C A MPONESA Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
C - AAC Re vi s N R ta da A mpo d o a C s so ciaçã o d o d s e d e Apo io à s Co muni da Ano I - Número 01
Carlo Petrini
Alimentos bons, limpos e justos
/RN
- Novembr o de 200 9
Soberania alimentar
Neneide Lima
“Eu gosto de ser trabalhadora rural”
Marília Leão
Alimentação saudável é um direito humano inviolável
1
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
Editorial
A
Esta publicação foi realizada com apoio da Fundação Konrad Adenauer Fortaleza. O seu conteúdo não expressa necessariamente a opinião da Fundação Konrad Adenauer.
Conselho editorial: Antonia Geane Costa Bezerra Bethânia Lima Silva Emerson Inácio Cenzi Haroldo Gomes da Silva Paulo Segundo e Silva Textos: Bethânia Lima Silva Haroldo Gomes da Silva Fotografia: Rodrigo Sena Bethânia Lima Silva Haroldo Gomes da Silva Revisão: Bethânia Lima Silva Haroldo Gomes da Silva Ariana Lopes Correia de Paiva Projeto gráfico e Diagramação: Robson Nunes Impressão: Offset Gráfica Tiragem: 2000 exemplares
C A MPONESA Re vi s
ta da A s so ciaçã
ampo o de Apo io à s Co muni dad e s d o C
C - AAC do RN
Ano I - Número 01
Carlo Petrini
Alimentos bons, limpos e justos
/RN
- Novembr o de 200 9
Soberania alimentar
Neneide Lima
“Eu gosto de ser trabalhadora rural”
Marília Leão
Alimentação saudável é um direito humano inviolável
2
Foto capa: Rodrigo Sena
Revista Camponesa é uma publicação semestral, de distribuição gratuita, e visa fortalecer o trabalho que esta instituição e seus parceiros desenvolvem no âmbito da agroecologia, economia solidária e gênero no RN, em particular, na região do Mato Grande e no município de São Miguel do Gostoso. A Revista proporciona debater temas essenciais para a vida das pessoas na contemporaneidade ao mesmo tempo em que dá visibilidade à ação realizada pela AACC/RN e suas parcerias, acreditando que as questões que dizem respeito aos agricultores e agricultoras familiares têm a ver com o conjunto da sociedade. Assim fortalece sua missão de “contribuir com a autodeterminação das agricultoras e agricultores familiares do Rio Grande do Norte através dos processos de agroecologia, economia solidária e convivência com o semiárido”. Nesta primeira edição, a Revista discute o tema “Soberania Alimentar” e conta com a colaboração dos seguintes pesquisadores, especialistas e/ou ativistas do movimento social: Carlo Petrini, sociólogo, jornalista e presidente da Fundação Slow Food; Angela Küster, coordenadora do Projeto Agricultura Familiar, Agroecologia e Mercado (AFAM) desenvolvido pela Fundação Konrad Adenauer (KAS); Henrique Carneiro, professor do Curso de História da Universidade de São Paulo (USP); Francisca Eliane (Neneide), coordenadora da Rede Xique Xique de Comercialização Solidária; Severina Carvalho, nutricionista; e Marília Leão, presidente da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) e conselheira representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Além das entrevistas, a Camponesa traz uma reportagem de Bethânia Lima sobre alguns experimentos em soberania alimentar e agricultura familiar em São Miguel de Gostoso e um artigo de Emerson Cenzi sobre o Censo Agropecuário 2006, entre outros. A poesia “Cálice da Natureza”, na contracapa, é de autoria do poeta potiguar, Janduhi Medeiros, retirada de seu livro “Mensageiro das Oiticicas”, de 2007. Neste número, contamos com a colaboração especial de Mariana Guimarães na tradução da entrevista a Carlo Petrini além do empenho, solidariedade e apoio de toda a equipe de trabalho da AACC/RN. Mas esta publicação não seria possível sem a valiosa colaboração da Fundação Konrad Adenauer, a quem a AACC/RN agradece. Esperamos que esta Revista se constitua em alimento para a alma de espíritos livres desejosos de construir relações saudáveis, harmônicas e duradouras das pessoas entre si e na relação com o meio ambiente em que vivem. Como diz Luís da Câmara Cascudo: De todos os atos naturais, o alimentar-se foi o único que o homem cercou de cerimonial e transformou lentamente em expressão de sociabilidade, ritual político, aparato de alta etiqueta. Compreendeu-lhe a significação vitalizadora e fê-la uma função simbólica de fraternidade, um rito de iniciação para a convivência, para a confiança na continuidade dos contatos (História da Alimentação no Brasil, p.36).
