Visão Periférica. Olhos para um mundo comum

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Col eção M aru i m - An o I - N º 001 - 201 1

Visão Periférica. Olhos para um mundo comum Marina Garcés



Tradução do espanhol: Boca do Mangue


Visão Periférica. Olhos para um mundo comum

Visão periférica. Olhos para um mundo comum Somos o que olhamos, mas o que ou quem olha em nós? Nossos olhos? Nossa mente? Nosso corpo? Nossas palabras? Dizem que Demócrito, no século V a.C., arrancou os próprios olhos para ver melhor. A visão de um jardim, com todo seu esplendor, lhe distraía e não lhe deixava se concentrar no que realmente desejava ver. Nossos olhos, no século XXI, estão saturados de imagens que vão muito além das distrações do jardim de Demócrito, numa escala que ele nem sequer poderia imaginar. Arrancamos os olhos? Como fazê-lo? Estas parecem ser hoje as perguntas das posições filosóficas e artísticas que prolongam, em nossa sociedade hipermidiática, a crítica ao ocularcentrismo que já se iniciou, de alguma maneira, em finais do século XIX. Como nos apartar do império do olho? Como desarticular a hierarquia que põe a visão acima de nossos sentidos e a converte na matriz de nossa concepção da verdade? A crítica à visão é, hoje, uma reação à distancia, à passividade e ao isolamento que dominam nossas vidas de espectadores: espectadores da história, espectadores culturais, espectadores de nossas próprias vidas, espectadores, em definitivo, do mundo. O que nos propomos nesse texto é questionar a idéia de que fazer a crítica à nossa condição de espectadores do mundo passa, necessariamente, por fazer uma crítica ao dominio da visão. Nossa hipótese vai na direção contrária: a passividade, a distância e o isolamento, que fazem parte de nosso rol de espectadores, são o efeito de uma captura da visão que precisa ser devidamente analisada. Só a partir dessa análise, poderemos apontar melhor a crítica a nossas formas de olhar o mundo e seus efeitos sociais e polí-


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ticos. Como veremos, atualmente, o olhar que domina o mundo é desencarnado e focalizado. Nossos olhos de espectador, assim como as imagens que passivamente consumimos, também o são. Frente a isso, é recorrente, no pensamento e na arte contemporáneos, invocar o poder da voz e do tato como potências da proximidade e da relação, frente ao poder glacial e fragmentador da vista. É possível propor hoje um questionamento da vista, da visão e do olhar? É possivel pensar, não tanto em sua reorientação mas em sua liberação? Liberar a visão passaria por deixar que os olhos caiam de novo no corpo. Que conseqüencias teria essa queda? Como se transformariam os territórios do visível e do invisível? Em que sentido isso afetaria a nossa condição de espectadores? Nessas perguntas se expressa um desejo: não queremos renunciar a olhar o mundo. Não queremos arrancar nossos olhos para ver melhor, mas ao contrario: conquistar nossos olhos para que a Medusa na qual o mundo se converteu, atualmente, não nos deixe petrificados.

Espectadores do mundo

O ideal antigo da contemplação, como atividade mais alta e mais nobre, proposta exclusivamente àqueles que se atreveram a embarcar no caminho da sabedoria, organizou a relação do homem com a verdade em torno do aperfeiçoamento da visão. Essa relação entre a visão e a verdade perdeu seu caráter de nobreza, mas não sua legitimidade com a extensão dos métodos de observação de todas as práticas científicas na época moderna. Atualmente, poderíamos dizer que todos temos sido incorporados a essa prática de aperfeiçoamento da visão enquanto espectadores do mundo. Como escreveu Guy Debord: “O espetáculo é o herdeiro de toda a debilidade do projeto filosófico ocidental que foi uma compreensão da atividade dominada pelas categorías do ver, da mesma maneira, se funda na desdobra incessante da racionalidade técnica precisa que deriva desse pensamento. O espetáculo não realiza a filosofía, filo-


Visão Periférica. Olhos para um mundo comum sofisa a realidade. A vida concreta de todos foi o que se degradou num universo especulativo.”‘1

