o cenário musical carioca estava saturado de uma musicalidade funk, adjetivada com termos tais como “pornográfico” e “proibido”. As grandes equipes de som têm vinculado nos últimos 10 anos estas temáticas tantos nas festas (onde alguns temostocam na madrugada) como nas rádios, nas quais donos de equipes têm seus programas diários, como é o caso do Dj Marlboro. A partir das entrevistas e do acompanhamento do trabalho destes MCs, foi possível compreender que seus objetivos passavam não só pela negociação das condições e trabalho dos artistas, mas pelo retorno às temáticas que deram início ao funk nacional na década de 1990. Na reconstituição da trajetória de ação da Apafunk foram adotadas como técnicas de pesquisa: entrevistas, análise de documentos e etnografia de uma audiência na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em agosto de 2009. Além de documentos publicados em jornais, revistas e blogs, serão apresentadas entrevistas com participantes da associação. 4
No mapa do confronto político apresentado pelos autores, o tema do artigo entraria em uma subdivisão relacionada a “conflitos e violência em si: banditismo, crime, policiamento e repressão; violência, política e outras; ação coletiva e confronto em geral” (MCADAM, TARROW, TILLY, 2009).
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Neste artigo, a cultura será pensada como recurso (YÚDICE, 2006), considerando a centralidade dos bens culturais nas construções identitárias (principalmente ligadas à juventude), a partir do consumo de formas de arte e entretenimento. O fato é que a propriedade intelectual assume centralidade no processo de geração de recursos, tanto para indivíduos como para grupos ou comunidades reunidas para formulação de uma ação cultural local que as beneficie. Ao contrário da formatação mercantil constituída a partir das grandes rádios, festas e toda receita gerada a partir da subindústria do funk, a proposta da Apafunk ancora-se na democratização dos espaços de cultura e na partilha das experiências musicais. Abordar o fenômeno funk na contemporaneidade não constitui uma tarefa fácil, e para os objetivos aqui elencados, a principal hipótese sobre o cenário atual é que o funk constitui-se objeto de disputa na cidade do Rio de Janeiro . Esta disputa opõe não apenas as forças da ordem (Secretaria de Estado e Segurança) aos profissionais do mundo funk, mas também instaura importantes demarcações entre os funkeiros. Estas demarcações são observáveis a partir de discursos críticos às atuais equipes de som, ao conteúdo considerado “apelativo” e às tentativas de resgate das letras que marcaram uma época, evocando o baile como espaço de lazer e seus frequentadores enquanto trabalhadores dignos (em oposição ao estigma que os associava a práticas criminosas, como em relação ao tráfico local em favelas). Na primeira sessão será apresentado o cenário musical nacional, a partir de suas mudanças na década de 1990, além de algumas reflexões sobre as dificuldades em pesquisar (e conceituar) o funk carioca. Importante ressaltar que a forma de divulgação destas letras seguiu, mesmo que parcialmente, um caminho alternativo à grande indústria cultural.A segunda parte do artigo apresenta a Apafunk a partir de seus primeiros atos públicos (as rodas de funk) até a revogação da Lei Álvaro Lins, a partir da plenária na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Na conclusão, são recuperados os pontos essenciais para a compreensão do quadro geral do artigo: as inovações tecnológicas que possibilitam uma ampliação do universo musical funk no Brasil a partir de 1990, as inovações apresentadas pela Apafunk em sua forma de ação cole-
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tiva e a relevância desta discussão para pensar a cidade e a democratização do acesso aos bens culturais a partir dos territórios de favela.
Funk carioca, territórios urbanos e disputas locais Um hipotético professor de 60 anos, andando pela Avenida Presidente Vargas, Rio de Janeiro, nos anos de governo de Fernando Henrique Cardoso, escuta, nas proximidades da Uruguaiana, o refrão “se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui”. Ao voltar-se para procurar a origem do som, avista uma banca de venda de material fonográfico com títulos de “funk nacional”. Curioso, tenta localizar o sujeito histórico: quem são “eles”? Resolve seguir um pouco mais o mosaico de lojas, e na sequência escuta “não me bate doutor, porque eu sou de batalha, acho que o senhor está cometendo uma falha”. Resolve comprar alguns dos títulos, aparentemente com capas feitas em casa, sem nomes de grandes gravadoras como Som Livre, com rostos desconhecidos. Era possível apenas entender que eram de lugares como a Rocinha ou Cidade de Deus. A música urbana, compreendeu, havia mudado. A cidade não era a mesma e o som traduzia esta mudança. No cenário musical (rap, manguebeat, funk) que se afirma nas principais cidades brasileiras a partir da década de 1990, há um importante deslocamento em relação ao conteúdo das letras e àqueles que usam os palcos para interpretá-las.5Entre alguns dos principais representantes, podemos citar Chico Science6 (Nação Zumbi), Mano Brown (Racionais), Mc Leonardo (e seu irmão Júnior), que têm em comum o fato de interpretarem suas músicas a partir de um lugar distinto dos representantes da música popular da época dos festivais. Falam à geração pós-Constituição de 1988, da desigualdade social, do racismo e da violência policial. No caso do mangue, vemos a criação de uma nova linguagem a partir da mistura inovadora entre tradição e alta tecnologia
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Em sua maioria, quem ocupa estes palcos não possui uma formação artística (domínio da execução de violão, leitura de pauta).
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Segundo Tesser (2007, p.73), Chico Science e Nação Zumbi, juntamente com os outros grupos que fazem o movimento, representam um fenômeno novo dentro de produção musical brasileira, pois contrariamente à indústria cultural e à indústria de massa vigente, ao invés de destruírem as culturas periféricas e populares, vão criar um espaço de inclusão inesperado das produções marginais.
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(SANDRONI, 2009, p. 63 ). No caso dos Racionais,7 as letras produzem catarses coletivas e execuções agonísticas nas quais o vocalista expressa o ódio de classe, raça e ódio em relação à polícia. Estas apresentações levam multidões a seguir a banda desde o seu surgimento. O fenômeno do rap paulista é uma das principais inovações do cenário musical pós-1990 e Racionais, o exemplo seguido por boa parte dos aficionados por rap. É possível pensar o funk como expressão de uma forma rítmica na qual a percussão e o baixo desempenham um papel central se considerarmos as influências da música negra norte-americana (principalmente o jazz, o rhythm and blues e o soul) nos primeiros bailes realizados no Rio de Janeiro na década de 1970, na zona sul, por Big Boy e Ademir Lemos. A centralidade destes dois instrumentos na execução de acordes básicos, muitas vezes repetidos durante todo o tempo da música, proporciona uma experiência física intensa.Mas a esta definição que dá conta das propriedades propriamente “físicas” do som, devemos acrescentar algumas outras, resultado da junção entre música, raça, conjuntura política e corporalidade nos Estados Unidos dos anos 1960. O termo “funk/funky”, em seu processo de compartilhamento entre os primeiros músicos do estilo, era ao mesmo tempo um substantivo, uma forma pejorativa de acusação aos negros e um verbo que significava “apimentar” a execução da música (jazz) em sessões extras. Sobre o funk carioca, duas observações ainda devem ser feitas: o circuito de consagração não depende exclusivamente da televisão8 ou indústria fo7
Ao ver as cenas de uma apresentação dos Racionais, é perceptível que a plateia demonstra estar em uma espécie de transe possível graças às batidas pesadas, sincopadas que geram uma ambiência “apocalíptica” na qual os relatos mostram o homem moderno sempre prestes a perder algo muito valioso, dentro de uma situação social que tenta sujeitá-lo continuamente. Estas letras geram forte adesão não só em favelas, mas em também em presídios. O termo “realidade” é aqui detalhado como oposição ao sonho gerado pelo capitalismo, de consumo, mulheres, carros. As letras são assim, um relato deste cotidiano. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=lZXeh65y000. Acesso em 06 /10/2013.
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Quando ocorre, a forma de acolhimento do funk pela TV não deixa de ser seletiva. O programa da Xuxa acolheu Marlboro, um personagem pioneiro, mas bastante polêmico como representante do funk atualmente. Como discotecário do programa, possibilitava à Rainha dos Baixinhos movimentar-se diante de uma plateia que ouvia hits internacionais (https://www.youtube.com/watch?v=UdaV8JRikM0), ou como base para suas próprias composições (https://www.youtube.com/watch?v=gio2K4lxFe8. Acesso em 06/10/2013). A base do funk serve a diversos usos comerciais, sem dúvida, incluídos. Da mesma forma, as trilhas sonoras de novelas. Um tipo de letra muito dançante, mas uma das possíveis vertentes do funk. Por último, a Furacão 2000, tinha em seu programa nos anos 1990 uma divulgação de letras que ainda são centrais para o funk carioca. Mas, atualmente, vincula apenas seus artistas, estando mais próxima de um negócio de entretenimento bastante racional. Revista Antropolítica, n. 36, Niterói,1. sem. 2014
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nográfica, no esquema bastante conhecido de distribuição em lojas e propagandas entre uma programação e outra na grande mídia. A segunda diferença orienta este artigo e tem sido discutida exaustivamente por boa parte dos estudiosos do universo funk: o conflito entre o Estado e os produtores deste gênero musical. Alguns poderão lembrar rapidamente da perseguição ao samba,9 acreditando que o funk é a reedição desta perseguição. Mas há um elemento complicador para tal associação: o lugar da favela nas cidades e as representações sobre a relação entre criminalidade urbana e música funk. As pesquisas sobre aumento da criminalidade urbana (ADORNO, 2002, MISSE, 2006, ZALUAR, 1999) demonstram que não só aumentaram os crimes com emprego de arma de fogo, mas que os agentes preferenciais dos conflitos têm entre 13 e 25 anos. No Rio de Janeiro, os trabalhos de Misse sobre a acumulação social da violência possibilitam inferir que o padrão de criminalidade alterou-se desde a década de 1950, o tipo de armamento e as formas de enfrentamento entre a polícia e os agentes desviantes. No Rio de Janeiro, a partir dos anos 1990, por ter se constituído em uma das principais formas de expressão das experiências de uma parcela significativa da juventude urbana, o funk tornou-se tema e ambiente de importantes disputas simbólicas (SILVA, 2009, p.28 ). Há uma discussão sobre classificações quanto ao estilo, considerado por alguns como “não música” em comparação ao samba, à bossa nova e à música popular brasileira. Há uma acusação por parte do Estado de que sua existência nas favelas associa-se ao tráfico e sua proibição é necessária para manutenção de ordem. Além disto, dentro do mundo funk existem diferenças importantes quanto a sua forma de reprodução. Este artigo foca especialmente a crítica feita por uma parte da geração que considera a erotização atual do funk um problema. E tenta na recuperação de letras do tempo dos Festivais de Rap, demonstrar os usos políticos possíveis do funk na cidade do Rio de Janeiro. 9
As discussões que associam a figura do malandro a do funkeiro deveriam levar em conta o acirramento das tensões urbanas, principalmente pelo incremento da ação do tráfico nas favelas cariocas A associação entre o funk e o tráfico vem sendo apresentada pela grande mídia e pelo Estado, a partir das instituições de controle, notadamente a Secretaria de Segurança Pública. Em 2008, o então comandante geral da Polícia Militar, coronel Marcus Jardim teria declarado que “baile funk em favelas é reunião de vagabundos”. Com esta visão, sua pretensão era a proibição dos bailes como uma forma de combate à criminalidade.
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A urbanização das grandes cidades, o acirramento de formas precárias de habitação, os enfrentamentos com a polícia e a festa como forma de resposta à segregação, são alguns dos elementos que colaboram no desenvolvimento do gênero tal qual o conhecemos no século XXI. Se é possível falar de um “espírito”, da ânima do mundo funk nos anos 2000, seria possível defini-lo como uma experiência urbana tecnológica fundada em ritmos africanos, uma atualização de tambores, associada à centralidade do corpo em espaços sociais como bailes e shows. Com o avanço das tecnologias de reprodução e o barateamento dos preços para aquisição destes equipamentos, o funk adquire uma característica singular no mundo da música: a possibilidade de recorte e recomposição das letras, formando um tipo de colagem na qual a noção de autoria torna-se objeto de problematização. O funk tem entrada no Brasil a partir da década de 1970, através de bailes nos quais a sonoridade americana dominava o cenário. O trabalho pioneiro de Hermano Viannafocou um período em que nos bailes funk 100% das músicas eram estrangeiras. Além disto, demonstrou ser este universo até então pouco conhecido do “resto da cidade”, mas diversão de boa parte de juventude residente nos subúrbios, favelas e da Baixada Fluminense. À época, segundo sua pesquisa de campo , eram realizados cerca de 700 bailes por fim de semana no Grande Rio. Podemos inferir que este número mais que triplicou ao longo dos anos e, ao observar os valores movimentados pelos bailes, R$ 174 milhões, segunda pesquisa da Fundação Getúlio Vargas,10 o funk cresceu em progressão geométrica nas últimas décadas. Mas se seu crescimento pode ser apontado como uma das mudanças em relação ao momento da pesquisa de Vianna, algumas características seguem inalteradas: os frequentadores, em sua maioria, são ainda os moradores de áreas menos nobres da cidade, não brancos e o estigma em relação a eles segue presente nas discussões sobre cultura urbana e música. Entre as transformações no cenário atual, duas grandes mudanças merecem nota: o surgimento e domínio do tráfico nas áreas em que os bailes ocor10
Para mais informações ver pesquisa completa da FGV em http://cpdoc.fgv.br/fgvopiniao/ pesquisaspublicas#id_3. Acesso em 05/10/2013.
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rem. Mesmo vivendo atualmente o fenômeno das Unidades de Polícia Pacificadora - UPP, boa parte da discussão a partir dos anos 1990 fez a associação entre território de favela, tráfico e baile funk. A outra mudança, apresentada aqui como uma observação da pesquisa realizada em favelas cariocas,11 é o crescimento de equipes de som (de forma monopolística), tendo como consequência uma significativa diminuição da diversidade antes existente. Também há uma concentração em performances eróticas, associadas facilmente como funk. Para aqueles que desconhecem este circuito, tornou-se natural associar funk, erotismo e favela. Em algumas entrevistas, os bailes seriam procurados como “espaços de liberação”, dentro da cidade e a favela, considerada um lugar muito “diferente” em relação às regras sociais do asfalto. A circulação do material produzido segue ainda por vias alternativas, em parte, fora das grandes gravadoras (EMI, Universal, Sony, Warner). Os shows registrados pela equipe Furacão 2000 são vendidos em material feito pela própria empresa, em caminhões que abrem suas portas no mercado da Uruguaiana, centro do Rio de Janeiro, direto ao público,por não mais de R$10,00 reais. Boa parte desse circuito composto por grupos, artistas solo ou trios, ocorre fora da televisão. O rádio é um dos principais veículos de mídia do mundo funk. Mas nada se compara ao uso da web como forma de divulgação. O baile é o grande momento de teste: “pegar ou não” é parte de um processo de consagração que gera, às vezes com um único hit, sucesso imediato (embora geralmente efêmero) para estes artistas. A partir deste esquema, uma série de outros profissionais ligados direta ou indiretamente aos shows, garante seu sustento com a realização dos bailes. Uma infinidade de possibilidades está presente neste universo: de catadores de material reciclável a fornecedores de alimentos e bebidas nas comunidades, o baile é uma possibilidade de geração de renda ou acréscimo à renda mensal.
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Silva, Luciane Soares. Funk para além da festa: um estudo sobre disputas simbólicas e práticas culturais na cidade do Rio de Janeiro. Tese (doutorado). 2009. Programa de Sociologia e Antropologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2009..
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Apafunk: Coletivo em construção e funk-resgate na Assembleia Legislativa Subi as escadarias da Alerj em uma tarde ensolarada de terça-feira, abril de 2009, a procura do jovem que liderava um movimento e começava a ganhar visibilidade na cidade do Rio de Janeiro. Encontrei MC Leonardo no movimentado gabinete de Marcelo Freixo, deputado do Partido Socialismo e Liberdade, organizando entre telefonemas e conversas, a roda que seria feita na semana seguinte, na Central do Brasil. Leonardo,12extremamente articulado, explicou-me sua visão sobre o funk, a favela, a segurança e a necessidade de lutar pelos funkeiros que tinham um conteúdo a passar. Ele, como representante de um tempo no qual as letras de rap falavam de paz, do direito ao lazer e do cotidiano das favelas, demonstrava a cada momento, preocupação com a relação entre o funk atual, as grandes empresas, as pequenas equipes e o que estavam dizendo às novas gerações. A ação do grupo visava não só rever a Lei 5.265, que proibia os bailes, mas ia além: explicitava a posição dos antigos funkeiros em relação ao momento atual. Algo que, para quem enxerga “o universo funk” sem os necessários filtros, poderia ser um desafio, pois questionava os principais donos de equipes de som, responsáveis pela maior parte do conteúdo conhecido atualmente sob a classificação “funk”. Muitos deles eram protagonistas de estudos pioneiros sobre o funk, em uma época na qual o ritmo era quase um “desconhecido” da cidade, restrito aos circuitos dos frequentadores de bailes.13 Fechamos este primeiro encontro falando de embolada, da Rocinha, do problema em viver o movimento que ali iniciava e tomava parte do seu tempo e ter de suportar as pressões para sustentar uma família. Ao lado de seu irmão Júnior, Leonardo ocupou a importante cena funk dos anos 1990, com Endereço dos Bailes e Rap das Armas, entre outras letras cantadas em coro nas apresentações de televisão. Mas agora, um homem, por volta de seus 37, precisava lidar outras situações. Família, trabalho, casa e a perseguição ao funk. 12
Leonardo era o tipo-ideal de intelectual orgânico? Era impossível não lembrar o entusiasmo de McLaren (2000) quanto ao papel dos gangsta americanos, praticando na rua a política da afirmação identitária de grupo a partir de músicas violentas.
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Entre os pioneiros destes estudos, importante citar a relação de amizade que se estabelece entre o DJ Marlboro e Hermano Vianna, durante seu campo de pesquisa para tese e posterior livro “O Mundo Funk Carioca”, referência obrigatória aos estudiosos do tema.
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O movimento estava em seu início, mas era perceptível que seu porta-voz e presidente dispunha de estratégias discursivas persuasivas para levá-lo à frente. Além disto, foi definitiva a adesão de universidades, que cooperaram ativamente na organização das rodas e de debates sobre o tema da proibição dos bailes. Instaurava-se uma disputa simbólica, e ao mesmo tempo jurídica, sobre o rumo do universo funk na cidade do Rio de Janeiro. Simbólica porque pretendia demarcar a diferença entre o conteúdo compreendido como pornográfico, jurídica porque propunha a revisão da forma de trabalho dos funkeiros e a necessária conscientização sobre os direitos que tinham como trabalhadores de cultura. As rodas de funk ocorreram em favelas e áreas públicas de grande circulação, como uma das principais rodas, na Central do Brasil, centro da cidade do Rio de Janeiro. Enquanto eventos públicos de apresentação da Apafunk, as rodas utilizaram-se de discursos críticos intercalados à execução de letras consideradas como “funk das antigas”. A roda na Central do Brasil,14 em nove de abril de 2009, organizada pela Apafunk uniu um público bastante heterogêneo, com um traço em comum: em sua maioria, eram estes os “pobres urbanos” que frequentaram os bailes na década de 1990. A execução de letras extremamente conhecidas na década de 1990, por seus autores ou na voz das duplas que as haviam consagrado, produziu um efeito catártico nos transeuntes em seu horário de retorno para a casa. A movimentação de pessoas que utilizam a Central do Brasil para retornar a casa no fim da tarde costuma ser tensa. Localizada no centro do Rio de Janeiro, a Central recebe os trabalhadores que vêm não só do próprio centro, mas das zonas sul e norte a caminho de bairros mais distantes, na zona norte, zona oeste e Baixada Fluminense e outros municípios do Rio de Janeiro.
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No vídeo é possível observar o público presente na Roda, em sua maioria não brancos, que entoava letras como “Rap do Silva” e “Rap da Felicidade” ambos podem ser assistidos em: https://www.youtube.com/ watch?v=9dFm6QTE4Xg.Acesso em 06/10/2013.e https://www.youtube. com /watch?v=BE_3Gvf9ZP w&feature=endscreen&NR=1. Acesso em 06/10/2013.
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O quadro era singular: vinte anos depois do Arrastão15 de 1992 (evento a partir do qual a classificação “funkeiro” passou a figurar no debate público), letras de funk antigo eram entoadas. Uma pequena multidão de trabalhadores de diferentes idades, mendigos, meninos de rua, jovens universitários, agitava-se ao redor dos cantores. E naquele momento era divulgado o conteúdo que seria levado à Assembleia Legislativa meses depois: fim da proibição aos bailes, respeito ao trabalho dos músicos, maior cuidado com o conteúdo das letras. Um dos cantores conclamou a plateia a repensar os efeitos das letras erotizadas sobre as crianças. Pai de uma menina de três anos, parecia preocupado com os refrãos de “vai novinha” naturalizados nas favelas. Era um “evento-resgate”, um formato aberto no qual as intervenções surgiam entre funkeiros conhecidos do tempo dos Festivais. Após uma execução catártica de “Rap da Felicidade” Leonardo dirigiu-se à plateia iniciando a apresentação das reinvindicações da Associação: “Tem gente que pensa assim, mas será que se a gente parar de falar em bunda, o funk vai tocar? Será que vai ter alguém que vai aceitar o funk? Essa é a nossa linguagem, ela existe, ela é potente. Quando a gente começou a fazer as rodas de funk, eu pensei assim, vai surgir MC de tudo quanto é lado, eu fui falar com o policial ali, para a gente poder fazer a roda, ele falou assim: pô cantei rap também, eu te conheço. Antigamente o jornalista vinha falar com a gente ele não sabia quem você era, o que você fazia, hoje em dia não, o jornalista vem te entrevistar, ele é funkeiro também, você chega no hospital, o médico é funkeiro, o funk formou muita gente, e opinião e vida. Eu tenho a 5ª série, conheço o Brasil todo, se não fosse o funk... (entoa um trecho) quem sabe hoje em dia eu seria do bicho! (fecha o trecho).” MC Leonardo termina a fala afirmando o quanto o funk colaborou para que andasse no caminho certo. As apresentações focavam os temas de discriminação, do preconceito 15
Como sugere Vianna (1995, p.180),este fato, ocorrido em 18 de outubro de 1992, instaura um marco nas relações entre funk e a percepção da violência na cidade do Rio de Janeiro. Suas dúvidas sobre o que de fato ocorreu naquele dia possibilitam reconhecer, através deste caso, a constituição de representações sobre determinados tipos sociais. O uso das imagens aliado à construção de um texto cuja narrativa instaura um quadro de barbárie urbana, realiza mais que informa sobre o fato. Neste caso, o Jornal Nacional, como um veículo “autorizado” de produção de informação, cria uma versão, utilizando recursos que vão desde edição de imagens ao uso das competências dos seus âncoras para produzir o efeito de verdade, objetivo último dos canais midiáticos.
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contra o frequentador de baile funk, e clamavam por paz e união, temas típicos da época dos festivais, onde surgiu boa parte destes cantores, hoje já com aproximadamente 40 anos. MC Beto do Batô, em sua apresentação entoou “a gente pede a paz, amor e união, alô rapaziada, parem com a discriminação, por favor, vamos parar, de discriminar...”. Mesmo em alguns momentos, a letra brincava com situações de época dos festivais e enfatizava o direito à diversão. MC Dolores relembrou este tempo ao cantar uma das mais conhecidas letras de rap dos anos 1990 “qual a diferença entre o charme e o funk, um anda bonito, o outro elegante, eu sou funkeiro, ando de chapéu, cabelo enrolado, cordãozinho e anel, me visto no estilo internacional, Reebok, Nike, abalou geral... se ligue nos tecidos do funkeiro nacional, a moda Apafunk melhorou o meu astral” A diferença ainda demarcava a forma de vestir dos adeptos do “charme”, cujos bailes atualmente, acontecem com maior frequência no bairro de Madureira, embora ocorram também o centro da cidade.16 Nos meses seguintes, outras rodas, em bairros e favelas da cidade seriam realizadas com o mesmo objetivo: divulgar a necessidade de retorno dos bailes, respeito ao trabalho do funkeiro, conteúdos menos erotizados e direito à circulação na cidade para as populações marginalizadas. Para compreender o êxito desta Associação, além do essencial apoio das Universidades, é possível supor que as rodas de funk foram o principal instrumento de comunicação deste grupo. A adesão de coletivos organizados17 em blogs e plataformas digitais colaborou para a amplificação do discurso da Apafunk entre a sociedade civil, principalmente com universitários já engajados em lutas por moradia urbana, direitos humanos, favela, contra a violência policial. Esta cooperação abriu espaço dentro das Universidades para que os MCs explicassem o que pretendiam, para que realizassem oficinas, rodas e processos de criação, que, ao envolverem estudantes de graduação e pós-graduação, transformaram a Associação em um movimento capaz de gerar adesões que transcendiam o espaço das favelas. 16 17
Sobre os bailes charme ver http://bailecharmerj.wordpress.com/, acessado em 06/10/2013. Um exemplo da adesão ao trabalho da Associação de Profissionais e Amigos do Funk pode ser acessado neste link, http://direitopraquem.blogspot.com.br/search/label/Funk%20%C3%A9%20Cultura, acessado em 07/10/2013.
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Em momentos públicos de protestos políticos, as Rodas de Funk fizeram parte da programação. Foi o caso de ato em maio de 2010, contra a construção dos muros em vias expressas na Favela da Maré. Em carceragens, universidades – de Santa Cruz, um bairro localizado a aproximadamente duas horas de trem do centro do Rio de Janeiro, até a favela do Cantagalo, na zona sul carioca – as rodas multiplicaram adesões. Foi neste movimento ascendente que se deu a ação política que possibilitou a Apafunk entrar na Alerj em um plenário com aproximadamente 600 pessoas. Parte desta plateia era formada por integrantes de outras lutas e movimentos sociais, mas grande parte era composta pela conhecida “massa funkeira”, jovens negros, moradores de favelas, Baixada, subúrbios da cidade que colocaram tênis para ter permissão de entrar na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.18 Em outras situações públicas de reunião, um observador poderia pensar que se tratava da mesma turba urbana que foi exposta pelos principais canais de televisão em 1992. Mesma cor, mesma forma de andar, roupas e linguagem semelhante. Mas, uma segunda mirada proporcionaria outra compreensão. Como afirma Yúdice (1997, p. 44) os funkeiros estão no centro do debate público sobre cultura. O arrastão ao menos os colocou no meio de um conflito que vem sendo travado sobre o espaço do pobre, seu acesso a bens e serviços de cidadãos e sua vulnerabilidade ao vigilantismo/vigilância e à violência do Estado, tão bem apontado no caso dos meninos de rua.
A relação destes jovens com o Estado, ao longo dos últimos 20 anos, o processo de estigmatização a que eram expostos e as constantes mortes em favelas foram essenciais na construção de um repertório de ações contra a injustiça que orientaria a ação o grupo no momento de entrada na Alerj.19 A eficácia instrumental de um repertório deriva basicamente de sua novidade, de sua habilidade de, temporariamente, pegar desprevenidos oponentes ou autorida18
Primeira sessão na Alerj https://www.youtube.com/watch?v=q4pJru69guM , acessado em 03 de maio de 2013.
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A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, antigo Congresso Nacional, localizada no Palácio Tiradentes, é um prédio em estilo eclético, localizado no centro da cidade, próximo da Praça XV.
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des e de criar exemplos de desordem pública que são custosos aos interesses estabelecidos (MCADAM, TARROW, TILLY, 2009, p.25). A Audiência contou com o mea culpa do deputado Paulo Mello (PMDB) que pediu desculpas publicamente pela aprovação da Lei 5.265 alegando que “se a casa estivesse lotada no dia da votação, como está hoje, esta lei nunca teria sido aprovada”. Era perceptível que um sentimento de euforia tomava a sessão à medida que as horas avançavam e, a cada fala, afirmava-se o erro em criminalizar os bailes e a necessidade de incorporar o funk ao cenário cultural da cidade. O uso do espaço da Alerj como palco final do protesto político não deixaria de ter um ritual de fechamento: em sua fala sobre o movimento da Apafunk, Leonardo fez uso da palavra. Subindo ao púlpito, definiu o caráter da ação política ao cantar “a capella” a letra “Tá tudo errado”, recebendo o aplauso de uma plateia que havia acompanhado as rodas desde a criação da Apafunk. Nesta letra, a situação da favela/comunidade é apresentada frente a ação do Estado e como as ações atuais não surtem o efeito desejado: Comunidade que vive a vontade, com mais liberdade tem mais pra colher, pois alguns caminhos pra felicidade, são paz cultura e lazer, comunidade que vive acuada tomando porrada de todos os lados, fica mais longe da tal esperança, os menor vão crescendo tudo revoltado, não se combate crime organizado, mandando blindado pra beco e viela, pois só vai gerar mais ira naqueles que moram dentro da favela, sou favelado e exijo respeito, são só meus direitos que eu peço aqui, pé na porta sem mandato, tem que se condenado não pode existir. Está tudo errado, é até difícil explicar, mas do jeito que a coisa tá indo já passou da hora do bicho pegar, está tudo errado, difícil entender também, tem gente plantando o mal, querendo colher o bem. Mãe sem emprego, filho sem escola, é o ciclo que rola naquele lugar, são milhares de histórias, que no fim são as mesmas pode reparar, sinceramente não tenho a saída, de como devia tal ciclo parar, mas do jeito que estão nos tratando, só estão ajudando esse mal se alastrar. Morre polícia, morre vagabundo, e no mesmo segundo outro vem ocupar ,o lugar daquele que um dia se foi, pior que depois, geral deixa pra lá, agora amigo, o papo é contigo, só um aviso para finalizar: o futuro da favela, depende do fruto que tu for plantar.
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A letra, ao lado de Rap da Felicidade,20 Rap do Silva e Não me bate Doutor, são exemplos de como os moradores jovens perceberam a relação entre pobreza, favela, violência, polícia e mídia na cidade do Rio de Janeiro após eventos como o Arrastão de 1992. Ao escolher “Tá tudo Errado”, Leonardo apresentou uma síntese em rima do cotidiano vivido nestes territórios. Esta letra apresenta a situação “daquele lugar” onde “morre polícia, morre vagabundo”, em uma sucessão temporal na qual o esquecimento possibilita a reprodução de um quadro de violência. Ao final, Leonardo canta “o futuro da favela, depende do fruto que tu for plantar”, uma convocação aos moradores que poderia ser lida como um manifesto, com uma construção lógica bastante compreensível. Se lida desta forma, a letra apresenta os elementos necessários à ação: a situação não mais aceitável de violência, a banalização da morte, a rotina que não oferece um futuro digno, o tempo de um conflito mais aberto “já passou da hora do bicho pegar”, o problema do esquecimento dos mortos, e no final, como um manifesto de ação política, o futuro como resultado da ação daqueles que sofrem a situação compreendida como injusta. A imprensa se fez presente na audiência, interessada na “cena” que era apresentada: deputados, músicos, secretários de Estado, antropólogos e funkeiros discutindo o status do funk como patrimônio cultural da cidade e do país. Todos os discursos convergiam para o mesmo ponto: o direito aos bailes e a transformação do funk em movimento cultural.21 A síntese destes discursos pode ser apresentada a partir das declarações do deputado Marcelo Freixo que afirmava a necessidade de tirar o funk da pasta de Segurança Pública e enviá-lo para a pasta da Cultura. Assim como Freixo, a secretária de Educação do 20
Trechos das letras, Rap da Felicidade “eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci, e poder me orgulhar, e ter a consciência que o pobre tem seu lugar”; Rap do Silva, “era só mais Silva que a estrela não guia, ele era funkeiro mas era pai de família”; Não me Bate Doutor “ não me bate doutor porque eu sou de batalha, eu acho que o senhor tá cometendo uma falha”.
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Ao final do evento, tentei cumprimentar MC Leonardo e percebi que o resultado da ação na Alerj foi exitoso, mas que, cercado de luzes, câmeras, televisões nas quais jamais havia obtido espaço, ele estava visivelmente produzindo falas sobre situações que mal haviam terminado. Tudo era tão novo para os profissionais e amigos do funk, mas já estariam no jornal noturno em um enquadramento que apresentaria os principais agentes do evento, o resultado, as posições, em uma edição de poucos minutos. Que eles não controlariam e serviria posteriormente como uma forma de “paz” entre Estado e funkeiros, noticiada nos principais jornais da cidade. Talvez os parlamentares naquele momento, pudessem agir com mais serenidade, seu trabalho requer a relação com a mídia e por isto, tinham maior controle sobre sua relação com a produção de um discurso para o jornal da noite.
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Estado, Teresa Porto, demonstrou crença na possibilidade do uso do funk como ferramenta pedagógica de aprendizado.22 Para parte dos participantes da Apafunk23 havia um ineditismo no dia. Um ineditismo que teria seu ápice em 01 de setembro de 2009 com a revogação da Lei 5.265, uma roda de funk em frente a Alerj e o reconhecimento do funk como cultura (aprovação da lei que define o funk como manifestação cultural de caráter popular). Também merece registro a presença de grandes empresários do funk, jamais presentes em rodas ou eventos anteriores. A quem observasse de fora, acreditaria na existência de uma unidade entre os funkeiros, mas a fala do presidente e idealizador da Associação, um dia após a vitória na Alerj, demarcaria que uma das principais bandeiras do coletivo era exatamente demarcar a diferença entre o que pretendiam fazer e o que era feito pelas grandes equipes de som atuais (Furacão 2000 e Big Mix): É isso aí eu sou MC Leonardo, 34 anos, metade da minha vida dedicada a este movimento, que ontem teve seu apogeu, o dia mais importante nestes 40 anos de história do funk, aqui na Alerj, o Estado reconhece o funk agora como movimento cultural, uma cultura preta, pobre, favelada, semianalfabeta, mas que não deixa de ser cultura. A gente propaga, a gente produz, a gente compõe, a gente divulga, a gente compra, é um mercado que a gente mesmo faz, e a gente mesmo lucra, sem dinheiro público, sem ter nenhum tipo de ajuda, o baile funk se desenvolveu e emprega 10 mil pessoas, mas como todas as outras culturas do mundo, virou um produto, e produto vira mercado, vira mercadoria, a cultura vira mercadoria. Mercadoria da qual quanto mais vendida mas copiada, quanto mais copiada mas apelada fica. Então a apelação tomou conta do funk de uma tal maneira que ele deixou de comunicar com as coisas que acontecem dentro da favela, a opinião do favelado sobre os problemas políticos que ele sofre lá dentro da favela, e o funk passou a mostrar somente a diversão, a sensualidade. E a gente sabe que o funk é mais do que isto, e pra mostrar que o funk é mais do que isto a gente tem que buscar mídia e mídia não se busca batendo em porta de rádio, de televisão e de jornal, mídia se busca indo 22
Discurso da Secretária da Educação Teresa Porto, acessado em 05/05/2013, disponível em https://www. youtube.com/watch?v=fDJ31pTvy6o.