A todas e todos uma ótima leitura e uma passagem de ano muito feliz!
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
NESTA EDIÇÃO Entrevistas 04
Carlo Petrini
07
Angela Küster
09
Henrique Carneiro
11
Neneide Lima
15
Severina Araújo
16
Marília Leão
Alimentos bons, limpos e justos
O modelo é a agricultura familiar agroecológica
O modelo alimentar do fast-food é pernicioso
“Eu gosto de ser trabalhadora rural”
Alimentação equilibrada é essencial para a vida
Alimentação saudável é um direito humano inviolável
Reportagem 20
Quando o alimento é mais gostoso Com o apoio da AACC/RN, famílias rurais de São Miguel do Gostoso vivenciam a agricultura familiar de forma organizada e baseada na agroecologia
Seções 19 29 31
Curtas Para Aprofundar Artigo: Emerson Cenzi - A agricultura familiar alimenta o Brasil
3
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
Entrevista: Carlo Petrini
Alimentos bons, limpos e justos Na opinião de Carlo Petrini vivemos um momento de crise econômica, energética e agrícola e o futuro da alimentação exige mudanças nos hábitos de consumo pois a maior parte dos danos que a nossa terra sofreu até agora se deve à produção de alimentos
O
“
poder que o consumidor possui simplesmente pelo fato de escolher diariamente o próprio alimento é inacreditável: exercitá-lo com consciência e responsabilidade é um dever, um ato de civilidade, em relação a si próprios, às próprias famílias, às próprias comunidades e aos próprios povos”, afirma Carlo Petrini, presidente do movimento Slow Food. Na entrevista que concedeu à Camponesa, considera que “estamos vivendo tempos muito difíceis” e que “é necessário redefinir todo o sistema atual, baseado no consumo”. Afirma ainda que “o bom, o limpo e o justo são os três adjetivos que definem em modo elementar as características que deve ter um alimento para responder a exigências de nós, ecogastrônomos” e que a principal via pela qual realiza “um percurso em relação ao bom, limpo e justo é aquela da economia para o re-posicionamento dos consumos e das produções agrícolas”. Carlo Petrini é italiano, estudou sociologia na Universidade de Trento e logo se envolveu com a política local e com o trabalho associativo. Entre suas muitas criações está a Universidade de Ciências Gastronômicas, em Pollenzo e Colorno, a primeira instituição acadêmica a oferecer um acesso multidisciplinar nos estudos da alimentação; é ele também que está por trás do Terra Madre, fabuloso encontro de 5.000 produtores de todo o mundo, ocorrido em Turim, para discutir problemas comuns e suas possíveis soluções. O seu último trabalho Buono, Pulito e Giusto. Principi di uma Nuova Gastronomia foi publicado em 2005 pela editora Einaudi e em 2009 foi traduzido para o português pela SENAC de São Paulo (Brasil) com o título “Slow Food, princípios da nova gastronomia”. No livro, Petrini descreve o desenvolvimento da teoria da “ecogastronomia”. O livro também foi traduzido para o inglês, francês, espanhol, alemão e polonês. Em 2001, seu livro Le ragioni del gusto foi publicado pela Laterza e em 2003 foi traduzido para o inglês como The Case for Taste pela Columbia University Press. Em janeiro de 2008 foi o único italiano a aparecer na lista das ‘50 People Who Could Save the World’ (50 pessoas que poderiam salvar o mundo) realizada pelo prestigiado jornal inglês The Guardian.
Camponesa – O que é o movimento Slow Food? Como surgiu? Na metade dos anos 80, o frenesi consumista tinha invadido totalmente a Itália, de tal forma que se estava perdendo o contato com a terra, as tradições, as próprias receitas, em poucas palavras, as raízes da identidade de cada um de nós. Quisemos iniciar da mesa, do alimento não visto simplesmente como nutrimento, mas como elemento de prazer decorrente da possibilidade de apreciar as diversas receitas e sabores, reconhecer as variedades dos locais de produção e dos artesãos, respeitar os ritmos das estações e a convivência. Hoje estamos convencidos da necessidade de associar um novo sentido de sensibilidade ao prazer e à reivindicação do direito de todos
4
a beneficiar-se deste prazer: uma atitude que chamamos de ecogastronomia, capaz de unir o respeito e o estudo da cultura enogastronômica sustentando aqueles que atuam em todo o mundo para defender a biodiversidade agroalimentar. Partimos de 1986 do Piemonte, na Itália, para nos tornarmos em 1989 uma associação internacional que conta hoje com 100 mil sócios em 130 países.