De filósofos a cientistas e de cientistas a espectadores: por que é esta a história de uma degradação, segundo as palabras de Debord? Parece que a generalização do olhar, como relação privilegiada com o mundo, não tem conduzido a uma melhor partilha da verdade mas a uma entrega massiva ao império da mentira. Assim o atesta o sentir geral do pensamento e da crítica contemporáneas. “Vivemos num espetáculo de roupas e de máscaras vazias”2 , escreve John Berger. Julia Kriesteva usa as seguintes palabras para qualificar a cultura da imagen: sedução, rapidez, brutalidade e ligeireza3 . Brutal e ligeira, a cultura da imagem nos entrega a “um jogo no qual ninguém joga e todos olham”4 . Para entender esse jogo já não nos serve opor simplesmente o reino da aparência e o da verdade, tal como fez Platão em sua cena da caverna ou como recorreu a crítica moderna à alienação, de Feuerbach a Debord, passando obviamente por Marx. Nossa condição atual de espectadores do mundo não é um teatro de sombras, no qual seríamos expropriados e separados de nossa verdade, mas uma territorialização de nosso olhar em duas escalas polarizadas e incomensuráveis entre si. Somos espectadores estrábicos. Por um lado, nossa visão está dominada pela projeção totalizadora do mundo-imagem. Por outro, nossa visão está privatizada por uma gestão da vida individual na qual cada um de nós é autor e público de sua própria imagem, de sua própria marca5. Vejamos como funcionam essas duas dimensões de


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nossa relação escópica com o mundo e com a nossa própria vida. Há duas décadas que Heidegger lançou à arena filosófica a idéia de que o mundo se converteu na imagem de si mesmo: “Imagem do mundo, compreendido essencialmente, não significa portanto uma imagem do mundo, mas conceber o mundo como imagem”6. Com os novos dispositivos de captação de imagens do planeta Terra desde o seu exterior, essa idéia tornouse literal. Todos nascemos já com a imagem do nosso planeta implantada nas retinas e no sentido da situação que ocupamos no mundo. Este já não precisa ser imaginado. Não é a idéia de totalidade irrepresentável que Kant teve que deixar no limbo do regulativo. É uma imagem óbvia e inquestionável. Todavia, o modo inquestionável como a imagem do mundo nos domina não depende exclusivamente da capacidade que a modernidade tem desenvolvido de producir e difundir imagens do planeta. Tem a ver, também, com outros fenómenos igualmente importantes: a eliminação de qualquer idéia de transmundo (divino) ou de outro mundo (nascido da revolução) e o triunfo da globalização como configuração da imagem do mundo. Os dois fenómenos se resumen nessa frase de F. Neyrat: “Só existe um mundo e está feito à imagem do Capital”7. O mundo do capitalismo globalizado, esteja ou não em crise, esgota hoje a totalidade do visível e proclama que não existe nada mais que ver, que não há nada escondido, que não existe outra imagem possível. Isto é o que há, diz. É uma nova forma de administrar o invisível: se em outras épocas era patrimônio das religiões, cujos dogmas estabeleciam de que estava “feito” o invisível e quem estabelecia sua lei, hoje, o capitalismo global cancela toda invisibilidade, todo não-saber, em favor de sua única verdade presente. O mundo, como imagem, sintetiza esta verdade. Por is-


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so, o mundo deixa de ser aquilo que há entre nós, aquilo que fazemos e que transformamos coletivamente, para se converter em algo que se nos oferece apenas para ser olhado e acatado. Como escreve Susan Buck-Morss, desenvolvendo a idéia de Heidegger: “O mundo-imagem é a superficie da globalização. É nosso mundo dividido. Empobrecida, escura, superficial, essa imagem-superficie é toda nossa experiencia compartilhada. Não compartilhamos o mundo de outro modo”8.

Mas, além do distanciamento que produz a lógica da representação e que Heidegger, em seu artigo já denunciava, o que se dá é a violencia de uma imposição. Esta imposição é o que faz com que estejamos distantes do mundo e amarrados a ele, que nos sintamos passivos e absolvamos, através de nossos olhos sempre abertos e sempre assediados, sua imagem novamente. No outro extremo de nossa condição de espectadores do mundo, temos o jogo ao qual nos lança a privatização da existencia e a gestão da vida tanto como autores quanto como público de nossa própria imagem. Da escala da totalidade inapelável que é o mundo global, saltamos, sem mediações, para a escala da particularização dos mundos vividos e sua representação personalizada como forma de comunicação. Da mesma forma que o mundo, também cada um de nós é hoje uma imagem de si mesmo. Na visibilidade se joga toda nossa existencia, tanto pública quanto privada. Tampouco, nesse caso estamos na cena da representação. Trata-se de administrar a coerência de uma imagem, seja qual for. Nessa coerência não se representa nada nem se esconde nenhuma verdade. Garante-se, únicamente, o bom funcionamento da marca que somos. Por isso, como escreve John Berger no mesmo texto que citamos: “já não se comunica nenhuma experiencia. A única coisa que se compartilha é o espetáculo, esse jogo no


