Revista antropolitca

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Antropolítica No 35 2o semestre 2013

ISSN 2179-7331 Antropolítica

Niterói

n. 35

p. 1-280

2. sem. 2013


© 2013 Programa de Pós-Graduação em Antropologia UFF Direitos desta edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal Fluminense – Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – CEP 24220-900 – Niterói, RJ – Brasil – Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21) 2629-5288 – http://www.editora.uff.br – E-mail: secretaria@editora.uff.br É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Normalização / Revisão / Projeto gráfico, capa e editoração: Fabricio Trindade Ferreira ME Revisão de espanhol: Larissa Zanetti Revisão de inglês: Luiza Aragon Catalogação-na-Fonte (CIP) A636 Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia — n. 35, 2º sem. 2013, (n. 1, 2. sem. 1995). Niterói: Editora da UFF, 2014. v. : il. ; 23 cm. Semestral. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. ISSN 2179-7331 1. Antropologia Social. I. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Antropologia. CDD 300 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor Roberto de Souza Salles Vice-Reitor Sidney Luiz de Matos Melo Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação Antonio Carlos Lucas de Nóbrega Conselho Editorial da Antropolítica Luiz de Castro Faria (PPGA/UFF) (In memorian) Ana Maria Gorosito Kramer (UNAM – Argentina) Anne Raulin (Paris X – Nanterre) Arno Vogel (UENF) Charles Freitas Pessanha (UFRJ) Charles Lindholm (Boston University) Claudia Lee Williams Fonseca (UFRGS) Daniel Cefaï (Paris X – Nanterre) Edmundo Daniel C. dos Santos (Ottawa University) Eduardo Diatahy Bezerra de Meneses (UFCE) Eduardo Rodrigues Gomes (PPGCP/UFF) João Baptista Borges Pereira (USP)

Comissão editorial da Antropolítica Laura Graziela F. F. Gomes (PPGA / UFF) Simoni Lahud Guedes (PPGA / UFF) Fábio Reis Mota (PPGA / UFF) Daniel Bitter (GAP/UFF) Arthur Pecini (UQAM) Secretária executiva Barbara Malheiros

Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (UFPE) Lana Lage de Gama Lima (UENF) Licia do Prado Valladares (IUPERJ) Luís Roberto Cardoso de Oliveira (UNB) Marc Breviglieri (EHESS) Mariza Gomes e Souza Peirano (UNB) Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho (UFRJ) Raymundo Heraldo Maués (UFPA) Roberto Augusto DaMatta (PUC) Roberto Mauro Cortez Motta (UFPE) Ruben George Oliven (UFRGS) Sofia Tiscórnia (UBA)

Esta edição contou com recursos provenientes do Edital MCT/ CNPq/MEC/CAPES Nº 68/2011 e do Edital FAPERJ de difusão científica.

Editora filiada à


Sumário Nota Dos Editores, 7 Dossiê Exílios: Etnografias de campos de Refugiados Palestinos no Líbano, 13 Apresentação Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto e Gisele Fonseca Chagas Fronteiras do “outro” e construção de “Si”: o caso dos palestinos no líbano (1947-1952), 17 Jihane Sfeir Habitar um campo de refugiados palestinos: o caso de Beddawi, Norte do Líbano, 49 Amanda Dias Palestinidade: resistência, tempo e ritual no campo de refugiados palestinos Al-Jalil, Líbano, 77 Leonardo Schiocchet Um antropólogo sob sítio: Pesquisa de campo em campo minado (Chatila, Líbano), 101 Gustavo Barbosa Artigos Uma experiência

etnográfica no sentido pleno:

notas sobre uma mostra fotográfica no

Ponta Grossa dos Fidalgos, 127 Carlos Abraão Valpassos Arno Vogel, Thais Nascimento

Arraial

de

Tecnologias de governo e o curso da vida, 145 Eduardo Martinelli Leal


Conflitos e disputas na fronteira Brasil-Bolívia: a interdição Corumbá-MS, 175 Gustavo Villela Lima da Costa da feira bras-bol em

Usos del estigma. El papel de la protitución en la revalorización urbanística de la illa robador de barcelona, 197 Miguel Fernández “A paz começa dentro da família”: intrigas e questões no sertão do São Francisco, 225 Leonardo Vilaça Dupin / Sheila Maria Doula Olhares

cruzados

Considerações sobre a experiência de bolsa capes/fulbright entre 2010 e 2011: internacionalização do conhecimento, aspectos institucionais e informais da experiência de “estar lá”, 251 Márcio de Paula Filgueiras Resenha Resende, josé manuel. A sociedade contra a escola? A socialização política escolar num contexto de incerteza. Lisboa: instituto piaget, 2008, 265 Boris Maia Cousin, saskia – les miroirs du tourisme. Ethnographie de la touraine du sud. Paris : descartes & cie, 2010, pp.263, 273 Tristan Loloum


Contents Editors Note, 7 Dossier

Exiles: Ethnographies of Palestinian Refugee camps in Lebanon Presentation: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto e Gisele fonseca chagas, 13 Boundaries of the “Other” and construction of the “self”: the case of Palestinians in Lebanon, 1947-1952, 17 Jihane Sfeir Inhabiting a Palestinian Refugee Camp: The Case Northern Lebanon, 49 Amanda Dias Palestinianness: Resistance, Tempo and Ritual tinian Refugee Camp, Lebanon, 77 Leonardo Schiocchet

in

An Anthropologist under Siege: Field Research (Shatila, Lebanon), 101 Gustavo Barbosa

of

Beddawi,

Al-Jalil Pales-

in a

Minefield

Articles Notes

on a photographic exibit at

Ponta Grossa

dos

gos: a ethnographic experience at it`s fullest, 127

Fidal-

Carlos Abraão Valpassos / Arno Vogel, Thais Nascimento Governmental

technologies and life course: an anthropolo-

gical study with adolescents under socio-educational measu-

Porto Alegre - RS, 145 Eduardo Martinelli Leal res in


Conflicts and disputes in Brazil-Bolivia border: the prohibiBras-Bol market-place in Corumbá-ms, 175 Gustavo Villela Lima da Costa tion of

Urban Renewal, street prostitution and administrative corruption. A first ethnographic analysis of robador street in Barcelona “, 197 Miguel Fernández The

peace begins within the family”: intrigues and family stru-

São Francisco’s hinterland, 225 Leonardo Vilaça Dupin / Sheila Maria Doula ggles in the

Exchanging

perceptions

Considerations about a capes/fulbright scholarship experience: institutional and informal aspects of “being there”, 251 Márcio de paula filgueiras Reviews “In

the name of tourism: legitimation through the desire of

others”.