“Para garantir alimentos bons, limpos e justos, o consumidor deve começar a se sentir co-produtor”
Camponesa – Como tem sido a aceitação no Brasil e, em particular, no Nordeste? O Brasil - um país que possui uma extraordinária biodiversidade agrícola, gastronômica, cultural e lingüística – há diversos anos tornou-se um interlocutor fundamental do Slow Food. Em 2003 o Prêmio Slow Food para a Biodiversidade foi concedido à tribo indígena Krahô, na Amazônia nasceu uma das primeiras Fortalezas internacionais (o Guaraná Nativo dos Sateré-Mawé) e em 2004 o Ministério do Desenvolvimento Agrário do Brasil assinou um acordo que oficializou uma longa relação de amizade e colaboração. Mas o grande desafio do Slow Food no Brasil é a mobilização de todos os setores da sociedade, e temos conseguido superar este desafio com a criação de novos Convivia, os núcleos locais de sócios, e o
Camponesa - Novembro de 2009
envolvimento cada vez maior de chefs, jovens e acadêmicos que juntos poderão permitir a inserção do pequeno produtor na própria comunidade. Hoje temos no Brasil cerca de 600 sócios e este número vem crescendo exponencialmente. No Nordeste, temos importantes projetos para a defesa da sua biodiversidade ambiental e cultural, como a Fortalezas do Arroz Vermelho do Vale do Piancó na Paraíba e do Umbu no sertão baiano. Chefs de Fortaleza e Salvador estão se unindo a acadêmicos do Maranhão e sócios espalhados ao longo de estados do Nordeste brasileiro promovendo uma área com uma riqueza ainda pouco reconhecida e valorizada. Camponesa – Na visão do movimento Slow Food, qual o futuro da alimentação? Estamos vivendo tempos muito difíceis, a crise que estamos atravessando é ao mesmo tempo econômica, energética e agrícola. Não podemos considerá-la e enfrentá-la como se fosse um momento de passagem. É necessário redefinir todo o sistema atual, baseado no consumo. É muito recente a notícia do Global Footprint Network1 de que o overshoot day2 aconteceu no dia 25 setembro, ou seja, o dia que teremos terminado de consumir as reservas que a natureza nos disponibilizou para o ano em curso. A cada ano, o dia no qual entramos em débito ecológico e de excesso de consumo antecipa-se no calendário. Em 1986, ano do primeiro alarme, o overshoot aconteceu em 31 de dezembro. Em 1995 a falência ecológica aconteceu no dia 21 de novembro. Dez anos depois as contas com a natureza entraram no vermelho já no dia 2 de outubro. Agora retrocedemos até o dia 25 de setembro: consumimos 40% a mais do que a terra pode gerar. Em 2050, se a crise energética não nos tiver obrigado a adotar a sabedoria ecológica para manter as contas em paridade, teremos necessidade de um planeta gêmeo para usar como supermercado e retirar as matérias-primas, água, florestas e energia. Se pensarmos ainda que a maior parte dos danos que a nossa terra sofreu até agora se deve à produção de alimento, como se nota no relatório da ONU Millennium Ecosystem Assesment3, entendemos que a forma como nos relacionamos com a gastronomia é central para o nosso futuro. Comer torna-se um “ato agrário”, e selecionando alimentos de boa qualidade, produtos com critérios de respeito pelo ambiente e pelas tradições locais, podemos favorecer a biodiversidade e uma agricultura igualitária e sustentável. Bom, limpo e justo são os três adjetivos que definem em modo elementar as características que deve ter um alimento para responder às exigências de nós, eco-gastrônomos. Bom, relaciona-se com as sensações de prazer derivadas das qualidades sensoriais de um alimento, mas também à
www.aaccrn.org.br
“Comer torna-se um ‘ato agrário’, e selecionando alimentos de boa qualidade, produtos com critérios de respeito pelo ambiente e pelas tradições locais, podemos favorecer a biodiversidade e uma agricultura igualitária e sustentável” complexa esfera de sentimentos, recordações e aspectos determinantes de identidade, decorrentes do valor afetivo do alimento; limpo, ou seja, produzido sem estressar a terra, respeitando os ecossistemas e o ambiente; justo, que quer dizer conforme com os conceitos de justiça social nos ambientes de produção e de comercialização. 1A Global Footprint Network foi criada em 2003 e dedica-se a estimular o surgimento de um mundo no qual todas as pessoas tenham oportunidade de viver satisfeitas, dentro das possibilidades da capacidade ecológica da Terra. É responsável pela “Pegada Ecológica”, que mede o grau em que as demandas ecológicas das economias humanas respeitam ou ultrapassam a capacidade da biosfera de fornecer bens e serviços. 