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qual ninguém joga e todos olham. Agora cada qual tem que tentar situar por si só sua própria existência, seus próprios sofrimentos, na imensa arena do tempo e do universo”9.

À vista de todos, sem cruzar o olhar com ninguém: de novo encontramos a relação entre a vida das imagens, que somos todos, e a distancia. Porém, não se trata, nesse caso, da distancia entre uma essência e uma aparência. É a distancia na horizontal do isolamento ou, de acordo com Sloterdijk, de um regime de co-isolamento10. Walter Benjamin já havia escrito, após a Primeira Guerra Mundial, sobre a perda da faculdade de trocar experiências na famosa imagem dos soldados voltando mudos do campo de batalha11. Podemos imaginar esses soldados caminhando com o olhar perdido, rodeados de devastação. Hoje, temos os olhos inundados de cores: as de nossas telas repletas de informações e mensagens que nos chegam de todos os rincões do mundo, de todos os amigos que enchem nossa rede social, dos avisos que acendem as luzes de nossos celulares, dos anúncios que atualizam nossa lista de compras ainda não realizadas… Porém, longe de fortalecer nossas capacidades de intercâmbio, essa maré de estímulos precisa de um consumo individualizado que, às vezes, fragmenta a realidade e isola o espectador-consumidor que se relaciona com ela. Em nossas sociedades contemporáneas, mais relações não comportam menos isolamento. Relação e isolamento aumentam sincronicamente, enredadas num paradoxo sem aparente solução que, dito rápidamente, põe em questão toda a pragmática deleuziana do aumento de conexões como condição para liberar a vida. Entre o mundo-imagem e a produção particular de imagéns-marca, dizia que somos espectadores estrá-


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bicos. Aperfeiçoar a visão, em nossos tempos, significa agilizar os saltos e acelerar os movimentos entre as duas escalas incomensuráveis que compõem, tal como acabamos de descrever, o regime de visibilidade contemporáneo. Que relação guardam entre elas? Seria um erro cair numa análise que recompusesse essas duas escalas como o todo e a parte, como o geral e o particular, como o global e o local. Como explica bem Remy Brague em seu livro La sabidúria del mundo12, a relação entre o micromundo e o macromundo, que descrevia a participação do homem no cosmos através da analogía, quebrou-se no Renascimento como o tronco de uma árvore. A copa e as raízes dessa árvore já não se refletem nem compõem uma imagem de simetría. Também não há circulação de energía entre elas. Porém, sem ambas escalas nossa condição essencial é a de espectadores do mundo e de nós mesmos, que participam, desde sua incomensurabilidade, de um mesmo regime de visão. Como veremos na continuação, é o regime no qual o olhar se impõe como que desencarnado e focalizado. É um olhar que se subtrai ao movimiento do corpo e à suas potências perceptivas, e que cancela, desse modo, nossa relação com o entre, ou seja, com o mundo como aquilo que há entre nós e que está entretecido, necessariamente, de visibilidade e de invisibilidade. A que tradições de pensamento e a que dispositivos de poder responde o dominio desse olhar desencarnado e focalizador? Com essa pregunta, abrimos a possibilidade de interrogar a visão, histórica e políticamente, e de projetar essas perguntas sobre nossa condição de espectadores distantes, passivos e isolados. Passaremos, assim, dos enfoques de corte antropológico, que privilegiam à disputa entre os sentidos, a um campo de interrogação política no qual o que estará em jogo é a batalha entre regimes de atenção. Das vitórias e derrotas dessa batalha, depende nossa capacidade de nos envolver hoje no mundo sem deixar de ter os

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olhos bem abertos.