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Neste momento, a visibilidade midiática da Apafunk, produzira um tipo peculiar mas conhecido de engajamento de última hora: até mesmo Ivo Meirelles, presidente da Mangueira à época,levou a bateria da Estação Primeira para o evento.
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para a rua, foi assim que eu descobri com os movimentos sociais, entrando nos campos universitários, dialogando, debatendo, descobrindo com a juventude de vários partidos aí, como é que deve ser feito, aprendendo dentro de alguns mandatos parlamentares que abriram a porta pra gente. Fui para rua, ocupei espaços nas ruas, hoje faço trabalho dentro das carceragens, que faz com que o preso fale, porque... voz todo mundo tem, esse negócio de dar voz pro excluído, voz pro favelado, voz pro preso, a gente tem que dar ouvido. A gente tem um caso marcante que é o caso do Tim Lopes, hoje qualquer repórter que vai entrar na favela, ele tem que entrar depois da polícia, a polícia entra e depois a imprensa chega. Precisa ter alguém antes lá dentro para contar o que está acontecendo e este alguém é o próprio favelado e o favelado tem um veículo de comunicação potente que se comunica com todo o Brasil chamado funk, que também é criminalizado, como foi o samba como foi a capoeira. Só que o funk sofreu muito mais, eu digo que ele sofreu muito mais porque existe uma lei, existia uma lei proibindo os bailes, dificultando a realização deles. A gente derrubou ontem, derrubou esta tal de 5.265 e, além disto, agora somos agentes culturais do Rio de Janeiro. O que muda? Agora podemos exigir ser tratados como agente cultural e não mais como marginal.
Esta declaração, passados exatos cinco meses após a roda na Central do Brasil, colabora na compreensão do processo de construção da Associação e as transformações durante o percurso sofridas por seu presidente, que mantendo o discurso inicial, agregou outros elementos e grupos a sua fala: Idealizada por mim, abraçada por vários, por vários MCs, por várias pessoas, né, que veem o funk realmente como veículo de comunicação e com a Apafunk eu aprendi informação, mobilização e luta. Se quiser lutar sem informar, sem ser informado, e sem mobilização então, aí ferrou! A Apafunk conseguiu unir funkeiro a universitário, favelado a professor, MST com população carcerária, agente conseguiu unir várias coisas aí, e a gente está pretendendo agora unir os funkeiros mesmo, pra informar á eles que eles têm direitos. Que eles não sabem que têm. E que a Apafunk vai fazer com que a linguagem do funk seja mais plural, não queremos abafar a linguagem de ninguém, só queremos que, quem tem interesse em se engajar que tenha espaço. Não é dever do funk ser totalmente engajado, arte nenhuma tem que ser politicamente correta, arte é arte. Só que existe uma pá de gente no funk querendo se engajar, usar a cultura para se mobilizar e mobilizar as pessoas e não está tendo este espaço, a Apafunk vem mostrar que é possível, valeu?
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Merece especial atenção a ordem na qual Leonardo elenca o que aprendeu com a Apafunk, quando enumera “informação, mobilização e luta”. Esta ordem resume as etapas de organização da Associação. As rodas, como estratégia, informaram aos cidadãos fluminenses, qual era a pauta reivindicativa, a entrada na Alerj, como segundo momento da organização, foi central enquanto mobilização dos recursos e conversão da pauta em ação política. Entre a primeira e a segunda sessão na Assembleia Legislativa, a luta pela revogação da Lei 5.26524 que proibia os bailes, representa o final desta etapa de consolidação da Apafunk. Durante a pesquisa de campo em favelas cariocas, entre 2005 e 2009, uma das queixas mais frequentes entre moradores, frequentadores de baile e produtores, era a forma como passou a existir uma rápida associação entre bailes funk, favela e pornografia. Na Rocinha, Acari, Maré e em outras favelas, as falas se repetiam: era um problema que em certos bailes tocassem músicas proibidas após certos horários, dentro deste esquema apontado pela Apafunk como “putaria”. Um dos mais antigos Djs do Rio de Janeiro, confessou ter abandonado o esquema quando percebeu “o rumo que as coisas haviam tomado”. Vindo de uma época na qual o soul, o charme e as letras eram menos erotizadas, não permaneceu trabalhando em uma das maiores gravadoras atuais por não aceitar o quadro apresentado. Mesmo os moradores que complementavam sua renda mensal com a venda de bebidas, doces e churrasquinhos nas proximidades dos bailes, não aderiam a este novo momento. Muitos deles tentavam demarcar que a favela não era “aquilo25” que as letras divulgavam. Estas declarações colaboram na compreensão do apelo ao passado dos festivais, com letras sobre a comunidade como forma de demarcação identitária destes artistas em relação ao atual quadro do universo funk. Por esta razão, nas rodas, este ponto sempre era destacado. O corpo como mercadoria 24
O projeto de revogação pode ser consultado em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro0711. nsf/dde654f2 fb34806783256cee005890ed/35748e5d84c6831783257552006bd198?OpenDocument.Acesso em 13 de outubro 2013.
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Em uma das tardes de campo, acompanhada por Deley em Acari, ouvi de um alto falante, uma letra que narrava detalhadamente um intercurso sexual, no qual a cantora sussurrava posições e o que deveria ser feito. Era um domingo. Nestes dias, é comum o uso de espaços vazios para instalação de brinquedos infantis, como o famoso “pula-pula”. A cena de crianças pulando enquanto a música ecoava pela favela, era no mínimo curiosa para quem estivesse observando tudo pela primeira vez. Mas creio que os pais ali presentes deveriam ter uma opinião menos neutra sobre o fato.
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no atual universo funk tem ocupado espaço nos debates. Não é o objetivo deste artigo problematizar essa questão, apenas pontuar seus efeitos na oposição entre a pauta reivindicativa da Apafunk e as atuais equipes que investem pesadamente em letras e performances erotizadas. Em uma rápida consulta ao catálogo de artistas da Furacão 2000 é perceptível a mudança. Se antigamente os cantores eram do Borel, da Cidade de Deus, da Rocinha, sendo o lugar de origem um elemento constitutivo das letras, agora os bondes serão nomeados como “Os Novinhos”, “Leandro e as Abusadas”, “Maysa e as Abusadas”, “Daisexy”, entre outros nomes que fazem referência ao espetáculo apresentado. A letra e até mesmo o ritmo perdem centralidade diante da performance de músicas nas quais o corpo insinua ou explicita situações eróticas. Estes espetáculos são apresentados em todo o Brasil, incluindo cidades pequenas que recebem a “número 1 do Brasil” e passam a associar estas performances ao mundo funk atual. Desconhecendo outras letras e possibilidades. Como forma da organização, o manifesto dos profissionais e amigos do funk declarava que: Para transformar esta realidade é necessário que os profissionais do funk organizem uma Associação que lute pelos seus direitos e também construa alternativas para a produção e difusão de músicas contribuindo para sua profissionalização. Bailes comunitários em espaços diversos e mesmo nas ruas, redes de rádios e TVs comunitárias com programas voltados para o funk, produção e distribuição alternativas de CDs e DVDs dos artistas, concursos de rap são algumas das iniciativas que os profissionais do funk, fortalecidos e unidos podem realizar. Com isto será possível ampliar a diversidade da produção musical funkeira, fornecer alternativas para quem quiser entrar no mercado, além de assessoria jurídica e de imprensa, importantes para proteger os direitos e a imagem dos funkeiros.
Em declaração publicada na revista Caros Amigos de junho de 2009 as grandes equipes de som são acusadas de duopólio. O texto é endereçado a Rômulo Costa e Dj Marlboro e o conteúdo demonstra existência de um esquema que envolve uso de horário em rádios para tocar apenas artistas destas gravadoras, além de queixas quanto ao modelo de contrato feito com autores “os garotos ganham 150 reis e nada mais” afirma Leonardo. Na visão da Marlboro, a
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“música é um negócio” e o que a Associação deseja praticar é um “funk socialista”, onde todos ganhariam da mesma forma.Mano Teko, ao falar da criação da Apafunk, ressalta a necessidade de “apresentar quais são os direitos” destes profissionais “já que durante muito tempo só foram apresentados os deveres”. A partir das rodas, que não são fixas, os organizadores se depararam com saraus periféricos. O sarau “Poesia e Favela” que aconteceu dentro da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), foi um destes eventos, como afirma Mano Teko, à época, vice-presidente da Associação: Tivemos muito identificação com o poeta Nelson Maca que organiza um sarau toda quarta-feira. A partir dele, passamos a pensar o tema de negritude, em função de suas poesias. Aí tínhamos o problema do espaço, a rua sempre foi a nossa casa, então conhecemos o pessoal do Manoel Congo. Como estava em obra ocupamos a parte de frente e foi muito bom, teve uma chegada muito grande das mulheres, algo que não acontecia nas rodas de funk. E elas tomaram de assalto o Sarau e é mais um ponto de discussão, as mulheres dentro do funk. E se criou o coletivo feminino dentro da Apafunk, as amigas que se achegaram.
O crescimento da Associação trouxe novas demandas, agentes e formas de inserção, como a entrada na grade de programação da Rádio Nacional com um programa de funk: A Apafunk fez cinco anos agora, cada passo que a gente dá encontra respostas e outros questionamentos.Como a gente se apropria desta questão da comunicação, já que o que sai na mídia é sempre uma versão que criminaliza... então colar com esta galera da comunicação popular é fundamental. A nossa sociedade é desinformada ao máximo, eu não tenho espaço de troca para saber sobre negritude, feminismo, homofobia, transporte público, saúde, um monte de coisas. No Sarau o nosso alvo principal é aquele trabalhador que está passando lá atrás e se identifica com a fala de um poeta ou de uma mulher que está falando sobre feminismo. Então de cada sarau, um ou dois trabalhadores chegam e querem saber se é toda semana. Aí na outra semana ele chega com uma pequena letra que fez sobre alguma coisa que ele viu e com a nossa linguagem. Uma coisa menos acadêmica.A Apafunk até hoje se comunicou muito bem com a Academia, a questão é como a gente mantém isto e como puxamos os nossos... temos um programa
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na Rádio Nacional, o Funk Nacional, mais uma vitória do Coletivo. Além de tocar músicas para as quais você não precisa assinar contratos abusivos, a gente sabe que para tocar numa rádio, FM o Dia, Beat 98, você tem que pagar para tocar e no funk é um pouco pior porque você tem que ceder seus direitos autorais. Então conquistamos este espaço não só para a música, mas, para poder falar do que nos cerca sem ter que abaixar a cabeça e sem medir palavras.
Quando Leonardo cita a relação com os partidos políticos e universidade, é importante observar que houve um aprendizado político para o encaminhamento das reivindicações. As ações da Associação apresentaram uma forma de movimento que poderia ser nomeada como “inovação política para produção de engajamento”, ao utilizarem rodas de música como estratégia de mobilização. Não eram apenas as letras de “Rap da Felicidade”, “Não me Bate Doutor” ou “Tá Tudo Errado” que comunicavam o problema. O discurso, repetido e consolidado a cada roda, conclamava a sociedade civil a entrar no debate sobre cultura urbana, justiça social, direito de ir e vir, a partir da reinterpretação do passado histórico (PAMPLONA, 1996, p. 121).A importância do evento na Alerj pode ser medida a partir da declaração de Leonardo de que aquele evento foi o mais importante da história dos 40 anos de funk: “pois agora o Estado reconhecia o movimento como cultura e não como marginal”.
Conclusão: repertórios de conflito, alguma poesia ainda é possível? A partir da década de 1990, observamos o surgimento de novas tecnologias sonoras no Brasil concomitante à consolidação de um estilo jovem urbano de comportamento e consumo. O rap e o funk se constituíram como trilha sonora urbana desta parcela de juventude. Mas quando a possibilidade de entretenimento entra na pauta da segurança pública e não da cultura, é preciso olhar para a organização da Apafunk enquanto uma forma possível de realização de protesto político26 (THOMPSON, 1966; RUDÉ, 1959; TILLY, 26
Considerando a existência de diferenças marcantes entre os autores quanto as formas de classificação e análise do protesto político, um ponto parece ser compartilhado entre os autores: a oposição da organização do protesto político dos grupos menos organizados em oposição aos mais institucionalizados (cujo melhor exemplo é a classe operária). O uso do termo pré-político por Hobsbawn, demonstracom frente a ação da classe operária, estas turbas poderiam parecer pouco organizadas paraimposição de uma plataforma política frente aos poderes instituídos.
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1975; HOBSBAWN, 1959). Na construção da mobilização política, organizada pela Apafunk recursos foram mobilizados até o ato final de revogação da Lei 5.265, em um auditório lotado, com apoio de intelectuais, políticos, movimentos sociais e artistas. Talvez poucas manifestações musicais sejam tão territorializadas quanto o funk. O que não significa que a produção fique restrita as favelas, vilas e áreas menos nobres das cidades brasileiras. Significa que a produção destes artistas é ancorada em uma referência explícita ao lugar. Ser classificado como funkeiro na cidade do Rio de Janeiro, a partir da década de 1990, seria o mesmo que padecer de um atributo profundamente depreciativo (GOFFMAN, 1988), não reversível e identificável a partir da forma de circulação na cidade (bairro de origem), vestuário e gosto musical. Os discursos produzidos pela Apafunk, tematizam não apenas o local de moradia, mas a cor da pele, o gênero, o grau de escolaridade e o tipo de emprego. Considerando o crescimento destas áreas, nas capitais do país e o percentual de jovens que lá habitam, a música se transforma em um problema político de caráter dramático, agonístico. Foi objetivo deste artigo apresentar e analisar o processo de construção desta pauta, a forma como atingiram êxito ao conseguirem a revogação da lei de Álvaro Lins. A partir da instauração das UPPs e da preparação do Rio de Janeiro para recepcionar a Copa do Mundo e outros grandes eventos, torna-se essencial a discussão sobre esta relação entre manifestações culturais e suas formas de resistência. É importante lembrar que no momento atual, bailes funk em favelas de UPP passam por situações de proibição ou são permitidos sob uma série de restrições, o que tem gerado protestos constantes em relação a forma autoritária como o Estado vem agindo em relação a ação de pequenos produtores de festas dentro das favelas. Mas não só o baile vem sendo perseguido. A altura do som, mesmo em festas familiares, vem gerando confrontos violentos (em alguns casos, terminando em prisão e violência física) entre moradores e policiais. O quadro atual, desconhecido de uma parcela da população que apoia a ação do Estado nas favelas, revela a urgência de estudos sobre este cotidiano e sobre as formas de resistência dos moradores, prin-
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cipalmente os jovens, mais reticentes a proposta de ordenação do território a partir da presença contínua de policiais nestes espaços. Diante do Estado que negava o direito aos bailes e lidando com os estigmas aplicados aos moradores de favela, este grupo construiu suas formas de ação em um campo certamente limitado quanto às possibilidades de articulação e mobilização de recursos. Ao pensar em “um repertório familiar de ações coletivas que estão à disposição das pessoas comuns” (TILLY, 1976, p. 22), tendo a duração temporal como limitador das possibilidades desta ação, Tilly (1978, p. 151-152) observa que: Num dado ponto do tempo, o repertório de ações coletivas disponível para uma população é surpreendentemente limitado. Surpreendente dadas as inúmeras maneiras pelas quais as pessoas podem, em princípio empregar seus recursos ao perseguir fins comuns. Surpreendente dadas as muitas maneiras pelas quais os grupos existentes perseguiram seus próprios fins comuns num tempo ou noutro.
Ao recuperar a trajetória de Leonardo, através da criação da Apafunk, temos uma série de elementos que colaboram na reflexão sobre a relação entre emprego de recursos para mobilização dos agentes e aprendizado político para produção de resultados dentro das instituições estatais. Neste caso, o Estado de Direito revoga uma lei compreendida como injusta e reconhece o funk como movimento cultural. Mas este resultado só pode ser atingido a partir da instauração de um quadro de conflitos que se estendeu por todo o período: proibição das rodas de funk (no Morro Dona Marta, em julho de 2009), parlamentares escondendo os relógios na Alerj (demonstrando suas representações sobre a presença daquela população no plenário), não divulgação dos eventos em nenhum grande veículo de comunicação até que o fato atingisse a Alerj, em setembro de 2009. A partir de então, os jornais passaram a divulgar manchetes que demonstravam a união entre as forças da segurança e os funkeiros. Logo após a instauração das UPPs, esta tônica seria essencial para a realização de bailes pacificados em favelas da zona sul, como a do Cantagalo, com horário para começar e terminar, sem proibições e é claro, sem a presença do tráfico.
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O Manifesto do Movimento “Funk é Cultura” foi aprovado em um encontro de MCs em 26 de julho de 2008. Os principais pontos do manifesto tocam: a) na relação entre o universo funk e a produção direta e indireta de empregos; b) na promoção de interação entre diferentes classes sociais; c) contra a exploração a que são submetidos os trabalhadores do funk “submetidos a contratos abusivos e muitas vezes roubados”, e decorrente deste quadro, d) contra a monopolização da indústria funkeira por alguns empresários, o que contribui para diminuição da diversidade das composições, “ estabelecendo uma espécie de censura no que diz respeito aos temas das músicas. Para os integrantes da Apafunk, esta é uma das principais razões para que no cenário atual impere a mesmice da chamada “putaria” ao invés de uma crítica social.Além destes pontos, o problema central: a proibição de realização dos bailes. O conteúdo das letras apresentadas nas rodas reivindica o direito a circulação na cidade e o acesso a seus espaços públicos. Não estão propondo explicitamente uma revolução social e, no entanto, sua pauta se torna emblemática pela impossibilidade desta circulação livre, sem que sofram com ações policiais de interpelação, muitas vezes de forma violenta. Além disto, estão propondo a regulação de direitos trabalhistas para artistas que vêm sustentando um sistema de festas, discos, filmes, desfiles de moda, tendências na música globalizada, sem receber dignamente pelo seu trabalho. Por último, os profissionais e amigos do funk estão defendendo o direito a viver em suas áreas de moradia sem a invasão de um cenário marcado pela erotização. A poesia possível no horizonte de ação coletiva faz referência aos direitos negados historicamente no Brasil às populações marginalizadas. Estas letras, exibidas nos carros de som, entoadas nos bailes, são adquiridas pelos donos de equipe que passam a ter direitos fonográficos sobre elas. Os valores em alguns casos, de hits muito conhecidos são ínfimos se comparados aos ganhos das equipes. O discurso da Apafunk possibilita uma crítica muito direta ao trabalho das atuais equipes de som. Esta é uma das questões centrais que colabora na compreensão do trabalho desta Associação como “funk-resgate”. A cartilha “Liberta o Pancadão – o Manual de Direitos do
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MC” foi lançada em 2009, com o objetivo de “conscientizar o trabalhador do funk quanto aos seus direitos autorais.”27 O funk-resgate, recurso analítico empregado neste artigo para pensar a relação destes artistas com o funk, questiona principalmente o atual conteúdo das letras. A crítica neste caso é contra a erotização que limita as possibilidades temáticas do funk. Quando Leonardo questiona em uma das rodas na Central do Brasil “será que se a gente parar de falar em bunda o funk vai tocar”,28 sua crítica tem um objetivo: é endereçada ao tipo de material produzido pelo atual formato das grandes equipes que têm “artistas contratados”. Ou seja, artistas cuja carreira, depende diretamente de um empregador, cujo ramo é o entretenimento.29 No momento de realização da audiência na Alerj os principais donos de equipe estiveram presentes. Neste momento, a visibilidade da Associação já ganhara a grande mídia e é compreensível o interesse de mais agentes sociais pela defesa do funk como cultura.
Abstract Tensions between culture and urban order were incited to ban performing funk parties in the city of Rio de Janeiro. In 2009, a group of composers of letters, masters of ceremonies, intellectual and social movements gathered around an agenda that claimed the return of the balls. This article will present the process of formation of this group of artists. From a repertoire of unconventional policy 27
Mais detalhes sobre a cartilha em http://mcjunioreleonardo.wordpress.com/; acessado em 06/10/2013. O problema quanto aos direitos autorais pode ser ilustrado com recente polêmica envolvendo a Furacão 2000 e um dos típicos hits do ano, “O passinho do volante”. A empresa se apresentava indevidamente (uma batalha judicial é travada durante o ano de 2013 pelos direitos da música) como detentora dos direitos do grupo Lelek´s. Neste caso, um dos possíveis autores da música teve de recorrer à justiça para ter reconhecida sua autoria. Esta situação não é rara entre empresários e compositores. Nos relatos coletados durante a pesquisa de campo, muitos destes compositores viam a Furacão como uma possibilidade de reconhecimento e ascensão social. Segundo eles, “como contrariar o Pai Moreno do funk”?
28
Uma das atuais letras de sucesso, “Mexe com a Xana pra ver”, aparece registrada como composta por Dj Marlboro em vários sites de informações sobre música. Em um deles, encontramos possivelmente seu compositor, o MC Baleia. Estas relações entre produção, mixação e divulgação tornam o universo de direitos autorais no funk, um objeto a parte para pesquisa.
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http://www.flickr.com/photos/furacao2000/5121477969/, acessado em 26 de janeiro de 2014. No site, vários jovens “pedem uma mão” para realizarem-se na carreira como artistas de funk.A Furacão detém os meios de produção e divulgação, sendo sinônimo de êxito para estes aspirantes.Emplacar uma letra pode representar aquisição de status, bens econômicos, reconhecimento. A efemeridade desta experiência para maior parte dos artistas ligados à estas gravadoras,não parece diminuir o ânimo dos participantes.
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actions, such as wheels funk in public spaces, these artists have guided important discussions on the right to the city. From interviews, document analysis and ethnography, this article revisits the major movements of the constitution beat down (Association of Professionals and Friends of Funk) between 2009 and 2011, aiming to confront the political protest and collective action repertoire of an employee decriminalization of the most significant cultural movements in contemporary urban setting: funk carioca. Keywords: political protest, culture, urban order mobilization.
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Administração de conflitos sem tribunais: os Ndendeuli do sudeste da Tanzânia1 P. H. Gulliver TRADUÇÃO: Dra. Kátia Sento Sé Mello Antropóloga e Prof. Dpto. Política Social e do PPGSS – ESS/UFRJ Pesquisadora do NUSIS/ESS/UFRJ e pesquisadora associada ao INCT-InEAC/Nufep/UFF e ao NECVU-IFCS/UFRJ
REVISÃO TÉCNICA: Luiza Aragon Ovalle
Mestre e doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense, UFF. Pesquisadora pesquisadora associada ao INCT-InEAC/Nufep/UFF
Resumo Neste artigo, P. H. Gulliver analisa sua etnografia sobre os Ndendeuli, cultivadores nômades do leste de Songea, sudeste da Tanzânia. É uma sociedade na qual não há tribunais, nem juízes, nem árbitros, nem instituições semelhantes àquelas geralmente encontradas em sociedades ocidentais. Apesar da ausência de instituições formais de administração de conflitos, os Ndendeuli são avessos ao uso da coerção pela força como meio de negociação e de obtenção de ressarcimento por algum dano. Palavras-chave: mediação de conflitos; processos de disputas; administração de conflitos sem tribunais.
1
Este artigo é parte integrante do livro: Nader, L. Law in Culture and Society, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, California & University of California Press Ltd., London, England, 1997. A publicação da tradução foi autorizada por Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, Inc., New York, New York, a quem agradecemos. O artigo foi originalmente publicado com o título: “Dispute Settlement without Courts: The Ndendeuli of Southern Tanzania”. Revista Antropolítica, n. 36, p. 239-302, Niterói,1. sem. 2014
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Ao considerar o Direito e particularmente os processos de administração de conflitos em sociedades tradicionais, os antropólogos têm lidado, na maioria das vezes, com situações nas quais esses conflitos são operados por intermédio de tribunais ou instituições semelhantes. A palavra tribunal aqui utilizada refere-se a uma assembleia mais ou menos formal, presidida por uma pessoa ou um grupo de pessoas que têm a responsabilidade e a autoridade para ouvir os casos daqueles que estão em conflito, as suas testemunhas e os seus argumentos, assim como para determinar e proferir uma decisão. Em outras palavras, há adjudicação por um juiz que não é, ou não deveria ser comprometido com um dos lados do conflito, devendo agir como uma terceira parte. Em alguma medida, o juiz age em benefício da comunidade e/ou da autoridade política estabelecida. Ele pode ser virtualmente uma espécie de porta-voz da opinião pública, sintetizando o consenso entre os diferentes pontos de vista a respeito do conflito em questão; ou pode ser de fato a autoridade que tem em suas mãos a responsabilidade de oferecer uma decisão, ainda que referenciada pelas regras e precedentes estabelecidos. Frequentemente, mas não invariavelmente, o juiz tem à sua disposição uma série de sanções através das quais reforçam as suas decisões, mas esta parece ser uma questão secundária. Ele pode ocupar um status formal especializado no sistema político estabelecido e gozar do suporte da coerção disponível neste sistema para aqueles que se encontrem em posições de autoridade política. Isso é típico daquelas sociedades com sistemas políticos centralizados institucionalmente. O melhor exemplo, descrito por Gluckman (1955), é aquele oferecido pelos Lozi da África central, mas há outros similares, talvez ainda não explorados, na própria África e em outros lugares. Em outras sociedades, alguns papéis, de conteúdo parcialmente político e jurídico, trazem consigo a obrigação e o direito de adjudicar, ou ao menos de arbitrar, em conflitos e oferecer opiniões e decisões com alguma expectativa de serem aceitas e mesmo reforçadas. Exemplos disso são encontrados, entre outras, nas lideranças de linhagens, de rituais, de grupos etários, de vilarejos, e de sociedades secretas oficiais. Há, ainda, sociedades nas quais pessoas com variados tipos de influência – vizinhos, idosos, ou quais-
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quer outras neutras às pessoas em conflitos – podem ser pressionadas a adotar temporariamente o papel de árbitro ou mesmo de adjudicador sobre algum conflito ad hoc – como acontece, por exemplo, entre os Ifugao, no nordeste do Luzon (BARTON, 1919). Em resumo: em todas essas sociedades, alguém, ou um corpo de pessoas, que não está diretamente implicado num conflito, age como um juiz ou um árbitro, que oferece, ou tem que oferecer, uma decisão. Epstein, um advogado-antropólogo, descreveu a forma mais rudimentar de uma situação de conflito: “Argumentos são apresentados, testemunhas são convocadas ou aliados são ouvidos até, finalmente, o problema ser concluído quando os porta-vozes autorizados do grupo dão as suas opiniões sobre o caso”.2 Quase tudo que há de melhor em análise antropológica sobre administração de conflitos se refere a este tipo de situação – a “tribunais” e “juízes”, entre os quais, Llewellyn and Hoebel, Bohannan, Gluckman, Hoebel, Hogbin, Pospisil são aqueles que saltam imediatamente à mente. Pouca consideração tem sido dada, em qualquer nível de profundidade analítica, às sociedades e situações sociais nas quais o adjudicador, o juiz ou o árbitro estão ausentes. A literatura apresenta muitas referências às contendas como uma alternativa à adjudicação, mas parece não haver uma análise adequada e convincente sobre as contendas como um processo de resolução de conflitos senão como um processo político. Nesses casos, mais cedo ou mais tarde – pelo menos se as duas partes pertencem à mesma rede de relações sociais contínuas e de interação3 na comunidade – a hostilidade ou a sua constante ameaça deve dar lugar à discussão, negociação e tentativas de alcançar algum tipo de aproximação4 e de administração da questão em conflito. Como esse estágio é alcançado e como o conflito é negociado são questões raramente detalhadas para nós. As hostilidades dos grupos e o término delas resultante da reconciliação e da paz parecem interes2
(EPSTEIN, 1954, p. 2), grifo do autor.
3
Contendas persistentes parecem ocorrer com frequência não no interior de uma mesma comunidade nem mesmo em uma comunidade vizinha, mas com aquela ligeiramente mais distante com a qual interações pacíficas e contínuas não são essenciais – conforme Peters (1967) apontou para os Senusi da Cyrenaica.
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[N.T.] No original, rapprochement.
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sar aos antropólogos mais que o essencial processo de intervenção por meio do qual a mediação dos conflitos é alcançada – e esse processo é muito mais difícil de ser adequadamente registrado. Barton (1949) sobre os Kalingas e Colson (1962) sobre o Plateau Tonga são exceções admiráveis. Em qualquer um dos casos, nem todas as pessoas que não têm adjudicadores nem árbitros praticam necessariamente um ato institucionalizado de força ou contenda no evento de um conflito; do mesmo modo, nem todos os conflitos são tratados como contendas mesmo naquelas sociedades em que são praticados, já que tais disrupções são raramente permitidas em grupos locais muito pequenos, nos quais as interações se dão majoritariamente face a face. Mesmo nas sociedades com tribunais bem-organizados, os conflitos ocorridos dentro de comunidades locais são, na maioria das vezes, negociados fora do sistema formal: Beattie (1957) descreveu brevemente um exemplo disto. Além disso, como mostrado em outro artigo deste volume, um considerável número de conflitos em sociedades industriais modernas é negociado dentro do grupo (no escritório, no clube, na universidade) ou por algum tipo de processo conciliatório (por exemplo, encontro de representantes legais) sem recorrer aos tribunais. Em síntese, há uma gama de comunidades e situações sociais nas quais nem os tribunais nem a coerção proveem os meios de negociar e lidar com conflitos. Em trabalho anterior, com o grupo Arusha do nordeste da Tanzânia, descrevi os processos essencialmente pacíficos de administração de conflitos (desde pequenas ofensas até homicídio) em que não há intervenção de adjudicadores. Posto de maneira simples: quando ocorre um conflito entre os Arusha, cada indivíduo nele envolvido recruta um corpo de aliados e as duas partes se encontram pacificamente para discutir o problema e negociar um acordo. Os aliados são recrutados na base da afiliação patrilinear, grupo geracional e vizinhança. Cada contendor tenta ganhar o apoio em especial dos homens mais influentes publicamente (conselheiros de linhagens, porta-vozes de grupos etários e outros notáveis) que estejam mais proximamente ligados a ele, por uma dessas vias, que a seu oponente. No entanto, esses homens influentes agem como líderes e advogam em nome de um dos con-
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tendores e não são, em nenhum sentido, uma terceira parte, arbitradores ou adjudicadores. Embora referência e apelo às expectativas de comportamento e às rupturas alegadas sejam feitos por ambas as partes em conflito, o estabelecimento de um acordo é, de certa forma, um compromisso negociado entre as demandas em conflito. Pressões sociais de todos os tipos são trazidas na medida em que cada contendor tenha condições de utilizá-las para influenciar a outra parte. As negociações raramente dizem respeito às normas ideais: se algum acordo deve ser alcançado, cada parte envolvida deve estar preparada – e induzida – a mudar as suas bases e aceitar o compromisso. O problema da execução de uma lei surge apenas marginalmente: uma vez que é um acordo negociado, ambos os lados estão preparados para aceitá-lo como a melhor solução nas circunstâncias dadas. O acordo é, de preferência, colocado em prática imediatamente com o objetivo de evitar outra ação – por exemplo, a compensação acordada é imediatamente paga, a moça raptada retorna a seu pai, as fronteiras de um campo são prontamente demarcadas. No entanto, meios rituais podem ser usados, e isso acontece para unir ambas as partes na mediação. Esse é um breve resumo de um processo muito mais complexo (GULLIVER, 1963, Parte IV). Neste artigo examino os dados de outra sociedade africana, em que não há tribunais ou instituições semelhantes, não há juízes nem árbitros, mas também onde se abdica da coerção pela força como meio de administração de conflito ou de obtenção de uma compensação por dano.