2 Uma semana após o estouro da bolha econômico-financeira, no dia 23 de setembro, ocorreu o assim chamado Earth Overshoot Day, quer dizer, “o dia da ultrapassagem da Terra”. Grandes institutos que acompanham sistematicamente o estado da Terra anunciaram: a partir deste dia o consumo da humanidade, em 2008, ultrapassou em 40% a capacidade de suporte e regeneração do sistema-Terra. Ou seja, a humanidade está consumindo um planeta inteiro e mais 40% dele que não existe. 3 O Millennium Ecosystem Assessment (Avaliação do Milênio de Ecossistemas, MA) foi pensado para fornecer parte da informação científica necessária para a implementação da Convenção da Diversidade Biológica, da Convenção do Combate à Desertificação e da Convenção das Áreas Húmidas. O MA foi lançado a nível mundial pelo Secretário Geral das Nações Unidas em Junho de 2001. É uma avaliação multi-escala, consistindo em avaliações interligadas aos níveis global, sub-global e local. Existem cerca de 15 avaliações sub-globais aprovadas, entre as quais as da Noruega, do Sul de África, da América Central e da China. A Avaliação Portuguesa foi iniciada em Maio passado e irá decorrer até meados de 2005. É liderada pelo Centro de Biologia Ambiental da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL).
Camponesa – Como se vinculam os conceitos de soberania alimentar e economia solidária? De que forma o movimento Slow Food se relaciona com eles? A principal via pela qual realizar um percurso em relação ao bom, limpo e justo é aquela da economia para o re-posicionamento dos consumos e das produções agrícolas. A economia de mercado, assim como a conhecemos e como está organizada graças também às dinâmicas da globalização, está revelando enormes limites econômicos. Seja do ponto de vista da sustentabilidade das suas atividades, seja por seu modo de gerar riqueza. Os seus maiores expoentes são conscientes que “anti-ecologia” começa evidenciar-se cada vez mais como uma “anti-economia”. Em um quadro deste tipo – cujas causas devem ser identificadas também nas mudanças que sofreram o sistema agrícola mundial, na industrialização, na centralização
dos sistemas produtivos agroalimentares – as comunidades do alimento representam um exemplo brilhante do que poderia significar pronunciar as palavras “economia local” ou “economia da natureza”. Trata-se de pequenos produtores, criadores, pescadores, coletores de produtos silvestres, artesãos do mundo agroalimentar que a cada dois anos apresentam os seus trabalhos em nível local na grande sede mundial de Terra Madre4, em Turim (www.terramadre. org). As comunidades do alimento geralmente atual na cadeia curta, ou em cadeias longas altamente sustentáveis e baseadas no conhecimento recíproco dos envolvidos. A comunidade é o local, o contexto, no qual pode-se realizar o conceito de “adaptação local” que teorizou Wendell Berry5. É necessário pressionar o quanto for possível para re-posicionar produções e consumos, vida social e tradições sem renunciar ao comércio e à troca que nos garantem a rede, mas fortalecendo as comunidades locais e as suas características de funcionamento. 4 A rede Terra Madre é constituída por todos aqueles que querem agir para preservar, encorajar e promover métodos de produção alimentar sustentáveis, em harmonia com a natureza, a paisagem e a tradição. 5 Wendell Berry é um ensaísta americano, autor de livros como Know That What You Eat You Are (“Saiba que o que Você Come, Você É”) e Life is a Miracle (“A Vida é um Milagre”).
Camponesa – Qual o papel do consumidor na promoção de uma cultura do gosto e da convivência? A esfera sensorial do homem contemporâneo claramente empobreceu. O tato, o gosto e o odor sofreram uma profunda regressão. O tempo cada vez mais escasso e a velocidade das nossas vidas nos estão privando dos instrumentos que nos podem consentir um conhecimento mais profundo, variado e autêntico do mundo que está à nossa volta. Por isso, treinar novamente os nossos sentidos e aguçar a percepção, são os principais instrumentos que pequenos e grandes consumidores devem possuir para se re-apropriar da própria capacidade de decidir com qual alimento nutrir-se. Destas considerações, nasce o projeto de Educação do Gosto, destinado a educar as crianças para desenvolver a sensorialidade, fazendo-as compreender a importância dos produtos alimentares como parte integrante da cultura das sociedades. Com relação ao grande público, a melhor ideia foi sem dúvida a dos Laboratórios do Gosto, que recolhem exigências do consumidor contemporâneo: o desejo do contato direto, da prova em uma degustação guiada, enfim, a recuperação da sensorialidade; a aproximação do alimento como diversão e ato gratificante mais do que necessidade ou obrigação nutricional; o suprimento da curiosidade em relação aos alimentos, às vezes rara e preciosa, unido à gratificação intelectual de conhecer a história e a particularidade.