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A captura da visão

A crítica ao império da visão, que começa a ganhar relevância desde finais do século XIX em diante, tem como alvo principal o poder de abstração, distanciador e exteriorizador, da visão. Esta, entronizada como matriz e garantidora da verdade na cultura ocidental, teria a capacidade de dispor a realidade de forma frontal e exterior ao observador e de submetê-la a um processo de objetivação e estabilização, que são o ponto de partida para seu domínio, manipulação e controle. A pergunta que devemos nos fazer diante dessa crítica é: por que conferimos à visão esse poder distanciador, com todas as consequências que temos descrito, quando precisamente no olhar humano existe a capacidade de surpreender, de enganar, de admirar, de devorar, de ruborizar, de penetrar, de envergonhar, de acender amores e ódios, de confiar, de intuir, de comprometer e de alentar, entre tantas outras possibilidades? A idéia da qual partimos, e que já anunciamos no inicio deste trabalho, é que o poder de distanciamento da visão não é efeito de sua autoridade, de seu triunfo sobre os outros sentidos nem como matriz da verdade, mas precisamente de sua captura; de sua captura em um duplo dispositivo que vamos analisar em seguida: a metafísica da presença e o regime pós-industrial da atenção. O caminho filosófico que vai da caverna platônica à dióptrica de Descartes costuma se apresentar como a via maior que consagra a visão como o mais nobre e compreensivo dos sentidos. Não podemos desenvolver aqui os detalhes dessa relação13. O que nos interessa assinalar é que, mais que a declaração de um triunfo ou de uma hegemonia, o que encontramos nos textos de Platão e Descartes é a narração de um conflito entre os olhos da carne e os olhos da mente, entre a


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visão enganosa do sensível e a visão clara e distinta das idéias. O problema partilhado por Platão e Descartes é, precisamente, o de como combater e superar a instabilidade, a ambiguidade, as deficiências e as distrações de nossos olhos inundados de realidade sensível. Para isso transferem a verdadeira capacidade de ver à alma ou à mente. Demócrito assumiu a lição com total literalidade. Descartes tentou mitigar seus efeitos devastadores inventando a glândula pineal como veículo de comunicação entre os olhos sensíveis e os do intelecto. Mas, em definitivo, a hegemonia da visão, tal como nos tem legado a metafísica da presença, é o resultado de uma dissociação na qual o ver se distancia do sensível: tanto da realidade sensível quanto dos olhos do corpo. A vista não é, então, o mais nobre e compreensivo dos sentidos. A entronização da visão, como modelo da verdade, é, na realidade, a negação ou depreciação do sentido da vista e das virtudes do olhar. O modelo ocularcentrista que tem dominado a cultura ocidental não separa a vista do outros sentidos e das capacidades perceptivas humanas. O que faz, na realidade, é separar a visão mesma de seu caráter sensível. Como resultado, os olhos se convertem nos buracos da verdadeira faculdade de ver e o mundo deixa de ser um teatro de sombras e cores instáveis para se converter no cenário da presença pura (a idéia, a forma). Nesse processo, também a luz perde sua dimensão sensível para se converter em iluminação. A isso corresponde a dualidade latina de termos, lux / lumen, que tantos debates acenderam ao longo da Idade Média e para qual Descartes ainda dava voltas sem conseguir resolver a ordem de suas prioridades. Que relação há entre a luz sensível e a luz da intelecção? A metáfora da luz, que guia toda a tradição da metafísica da presença, o que Derrida chamou a “mitologia branca”14, é a que esquece a lição de Ícaro: que o