Os Ndendeuli Os Ndendeuli, grupo de língua bantu, são cultivadores nômades que habitam a parte leste da área de Songea, no sudeste da Tanzânia. O país é coberto por florestas em terra seca. Com o uso a técnica simples de derrubada e queimada em solo muito pobre, os campos não podem ser cultivados com milho, o produto principal, por mais que três estações sucessivas, -. Como é comum a toda África Central, há uma grande proporção de terras não cultivadas, o que impede a permanência destes grupos em um único local. Terras disponíveis para o cultivo tornam-se exauridas antes que as terras abandonadas este-
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jam completamente regeneradas. De um modo geral, a densidade populacional é de aproximadamente cinco pessoas por milha quadrada (o equivalente a 2,59km2 )5, mas há extensas áreas de florestas não habitadas. As pessoas são congregadas em comunidades locais de 30 a 45 unidades domésticas – 150 a 250 pessoas –, tanto que as densidades puramente locais da população são em torno de 60 pessoas por milha quadrada (2,59km2 ). Uma comunidade local se estabelece quando um homem reúne um grupo de parentes – cognatos e afins – e, juntos, eles se tornam os pioneiros de uma área desocupada. Sendo todos relacionados ao líder, os pioneiros (e as suas unidades domésticas – familiares imediatos e dependentes) estão direta ou indiretamente relacionados uns com os outros. Um recém-chegado é geralmente bem-vindo à comunidade se ele for ligado por relações de parentesco cognato ou afim com algum membro residente na comunidade, que atua, por sua vez, como seu patrocinador, garantidor e aliado. Estabelecida a relação com um patrocinador, o recém-chegado está, portanto, ligado direta ou indiretamente a todos os vizinhos membros da comunidade. Conforme um número crescente de recém-chegados une-se à comunidade (porque a terra disponível ficou exaurida em outro local, por dificuldades em suas antigas comunidades , e outras situações semelhantes), cresce igualmente a distância entre as alianças de líderes das unidades domésticas Os homens se tornam incapazes e desinteressados de traçar suas relações com muitos dos seus vizinhos. Eles reconhecem e cooperam com uma gama de parentes, cognatos e afins, e têm conhecimento e ocasionalmente cooperam com um conjunto amplo de parentes dos seus parentes; mas outros são meramente vizinhos. Ainda assim, empiricamente, como resultado da combinação do conhecimento genealógico pelos antropólogos, os membros de uma comunidade local podem ser colocados numa única e extensa genealogia. Isto é uma consequência lógica do modo de recrutamento de 5
Como no Brasil a unidade de medição não corresponde à unidade americana ou inglesa, para melhor compreensão na língua portuguesa, fiz a conversão de milhas quadradas (per square mile) no conversor de unidade de medição do Instituto de Pesos e Medidas (IPEM) do estado de São Paulo – http://www. ipem.sp.gov.br/5mt/cv2/index.htm
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uma comunidade, tendo grande importância no processo de administração de conflitos, conforme apresentado a seguir. Exemplo de uma comunidade local Ndendeuli é dado na Figura 1. Podemos observar que a comunidade compreende uma única rede de parentesco. O parentesco Ndendeuli é não unilateral em caráter: na natureza dos relacionamentos, na interação, nos direitos e nas obrigações, há poucas diferenças essenciais entre parente cognato e afim. Os laços de parentesco não carregam tipos altamente específicos de direitos e obrigações, mas envolvem cooperação e interesses generalizados, definidos de forma imprecisa. Parentes genealogicamente mais próximos tendem a reconhecer a força das obrigações em trocar assistência entre si em maior grau do que os parentes genealogicamente mais distantes. Mas um homem tem expectativas semelhantes, vamos dizer, em relação ao irmão do seu pai, ao irmão da sua mãe, ao pai e ao irmão da sua esposa ou aos seus primos de primeiro grau. O líder original dos pioneiros que fundaram a comunidade local não continua a ter necessariamente um papel de influência quando a comunidade é estabelecida. Ele não se torna uma espécie de chefe. Se ele retém alguma influência particular, isto depende principalmente das suas qualidades e habilidades pessoais, bem como da natureza da extensão dos seus parentes diretos entre os seus vizinhos. Como os residentes vão embora por razões quaisquer e recém-chegados mudam para a comunidade com frequência, o líder pode ter muitos vizinhos parentes ou somente alguns. Além disso, ele não está em melhor posição do que nenhum outro membro bem-favorecido na comunidade para exercer influência ou liderança sobre ela. Tal comunidade local consiste em um número de aldeolas que varia de uma a cinco unidades domésticas autônomas, espalhadas por uma área de três ou quatro milhas quadradas, ou seja, de cerca de 7,77 a 10,3km2. Elas são separadas de comunidades similares por extensões de florestas desocupadas e não utilizadas. A comunidade é uma unidade independente: não se une com nenhum outro grupo maior. Um homem tem vários outros parentes que estão espalhados por outras comunidades, mas com quem ele tem menos asso-
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ciação do que com os seus vizinhos. Não há uma característica regular para os agregados de vizinhos-parentes. Nesse artigo considero a administração de conflitos dentro de uma comunidade local, ou seja, entre vizinhos. É certo que os conflitos também ocorrem entre comunidades diferentes, e o princípio básico do seu tratamento é amplamente o mesmo. No entanto, é mais fácil descrever os processos dentro de uma comunidade. Há ainda uma razão importante para a escolha desta apresentação. A partir dos meus dados de campo, posso descrever e discutir uma série cronológica de casos que ocorreram numa única comunidade durante um ano e que, em maior ou menor extensão,afetaram o mesmo grupo de pessoas em decorrência do desenvolvimento de relações de vizinhança e de parentesco entre elas. Isto é crucial, porque uma compreensão apropriada sobre os processos de conflito entre os Ndendeuli não pode ser obtida por meio da consideração de simples exemplos isolados. Estes processos estão intimamente envolvidos no continuum dinâmico da vida da comunidade e são por ela afetados. Os processos e os resultados em um caso afetam direta e indiretamente as relações que operam em casos subsequentes. Além disso, as relações entre vizinhos que são ativadas e utilizadas quando surgem os conflitos também dizem respeito a vários tipos de cooperação e competição em outros tipos de atividades na comunidade.6
6
Não há dúvidas de que esses processos são similares em outras sociedades, mas os antropólogos tendem a ignorar este fator vital. Em um contexto diferente Turner (1957) demonstrou a importância e o valor da análise da sucessão cronológica de eventos sociais – que ele denominou “drama social” – entre o mesmo grupo de pessoas inter-relacionadas. Turner agora usa o termo “fase de desenvolvimento” em vez de “drama social” – veja a sua introdução a Swartz; Tuden; Turner, (1966).
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Figura 1 - Comunidade local de Ligomba - árvore genealógica 1 2 3 A
Saidi
Malindi
4 5
6 B
Ali
7 8 9 10
C
12
11 Yasini 13 Kabaya 15
14 16
17 Rashidi 18 19 Tanda Musa 21 F
20 Zadiki
G
23 Konga 28
22 Rajabu 24 25 26 27
Mitedi H
29
30
Sedi 31 J
32
Os homens numerados são os chefes dos grupos domésticos autônomos que constituem a comunidade local. Os muitos outros parentes, que residem em outro lugar, bem como as mulheres (não numeradas) são mostrados apenas onde eles proporcionam alianças na rede de parentesco Ligomba. Crianças dependentes não são mostradas.
Um membro da comunidade local requer uma ação coletiva para atender a alguma necessidade sua ou defender algum interesse. Esta ação acontece de diversas maneiras que extrapolam os recursos da sua própria unidade doméstica – por exemplo, em trabalhos cooperativos na agricultura (a derrubada de mata virgem e o estabelecimento de novos campos, na capinagem e plantação, no cercamento de campos etc.); na construção para performances rituais, casamentos, funerais e atividades afins. Do mesmo modo, e igualmente
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aproximando vizinhos, uma ação coletiva é operada seja quando um homem busca recompensa em decorrência de ofensa ou rejeição aos seus direitos, seja para prevenir interferências contra os seus interesses legítimos. Para tal ação coletiva um homem recruta um grupo de ação (action-set) entre os seus vizinhos. Ele recruta principalmente os vizinhos que são seus parentes, mas, na medida em que o desejar e puder, recruta os parentes dos seus parentes, que são indiretamente relacionados a ele também – por exemplo, um primo do seu primo, um parente afim dos seus afins. A extensão do recrutamento feito por um indivíduo (Ego), largamente falando, depende de vários fatores. Um deles é a importância e a extensão da assistência que é necessária. Em segundo lugar, o recrutamento de um grupo de ação coletiva por outro vizinho pode limitar o número de vizinhos que serão mobilizados. Ego pode estar em conflito direto com aquele outro vizinho, por exemplo, em meio a um conflito com ele; ou ambos podem estar engajados numa mesma atividade como a capinação de um campo. Em terceiro, o recrutamento pode ser afetado pela força das alegações com as quais Ego pode influenciar seus parentes vizinhos e, por meio deles, seus vizinhos e parentes que não são diretamente relacionados a ele. Grupos de ação coletiva são puramente efêmeros, sem nenhum caráter corporativo. Uma vez que o interesse que lhe deu origem foi alcançado, o grupo é dissolvido. Grupos de ação subsequentes, para atender outros interesses de Ego ou de algum outro indivíduo, não terão a mesma composição em decorrência da mudança dos padrões dos fatores envolvidos, que determinam em grande medida sua composição, conforme foi visto anteriormente. Neste sistema de parentesco não unilinear, dois indivíduos, ainda que muito próximos, não têm a mesma rede de relações de parentesco sobre a qual podem recrutar grupos de ação. Este sistema é caracteristicamente orientado somente pelo Ego. Os Ndendeuli dizem – e do mesmo modo o antropólogo, com muita caução e brevidade – que os homens esperam ajudar um ao outro e aceitam o recrutamento para um grupo de ação com o objetivo principal de auxiliar Ego em razão da sua relação de parentesco com ele. Uma explicação mais realista, contudo, é que os homens desejam ardentemente ajudar e se envolver numa ação coletiva para Ego, porque em ocasião anterior receberam, eles mes-
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mos, o auxílio de Ego. E mais, porque desejam, no futuro, receber novamente o auxílio de Ego. O princípio da reciprocidade é crucial. Parentes são, na prática, aqueles que mais ou menos regularmente ajudam uma pessoa; aqueles que não o fazem, com efeito, não são parentes. O parente de um parente, com quem estabelece uma cooperação regular, se torna e é reconhecido como um parente, ainda que seu laço genealógico possa ser tênue. No entanto, o parente de um parente que raramente se envolve não está diretamente relacionado a Ego e permanece apenas como um vizinho. O parentesco provê, com efeito, uma forma sintética de expressar uma interação mutuamente vantajosa, embora, em grande medida, padrões genealógicos forneçam “as regras do jogo”, permitindo uma sistematização de cooperação e de expectativas. Sendo assim, A une-se ao grupo de ação de B para ajudá-lo a capinar o seu solo durante a estação do cultivo e espera que B se una ao seu grupo de ação quando estiver em conflito com algum outro vizinho. No entanto, a organização de uma ação coletiva é normalmente muito mais complexa. A pode ajudar B porque deseja expressar e estreitar sua associação com C, que, por sua vez, está ajudando B; posteriormente A pode desejar expressar sua oposição a D, que está em conflito com B. As permutas e complexidades da motivação dos alinhamentos são consideráveis. Elas são, pelo menos inicialmente, melhor indicadas por exemplos, como nos seguintes relatos de casos de conflitos e de grupos de ação por elas precipitados. Para os Ndendeuli, no entanto, elas são abertamente expressas no idioma do parentesco.
O processo de administração de conflito Ocasionalmente indivíduos não residentes são chamados a um conflito entre vizinhos com o objetivo de apoiar seus parentes que habitam uma comunidade. Mesmo quando eles realmente participam do conflito, raramente são pessoas proeminentes na típica interação que conduziu à sua mediação. Essa interação é largamente canalizada por intermédio da rede de parentesco que associa os vizinhos. Por meio desta rede, ou seja, pelos laços de parentesco, um homem está apto a conseguir pessoas que apoiam ativamente seu próprio interesse; mas ao mesmo tempo ele está submetido a limitações e pres-
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sões exercidas por seu oponente, assim como por aquelas que são exercidas pelos que apoiam este último em decorrência dos laços que se estendem entre eles e aqueles que o apoiam. Os vizinhos que estão em relação de conflito são compelidos a considerar toda espécie de laços, interesses e relações importantes que operam na comunidade entre o restante dos vizinhos de modo que possam alcançar um acordo neste contexto. Um modelo bastante simplificado deverá ser útil como introdução à natureza dos processos sociais concernentes à administração de conflito entre os Ndendeuli. Num conflito entre os vizinhos A e E (que não são diretamente ligados pelo parentesco e não se reconhecem enquanto parentes), A espera o suporte do seu vizinho-parente B; B deve contar com o apoio do seu próprio vizinho-parente C (que não é parente de A) para apoiar A. Pode haver a expectativa sobre C, por sua vez, de apoiar nesta situação outro vizinho-parente D (que não é parente de B) ao lado de E, que é parente de D. Dessa forma, A e E estão conectados: seus campos de ação social incidem um sobre o outro, ao mesmo tempo que são mutuamente limitantes. C é colocado de imediato em uma posição estruturalmente intermediária, em que pode ser levado a agir como um mediador; B e D devem buscar influenciar cada uma das partes de modo a prevenir que as suas relações cooperativas (via C) sofram alguma disrupção indevida. De maneira bastante esquemática, a situação básica pode ser ilustrada no seguinte diagrama, quando todas as linhas representam as relações interpessoais: as linhas cheias representam interações diretas, laços reconhecidos de parentesco; as linhas pontilhadas representam os laços indiretos.
A
B
C
D
E
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Uma situação onde, de fato, se estabelece um comflito seria obviamente muito mais simples. É certo que A e E – e, de fato, qualquer outro dentre estes homens – poderiam estar ligados de outras maneiras efetivas por meio da rede de parentesco; mais vizinhos estariam envolvidos e a colisão dos campos de ação de A e E , consequentemente, seria muito mais complexa. Como observei antes, um conflito não é um evento social isolado e autônomo, uma vez que ocorre no contexto do continuum da vida da comunidade. A ou E, ou ambos, podem ter apoiado C em alguma ocasião recente e ambos provavelmente participaram de um grupo de trabalho de C e este nos grupos de deles; A e D, B e D e B e E podem também ter oferecido assistência recíproca entre eles. Por esta razão, todos esperam dar e receber ajuda no futuro. Uma situação de conflito real é geralmente afetada pelos esforços de homens particulares para demonstrar e provavelmente alargar suas influências sobre os seus vizinhos e pelas relações de amizade e hostilidade entre indivíduos, resultantes de encontros passados, assim como das suas relações estruturais. Problemas que dizem respeito ao interesse público, incluindo os conflitos, são discutidos sempre que certo número de indivíduos se agrupa. Um agrupamento de vizinhos pode acontecer por alguma razão – para tomar uma cerveja, compartilhar uma comida, realizar algum ritual e outros motivos semelhantes – ou pode ser organizado, e mesmo formalmente se constituir em uma assembleia para uma discussão específica. Tal assembleia será tratada como moot; os Ndendeuli simplesmente a denominam como “encontro”, mkutano. Um moot pode ser comvocado por uma das pessoas envolvidas no conflito que deseja trazer o problema à consideração pública; ou por um vizinho que é estruturalmente um intermediário entre os contendores ou alguém que, definitivamente de um lado ou de outro, é influente e ativo o suficiente para assumir a iniciativa e a liderança na mediação. Os moots em geral acontecem em território neutro – muito frequentemente na casa de um intermediário – e se o conflito não for tão grave, podem se realizar na casa do acusado. Cada um recruta seu próprio grupo de ação, embora um homem mais jovem (que, não obstante, é o chefe da sua unidade doméstica) possa deixar esta tarefa para o seu pai ou outro vizinho-parente mais velho. Os membros do gru-
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po de ação aconselham o seu líder, sentam com ele no moot, falam em sua defesa, examinam os porta-vozes do outro lado e o ajudam a negociar o seu caso. Embora seja uma arena de conflito organizada, um moot é bastante informal, haja vista que os homens se sentam na varanda, sob as marquises das casas ou mesmo no chão em frente a elas. Há geralmente movimentação de um lado para o outro e os dois grupos de ação são dificilmente distinguíveis aos olhos. Os participantes que são intermediários tendem a sentar no meio do agrupamento, demonstrando a ausência de uma aliança definida com um ou outro lado do conflito. Vizinhos neutros, quando presentes, se sentam na frente do grupo. Há poucas regras de procedimento e ninguém que possa atuar formalmente como um chefe ou coordenador do encontro. O problema é normalmente descrito primeiro por aquele que fez a queixa, ao que é respondido pelo réu; no entanto, não raro o acusado começa o relato, contestando a queixa já conhecida e muito provavelmente acrescentando uma contraqueixa. Em seguida a discussão é livre, aberta a qualquer pessoa presente, mesmo ocasionalmente àqueles que são neutros, ainda que, no geral, a discussão tenda a ser dominada pelas partes envolvidas no conflito, um ou dois dos seus mais influentes aliados e principais intermediários. Com frequência dois ou mais homens falam ao mesmo tempo, especialmente quando a discussão se torna muito acalorada, mas na maioria das vezes cada homem tem a permissão de falar sem ser interrompido, como idealmente deveria ser. Quem fala permanece sentado onde está e pode ser interrompido ou questionado enquanto fala. Os homens conhecem uns aos outros muito bem, é claro, já que são vizinhos que se encontram frequentemente em todos os tipos de circunstâncias. Há uma igualdade pressuposta entre eles e que, mesmo quando as emoções estão muito alteradas, todos desejam que cada um tenha a sua vez de falar e de ouvir com tolerância e respeito. Uma discussão é geralmente desorganizada e desconexa, mas somente os argumentos considerados mais grosseiramente irrelevantes são sumariamente interrompidos pela impaciência do público. Ninguém é obrigado a falar no entanto, com exceção daqueles claramente neutros, eles devam indicar o seu suporte a um dos indivíduos envolvidos no conflito, assim como a decisão final, se houver alguma. No relato a seguir, bem como na análise de casos de conflitos, uma série
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de termos especiais é usada com referência aos papéis desempenhados pelos participantes. Acusador e acusado são classificados como as partes (interessadas) no conflito; são os homens que, respectivamente, fazem ou refutam uma queixa ou uma reivindicação. Geralmente são eles que sofreram e causaram um dano ou uma ofensa que se tornou objeto do conflito ou são os líderes das unidades domésticas das quais o lesado ou o ofensor são membros. Algumas vezes, no entanto, seu papel como principal é assumido por um “pai” – isto quer dizer, um vizinho-parente de uma geração mais velha. O termo intermediário refere-se a um vizinho cuja relação é mais ou menos equivalente na rede de parentesco de ambos os interessados no conflito (por exemplo, C no diagrama anterior). Este é um lugar puramente estrutural que resulta da posição relativa das duas partes (interessados) num caso particular. O papel efetivo de um intermediário varia: ele pode ser ativamente parcial a um dos lados, embora raras vezes se oponha ao outro; ou pode evitar uma participação embaraçosa ao optar por se ausentar de forma deliberada da comunidade e, em consequência, permanecer inativamente neutro; ou ainda ele pode se tornar um mediador. Um mediador tenta agir como um agenciador entre os dois lados, mas ele pode sugerir ativamente, ou mesmo pressionar, para que os dois indivíduos envolvidos no conflito negociem um acordo. Ele é, no limite, um conciliador e não age como um árbitro porque não pode, nem é esperado dele tomar uma decisão ou oferecer um acordo. Embora a maioria dos conflitos e moot estabeleçam um mediador, alguns não o fazem. Numa comunidade local alguns homens são reconhecidos por suas habilidades nos processos de mediação de conflitos e em geral têm uma influência considerável sobre os seus vizinhos até o ponto em que se tornam líderes informais. Tal pessoa é denominada simplesmente um “grande homem” (mundu mukurungwa) e será referido neste relato como um notável. No uso Ndendeuli este é um termo muito vago, aplicável a qualquer um que assuma uma liderança informal em alguma situação ou cuja reputação, personalidade e antiguidade lhe garantam certo respeito e influência. A maioria dos homens de uma geração mais velha na comunidade pode ser, e algumas vezes é, descrita dessa forma, e seria um insulto sugerir que um chefe mais idoso
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de uma unidade doméstica não é um “grande homem”. No entanto, dois ou três homens são de forma invariável reconhecidos publicamente como notáveis: eles exercem influência reconhecida e tendem a tomar a liderança na maioria das ocasiões em que acontece um conflito público, uma discussão e uma ação. É a esses homens que o termo “notável” é dado, sem qualificação, neste relato. O papel deles não é, de forma alguma, bemdefinido. Certamente esta posição não lhes garante autoridade no sentido de que sua liderança deva ser mais ou menos seguida, assim como eles não têm sanções ativas à sua disposição para que deem suporte à sua liderança. Eles não adjudicam, e podem ser ignorados. Um notável que tenta estender a sua influência à dimensão do autoritarismo desperta ressentimento e oposição entre os seus vizinhos. Ele pode mesmo perder a influência adquirida nesta tentativa, na medida em que perde a boa vontade e confiança tãonecessárias para a continuidade do sucesso de um notável. O papel de um notável num caso de conflito depende da sua posição no interior da rede de parentesco vis-à-vis as partes (interessados) e aos seus vizinhos-parentes. Se, de um lado, ele está tão claramente ligado a um dos interessados a ponto de ser incluído no primeiro grupo de ação recrutado para o caso, ele normalmente compartilha a liderança com o interessado e pode até mesmo se tornar o representante central na promoção ou na defesa dos interesses que estão em jogo. Se, de outro lado, ele é um intermediário – e mesmo, algumas vezes, uma pessoa neutra –, pode agir como um mediador. De acordo com a situação, os notáveis podem se tornar líderes de ambos os lados no moot ou um deles pode conduzir um grupo de ação enquanto o outro age como mediador. Conforme veremos nos casos que serão ilustrados a seguir, a rivalidade entre notáveis pode ser importante no processo de mediação de conflito, assim como, em geral, nos negócios da comunidade.
Alguns conflitos na comunidade de Ligomba Durante a pesquisa de campo, em 1953, esta comunidade local compreendia 32 unidades domésticas, cujos chefes são mostrados numa única linha genealógica, conforme a Figura 1. Cada chefe de uma unidade doméstica ti-
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nha vários outros parentes reconhecidos que eram, na época, residentes em outras comunidades no país; um ou dois chefes eram ligados por esses outros parentes. No entanto, as conexões centrais, e aquelas enfatizadas pelos próprios homens, são os parentes dados na genealogia apresentada. Apresentarei um relato de cinco conflitos sucessivos que aconteceram em Ligomba durante 1953, registrados e discutidos por mim no campo. Eles ilustram como os conflitos são tratados no contexto da rede de parentesco de um Ndendeuli de uma comunidade local e como os eventos e os resultados de um conflito têm algum efeito sobre os eventos e os resultados dos casos subsequentes. Devo chamar a atenção para o fato de que eu ainda estou envolvido na análise do meu material de campo sobre os Ndendeuli; estes casos são apenas uma parte do material, ainda que uma parte integral.
• Caso 1. Uma queixa sobre dote adicional de casamento (junho) Em junho de 1953 Rajabu (22) – na Figura 2 – voltou a Ligomba após ter ficado ausente da comunidade por mais de um ano como trabalhador migrante. Um dia depois da sua chegada ele visitou os pais da sua esposa (29 e esposa) e presenteou-os com um cobertor e uma peça de tecido barato. Ele se desculpou por não ter podido oferecer um presente melhor, dizendo que não conseguiu trazer muito dinheiro para casa. Sedi (29) pareceu satisfeito – pelo menos elogiou Rajabu pelos presentes. Alguns dias depois, no entanto, Sedi pediu dinheiro a Rajabu como uma contribuição adicional ao dote da noiva. Rajabu argumentou que já havia quitado as suas obrigações em relação ao dote antes de ter deixado a sua casa no final de 1951; acrescentou que Sedi, na época, ficou muito satisfeito com o negócio. Para reforçar o seu argumento, Rajabu disse que Sedi, na ocasião, não fez nenhuma outra demanda para pagamentos futuros e que, além disso, a sua filha (esposa de Rajabu) continuou a viver na casa deles, na aldeola do seu sogro, Zadiki (20), enquanto Rajabu estava ausente; isto significa que o sogro assumiu a responsabilidade por ela. Sedi negou que este fato consistia em alguma prova de que o dote estava quitado; argumentou que isto era apenas uma demonstração de boas e apropriadas relações de afinidade. Sedi contestou qualquer ideia de que ele teria mani-
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festado satisfação quanto ao dote de casamento recebido. A situação chegou a uma espécie de empate na medida em que Rajabu foi apoiado por seu pai, Zadiki. Após estas discussões privadas Sedi consultou seus vizinhos-parentes e, consequentemente, solicitou um moot para colocar em questão a sua queixa. Seu pedido foi negociado por Konga (23, o filho da irmã do seu pai), primo de primeiro grau de Zadiki (20). O moot ocorreu na casa de Konga. Os grupos de ação no moot foram compostos como segue. Sedi recrutou e liderou o seu próprio grupo. Rajabu, por sua vez, era jovem, em torno dos 24 anos de idade, e havia estado ausente de Ligomba durante um bom tempo em trabalho migrante desde que se tornou adulto; seu pai, portanto, atuou como principal (interessado) no caso e recrutou o grupo de ação; o próprio Rajabu, embora presente, quase não se manifestou. Konga também estava presente junto com o seu filho mais velho (24); eles eram igualmente relacionados uns aos outros, portanto, do ponto de vista formal, igualmente obrigados a agir como mediadores. No entanto, 28, não menos intermediário, preferiu optar pelo que ele julgou ser uma situação muito difícil; ele deixou Ligomba temporariamente. Konga, sendo um notável, assumiu a liderança como mediador. Era um pequeno moot e, conforme aconteceu, o único encontro solicitado para negociar o conflito. Devido aos estreitos laços de parentesco e ligações, os grupos de ação foram muito limitados, não havendo a necessidade de nenhum dos interessados apelar para outros laços de parentesco com vizinhos distantes. Os únicos outros homens presentes eram 7 e 14, que se juntaram ao moot após este ter começado, aparentemente atraídos porque trabalhavam em campos próximos ao encontro, e 15, que chegou ao final dos procedimentos. Nenhum dos três últimos homens chegou realmente a tomar parte no moot. Zadiki argumentou na abertura do encontro que o pedido para um dote adicional era realmente uma demanda por uma parcela maior das economias que Rajabu havia trazido para casa depois do trabalho em outras terras. Com a intervenção de 18, os presentes recebidos por ele mesmo e sua esposa foram admitidos por Sedi; mas ele se queixou de que estes presentes representavam a obrigação de qualquer jovem genro ao retornar do exterior. Sedi continuou a insistir que ele tinha direito a um dote adicional e que Rajabu estava numa po-
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sição que podia oferecer este adicional. Rajabu lembrou a todos que ele havia trazido muito pouco dinheiro para casa, mas Sedi se recusou a ouvi-lo. O montante em dinheiro previamente dado como dote foi descrito por Zadiki e admitido por Sedi após uma breve discussão. No entanto, Sedi se recusou a admitir a afirmação de Zadiki de que a quitação do pagamento do dote havia sido reconhecida por Sedi. Ele mais uma vez colocou a sua queixa sem, no entanto, especificar o valor que ainda restava a ser pago. Após outras discussões Zadiki foi forçado a admitir que o seu filho tivesse trazido algumas economias, mas disse que era uma pequena quantia que ele precisava para outros fins relacionados aos seus irmãos e a ele próprio, Zadiki. Dessa forma, Zadiki foi apoiado por 18, que também levantou a questão de que Sedi e sua esposa tinham recebido presentes generosos quando Rajabu voltou para casa de seu turno anterior de migração para trabalho. Sedi concordou com este argumento, mas também com a implicação, apontada por Zadiki e o notável, 13, de que Rajabu já havia demonstrado ser um bom genro. Assim, 13 rispidamente falou que Sedi não poderia ter nenhuma queixa contra Rajabu e Zadiki e sugeriu que ele estava se mostrando um sogro ruim na medida em que insistia com a queixa. O notável continuou a revisar a discussão e as evidências consequentemente produzidas de modo a mostrar a ausência de fundamento da queixa de Sedi. A discussão prosseguiu com Yasini (11), que reiterou o conteúdo dos argumentos de 18 e 13. A intervenção de Yasini trouxe uma crise à discussão, uma vez que 30 perguntou com a voz alterada qual o interesse que Yasini teria na mediação. Yasini disse que ele estava apoiando o seu “irmão”; e 18 explicou este assunto da seguinte maneira: “Não é ele o pai da esposa do meu filho?, meu irmão, então? Ele está ao meu lado porque eu sou irmão de Zadiki. É, portanto, de direito que nós estejamos aqui; além disso, eu e Zadiki o convidamos.” Em seguida, 13 lembrou que Yasini era seu irmão também. “Nós nos aliamos aos nossos irmãos, sim”, replicou Sedi, “mas não é verdade que Yasini ainda não recebeu o dote por sua filha? De onde o restante será retirado? Quem dá a Musa (genro de Yasini, 19) o dinheiro do dote, já que ele não esteve na Costa (quer dizer, não esteve trabalhando em outro lugar distante) por um longo tempo? Musa vai adquirir o dinheiro de Rajabu para que ele possa dar o dote a Yasini?”
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Após longa discussão, pareceu que a sugestão de Sedi estava correta, embora não tenha sido admitida explicitamente nem por Zadiki nem por seus aliados. Eu não estou muito certo de quanto comhecimento deste fato Sedi tinhapreviamente e o quanto ele estava sondando o assunto baseado em alguma suspeita, pois nada havia sido mencionado até então. A explicação – que não foi totalmente detalhada no moot – era a de que dois anos antes, ao retornar do trabalho distante da comunidade, 19 tinha emprestado dinheiro a Rajabu, o filho da irmã do seu pai, para que ele pudesse pagar o dote a Sedi. Agora, com o retorno de Rajabu, ele esperava o pagamento do empréstimo para que ele mesmo pudesse completar o restante do valor do dote devido a Yasini (11) para o seu próprio casamento (ver genealogia, Figura 1). Até esse ponto, Konga (23) não havia tomado parte em nenhum dos procedimentos do moot, mas agora, com os detalhes do caso francamente bem esclarecidos ou, pelo menos, tacitamente admitidos por ambos os lados, ele tomou a iniciativa de negociar um acordo aceitável. Ficou claro que ele não era um mediador totalmente neutro porque, embora cautelosamente, inclinou-se para o lado de Sedi. Finalmente foi ele quem formulou que as alegações de Sedi estavam corretas – o grupo de Zadiki permaneceu em silêncio, aceitando, dessa forma, a afirmação – e acrescentou que Sedi tinha direito, como sogro, a um presente melhor do que o que ele tinha recebido desde o retorno de Rajabu. Ele elogiou Rajabu no seu desejo de pagar a dívida ao seu primo, 19; mas declarou – antecipando-se às novas demonstrações de Zadiki da mesma opinião – que era igualmente recomendável ser generoso com o sogro porque este tinha lhe dado a sua filha. Houve ainda uma comsiderável discussão geral pelos membros de ambos os grupos a respeito da força relativa das queixas conflitantes apresentadas pelo sogro e pelo primo de Rajabu, a quem ele devia certa quantia. No entanto, no final – percebi que em particular devido à insistente advocacia de Konga, silenciosamente apoiada por 24 – acordou-se que Rajabu deveria dar a Sedi mais 25 shillings e que 19 (primo de Rajabu) deveria receber 50. Konga pediu diretamente a Yasini (11) que este aceitasse a proposta, ao que concordou prontamente, o que significava que ele estava pronto para aceitar de 19, naquele momento, uma soma de 50 shillings pelo dote, um montante menor do que ele havia esperado. Com a concordância de Yasini, Zadiki dificilmente poderia se opor ao pedido de Konga para que Revista Antropolítica, n. 36, Niterói,1. sem.pu2014 aceitasse também o acordo. No entanto, Zadiki exigiu que Sedi declarasse blicamente que Rajabu não teria mais nenhuma obrigação em relação ao dote
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de casamento. Após algumas tentativas de Sedi não se comprometer com esta declaração, a aceitou. Rajabu foi a casa, a menos de uma milha de distância (aproximadamente 1,6km) e retornou com a quantia acordada com Sedi. O moot terminou, neste ponto, com uma rodada de cervejas oferecidas por Konga. Figura 2 12
11 Yasini 13
19
18
21 Zadiki
20 23
Rajabu
22 24
Konga 28 29
30
Sedi 31 32
O significado do papel desempenhado por Konga (23) na mediação e no acordo foi reforçado para mim posteriormente em conversas que tive com Yasini (11), com o meu assistente de campo e com o notável (6), que não participou do moot. Esses informantes explicaram que Konga – e 24 – poderia ter apoiado o lado de Zadiki argumentando que Sedi já havia recebido um dote de casamento adequando,7 já que Rajabu tinha uma dívida com 19, que pre7
Ficou acordado no moot que Sedi teria recebido previamente de Rajabu 185 shillings em dinheiro. Esta é aproximadamente a quantia estimada de um dote entre os Ndendeuli e, no entanto, não serviu como parâmetro para apoiar ou recusar as queixas em relação a um adicional ao dote.
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cisava do dinheiro para o pagamento do seu próprio dote. No entanto, Zadiki e Konga, apesar de serem primos de primeiro grau, há tempos eram antagônicos8, mas continuavam a participar das atividades de trabalho um do outro e, em algumas vezes, eram coparticipantes de um mesmo grupo de ação em conflitos envolvendo outros motivos. Ainda assim, as suas relações eram puramente formais, sem afeto. Diferentemente, Konga tinha intenção de manter uma relação de cooperação bem estreita com Sedi e os seus vizinhos-parentes. No sentido estritamente lógico, Konga deveria, ou pelo menos poderia, ter dado igual suporte a ambos os interessados no conflito. Até onde pude compreender as questões no conflito, e na opinião dos meus informantes, não houve uma solução clara. Caso Sedi não houvesse já recebido uma soma mediana como dote, por exemplo, haveria uma queixa mais bem colocada naquele momento. Naturalmente outros fatores também afetaram o acordo. Se Yasini (11) tivesse sido mais insistente na sua queixa a respeito do dote de 19, ou tivesse 18 sido uma pessoa mais influente ou mesmo argumentado melhor, ou ainda, tivesse Zadiki sido mais insistente do que preparado para, ao final, satisfazer o sogro do seu filho, o acordo teria sido muito diferente. Entre os Ndendeuli, os sogros normalmente tentam obter presentes generosos do trabalhador migrante, mas nem sempre eles são bem-sucedidos, especialmente quando outras dívidas substanciais estão em jogo. Nesse sentido, Sedi obteve sucesso, sem colocar em risco o casamento da sua filha, ainda que não tenha feito nenhum esforço para aprofundar as suas relações de afinidade. Além disso, Sedi colocou o seu genro em uma posição de certa forma difícil entre ele e Zadiki. O papel de Konga, no entanto, parece ter sido crucial. A sua influência, assim como a habilidade persuasiva, largamente aceita na comunidade, deu a ele uma vantagem. Apesar disso, ele não desejava alienar inteiramente o seu primo Zadiki. Havia uma útil cooperação entre eles e entre cada homem e os vizinhos-parentes um do outro na comunidade – o rompimento das relações com Zadiki poderia ter significado um rompimento também com 18, por exemplo. O apoio de Konga a Sedi teve que ser moderado por estas considerações e, consequentemente, ele exibiu o apoio à demanda 8
Ver Caso 4 adiante.