Paris : descartes & Tristan loloum

cie, 2010, pp.263, 265

Society against the school? The school political socialization in a context of uncertainty. Lisbon: piaget institute, 2008, 273 Boris Maia


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Nota

dos editores

O Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF tem passado por inúmeras mudanças na condução de uma política acadêmica e científica que privilegie a excelência da produção dos seus discentes e docentes. Através da revista Antropolítica, buscamos consolidar um canal de comunicação que permita a difusão e democratização da produção antropológica (e de outros campos das Ciências Humanas), acolhendo a produção intelectual de professores do Programa, assim como de pesquisadores nacionais e internacionais. Neste número 35 da Antropolítica, correspondente ao segundo semestre de 2013, publicamos artigos de excelência reconhecida no campo intelectual das Ciências Sociais que vem fortalecer as redes de pesquisadores no Brasil e no exterior com as quais mantemos intercâmbios sistemáticos através de inúmeros convênios internacionais e parcerias institucionais. Iniciamos este número pela publicação do dossiê temático Exílios: Etnografias de campos de Refugiados Palestinos no Líbano organizado por Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto e Gisele Fonseca Chagas. Os artigos aqui reunidos abordam a situação dos refugiados palestinos que se fixaram em campos no Líbano, no contexto de desagregação da unidade territorial e social palestina ao longo dos séculos XX e XXI. Ainda que considerando a forma extremamente dramática assumida por estes assentamentos e a situação liminar de sua população, os textos etnográficos aqui apresentados, procuram mostrar como estes refugiados reconstroem suas vidas no interior das sociedades que as acolhem, apesar da rejeição que frequentemente sofrem. Abrimos a sessão de artigos com Uma Experiência Etnográfica no Sentido Pleno: Notas Sobre uma mostra Fotográfica no Arraial de Ponta Grossa dos Fidalgos de Arno Vogel, Carlos Abraão Moura Valpassos e Thais Nascimento. Trata-se de um relato de uma experiência na qual o material de pesquisa de Luiz de Castro Faria produzido numa série de visitas ao arraial de Ponta Grossa dos Fidalgos, RJ, entre os anos 1930 e 1940, é retomado muitas décadas depois. Sob a liderança de Arno Voguel, um grupo de estudantes realiza uma exposição do material fotográfico de L. C. Faria no próprio arraial de pescadores. Este artigo aborda como a visualização das imagens pretéritas proporcionou aos habitantes locais uma oportunidade para revitalizar memórias, exumar narrativas e tecer interpretações sobre as transformações ocorridas no povoado ao longo dos últimos 60 anos. Em seguida, publicamos o artigo de Eduardo Martinelli Leal intitulado ANTROPOLÍTICA

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TECNOLOGIAS DE GOVERNO E O CURSO DA VIDA: estudo antropológico com jovens em execução de medidas socioeducativas em Porto Alegre- RS. O artigo propõe um estudo antropológico na área da execução das medidas socioeducativas em meio aberto em Porto Alegre-RS, tendo como foco a progressão de medida de internação (Fundação de Apoio Socioeducativo-FASE-RS) e rotina das entrevistas de Liberdade Assistida. O autor lança mão da noção de “cursos da vida” (Debert, 1997) para pensar o modo como a reflexão sobre a assunção à maioridade é incorporada nas tecnologias de governo. Na sequência publicamos CONFLITOS E DISPUTAS NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA: A INTERDIÇÃO DA FEIRA BRAS-BOL EM CORUMBÁ-MS de Gustavo Villela Lima da Costa. Netes texto, o autor analisa a interdição da “Feira Bras-Bol” em 2013, espécie de “camelódromo” na cidade de Corumbá-MS, cujos trabalhadores são, em sua maioria, bolivianos. São interpretados discursos oficiais e da imprensa, além dos argumentos jurídicos utilizados para legitimar esta interdição. O autor dialoga com Pierre Bourdieu, explorando a hipótese de que houve um processo de fetichização do direito, baseado na ocultação dos mediadores, dos conflitos sociais e dos processos políticos em jogo, de modo a legitimar vontades políticas locais de grupos sociais específicos, como a Associação Comercial de Corumbá. Publicamos ainda nesta sessão o artigo Revalorización urbanística, prostitución callejera y corrupción administrativa. Primera aproximación etnográfica a la calle d’en Robador de Barcelona de Miquel Fernández. Este artigo trata de implementar a vasta literatura sobre a “regeneração urbana” do bairro de Raval de Barcelona. Neste sentido, descreve os processos de estigmatização em um bairro, área e forma de aquisição de subsistência: prostituição nas ruas. A investigação centrou-se em uma parte do Raval, rua d’en Robador. Ele examina como o estigma produz e reproduz no bairro, a prostituição, bem como o seu tempo de serviço para permitir e justificar fortes intervenções urbanas. Finalizamos esta sessão com o artigo A paz começa dentro da família. Intrigas e questões no sertão do São Francisco de Leonardo Vilaça Dupin e Sheila Maria Doula. Os autores exploram a participação de sujeitos locais em uma passeata pela paz, em uma pequena cidade do interior. Durante o evento, algumas falas pronunciadas são importantes pelo o que revelam e escondem. O ritual põe em relevo as relações de poder, solidariedade e dependência, as formas de apaziguamento e a articulação de múltiplas esferas sociais, como a família e a política, que se expõem visceralmente no ato. Na sessão Olhares Cruzados deste número publicamos um artigo de Márcio De Paula Filgueiras intitulado Considerações sobre a experiência de bolsa Capes/Fulbright entre 2010 e 2011: internacionalização do conhecimento, ANTROPOLÍTICA

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aspectos institucionais e informais da experiência de “estar lá”. Neste texto, o autor explora sua experiência durante o período da bolsa sandwich Capes/Fulbright na Universidade de Stanford, na Califórnia, EUA, entre os anos de 2010 e 2011, sob supervisão do professor James Ferguson. O texto reúne tanto aspectos pessoais, quanto aspectos mais formais e profissionais da experiência. Continuamos a receber submissões de interesse para a área das Ciências Sociais, em regime de fluxo contínuo. Mantemos o nosso e-mail (antropoliticauff@gmail.com) para contato e indicamos o site em que estão disponíveis os demais números da revista http://www.uff.br/antropolitica/ antropoliticanumeros.html. As submissões podem ser encaminhadas por meio do site http://www.revistas.uff.br/index.php/antropolitica, no qual podem ser encontradas as normas de publicação e outras informações. Comitê editorial

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DOSSIÊ:

Exílios: Etnografias de campos de Refugiados Palestinos no Líbano



13 Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto e

Gisele Fonseca Chagas

Apresentação

A questão dos refugiados palestinos constitui um dos dramas políticos mais perenes dos séculos XX e XXI, tendo sido produzido a partir de 1948 pelo próprio conflito que levou à criação do Estado de Israel e a destruição da unidade territorial e social da Palestina; o que é conhecido em árabe como Nakba (Catástrofe). Fugindo do conflito ou sendo expulsos de suas casas pelas forças sionistas, cerca de 70% da população palestina instalou-se nos países limítrofes, tais como Jordânia, Líbano, Síria e Egito1. Aqueles que tinham posses e/ou conexões familiares puderam integrar-se às sociedades de acolha; já aqueles que não possuíam essas opções foram gradativamente assentados em campos de refugiados cujo caráter provisório foi desmentido pela sua permanência até os dias de hoje. Impedidos de voltar às suas casas e propriedades pelo Estado de Israel, os refugiados palestinos são o produto do que Ilan Pappe definiu como a “limpeza étnica da Palestina” 2, e são frequentemente definidos como estando em uma situação liminar de “não-lugar” (Augé, 1994)3, a qual seria definida pela contradição inscrita na sua condição de eternos refugiados que não possuiriam mais seu pertencimento de origem nem pertenceriam plenamente à sociedade onde vivem. Em nenhum

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A população árabe da Palestina, tanto cristã quanto muçulmana, era de cerca de 1 milhão de pessoas em 1948. A população total da Palestina era de 1milhao e 500 mil pessoas, com cerca de 500 mil judeus.

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PAPPE, Ilan. The Ethnic Cleansing of Palestine. London: OneWorld, 2006.