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sol não só ilumina, mas que, de maneira inseparável, aquece. A luz do sol não só ilumina as formas. Com seu calor acende o mundo, toca os corpos de todos os seres vivos, dos quais pode ser fonte de vida ou ameaça de destruição. O filósofo platônico, em sua ascensão em direção ao sol, voltaria com os olhos danificados pela intensidade da luz, mas Platão não nos diz nada sobre o calor, o suor, as queimaduras de sua pele. O espectador da verdade não tem corpo. Da mesma forma, o espectador contemporâneo do mundo recebe suas imagens sem ser tocado por elas, sem se ver afetado pelo encontro com sua verdade. Caberia uma objeção ao que acabamos de dizer: o mundo-imagem e as imagens-marca que articulam nossa visão do mundo provocam, em nós, cada vez mais emoções. A sociedade do espetáculo persegue a intensidade emocional como ligação que nos mantém vinculados ao estímulo interrompido. Não em vão se fala, atualmente, de “capitalismo emocional”15. Mas é importante não confundir as emoções do espectador contemporâneo com a capacidade de ser ou não afetados pela realidade que partilhamos. Os antigos situavam as emoções do lado do corpo, como aquilo que devia negar ou controlar para aguçar a precisão da visão e da compreensão. Mas, hoje, concebemos a inteligência como emocional e as emoções como manifestações de um sujeito perfeitamente individualizado. Nosso mapa emocional faz parte de nossa imagem-marca com tanta legitimidade quanto nossos conhecimentos. A alma contemporânea já não é uma alma intelecta. Nesse sentido, as emoções não necessariamente falam de como somos afetados pela realidade, de nossa implicação nela. Com demasiada obviedade, as emoções só falam de si mesmas. Emoção não é, hoje, sinônimo de encarnação nem a via emocional é o caminho para superar nossa distância espectadora do mundo. Como veremos, devemos caminhar por outras vias, que nos conduzirão à pergun-


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ta pelo que pode significar hoje ser afetado e pelas diferenças, portanto, entre emoção e afecção. Mas, antes, devemos avançar alguns passos mais na análise que estamos apresentando da dupla captura da visão. A desencarnação da visão assinala, como dizíamos, a principal via por onde o pensamento filosófico clássico de Platão a Descartes e passa, como temos visto, por subtrair a vista do dominio do sensível. A luz, como víamos, ilumina sem aquecer e os olhos são buracos estáticos a serviço de um órgão de visão superior. Esta concepção da visão domina a tradição metafísica ocidental, não é preciso insistir nisso. Todavia, é preciso acrescentar uma observação que pode resultar mais surpreendente: a crítica ao império do visual que tem dominado grande parte do pensamento contemporáneo perpetua a concepção desencarnada da visão, criticando-a. É bem conhecido que uma onda antivisual percorre o pensamento filosófico do século XX. Enquanto as técnicas de aperfeiçoamento tanto da visão quanto do registro e da projeção da imagem se sofisticam e estendem seus usos a um ritmo vertiginoso, a filosofía do século XX se desenvolve na defensiva ou em ofensiva direta sobre o predominio do visual. Em continuação à crítica nietzscheana da representação e com os claros-escuros que estão pintando a cultura nascida das novas formas de vida urbana do mundo industrializado, a filosofía do século XX impugna o poder do olho de dois novos territórios do pensamento: o da reivindicação do corpo, como pluralidade ingovernável para os parâmetros formais da civilização ocularcêntrica, e o do descobrimento da linguagem e de sua multiplicidade irredutível como verdadeiro berço tanto consciente quanto inconsciente do sentido. A filosofia do século XX é , em geral, uma expressão coral e, ao mesmo tempo, dissonante de desconfiança e de resistência ao poder do olho. Da carícia à putrefação, de Lévinas a Bataille, de Bergson ao feminismo, o corpo se reivindica através do tato, do movimento, da vulnerabilidade, do visceral, do abjeto... e se manifesta contra a civilização


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ocidental, metafísica e ilustrada, baseada na transparência imaculada da visão desencarnada. Isto é, contra o domínio patriarcal, contra o poder disciplinar, contra a sociedade de controle, contra a reificação intersubjetiva, contra a lógica da identidade. Ao mesmo tempo, de Rorty à hermenêutica, de Lacan a Althusser, do pós-estruturalismo ao pós-modernismo, de Blanchot a Derrida, a linguagem oferece um novo campo para a produção de sentidos novos, para a guerra dos discursos, para a liberação de diferenças e de idéias até então impensadas. Sem poder aqui analisar com detalhe essas duas frentes de impugnação do predomínio do visual, o que vale a pena reter é como em todas essas apresentações não só se partilha a unanimidade da condenação, mas também o caráter inquestionável da culpabilidade do olho. O tato contra a vista, o ânus contra o olho, a entranha contra a transparência da consciência, a invisibilidade do sexo feminino contra a visibilidade do masculino, a escritura contra a imagem, a narração contra a representação... No longo eticétera desse combate, o poder da visão nunca perde os atributos que lhe atribuiu a tradição metafísica e, por eles, é condenada. A visão é desencarnada, assim, tanto por seus defensores quanto por seus detratores. Para estes é reificante, manipuladora, identificadora, esbilizadora. Para o pensamento contrailustrado, portanto, a luz segue apenas iluminando e, evidentemente, uma luz que ilumina sem aquecer não pode estar mais que a serviço do poder. O que tem que acontecer para que o corpo e a linguagem descubram sua necessária aliança com os olhos sensíveis, tão maltratados pelo império visual ocidental? O que tem que acontecer para que a crítica à centralidade da visão não leve novos Demócritos contemporâneos a se arrancarem os próprios olhos, não para ver melhor com a alma, mas para tocar melhor a pele ou para aguçar a escuta do sussurro de nossa tradição cultural? Como deixar que os olhos caiam no corpo e assumir todas as conseqüências políticas, epistemológicas, vitais e artísticas dessa queda?