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de Zadiki quando pediu que Sedi declarasse o fim das queixas a Rajabu em relação ao dote de casamento da sua filha. Com uma razoável habilidade, Konga conseguiu obter algum sucesso pessoal neste evento, ampliando, com isso, a reputação da sua habilidade e influência em Ligomba. Eu também gostaria de destacar que o acordo foi moderadamente bem-sucedido na mediação do conflito que acabei de descrever, uma vez que as várias queixas concernentes às pessoas envolvidas se ajustaram à continuidade da vida na comunidade. No entanto, como veremos no Caso 4, as relações entre Zadiki e Konga não se tornaram serenas justamente por causa do caso envolvendo o dote de casamento e o acordo que daí resultou; além disso, as relações entre Zadiki e Sedi se tornaram ainda menos cordiais do que anteriormente – uma situação que se tornou importante no Caso 3.
• Caso 2. Demanda por compensação de lesão corporal em uma briga (agosto) Durante o começo da estação da seca, Yasini (11 na Figura 3) reuniu um grupo de trabalho para cortar e limpar um trecho de floresta para preparar um novo campo de cultivo. Além dele, mais 13 homens participaram do dia de trabalho – um grupo razoavelmente grande. No momento da rodada de cerveja, que aconteceu no meio da tarde, o grupo foi ampliado pela chegada de outros vizinhos, até que a grande maioria dos homens de Ligomba estivesse presente. Havia muita cerveja e foi um encontro de grande convívio social, como é de costume para estes grupos nessa época do ano. Um grupo de homens ficou relativamente bêbado, entre eles Malindi (4) e Rashidi (17), que iniciaram uma discussão. Num determinado momento os dois começaram a brigar, sendo apartados por outros que estavam presentes. Enquanto se afastava do grupo, Malindi gritava insultos para Rashidi que, por sua vez, correu em direção ao outro e começou a lutar novamente. Os dois homens foram finalmente separados, mas Malindi saiu com o rosto e o braço ensanguentados e as roupas rasgadas, ao que seu pai e seu primo (2) o conduziram para casa. Ao chegarem à casa, perceberam que, além dos cortes, dos hematomas e das roupas rasgadas, o seu braço estava quebrado.
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Figura 3 1
2
3
4 Malindi
Saidi
5 6 Ali 7 9
11 Yasini 14
13 Kabaya
16
15
17 18
Rashidi
21 20
No dia seguinte, o seu pai, Saidi (3), enviou um dos seus filhos mais jovens como um mensageiro para exigir compensação a Rashidi. Este, por sua vez, negou qualquer responsabilidade em relação à briga, dizendo que Malindi havia provocado a situação quando começou a insultá-lo. O mensageiro, irmão mais novo de Malindi, depois de algumas altercações, ameaçou recomeçar a briga e teve que sair apressadamente para evitar agressões de Rashidi e seus irmãos.
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O pai de Malindi, Saidi (3), consultou o seu primo, Ali (6), como normalmente fazia quando estava frente a algum problema. Ali disse que uma nova tentativa de mediação com Rashidi seria impraticável e, obtendo a concordância de Saidi, foi ao encontro de Kabaya (13), um notável de Ligomba e primo de primeiro grau do pai de Rashidi. Os dois concordaram em organizar um moot e Kabaya persuadiu Rashidi a aceitar o encontro. O moot se realizou dois dias depois na casa de Konga (23) – ou seja, em um lugar neutro. Não pude participar do encontro e obtive relatos conflitantes da mediação de conflitos que ocorreu. Certamente o moot se desfez rapidamente, posto que novas ameaças de violência física foram feitas. Saidi (3) continuou a insistir que o seu filho deveria receber uma compensação e, portanto, outro moot deveria acontecer. As pessoas de Ligomba demonstraram muita inquietação sobre esse conflito e o caminho que ele tomou, já que ameaças de violência percorreram a comunidade rapidamente. Os dois notáveis, Ali (6) e Kabaya (13), que já rivalizavam por influência na comunidade, haviam discutido a respeito do fracasso do moot, colpando de maneira recíproca sobre os grupos envolvidos na mediação do conflito. Uma opinião neutra condenou o irmão mais novo de Malindi, alegando que ele teria ampliado o problema de forma inconsequente; do mesmo modo, a atitude do seu pai, primeiro porque o enviou como um mensageiro, segundo por tê-lo permitido participar do moot, no qual, como um homem solteiro, dificilmente teria o direito de fazer parte. No entanto, Rashidi e seu irmão mais velho (16) foram igualmente responsabilizados pela contínua ameaça de violência, independentemente da verdade sobre o comportamento de Rashidi no momento da briga na rodada de cerveja. O pedido de Saidi por um segundomoot, portanto, bem vindo, foi organizado depois de três dias na casa de Yasini (11) – período durante o qual os grupos de trabalho de 8 e de 19 foram adiados. Os dois notáveis (Ali e Kabaya) não puderam cooperar na organização deste moot, ficando tal responsabilidade sob a iniciativa de Yasini e seu sobrinho (9). Na ocasião Konga havia saído de Ligomba para ir ao funeral de um parente residente em outra comunidade. Dessa forma, a sua casa não estava disponível como um lugar neutro para a realização do moot. De todo modo, Yasini me informou, a briga teria acontecido durante a rodada de
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cerveja por ele oferecida e Rashidi tinha participado do seu grupo de trabalho naquele dia. Após longas conversas, tornou-se claro que Yasini tinha se colocado no papel de mediador no conflito devido à sua posição estruturalmente intermediária entres os dois envolvidos na rede de parentesco (ver genealogia). Os grupos de ação no segundo moot foram compostos da maneira que segue. Rashidi (17) foi principalmente responsável pelo seu próprio grupo, embora o notável Kabaya (13) tenha compartilhado a liderança do grupo com ele. Uma vez que Malindi não podia ainda assumir a posição de liderança num grupo, este foi recrutado pelo seu pai, Saidi (3), embora a condução do mesmo tenha sido feita principalmente pelo notável Ali (6). Grupo de ação de Saidi (3) 4 (S) 6 (MZS) 7 (ZS de 6) 2 (ZS) 1 (FBS de 2) FBS não residente MSB (8 homens)
Grupo de ação de Rashidi (17) 13, 14, 18, 19, 20, 21,
15 (F) 16 (B) (FSZ e filhos de 15) (MZS e filhos de 13) (ZH e ZS de 18)
(9 homens)
Nessa ocasião, 8, filho da outra irmã de 6, não apareceu, apesar de ter tomado parte no primeiro moot; ele não estava na comunidade. O irmão mais novo de Malindi, solteiro, assim como Rashid, também não esteve presente; eles estavam emtre aqueles os quais ameaçaram estimular mais violência. Estavam presentes Yasini (11) e seus sobrinhos, 9 e 10, os intermediários nesse contexto. Além deles, 28, 29 e 31 também estavam presentes, embora não estivessem diretamente envolvidos no conflito; eles participaram como meros espectadores. Dos outros chefes das unidades domésticas que estavam em Li-
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gomba, somente 27, 30 e 32 estiveram ausentes desse moot.9 Foi o moot de participação mais abrangente que eu testemunhei, de um lado, devido à relativa distância na rede de parentesco entre as partes (interessados) (comparemos, por exemplo, os grupos de ação no Caso 1), de outro, devido à preocupação geral e ao interesse despertado pela maneira como o conflito se desenvolveu. Aqui apresento apenas uma versão resumida dos procedimentos no moot. Durante o trabalho de campo e dos registros que recolhi na ocasião, eu não estava preocupado com os aspectos quase judiciais do moot, mas com as interações desses vizinhos na rede de parentesco. Além disso, o moot era especialmente informal; com frequência mais de um homem falava ao mesmo tempo e a troca de falas entre os dois lados do conflito era muito rápida ou oblíqua para ser registrada apropriadamente. Foi somente a posteriori que discuti com meu assistente e vários participantes a respeito do moot como um todo com o objetivo de melhor compreendê-lo. Estas avaliações posteriores, minhas e deles, podem ter afetado a minha percepção sobre o caso. Com efeito, os procedimentos do moot podem ser agrupados em duas partes, ainda que sobrepostas, e, que eu saiba, não há nenhum reconhecimento explícito nem tentativa dos próprios participantes em distingui-las e separá-las. Em primeiro lugar, houve a elucidação dos fatos; em segundo a negociação do acordo. O moot começou com Saidi (3) descrevendo os ferimentos do seu filho e atribuindo as agressões à embriaguez de Rashidi. Ele afirmou que a responsabilidade pela briga se deveu a Rashidi e acrescentou, o que era verdade, que Rashidi não saiu ferido da briga. Ele terminou a sua fala com um pedido de compensação de 60 shillings porque os ferimentos sofridos por seu filho impediram-no de trabalhar no período em que todos os homens preparavam os seus campos para o cultivo anual. A única resposta imediata à sua demanda foi um palavrão de Rashidi, o que significou rejeição à mesma. Ao contrário, Rashidi, seu pai e Kabaya (13) colocaram a responsabilidade da briga em Malindi. Neste momento já era de conhecimento de todos que Malindi havia insultado Rashidi quando o chamou de impotente. Este evento não foi 9
8, 12, 21, 23, 24 25 e 26 não estavam em Ligomba, o que parecia legítimo (ou seja, eles não optaram deliberadamente por não participar do conflito).
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seriamente questionado no moot, uma vez que muitos haviam ouvido as palavras de Malindi; Saidi permaneceu em silêncio quando o notável Kabaya finalmente afirmou o que ouviram e o notável Ali (6) argumentou apenas que essa circunstância, todavia, não absolvia Rashidi da responsabilidade dos ferimentos que ele tinha provocado em Malindi. Rashidi opôs-se ao fato de que a sua agressão teria de fato quebrado o braço de Malindi, que, na verdade, teria tropeçado na raiz de uma árvore e quebrado o seu braço na queda. Ele admitiu, com a insistência de Ali, ter causado ferimentos leves e rasgado a roupa de Malindi, mas justificou que isso teria acontecido devido às provocações dos insultos de Malindi. A fala de Kabaya deu suporte ao argumento de Rashidi. Ali, então, fez um longo discurso em apoio a Saidi, mostrando que Malindi e Rashidi tinham brigado em ocasiões anteriores, sendo Rashidi invariavelmente responsável. Ele falou que Rashidi era conhecido como encrenqueiro, particularmente nas rodadas de cerveja. Acrescentou exemplos de tal comportamento, o que suscitou pedidos de chegarem a um acordo no moot. Rashidi negou esta reputação, mas foi, infelizmente para ele, contrariada pelo apelo direto de Ali a um dos membros do grupo de ação de Rashidi. Ali foi hábil em obter uma confirmação , ainda que de má vontade, de 21 a respeito da briga que Rashidi teve com ele em uma rodada de cerveja algumas semanas antes. Provavelmente, encorajado pelo seu sucesso, Ali reiterou o que ele considerava ser a pobre reputação de Rashidi e continuou sugerindo indiretamente, mas é óbvio que Rashidi usou bruxaria e que era um mau vizinho em Ligomba. Entre murmúrios de reprovação das observações indiscretas de Ali, Yasini (11) interveio pela primeira vez. Ele criticou veementemente a introdução de acusações de bruxaria e apelou a “todos os meus parentes” (ou seja, todos os homens de ambos os lados do moot) para o espírito de amizade e para que chegassem a um acordo rapidamente. O pai de Rashidi (15), indignado, negou qualquer sugestão de bruxaria, dizendo que se houvesse bruxaria em Ligomba isto não acontecia entre os seus parentes. Ele admitiu que o seu filho tivesse brigado anteriormente com Malindi e com 21, mas explicou que era o “mero resultado de questões entre jovens e bebida”, não sendo, por isso, uma questão relevante para o conflito presente. Em resposta, 2 (ZS de Saidi) decla-
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rou abertamente que ele nunca tinha ouvido falar de bruxaria em Ligomba, mas que as queixas de Saidi eram justas. Outro membro do grupo de ação de Saidi, 1, observou que, embora sendo recém-chegado à comunidade, não imaginou que seus vizinhos praticavam bruxaria ou não teria se mudado para Ligomba. Consequentemente, 16 negou de forma veemente a imputação de que seu irmão usava bruxaria, mas foi interrompido por Yasini (11), que declarou que ninguém acreditava nisso e que era um grave erro falar sobre este assunto entre todos os parentes e vizinhos. Estas observações receberam aprovação geral de ambos os lados, enquanto Ali permaneceu em silêncio. Yasini continuou a falar e todos ouviram sem interrompê-lo. Sugeriu que, embora Rashidi em certo sentido fosse culpado por ter atacado Malindi uma segunda vez, ele foi, ao mesmo tempo, seriamente ofendido por este sem nenhuma justificativa. A esposa de Rashidi teve uma criança – de quem Rashidi era o pai – e um homem não poderia aceitar tal insulto sem falar nada, sob nenhuma circunstância. Neste ponto houve uma discussão sem conclusão, alegando impotência em uma comunidade local próxima a Ligomba. Kabaya (13) interrompeu a discussão pedindo que ela terminasse imediatamente na medida em que parecia irrelevante, já que Rashidi não era impotente. Yasini aceitou esta afirmação em nome do moot e ninguém tentou contradizê-lo. Após uma pequena pausa Saidi renovou a sua demanda por compensação de 60 shillings pelas injúrias sofridas por seu filho. Rashidi novamente rejeitou esta demanda com desprezo. Yasini voltou-se para 28 e 29 e disse que ele achava ser o valor muito alto. Estes dois homens, ambos neutros no conflito, sinalizaram concordância, mas nada disseram. Kabaya disse que nenhum pagamento era necessário nem seria justo. No entanto, 2 e 5 disseram que alguma compensação seria justificada, mas não propuseram nenhum valor. Saidi, então, perguntou a Rashidi sobre o quanto ele estava preparado a oferecer. Após algumas trocas de palavras confusas Zadiki (20) obteve a atenção do moot dizendo que, embora ele concordasse com Kabaya que nenhuma compensação deveria ser dada devido às linhas de vizinhança, um “pequeno pagamento de amizade” deveria ser feito por causa do braço quebrado de Malindi. Outro membro, 18, cunhado e amigo de Zadiki apoiou esta sugestão, dizendo que um pequeno pa-
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gamento demonstraria a generosidade de 15 e de Rashidi. Kabaya concordou, mas acrescentou que o valor deveria ser pequeno. Saidi rejeitou a sugestão, mas Yasini perguntou a Rashidi quanto ele poderia oferecer. Rashidi permaneceu em silêncio, mas 20 sugeriu o valor de 20 shillings. Kabaya argumentou que este valor era muito alto e sugeriu 5 shillings, correspondentes à passagem do caminhão para Songea (sede do Distrito), onde Malindi foi tratado por um médico europeu. Ali disse que este valor era muito pequeno, e Saidi e 5 concordaram com ele. Yasini implorou tolerância em ambos os lados; era importante fazer o acordo, disse ele. “Todos nós somos parentes e vizinhos. Vamos terminar este caso e prosseguir em paz. Olhem! Não observaram que 8 e 19 adiaram os seus grupos de trabalho por causa deste conflito? Todos nós queremos trabalhar e beber cerveja juntos. Malindi foi a Songea naquele caminhão para ser tratado pelo médico europeu; dessa forma, não devemos, portanto, pagar a passagem?” Ele pediu a Saidi que concordasse com os 5 shillings, mas Saidi recusou; 5 pediu um pouco mais. Após alguma discussão ficou acordado que a soma de 12 shillings deveria ser paga. Vários membros do grupo de Rashidi, incluindo Kabaya, expressaram a sua aprovação, assim como Yasini, que implorou a Rashidi para que este pagasse algum valor imediatamente. Po fim, Rashidi ofereceu 2 shillings, aos quais Kabaya acrescentou mais um e 16 e 19, 50 centavos de shilling cada um. Sob a persuasão de Yasini, 15 ofereceu 20 centavos, que era, segundo ele, tudo que tinha. O dinheiro foi passado a Saidi por Yasini, que argumentou que o resto deveria certamente ser pago em breve. A esposa de Yasini trouxe, então, algumas cervejas e o moot terminou amigavelmenteAté onde tomei conhecimento, somente outros dois shillings foram de fato pagos a Saidi – em uma roda de cerveja alguns dias mais tarde. Na opinião de muitos dos homens a quem perguntei, muito provavelmente nada mais seria pago. Alguns pontos sobre este caso devem ser destacados. Os grupos de ação das duas partes foram muito claramente definidos conforme os homens se sentaram na varanda da casa de Yasini ou próximos a ela, na medida em que se colocaram mais ou menos em lados opostos na entrada. O apoio dos membros de um grupo também ficou bem explícito – talvez de modo deliberado – pelas suas primeiras observações no começo do moot. Naturalmente, todos sabiam
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dos alinhamentos relevantes em qualquer caso de conflito, mas as lealdades foram expressas e enfatizadas desta forma. Os dois parentes de Saidi, que não eram residentes de Ligomba, tiveram pequena participação nos procedimentos além de breves comentários em apoio às observações feitas pelo próprio Saidi. O primeiro estágio do moot – a elucidação e a relevância dos fatos da disputa – foi monopolizado pelas partes e seus parentes-vizinhos mais influentes: Saidi e Ali de um lado, e Rashidi, seu pai e Kabaya de outro. O segundo estágio – negociação da compensação – foi iniciado por Yasini (11), apoiado pelos membros menos envolvidos nos grupos de ação: 2 e 5 de um lado, e 20 e 18 de outro – enquanto as partes permaneciam em silêncio ou faziam demonstração de intransigência, mas finalmente concordaram em se comprometer nos termos de seus apoiadores. Um dos contendores iniciais, Malindi (4), vagamente contribuiu para os procedimentos. Ele deixou esta iniciativa para seu pai, assim como o fez na ocasião de recrutar os grupos de ação antes do segundo moot. Ele esteve ausente de Ligomba na ocasião do primeiro moot, quando foi ao hospital em Songea. O outro contendor, Rashidi, no entanto, foi uma liderança. A explicação dessa diferença parece residir no caráter dos dois homens envolvidos no conflito e nas suas relações com seus respectivos pais. Rashidi era uma pessoa mais agressiva, enquanto Malindi era um homem mais quieto, de pouca assertividade. O fato de ambos serem ainda jovens não é significativo, já que mesmo homens mais velhos, com disposição moderada, permitirão a um parente mais influente a liderança nos procedimentos de um conflito. Neste exemplo nenhum dos pais era um homem particularmente influente na comunidade, e ambos estavam preparados para compartilhar a liderança com um notável nos seus grupos de ação – Ali (6) e Kabaya (13), respectivamente. Tanto Ali quanto Kabaya eram primos de primeiro grau do pai de um dos contendores (ou seja, claramente um parente-vizinho), mas isto é menos importante do que o fato de que ambos eram reconhecidamente homens de influência na comunidade; cada um tinha a habilidade e a ambição de assumir a liderança, e cada um buscava a oportunidade de demonstrar e realçar a sua influência. Estes dois homens eram, num certo sentido, rivais por influência, e este fato os estimulou a liderar os grupos de ação
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opostos que se apresentaram no conflito. Neste evento, embora a realização de Kabaya não tenha sido particularmente destacada, a reputação de Ali foi diminuída na medida em que, ao fazer referência à bruxaria, não foi diplomático nem sábio. Ali não somente reduziu o sua estatura como um notável, mas foi um prejuízo decisivo aos interesses de Saidi, que foi uma razão para o repúdio à sugestão de bruxaria por outros membros do grupo de ação Saidi. A posição estrutural de intermediário imposta a Yasini (11) estava bastante clara. O próprio Yasini reconheceu esta posição e assumiu o papel de mediador ativo assim que o moot revelou a extensão da diferença entre as partes. Embora não tivesse nenhuma relação direta de parentesco com as partes, ele não poderia ter se mantido um mediador neutro passivo. De um lado, por meio do casamento das suas filhas, ele estava ligado aos membros do grupo de Rashidi, e ele e Rashidi e seu pai geralmente participavam dos grupos de trabalho de cada um durante a estação da seca; ele era também muito próximo ao notável, Kabaya (13). De outro lado, ele igualmente tinha uma ligaçãopróxima com outro notável, Ali (6), seu primo de primeiro grau; ele também tinha elos recíprocos de grupos de trabalho com alguns outros membros do grupo de Saidi. No entanto, Yasini não era um homem de temperamento muito forte e parecia não ter grandes ambições para conquistar influência na comunidade como um todo. Por este motivo, eu acho, ele foi um mediador eficaz nas circunstâncias apresentadas, uma vez que não buscou para si nenhuma vantagem da posição de mediador. Pareceu a mim, e aos meus informantes, que Yasini não era totalmente imparcial; ao contrário, ele estava mais inclinado para o lado de Rashidi. Os ferimentos de Malindi foram relativamente sérios, já que ele não pôde trabalhar nos campos naquele período atarefado do ano; e talvez tivesse obtido uma compensação maior apesar de ter sido responsável por provocar a briga. Yasini foi, pelo menos parcialmente, responsável pelo acordo que de fato aconteceu. A maneira como Yasini desempenhou o papel de mediador é típica dos processos de mediação de conflitos entre os Ndendeuli. Ele permaneceu quieto até o estágio em que a negociação propriamente dita começou, e, então, independentemente dos apelos de boas intenções e concórdia na comunidade,
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ele agiu, com efeito, como um porta-voz ao estabelecer o que considerava ser o sentimento do moot, abrindo caminho para a próxima fase da discussão. Assim, conforme a discussão prosseguia em cada instância, ele afirmava que as sugestões de bruxaria eram tanto erradas quanto irrelevantes, que a imputação de impotência era falsa, e que 60 shillings eram um valor muito alto como compensação, embora reconhecesse que algum pagamento fosse justificável. Ele finalmente insistiu com Rashidi que este não somente concordasse com a soma de 12 shillings, mas também que fizesse o pagamento de uma parte deste valor imediatamente. Ainda que Yasini tenha tido o apoio de outros membros do moot em cada argumento, assim como, em geral, estivesse apenas enfatizando as suas sugestões, estes foram passos críticos no movimento em direção ao estabelecimento de um acordo. Devo destacar também a tentativa de Yasini em envolver os neutros manifestos 28 e 29, em apoio ao compromisso e ao acordo. Isto, no desenrolar dos acontecimentos, não foi nem importante nem necessário, mas poderia ter sido caso os contendores tivessem sido mais intransigentes. Sedi (29) me contou posteriormente que ele não considerava o conflito como sendo seu ou dos seus parentes, o que, portanto, o levou a desejar permanecer passivo ao longo do moot. No entanto, ele estava interessado o bastante para permanecer no moot e provavelmente teria sido estimulado a participar como mediador caso o conflito tivesse continuado. Sedi também comentou que se Konga (23) não estivesse ausente de Ligomba, ainda que não estivesse, em absoluto, envolvido no conflito, é provável que tivesse tentado desempenhar um papel ativo na mediação do mesmo. “Konga gosta de ter poder e de mostrar que ele é um grande homem, um homem a quem as pessoas escutam”, ele disse. Portanto, na opinião de Sedi pelo menos, Konga teria certamente sido levado por suas ambições a ignorar o seu status como neutro neste conflito. Diferentemente de Yasini, ele não teria sido quase forçado ao papel de mediador, mas teria escolhido adotar este papel. Não é satisfatório à análise recorrer a suposições deste tipo, mas o significado da opinião de Sedi é importante para a compreensão do processo social envolvido.
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Foi um grande fracasso a tentativa de explorar a alegação de impotência feita contra Rashidi – um motivo reconhecido na briga. Como pudemos observar, Yasini bloqueou esta linha de discussão depois que ambos, Rashidi e seu pai, nada falaram a não ser vagas negações vazias. Após outras investigações tomei conhecimento de que Rashidi era quase certamente impotente e que a criança da sua esposa tinha sido gerada por seu irmão mais velho. Os informantes de Ligomba não desejavam discutir este assunto e as minhas indagações obviamente não eram bem-vindas; mas meu assistente de campo relatou que a maioria dos homens acreditava que as alegações eram verdadeiras. Se isto é realmente verdade, explica, de um lado, por que uma defesa mais enérgica não foi feita e, de outro, por que Rashidi e seu pai foram persuadidos a aceitar prontamente as demandas por compensação com o intuito de prevenir futuras discussões. Eles – e Kabaya, o notável – não queriam que esta questão fosse debatida publicamente, temendo uma situação de ridículo e de vergonha. No entanto, se a alegação era verdadeira ou não, permaneceu como uma provocação à violência e, neste caso, a responsabilidade foi de Malindi. Esta questão relaciona-se com a maneira como a acusação de bruxaria foi tratada. Nesse caso, o notável Ali (6) foi além de suas atribuições e enfraqueceu a causa do lado em que se encontrava. Parecia não haver justificativa da sugestão – mesmo tendo Ali a colocado de forma oblíqua – na história de Rashidi e seus parentes. Tais acusações são feitas contra pessoas que alegadamente cometeram outras ofensas, em geral contra alguém que é recorrentemente um instigador. Tal acusação é um grave problema e coloca um conflito num nível ainda mais sério e mais difícil de ser tratado. A acusação de feitiçaria parece ser mais eficaz quando um conflito é prolongado e quando o equilíbrio de opiniões caminha contra um principal; geralmente ocorre quando um conflito é parte de uma série de outros muito proximamente interconectados entre as mesmas pessoas. Dificilmente os Ndendeuli alcançam um acordo e uma reconciliação satisfatória depois que uma acusação de feitiçaria é feita publicamente; é comum uma ou outra parte deixar a comunidade. Isto parece ser verdadeiro empiricamente, mas em qualquer um dos casos, os Ndendeuli pensam e dizem que alguém acusado de bruxaria e o seu acusador não po-
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dem continuar a ser vizinhos e que o conflito entre eles dificilmente é resolvido. Sendo assim, acusações de feitiçaria levantam a possibilidade, por sua implicação, de um rompimento das relações internas à comunidade e uma falha em administrar um conflito. Os Ndendeuli acreditam e temem a feitiçaria, mas implicitamente eles a associam à falha do controle social considerado normal. Dessa forma, a acusação indireta de Ali foi sentida pela maioria dos homens de ambos os lados como sendo, ao mesmo tempo, irrelevante e perigosa, o equivalente à sugestão de que o conflito não poderia ser administrado e que as partes não poderiam continuar sendo vizinhas. Ali devia ter percebido isto – de fato, estou convencido de que em outros momentos ele o percebeu, uma vez que eu já havia discutido a questão da bruxaria com ele em outras ocasiões –, e assim podemos conjecturar que ele estava por demais preocupado com os seus esforços em demonstrar a sua influência e liderança e, com isso, se destacar de seu rival, Kabaya (13). O seu erro foi infeliz, também, em outro sentido, qual seja, ofereceu a oportunidade a Rashidi e àqueles que o apoiavam de fazer um longo, aquecido e orgulhoso protesto, assim como a negação da acusação, tornando a alegação de impotência mais facilmente ignorada. Os membros do próprio grupo de ação de Saidi (ou seja, 2 e 1) estavam virtualmente compelidos a repudiar a imputação de Ali, assim como Saidi também estava pelo simples fato de permanecer em silêncio. Por tanto, involuntariamente, sem dúvida, Ali enfraqueceu o caso que ele estava promovendo e prejudicou a sua própria reputação pessoal. Nesta competição com Kabaya ele não somente derrotou seus próprios objetivos, como também colocou em perigo suas relações com Yasini que, sendo igualmente muito ligado a ambos os homens, foi colocado neste contexto ao lado de Kabaya. Conforme mostrarei adiante, a competição entre Ali e Kabaya sobre e através de Yasini foi persistentemente significativa na comunidade e nos negócios no interior da mesma. Finalmente, eu lembro que, embora houvesse o acordo sobre a compensação de 12 shillings, somente seis shillings e 20 cents foram realmente oferecidos. As pessoas não esperavam que o restante fosse pago. Parecia improvável que Saidi reabrisse o caso, criando uma grande questão sobre a quantia
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pendente; ele provavelmente tinha pouco anseio por isto, uma vez que os ferimentos de Malindi haviam sarado satisfatoriamente e aqueles que o apoiavam no seu grupo tinham pouco a ganhar se o encorajassem para isto. Yasini me disse que o problema havia terminado; que ele não deveria ser levantado novamente ou todo o conflito poderia ser renovado. Ele, também, não queria mais falar sobre esta questão visto que afetaria suas próprias relações de vizinhança. Consequentemente, ninguém tinha nada a ganhar com a insistência do pagamento da quantia total, e a opinião geral era contra qualquer iniciativa que pudesse colocar em risco boas relações de trabalho entre os vizinhos. Sedi (29) sugeriu que possivelmente a dívida não paga seria novamente mencionada no futuro se Malindi e Rashidi ou seus parentes se encontrassem mais uma vez envolvidos em algum outro conflito. Sua suspeita poderia estar correta; e a chance de outro conflito era fantasiosa porque, ainda que o moot tivesse terminado bem e com um acordo, o insulto de impotência, a alegação de bruxaria e a discussão amarga, assim como discussões anteriores, todas se mantiveram por algum tempo. Elas eram potencialmente um solo fértil para futuros problemas. Por outro lado, entretanto, como a vida da comunidade prosseguiu e novos conflitos e disputas trouxeramnovos alinhamentos de apoio e oposição, esse conflito particular cada vez menos produzia clivagens dominantes em Ligomba, tais como aquelas de facções. Muitas outras pessoas, além de Yasini, reduziram as diferenças entre os dois lados com suas próprias relações de vizinhança para que uma clivagem assim pudesse se desenvolver. Neste tipo de sistema de redes, facções persistentes são, empírica e logicamente, improváveis de acontecer na medida em que cada disputa sucessiva tende a produzir seus próprios alinhamentos particulares e efêmeros.
• Caso 3. Reivindicação de um credor (setembro) Cerca de três semanas após o final do caso anterior, um pequeno moot foi organizado na casa de Konga para debater a respeito de um desacordo em relação à organização dos grupos de trabalho para 19 e Sedi (29), que, mais tarde descobriu-se, tinha sido organizado para o mesmo dia. Então, alguns homens (tais como 20 e 22) tinham obrigação de integrar ambos os grupos de
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trabalho no mesmo dia. Não há nada de incomum nesse tipo de desacordo, uma vez que, não havendo nenhuma organização central de um cronograma dos grupos de trabalho, alguns conflitos de datas são esperados; e eles podem ser ajustados em um moot amigável constituído pelas pessoas interessadas nele. Este moot foi administrado pelo notável Kabaya (13 na Figura 4), embora ele estivesse apenas perifericamente envolvido. Figura 4 6
Ali
12
11 Yasini 13
14
Kabaya 15 18
19 21
20
23
22 24
Konga 28
25
29
30
Sedi 31 32
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No decorrer de uma fofoca casual durante a rodada de cerveja, ele foi informado de que um jovem solteiro, filho de Sedi, tinha acabado de voltar de um trabalho fora da comunidade e, consequentemente, aproveitou a oportunidade para pedir a Sedi que reembolsasse a dívida de um bode que Kabaya havia lhe fornecido há um ano, para o dote de 30, outro filho de Sedi. Kabaya era uma exceção nesta parte do país em manter um pequeno rebanho de bodes, com o qual ele fazia um lucro modesto ao vender ou alugar um animal eventualmente. Sedi e seu filho tinham desejado impressionar a esposa do pai e evitar o serviço de um pretendente e, como consequência, tinham obtido um bode como promessa de pagamento em dinheiro em um futuro próximo não especificado. Agora Kabaya esperava ser pago, uma vez que ele acreditava que o filho mais novo de Sedi tinha trazido para a comunidade algum dinheiro depois de trabalhar como mão-de-obra migrante. Primeiramente Sedi tentou negar que o filho tinha trazido algum dinheiro e declarou que ele próprio não havia tido oportunidade para ganhar dinheiro. Kabaya ficou indignado, dizendo que o filho tinha que ter trazido o suficiente para reembolsar a dívida. Ele resmungou que Sedi não havia feito nenhuma tentativa para pagar o que ele devia, lembrando que era a segunda vez que ele reivindicava o seu direito tendo se passado mais de um ano. Sedi não mostrou nenhum sinal de arrependimento ou desculpas, mas, ao ser pressionado, ofereceu cinco shillings a Kabaya como parte do pagamento. Ele também observou que o bode era um animal velho e pobre, que já tinha morrido e que, como consequência, o sogro estava muito insatisfeito. A esta altura Kabaya perdeu o controle; ele repudiou a difamação do seu bode, rejeitou a oferta de parte do pagamento e saiu da casa gritando que não deixaria o caso como estava e que Sedi era um ladrão. Kabaya e o notável Konga (23) conduziram as negociações para a realização do moot, concordando que seria realizado na casa deste. Os grupos de ação, cada um recrutado pelo principal, foram os seguintes:
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Grupo de ação de Kabaya (13) 11 (SWF) 12 (SWB) 15 (MBS) 18 (FZS) 19 (FZSS) 20 (ZH de 18) (7 homens)
Grupo de ação de Sedi (29) 23, 28 (FZS) 24, 25 (FZSS) 30 (S) 31 (DH) 32 (FBDS) (8 homens)
Legenda interpretada pela tradutora: SWF: pai da esposa do filho; SWB: irmão da esposa do filho; MBS: filho do irmão da mãe; FZS: filho da irmã do pai; FZSS: filho do filho da irmã do pai; ZH: marido da irmã; S: filho; DH: marido da filha; FBDS: filho da filha do irmão do pai; Z: irmã.