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AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução à uma antropologia da supermodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994 (Coleção Travessia do Século). Niterói, n. 35, p. 13–16, 2. sem. 2013


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lugar essa condição seria mais dramaticamente expressa que no Líbano, onde os refugiados palestinos são sistematicamente excluídos do mercado de trabalho através de uma série de leis discriminatórias. No entanto, como mostram as etnografias reunidas neste dossiê, o pertencimento identitário dos refugiados a uma Palestina perdida e a frequente rejeição que enfrentam nas sociedades de acolhida não impedem que suas experiências biográficas e coletivas sejam efetivamente criadas e moldadas no local onde vivem e, frequentemente, nasceram. Assim, os textos aqui reunidos trazem novos olhares para a condição dos refugiados palestinos no Líbano, sendo o produto de etnografias feitas por pesquisadores brasileiros ao longo da última década. Essas etnografias somam-se a uma bibliografia já existente sobre imigrantes e refugiados palestinos no Brasil, como mostram os trabalhos de Denise Fagundes Jardim (2000) sobre a imigração palestina para o Chuí no período posterior a criação de Israel e o processo local e transacional de construção de uma identidade étnica palestina; o de Roberta Peters (2006), que reflete sobre o papel das festas de casamento e dinâmicas familiares como mecanismos de recriação de uma etnicidade palestina no sul do país; além das etnografias de Sônia Cristina Hamid (2012) e Daniele Regina Abilas Prates (2012) que examinam os processos e nuances que envolveram o reassentamento de refugiados palestinos ,oriundos do Iraque, no Brasil a partir de 2007. A discussão proposta por Sônia Cristina Hamid analisa os processos, as relações e os diferentes atores nacionais e internacionais (Estado Brasileiro, refugiados, ONGs, Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, dentre outros) envolvidos na gestão dos refugiados palestinos no Brasil; já o trabalho de Daniele Regina Abilas Prates aborda os processos de deslocamento e de recriação de conexões transnacionais através de redes familiares entre palestinos reassentados em Mogi das cruzes (SP) e aqueles do campo de Burj al-Barajneh no Líbano4. O primeiro artigo que compõe este dossiê sobre as diferentes dinâmicas que envolvem a construção das identidades palestinas em campos de refugiados no Líbano é o da historiadora palestino-libanesa Jihane Sfeir. 4

JARDIM, Denise Fagundes. Palestinos no Extremo Sul do Brasil: Identidade Étnica e os Mecanismos Sociais de Produção da Etnicidade. Chuí/RS. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 2000. PETERS, Roberta. Imigrantes Palestinos. Famílias Árabes.Um Estudo Antropológico sobre a Recriação das Tradições através das Festas e Rituais de Casamento. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006.

HAMID, Sônia Cristina. (Des)Integrando Refugiados: Os Processos do Reassentamento de Palestinos no Brasil. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Brasília: Universidade de Brasília, 2012.

PRATES, Daniele Regina Abilas. O Fio de Ariadne: deslocamento, heterotopia e memória entre refugiados palestinos em Mogi das Cruzes, Brasil, e Burj al-Barajneh, Líbano. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2012.

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Localizando sua análise nos primeiros anos do exílio palestino em território libanês (1947-1952), a autora aborda os processos históricos que envolveram as construções e definições físicas e simbólicas das fronteiras entre a Palestina, sob Mandato Britânico e depois sob controle israelense, com o Líbano – país internamente marcado pelo confessionalismo religioso. Jihane Sfeir aponta para os efeitos desses processos nas construções identitárias palestinas e libanesas, acentuando a gradativa mudança nas relações entre ambos, sobretudo em relação às medidas institucionais tomadas pelo Estado libanês para com a população palestina vivendo no seu território. Os outros três artigos que seguem à discussão tecida por Jihane Sfeir são frutos de etnografias conduzidas por pesquisadores brasileiros em diferentes campos de refugiados palestinos no Líbano. Com o título “Habitar um campo de refugiados palestinos: o caso de Beddawi, Norte do Líbano”, Amanda Dias examina a condição de “ser refugiado palestino” no campo de Beddawi, o qual foi criado em 1955 pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados no Oriente Próximo e que recebeu diversas levas de refugiados nos anos posteriores, ampliando sua extensão e complexidade interna. Com a proposta de compreender os sentidos de “habitar no campo”, perspectiva que inclui as dinâmicas e dramas que se articulam às tentativas de transformação do campo de refugiados de espaço “indesejável” a um lugar de intimidade, de “lar”, a autora vai além de abordagens que retratam campos de refugiados como um espaço estático, ora concebidos apenas como áreas de pobreza, com os palestinos destituídos de qualquer agência, ora como “ilhas de palestinidade” destacadas da sociedade libanesa mais ampla. A autora conclui chamando atenção para as fragilidades que envolvem os refugiados palestinos em campos como o de Beddawi, ressaltando, ao mesmo tempo, que a fabricação da vida cotidiana nos campos faz com que tanto os palestinos quanto os próprios campos em que habitam tenham uma história para além de sua função política. Já o artigo seguinte, de autoria de Leonardo Schiocchet, analisa a dimensão coletiva do que o autor conceitua como a “hiperexpressão identitária palestina” no campo de refugiados palestinos de al-Jalil, a qual circunscreve o pertencimento social dos palestinos e marca a vida cotidiana local. Através de um vívido relato etnográfico que demonstra como, na maior parte do tempo, os palestinos vivendo em al-Jalil refletiam e discutiam sobre suas condições sociais, o modelo analítico proposto pelo autor articula as formas como práticas e símbolos relacionados à causa palestina eram mobilizados pelos diferentes atores sociais sob distintas agendas políticas e religiosas. Práticas sociais e símbolos produzem, assim, uma ritualização

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da própria vida cotidiana no campo, o que marcou, inclusive, a condução do trabalho de campo do autor. O último texto que finaliza o presente dossiê, de Gustavo Barbosa, dialoga com as especificidades do fazer etnográfico em contextos politicamente instáveis como os que envolvem os campos de refugiados no Líbano. O autor nos apresenta uma reflexão sobre os limites que o treinamento profissional do antropólogo que “vai a campo” munido de teorias e métodos de pesquisa encontra em situações de conflito, dor e perda, tendo que reelaborar suas questões e métodos de pesquisa de forma não previstas. Tendo como base seu trabalho de campo em Chatila, um campo de refugiados criado em 1949 e marcado por uma história de perdas e massacres, como o de 1982 e o da Guerra dos Campos em 1985, Gustavo Barbosa chama atenção para o fato das identidades e memória dos palestinos locais serem produzidas discursivamente e ritualmente pelos seus habitantes, sobretudo através das lideranças e patriarcas que narram a história do campo e da Palestina no pós-1948. É participando nos eventos do campo e celebrando seus mortos, por exemplo, que a juventude de Chatila aprende sobre a história da diáspora palestina no Líbano, a qual é obliterada nos livros escolares. Assim, é através das diversas formas de pertencimento religioso, familiar, de gênero e de acesso a recursos, dentre outros, que devemos entender as especificidades da vida em Chatila. Os textos reunidos neste dossiê objetivam, portanto, oferecer ao leitor um conjunto de reflexões teóricas e empiricamente embasadas sobre os processos históricos e as dinâmicas que envolvem as vidas de palestinos em campos de refugiados no universo político e cultural libanês. Essas reflexões têm sua importância ampliada pelo próprio drama humano e político da situação dos palestinos, que em breve entrarão na sua sétima década de exílio forçado.