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Privatizar o frontal

Para abordar essas perguntas, no marco desse trabalho, podemos avançar em duas direções necessárias: em primeiro lugar, aproximar a análise da captura da visão de suas condições histórico políticas atuais, ou seja, extrair os elementos principais dessa segunda onda a que chamamos de regime pós-industrial da atenção. Em segundo lugar, seguir a pista do que poderia ser a queda dos olhos no corpo a partir da noção de visão periférica. É uma pista que vai nos levar do conhecido texto-manifesto de Juhani Pallasmaa sobre a arquitetura, Los ojos de la piel, à filosofia do visível e do invisível de Merleau-Ponty. Dela poderemos realocar os desafios que se apresentam a nossa condição de espectadores do mundo. Os olhos desencarnados, que a tradição metafísica entronizou, pretendiam ostentar uma relação privilegiada com a verdade: imediatez da percepção e certeza, e universalidade. Isto é o que os olhos de carne não podiam garantir e por isso deviam ser sacrificados. Mas, o que ocorre quando, com o avanço da modernidade e da fragmentação dos saberes, se quebra a visão clássica do mundo? Que fazer desses olhos que perseguiam a verdade quando as garantias de urgência, certeza e universalidade são varridas por uma realidade que não se oferece à representação e por uns saberes que não têm garantias de sínteses nem de totalidade? O pluralismo, a multiplicidade de perspectivas, a individualização do sujeito e o produtivismo decretam o caráter obsoleto das pretensões especulativas e contemplativas dos olhos do espírito. Como lamenta Hannah Arendt, a vida contemplativa no mundo moderno deverá ceder a olhos adaptados à flexibilidade, à dispersão e à fugacidade da vida produtiva moderna. Os olhos contemplativos devem se converter em olhos atentos. Enraizados na singularidade do sujeito moderno, fortemente individualizados, devem ser capazes de selecionar, de isolar, de desenvolver um


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“sentido coerente e prático do mundo”16. “Minha experiência é aquilo a que decido prestar atenção”, proclamou William James em finais do século XIX17. Esta sentença vale também para nós: não somos aquilo que vemos, mas aquilo que decidimos ver. Assim passeamos os olhos pela rede, assim se educa nossa capacidade seletiva de aprendizagem e nossa experiência profissional. À desencarnação da visão se adiciona, no mundo moderno, sua potente focalização através de um dispositivo de técnicas e práticas da atenção. Só a focalização da atenção é eficiente numa realidade que já não tem nenhuma garantia de unidade. A relação atenção/distração substitui a contraposição verdade/aparência. Hoje, temos uma experiência direta disso na forma como as crianças distraídas são tratadas medicamente como deficientes: o déficit de atenção (SDA) é o desequilíbrio do sujeito moderno. Só uma doses adequadas de distração, concebidas como ócio e devidamente administradas em determinados tempos e espaços, são aceitáveis para olhos que devem manter sempre alerta e sempre aguda sua capacidade de concentração. De fato, poderíamos dizer que, inclusive, a distração é uma forma de atenção soft que mantém a atenção ativa e focalizada, mesmo que, sob menor pressão. Quais são as conseqüências dessa segunda captura da visão como focalização da atenção? Sem poder entrar em todos os detalhes que mereceria essa questão, a conseqüência mais importante é que ao distanciamento do espectador se adiciona agora seu isolamento. Como dizia W.James, cada um é o fruto de seu próprio trabalho de atenção e, como sabem as crianças de hoje, de seus êxitos e fracassos nesse trabalho. J.Crary resume assim: “A cultura espetacular não se baseia em fazer com que o sujeito veja, mas em estratégias através das quais os indivíduos se isolem, se separem e habitem o tempo despojados