5
Camponesa - Novembro de 2009
Para garantir alimentos bons, limpos e justos, o consumidor deve começar a se sentir co-produtor. O tempo do consumidor terminou: ele literalmente consome o mundo e é figura chave da sociedade baseada na economia de mercado resultando, para sua infelicidade, em ser o cúmplice principal do massacre que a terra está sofrendo. Educando-nos, conhecendo os produtos, os próprios produtores, as técnicas para alimentar-se melhor e poluir menos, o co-produtor, inserido em sua comunidade, torna-se concretamente e individualmente o motor de uma verdadeira mudança. O poder que o consumidor possui simplesmente pelo fato de escolher diariamente o próprio alimento é inacreditável: exercitá-lo com consciência e responsabilidade é um dever, um ato de civilidade, em relação a si próprios, às próprias famílias, às próprias comunidades e aos próprios povos. Camponesa – Há quem diga que as raízes da fome e da desnutrição no Brasil associamse a duas dimensões interdependentes de uma mesma crise de nosso modelo de desenvolvimento: baixo poder aquisitivo da população e insuficiência de produção de alimentos para o consumo interno. À luz da experiência do movimento Slow Food, como enfrentar essas questões? O respeito pelo meio ambiente, a tutela dos territórios, a pureza das águas, a defesa das variedades vegetais e das raças ani-
www.aaccrn.org.br
“A esfera sensorial do homem contemporâneo claramente empobreceu” mais estão na base do nosso futuro produtivo se quisermos frear as mudanças climáticas. As notícias que nos chegam são, no entanto muito mais preocupantes e, sobretudo, relacionam-se menos com este simples compartimento mas com a modalidade abrangente de produção e de fluidez das reservas. Deve-se então não reiniciar como se nada acontecesse, não insistir no relançamento de consumos que não podem ser a solução para esta crise. É necessário repensar o modelo de produção que todos nós escolhemos e que acreditamos ser único e indiscutível e ter a coragem de confiar novamente nas economias de pequena escala, as únicas em condição de dar uma resposta eficaz e radical à situação atual, as únicas em condição de serem auto-suficientes porque mantêm uma estreita relação com a própria terra, as próprias tradições, os próprios alimentos. Camponesa – Como as pessoas podem participar do movimento Slow Food? Slow Food é uma associação, então o primeiro passo é tornar-se sócio, desta forma cada um pode participar das iniciativas do próprio Convivium, os grupos locais nos quais a associação está organizada em todo o mun-
do. Conferências, laboratórios, degustações, atividades de educação do gosto para crianças e adultos e, sobretudo a possibilidade de ir a fundo nos argumentos ligados ao alimento que hoje se encontram nos discursos de todo o mundo mas somente em nível superficial, sem aprofundamento. No entanto, o movimento de ideias que lançamos não se limita somente à estrutura associativa, com Terra Madre nasceu uma rede mundial de pessoas que valorizam a diversidade do nosso planeta e que atuam para preservá-lo, para nós e para as gerações futuras. No próximo 10 de dezembro, para celebrar os 20 anos do nascimento do Slow Food, uma grande jornada de mobilização acontecerá em todo o mundo envolvendo sócios e líderes de todos os convivia, pequenos produtores, criadores e pescadores de todas as comunidades do alimento e das Fortalezas, professores e estudantes de hortas escolares. Cada um poderá promover o tema central da filosofia do Slow Food: o acesso a um alimento bom, limpo e justo; a biodiversidade; a produção em pequena escala; a soberania alimentar; o conhecimento das línguas, das culturas e das tradições; a produção que respeita o meio ambiente; o comércio équo e sustentável. Em programa haverá pequenos encontros e grandes eventos: degustações e jantares, filmes e concertos que ressaltam a importância de um alimento bom, limpo e justo; visita a produtores de Terra Madre, campanhas de sensibilização, atividades de educação alimentar e do gosto; encontros entre produtores, cozinheiros, jovens e outros.