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Tradução por Amanda Dias, Gisele Fonseca Chagas, Gustavo Barbosa e Leonardo Schiocchet, com a supervisão de Amanda Dias.

Jihane Sfeir*

Fronteiras do “Outro” e a construção de “si”: o caso dos palestinos no Líbano, 1947-1952

* (Doutora em História. Professora da Université Libre de Bruxelles)

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Resumo: Este estudo tem como objetivo analisar a identificação dos palestinos durante os primeiros anos de seu exílio libanês (19471952). Trata-se de retornar ao estabelecimento das fronteiras separando o Líbano do Mandato da Palestina e do Estado de Israel pós- 1948. Em segundo lugar, objetiva-se estudar um conjunto de políticas que definiram a atitude institucional libanesa para com uma população estrangeira. O artigo conclui com uma análise do impacto das fronteiras sobre a formação de novas identidades palestinas e libanesas, da redefinição do espaço nos quais foram construídas as identidades dos habitantes de ambos os lados da linha que separava o Líbano sob mandato francês da Palestina sob domínio britânico, do Líbano independente com o novo estado de Israel. Palavras-chave: Palestinos no Líbano, fronteiras, construção de identidades palestinas e libanesas (1947-1952)

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No Líbano, qualquer estudo sobre os palestinos se refere necessariamente à fundação do Estado libanês com base em um sistema político particular: o confessionalismo. A análise da população palestina também envolve a identificação das fronteiras e os questionamentos da identidade em termos de assimilação ou exclusão. Se a Jordânia constrói seu território nacional e seu contingente demográfico pela anexação da Cisjordânia e pela atribuição da nacionalidade jordaniana aos refugiados palestinos1, o Líbano, por sua vez, vai construir seu território identitário nacional, em certa medida, com base em uma política de exclusão de estrangeiros em geral e de palestinos, em particular. Esta política tem por base o sistema comunitário que foi formalizado pelos franceses na Constituição de 1926 e reajustado pelos atores da independência no Pacto Nacional de 1943. A criação de instituições para a gestão dos assuntos palestinos se inscreve, então, em uma política de comunidades confessionais onde os registros dos refugiados são feitos de acordo com as regras libanesas. Este estudo tem como objetivo analisar a identificação dos palestinos durante os primeiros anos de seu exílio libanês (1947-1952). Trata-se de retornar ao estabelecimento das fronteiras separando o Líbano do Mandato da Palestina e do Estado de Israel pós- 1948. Em segundo lugar, objetiva-se estudar um conjunto de políticas que definiram a atitude institucional libanesa para com uma população estrangeira. O artigo conclui com uma análise do impacto das fronteiras sobre a formação de novas identidades palestinas e libanesas, da redefinição do espaço nos quais foram construídas as identidades dos habitantes de ambos os lados da linha que separava o Líbano sob mandato francês da Palestina sob domínio britânico, do Líbano independente com o novo estado de Israel. Para entender o que está em jogo em 1948, temos de voltar aos caminhos que se fecharam atrás dos refugiados. É essa amputação do território íntimo que irá permitir, em seguida, a reconstrução simbólica de uma Palestina dos campos, com toda a conflitualidade que ela ainda carrega fortemente, esta super-simbolização dos enclaves libaneses. Ao mesmo tempo, o Líbano vai descobrir suas franjas meridionais, esta periferia extrema que se torna ao longo dos meses e dos anos o nó doloroso das fraquezas geopolíticas do país.

Novos espaços, novas identidades A história do Líbano moderno começa com o período do mandato francês. A “Declaração do Mandato”, adotada em 24 de julho de 1922 pelo Conselho 1

Françoise de Bel-Air, Population; politique et politiques de population en Jordanie 1948 - 1998. Thèse de doctorat, EHESS, Paris, 2003. pp.102-123.

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da Liga das Nações, exige da França a implementação, num prazo de três anos, de uma lei orgânica para o Líbano. A potência mandatária, então, irá proceder a elaboração de um sistema confessional inspirado, em parte, na antiga potência dominante Otomana. Este sistema político baseado na separação religiosa resultará na fixação de fronteiras identitárias que compartimentam as comunidades em esferas específicas e impermeáveis umas às outras. Este sistema é conhecido por ser operacional em duas formas: o sectarismo envolvendo o estatuto pessoal e sectarismo político relativo à distribuição de cargos políticos e administrativos. Estas duas formas de sectarismo, profundamente ligadas e complementares, estabelecem as bases da política libanesa e definem a forma de exercê-la. Em 1943, o Líbano torna-se independente, com o novo estado construído em torno de um acordo inspirado pelo sistema francês: o Pacto Nacional. É um acordo não escrito, destinado a estabelecer um equilíbrio entre cristãos e muçulmanos, afirmando ao mesmo tempo o pertencimento do Líbano à nação árabe e a existência de relações antigas e indissolúveis com o Ocidente. Este acordo é tradicionalmente descrito como a carta de fundação do Líbano. A Nação repousa, dessa forma, sobre um “foedus”, um “pacto”, como se ela se limitasse à expressão de um compromisso comunitário, um modus vivendi, um “modo de vida coletiva”2. Este “compromisso ao mesmo tempo medíocre e frágil vem coroar a política comunitária das autoridades francesas a partir da perspectiva do compartilhamento das funções”3. • aos Maronitas, a Presidência da República, a pedra angular da Constituição promulgada em 1926, e o comando do Exército; • aos Sunitas, a Presidência do Conselho de Ministros; • aos Xiitas, a Presidência do Parlamento; • aos Gregos ortodoxos, a vice-presidência do Parlamento. A atribuição da Presidência da República aos maronitas marca a hegemonia desta comunidade na época. A preponderância de cristãos se expressa, da mesma maneira, na Câmara dos Deputados: em 1948, o número de membros é de 55, sendo 30 cristãos e 25 muçulmanos. A atribuição de funções dentro do governo e da administração se faz de acordo com o princípio da paridade e com base no artigo 95 da Constituição, que prevê que “provisoriamente... as comunidades estão representadas de um modo equitativo nos empregos públicos e na composição do ministério ... “ 2E

3

dmond Rabbath, La Formation historique du Liban politique et constitutionnel, Beyrouth, Publications de l’Université libanaise, section des études juridiques, politiques et administratives, 1986, p. 90

Nadine Picaudou, La déchirure libanaise, Complexes, Bruxelles, pp. 81-82.

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Se os historiadores libaneses consagram este evento como fundador da nação libanesa, ele não deixa de estar na origem de todas as tensões e guerras futuras. O conjunto da sociedade libanesa se inclina diante desta lógica da partilha confessional de cargos e méritos. Segundo Elizabeth Picard, seria mais correto falarmos em pacto “comunitário” do que em pacto “nacional”4. Um compromisso que congela a sociedade libanesa em uma realidade demográfica estagnada em 1932, obscurecendo qualquer perspectiva de renovação da população que possa pôr em perigo o frágil equilíbrio sectário. Deste modo, o estudo demográfico está fortemente relacionado às questões políticas e, até hoje, a realização de um novo censo da população libanesa está fora de cogitação. À sua chegada em 1948, os palestinos constituem 10 % da população libanesa, ou seja, cerca de 120 000 pessoas, das quais mais de 75% são sunitas. Conseqüentemente, sua assimilação ao mosaico libanês coloca em risco o frágil equilíbrio sectário. Ao mesmo tempo em que os palestinos encontram um refúgio, que esperam ser temporário, junto a estes vizinhos que não lhes são desconhecidos, as fronteiras se desenham e se fecham e a ordem social e política muda radicalmente. Antes de 1948, as fronteiras entre as duas entidades territoriais são porosas e o movimento da população é contínuo em ambos os sentidos. Depois de 1948, o sentido desta fronteira muda radicalmente aos olhos das populações, e permite o questionamento da renovação da relação ao território que ela impõe.