Esperava-se que Zadiki (20), estruturalmente intermediário neste contexto, e não estando diretamente relacionado ao principal, tivesse atuado como mediador em vez de aparecer como membro de um dos grupos de ação. Houve, entretanto, boas razões para a sua escolha. Zadiki era há muito tempo um amigo próximo e um associado constante do irmão da sua esposa (18) e, portanto, tendeu a se alinhar a este; do mesmo modo, sua inclinação foi aprofundada por causa de seu antagonismo mal contido em relação ao seu primo, Konga, fato que o tornou mais dependente de 18 e dos seus laços de vizinhança. Isto ocorreu devido a sua relação, por exemplo, com 13 e 15. Zadiki, por sua vez, não sentiu necessidade de apoiar nem Konga nem Sedi. Embora o caso 1 tenha sido administrado e aceito por ambos, Zadiki e Sedi, eles não tinham se reconciliado inteiramente; pelo menos é o que parece pelo fato de que Zadiki não estava preparado para atuar como mediador no conflito de Sedi. Do mesmo modo, ao longo do moot ele não escolheu não participar, o que poderia ter feito, provavelmente porque quisesse reforçar o seu apoio a 18 e a Kabaya. Por outro lado, o filho de Zadiki, Rajabu (22, genro de Sedi), e 21 ficaram diante de um dilema (especialmente Rajabu) pela atitude do seu pai e pelo próprio contexto do conflito. Ambos preferiram não participar e saíram de Ligomba por alguns dias. Consequentemente, não houve um intermediário no moot. Esta circunstância parece ter oferecido uma abertura para o notável Ali (6), visto que ele participou do moot e sentou-se, em princípio, com
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o grupo de Kabaya, vindo a assumir o papel de mediador. Ele não tinha sido convidado por Kabaya e, muito provavelmente pela sua rivalidade com este, Kabaya também não desejava que ele estivesse ali. Embora não quisesse evitar sua bem-sucedida atuação como mediador durante o moot, Ali tampouco disfarçou sua parcialidade quanto à reivindicação de Kabaya como sendo um legítimo credor. Em seu papel de mediador ele fez uso da longa amizade com Konga (23, seu primo de segundo grau) na intenção de conquistar um compromisso administrável e a reconciliação entre as duas partes. Em consequência da sua cuidadosa intervenção, Ali também foi bem-sucedido em evitar a eclosão de uma hostilidade entre Zadiki, Konga e Sedi. O moot não se estendeu, e com o isolamento bem sucedido de Zadiki não houve nenhuma complicação para se chegar ao acordo que estava sendo negociado. Os fatos eram tão óbvios para todos que foi impossível produzir diferenças reais de opiniões; os procedimentos foram totalmente voltados para a determinação de algum pagamento de Sedi para Kabaya. Finalmente, Sedi pagou 20 shillings diante dos homens reunidos – ele já possuía o dinheiro em seu bolso e evidentemente chegou ao moot preparado para pagar alguma coisa. Ele prometeu pagar mais quatro shillings posteriormente, embora nenhum limite de tempo tenha sido fixado pra isto. Sedi admitiu ter pouco conhecimento sobre bodes, em particular o que estava em questão. Como uma forma de se desculpar, falou que repetiu meramente as queixas sobre a baixa qualidade do bode que hav ia sido feita pelo sogro do seu filho. Todos os homens concordaram eufaticamente que os sogros sempre se queixam do dote que eles recebem (apesar de vários dos que estavam ali serem eles mesmos sogros); e este foi o espírito com o qual eles beberam cerveja juntos, fornecida por Sedi. Quando o moot acabou, uma questão permaneceu, pelo menos para mim como observador, sobre por que Ali participou mesmo sem ser convidado e assumiu o papel de mediador. Meus informantes em Ligomba, no entanto, não estavam intrigados, conforme descobri em conversas posteriores com Yasini (11), Konga (23) e 18. De acordo com eles, Ali queria participar de qualquer questão pública na comunidade porque “ele é um grande homem”. Embora isto não seja totalmente verdade (Ali não participou do moot no Caso 1, por
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exemplo), é muito relevante. Os notáveis adquirem e mantêm sua reconhecida influência por suas bem-sucedidas participações nos moots. Foi sugerido a mim posteriormente que Ali queria tentar recuperar a reputação que indubitavelmente ele havia perdido pelo seu mau julgamento no Caso 2. Que ele foi bem-sucedido estava claro. Na verdade, Konga o cumprimentou no moot – embora tenha sido como um velho amigo querendo ser generoso. Mais significativo ainda, Kabaya foi obrigado, perante o estímulo de Yasini, a expressar gratidão pela intervenção e auxílio de Ali. Sendo um litigante e um principal no moot, Kabaya não estava, naturalmente, em uma posição fácil para assumir a liderança nas negociações, tendo necessariamente que aceitar e estar satisfeito com o auxílio de Ali. Ele não podia ter encontrado melhor mediador no evento; e acredito que estava aliviado com o fato de que a tensão entre Zadiki e Sedi não interferiu na administração dos seus próprios negócios. Ainda assim, Kabaya não gostou de admitir uma obrigação de gratidão em relação a Ali, e provavelmente ele também não desejava que, por seu intermédio, Ali recuperasse parte de sua reputação em Ligomba. No entanto, havia mais na ação de Ali. Ele foi um rival de Kabaya, não somente por influência pública, como também pelas alianças do parente comum, Yasini. Ali entendeu que, nesse caso, assim como em ocasiões anteriores, Yasini era francamente obrigado a apoiar Kabaya. Isto, todavia, tendeu a afastar Yasini do próprio Ali, e, consequentemente, ele parece ter escolhido se unir a Yasini para auxiliar Kabaya mais do que permitir uma separação entre eles. Passado algum tempo, ele disse para mim: “Yasini não é meu irmão? Então, tenho obrigação de ajudá-lo e apoiá-lo. Eu não posso deixá-lo por conta própria quando ele ajuda outro vizinho. Nós somos um, irmãos, e somos muito mais próximos do que ele e Kabaya.10 Eu fui com ele quando ele ajudou Kabaya para mostrar o quanto somos próximos, irmãos e vizinhos.” Não há razão para se supor que, nesta ocasião, Kabaya tivesse tentado deliberadamen10
Não há um dogma rígido entre os Ndendeuli, o que faz com que, genealogicamente ou em termos de direitos e obrigações, o primo de primeiro grau seja “mais próximo” do que o pai da esposa do filho. No entanto, em qualquer caso, Yasini dificilmente desejou diferenciar a intensidade dos seus laços valiosos com qualquer um dos seus “irmãos”. Sobre isto, a organização dos grupos de trabalho no período das águas que se seguiu foi um teste, quando os grupos de trabalho de Ali e Kabaya discordaram sobre o cronograma. Yasini escolheu participar do grupo de Ali, enquanto o seu filho trabalhou no grupo de Kabaya.
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te enfatizar sua ligação com Yasini ou enfraquecer os laços entre este último e Ali. Ele tinha todo o direito de esperar o apoio de Yasini no conflito com Sedi. Apesar disso, ele parecia ameaçar a posição de Ali. Nesse evento, então, Ali pôde enfatizar tanto a sua ligação com Yasini quanto a sua capacidade para a liderança – a despeito do seu rival, Kabaya; mas conseguiu o que queria sem se opor abertamente a Kabaya.
• Caso 4. Uma querela entre primos (novembro) Aproximando-se o final da seca, 25 e seu pai, Konga (23), foram visitados pelo pai da esposa de 24. Um pequeno encontro para beber cerveja foi organizado por Konga e, além dos convidados, também participou o filho de Konga e Saidi (3), Ali (6), Mitedi (28), Sedi (29) e 30 (ver Figura 1). No dia seguinte, enquanto o visitante ainda estava em Ligomba, Zadiki (20) foi se queixar com Konga com grande indignação porque, ele disse, não tinha sido convidado. Ele alegou que Konga o ignorou – uma atitude inamistosa – e que este fez parecer ao visitante que ele não era importante. Kabaya alegou que havia mandado um dos seus netos à casa de Zadiki para falar sobre o encontro para beber cerveja e que ele supôs que por alguma razão Zadiki preferiu não ir. Zadiki insistiu que não soube do evento (do contrário, ele certamente teria participado) e perguntou por que Konga não se certificou de que a mensagem tinha sido levada. Ele ainda acrescentou que um neto, sendo ainda novo, não era um mensageiro apropriado nem confiável. Konga tentou ignorar o problema, considerando que foi um infeliz incidente, mas a sua complacência pareceu irritar ainda mais Zadiki. Ele criticou Konga, seu primo em primeiro grau, enumerando ocasiões passadas, quando ele teria igualmente falhado em seus convites ou em ajudá-lo de outras formas. Ele se referiu ao Caso 1, dizendo que Konga deveria ter-lhe dado suporte. Em seguida, Zadiki saiu fazendo muitas recriminações que terminaram em gritaria, da qual 24 também participou (aborrecido, ele disse, porque seu sogro ainda estava lá). Dois dias depois, Zadiki retornou à casa de Konga, novamente exasperado. Ele tinha duas queixas. Primeiramente, alegou que algumas das netas novas de Konga (filhas de 24 e 25) insultaram a sua esposa na fonte de água,
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derrubando e quebrando um pote de água. Este incidente havia ocorrido no dia posterior à sua última visita. Em segundo lugar, ele ouviu uma mulher dizer que, depois que ele saiu na ocasião anterior, 27 (o filho recém-casado de Konga) tinha feito zombarias dele para outras pessoas, comparando-o com um galo empertigado, assim como fez imitações caricatas do seu jeito de andar e dos seus gestos. Zadiki agora exigia desculpas por ambos os incidentes, mais a reposição do pote de água quebrado. Konga tentou convencer Zadiki de que se tratava de coisa de meninas e de um espírito zombeteiro do seu filho (cuja reputação era a de ser um palhaço). Ele ignorou o pedido de um novo pote. Outra cena inflamada aconteceu, e quando Zadiki saiu da casa, ele gritou que não deixaria o problema como estava. Este último também não ignoraria o que aconteceu, desde que conseguisse o apoio de parentes-vizinhos para organizar um moot e considerar o conflito. Acredito que tanto a querela quanto a disputa eram iminentes há algum tempo; e não foi a primeira deste tipo. Antes de descrever o curso do moot, no entanto, devo atentar para o contexto dado, à luz da história das relações entre estes homens. Quando Ligomba foi originalmente fundada, Zadiki não tinha acompanhado o seu pai (F; ver Figura 1) como um pioneiro porque naquela época ele vivia na comunidade local do pai e do irmão da sua primeira esposa, onde atuou como requerente e, então, casou pela segunda vez. Ele chegou a Ligomba apenas quando a prolongada e séria doença de seu pai deixara a sua mãe e uma irmã solteira sem nenhum apoio de um homem. Seu pai morreu logo em seguida. Pouco tempo depois, provavelmente em 1938, ele teve um litígio com seu primo, vizinho de Konga (23), alegando que o filho mais velho deste (24, um jovem solteiro) tinha tentado seduzir a sua esposa junior. No moot subsequente ele se viu isolado; o único suporte que recebeu foi do filho da irmã de sua mãe,11 mas Konga obteve um forte apoio de A, J, Ali (6), Mitedi (28), Sedi (29) e alguns outros que não residem mais em Ligomba. A alegação de Zadiki foi rejeitada, e fui informado 15 anos mais tarde que aqueles que apoia11
Desde então este homem mudou-se de Ligomba. Na época do litígio, 13, 15 e 18 ainda não viviam na comunidade. Ver a genealogia na Figura 1.
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ram Konga eram de opinião que a jovem esposa de Zadiki era imoral em termos sexuais – aparentemente, a acusação do marido foi baseada nas palavras da sua esposa. No entanto, o moot foi um fracasso porque Zadiki mostrou-se inflexível para retirar a queixa contra 24. Um segundo moot foi organizado, mas a esposa em questão abandonou Zadiki na noite anterior, declarando que queria o divórcio para viver com outro homem. Sem saber o ocorrido, os homens se encontraram na casa de Zadiki na manhã seguinte, conforme havia sido combinado. Com a provocação de A e Ali, Zadiki, desta vez, concordou em retirar a queixa contra 24; mas ele fez isto envergonhadamente, queixando-se de que os seus parentes estavam contra ele e não o ajudaram nas suas dificuldades. Ele acusou A e Ali, que eram tão próximos dele quanto de Konga, de favorecer este em vez de serem mediadores amigáveis. Insultos exaltados foram trocados em seguida. Todavia, J e o filho da irmã da mãe de Zadiki (que, note-se, era independentemente ligado por intermédio da esposa de J) combinaram de atuar como mediadores, persuadiram Zadiki de retirar todas as alegações e ofereceram ajuda a ele a respeito do abandono da sua esposa. Posteriormente, esses dois homens e Mitedi (28) acompanharam Zadiki ao moot na comunidade local do pai daquela esposa. Eles conseguiram um acordo de divórcio e parte da reposição do dote. No entanto, Zadiki não parecia estar reconciliado com suas circunstâncias nem com seu primo, Konga, posto que, num subsequente encontro para beber cerveja, teve uma desavença com ele e com Ali porque nenhum dos dois foi com ele ao moot para o divórcio. Não parece ter havido consequências imediatas a este evento, mas isso estabeleceu o tom das relações futuras entre estes homens. Pouco depois deste episódio, Zadiki patrocinou a chegada de Tanda (18), irmão da sua primeira esposa, como novo residente em Ligomba e, posteriormente, Tanda patrocinou Kabaya (13), que chegou acompanhado de 15. Anos mais tarde Ali me explicou que Zadiki tinha que conquistar novos vizinhos confiáveis que iriam apoiá-lo ou ele teria que sair de Ligomba. A escolha pode não ter sido tão nítida assim, mas era evidente a vantagem de Zadiki de ganhar estes vizinhos, de modo que pudesse ficar menos dependente de Konga, Ali e outros, que, indubitavelmente, não pareciam leais a ele, sendo até mes-
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mo hostis. Como se constatou mais tarde, Kabaya tornou-se um sério rival de Ali e Konga devido a sua influência e liderança em Ligomba, e em vários incidentes Zadiki se colocou ao lado de Kabaya. As relações entre Zadiki e Konga permaneceram frágeis. Apesar disto, continuaram mantendo um mínimo de cooperação nas relações de vizinhança pelo interesse de ambos os primos; além do mais, era também do interesse de seus respectivos parentes-vizinhos manter relações de cooperação de trabalho através dos laços providos por eles. Os interessados neste caso eram os filhos de Zadiki e Konga, assim como Tanda (18), 19, Mitedi (28) e Sedi (29) (ver genealogia na Figura 1). Alguns destes homens durante muitos anos tinham sido membros dos mesmos grupos de trabalho, bem como dos mesmos grupos de ação, incluindo o período de preparação dos campos na estação da seca de 1953. Eles, portanto, desejavam que a cooperação continuasse na estação das águas, que já estava prestes a chegar. Por outro lado, as relações entre Zadiki e Konga estavam longe de ser cordiais. Apenas por um pequeno período de tempo (Caso 1), Konga, como intermediário estrutural entre Zadiki e Sedi (29), se mostrou, na opinião de vários homens, inclusive do próprio Zadiki, ao ficar a favor de Sedi quando atuou como mediador. Posteriormente, no Caso 3, Zadiki e Konga foram membros de grupos de ação opostos; isto foi devido parcialmente em função do seu próprio conflito, já que em outras circunstâncias dois primos como eles teriam muito provavelmente aproveitado a oportunidade para atuarem juntos como mediadores no litígio. No entanto, os dois falharam ou, até onde pude me certificar, nem tentaram organizar juntos a mediação. O presente litígio surgiu dessa história de relações (brevemente contadas antes) entre os dois homens e das suas posições atuais na rede de parentesco de Ligomba. Konga foi provavelmente responsável por iniciar esta última fase por não ter se certificado de que o seu primo tivesse sido apropriadamente convidado para o encontro para beber cerveja – e talvez ele não tenha mesmo desejado que ele estivesse lá. A questão a respeito do pote de água foi apenas um pequeno problema que, sem dúvida, poderia ter sido resolvido entre eles. No entanto, Zadiki ficou furioso com isto e pareceu aproveitar a oportunidade para usá-lo contra Konga. Este último não se mostrou muito interessa-
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do deixar seu primo confortável em relação ao problema colocado. Além disso, de acordo com um informante (3), Kabaya (13) encorajou Zadiki a insistir em um pedido de desculpas e uma reparação publicamente. A julgar por esta evidência, Kabaya procurou a chance para envergonhar o seu rival e Zadiki pareceu bastante grato em aceitar o seu conselho. No moot os grupos de ação foram compostos da seguinte maneira: Grupo de ação de Zadiki (20) 21 (S) 18 (WB) 19 (S de 18) 13, 14 (MBS e filho de 18) 15 (MBS de 13)
(7 homens)
Grupo de ação de Konga (23) 24, 25 (S) 28 (B) 29 (MBS) 32 (MBDS) 6 (FMBDS) 3 (FMDBS) (8 homens)
Legenda interpretada pela tradutora: S: filho; WB: irmão da esposa; M: mãe; B: irmão; MBS: filho do irmão da mãe; F: pai; D: filha; MBDS: filho da filha do irmão da mãe; FMBDS: filho da filha do irmão da mãe do pai.
Nesse contexto, Yasini (11) não tinha nenhuma ligação próxima com qualquer das partes, mas foi forçosamente pressionado à posição de intermediário estrutural como resultado do convite de Tanda (18) e Kabaya (13), de um lado, e Ali (6), de outro, a unir-se aos seus respectivos grupos. Ele saiu de Ligomba no dia anterior ao moot para visitar um parente. Desta forma, os homens no moot presumiram, corretamente, que ele teria optado por não fazer parte de uma situação difícil na qual não teria nenhuma vantagem ou desvantagem em potencial. Não obstante, um homem mais ambicioso assumiria o papel de mediador neste contexto. Rajabu (22) também foi colocado numa posição ambivalente; ele claramente deveria ter apoiado o seu pai, Zadiki (20), mas não queria agir num grupo oposto àquele no qual se o seu sogro, Sedi (29), estava atuando. Como no Caso 3, Rajabu decidiu não participar, apesar do descontentamento do seu pai e, por ser muito jovem e não familiarizado com os seus vizinhos, ele não era (diferentemente de Yasini) um mediador potencial. O meu relato deste moot foi baseado na informação do meu assistente de
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campo e informantes de Ligomba, como eu não pude estar presente. Zadiki começou o moot repetindo longamente as queixas de que Konga o teria insultado, pelas formas já descritas e continuou a se referir às ocasiões anteriores quando Konga não preencheu as suas expectativas. Zadiki falava com crescente indignação no mesmo tom com que Konga o respondia, ignorando completamente as queixas de Zadiki e levantando outras queixas pelo comportamento que Zadiki teria tido contra ele no passado. O notável Kabaya falou em apoio de Zadiki, assim como Ali prosseguiu em apoio a Konga; 15 também apoiou as alegações de Zadiki, atacando Ali12 diretamente. Conforme os humores dos homens se exaltavam no moot, as emoções também começaram a crescer, mas, gradualmente, uma aliança entre Tanda (18) e 19, de um lado, e entre Mitedi (28) e 25, do outro, proporcionou o estabelecimento de um acordo e uma aberta reconciliação. Como insistissem em uma solução conciliatória, eles foram apoiados por Sedi (29) e 32, e depois seguidos por Ali. Finalmente Kabaya aconselhou Zadiki a aceitar as desculpas de Konga e seu filho, 27 (que tinha feito imitações caricatas dele). Como 27 não estava presente no moot, sob orientação do seu irmão, o pedido de desculpas foi feito em seu nome, por este irmão, 24. Zadiki também concordou em retirar as queixas contra Konga. Diante do ocorrido, o moot foi inconclusivo na medida em que nem o problema imediato nem os problemas mais profundos e de longa duração foram resolvidos. Provavelmente isto era impossível ou, pelo menos, não era desejável que fossem mesmo resolvidos, posto que um acordo de verdade e o estabelecimento de relações amigáveis, “fraternas” e de vizinhança estavam fora de questão devido ao antagonismo pessoal entre os dois homens e as posições em que se encontravam em direções estruturalmente opostas. Tudo iria depender de circunstâncias futuras, naturalmente, mas alguma base parece ter sido traçada para a continuação de algum tipo de relação de trabalho entre os dois homens. Os mediadores do moot estavam preocupados em prevenir a continuação da discussão sobre o litígio imediato devido ao perigo que daí pode12
Tanto Saidi (3) quanto o meu assistente acreditavam que o ataque de 15 foi resultado das acusações de bruxaria que Ali fez anteriormente contra o seu filho (no Caso 2). Isto pode ter sido verdade, uma vez que 15 não falava abertamente nos moots e, nesta ocasião, a sua obrigação de apoiar Zadiki não era muito forte; 15 talvez tenha desejado mostrar a sua ligação com o notável Kabaya (13).
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ria surgir. Sedi (29) contou-me depois que ele, assim como outros que participaram, queriam interromper com a desavença, não continuá-la. A questão do pote de água não foi nem considerada durante o moot, embora Zadiki tenha se queixado na sua declaração de abertura. O moot realmente alcançou o maior resultado – ao menos por enquanto –, qual seja, o de prevenir a cristalização da hostilidade, não somente entre Zadiki e Konga, mas também entre os respectivos membros de cada grupo. Mesmo temporariamente, não houve colapso da cooperação de vizinhança em Ligomba – e isto é especialmente importante, uma vez que a estação chuvosa se aproximava, e havia a necessidade da cooperação agrícola daquela estação do ano dos Ndendeuli. Homens como Tanda (18) e 19, de um lado, 24, Mitedi (28) e Sedi (29), de outro, desejavam dar continuidade à ajuda recíproca e evitar qualquer ameaça a esta reciprocidade que poderia advir de um cisma entre Zadiki e Konga. Na ocasião deste moot Tanda, por exemplo, se posicionou ao lado do seu cunhado, Zadiki; mas ele já tinha estabelecido um acordo de ajuda mútua, mais valioso para ele, com Konga, Mitedi e outros. Sedi tinha uma razão adicional para insistir em um acordo, pois dificilmente gostaria de piorar as relações com o pai do marido da sua filha, a menos que fosse impossível deixar de escolher ficar ao lado de Konga ou de Zadiki. Em resumo, havia muito em jogo para todos os homens envolvidos, para que desejassem algo diferente de continuar boas relações de trabalho. Estas considerações não eram tão importantes, no entanto, para homens como Ali (6), Kabaya e 15, uma vez que as suas próprias relações de trabalho na comunidade não estavam ameaçadas pelo conflito em questão. Todos os notáveis de Ligomba estavam envolvidos neste litígio em particular; o papel de Konga nesse caso foi, naturalmente, limitado àquele de defensor ao invés de líder ou mediador. Kabaya procurou se posicionar do lado de 20 – talvez em relação à oposição pessoal a Konga e Ali –, mas a sua influência nas circunstâncias foi limitada, de fato, pelo interesse próprio dos outros que estavam mais intimamente envolvidos, no sentido de prevenir um confronto aberto e preservar relações cooperativas de vizinhança. Ali apoiou Konga; porém, mais perceptivelmente, talvez, do que seu rival, Kabaya, ele se
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posicionou rápido com os conciliadores. Diferentemente de Kabaya, ele não demonstrou a necessidade de ser persuadido e convencido do caráter satisfatório de sua defesa. A reputação de Kabaya não foi ajudada pelo evento, enquanto a de Ali foi, no mínimo, intensificada.
• Caso 5. Um genro errante (dezembro) Yasini (11) tinha deixado para fazer a reforma da sua casa para o final da estação da seca e, por uma questão de urgência (já que a chuva estava prestes a começar), ele convocou os seus “filhos” locais (o próprio filho, os sobrinhos e os genros), alguns dias após o último moot, para transportarem e colocarem duas novas pilastras em sua casa. Estas já tinham sido cortadas e preparadas há cerca de seis quilômetros de distância. Um dos seus genros, Musa (19), não apareceu no dia seguinte e o trabalho foi feito por 14, 10 e 12, sob a supervisão de Yasini. No entanto, Yasini resmungou sobre a ausência de Musa e, no dia seguinte, recusou as suas desculpas de que teve que visitar o irmão da sua mãe em outra comunidade porque precisava de medicamentos para a mãe que estava doente. Yasini, então, levantou a questão do pagamento do dote de casamento. No Caso 1, a propensão de Yasini em aceitar uma parcela menor do dote do que a que havia sido prometida tinha sido importante para o acordo da disputa entre 20 e 29. No primeiro moot, ele havia concordado em receber somente 50 shillings em vez do total de 75 shillings; no entanto, ele havia recebido apenas uma parte de 40 shillings e concordado em esperar pelo restante. Agora ele pedia veementemente a impressionante dívida de dez shillings. Musa disse que não tinha mais dinheiro e que não conseguiria obter nenhum neste momento, o que Yasini se recusou a aceitar. Ele declarou que não seria mais indulgente com seu genro; ele também se queixou da sua ausência na ajuda que deveria ter dado no reparo da casa e alegou que Musa havia tratado mal a sua filha (esposa de Musa). Ao consultar o seu primo Ali (6), o notável, Yasini foi encorajado a persistir com a sua reivindicação e suas queixas. Ali começou a conduzir um moot em nome de Yasini, que foi facilmente organizado e realizado na casa de Konga (23), onde os grupos de ação foram compostos da seguinte maneira (ver genealogia na Figura 1):
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Grupo de ação de Yasini (11) 12 (S) 6 (FBS) 3 (MZS de 6) 9 (BS)
(6 homens)
Grupo de ação de Musa (19) 18 (F) 20 (FZH) 21, 22 (FZS) 23, 28 (FBS de 20) 24, 27 (S de 23) 29 (MBS de 23/WF de 22) 15, 16 (MBS e filho do FMBS, 13) (12 homens)
Ver legenda nas páginas 130 e 136.
Nesse contexto, Kabaya (13) era estruturalmente intermediário e, em especial por ser um notável, poderia ter atuado como mediador. No entanto, ele preferiu não participar, ausentando-se de Ligomba, enquanto o seu filho, 14, aderiu ao grupo de Yasini (pai da esposa). Até onde pude avaliar, Kabaya não queria atuar como mediador entre grupos que poderiam ser – e de fato eram – conduzidos pelos notáveis Ali (6) e Konga (23), respectivamente. Ele poderia ter adquirido prestígio se negociasse com estes dois notáveis, mas provavelmente presumiu o que estava prestes a acontecer. Ali e Konga eram velhos amigos, assim como parentes; em geral, eles apoiavam um ao outro e sempre evitavam as rivalidades e hostilidades que normalmente existem entre notáveis na mesma comunidade local. Neste moot eles cooperaram como mediadores e começaram como os advogados mais importantes de cada principal. Se Kabaya estivesse presente no moot, teria pouco espaço e se sentiria dispensável pelos notáveis. Desta forma, ele preferiu não participar – provavelmente uma escolha prudente, do seu ponto de vista. O moot não foi difícil nem prolongado. Sua magnitude foi menor do que uma demanda pelo reconhecimento da dívida do dote de casamento a ser pago do que de uma queixa geral de um sogro contra o comportamento do seu genro. Musa estava claramente errado, pois Yasini foi bastante tolerante e prestativo no Caso 1 e, desde então, embora sendo sogro, ele estava em uma posição de alguma superioridade em relação a Musa, que dificilmente deveria
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esperar favores enquanto ainda estivesse devendo o dote. Depois da declaração de abertura de Yasini em relação ao fato, Musa fez uma breve contestação em sua defesa, concentrando-se na dificuldade em pagar o sogro naquele momento. Fez um gracejo sobre a sua obrigação de cultivar o campo, pois a época da chuva já estava prestes a chegar, e ele precisava alimentar a sua esposa (filha de Yasini) e o seu bebê (neto de Yasini). O sogro, protestou ele, não poderia esperar que ele fosse procurar mais trabalho para ganhar algum dinheiro, já que ele deveria trabalhar para a sua esposa, como deve fazer um marido. Ele negou qualquer mau tratamento dado a sua esposa. O notável Konga falou em nome de Musa, mas (me pareceu) sem muita convicção. O notável Ali deu seguimento começando com um resumo das queixas de Yasini e sugeriu que Musa se desculpasse publicamente e, ao menos, oferecesse um sinal referente ao pagamento do dote. Musa continuou em silêncio, mas Konga expressou disposição para aceitar a sugestão, embora tenha pontuado que ninguém realmente pensava que Musa tivesse maltratado a sua esposa. Ele, então, virou-se para Musa e pediu que ele concordasse, sob a condição de que Yasini (ainda que tivesse se expressado mais diplomaticamente) retirasse a sua alegação de maus-tratos em relação a ela. Yasini, resmungando, concordou; Ali acrescentou que, tão logo fosse possível, Musa deveria encontrar um trabalho temporário para ganhar algum dinheiro e pagar o dote. Após algumas pequenas discussões tudo foi firmado e Musa deu 50 cents para Yasini. Ali e Konga terminaram o moot elogiando o bom-senso de Yasini e Musa e a boa relação que tinham entre si. No todo, o moot transcorreu durante pouco mais de meia hora. Por que, então, o grupo de ação de Musa foi relativamente tão grande e por que foi constituído por tantos vizinhos indiretamente ligados? Não houve dificuldade em administrar o conflito, e Musa demonstrou pouco desinteresse em chegar a um acordo com o sogro. Os informantes tinham clareza de uma coisa: esse moot aconteceu apenas uma semana depois do caso anterior, quando os homens estavam em lados opostos e alcançaram um acordo, conforme descrito, e agora desejavam enfatizar os seus laços comuns. Eles estavam (conforme me disse 29) menos preocupados com o caso de Musa do que com as suas próprias inter-relações; e, nesse sentido, aproveitaram a oportu-
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nidade fortuita para demonstrar sua habilidade e desejo de estabelecer uma ação comum bem-sucedida. Mesmo Zadiki (20) e Konga (23) sentaram um ao lado do outro no moot, ainda que Zadiki tivesse atuado pouco em relação aos procedimentos. Talvez Yasini e Musa tenham tido a sorte de que entre aqueles que os apoiavam não houvesse nenhum antagonismo que pudesse aprofundar um conflito simples.
Discussão e conclusão Neste texto foi possível apresentar o tratamento e a solução de apenas cinco casos de conflito, seu tratamento e conclusão. Eles foram eventos empíricos no período arbitrariamente escolhido do meu trabalho de campo. Em primeiro lugar, preferi descrevê-los detalhadamente e extrair deles alguns princípios mais do que me concentrar nestes princípios e oferecer meramente alguns “exemplos adequados”.13 Esses foram casos particularmente sucessivos numa única comunidade local. Eles não demonstram necessariamente todos os princípios gerais envolvidos em processos de administração de conflitos entre os Ndendeuli. A sua apresentação neste texto pode permitir outras generalizações que não apenas aquelas que eu apresentei, bem como críticas a estas mesmas generalizações. Em segundo lugar, o meu interesse se voltou em grande medida para o que Gluckman descreveu como “os processos sociais que largamente determinam o resultado de um conflito”, mais do que com “a análise dos processos racionais por meio dos quais as negociações ocorrem”.14 Em terceiro, deve-se enfatizar que (infelizmente) não é possível compreender estes processos sociais completamente sem outros dados sobre diferentes aspectos vitais da vida social numa comunidade local Ndendeuli: interações de vizinhança muitos tipos; outras ocasiões e necessidades de naturezas diferentes, quando os grupos de ação são recrutados; as alianças que são feitas publicamente; e a expressão de lealdades e antagonismos. As interações deste tipo afetam, inevitavelmente, as alianças, as ações, a prontidão para mediar ou 13
Destaque com aspas feito pelo autor.
14
Max Gluckman, comunicação pessoal, 1965.
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para ceder em benefício dos homens envolvidos. Os processos de conflito são apenas uma parte de um continuum maior. Há necessariamente algumas ações às quais fiz referência neste texto, que parecem não fazer sentido devido à ausência de dados a elas relacionados. A descrição dos casos é, de fato, parte de uma análise mais profunda da organização social dos Ndendeuli, particularmente do sistema da rede de parentesco não unilinear. A partir dos casos aqui apresentados, uma série de características pode ser destacada, permitindo tirar algumas conclusões sobre a natureza da administração de conflitos nesta sociedade.
Significado dos eventos passados Volto a enfatizar o que deveria ficar claro a respeito da minha deliberada descrição dos sucessivos conflitos entre um mesmo grupo de pessoas: não podemos obter uma compreensão completa de um caso se este é tratado isoladamente dos casos precedentes. Este tipo de interpretação parece, no mínimo, questionável, ainda que seja feita em um sistema jurídico completo de tribunais, juízes, leis, procedimentos formais estabelecidos, imparcialidade ideal e outros sistemas semelhantes. Os conflitos entre os Ndendeuli foram trabalhados inteiramente no contexto do continuum da vida social, posto que aqueles que os antecederam, a maneira como foram administrados e o desenvolvimento de diversos tipos de relações de parentesco afetam qualquer caso vigente. Uma análise mais abrangente deveria considerar este aspecto, mas aqui eu chamei mais a atenção para um ou dois exemplos. O desenvolvimento das relações entre os primos Zadiki (20) e Konga (23) é essencial para compreendermos o Caso 1; este caso afetou claramente as alianças no Caso 3 e, depois, nos Casos 4 e 5. O relativo insucesso do notável Ali (6) no Caso 2 e a sua competição com o notável Kabaya (13), por intermédio de Yasini (11), teve influência no Caso 3. O resultado do Caso 4 afetou sobremaneira as alianças do grupo de ação no Caso 5. O significado dos eventos passados e dos casos imediatamente precedentes varia de acordo com o contexto dos casos seguintes, mas cada um contribui para o desenvolvimento de um padrão de relações que forma uma rede cumulativa dentro da qual uma ação subsequente ocorre.