V i s i t e o s i t e d a A A C C / R N
w w w . a a c c r n . o r g . b r
6
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
Entrevista: Angela Küster
O modelo é a agricultura familiar agroecológica É preciso fortalecer a soberania alimentar optando pelo consumo de produtos advindos da agricultura familiar, agroecológicos e da própria região
O
modelo econômico adotado no Brasil parte do pressuposto de que a natureza está disponível por tempo indeterminado e os custos da degradação dos solos, da água e do ar ficam para a sociedade enquanto uns poucos enriquecem. Um novo modelo de desenvolvimento deve “optar mais claramente pela agricultura familiar agroecológica”, diz Angela Küster. A agricultura familiar deve produzir comida e não agrocombustíveis, as sementes crioulas devem ser protegidas, o consumidor deve ser mais seletivo e preferir produtos advindos da agricultura familiar, agroecológicos e da própria região. O Brasil precisa de mais envolvimento de todos e todas, desde as pequenas ações que cada um deve fazer no cotidiano – gastar menos água, produzir menos lixo, andar mais a pé – até o envolvimento nas questões políticas”, conclui. Angela Küster é doutora em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim. Foi assistente de coordenação e informação das organizações ambientalistas no “Fórum Clima”, em 1995. Em 1989 e 1992 realizou pesquisas em Angola e desde 1996 reside no Brasil, em Fortaleza, Ceará, onde desenvolveu sua tese de doutorado com apoio da Fundação Heinrich Böll. Desde 2001, coordena projetos da Fundação Konrad Adenauer, escritório Fortaleza. É autora do livro Democracia e Sustentabilidade – experiências no Ceará, Nordeste do Brasil, publicado pela Fundação Konrad Adenauer, em 2003. Camponesa – O que é o Projeto Agricultura Familiar, Agroecologia e Mercado (AFAM) e quais os resultados alcançados por ele até o presente momento? O Projeto Agricultura Familiar, Agroecologia e Mercado – AFAM é co-financiado pela União Europeia e coordenado pela Fundação Konrad Adenauer Stiftung, tendo atualmente como parceiros o Núcleo de Iniciativas Comunitárias – NIC, o Instituto Sesemar, a Agência de Desenvolvimento Local – ADEL e o Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Ceará - UFC. O Projeto tem por objetivo contribuir com a melhoria da qualidade de vida de agricultores(as) familiares no nordeste do Brasil, com o fortalecimento da organização social da agricultura familiar ecológica e sustentável, viabilizando o acesso aos mercados, apoiar processos de sistemas de garantia participativos e a construção participativa de conhecimentos agroecológicos. O Estado do Ceará é composto por 184 municípios. Deste total, o projeto AFAM atua diretamente em 39 municípios, em três territórios no Ceará que são: Maciço de Baturité, que congrega 13 municípios; Sertão Central, com 07 municípios; e Vales do Curu e Aracatiaçu, com 18 municípios. Trabalhamos nos eixos de ação: fortalecimento da organização solidária dos agricultores familiares; construção participativa do conhecimento agroecológico; melhoria do acesso aos mercados; formulação
de políticas públicas; articulação de redes agroecológicas e certificação participativa. Dentre os resultados alcançados pelo Projeto AFAM destacamos os indicadores de análise relacionados diretamente ao processo de formação de multiplicadores: 182 agricultores/as familiares, jovens e técnicos formados como agentes multiplicadores em agroecologia, difundindo e multiplicando conhecimentos agroecológicos; 880 agricultores familiares usando tecnologias agroecológicas na produção; reflorestamente de três áreas; 3 unidades demonstrativas implementadas nos territórios; 3 cartilhas utilizadas em 09 estados do Nordeste em cursos e outros eventos. Camponesa – Que desafios a experiência deste projeto identifica para o fortalecimento da agricultura familiar no Nordeste? Um dos maiores desafios é a descontinuidade de programas governamentais e de projetos da sociedade civil, além da precária
“O desenvolvimento é entendido como ‘crescimento’ e assim ainda estamos longe de um outro modelo de desenvolvimento”
assistencia técnica, falta de infraestrutura e de organização social. Camponesa – Que avanços a senhora visualiza no fortalecimento da agricultura familiar e na reforma agrária no Nordeste? O que ainda falta fazer no âmbito das políticas públicas? No país estão em curso dois modelos de agricultura – a agroindústria e a agricultura familiar. Houve avanços no apoio a agricultura familiar, mas a agroindústria recebe um investimento muito maior. O Brasil precisa optar mais claramente pela agricultura familiar agroecológica como novo modelo, forçando a agroindústria a abandonar a produção aos custos da saúde e do meio ambiente, exportando os bens públicos para outros países, deixando a devastação dos solos e a poluição da água para trás. O mesmo vale para a reforma agrária. Ela não foi feita de forma decisiva, com a integração das políticas públicas para viabilizar a sustentabilidade dos assentamentos. Hoje consta, que a maioria é improdutiva, mas isso porque demora muito tempo para colocar a infraestrutura necessária nos assentamentos. Às vezes, as comunidades esperam 5, 10 ou 20 anos para receber água, luz, estradas, escolas e outros equipamentos. Assim mesmo, depois da regularização, as terras continuam improdutivas. E ainda existem muitas terras na mão de poucos empresários.