Antes de 1948: Palestina / Líbano, uma fronteira porosa O estudo desta fronteira é um assunto vasto e raramente abordado, exceto pelas pesquisas no campo da geopolítica que lidam principalmente com a elaboração do traçado das fronteiras5. Aqui trata-se de enfatizar, sobretudo, a conscientização das populações sobre as fronteiras e sua influência sobre os dois grupos. Michel Foucher define as fronteiras como “estruturas espaciais elementares, de forma linear, com a função de descontinuidade geopolítica e de marcação sobre os três registros do real, do simbólico e do imaginário”6. No caso aqui estudado, a fronteira real é imposta primeiro pelas potências mandatórias e depois pelos Estados israelense e libanês. A fronteira é simbólica na medida em que ela é o invólucro de um grupo 4

Elizabeth Picard, Liban Etat de discorde, Flammarion, Paris, 1988, p. 119.

5

Frederic C. Hof, Galilee Divided : The Israel-Lebanon Frontier, 1916-1984, Boulder and London, Westviaw Press, 1985., ‘Isâm Khalifé, al-houdoud al-janoubiyya li lubnân bayna mawâqef nikhab al-tawâ’ef wa al-sirâ‘ al-duwalî 1908- 1936, (La frontière du Sud -Liban entre positions des élites confessionnelles et conflit international, 1908-1936), Beyrouth, sans éditeur, 1985., Munzer Jâber, Al-charît al-lubnânî al- mouhtal, (La zone occupée libanaise), Institut des Etudes Palestiniennes, Beyrouth, 2001.

6

Michel Foucher, Fronts et frontières. Fayard, Paris, 1991, p. 38-43.

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de pertencimento. Aqui, os palestinos do norte da Galiléia se definem primeiro como pertencentes ao seu grupo ou clã hamoulā, em seguida ao seu vilarejo natal e, finalmente, à entidade nacional mais ampla da Palestina. Quanto aos libaneses do sul, eles primeiro se definem nos limites de seu grupo comunitário (xiita ou cristão), em segundo lugar ao seu vilarejo e, finalmente, as fronteiras da entidade nacional mais ampla do Líbano7. Em ambos os casos, a identidade vinculada ao vilarejo de origem não deve ser entendida apenas como um pertencimento local estreito. Pertencer ao vilarejo é estar inserido nas redes sociais e econômicas que o definem, nas rotas de comércio, nas lógicas matrimoniais e nas famílias extensas; em suma, em uma densa rede de reconhecimento coletivo que define um território movediço, de densidades diferentes, que transcende facilmente demarcações fronteiriças para além dos limites espaciais impostos pela lógica administrativa do Estado. Nesse sentido, a fronteira é apenas um dos elementos de um imaginário identitário e espacial que começa aquém e continua além dela. O Outro, que a fronteira obriga definir, é também o vizinho, o companheiro de armas, o parceiro econômico de antes de 1948. Um libanês do sul se sente, desse modo, mais próximo de alguém da Galiléia do que de um libanês vivendo em Beirute ou Trípoli. Ele reconhece o nome de vilarejos palestinos mais facilmente do que o nome dos vilarejos de seu próprio país que se situam além dos limites de sua região. Após 1948, este “mapa mental” muda radicalmente. Em primeiro lugar, a criação de Israel afasta os habitantes das fronteiras. A partir de então, o norte da Palestina fica tão distante quanto a África ou a América. Em seguida, há a mudança da representação do Outro. A percepção dos palestinos pelos libaneses muda, eles tornam-se hóspedes perturbadores, refugiados, e mais tarde, durante a guerra, o inimigo interno. Do ponto de vista do Estado, a fronteira, ainda de acordo com Foucher, marca o “ limite espacial do exercício da soberania segundo seus próprios termos, linhas abertas, entreabertas ou fechadas”8. Contudo, este limite que separa o Líbano da Palestina mandatária, longe de ser apenas uma fronteira separando dois países soberanos, é uma construção nova, definindo espaços fronteiriços que ficam imprecisos não somente aos olhos dos habitantes da região, mas também, em certa medida, aos olhos do próprio Estado libanês. O Líbano soberano acaba de tomar consciência dos limites de seu território após sua independência, e o Estado ainda está longe de impor o exercício do seu poder em todas as áreas de fronteira do sul9. 7

Sabrina Mervin, Un réformisme chiite, Karthala/Cermoc/Ifead, Paris/Beyrouth/Damas, 2000. p. 21.

8

Michel Foucher, Fronts et frontières ..., op. cit. p. 38-43.

9

Ver Munzer Jâber, Al-charît al-lubnânî ... , op. cit.

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Para além da demarcação política no mapa e prática in loco, se coloca a questão do significado desse limite para os habitantes das regiões que ele divide. Pois qualquer nova fronteira, qualquer deslocamento do limite, mesmo que seja de apenas alguns quilômetros, divide territórios e populações anteriormente agrupados. Trata-se, portanto, de aprender a viver com um novo espaço, sendo que às vezes a fronteira perturba antigos comportamentos, corta ligações tradicionais e obriga a reorientações difíceis. Como, então, esses habitantes se acomodam com a amputação de uma parte de seu espaço cotidiano?

Fronteiras imprecisas... Por mais de 500 anos, o Líbano e a Palestina fizeram parte do grande Império Otomano e as únicas fronteiras existentes separavam as províncias administrativas dependentes do Império. Os territórios palestinos e libaneses eram, na época, divididos em vários sandjaks (distritos), os quais faziam parte dos wilāyas (províncias) dependentes da Porta. Ao longo do século XIX e até o final do Império, os limites fronteiriços são móveis: trata-se de limites conversíveis entre diferentes províncias pertencentes a uma única entidade política, jurídica e militar. As fronteiras, neste caso, não delimitam uma localização geográfica unidimensional da vida política, onde um estado termina e outro começa10, mas regiões com limites difusos que fazem parte do vasto Império Otomano. É assim que, de 1864 a 1918, as áreas do sul do Líbano e do norte da Palestina são administradas, alternadamente, pelos governadores de Damasco, Sidon e Beirute. As populações residindo nestas províncias não conhecem fronteiras e circulam livremente entre as diferentes áreas. A ruptura virá mais tarde com o estabelecimento dos mandatos britânicos e franceses na Palestina e no Líbano e a assinatura do acordo Sykes-Picot. A fronteira que parte de Ras al-Nãqoura na costa do Mediterrâneo e termina em Jisr al-Ghajar no rio hasbānī é desenhada em 1920, demarcada em 1921, decretada oficialmente em 1922, ratificada em 1923 e operacionalizada em 192411. A nova fronteira faz de vários vilarejos xiitas vilarejos palestinos. Com a eclosão da revolta em 1936, britânicos e franceses realizam uma nova demarcação. Apesar da presença física dos limites e seu reconhecimento pela Liga das Nações, que significados devemos atribuir a eles e qual é seu impacto sobre as populações vivendo nas áreas fronteiriças? ...mas áreas de fronteira reais 10

Malcolm Anderson, "Les frontières un débat", in. Cultures & Conflits : Contrôles : frontières, identités. Les enjeux autour de l'immigration et de l'asile, n°26-27, Paris, Hiver 2001.