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Os mediadores Em todos os cinco casos alguém adotou o papel de mediador quase como em razão de uma necessidade. As partes (principais) podem negociar e barganhar por um acordo (e antes mesmo, remover qualquer questão que possa obstruir uma negociação), mas eles acham mais fácil conseguir isto por intermédio ou com o auxílio de uma pessoa interconectada entre eles. De um total de 17 conflitos satisfatoriamente registrados durante o trabalho de campo, apenas dois obtiveram resultados sem um mediador, mas por meio de intercâmbio direto entre as partes e aqueles que estavam envolvidos como apoiadores. Todavia, os Ndendeuli não somente não têm palavra que possa ser traduzida como “mediador”, como também não reconhecem explicitamente este papel e poucas vezes se referem a ele. Eu considero este conceito indispensável para uma análise e tive pouca dificuldade em identificar o mediador: no Caso 1, Konga (23), apoiado por 24; no Caso 2, Yasini (11), apoiado por 9 e 10; no Caso 3, Ali (6); no Caso 4 eles não estavam tão claramente definidos, mas 18, 24 e 28 aliaram-se como mediadores; no Caso 5, Ali (6) e Konga (23). Mesmo nos casos em que o mediador era razoavelmente óbvio (por exemplo, Yasini no Caso 2), eles não emergem em uma ação até que as partes e seus principais auxiliares não tenham explorado a situação e já estejam prestes a negociar. O mediador atua, então, como um corretor15 entre eles, ainda que possa oferecer as suas próprias sugestões ou modificações. Certamente ele não se comporta como um adjudicador e, ainda que algumas vezes possa pronunciar um acordo ou uma parte deste, isto acontece pela sua habilidade como um porta-voz, não como juiz. Uma parte geralmente aceita a sugestão do seu oponente ou concord com ela quando permanece em silêncio (ou seja, ausência de desacordo), mas um bom mediador insiste explicitamente naquilo em que uma dúvida possa provocar discussões futuras. Como podemos ver, o mediador é apressadamente escolhido como um intermediário estrutural no contexto particular do conflito e dos litigantes. O exemplo de Yassini (11) no Caso 2 ilustra mais claramente esta questão; ele não escolheu o papel 15
[N.T.] No inglês, o autor utiliza a categoria broker, o que parece nos levar a perguntar se este não seria uma espécie de conciliador nos casos brasileiros.
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de mediador, mas aceitou-o pela necessidade e, ainda assim, de forma relutante. Ele poderia ter rejeitado este papel, todavia, por sua dificuldade ou perigo para o seu próprio interesse – como aconteceu com ele no Caso 4, com 28, no Caso 1 e com Kabaya (13) no Caso 5. Quando não há intermediário ou quando (para evitar envolvimento) ele prefere não participar, um ou mais membros dos grupos de ação apostos adotam gradualmente este papel. Tais mediadores estão buscando influência ou prestígio (como fez Ali no Caso 3) ou eles estão preocupados em proteger os seus próprios interesses (como fizeram 18 e 28 no Caso 4). Em qualquer evento, o mediador espera auxiliar no estabelecimento de um acordo e prevenir repercussões inconvenientes dentro da comunidade. Um defensor fortemente envolvido com uma ou outra parte, como as próprias partes, não é capaz - pelo menos no começo - de fazer a demonstração necessária de simpatia para ambos os lados e para a comunidade como um todo; apesar disso tanto ele como as próprias partes em geral se sentem aliviadas quando um mediador sugere uma solução para um impasse. Os Ndendeuli declaram que eles não estão preparados para receber imposição de ninguém, incluindo os seus oponentes, mas admitem estar dispostos, mesmo prontos, a serem persuadidos e a seguirem uma orientação.
Pessoas neutras e não residentes Praticamente todo conflito interno à comunidade deixa alguns residentes descomprometidos, mesmo indiretamente, com uma ou outra parte (por exemplo, homens 1 e 6 no Caso 1). Eles podem comparecer – mas geralmente não comparecem – como espectadores interessados, não mais do que isso. Eles não se tornam mediadores porque não têm o tipo de compromisso interjacente que é requerido para desempenhar este papel. Os não residentes frequentemente não têm nenhum envolvimento (em apenas dois dos cinco casos descritos) e, quando o tem, raramente assumem uma posição importante. Não é que eles não sejam bem-vindos, mas o peso da sua intervenção poderia, eu acredito, ser ressentido. Eles comparecem, naturalmente, como parentes próximos de uma parte e, algumas vezes, dão conselhos privados antes ou durante o moot. Os Ndendeuli preferem manter os negócios da comuni-
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dade dentro da própria comunidade, apenas porque qualquer acordo tem suas repercussões destinadas ao grupo de vizinhos em cooperação. O único caso que testemunhei no qual o mediador foi um homem não residente ocorreu durante um conflito muito sério e prolongado entre irmãos (não em Ligomba) onde nenhum mediador bem sucedido emergiu de dentro da comunidade. O marido da irmã do pai do litigante (um notável de outra comunidade) e o seu filho tiveram a permissão para atuar em um impasse perigoso, mas os membros da comunidade aceitaram esta intervenção faute de mieux.
Os notáveis As minhas referências sobre estes líderes, homens de influência, infelizmente são muito breves para uma completa consideração neste trabalho. Tais homens não ocupam papel de autoridade; mais exatamente, são homens com habilidade e ambição reconhecidos como líderes no contexto. Ser um notável em Ligomba não era, em hipótese alguma, inteiramente acidental; em geral, ele tende a assumir, e é autorizado a assumir, a liderança nos negócios (não somente nos conflitos) que dizem respeito aos membros de grupos mais ou menos identificáveis de vizinhos. Eles estão, portanto, estruturalmente separados entre si. Um passar de olhos na Figura 1 indica isto. É preciso, no entanto, ter cuidado com esta análise porque os notáveis em Ligomba (e de forma semelhante os notáveis em outras comunidades) não são líderes de facções. Naturalmente existe uma tendência para os mesmos grupos de vizinhos de maior nível de inter-relação na rede de parentesco se unirem em uma ação coletiva (grupos de ação), embora a participação em grupos de ação varie significativamente, dependendo do contexto estrutural de cada conflito particular. Por exemplo, os grupos de ação de Yasini (11) e Musa (19) no Caso 5 atravessam o alinhamento dos grupos no Caso 4. Isto quer dizer que a tendência dos notáveis para liderar de alguma maneira os mesmos grupos de vizinhos pode ser, e geralmente é, ignorada pela necessidade de alguma combinação diferente e atravessada. Os homens são incapazes, em nome dos seus próprios interesses, de se envolver em uma aliança mais ou menos aberta com um grupo específico de vizinhos porque cada nova situação coloca um novo problema. Toman-
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do o exemplo de Yasini (11): no Caso 1 ele estava no mesmo grupo em que se encontrava Kabaya (13), embora sua principal consideração fosse a de que ele ganhasse diretamente se Zadiki (20) ganhasse o caso; no Caso 2 ele não estava envolvido com a liderança de Kabaya,16 mas o seu desempenho como mediador estava de certa forma influenciado para este lado; no Caso 3 ele se colocou ativamente ao lado de Kabaya; no Caso 4 o conflito de lealdade era muito grande e suas vantagens eram mínimas, o que o levou a não participar; no Caso 5 ele precisou do auxílio de Ali (6) e de outros, enquanto Kabaya estava muito envolvido com o lado do seu oponente para que pudesse ajudá-lo (de fato, Kabaya não participou). Do mesmo modo, outros indivíduos mudam as suas alianças de acordo com as circunstâncias e as vantagens relativas que são percebidas por eles no momento. Nesse tipo de situação em rede um homem não pode se envolver em uma aliança porque isto seria ignorar ou mesmo romper relações valiosas com alguns outros vizinhos-parentes. Estas outras relações podem ser, ou foram no passado, vitais quando um homem se torna um litigante, assim como em outras atividades coletivas, tais como os grupos de trabalho cooperativo na agricultura. Um homem pode se sentir obrigado a tomar um dos lados em um conflito, mas ele não deseja que esta circunstância prejudique as suas oportunidades no futuro. Eu também devo destacar que o recrutamento para um grupo de ação é amplamente controlado pelas partes em um conflito. Aliança e apoio são oferecidos ao vizinho que esteja com alguma necessidade, mais do que a um notável que compartilhou ou assumiu uma liderança. Os Ndendeuli são, de alguma forma, céticos sobre os seus notáveis; eles dizem que um notável é o membro de um grupo de ação, não somente para auxiliar uma parte, mas também para ampliar os seus próprios interesses. A maioria dos homens, é claro, participa de um grupo de ação com os seus próprios interesses em mente: se eu ajudo X agora, ele me ajudará no futuro; ou se eu sigo Y em apoio a Z, então Y provavelmente me ajudará mais tarde ou menos provavelmente ajuda16
Na verdade, ele não participou do primeiro moot neste caso, embora Kabaya (13) fosse um dos líderes no grupo de ação de Zadiki (20).
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rá um futuro oponente. Um notável, no entanto, tem interesses adicionais – o seu desejo de conquistar influência, prestígio e liderança (valores suspeitos aos padrões Ndendeuli). Os notáveis, todavia, são considerados úteis a um litigante que necessita de conselho e encorajamento, e que pode não ser, por si próprio, particularmente competente em advocacia e negociação. Os notáveis obtiveram seu papel principalmente devido as suas habilidades, e os indivíduos anseiam em se beneficiar deles. Apesar disso, a rivalidade e mesmo a hostilidade entre eles frequentemente exacerba mais do que alivia um conflito (por exemplo, a ação de Kabaya, 13, no Caso 4), já que os notáveis aproveitam a oportunidade para ganhar um do outro ou apenas para se opor visando à oposição. Todavia, sua habilidade diplomática pode, algumas vezes, ser decisiva num caso difícil.
Os grupos de ação Os Ndendeuli não possuem uma palavra para este conceito, embora eles falem de “meu povo”, “meus parentes”, “aqueles que andam comigo” e assim por diante, o que significa a mesma coisa. Os grupos de ação representam o meio pelo qual um homem recruta o suporte coletivo dos seus associados para o seu próprio interesse. Estes associados são, antes de tudo, parentes; e um Ndendeuli diria que todos são seus parentes. Um homem consegue o apoio daqueles que ele pode, mas (em um caso de conflito especialmente) com o devido reconhecimento do recrutamento simultâneo do seu oponente. Sendo assim, um homem pode se juntar ao grupo do seu primo de segundo grau em uma situação, mas se sentir compelido a se juntar àquele (potencialmente mais útil) de um vizinho-parente mais próximo em outra situação, contra aquele primo. Os grupos de ação são inerentemente efêmeros, conforme pude observar anteriormente quando me referi à ausência típica de facções persistentes em uma comunidade. Não é suficiente dizer que um homem pede aos seus parentes para fazerem alguma coisa (ou mesmo os parentes dos seus parentes) quando ele precisa de ajuda – conforme os Ndendeuli ficam contentes em falar sobre isto, e conforme alguns antropólogos têm muito vagamente descrito tal situação entre as pessoas com redes de parentesco não unilinear.
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É essencial analisar precisamente quem pode e quem realmente é chamado, e em que situação, e como a organização do recrutamento varia com o contexto da ação. Um grupo de ação não é comumente “todos os parentes de um homem”, nem mesmo “todos os seus vizinhos-parentes”, conforme demonstrei. A identificação precisa de um grupo de ação é um requisito para qualquer compreensão dos processos sociais por meio dos quais os Ndendeuli lidam com os conflitos e organizam outros tipos de cooperação. Considero este conceito essencial para a análise das redes sociais, mas não cabe aqui um aprofundamento deste tema.
Considerações pessoais Vários exemplos nos casos apresentados ilustram o fato de que os processos de administração de conflitos e o modo como a rede de parentesco é usada e manipulada para este fim são muito afetados por relações interpessoais entre os homens. Neste aspecto não estou particularmente interessado no reconhecimento das personalidades e experiências individuais que tendem a motivar e afetar os seus papéis e as suas relações. Não há necessidade em enfatizar este aspecto em geral nem é uma questão sociológica da minha competência. Melhor dizendo, eu tenho algo mais em mente: o fato sociológico de que as relações de parentesco e de vizinhança entre os Ndendeuli são muito vagamente reguladas por uma autoridade ou requisitos necessários a grupos corporativos ou por lideranças políticas, econômicas e rituais, ou ainda por uma obrigação inevitável. Os papéis e as relações, assim como as expectativas concomitantes, são caracteristicamente pouco definidos por este povo. Em geral, um parente mais próximo deveria oferecer maior auxílio do que parentes mais distantes; um parente da geração do pai ou da mãe tem, potencialmente, maior status; aqueles da geração dos filhos têm status potencialmente inferior e aqueles da geração do próprio indivíduo são considerados iguais. No entanto, direitos e obrigações precisas são raramente atribuídos; do mesmo modo, não há muita diferença entre vários tipos de, digamos, “irmãos” proximamente relacionados (o próprio irmão, primos de primeiro grau, irmão da esposa). As relações operantes de fato são muito dependentes do estabelecimento e da manutenção da cooperação e reci-
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procidade entre os indivíduos, abertas a uma considerável variação e influência por tais fatores interpessoais como amizade e confiança demonstradas ou hostilidade e desconfiança. No todo, um homem é mais ou menos limitado por dependência e responsabilidade sobre seus parentes, entre os seus vizinhos. Embora sujeito às necessidades lógicas de ligações inter e entrerrede, um homem ainda pode reter uma boa margem de inclinação e escolha individual. Tudo isto afeta as alianças nas situações de conflitos e nos moots, afetando também o comportamento individual nos processos sociais considerados. Por essa razão, o antagonismo entre os primos de primeiro grau Zadiki (20) e Konga (23) ou entre os notáveis rivais Ali (6) e Kabaya (13) foi observado no contexto. Da mesma forma, relações de amizades particulares entre os cunhados Tanda (18) e Zadiki (20), os notáveis e primos de segundo grau Ali (6) e Konga (23) e os primos de primeiro grau Konga (23) e Sedi (29) se mostraram importantes. A tendência de Saidi (3) de ser dependente de seu forte primo Ali (6) é um outro caso em questão. Havia outras relações interpessoais e igualmente influentes em Ligomba – assim como em outras comunidades locais – que não eram totalmente governadas diretamente pelas considerações estruturais e que transcendem os requisitos lógicos. Indubitavelmente os juízes, os tribunais oficiais, a polícia, os advogados especializados são também, em algum nível, afetados por considerações pessoais e relações (mesmo se, idealmente, não devessem ser), mas eles não desempenham seus papéis e exercem suas atividades especificamente devido a estas considerações e relações senão apesar delas, se e quando têm alguma relevância. Em um conflito entre os Ndendeuli, no entanto, os papéis de cada participante são uma função direta do seu envolvimento pessoal e sua rede de alianças com as partes e os seus companheiros. Portanto, os participantes são muito influenciados pelo caráter particular do padrão de relações e o seu próprio lugar nele.
Indeterminação das normas e das expectativas Os Ndendeuli têm poucas regras e normas bem-definidas sobre o comportamento social a partir das quais uma conduta possa ser avaliada. Para to-
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mar um único exemplo: todos os Ndendeuli concordariam que um casamento legítimo somente é possível pela transferência do dote da noiva ou pelo desempenho do serviço do pretendente ao pai da mulher ou uma combinação de ambos. No entanto, a quantia do dote, o acordo sobre as prestações, a sua duração e as obrigações do pretendente são largamente indefinidas, assim como a forma de reconhecimento do término das obrigações. “É tudo uma questão do que você pode ganhar do seu genro”, explicou-me um homem uma vez, “e a capacidade de resistência do genro”. Normalmente é uma questão genuinamente difícil (assim como, é claro, se espera) distinguir entre o dote e o serviço do pretendente e as obrigações gerais que qualquer genro tem em relação ao pai da esposa. Consequentemente, há um amplo espectro de oportunidades para conflitos válidos e para aqueles que são planejados em relação a quais são os direitos e as obrigações que um homem tem em alguma situação. Do mesmo modo, como já foi anteriormente mencionado, há um considerável campo para diferenças de opinião em relação aos direitos recíprocos entre, digamos, irmãos ou primos. Um primo “deve” ajudar um homem em alguma situação (um conflito ou em seu grupo de trabalho), mas ele também pode decidir por não ajudar devido a obrigações que podem promover um conflito dele com o oponente de quem ele deve ajudar ou com alguém que esteja organizando um grupo de trabalho no mesmo momento. As “regras” pelas quais se avaliam as expectativas e a conduta de um indivíduo são tão imprecisas que a sua extensão é muito ampla. Eu acredito que não seja por acaso que esta marcada indeterminação das normas opera em uma situação na qual não existe adjudicadores e onde as negociações e as barganhas são vitais para o processo de administração de conflitos. As duas características não são meramente compatíveis: elas são logicamente complementares. Nos casos de conflitos entre os Ndendeuli é preciso olhar para “expectativas razoáveis” na medida em que estas surgem naquilo que os homens dizem e fazem, ainda que as pessoas articulem vagamente o uso deste conceito como um processo consciente. Referência às expectativas satisfatórias e ao razoável ou ilógico desempenho de papéis particulares – com a noção de liberdade de ação tolerável das normas ideais – deve ser universal na socieda-
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de humana que varia, no entanto, no grau de aplicação. Obviamente em um moot os Ndendeuli de fato tentam declarar estas expectativas e procuram medir a conduta de um homem a partir da comparação com esta referência. Por outro lado, além de as expectativas serem indeterminadas, conforme mencionei anteriormente, não há uma terceira parte, não há um juiz, não há uma técnica para determinar especificamente as expectativas aceitáveis, operacionais e razoáveis em um conflito particular. Enquanto os homens buscam alcançar vantagens e se esforçam para evitar o que lhes é desvantajoso, o processo de administração de conflitos depende, igualmente, de outras considerações que não estão diretamente relacionadas às questões em disputa: a força com que um acusado pode resistir às suas alegações, o nível com que um querelante pode ser persuadido a reduzir a sua queixa, o nível e tipo de suporte que cada um obtém de outras pessoas envolvidas no conflito.17 Desse modo, em relação ao Caso 1, nenhum Ndendeuli diria se a reivindicação por acréscimo ao dote de casamento era ou não satisfatória, justificável ou de direito. Informantes inteligentes explicaram que tudo depende da natureza do caso. Porém, isto pode significar duas coisas: a história da transação do dote de casamento até o momento da disputa e a natureza das relações entre os afins e entre eles e outros homens envolvidos na história. No entanto, a importância (e o interesse) maior sempre foi dada à última característica da natureza do conflito. Mesmo no contexto integral de um conflito concreto, os Ligomba não dariam uma resposta definitiva. Como resposta ao meu questionamento, eles diziam que eu não tinha compreendido os modos Ndendeuli, já que havia colocado a questão. Para eles não era apenas uma questão de se o sogro tinha direito ou não, ou em que nível, mas era igualmente uma questão do quanto ele poderia exercer pressão sobre o seu genro e o pai deste último e, assim, obter o acréscimo ao dote de casamento. Nestas circunstâncias, não somente a questão do dote teve que ser considerada, como também os efeitos futuros e o atual estado das relações de parentesco e de vizinhança. Neste 17
Em um outro contexto etnográfico e sociológico (entre os Arusha do nordeste da Tanzânia) desenvolvi anteriormente o mesmo tipo de argumento e análise (GULLIVER, 1963, p. 232 e 296). Em retrospectiva, no entanto, eu daria maior ênfase ao reconhecimento do significado e do modo como as “expectativas razoáveis” operam.
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caso particular, o sogro ganhou expressivamente a sua reivindicação, embora tenha que ter cedido em alguma medida. Ainda assim, foi somente nestas circunstâncias particulares (provavelmente excepcional nos seus detalhes), naquele momento específico, que o acordo pôde ser feito. A mesma reivindicação em uma ocasião diferente certamente teria tido um resultado diferente. Do mesmo modo, o Caso 4, entre os dois primos, foi em grande parte resolvido nos termos das necessidades dos seus respectivos parceiros de cooperação de vizinhança no sentido em que a ruptura entre eles dois não foi permitida pelos seus vizinhos. Em um caso semelhante, registrado em outra comunidade, a resolução de um conflito teve resultado bem diferente, uma vez que a ruptura das relações entre os primos de primeiro grau não representou grande ameaça aos seus respectivos parceiros, que puderam tranquilamente prosseguir com um mínimo de cooperação mútua. Para concluir, a administração de uma disputa no interior de uma comunidade entre os Ndendeuli tem as características a seguir: 1. É tipicamente um tipo de compromisso negociado entre reivindicações conflitantes. Mesmo onde a reivindicação de um principal é muito forte e o seu poder de barganha é maior, ele comumente se esforça para demonstrar tolerância e boa intenção ao abrir caminho para o seu oponente, mesmo que minimamente. Quando o poder de barganha é menos desigual e o conflito deve ser administrado, o compromisso envolvendo concessões mútuas torna-se uma necessidade. 2. Não é dependente exclusivamente de normas, direitos, expectativas e sobre os respectivos poderes de barganha de ambos os interessados e seus parceiros, mas também das considerações dos efeitos sobre os interesses de outros homens, bem como da continuidade da cooperação e concordância de vizinhança. 3. Deve ser, e tem que ser, uma negociação consensual, aceita pelos interessados em conflito como sendo o melhor que pode ser alcançado nas circunstâncias específicas. Em última análise um principal não pode ser levado a aceitar um acordo imposto na medida em que não há meios para forçá-lo. Fortes pressões do lado do seu oponente e, se necessário, mesmo do
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seu próprio lado são feitas para persuadi-lo a aceitar um acordo. Somente por meio da sua concordância um acordo pode ser obtido e ser efetivado. 4. Quando possível, um acordo é colocado em prática imediatamente. Durante um moot, a compensação ou a dívida é paga, as desculpas são pedidas, a reivindicação é retirada. Embora variavelmente, um acordo malconduzido pode não ser considerado um acordo e o conflito pode precisar ser renegociado em uma data posterior quando a queixa é novamente ativada. Um acordo de que uma compensação será paga posteriormente pode ser um sucesso efêmero para uma das partes, mas talvez seja um sucesso mais prático para o seu oponente, ou seja, o acordo é realmente uma forma de evitar o próprio acordo, ou mesmo um acordo para marcar uma posição diferente. Mas pode até ser que na verdade seja a favor do réu. Além disso, para a conclusão de uma negociação, é esperado que o conflito seja totalmente dissolvido e, em consequência, as relações de trabalho entre os vizinhos sejam totalmente restabelecidas. Com exceção do ponto 4, pelo menos em alguns momentos, estas características são normalmente comuns a todos os processos de administração de conflitos por intermédio de negociações realizadas fora de tribunais em todas as sociedades, inclusive nas sociedades industriais ocidentais. Estes processos de negociação não têm sido adequadamente estudados a partir de uma base empírica nem em uma variedade suficiente de contextos culturais para fins comparativos. Entre os Ndendeuli, os relacionamentos – e, portanto, os processos – estão largamente definidas e expressas no idioma do parentesco, mas é óbvio que este é apenas uma das formas estruturais e ideológicas na qual ocorre este fenômeno sociológico.
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Abstract In this article P. H. Gulliver analyses his ethnography about the Ndendeuli, nomadic cultivators of East Songea in southern Tanzania. It is a society in which there are no courts, no judges or referees, or institutions similar to those typically found in Western societies. Despite the absence of formal institutions of conflict management, the Ndendeuli are averse to the use of coercion by force as a means of negotiating and obtaining compensation for damage. Keywords: Conflict mediation; dispute processes; conflict settlement without courts.
REFERÊNCIAS 1. Barton, R. F. 1919 – Ifugao law. University of California publications in American Archaelogy and Ethnology, 15, p. 1-186. 2. Barton, R. F. 1949 – The Kalingas. Posthmumously published, E.A. Hoebel, editor. Chicago, University of Chicago Press. 3. Beattie, J. 1957 – Informal judicial activity in Bunyoro. Journal of African Administration, 9:4:188-195. 4. Colson, E. 1962 – The Plateau Tonga of Northern Rhodesia. Manchester, Manchester Universtiy Press. 5. Epstein, A.L. 1954 – Juridical techniques and the judicial process. Rhodes-Livingstone Papers n. 23. 6. Gluckman, M. 1955 – The judicial process among the Barotse of Northern Rhodesia. Manchester, Manchester University Press for the Rhodes-Livingstone Institute, 2nd edition, 1967. 7. Gulliver, P.H. 1963 – Social control in an African society. Boston, Boston University Press. 8. Peters, E.L. 1967 – Some structural aspects of the feud among the camel-herding Bedouin of Cyrenaica. Africa 37(3):261-282. 9. Turner, V.W. 1957 – Schism and continuity in an African Society. Manchester, Manchester University Press.
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OLHARES
CRUZADOS
Desafios para a internacionalização da pesquisa: como fazer trabalho de campo no Canadá? Mirian Alves de Souza Mirian Alves de Souza é mestre e doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense PPGA/UFF; Professora Adjunta da UFF; e Pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos INEAC-INCT/UFF. Este texto segue o modelo da comunicação apresentada durante o III Seminário Internacional do INEAC-INCT, na Mesa “A internacionalização do conhecimento: experiências comparadas de ‘estar lá’”, em fevereiro de 2013 na UFF.
Resumo Neste texto apresento breve relato sobre o trabalho de campo desenvolvido no Canadá, de setembro a novembro de 2009 e de fevereiro a julho de 2011, a partir de duas instituições no país: o Roma Community Center RCC (associação cigana) e o Immigration and Refugee Board of Canadá IRB (tribunal do estado canadense que analisa pedidos de imigração e refúgio). A exposição será dividida em três partes. Primeiramente, abordarei o processo burocrático para a realização de trabalho de campo no Canadá, apresentando as medidas tomadas para a viagem. Segundo, apresento o RCC e o IRB, onde realizei trabalho de campo, explorando o acesso a informantes e dados nesses contextos. Por fim, problematizo um desafio à internacionalização da pesquisa em antropologia. Palavras-chave: Canadá; trabalho de campo; ciganos.
Viagem exploratória e trabalho de campo Em outubro de 2009, no curso de meu doutorado no Programa de Pós-graduação em Antropologia PPGA/UFF, decidi contrastar os dados etnográficos da União Cigana do Brasil, associação cigana no Rio de Janeiro onde já realizava trabalho de campo, ao de outra associação cigana. Por considerar que o trânsito entre duas associações ciganas no Brasil pudesse ser demasiadamente estressante, em razão das rivalidades cultivadas entre meu principal informante e outras lideranças que fazem parte do cenário político brasileiRevista Antropolítica, n. 36, p. 305 -322, Niterói,1. sem. 2014
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ro, decidi que era melhor evitar prováveis problemas pesquisando uma associação em outro contexto nacional. Além disso, influenciada pelo meu orientador Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, senti-me desafiada a realizar uma pesquisa internacional. Como não dispunha de muito tempo para aprender uma língua estranha, optei em pesquisar um país de língua inglesa. Escolhi o Canadá por causa da língua, do custo de vista, do multiculturalismo canadense (e sua reputação de “amigável”) e, sobretudo, em razão do Roma Community Center (RCC),1 associação cigana sediada na cidade de Toronto.2 Pesquisando na internet, descobri através de jornais e outros periódicos canadenses que a associação estava envolvida em um debate público sobre ciganos do Leste Europeu que chegam ao Canadá reivindicando status de refugiado. Estes ciganos que buscam refúgio no Canadá em razão da perseguição étnica de grupos neonazistas aparecem nos noticiários e trabalhos e artigos sobre o tema começam a ser produzidos (LEFEBVRE, 2003; GUY, 2003; BUTLER, 2009; BEAUDOIN, 2014; SOUZA, 2013). Além disso, esta associação tinha como presidente honorário um dos mais importantes ativistas ciganos do mundo. A primeira viagem, de setembro a novembro de 2009, tinha como objetivo central conhecer o RCC e verificar a viabilidade de trabalho de campo prolongado. Outro objetivo era o aperfeiçoamento da língua e desenvolvimento de uma competência em relação aos códigos culturais do país. Essa viagem exploratória ao Canadá não contou com recursos específicos, sendo parcialmente financiada através de minha bolsa de doutorado da CAPES no Brasil. Embora o objetivo central dessa viagem fosse a realização de trabalho de campo exploratório, a solicitação de visto junto ao Consulado Canadense em São Paulo foi justificada com base na realização de um curso de inglês. De acordo com a agência de viagem que auxiliou no pedido de visto (Visamundo Vistos Consulares), as chances de uma resposta afirmativa do Consulado em 1
Roma corresponde ao plural de Rom, que em romani (língua cigana) corresponde a cigano.
2
Toronto está localizada em Ontário e é a maior cidade do Canadá e a quarta maior cidade da América do Norte, atrás de Nova York, Los Angeles e Chicago. A população de Toronto é de 2,6 milhões de habitantes, sendo 6 milhões em sua região metropolitana. Toronto é considerada uma das cidades mais multiculturais do mundo, atraindo 30% dos aproximadamente 260 mil novos imigrantes que chegam ao Canadá anualmente. Fonte: <http://www12.statcan.gc.ca/census-recensement/2011>. Acesso em 20/7/2014.
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relação ao meu pedido aumentariam se eu fosse uma estudante de língua inglesa no país. Além disso, a justificativa de trabalho de campo era incomum e suscitaria a necessidade de maiores esclarecimentos, retardando possivelmente a resposta do pedido. Seguindo esta orientação, meu formulário foi preenchido indicando que a razão da viagem era o estudo de inglês em curso regular na cidade de Toronto. Existe algum procedimento burocrático para a realização de trabalho de campo no Canadá? Quando meu pedido de visto foi aceito, decidi pesquisar sobre a necessidade de autorização especial para minha atividade de pesquisa no país. Consultando a agência que auxiliou no pedido de visto e uma funcionária da Embaixada do Canadá no Brasil, descobri que minha questão “sou uma estudante brasileira e quero fazer trabalho de campo antropológico no Canadá” causava estranheza aos meus interlocutores, que me desencorajaram a divulgar essa informação. A agência considerava a questão complicada, dada a excepcionalidade de pedidos de visto submetidos com essa justificativa. A funcionária da Embaixada, por sua vez, argumentou que o conhecimento de que eu faria “trabalho de campo” poderia implicar em uma mudança no status do visto que me foi concedido. O visto de estudante não era suficiente para alguém que fosse “trabalhar” no país. O termo fieldwork correspondia, em sua perspectiva, a uma modalidade de trabalho. Diante disso, considerei mais adequado pressupor que sendo o Canadá um país democrático, autorização especial do estado não é uma condição para o trabalho de campo. A única condição, e esta imposta pela antropologia, é que as pessoas que estão sendo estudadas saibam disso, ou seja, tenham conhecimento da situação de pesquisa (ZENOBI, 2010). Em setembro de 2009, quando conheci o RCC constatei que poderia realizar meu trabalho de campo na associação, porque a pesquisa foi aceita e teria acesso a informantes, instituições e dados. Meu primeiro contato com o RCC foi através de seu website.3 Escrevi um e-mail para o diretor executivo da associação no qual me apresentava como estudante brasileira de doutorado interessada em pesquisar ciganos no Canadá. O diretor respondeu afirma3
Ver <http://www.romatoronto.org/index.html>. Acesso em 20/7/2014.
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tivamente e marcou minha primeira visita. A partir daí, o RCC se tornou um espaço fundamental para a minha pesquisa, sendo a maioria de meus informantes vinculada à associação. Através do RCC estabeleci minha rede de informantes e todo o acesso a outras instituições no país, como o Immigration and Refugee Board of Canada (IRB), tribunal responsável por analisar e decidir sobre os pedidos de refúgio e proteção a reclamantes que chegam ao Canadá. A interlocução no Canadá foi realizada em inglês, não sendo esta a língua nativa da maioria dos informantes, inclusive no contexto de instituições do estado, como o IRB. Excetuando-se ciganos canadenses e outros agentes políticos canadenses e norte-americanos, o trabalho de campo envolveu muitos interlocutores do Leste Europeu, sobretudo Eslováquia, República Checa, Hungria e ex-Iugoslávia. A competência na língua inglesa variava muito entre nós, mas através dela consegui estabelecer múltiplas interlocuções. Os desafios na comunicação não se impuseram como um problema. Ao contrário, as dificuldades de entendimento contribuíam para que me sentisse mais confortável para checar o sentido do que era dito: “o que você disse? Poderia repetir, por favor”. Por isso, ainda na primeira viagem ao Canadá foi possível conduzir o trabalho de campo enquanto aperfeiçoava a minha competência na língua. Voltei ao Canadá em fevereiro de 2011, onde permaneci até julho desse mesmo ano. Para a realização de trabalho de campo prolongado no país foram tomadas medidas distintas da viagem exploratória. Para esta viagem contei com recursos de uma “bolsa sanduíche” da CAPES, destinada a realização de “estágio doutoral” em país estrangeiro. A agência de fomento, que efetivamente financiou meu trabalho de campo em 2011, exigiu que eu estivesse vinculada a uma universidade no país de destino, sob orientação de um professor estrangeiro. Optei pela University of Western Ontario, na cidade de London, em torno de 150 km de Toronto, principal contexto etnográfico da pesquisa, por causa da professora Randa Farah. Antropóloga com ampla experiência de pesquisa com refugiados, Randa Farah integra uma rede de pesquisadores internacionais que se dedicam ao tema e orientava pesquisa sobre refugiados ciganos em Toronto. A aceitação de orientação pela professora Farah e o acolhimento do Departamento de Antropologia da UWO foram ne-
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gociados por e-mail. As relações institucionais de meu orientador Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto com a Universidade de Boston e de meu coorientador Roberto Kant de Lima com a Universidade de Harvard e, particularmente com a Universidade da Califórnia, através do professor George Bisharat, colega de Randa Farah, tiveram um peso decisivo para a aceitação da orientação. A comprovação de acolhimento da UWO e recursos financeiros da CAPES asseguraram o pedido de visto. As demandas da CAPES para a concessão da bolsa envolviam apenas o aceite da professora em coorientar minhas atividades no país e da universidade em me receber sem a imposição de um status específico. O fato da bolsa sanduíche não apresentar exigências, como a realização de curso regular de pós-graduação e não impor definições em relação ao meu status na universidade, viabilizou minha relação institucional com a UWO e a professora Farah, e o trabalho de campo em Toronto. Afinal de contas, o objetivo central de minha viagem era a realização de trabalho de campo.