7
Camponesa - Novembro de 2009
Camponesa – Em sua opinião, a agricultura familiar deve produzir energia usando plantas e sementes? Por quê? A opção por agrocombustíveis é incoerente, primeiro porque ainda tem milhões de pessoas sofrendo de fome, enquanto se destinam áreas enormes para a plantação de cana de açucar e sementes oleosas com o objetivo de locomover automóveis. Segundo porque não teve um investimento maior em tecnologias alternativas, nem no transporte público, pois o Brasil optou pelo transporte rodoviário ao invés de investir em outros meios como a ferrovia. Agora, com a descoberta de petróleo no fundo do mar, o agrocombustível voltou ao segundo plano, mas não se discute como mudar o sistema de transporte de forma que se viabilize a mobilidade da sociedade de forma coletiva e sem poluir o ambiente, nem explorar as terras. Existem alternativas a essas duas opções. Mas o transporte não é discutido de forma objetiva, o carro não é um meio de transporte, é um fetiche da individualidade moderna, um objeto de desejo, que se procura manter a todo custo.
www.aaccrn.org.br
“O Brasil precisa optar mais claramente pela agricultura familiar agroecológica como novo modelo” qual a senhora é uma das elaboradoras, a obra “História da Alimentação no Brasil”, de Luís da Câmara Cascudo, é citada como referência do tema. Em que medida esta obra ajuda a pensar a soberania alimentar no Brasil? O livro “História da Alimentação no Brasil” aborda de uma maneira bastante clara a relação da alimentação com a cultura de um grupo, evocando a dualidade entre o banal e o sagrado contido nela. Certamente esta é a grande contribuição de Câmara Cascudo para a compreensão da soberania alimentar.
Camponesa – Na região Nordeste do Brasil, as sementes crioulas – sementes com uma grande variedade genética, por serem selecionadas nos plantios ao longo de gerações e adaptadas às condições locais – foram substituídas por sementes compradas ou distribuídas pelos governos. Quais as conseqüências disso e como os agricultores familiares têm enfrentado essa situação? Precisamos urgentemente de um movimento nacional e internacional para salvar as sementes crioulas, que estão se perdendo. De acordo com a FAO (1989), os agricultores utilizavam cerca de dez mil espécies de plantas na agricultura. Atualmente, se estima que 90% da produção agrícola fazem uso de apenas 120 espécies. Dessa forma, o agroecossistema fica vulnerável, favorecendo pragas e doenças, alterações climáticas locais e globais, intensificado a erosão e o declínio da produtividade. Estamos, como muitas outras iniciativas no Nordeste, procurando conscientizar os agricultores sobre as desvantagens das sementes híbridas e transgênicas. Um exemplo é a rede de sementes na Paraíba, as sementes da paixão, como são chamados por lá, são guardadas. Muitas comunidades têm construído casas de sementes ou bancos de sementes, onde estocam e trocam as sementes. Na Paraíba avançaram também com uma lei, que reconhece as sementes crioulas como sementes, e não como grãos. Assim se viabiliza que o Governo possa distribuir as sementes crioulas. Precisamos de iniciativas como essas nos outros estados nordestinos.