11

Frederic C. Hof, Galilee Divided..., op. cit.

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Até a criação do Estado de Israel, não podemos realmente falar de limite linear impermeável. Ao contrário, é preciso empregar a noção mais fluida de zonas fronteiriças. As zonas fronteiriças englobam territórios em ambos os lados da fronteira e são valorizadas por fluxos transfronteiriços intensos de pessoas, mercadorias e capitais12. De acordo com Lucien Febvre: Não há fronteira quando duas dinastias, instaladas nos territórios que exploram, dividem os custos na implantação de alguns fortes armados ao longo de um campo, ou traçam uma linha ideal de separação a partir de um rio. Há fronteira quando, passada esta linha, nos encontramos na presença de um mundo diferente, de um complexo de ideias, sentimentos, entusiasmos que surpreendem e desconcertam o estrangeiro. Em outras palavras, uma fronteira, o que a “marca” poderosamente na terra, não são nem os soldados nem a alfândega, nem os canhões por detrás das muralhas. Sentimentos, sim; paixões exaltadas e ódios13. Partindo desta abordagem da fronteira com base em sua “recepção” pelos habitantes que estão em seu entorno, tentaremos demonstrar como esse limite é criado e agenciado por ambos os grupos. Segundo Abu Khaled, um libanês originário de Saïda, a Palestina e o Líbano sempre foram unidos: O que é a Palestina? E o que é o Líbano? A terra é comum, as fronteiras artificiais e as relações antigas. Eu me lembro quando havia um casamento em ‘Akka, os cantores vinham de Beirute e de Zahle, os dançarinos de sayf wa tirss (dança tradicional com espada e escudo), de Saïda. A maioria das pessoas de ‘Akka se casava com moças de Saïda14. O testemunho de Abu Khaled corrobora o de George H., advogado palestino originário de Haifa, refugiado no Líbano em 1948, e empregado pela Liga das Sociedades da Cruz Vermelha para coordenar as operações de ajuda em Beirute. Ele descreve as relações entre libaneses e palestinos como antigas e tradicionais e nos lembra que muitos libaneses iam à Palestina para trabalhar. Seu testemunho, recolhido por um funcionário da Liga, é o seguinte: É um fato estabelecido que a maioria dos libaneses do sul do Líbano partiu para a Palestina, especialmente nos últimos dez anos anteriores a guerra, durante os quais a demanda de mão de obra não qualificada era grande. Eles não precisam de visto de entrada e saída no seu passaporte. Eles “se viravam” para atravessar as fronteiras clandestinamente, apesar da existên12

Catherine Denys dir., « Frontière et criminalité, 1715-1815 », Cahiers de l'université d'Artois, 18/2000, p.7.

13

Lucien Febvre, Le problème historique du Rhin, Paris, 1931, citado par Catherine Denys na Introdução à obra Frontière et criminalité... op. cit. p.9.

14

Abou Khâled, originário de Saïda, entrevistado por Bushra al Mughrabî, Janeiro 1998, citado em Taghribat Ahmad wa Maryam, op. cit., p. 21.

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De uma maneira geral, o livro não oferece uma resposta muito conclusiva aos dilemas e desafios que a instituição escolar atravessa no atual momento da modernidade, sobretudo no que diz respeito a sua capacidade de qualificar os cidadãos para participarem ativamente das discussões públicas. Oferece, entretanto, uma série de questionamentos sobre os processos em curso para que tal realização se torne viável, explicitando os efeitos que tais processos têm suscitado nos diversos grupos envolvidos no universo escolar, fazendo também uma aposta – tal como a modernidade já o tinha feito – na centralidade que a escola pode ter no desenvolvimento da capacidade crítica dos atores e no aperfeiçoamento da democracia.

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COUSIN, Saskia – Les miroirs du tourisme. Ethnographie de la Touraine du Sud. Paris : Descartes & Cie, 2010, pp.263.

Em nome do turismo: a legitimação pelo desejo dos outros

Tristan Loloum*

* Doutorando sob co-orientação em antropologia social (EHESS) e estudos do turismo (UNIL/IUKB), suas pesquisas tem como foco principal a transformação das instituições políticas no litoral turístico do Nordeste brasileiro.

“Isto não é um livro sobre turistas”. Não é por mera coincidência que esta frase colocada na introdução lembra uma pintura de Magrite : o livro de Saskia Cousin é uma sutil desconstrução da traição das imagens1 turísticas. Mediante a etnografia histórica de duas pequenas cidades do interior francês, Loches – uma “Cidade Real” – e Montresor – uma “vila medieval” – a antropóloga analisa como o turismo contribui à construção dos lugares e à fábrica das identidades locais. Ao trabalhar sobre destinos secundários - “ordinários” - ela oferece um contraponto ao discurso do singular e do único para mostrar como o turismo se tornou, a partir da década de 1990, um novo senso comum capaz de reconfigurar os coletivos e seus enraizamentos territoriais. Se os turistas são relativamente ausentes no livro, é primeiramente porque o próprio termo “turista” é uma categoria porosa. Existe entre o turista (circulante) e o habitante (residente) um continuum de definições instáveis e circunstanciais : veranistas, neo-residentes, visitantes, excursionistas, “parisienses”. Essas “categorias politicas” arruínam a oposição estruturante entre anfitriões e convidados [hosts and guests] (SMITH, 2000) e dificultam o trabalho dos analistas estatísticos e dos políticos que precisam de categorias claras e facilmente identificáveis. A antropologia também experimentou dificuldades com o objeto turístico, como observa 1

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Nome da famosa pintura de René Magrite que representa um cachimbo com a seguinte legenda : “Ceci n’est pas une pipe” [Isto não é um cachimbo]. Niterói, n. 35, p. 273–280, 2. sem. 2013


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Marc Abélès no prefacio do livro quando afirma que o antropólogo sempre ficou “atento em não ser confundido, na sua curiosidade pelo Outro, com os viajantes comuns” (p.11). O próprio Claude Lévi-Strauss especificava, pouco depois de salientar seu ódio pelas viagens na primeira frase de Tristes Trópicos (“odeio as viagens e os exploradores”), que “uma viagem desloca simultaneamente no espaço, no tempo e na hierarquia social2”, como para de certa forma reabilitar o turismo como objeto de estudo. Como estudo do “outro do outro”, a antropologia tem todo interesse em se apropriar do tema, pois como bem observa Saskia Cousin, o “turista” é sempre o outro e o turismo contribui numa constante (re)produção das fronteiras entre o “nós” e os “outros”. A autora apresenta um outro argumento para a pouca presença dos turistas em seu livro. Para ela, os turistas não são os verdadeiros alvos do turismo, mas bem um pretexto politico e cultural para uma valorização local.