Contextos etnográficos: Roma Community Center e Immigration and Refugee Board of Canada O Roma Community Center (RCC) é uma associação criada pelo governo de Ontário, em setembro de 1997, para dar suporte aos ciganos que pedem refúgio no Canadá, vindos de países europeus, como República Checa, Hungria, Eslováquia, Bulgária, Romênia e ex-Iugoslávia. A formação do RCC se dá, pois, em um contexto no qual o estado canadense precisa avaliar um número crescente de pedidos de refúgio por parte de ciganos que alegam perseguição étnica em seus países. O Immigration and Refugee Board of Canada (IRB), tribunal responsável pela avaliação e concessão de refúgio, pede ao governo de Ontário a criação de um aparato burocrático que o auxilie no recebimento e análise dos pedidos de refúgio de ciganos europeus. O marco de criação do RCC é a chegada de três mil ciganos checos ao Canadá. Isto demandou do IRB uma estrutura profissional que o tribunal ainda não dispunha, a exemplo de tradutores e outros profissionais que auxiliassem os ciganos recém-chegados no encaminhamento de seus pedidos de re-
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fúgio. Além disso, para a análise dos pedidos, o IRB precisava de informações específicas sobre o quadro de perseguição aos ciganos na Europa e sobre sua identidade étnica. Em outras palavras, ao lado de profissionais que pudessem auxiliar os ciganos no que se refere à burocracia canadense, o IRB precisava de orientação em relação à situação dos ciganos em seus países de origem e, mais especificamente, sobre os critérios de reconhecimento étnico dos ciganos. Diante disso, o RCC pode ser definido como uma associação inicialmente criada para oferecer aos ciganos esclarecimentos sobre os pedidos de refúgio (e processo imigratório de maneira geral) e, ao IRB, informações sobre a situação dos ciganos na Europa, bem como sobre questões relativas à sua etnicidade. Em relação a esse último aspecto, o IRB pediu à associação que produzisse atestados comprovando a identidade étnica dos reclamantes a refúgio, mas isso não foi feito. De acordo com meu principal interlocutor no RCC, a associação explicou ao tribunal que não poderia conferir certificados atestando a identidade étnica. Quando solicitada, todavia, orientaria o IRB em relação a certos aspectos da etnicidade cigana, uma vez que a associação também se ocupa da produção de narrativas e discursos sobre a identidade cigana. O RCC é uma associação dirigida exclusivamente aos ciganos (recém-chegados ou já estabelecidos), mas aberta a qualquer pessoa, independente de sua origem étnica. Para se associar ao RCC é preciso preencher um formulário e pagar uma taxa de admissão de dez dólares. A associação tem formalmente cerca de 150 associados e possui uma posição financeiramente remunerada, o cargo de diretor executivo, ocupado por Paul Clair, de 1987 até 2011. Checo de nascimento e cidadão canadense devido a imigração, Paul Clair trabalhou durante mais de 15 anos como tradutor de checo e eslovaco no IRB. Em razão de seu trabalho como tradutor e conhecimentos da burocracia do IRB, Paul Clair foi indicado para dirigir o RCC. Outro fator importante para a contratação de Paul Clair como diretor da associação foi a sua parcialidade como tradutor do IRB. Para juízes e outros funcionários do tribunal, ele era excessivamente sensível às demandas dos ciganos, o que comprometia seu trabalho como tradutor, mas o credenciava como diretor de uma associação para ciganos. As demais posições no RCC são voluntárias, como os board of directors, e
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definidas através de eleição durante o Annual General Meeting, obedecendo a legislação canadense para associações e sociedades comunitárias, que exige a realização de um encontro anual com eleições para certas posições. Além disso, o RCC mantém um advisory committee, no qual participam ciganos já estabelecidos no Canadá, entre os quais ativistas e agentes políticos. Os recursos e fundos do RCC são em grande parte diretamente ligados ao estado canadense, através de uma organização chamada Culture Link. Criado em 1998, o Culture Link dá suporte a mais de vinte associações, muitas das quais “ethno-specific”, como o RCC. Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que oferece programas e recursos específicos para o estabelecimento e integração dos recém-chegados ao Canadá, a partir de investimento público e uma pequena parcela de doações. Funcionando em um prédio na área central de Toronto, o Culture Link abriga, em diferentes salas, no mesmo andar desse prédio, várias associações, incluindo o RCC. A sala onde funciona o RCC tem em torno de 18 metros quadrados e acomoda elementos básicos de um escritório: fichários e arquivos, computador, telefone, aparelho de fax, mesa, cadeira e um banco de espera. Aqueles que buscam atendimento no RCC também podem aguardar por ele próximos à porta da associação, em bancos e cadeiras que ficam no hall central do Culture Link. Durante todo o trabalho de campo, observei que sempre tinha alguém esperando para ser atendido. O RCC é muito procurado pelos ciganos para tratar de diferentes questões, existindo duas demandas principais: primeiro, esclarecimentos sobre o funcionamento da burocracia canadense. Os ciganos querem saber como encaminhar seu pedido de refúgio, quais os documentos e também os prazos para fazê-lo. Além disso, eles buscam se informar sobre benefícios; assistência jurídica; pedidos de visto permanente e cidadania, entre outras coisas relacionadas à imigração. No RCC é possível acessar essas informações, bem como os formulários e guias exigidos para o encaminhamento dos pedidos junto ao IRB. A segunda demanda é a tradução para a língua materna. O RCC conta com Paul Clair, que fala checo e eslovaco, e uma relação de tradutores voluntários para o húngaro, romeno, romani, búlgaro, entre outras línguas. A associação é bastante procurada por causa desse servi-
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ço de tradução, tanto por ciganos com um baixo nível de compreensão do inglês, quanto por aqueles que possuem um bom nível mas que querem se certificar de que estão agindo corretamente em relação aos trâmites de seus pedidos junto ao IRB e outras questões da burocracia canadense. Estas são as duas principais demandas observadas durante o trabalho de campo e assinaladas pelos meus informantes. O RCC, no entanto, também é procurado para tratar de outras questões, como as que dizem respeito ao estabelecimento dos ciganos em Toronto. Como informa o website da associação: Nós buscamos com agências sociais como Metro Shelters Committee [que trabalha com refugiados em sua chegada ao país] (…). Em termos práticos, nós ajudamos os refugiados ciganos no que se refere a achar moradia, problemas do cotidiano. Mas sem recursos específicos para essa área, nosso trabalho envolve apenas voluntários e agências sociais que podem apenas de vez em quando oferecer ajuda.4
Embora os recursos do RCC sejam dirigidos às duas demandas principais (tradução e esclarecimentos e assistência em relação à burocracia canadense), a associação procura colaborar para a administração de vários problemas e questões. Observei Paul Clair negociando com a companhia telefônica os valores das contas de telefone de algumas famílias. Entre os recém-chegados é comum que o consumo de telefone supere as expectativas em relação ao preço da conta, sendo oportuna a intervenção de Paul Clair no sentido de negociar com a companhia telefônica uma forma alternativa de pagamento, geralmente o parcelamento da conta. Outro papel desempenhado pelo RCC é o de uma associação política cuja agenda inclui a construção de um projeto identitário (SOUZA, 2013) para os ciganos no Canadá. Trata-se da elaboração de uma identidade pública para os ciganos, consonante com a narrativa e discurso de seus agentes políticos. Ronald Lee é o principal responsável pela narrativa política que informa o projeto identitário do RCC, sendo de sua autoria a maior parte dos textos e artigos disponíveis no website da associação. Ronald Lee nasceu em Montreal, Canadá, no ano de 1934. Filho de ciganos ingleses que imigraram para o país. Ro4
Ver <http://www.romatoronto.org/about_us.html>. Acesso em 22/7/2014.
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nald Lee faz parte de uma das “comunidades de imigração cigana” no Canadá. Ao lado do México e Estados Unidos, o Canadá recebeu muitos imigrantes ciganos da Europa, vindos de países como Inglaterra, Hungria, Ucrânia, Rússia, Polônia e Iugoslávia. Ronald Lee se tornou um agente político (BARTH, 2007) na década de 1960, quando começou a escrever sobre os ciganos e a administrar os problemas práticos e cotidianos daqueles que viviam em sua cidade. Embora tenha inicialmente se ocupado de questões locais, Ronald Lee, já na década de 1970, começa a se articular com outros agentes políticos para a organização de estruturas internacionais de representação política dos ciganos e para o reconhecimento e difusão de um modelo normativo para a identidade cigana que ele, ao lado de outros atores, elabora durante encontros internacionais. Nesse sentido, existe o interesse da associação em modificar e controlar a maneira como os ciganos são definidos na sociedade canadense. Por isso, a associação recebe estudantes, pesquisadores, ativistas, jornalistas e outros profissionais da mídia que buscam informações sobre os ciganos. O trabalho de recepção a pesquisadores e outros interessados é previsto pela associação: “Nós também somos fonte de informação sobre Roma e oferecemos palestrantes para seminários, oficinas e encontros”. O interesse do RCC na divulgação de sua narrativa política para a identidade cigana é, certamente, o fator mais importante para a aceitação de minha pesquisa. Como antropóloga, não enfrentei dificuldades para que, sobretudo, Paul Clair, e outros ativistas e agentes políticos participassem da pesquisa. Isso não significa dizer que momentos de tensão e negociação não fossem constantes, mas o importante é que os interlocutores me deram seu tempo e informações. Por causa do trabalho de campo no RCC pude acompanhar os pedidos de refúgio junto ao Immigration and Refugee Board of Canada – IRB, discutir suas exigências, etapas e questões; ter acesso a profissionais envolvidos com o processo de refúgio; e conhecer refugiados ciganos de diferentes países do Leste Europeu. Antes do IRB, as políticas de imigração e refúgio no Canadá eram da competência do Minister of Employment and Immigration Canada – EIC, agin-
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do sob o conselho de um corpo consultivo do Refugee Status Advisory Committee. A seleção de refugiados era feita ad-hoc, através de documentos e sem uma audição com os reclamantes (LACROIX, 2004, p. 150). Essa forma de se conduzir o processo de refúgio mudou depois de reclamações, como a de Harbhajan Singh. Entre 1977 e 1980, Harbhajan Singh e outros seis Sikhs reivindicaram status de refugiados no Canadá, mas tiveram seus pedidos negados pelo EIC. Singh então apelou à Suprema Corte, que considerou seu pedido de refúgio fundamentado. O caso “Singh v. Minister of Employment and Immigration”, de 1985, é apontado como um divisor de águas em relação à reestruturação do processo de determinação de refúgio no país (BUTLER, 2009; LACROIX, 2004). A partir desse caso, o IEC cria um tribunal independente (o IRB) para julgar os pedidos de refúgio e os refugiados passam a ter direito a uma audiência oral com os juízes – o hearing.5 O processo de refúgio no Canadá pode envolver vários passos, dependendo das circunstâncias dos casos, mas quatro etapas são indispensáveis: comunicar sua intenção às autoridades do país através do Canada Border Services Agency (CBSA) ou Citizenship and Immigration Canada (CIC); sendo o pedido considerado elegível, ele é encaminhado para o Refugee Protection Division (RPD) do IRB6; o RDP marca uma entrevista e o reclamante preenche um “formulário” Personal Information Form (PIF). Neste, o reclamante deve escrever sua “narrativa” (categoria nativa da burocracia canadense) em duas páginas, estabelecendo em ordem cronológica todos os eventos significativos e a razão que o levou a pedir proteção no Canadá;7 e, por último, uma 5
A audiência se tornou obrigatória porque no julgamento do caso “Singh vs. EIC”, a juíza Bertha Wilson considerou que os reclamantes a refúgio deveriam ter sido ouvidos para que o caso fosse analisado com justiça e não aceitou a alegação do EIC de que a realização de audiências para os refugiados era muito onerosa para o estado. Desse modo, o hearing tornou-se um direito dos reclamantes a refúgio no Canadá e uma das etapas do processo de refúgio.
6
As principais causas de inelegibilidade incluem: não ter tido sucesso em um pedido de refúgio anterior; ter estatuto de refugiado em outros países para os quais se possa retornar com segurança; ter vindo para o Canadá através de um país seguro do terceiro mundo; e sendo inadmissível devido a questões de segurança, criminalidade grave ou violações de direitos humanos. Para a lista completa dos motivos de inelegibilidade, ver Immigration and Refugee Protection Act, SC 2001, C27, s101.
7
O reclamante tem até 28 dias depois de recebido o PIF para entregá-lo. Se tiver algum documento, laudo ou prova complementar, o reclamante deve enviar todos os documentos que sustentam sua narrativa em até 20 dias antes da data de sua audiência. Estes documentos podem incluir relatórios que descrevam as condições do país de origem e podem colaborar na comprovação da narrativa apresentada.
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vez que o requerente tenha preenchido e enviado o PIF, o IRB escolhe um dos três processos possíveis para decidir a reclamação: um processo rápido acelerado (fast track process), uma audiência rápida (fast-track), ou uma audiência completa (full hearing). Na escolha do processo adequado a seguir, são considerados fatores que incluem a natureza da reclamação e do país de origem. Durante o trabalho de campo, focalizei as audiências (hearings). Definidas como um processo não adversarial (ROUSSEAU et al., 2002, p. 44), as audiências no IRB permitem que o reclamante apresente as provas e o relato oral que justificam o seu pedido de refúgio. Observei que, embora a audiência tenha sido estabelecida como um direito do refugiado, os informantes ciganos falavam dos hearings como um julgamento no qual são percebidos como réus. Eles não apenas consideram que estão sendo julgados, mas também que a justiça canadense pressupõe que são “culpados” e, portanto, sempre questionará seus argumentos, ainda que as chances de se conseguir refúgio no Canadá sejam muito superiores a outros países, como Inglaterra, Alemanha e Áustria (GUY, 2003, p. 67). De fato, nas audiências que assisti, eles pareciam culpados. Observei que o juiz confrontava os argumentos e informações apresentadas e que seu comportamento contrastava com a polidez das instituições canadenses. As audiências acontecem em uma sala do IRB, aberta ao público, onde nada pode ser registrado através da escrita ou gravação eletrônica ou outros meios de comunicação como celular e internet. Na sala do hearing, a bandeira nacional e um símbolo das forças armadas do Canadá estão atrás do juiz, este sentado em frente a uma mesa grande de madeira. O “counsel” do reclamante fica à esquerda do juiz e o reclamante à direita, ao lado do tradutor, todos de frente para o juiz e de costas para o público (que pode ser formado por testemunhas, membros da família e pesquisadores como eu). O “counsel” tem o papel de instruir o reclamante no que se refere aos trâmites e códigos da audiência e do processo de refúgio como um todo. Ele atua como um “advogado”, embora não exista a exigência de formação. O “counsel” pode ser um parente, amigo, ativista, advogado etc. O estado canadense não oferece o serviço de “counsel”, apenas contribuindo com um fundo para o Refugee Legal Aid Service, que não atende a demanda existente. Assim, existe um amplo mer-
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cado de trabalho para advogados e pessoas que se especializaram em “consulting” no país.8 Fora desse mercado privado, existem ONGs que oferecem o serviço através de funcionários e voluntários. No caso do RCC, Paul Clair também atua como “counsel”. Já o tradutor é disponibilizado pelo IRB e a tradução da audiência é literal. As audiências que acompanhei sempre começavam com a leitura da lista de presença dos envolvidos diretamente no caso. Depois disso, o juiz pedia para que os reclamantes apresentassem sua narrativa e justificassem seu pedido de refúgio. Para que o relato oral tenha sucesso é importante sua correspondência com a narrativa escrita. A coerência entre a narrativa escrita no momento em que se faz o pedido de refúgio e o relato oral apresentado durante a audiência é fundamental para a produção de uma “prova a favor”. Por isso, Paul Clair costuma fazer uma cópia dos pedidos, das narrativas escritas, e, um pouco antes da audiência, ele pede aos reclamantes que façam sua leitura ou ele mesmo lê para eles, lembrando a importância de não contradizê-la. No processo de produção da verdade, a correspondência entre o texto escrito e o relato oral tem um papel importante. Segundo Paul Clair, a correspondência entre o escrito e oral é um “sinal de verdade”, sendo a existência de diferenças, ainda que pequenas entre eles, motivo para suscitar a profunda desconfiança do juiz. O “counsel” tem um papel importante na determinação do processo de refúgio. Informado sobre a realidade cultural e política do país acusado de não proteger o reclamante, o counsel pode argumentar diante do juiz. Se ele, como Paul Clair, conhece as demandas do hearing, e tem conhecimentos sobre a situação de perseguição na qual se encaixa o reclamante, a probabilidade da audiência ter sucesso é muito maior (SEAN REHAAG, 2011). Nas audiências que acompanhei, Paul Clair recorria a informações contidas em relatórios de organizações como a Anistia Internacional, Cruz Vermelha e Human Rights Watch, que atestavam a violência racial contra os ciganos na Europa. Apesar do desempenho de Paul Clair na descrição do quadro de perseguição aos ciganos e na apresentação de documentos que atestassem o seu 8
Mais detalhadamente sobre a atuação do “counsel” e o seu importante papel no processo de determinação de refúgio no Canadá, ver Sean Rehaag, 2011.
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discurso, ao fim de algumas audiências, sempre pensava que elas tivessem sido desastrosas. Primeiro, porque o juiz fazia as mesmas perguntas repetidas vezes e, segundo, pelos seus comentários que explicitavam sua incredulidade diante dos fatos apresentados nas narrativas dos reclamantes a refúgio. De maneira geral, a performance do juiz correspondia às descrições de Kant de Lima para os atores que atuam no controle social de tradições jurídicas fundadas na desconfiança e suspeição (KANT, 1995; 2010). O comportamento do juiz chamou a minha atenção, pois não esperava encontrá-lo em instituições canadenses, idealizadas por mim como espaços nos quais o “réu” teria a “presunção da verdade”. A minha opinião em relação à audiência, no entanto, contrastava com a avaliação do tradutor L. Sarissky e de Paul Clair. Conversando sobre o que me parecia um “comportamento inquisitorial”, ambos me explicaram que o juiz agia corretamente ao externalizar sua desconfiança. Segundo eles, cabe ao reclamante provar que está falando a verdade, porque, como um “não cidadão canadense”, ele não tem a “prerrogativa da inocência”. Diferente do tratamento concedido a cidadãos, o juramente de que se falará a verdade e nada mais que a verdade não é o suficiente para que seu discurso tenha efeito de verdade. Nada impede, portanto, que o juiz mostre sua suspeição, assim como suspenda as regras da polidez9 que regulam a interação social em outras esferas da sociedade, cabendo ao reclamante fornecer as provas de que o seu caso se aplica à Convenção das Nações Unidas de 1951 ou do Immigration and Refugee Protection Act (IRPA) para o status de refugiado. Nesse sentido, a suspeição era esperada como uma “operação jurídica”, não sendo uma prática sigilosa. O “counsel” e o tradutor tinham razão em discordar da minha avaliação, porque o caráter explícito do juiz canadense contrasta com a lógica inquisitorial, marcada pelo segredo (KANT DE LIMA, 1995). A interlocução de Paul Clair, que atuou como “counsel” nas audiências assistidas, garantiu-me o acesso ao IRB, porque, se embora as audiências fossem públicas, na relação de hearings não teria como saber se o caso envolvia re9
Autores que criticam o processo de refúgio observam que quebrar as regras da polidez durante a audiência é um erro legal que pode ter consequências psicológicas catastróficas para as pessoas que reclamam refúgio (ROUSSEAU et al. 2002, p. 66).
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clamantes ciganos. Não existe identificação étnica dos casos, apenas os nomes dos reclamantes. A partir da interlocução de agentes políticos do RCC foi possível acompanhar os hearings que diretamente me interessavam. Em relação ao RCC e ao IRB destaco que o trabalho de campo nessas instituições teve êxito não apenas por minhas qualidades como trabalhadora de campo. Sem desmerecer o meu trabalho, o fato dessas instituições estarem abertas ao público e, sobretudo o RCC, interessadas na presença de pesquisadores, viabiliza o trabalho de campo. Por último, sobre o RCC e o IRB, observo que o acervo documental, uma enorme quantidade de dados sistematizados e disponibilizados ao público (inclusive nos websites), facilita muitíssimo o trabalho de pesquisa. Na primeira viagem exploratória, a descoberta de que o RCC dispunha de textos e documentos públicos e estava interessado na divulgação de sua narrativa foi decisiva para que quisesse desenvolver trabalho de campo mais prolongado em 2011.
Desafios para a internacionalização da pesquisa Embora as relações construídas na UWO tenham sido produtivas para a pesquisa, meu vínculo à universidade canadense foi estabelecido por uma conveniência. Como não havia auxílio financeiro disponível para a realização de trabalho de campo, recorri à bolsa sanduíche para viabilizar a pesquisa. Em outras palavras, para a realização de trabalho de campo no Canadá não era preciso o estabelecimento de relações com a universidade. Meu vínculo com a UWO, entretanto, era uma condição para conseguir recursos para a viagem. Afinal, não existe uma modalidade de bolsa de pesquisa para trabalho de campo internacional.10 Nesse sentido, encerro este texto com uma consideração específica à área de Antropologia. Essa consideração não envolve uma análise aprofundada sobre investimentos públicos no campo da pesquisa científica, cuja bibliografia existente não é abordada aqui. A partir de minha experiência, o objetivo é apenas destacar a importância para o financiamento de pesquisas acadêmicas na área de antropologia que considere especificidades, como a realização de trabalho de campo. 10
Outros colegas do PPGA/UFF, como Gisele Fonseca, que realizou trabalho de campo na Síria; Huda Bakur no Egito e Frederico Policarpo nos Estados Unidos, também recorreram à modalidade bolsa sanduíche para o financiamento de suas pesquisas.
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Para a minha viagem exploratória não contei com financiamento específico. Não poderia recorrer à bolsa sanduíche por duas vezes. Além disso, não existe auxílio para o aperfeiçoamento de língua estrangeira. Como minha experiência mostrou, essa primeira viagem foi muito importante, tanto do ponto de vista do desenvolvimento de minha competência linguística e cultural quanto do ponto de vista teórico-metodológico. Em relação à segunda viagem, para a qual contei com financiamento da CAPES, precisei dividir o meu tempo entre o trabalho de campo e minhas atividades na UWO. Mais uma vez, reafirmo o valor de minha experiência na UWO, mas essa mesma experiência poderia ter sido melhor aproveitada se a preparação para o meu trabalho de campo tivesse sido menos amadora. Quero dizer que, primeiro, considero importante que o pesquisador, o etnógrafo em campo, possa ter condições para se dedicar exclusivamente a esta atividade; e, segundo, que faltou um planejamento mais adequado à realização desta viagem. Para dar um exemplo, nesse sentido, meu trabalho de campo antropológico em Toronto não foi reconhecido pelo Departamento de Antropologia da UWO por questões institucionais. Diante da possibilidade de discutir publicamente minhas questões de pesquisa, descobri que a universidade não poderia reconhecer uma cooperação com a pesquisa de campo no Canadá, porque o meu projeto não tinha sido submetido ao seu conselho de ética no prazo estabelecido. Por isso, não pude gozar das possibilidades de diálogo formal como outros pesquisadores. Apenas pude apresentar questões relativas à pesquisa no Brasil. Dialoguei, no entanto, informalmente com a professora Randa Farah sobre o trabalho de campo em Toronto e, especialmente, com sua orientanda de doutorado Julianna Beaudoin, que também se dedicava ao estudo do processo de determinação de refúgio de ciganos, realizando trabalho de campo de campo no RCC e no IRB. O reconhecimento de que nós antropólogos brasileiros estamos realizando pesquisas internacionais e precisamos de recursos específicos e planejamento adequado para isso tem sido pautado por outros colegas. Em artigo publicado nesta revista, o antropólogo Frederico Policarpo argumenta que a própria concepção sobre o que é “trabalho de campo” para as agências federais de fomento brasileiras tem limitado a preparação e o planejamento da pes-
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quisa de campo antropológica no exterior. Embora reconheça o investimento da CAPES e sua experiência com a agência como extremamente positivos,11 Policarpo, baseado em sua reflexão que contrasta o trabalho de campo brasileiro ao fieldwork de seus colegas da Universidade de Stanford, Estados Unidos, informa que a diferença entre eles não é qualitativa: A questão fundamental, me parece, é explicitar os aspectos quantitativos em jogo. Quantitativos no sentido de um maior planejamento, de uma melhor preparação dos alunos para a viagem, de um volume maior de recursos financeiros disponibilizados, enfim, de condições adequadas para o ‘trabalho de campo’ antropológico no exterior (POLICARPO, 2013, p. 218).
Considerando o interesse brasileiro na internacionalização da pesquisa, um desafio para as agências de fomento é a criação de modalidades de financiamento que atendam a uma eficiente preparação para o trabalho de campo antropológico. Os editais disponíveis, como mostra Policarpo, não atendem a nossas demandas. Essa é uma questão para as agências e para os Programas de Pós-graduação em Antropologia. É preciso pensar que a internacionalização da pesquisa não se dá apenas em razão do contato do pesquisador brasileiro com uma instituição estrangeira, mas também através da realização de trabalho de campo em outro contexto nacional.
11
Assim como Policarpo (2013), destaco que minha experiência com a CAPES foi muito boa. Os trâmites burocráticos se deram de forma prática e eficiente. Destaco a comunicação com os funcionários, inclusive via skype quando estava no Canadá, e o envio de documentação via internet durante todo o processo como aspectos muito positivos.
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Abstract In this text I present an ethnographic report on fieldwork carried out in Canada, from September to November of 2009 and February to July, 2011, using two institutions in this country as my starting point: The Roma Community Center RCC (a Gypsy association) and the Immigration and Refugee Board of Canada IRB (Canadian state court that analyzes asylum and immigration requests). The expo is divided into three parts. First, the bureaucratic process in order to do fieldwork in Canada, with measures taken for this trip. Afterwards I present the RCC and the IRB, where I did fieldwork, exploring access to informants and data in these contexts. Finally, I call into question the challenge of internationalizing anthropological research. Keywords: Canada; fieldwork; Gypsy.
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RESENHA
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1. PEREIRA, Luzimar Paulo. Os giros do sagrado. Um estudo etnográfico sobre as folias em Urucuia, MG. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010. Daniel Bitter Professor do Programa de Pós-graduação em Antropologia, PPGA/UFF e membro do NARUA (UFF) Núcleo de Antropologia das Artes, Rituais e Sociabilidades Urbanas
Nos últimos anos vimos emergir alguns trabalhos antropológicos que renovaram significativamente os estudos sobre as “folias de reis”, dando continuidade às pesquisas pioneiras de Carlos R. Brandão, sugerindo novas perspectivas e problemas para a abordagem do tema. Entre estes estudos destaca-se o trabalho de Luzimar Pereira, recentemente publicado sob o título de Os giros do Sagrado. Trata-se de uma profunda incursão no universo festivo de foliões e devotos de Urucuia-MG. As folias examinadas pelo autor se configuram como extensas e complicadas redes de troca, relacionamento e solidariedade, promovendo uma ampla circulação de pessoas, entidades e coisas. Caracterizam-se como eventos nos quais se estabelecem intensos intercâmbios de dádivas entre pessoas, antepassados e divindades, e nesse sentido, parecem ser contextos particularmente propícios para uma abordagem que combine análises sobre ordens cosmológicas abrangentes e agências dos atores sociais. Como bem notou Alan Caillé, o dom é o domínio, por excelência, do político, “no sentido mais geral e mais preciso do termo ao mesmo tempo (2002: p.238)”, mas é também, o domínio do simbólico, uma vez que as coisas trocadas valem pelo valor das pessoas, comunicam alguma coisa e, sobretudo, produzem efeitos sobre o mundo. Uma das ideias apontadas por Luzimar Pereira, como um importante aprendizado adquirido ao longo da pesquisa, diz respeito à noção de que, os rituais das folias não existem apenas para reavivar o sentimento de pertença e fortalecer laços sociais, mas, sobretudo, para constituí-los, o que o coloca em conexão com uma das principais ideias de Durkheim sobre a solidariedade e o sagrado.
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Ao longo de suas 368 páginas, somos expostos a uma diversidade de categorias nativas, cuidadosamente discutidas por Luzimar Pereira. Como bem alerta José Reginaldo Gonçalves, autor da orelha do volume e orientador da tese de doutorado, que originou esta publicação, “etnografia aqui é entendida em seu sentido clássico, tal como integra e define o patrimônio singular da moderna antropologia social ou cultural”. O intenso envolvimento do autor com os foliões urucuianos, ressaltando-se o fato de ter, inclusive, assumido um papel ritual dentro de alguns ternos ou companhias estudados, resulta efetivamente numa “descrição densa” (Geertz, 1978), produto de um contínuo confronto e negociação entre teorias nativas e do pesquisador. O livro está estruturado em três partes acompanhando, como esclarece o autor, a própria dinâmica processual da festa, vista como uma “peregrinação” que se desenvolve no tempo e no espaço. A inspiração mais direta aqui vem dos ritos de passagem analisados por Van Gennep (1978). Os festejos se desenrolam em distintas e complementares etapas: a retirada, o giro e a entrega da folia. A primeira representa a separação do contexto familiar e a imersão no espaço mito-mágico das divindades e antepassados. Os giros, fase liminar por excelência, onde a dimensão do sagrado atinge sua atividade máxima, seriam os deslocamentos realizados por foliões (cantores e tocadores) pelas casas, fazendas e territórios, na roça e na cidade, considerados distantes. Por fim, a entrega, configura-se como um rito de agregação, encerrando o ciclo festivo e conduzindo seus participantes de volta às suas vidas cotidianas. Este é o momento em que numerosas pessoas, que de algum modo contribuíram para a festa, se reúnem em torno de uma ostentosa cerimônia marcada por intensa comensalidade, música e dança. Explorando as consequências das ideias de Van Gennep, Luzimar Pereira propõe que as folias podem ser vistas como encadeamentos intermináveis de deslocamentos, entradas, margens e saídas, o que o leva a argumentar que as noções de “sagrado” e “profano” são formuladas e postas em operação num contexto de forte mobilidade e rotatividade (Van Gennep, idem). Para entrar propriamente na descrição e análise das festividades, o autor apresenta uma diversidade de aspectos relacionados ao município de Urucuia,
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seus moradores e sua vida cotidiana. Explora as concepções de tempo, espaço, trabalho, família, casa, propriedade, etc, de forma a entendermos melhor a festa em sua totalidade. Somos apresentados a personagens como Zé Wilson, Du, Manuel, Antonio de Terto, Valéria, entre outros tantos, e a lugares como, Riachinho, Campinas, porto de Manga, que compõem a paisagem humana e física dos rituais. Acompanhando suas descrições, somos informados de que a maioria dos participantes das folias (foliões, imperadores, moradores) residem em áreas rurais, onde a fazenda se configura como uma unidade central de moradia, produção e trabalho, organizando suas relações de parentesco e reciprocidade. Luzimar Pereira alerta, contudo, para a polissemia desse termo. Um dos sentidos importantes é o que remete aos pequenos agrupamentos de vizinhança, que se configuram como “bairros rurais”, muitos deles originados pela dissolução e fracionamento das grandes fazendas, por morte do dono, falência ou venda da propriedade. Nesses bairros rurais predominariam a convivência de famílias extensas num mesmo território, onde as noções de parentesco e vizinhança seriam princípios que orientam os direitos e deveres das pessoas. Outro domínio explorado pelo autor consiste na própria casa, uma vez que ela é de fundamental importância, tanto para a vida cotidiana quanto ritual dos urucuianos. A moradia e sua relação com a rua encontra-se no centro de um sistema classificatório por meio do qual são formuladas as distinções básicas entre familiares e estranhos, homens e mulheres, jovens e velhos, sagrado e profano, etc. Ressalta-se que boa parte das atividades rituais de foliões e devotos se dá justamente nas casas, onde ocorrem as visitas, os pousos e as ofertas de esmolas1 para o cumprimento da promessa dos imperadores, os principais responsáveis pelo custeio e organização da festa. Como escreve “Em contraste com sua aparente imobilidade, enquanto edifício material, a residência tem uma natureza bastante dinâmica, como espaço simbólico (p. 54)”. 1
A categoria é amplamente explorada pelo autor. A ideia fundamental é que as trocas efetuadas pelas folias transcendem o caráter puramente utilitário. A quantia arrecadada pelos giros é considerada mínima, diante dos recursos necessários para custear a festa. Seguindo um código moral, os foliões jamais solicitam a esmola a um residente, pois ela tem de ser livremente oferecida. Luzimar Pereira sugere que o que está em jogo é menos o que e o quanto se dá, do que a própria visita realizada na casa de uma família.