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de poder”18. O controle da atenção é, assim, uma extensa estratégia de individualização a qual preocupa mais “individualizar, imobilizar e separar os sujeitos do que o conteúdo específico das imagens”19. E conclui: “A lógica do espetáculo prescreve a produção de indivíduos separados e isolados, mas não introspectivos”20. O sujeito atento cancela o contexto: o tempo histórico e as relações nas quais está inscrito. Não tem, portanto, nenhuma percepção de um mundo comum. Sua experiência, como dizia W.James, é aquilo ao qual decide prestar atenção. O frontal da tradição metafísica tem sido agora privatizado. Com essa privatização se transforma, além disso, a natureza do controle social: mais além da autoridade transcendente de uma verdade imutável e mais além da centralidade abrangente do panóptico, o regime pós-industrial da atenção controla isolando o sujeito e focalizando seu campo visual, aprisionando-o em sua experiência individual e intransferível do mundo. A privatização é compatível com a comunicação, mas não com a transferência e o intercâmbio de experiências, que só funcionam sobre a base da percepção de um mundo comum. Por isso, hoje, podemos viver num mundo hipercomunicado e, ao mesmo tempo, privatizado ou, como dizíamos, aumentar nossas relações e conexões sem estar, por isso, menos isolados.

Olhar um mundo comum

Depois de tudo o que temos visto, está claro que não são os olhos o que aprisiona o espectador na separação e na passividade, mas as condições históricopolíticas que têm moldado nosso olhar sobre o mundo. Daí, estamos de acordo com J.Rancière21 quando defende o lugar do espectador e sua relação privilegiada com a visão. Como ele afirma, nem falar nem atuar


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são melhores do que ver. O espectador não pode ser condenado por se relacionar com o que ocorre através de seus olhos. Tampouco tem sentido pretender ir em seu resgate provocando sua incorporação a uma suposta comunidade ou sua participação num evento coletivo. Mas, Rancière resolve o problema afirmando que ver é interpretar e que no olhar há, então, uma atividade da qual não podemos controlar as conseqüências. É uma resposta intemporal a uma situação histórica e politicamente determinada, que evita fazer uma crítica de nossas formas de olhar e de nos relacionar com o que observamos. O espectador não carece de ser salvo, mas sim, necessitamos conquistar juntos nossos olhos para que estes, ao invés de nos por o mundo em frente aprendam a ver o mundo que há entre nós. Precisamos, tanto das práticas visuais e cênicas quanto das práticas teóricas, encontrar modos de intervenção que apontem a que nossos olhos possam escapar ao foco que dirige e controla seu olha, e aprendam a perceber tudo aquilo que questiona e escapa às visibilidades consentidas. Não se trata hoje de pensar como fazer participar (o espectador, o cidadão, a criança...) mas como nos envolver. O olhar envolvido nem é distante, nem está isolado no consumo de sua passividade. Como pensá-lo? Essa pergunta abre muitas vias de pensamento e de experimentação. Tal como anunciávamos, propomos seguir uma pista do arquiteto finlandês J.Pallasmaa, que em Los ojos de la piel aponta para a noção de visão periférica como base para repensar o papel da visão no mundo contemporâneo. Diz Pallasmaa: “A visão enfocada nos confronta com o mundo enquanto que a periférica nos envolve na carne do mundo”22. E acrescenta: “Liberado do desejo implícito de controle e poder do olho, talvez seja precisamente na visão desenfocada de nosso tempo quando o olho será capaz de novo de abrir novos campos de visão e de pensamento. A per-


Visão Periférica. Olhos para um mundo comum da de foco, ocasionada pela corrente de imagens, pode emancipar o olho de seu domínio patriarcal e dar lugar a um olhar participativo e empático”. 23