Para que serve o turismo ? O questionamento da antropóloga parte de uma constatação simples : as chamadas “repercussões econômicas” do turismo, tais como emprego, renda, consumo direto e indireto, quando repetidas ad nauseam como justificativa incontestável do desenvolvimento turístico, são raramente avaliadas e medidas; e quando avaliadas, os resultados ficam muito aquém das expectativas. Na região central da França, por exemplo, as atividades laborais ligadas ao turismo representa menos de 4% do índice total de empregos (p. 17). Em Montresor, um vilarejo de 400 habitantes, as festas realizadas “para os turistas” representam muito mais um gasto que um benefício. O fato é que os habitantes pagam a festa três vezes: primeiramente pelos impostos, depois pelas cotizações voluntárias para ajudar na festa e por fim comprando os bilhetes de entrada (p.213). Ainda se considerarmos os chamados “efeitos indiretos”, “induzidos”, ou “a longo prazo”, os impactos econômicos são considerados decepcionantes pelo empresariado local, alguns até se queixam do barulho da festa que “assusta” a clientela. Quanto a economia residencial, o turismo também não contribui ao desenvolvimento da mesma, uma vez que não se observa nenhum crescimento substancial do numero de moradores nas cidades estudadas. A composição sociológica do público contradiz ainda a vulgata turística. Em Montresor, como constata a autora, tanto nas festas locais organizadas para os habitantes quanto nas festas turísticas dirigidas às “pessoas de fora”, os principais frequentadores permanecem os mesmos : as populações locais. Em Loches, por sua vez, capital histórica da Touraine 2

“Un voyage déplace simultanément dans l’espace, le temps et la hiérarchie sociale” (LEVI-STRAUSS, 1955, p.179).

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du Sud, as manifestações culturais dirigidas aos visitantes da cidade contam com maior participação da elite local do que dos próprios turistas. Diante do exposto, qual seria o motivo de semelhantes “espetáculos para turistas onde não tem turistas3”? Qual seria o motivo para tanto remue-ménage politico-institucional quando nem os benefícios econômicos e nem a composição sociológica do público cumprem suas promessas ? Como bem observa a própria autora: “minha hipótese é que não se trata de produzir mais-valia financeira ou comercial, mas de dar valor ao que os próprios habitantes fazem, ao que eles são. E dar valor ao que eles fazem e ao que eles são passa pela afirmação da existência de uma comunidade histórica e a representação das suas hierarquias4”. O turismo, por tanto, exerce seu papel muito mais como meio de ganhar apoios institucionais, verbas, reconhecimento cultural e coesão do grupo, do que de responder as expectativas dos próprios turistas. Para os eruditos, os políticos locais e os habitantes, o turismo é um espelho positivo onde cada um se olha desejado por outros, uma modalidade de relação consigo mesmo, mediada pelo imaginário turístico. A questão do “para quem” sucede automaticamente àquela do “para que”. Se o turismo pode atuar como modo de integração social, como é o caso dos novos residentes de Montrésor que ao participar da organização do turismo acabam se posicionando do lado do “nós” local em oposição aos “turistas” e recriam assim a vila pela qual sempre sonharam5, ele pode também ser considerado como uma maquina de distinção social e de triagem histórica.

Pequenas pátrias e cidades-monumentos Os primeiros capítulos do livros são dedicados a analisar historicamente os efeitos dos discursos eruditos, administrativos e turísticos na constituição simbólica dos territórios. A autora insiste particularmente no papel dos cientistas (e pseudocientistas) e das elites politicas na cristalização de imagens identificantes (AUGÉ, 1994) do lugar. Desde o folclorista Jaques-Marie Rougé, desejoso de fazer da sua “pequena pátria” - o pais de Loches - uma amostra representativa da mais “autêntica” cultura rural francesa até o ex-secretário nacional do turismo e atual prefeito Jean-Jacques Descamps de Loches, preocupado em valorizar comercialmente a oferta turística tirando o máximo “proveito promocional da região” (p.119), passando pelas 3

“Un spectacle pour touristes où il n’y a pas de touristes » (p.24).

4

“Mon hypothèse est qu’il ne s’agit pas de réaliser une plus-value financière ou commercial mais, pour les habitants, de donner une valeur à ce qu’ils font, à ce qu’ils sont. Et donner une valeur à ce qu’ils font et ce qu’ils sont passe par l’affirmation de l’existence d’une collectivité historique et la re-présentation de ses hiérarchies” (p. 217).

5

Cf. Capítulo 7 “Sur la scène”, p.205-233.

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sociedades arqueológicas e outras associações elitistas - como o Touring Club de France - atentas aos sítios e monumentos mais emblemáticos da Grande Historia francesa: a Touraine efetuou uma progressiva reorientação [um recentrage] da sua imagem para se conformar com a ideologia nacional dominante. Enquanto isso, os folcloristas e geógrafos como Vidal de La Blache (incondicional admirador das terras de Touraine) davam valor as peculiaridades agrológicas da Touraine e à doce indolência do seu povo rural e periférico. Os notáveis locais conseguiram - juntamente com as instituições patrimoniais - enfocar o relato histórico da Touraine sobre sua relação com a historia dos reis, uma leitura muito mais coerente com o centralismo das instituições culturais, com as grandes narrações do marketing turístico e com as ânsias de legitimação histórica da aristocracia local. Hoje, Touraine é conhecida como o “coração da Historia Real” e “cunho da verdadeira língua francesa”. Na parte sul da Touraine, os topônimos e denominações regionais foram evoluindo conforme os produtores simbólicos do território - os “eruditos” e os “edis” - resignificavam o caráter periférico da localidade em relação aos centros de poder (Tours, Paris). A “Touraine Baixa” [Basse Touraine] se tornou assim “Touraine do Sul” para valorizar positivamente a situação “meridional” da região. A partir de então, a Touraine du Sud tornou-se o sul da metade norte do país. Pouco depois, a região ganhou o rótulo turístico de “Desvio mais bonito da França” para se destacar frente ao famoso roteiro dos Châteaux de la Loire. Os mapas turísticos cumprem uma função similar: colocam o destino no centro do território, selecionando os pontos de interesse e distorcendo o espaço. Do mesmo modo, Loches começou a explorar sua herança Real valorizando a figura de Agnès Sorel, a amante preferida do Rei Charles VII, até se identificar como “cidade favorita do Rei”. A imagem de um lugar é sempre fruto de arranjos sucessivos com a história. As elites tem um papel central nesse processo de seleção histórica, trabalham para fazer prevalecer representações do passado que legitimem suas posições sociais e atuações politicas no presente. Foi assim que a memoria das grutas trogloditas e das explorações de cogumelos, pouco valorizante na opinião dos poderosos, ficou ocultada pela majestosa herança Real, por tão anedótica que seja na história pessoal dos habitantes. A patrimonialização da cidade participa também da reprodução de antigas hierarquias sociais. Ela se baseia na seleção de elementos arquitetônicos considerados dignos de interesse, em geral, aqueles ligados a “Grande História” e, coincidentemente, às classes sociais superiores: o Castelo, as muralhas, as Passagens Reais onde desfilaram os cortejos da Coroa. A cidadeANTROPOLÍTICA

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-monumento (FABRE, 2000) legitima e erige em patrimônio uma versão da história na qual a elite se reconhece. Em Loches, a introdução de uma taxa de acesso turístico na Citadela veio reforçar o sentimento de exclusão dos habitantes, agora obrigados a pagar para ter acesso à essa parte da cidade, e salientar as divisões simbólicas entre a cidade alta, associada a aristocracia e a “grande cultura”, e a cidade baixa associada à população de habitantes e a cultura popular. Em Montrésor, o turismo também se alimenta de contrastes sociais. A presença das velhas famílias da aristocracia polonesa se tornou um ponto de interesse turístico, e essa cidade é hoje conhecida como a “Pequena Polônia”. Valorizando “as pequenas histórias da História dos grandes”, o turismo aparece assim como “um modo de apropriação do passado e uma modalidade de invenção do futuro6”.