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O livro descortina os processos de constituição de extensas redes colaborativas para que uma folia aconteça. As pessoas que são consideradas as principais promotoras da festa são os imperadores (homens) e as imperadeiras (mulheres). Luzimar Pereira nos alerta que se trata fundamentalmente de posições e títulos de prestígio e honra. A posição de imperador é investida de enormes responsabilidades. Se for bem sucedido, pode ter seu prestígio muito ampliado. Inversamente, sua reputação pode ser gravemente manchada, caso não consigam honrar os compromissos assumidos. Os imperadores, geralmente se envolvem com uma ou mais folias através de uma promessa, o que deve ser entendido no quadro interativo das trocas de dádivas e contra-dádivas entre as pessoas e divindades (Mauss, 2003). A promessa é, de certo modo, o motor das folias, quando colocam-se em operação as relações entre as pessoas e seus santos católicos de predileção, não se restringindo aos Reis Magos2. O livro nos revela através de sua tessitura etnográfica que há muitos modos de se fazerem pedidos aos santos e também de pagar pelas graças alcançadas. Dentro da complexa cosmologia de foliões e devotos, os santos são também vistos como sendo simultaneamente generosos e vingativos, mantendo relações de proximidade e distância com as pessoas. Pode-se dizer que a própria realização de um terno ou companhia é uma forma de pagamento de uma promessa, que por sua vez, medeia a relação de devotos com seus santos, ajudando-os a pagarem outras tantas promessas de uma diversidade de pessoas. Para que as folias alcancem seus objetivos, é necessária uma enorme convergência de esforços. Uma folia pode começar com um casal de imperadores e acabar por abarcar numerosas categorias sociais: parentes, amigos, vizinhos, simples conhecidos e mesmo desconhecidos. Sua realização demanda a articulação de uma ampla rede de auxílio, sendo que as alianças feitas com personagens que não pertencem ao circulo de parentes, vizinhos e compadres, se dá através do trato, um possível desdobramento da noção de contrato. O trato exige o empenho da palavra, comprometendo moralmente os envolvidos. Ressalta-se que as solicitações de auxílio às pessoas próximas ao núcleo doméstico, são marcadas pelo signo da obrigatoriedade e por valores co2
Há vários tipos de folias na região: folia de São Sebastião, folia de Santa Luzia, folia dos Reis Magos, etc.
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mo solidariedade e consideração. Inversamente, as alianças constituídas longe do espaço familiar, tendem a ser mais individualizadas. Como bem salienta o autor, nem tudo na folia se resume às relações simétricas de reciprocidade. Há dados etnográficos que permitem perceber o caráter fortemente agonístico da festa, quando se evidencia a desigualdade de status entre doadores e donatários e sua classificação hierárquica. Ficamos também sabendo, ao longo da leitura do livro, que, se por um lado, os imperadores são figuras centrais para a realização da festa, esta se torna impossível sem a participação dos cantores e tocadores das folias. Como bem aponta o autor, diz-se que os promesseiros contraem a dívida com os santos, mas quem paga são os foliões, liderados por um capitão. Sua importância é de tal ordem que estes se distinguem dos demais participantes dos festejos, pelo uso de uma toalha cerimonial que é mantida sobre o ombro. Luzimar Pereira faz uma interessante análise dos usos sociais e simbólicos deste, aparentemente, prosaico objeto, revelando sua relevância nas várias etapas do ritual. A toalha costuma receber o nome de batismo de seu usuário e o acompanha em muitas etapas da vida, podendo até mesmo ser enterrada juntamente com o morto. A ideia central aqui é a de que as toalhas são extensões corporais, espirituais e morais de seus proprietários e, por isso mesmo, são vistas como mediadoras mágico-religiosas. As narrativas etnográficas seguem revelando que os foliões recebem as toalhas como um reconhecimento público de que são portadores de uma influência, ou seja, uma habilidade específica (por exemplo, para cantar ou tocar um instrumento) agraciada como um dom divino. Verifiquei fenômeno semelhante entre foliões da Mangueira-RJ, nas minhas pesquisas (Bitter, 2010). O sanfoneiro conhecido como Tata, numa certa ocasião, disse que tocar sanfona era um presente dos Magos e que, por isso, se sentia obrigado a tocar o instrumento até seus últimos dias de vida, o que realmente fez. De acordo com autor, a influência precisa ser socialmente reconhecida e sustentada publicamente, o que envolve relações de poder, uma vez que “a construção social do folião envolve uma disputa de grandes proporções e estando associada, muitas vezes, a laços de parentesco, vizinhança ou amizade
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(p. 109)”. O giros da folia constituem uma etapa muito importante dos festejos e podem ter a duração de uma única noite ou se estender por muitas outras, o que exige que o grupo permaneça em algumas das casas como um pouso, para descanso3. Sua realização está fundamentada nas narrativas míticas que contam que os Magos teriam seguido viagem em direção à Belém, orientados por uma estrela guia (o anjo Gabriel) para adorar e presentear o menino Deus4. Os giros seriam, desse modo, uma recriação ritual dessa viagem. Eles acontecem à “noite”, liminarmente, expondo os foliões aos mais variados perigos: frio, cansaço, bebida, mulheres, brigas, feitiços, rivalidades, etc. A própria experiência do sagrado, é um empreendimento considerado muito perigoso, exigindo uma série de cuidados e preparativos. Alguns destes cuidados são direcionados a certos objetos cerimoniais, como as toalhas, instrumentos musicais, altares, lapinhas e a bandeira. A bandeira é descrita como um mastro de madeira em que é fixado o pano ao qual se costura a estampa do santo. Trata-se de um dos objetos de maior valor ritual e simbólico para foliões e devotos, pois acredita-se que ela seja capaz de trazer bênçãos e graças a quem a recebe. A bandeira é deslocada ao longo dos giros pelo alferes e é entronizada nas casas visitadas, de forma a trazer os próprios santos à presença de todos. Os giros obedecem a regras espaciais muito estritas em virtude da ameaça de perigos, o que reflete toda uma cosmologia, profundamente discutida no livro. Os deslocamentos de casa em casa precisam ser feitos sempre à direita em sentido anti-horário, de modo que os foliões não voltem a passar pelas mesmas travessias. Caminhar “às avessas” é um ato interdito, cuja violação, acredita-se, venha causar graves sanções divinas. Luzimar Pereira recorre ao clássico estudo de Robert Hertz, A preeminência da mão direita (1990), para pensar as relações classificatórias entre direita e esquerda em homologia com as noções de puro e impuro, ordem e desordem.
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A definição das casas a serem visitadas e das casas que servirão de pouso é resultado de uma intensa negociação. O autor sugere que um dos aspectos a serem levados em conta nesta definição é o prestígio que um morador pode ganhar ao receber uma folia.
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As variantes deste mito são inúmeras e como revela Luzimar Pereira, sua passagem ao rito, comporta diversos ajustamentos.
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Um dos argumentos interessantes apresentados por Luzimar Pereira é o de que os giros são momentos marcados por uma forte ambiguidade e liminaridade (Turner, 1974). Como escreve, “Sua execução é sempre o resultado de um grande tensionamento entre os valores da liminaridade, que desfaz as diferenças, e as categorias classificatórias que regem o dia a dia dos urucuianos (p. 216)”. Nesse sentido, é possível compreendermos a presença de certa licenciosidade entre as atividades consideradas mais sagradas. Os giros guardam certa dimensão de “brincadeira” e camaradagem entre seus integrantes. O autor salienta, contudo, que o “enquadramento” (Bateson, 1972) que delimita o espaço onde se dão as brincadeiras, aponta para uma “anti-estrutura”, mas não chega a dissolver completamente as relações hierárquicas. Há aqui, um delicado e precário equilíbrio entre estrutura e anti-estrutura, uma vez que os contornos de um enquadramento podem efetivamente se dissolver, fazendo com que um jogo provocativo entre foliões se transforme em um agravamento e subsequentemente numa briga de fato, expondo seus contendores a possíveis situações de humilhação e desonra. Como apontei acima, a casa está no centro dos rituais das folias O autor apresenta descrições detalhadas da visita das folias às residências e seus moradores destacando o papel central da bandeira, inclusive na sacralização da casa e de seus espaços mais recônditos. A formalidade do cantorio realizado pelos foliões sede lugar à informalidade da dança do quatro, uma performance coreográfica, cantada e tocada, que envolve os foliões e os demais participantes do ritual. Sua execução desfaz parcialmente as fronteiras entre moradores e demais participantes, entre a cozinha e a sala, conduzindo o ambiente para uma certa communitas festiva. . Luzimar Pereira refere-se à dança do quatro como uma “/... antiestrutura no interior da estrutura ritual (p.252)” (Turner, 1974). O autor nos informa que a performance é muito apreciada e que esta se dá num contexto de trocas mais imediatas entre foliões e residentes. A dança é uma forma de pagamento e agradecimento pelos serviços oferecidos pelos moradores, o que inclui a oferta de um pequeno repasto, cachaça, café, etc. Há ainda, pelo menos duas características importantes desta dança. A primeira é que ela pensada e feita
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para as mulheres, em contraste com o fundamento religioso da festa associado ao mundo dos homens. Em segundo lugar, o quatro envolve uma poética do improviso, onde os anfitriões podem ser elogiados pela boa recepção através dos versos. Entretanto, como aponta o autor, a possibilidade do improviso dissemina um temor de que as reputações sejam arranhadas através dessa forma pública de expressão, quando as trocas positivas se transformam em veneno, revelando os inúmeros aspectos agonísticos da festa. Ao final da dança, a bandeira é devolvida ao alferes para que continuem os giros e é neste momento que se fazem as ofertas de esmolas, de forma mais privada. Se as esmolas tendem a ser dadas numa esfera mais privada, o mesmo não se aplica quando está envolvida a oferta de um boi, acontecimento público, por excelência. Na terceira e última parte do livro, somos introduzidos ao universo do gado e sua importância tanto para a vida cotidiana quanto para a vida ritual. Sua oferta é um dos gestos mais louvados por foliões. Por outro lado, seus proprietários, muitas vezes, aguardam a visita de uma folia e esperam que esta realize uma saudação do curral, de modo a benzer os animais e afastar infortúnios. Luzimar Pereira observa que a introdução do gado no universo de foliões se dá a partir de três movimentos complementares. O primeiro é a sua “sacralização”, quando o boi torna-se propriedade inalienável de um santo. O segundo refere-se ao seu sacrifício. O último, por sua vez, correlaciona-se com a transformação completa de alimento em comida. Não se trata, aqui, de comida do ponto de vista nutricional, mas das mediações que é capaz de realizar, dentro de um “sistema culinário”, articulando diversos domínios da vida social. Aqui talvez seja oportuno apresentar ao leitor uma das ideias mais interessantes do livro. Seu autor sugere que a festa envolve simultaneamente abertura e comedimento. Se, por um lado, ela deve se abrir solidariamente ao público, por outro, ela deve fechar-se em si mesma; esconder as razões utilitaristas e os interesses mais pragmáticos que se ocultam nos bastidores de sua promoção. Luzimar Pereira argumenta que os atos de “mostrar” e “esconder” são correlatos ao modo como a “honra” é pensada e vivenciada distintamente por homens e mulheres. Apoiando-se nas reflexões de Pitt-Rivers (1992), o autor
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propõe que o trabalho, para os homens, é executado num contexto de rivalidade e reconhecimento público de suas competências. Já para as mulheres, o trabalho é marcado pela humildade e pelo recato. Como propõe o próprio Pitt-Rivers, com relação ao seu estudo numa aldeia siciliana, a honra masculina é uma questão de precedência. Já, a honra feminina é uma questão de virtude e pureza sexual (1992, p. 295). Somos evidentemente forçados a reconhecer que essas ideias não podem ser aplicadas universalmente, mas em todo caso, elas parecem reverberar de modo convincente com o material etnográfico exposto por Luzimar Pereira, quando acompanhamos tudo aquilo é ostentosamente exibido, como num grande potlatch, e tudo aquilo que se mantém no mundo privado e íntimo de foliões, imperadores e devotos. O fim do ciclo de giros é marcado pela entrega da folia e requer o retorno de seus integrantes à casa dos imperadores, de onde partiram inicialmente. A entrega da folia é o evento mais público e mais esperado. O autor salienta que é neste momento que se pode avaliar com mais precisão a qualidade da festa, e, portanto, o resultado de todo um trabalho coordenado. Uma série de indícios permitem aos convidados fazerem esta avaliação: animação, quantidade de pessoas, música, qualidade da comida, fatura, etc. Um dos momentos culminantes da entrega é a refeição ou janta cerimonial. Luzimar Pereira relata que normalmente, há uma mesa destinada exclusivamente aos foliões e a pessoas de alta distintividade. A bandeira é deslocada do santuário para a mesa através de um cerimonial, no qual se entoa uma alvorada. Sua presença sobre a mesa, a sacraliza, revestindo a própria refeição de um caráter transcendental, distinguindo os membros do terno dos demais convidados. O argumento central aqui é que a mesa hierarquiza as pessoas, desde o cardápio até o modo de se servir. Segue-se ao jantar um cantorio de agradecimento e uma ladainha comandada por puxadores de reza, diante de uma lapinha. Nas páginas finais do livro, o autor se propõe a pensar sobre a dupla natureza dos movimentos dos giros. Estes seriam, por um lado, uma romaria caracterizada por um movimento para frente em direção ao sagrado, como também, para o alto. Por outro lado, os giros podem ser vistos também como uma procissão que carrega à frente a santidade para a qual tudo converge. “Os san-
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tos, em outras palavras, é que viajam, sendo os foliões e acompanhantes o seu séquito durante os dias de caminhada (p. 328)”. Por fim, as jornadas realizam um movimento para baixo, no sentido em que, as divindades descem ao plano mundano e se relacionam com os humanos. Todos estes deslocamentos, reflete o autor, propiciam uma dissolução momentânea das fronteiras que separam espaços, pessoas e divindades de modo a operacionalizar um ampla rede de trocas. Os giros se iniciam num estado de contração, promovem um movimento de intensa expansão ao longo de seu desenvolvimento, voltando ao estado original de concentração, reforçada por um enorme e poderoso ajuntamento de pessoas. Nesse longo caminho percorrido, as esmolas convertem-se em propriedade dos santos, pela mediação dos imperadores, para finalmente serem redistribuídas cerimonialmente na forma de um suntuoso repasto. Como notou Clifford (1994) nem toda a acumulação de bens serve ao uso privado, podendo ser destinada à livre distribuição. Luzimar Pereira mostra ainda que a relação entre os imperadores e os convidados é mediada por certas etiquetas, por “leis básicas da hospitalidade”, de forma a controlar os perigos associados aos estrangeiros. Agora, os foliões, destituídos de suas toalhas, encontram-se livres para exercerem plenamente sua masculinidade, uma vez que sua obrigação religiosa está terminada. A formalidade e solenidade dos rituais que antecedem a entrega, dão lugar a um espaço de significativas inversões, onde o corpo assume um lugar de poderosa expressão, efetuando-se uma passagem ao baixo material, corporal e cosmológico (Bakhtin, 1993). Terminamos o livro na festa de Du, em meio a uma multidão de pessoas entregues a uma espécie de “carnaval” sertanejo. Observamos aqui um notável contraste entre um igualitarismo, dado pela partilha generalizada de comida, bebida e música e e a expressão de uma superioridade personificada pelo promotor da festa, que não desperdiça as oportunidades de ver-se como um foco de elogios e honrarias. Como bem observa o autor, neste ponto, a opinião pública exerce um enorme poder sobre a reputação e autoridade dos organizadores da festa.
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REFERÊNCIAS 2. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. Brasília, Ed. Da UNB. 1993. 3. BATESON, Gregory. Uma teoria sobre brincadeira e fantasia. Cadernos do IPUB. Instituto de psquiatria. UFRJ, nº5, 2000. 4. BITTER, Daniel. A bandeira e a máscara. A circulação de objetos rituais nas folias de reis. Rio de janeiro: 7 letras e CNFCP/IPHAN, 2010 5. CAILLÉ, Allain. Antropologia do dom. O terceiro Paradigma. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2002. 6. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulus, 1989. 7. CLIFFORD, James. Colecionando arte e cultura. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. N. 23. IPHAN, 1994. 8. GEERTZ, C.. A Interpretação das Culturas (pp. 45-66). Rio e Janeiro: Zahar, 1978. 9. HERTZ, Robert. “A preeminência da mão direita: um estudo sobre a polaridade religiosa”. - 128. In: Religião e Sociedade, vol. 6, Rio de Janeiro, ISER, 1980. 10. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosacnaify, pp. 185-314. 2003 11. PITT-RIVERS, Julian. El lugar de la gracia en la antropología. In: PITT-RIVERS, Julian; PERISTIANY, J. G. (Ed.). Honor y gracia. Madrid: Alianza, 1992. 12. TURNER, Victor. O processo ritual. Petrópolis: Ed. Vozes, 1974 13. VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
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1. CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012, 296 p. Kleverton Arthur de Almirante. Mestrando em Educação Brasileira. Universidade Federal de Alagoas, 2013.
A motivação inicial da pesquisa para a tese de Doutorado em Educação de Stela Guedes Caputo, defendida no dia 11 de julho de 2005, e que dá origem a este livro, surgiu a partir de uma reportagem para o jornal O Dia. A reportagem, que tinha na pauta o objetivo de mapear os terreiros de Candomblé da Baixada Fluminense, ganhava novo rumo. A descoberta, que se tornou o objeto de pesquisa de Caputo, foram crianças desempenhando funções religiosas nos terreiros de Candomblé.1 Foi nas primeiras incursões em campo, que Stela Guedes Caputo (2012, p. 28) construiu “o primeiro conjunto de questões desta pesquisa: O que se aprende no terreiro? Como as crianças vivenciam esse espaço? Como são socializadas nele? Que funções desempenham? Como se relacionam com a língua praticada, o yorubá? Nascia assim a primeira parte do que vai neste livro: a educação nos terreiros”. Sobre a escola, com base na empiria que a levara a construir as hipóteses de sua pesquisa, restava perguntar se “existe discriminação? E, se existe, como as crianças candomblecistas a enfrentam? [...] Como a escola (Ilé Ìwé) se relaciona com crianças e adolescentes que frequentam o candomblé?”. No trajeto de pesquisadora, Caputo recorre a Pierre Bourdieu (2004; 1997), que nos adverte sobre os academicismos e reflexões necessárias sobre o olhar em campo. Mostrando que tem seguido os conselhos de Bourdieu, Caputo adota segundas táticas tanto de acordo com a formulação do cenário social, quanto para preservar as crianças observadas, utilizando assim o improviso (GRAUE & WALSH, 2003, p. 127) necessário nas investigações etnográficas, e deixa os vestígios de seu tracejado na obra que se vai construindo. 1
Bruce Jackson (1987, p. 266, apud GRAUE & WALSH, 2003, p. 125) assinala que “a tarefa do investigador durante o trabalho de campo não é decidir se aquelas pessoas deveriam estar a fazer o que fazem, mas sim descobrir o que elas fazem e o que isso significa”. Revista Antropolítica, n. 36, p. 337-345, Niterói,1. sem. 2014
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A pesquisadora apresenta um debate sobre a hipótese, o elemento que funciona como um fio político que conduz a pesquisa. Sua hipótese é que na escola, as crianças e adolescentes de terreiros são invisibilizados, silenciados e discriminados. É também com esta hipótese que inicia a pesquisa, reforçada pelos resultados de suas experiências com as crianças em campo e por outras vivências. Assim, o livro se divide em duas partes: o “Aprender em terreiros” e “O candomblé e a escola”. A autora abarca também os conceitos de tradição, como elemento criador e renovador, e de tradicionalismo, como preservação essencial do que foi criando, para, já no primeiro capítulo da primeira parte, demonstrar um papel importante das crianças e jovens nos terreiros de candomblé: a manutenção e a renovação da tradição através da história. Exemplo disso é que não é tradicional do Candomblé alguma brincadeira que imite a manifestação dos santos, porém é tradicional que elas façam parte do corpo hierárquico; entretanto, faz parte da cultura de brincadeiras das crianças de terreiro a brincadeira de imitar os santos manifestos. Como se pode ver na citação a seguir: Ricardo Nery e Paula Esteves não visitam ou o frequentam apenas em dias de festas e obrigações. Eles moram no terreiro, já que suas casas ficam dentro do espaço da comunidade terreiro. “Eu acordo vendo macumba e vou dormir vendo macumba”, disse Ricardo. “Quando eu era criança, gostava de ver televisão e via. Mas o que gostava mesmo era de brincar de macumba. Ficava brincando de macumba com a Paula, com o Jailson e com os outros. A gente brincava de pegar santo”, conta Ricardo. Ricardo diz que uma das coisas que mais gosta de fazer é tocar para o Ṣàngó de Paulinha. “Ele vem com força, vem bonito, fica satisfeito, é lindo”, comenta. E tem razão. Ver Ricardo tocar para o Ṣàngó de Paulinha e observar como ele dança no meio do terreiro foi uma das coisas mais bonitas que vi durante a pesquisa (CAPUTO, 2012, p. 80).
Esse relato abre brechas para buscarmos entender como as crianças articulam em seu mundo simbólico a inserção num mundo onde irão manter e renovar a tradição de desempenhar funções religiosas com a própria cultura de brincadeira delas. E, nessa tangência cultural de adultos e crianças, como elas lidam com as proibições de brincar de imitar, “pegar”, santo – não sa-
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bendo a maioria dos adultos que esta prática é extensamente formativa e séria para as crianças. A pesquisadora aponta que, perceptivelmente, tais comportamentos durante as brincadeiras e durante o culto não as tornam carentes de cessão de voz, pelo menos não nos espaços do terreiro. A conquista da confiança das crianças tanto no âmbito do principal terreiro pesquisado, o de Mãe Palmira, como dos demais terreiros da pesquisa, segue todos os detalhes de envolvimento do fazer etnográfico. Podemos enxergar, através dos relatos contidos no livro, como é tecida a relação com as crianças naquele campo, numa forma bem comum e atraente para elas – fazendo desenhos no caderno de campo da pesquisadora,2 e como a pesquisadora vai se constituindo num elemento familiar à dinâmica do terreiro. Como as descobertas da pesquisa não estão à espera do pesquisador, toda aplicação de metodologia requer não saber os resultados que serão obtidos – mesmo guiada pelas hipóteses que identifiquem o posicionamento teórico e político do pesquisador –, isto pode ser verificado pelos depoimentos de Tauana, quando a pesquisadora cita as “contradições até então não reveladas” no tocante a “quando perguntadas, as irmãs [Tauana e Tainara] afirmam que são católicas” (CAPUTO, ibidem, p. 126 e 131, inserção minha). Este parecia ser um resultado inesperado pela pesquisadora. Graue & Walsh (op. cit., p. 139), diz que “as crianças sabem mais do que elas próprias sabem que sabem”, cabendo assim ao pesquisador em sua investigação etnográfica se lançar a meios que as façam falar daquilo que sabem e, acrescento, daquilo que está oculto a quem pesquisa; ou, como nos elucida Cohn (2005), não se trata de uma diferença de saber em termos quantitativos, a relação entre o adulto a criança, mas sim qualitativo, o que nos é trazido por meio dos dados etnográficos da pesquisa de Caputo. Recorrendo ao pesquisador José Beniste, a autora descobre que o Candomblé avança, não mediante um aprendizado de mera repetição, mas pe2
A professora Sônia M. Gomes Sousa indica que esta também é uma das formas de obter informações das crianças (In: CRUZ, 2008, p. 178). Ana Cristina Coll Delgado e Fernanda Müller relatam alguns detalhes de seus trabalhos, no mesmo livro de Cruz (p. 286-289), apresentando as crianças como participantes da pesquisa, inclusive com preferências por instrumentos metodológicos, reforçando práticas que as considerem pesquisadoras devido a estes detalhes de participação.
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la ruptura com uma visão tradicionalista da educação nos terreiros, ruptura existente no poder de busca por conhecimento da qual as crianças e os demais membros da nova geração de religiosos de candomblé criam e renovam. Ruptura esta que também pode ser verificada no embate epistemológico da Antropologia, lançado por Silva (2006), sobre o conhecimento produzido no campo das religiões afro-brasileiras pelos seus próprios religiosos. E estes conhecimentos se tornam tão naturais para as crianças de terreiros que elas não se reprimem de fazer “a já conhecida expressão de ‘como é que um adulto assim não sabe isso?’” (CAPUTO, ibidem, p. 144). A pesquisadora conta que surpresa, quase irritação e risos são reações das crianças diante de adultos que não sabem nada do que para elas é corriqueiro; o que não se diferencia do ônus da visão tradicionalista e verticalizada da educação escolar, na qual as crianças aprendem com os adultos que se irritam caso elas não consigam aprender o que eles ensinam. Ainda sobre o aprendizado a pesquisadora assinala que “é na experiência que se aprende e se ensina” (CAPUTO, ibidem, p. 157), mostrando a não verticalização da educação, para enxergarmos como as crianças se relacionam nos processos educativos, de modo que nos terreiros a infância não é vista como deficiência [de capacidades] ou ausência [de saberes] e que, mais vale o tempo de iniciado no culto que a idade de vida de uma criança. Assim, saberia mais uma criança de 12 anos iniciada há sete, que um adulto de 32 anos iniciado há um, o qual certamente aprenderia com a criança de maior idade iniciática – o que se confirma mais adiante no depoimento de um dos religiosos que disse aprender “olhando os mais velhos na religião” (CAPUTO, ibidem, p. 165). A autora também vai aos recursos de conhecimentos disponíveis na bibliografia existente sobre o tema quando os informantes são proibidos de revelar os segredos do culto, esta é mais uma estratégia necessária do fazer etnográfico, e ao uso dos “talvez”, quando ainda não se tem a certeza das descobertas e confesse precisar de mais tempo de pesquisa ou demandar outros focos, outros objetivos. Surgem questões éticas quanto às autorizações de imagens, falas e identificações dos sujeitos da pesquisa. Os sujeitos chegam a julgar que falaram além
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do permitido, revelando ou implicitando questões que não autorizam publicar. Neste ponto, a pesquisadora descobre que a imagem, a concessão da entrevista e a identidade necessitam, além da autorização ética dos responsáveis tutelares dos sujeitos da pesquisa, da “autorização espiritual”. Descoberta essa que a faz enxergar que “o campo é atravessado por infinitas tensões e subjetividades” (CAPUTO, ibidem, p. 185) muitas vezes com manifestações de ciúmes, como também é mostrado e discutido por Silva (2006). Na segunda parte do livro, construiu-se a descoberta de como se dá a relação da escola com a religião do candomblé e com os membros dessa religião diretamente ligados a ela3. Na tessitura dessa parte, foi-se descobrindo que a forma mais comum encontrada pelas crianças e pelos demais religiosos de Candomblé “é esconder os artefatos religiosos, os preceitos do culto, a fé, a cultura. Isso acontece em diversos espaços, mas de acordo com os depoimentos, a escola é ‘o pior deles’” (CAPUTO, ibidem, p. 197). E as práticas pedagógicas imbuídas de estratégias orientadas pelas práticas da posição que os professores ocupam no campo religioso parecem acirrar o quadro negativo de embates dentro da escola quanto à realidade cultural e religiosa das crianças. Como se pode ver, no relato de uma filha de santo do principal terreiro pesquisado, consta que “uma professora “passava óleo ungido na testa dos alunos para que todos ficassem mais tranquilos e para tirar o Diabo de quem fosse do candomblé’” (CAPUTO, ibidem, p. 197). Durante a pesquisa, com 13 anos de idade, Joyce Eloi dos Santos contou que as pessoas a apontavam “na rua e também na escola e diziam: Isso é coisa de negro!”(CAPUTO, ibidem, p. 199) e que não tivera nenhum(a) professor(a) interferindo para repreender uma situação dessa. Apesar de Joyce afirmar que mudou, ela diz que “não dá para mudar dentro da escola porque a escola não mudou” (p. 200). De certa forma e em consequência, o preconceito parece passar a ser um elemento internalizado e ratificado pelos religiosos de candomblé. Jailson dos Santos, aos 12 anos, outro sujeito da pesquisa de Stela Caputo, disse “que nunca se sentiu discriminado na escola, ‘a não ser aquele preconceito normal’” e que 3
Nesta parte do livro também se encontra, da página 205 à 206, a descoberta do terreiro e do bairro onde se localiza como um “lá”, um local geográfico e cultural não de refúgio, no sentido de encontro e sociabilidade, mas de esconderijo, dado o silenciamento nas regiões adjacentes e distantes do terreiro.
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“se ninguém souber, ninguém discrimina” (CAPUTO, ibidem, p. 201), preferindo adotar o silêncio como estratégia de sobrevivência cultural. É importante atentarmos para a descrição de um quadro, a seguir, levantado pela pesquisadora após a entrevista com um grupo de 14 professores observados num conselho de classe da escola de duas crianças entrevistadas: Dos 14 professores, nove responderam que nunca pensaram sobre crianças no candomblé porque não acreditam que existam crianças que frequentem ou pratiquem candomblé na escola. Uma das entrevistadas afirmou: “Não temos crianças com esse ‘problema’ aqui na escola”, a maioria é católica. Cinco professores afirmaram que acham “um absurdo” que crianças pratiquem candomblé. “As crianças não devem ser induzidas à macumba só porque os pais frequentam”, respondeu uma professora. Perguntei a esta professora se os pais católicos também não “induziam” seus filhos ao catolicismo quando os batizavam, os levavam às missas, os colocavam no catecismo para a Primeira Comunhão etc. A professora respondeu: “Mas o catolicismo não é coisa do Diabo, é a religião normal”. Perguntei ao grupo o que achavam da discussão da lei do ensino religioso e se eles aprovavam o ensino religioso para as escolas. Treze professores responderam que sim, desde que este excluísse “seitas” como a “macumba”. “O que deve ser ensinado é o catolicismo e as religiões evangélicas”, afirmou uma professora. Outra entrevistada comentou: “Os macumbeiros que me perdoem, mas nos terreiros só acontece sexo”. Perguntei a essa professora se alguma vez ela tinha visitado ou frequentado terreiros, e ela respondeu que não. A mesma professora disse que “tentaria tirar ‘essa ideia de macumba’ da cabeça de qualquer aluno seu.”. Perguntei como ela pretendia fazer isso. “Lendo a bíblia todos os dias na escola”, respondeu. Apenas um professor disse que todas as religiões devem ser respeitadas na escola, inclusive se a lei do Ensino Religioso for aprovada (p. 204). O que se pode perceber não é somente uma influência da posição que o professor ocupa no campo religioso em sua prática pedagógica, mas também um problema de formação. A Lei 10.639/2003 tentar sanar este problema, introduzindo o ensino de conteúdos que versem sobre a cultura e a histó-
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ria africanas e afro-brasileiras na Educação Básica, todavia, esta questão ainda se mostra ambivalente quando observamos as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula (GOMES, JESUS, 2013). A autora ainda aponta que o Ensino Religioso acaba por se tornar um meio de conversão, o que nos leva a entendê-lo como uma disciplina proselitista à medida que a prática docente é orientada pelas crenças do professor. E poder-se-ia dizer que a contratação de professores realizada como um mecanismo de seleção que privilegia católicos, em primeiro lugar, e evangélicos em segundo, agrava esta situação. A afirmação de que “o catolicismo então é percebido como algo natural para a escola” (CAPUTO, ibidem, p. 223) é também encontrada num artigo de Campos e Lima (2011, p. 281), no qual dizem que a presença “invisível” do catolicismo é naturalizada por ser cultura, no espaço escolar dito laico. Encontramos este cenário na pesquisa aqui apresentada, uma vez que se indica que: Quando a diretora de uma escola proíbe um livro de lendas africanas, ela quer apagar a diversidade presente na sociedade e na escola, quer silenciar culturas não hegemônicas. Èṣú é negro. Um poderoso e imenso Òrìṣà negro. É o Òrìṣà mais próximo dos seres humanos porque representa a vontade, o desejo, a sexualidade, a dúvida. Por que esses sentimentos não são bem-vindos na escola? (CAPUTO, 2012, p. 246). Às considerações finais desta pesquisa, Caputo (ibidem, p. 256-257) aponta que: As crianças e adolescentes observadas nos terreiros praticam e defendem uma cultura diferente da cultura hegemônica da sociedade e da escola. Ricardo, Paula, Luana, Joyce, Jailson, Tauana, Tainara, Felipe, Noam, Laremi, além de muitas outras crianças e adolescentes, fazem parte dessa realidade multicultural, mas têm sua cultura excluída pela hegemônica. Por exemplo, a escola de Cauã chamou sua mãe porque Cauã cantava, batucava e falava tudo de Candomblé, aconselhando-a a realizar com o filho atividades que o fizessem desgostar da macumba. Pais e mães “agora vivenciam a discriminação sofrida pelos filhos”. “Como fazer ele [Cauã] desgostar do que ama?” (ibidem, p. 279, inserção minha). A pesquisadora ainda assinala que “a escola não deveria desejar que cada aluno(a) encontrasse o seu próprio
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movimento?” (ibidem, p. 280-281), simbolizando não só uma ruptura epistemológica do fazer pesquisa sobre educação não formal, mas também com as políticas mantidas na educação formal. De acordo com Graue & Walsh (op. cit., p. 122) “existem grupos de crianças acerca das quais a sociedade pouco conhece, necessitando por isso de aprofundar esse conhecimento”. E a pesquisa de Stela Caputo mostrou, então, que as crianças de Candomblé são algumas destas crianças, contribuindo assim para os campos de investigação da antropologia da educação, da antropologia da religião e da antropologia da criança, trazendo novas perspectivas sobre a educação não formal e lançando olhares mais aguçados na investigação sobre este tipo de educação, sobre a escola e sobre as pesquisas com crianças.
REFERÊNCIAS 1. CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012. 2. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 10 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 3. ______. (org.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997. 4. BRASIL. Lei nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 10 de janeiro 2003. 5. CAMPOS, Roberta Bivar Carneiro; SILVA, Juliana Cintia Lima e. Quando eu crescer, eu vou escolher a minha religião! a reinvenção da religião dos brasileiros através do olhar infantil. Interseções (UERJ), v. 13, p. 278-303, 2011. 6. COHN, Clarice. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 7. CRUZ, Silvia Helena Vieira (Org.). A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez: 2008. 8. GOMES, Nilma Lino; JESUS, Rodrigo Ednilson. As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei 10.639/2003: desafios para a política educacional e indagações para a pesquisa. Educar em Revista, s/v, n. 47, p. 19-33, 2013.
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9. GRAUE, M. Elizabeth; WALSH, J. Daniel. Investigação etnográfica com crianças: teorias, métodos e ética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. 10. SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras. 1 ed. 1 reimpr. São Paulo: Edusp, 2006.
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