A visão periférica não é uma visão de conjunto. Não é a visão panorâmica. Não sintetiza nem sobrevoa. Pelo contrário: é a capacidade que tem o olho sensível de inscrever o que vê num campo de visão que excede o objeto focalizado. Foi descoberta como propriedade da retina em fins do século XIX e o que assinalou foi precisamente a heterogeneidade de sensibilidades que compõem a visão humana. O olho sensível nem isola nem totaliza. Não vai do todo à parte ou da parte ao todo. O que faz é relacionar o enfocado com o não enfocado, o nítido com o vago, o visível com o invisível. E o faz em movimento, num mundo que não está nunca defronte mas que o rodeia. A visão periférica é a de um olho envolvido: envolvido no corpo de quem olha e envolvido no mundo no qual se move. Que conseqüências tem repensar nossa condição de espectadores do mundo daí? A visão periférica rompe o cerco de imunidade do espectador contemporânero, a distância e o isolamento que o protegem e que por sua vez garantem seu controle. Na periferia do olho está nossa exposição ao mundo: nossa vulnerabilidade e nossa implicação. A vulnerabilidade é nossa capacidade de ser afetados; a implicação é a condição de toda possibilidade de intervenção. Na visão periférica está, pois, a possibilidade de tocar e ser tocados pelo mundo. Como disse Merleau-Ponty em seus textos sobre o visivel e o invisível, “o que vê não pode possuir o visível se ele mesmo não está possuído por este”24. Quebrado o cerco de imunidade, os olhos do corpo penetram o mundo porque ao mesmo tempo são penetrados por ele: na periferia aparece o que não decidimos ver ou desaparece aquilo que perseguimos sem


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sucesso com o foco do olhar. A periferia excede nossa vontade de visão e de compreensão, ao mesmo tempo que lhes dá sentido porque as inscreve num tecido de relações. Na periferia, saber e não-saber, nitidez e desfoque, presença e ausência, luz e opacidade, imagem e tempo, vidente e visível se dão as mãos, se entrelaçam como as duas mãos de meu corpo quando se tocam entre si, segundo a famosa imagem de Merleau-Ponty. Assim, na periferia, a distância não é contrária à proximidade. Implicam-se mutuamente. “Pela mesma razão, estou no coração do visível e ao mesmo tempo longe: essa razão é que é espessa e, por isso mesmo, destinada a ser vista por um corpo”25. Como dizíamos, a visão periférica é a visão do corpo vulnerável, liberado da paranóia do controle e da imunidade que isolam habitualmente o espectador do mundo contemporâneo. Para a visão capturada na distância e na exigência de focalização, todo não-saber é percebido como uma ameaça, como algo que ainda não foi posto sob controle. Para a visão periférica, o não-saber é, pelo contrário, o indício do que está por fazer e da necessidade de perceber o mundo com os outros. Não podemos ver tudo, ainda que o mundo-imagem do capitalismo atual pretenda nos impor uma idéia da totalidade, que nos situe como indivíduos-marca. Toda visão incorpora uma sombra, toda frontalidade implica costas que só outro poderá ver. Toda presença implica um percurso que deixa outras visões para trás, enquando que outras nunca chegarão a ser vistas. Toda situação presente implica, portanto, dobras, nós, margens e articulações que nenhuma análise focalizada poderá reter. Nelas se joga a possibilidade de aprender a ver o mundo que há entre nós. Um mundo comum não é uma comunidade transparente, não implica a fusão do espectador numa coletividade de presenças sem sombra. Há mundo onde aquilo que eu não posso ver envolve a presença de um outro que eu não posso ter. Entre nós, o mundo está


Visão Periférica. Olhos para um mundo comum

povoado de coisas, desejos, histórias, palavras irreconciliáveis que não obstaculizam mas que garantem nosso encontro. Um mundo comum é um tabuleiro de jogo cheio de obstáculos onde, paradoxalmente, podemos cruzar o olhar. Mas, para isso, não precisamos estar frente a frente. Precisamos apenas perseguir os ângulos cegos onde encontraremos o rastro do que alguém deixou por fazer e que precisa de nossa atenção. A visão periférica libera a atenção do foco que a mantém no regime de isolamento que captura nosso olhar sobre o mundo, atualmente. Só da visão periférica podemos transformar a declaração de W. James e dizer: minha experiência é algo que precisa de minha atenção, que precisa ser tratada. Há muito por pensar. Mas, depois do percurso que fizemos, podemos afirmar que a visão periférica nos devolve o mundo sem exigir, para isso, que arranquemos os olhos. Pelo contrário: neles, precisamente, pode estar a possibilidade de nos desfazermos de nossa condição de espectadores distantes e isolados do mundo.


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