O turismo, uma linguagem do poder Apesar da insistência sobre o papel das elites na produção simbólica dos territórios turísticos, Saskia Cousin não vê o turismo como um simples canal de dominação, mas um espaço de negociação e de coprodução. A comparação entre Loches e Montrésor revela opções diferentes no desenvolvimento turístico. Enquanto em Loches a atividade se profissionalizou e se institucionalizou até chegar a ser um elemento central da legitimidade politica local, em Montrésor o turismo se manteve mais artesanal e à serviço do “espírito de aldeia”. Enquanto em Loches, a integração das instituições municipais nas redes patrimoniais e nos rótulos turísticos sempre veio reforçar as rupturas históricas entre a Grande Historia (Real) e a indiferença popular, em Montrésor o prefeito sempre quis garantir a “harmonia” do lugar, utilizando as referências históricas de maneira inclusiva e não exclusiva: a imagem medieval, voluntariamente anacrônica, foi mobilizada para fins lúdicos e sociais, não patrimoniais. O que importa em Montrésor não é a exatidão histórica mas, o ambiente e a coesão de grupo. Em ambos os casos, as possibilidades de captar recursos financeiros através de programas públicos colocam os prefeitos numa posição central. A inserção dos municipios nas redes e nos projetos turísticos confere às mesmas um reconhecimento e, por extensão, uma legitimidade política aos prefeitos que lideram os procedimentos de candidatura. Portanto, ao mesmo tempo em que o Estado impõe sua presença física e simbólica no território através dos programas turísticos, os políticos locais mostram muita habilidade para negociar e recuperar esta ordem estatal ao seu favor. Para Saskia Cousin, “o Estado turístico é um Estado fraco” (p. 143), caracterizado pela superposição de competências, pela dispersão das 6

“Un mode d’appropriation du passé et une modalité d’invention du futur” (p.202).

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subvenções pela fragmentação das mensagens institucionais. O pluralismo institucional decorrente dessa situação reforça o poder dos prefeitos, cujo poder de negociação aumenta com o número de interlocutores institucionais. O turismo é assim descrito como “um bom produto politico7”, uma nova vulgata através da qual os políticos podem escolher vários registros de argumentação para justificar sua ação, começando por um discurso desenvolvimentista e chegando à reivindicações regionalistas, identitárias e/ou culturais. Enquanto o “patrimônio” permanece um domínio reservado às elites culturais, o turismo é considerado como um setor mais consensual e igualitário, já que oferece (em diversas medidas) oportunidades econômicas para todos os escalões sociais, “não precisa de um capital social ou cultural extraordinário para trabalhar no turismo8”.

Uma traição da publicidade turística O livro de Saskia Cousin revela ser um excelente antídoto contra as mistificações do turismo, mas também contra as criticas expeditivas. Ao apresentar o turismo como uma instituição social, a autora se abstém de toda definição categórica, uma vez que não se trata de dizer o que é (ou não é) o turismo, nem quem são (ou não são) os turistas, mas sim de descrever como essas categorias são usadas pelos atores para (re)produzir espaços, políticas públicas e grupos sociais. A descrição etnográfica consegue dar conta da complexidade do turismo sem no entanto confundir, num estilo accessível e ao mesmo tempo sutil. Os estudiosos quiçá lamentarão a pouca teorização do livro, pois Saskia Cousin não pretende se posicionar em nenhum campo acadêmico ou escola de pensamento; usa os conceitos antropológicos com parcimônia, como ferramentas para desconstruir as evidências do turismo, não como finalidades. Porém os casos apresentados dariam espaço para discutir alguns temas da “antropologia do turismo”, começando pelos autores clássicos como John Urry ou Dean MacCannell, citados de maneira meramente anedótica no livro. Com efeito, existe um fundo construtivista comum entre as configurações de discursos e poderes descritas por Saskia Cousin sobre a Touraine, e o “olhar turístico” de inspiração foucauldiana conceituado por Urry (1990). Do mesmo modo, o sistema heurístico desenvolvido por Cousin para estudar as promessas não cumpridas do turismo, articulando análise cultural das imagens turísticas (AUGÉ, 1997), antropologia da circulação dos imaginários (APPADURAI, 1996) e etnografia dos interesses políticos locais (ABÉLÈS, 1989), lembra os esforços de Dean MacCannell 7

Cf. Capítulo 4 “Le tourisme, un bon produit politique”, p.115-144.

8

“Point besoin de capital social ou culturel extraordinaire pour travailler pour et dans le tourisme” (p.239).

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(1999) em incorporar o interacionismo de Ervign Goffman, a semiótica, e o estruturalismo marxista para descrever o sightseeing como uma “performance ritual” pós-moderna condenada ao fracasso, que “mesmo tentando construir totalidades, continua celebrando diferencias9”. Mas a escolha da autora por limitar as inferências teóricas se explica pelo público ao qual se dirige o livro: “tentei escrever um texto para os habitantes de Touraine, para os pesquisadores e estudantes” explica a antropóloga na introdução do livro. Isso justifica também a preocupação dela em se distinguir das monografias eruditas - “objetos maiores de comunicação” que ela mesmo usou como material empírico. Saskia Cousin avisa àqueles que pensavam usar o livro como “embaixador” da Touraine du Sud que o mesmo poderá ser interpretado como uma “traição em relação a publicidade esperada”, pois sua vocação não é promover uma região mas sim “compreender como e por que o turismo, em contexto ordinário, pode tomar tanta importância na vida cotidiana e na estruturação dos grupos, enquanto os fluxos turísticos se fazem esperar10”. No entanto, os pesquisadores na espera de discussões teóricas mais aprofundadas poderão se referir as 580 página da tese da mesma autora (COUSIN, 2002), a partir do que foi originado seu livro. De todo modo, este último não deixa de ser uma excelente demonstração do que pode ser uma antropologia politica do turismo na França, accessível aos universitários estrangeiros e ao “turista aprendiz”.

Referências ABELES, Marc. Jours tranquilles en 89 : Ethnologie d’un département français, Paris : Odile Jacob & Seuil, 1989. APPADURAI, Arjun. Modernity at large: cultural dimensions of globalization, Minneapolis: University of Minnesota Press. AUGE, Marc. Pour une anthropologie des mondes contemporains, Paris : Aubier, 1994. AUGE, Marc. L’impossible voyage. Le tourisme et ses images, Paris : Payot & Rivages, 1997. COUSIN, Saskia. L’identité au miroir du tourisme. Usages et enjeux des politiques de tourisme culturel, tese de doutorado, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2002. 9

“I discovered that sightseeing is a ritual performed do the differentiations of society. Sightseeing is a kind of collective striving for a transcendence of the modern totality, a way of attempting to overcome the discontinuity of modernity (…). Of course, it is doomed to eventual failure: even as it tries to construct totalities, it celebrates differentiation” (MacCannell, 1999: 13).

10

“Comprendre comment et pourquoi le tourisme, en milieu ordinaire, peut prendre une telle importance dans l’organisation de la vie quotidienne et la structuration des groupes sociaux, alors même que les flux touristiques se font attendre” (p.26-27).

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280 FABRE, Daniel. Domestiquer l’histoire. Ethnologie des monuments historiques, Paris : MSH, 2000. LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes tropiques, Paris: Plon, 1955 MAC CANNELL, Dean. The tourist. A new theory of leisure class, 2a Ed. Berkeley: University of California Press, 1999. URRY, John. The tourist gaze. Leisure and travel in contemporary societies, London: Sage, 1990.

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