Camponesa – Atualmente, muitos governos, têm declarado o seu interesse em preservar o ecossistema global e construir um novo equilíbrio, aderindo ao chamado “desenvolvimento sustentável”. No plano teórico, é quase consensual a tese de que é necessário um novo modelo de desenvolvimento. Por outro lado, há quem se pergunte: se é desenvolvimento, pode ser sustentável? Como a senhora se posiciona nesse debate? Realmente, o conceito de “desenvolvimento sustentável” foi mais um compromisso para conseguir acordos entre os governos e empresas, mas o desenvolvimento é entendido como “crescimento” e assim ainda estamos longe de um outro modelo de desenvolvimento. As mudanças são lentas e o processo dos acordos internacionais está tomando já décadas, sem que vejamos medidas mais drásticas para prevenir as mudanças climáticas e a degradação ambiental. O problema é que construímos um modelo econômico na hipótese de que a natureza – a terra, a água e o ar – está eternamente disponível e só entram nos custos de produção a chamada matéria-prima e o trabalho. Os custos da poluição dos solos, da água e do ar ficam para a sociedade e todos estamos pagando por isso de alguma forma, enquanto poucos enriqueceram. O desenvolvimento poderia até ser sustentável, mas seguramente não dessa forma. E na palavra em português, poderíamos deixar o “des” fora, que é até negativo, e falar mais de um envolvimento. Precisamos do envolvimento de todos e todas desde as pequenas ações que cada um deve fazer no cotidiano – gastar menos água, produzir menos lixo, andar mais a pé – até o envolvimento nas questões políticas.
Camponesa – Na cartilha “Agroecologia – garantindo a segurança alimentar”, da
Camponesa – O Programa de Aquisição de Alimentos – PAA foi instituído pelo Artigo
8
19 da Lei nº 10.696 e regulamentado pelo Decreto 4.772, ambos de 02 de julho de 2003, tendo como objetivo incentivar a agricultura familiar. Suas ações envolvem a aquisição de produtos da agricultura familiar, que são distribuídos para pessoas em situação de insegurança alimentar ou formam estoques estratégicos. Compondo o Fome Zero, essas ações integramse a um leque mais amplo de políticas voltadas ao fortalecimento da segurança alimentar e nutricional do país. Em sua opinião, qual o alcance e o impacto desse Programa na agricultura familiar da região Nordeste? O PAA teve um impacto significativo para a agricultura familiar. Ele incentivou os agricultores a se organizar melhor para poderem comercializar coletivamente. A compra direta oferece uma oportunidade para acessar o mercado ao mesmo tempo em que estimula as prefeituras a comprar produtos dos seus municípios e da região. Além disso, oferece uma alimentação mais saudável para os alunos nas escolas. Ainda é difícil para muitos agricultores se organizar e vencer as burocracias para entrar no Programa, mas é importante e como já virou lei, que as prefeituras têm que comprar 30% da merenda escolar no município, espera-se que o PAA continue nos próximos governos. Camponesa – Que papel joga o consumidor na afirmação do princípio da soberania alimentar? O papel do consumidor é decisivo porque ele tem o poder de comprar ou não um produto. Optando por alimentos industrializados e/ou importados fragiliza a soberania alimentar. Ao contrário, para fortalecer a soberania alimentar deve-se optar pelo consumo de frutas, verduras e outros produtos, de preferência da agricultura familiar, agroecológicos, da própria região e considerando as épocas de safra. Camponesa – Como a senhora tem visto a participação das mulheres nas experiências de agricultura familiar no Nordeste? Que significado tem esta participação? A participação das mulheres aumentou consideravelmente e muitas vezes são elas, que iniciam a produção agroecológica nos seus quintais, garantem a segurança alimentar da família e ainda levam os produtos para as feiras. As mulheres são cada vez mais reconhecidas como agricultoras e a agroecologia mudou a vida de muitas delas, mostrou perspectivas para a sua emancipação. Precisamos, agora, também aumentar a participação dos jovens, para que eles tenham também orgulho de serem agricultores e agricultoras e não deixar mais as suas terras para tentar sobreviver nas grandes cidades superlotadas.
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
Entrevista: Henrique Carneiro
O modelo alimentar do fast-food é pernicioso Comer é um ato social na medida em que o alimento revela a forma como as sociedades se abastecem e se organizam política, social e culturalmente
O
“
modelo alimentar do fast-food derivado de uma cadeia alimentar agroindustrial é pernicioso do ponto de vista da saúde e da autonomia e identidade cultural dos povos da terra”, afirma Henrique Carneiro, que considera o livro “História da Alimentação no Brasil”, de Luís da Câmara Cascudo, o “mais importante, pela amplitude e erudição” na historiografia da alimentação no Brasil apesar do “ecletismo teórico” e de “um excessivo empirismo”. Nesta entrevista à Revista AACC/RN, Henrique Carneiro afirma ainda a condição onívora do ser humano embora, no século XX, as populações dos países ocidentais tenham retomado o vegetarianismo por influências orientais mas, também, como “atitude de crítica ao modelo agroindustrial devido a suas conseqüências nefastas do ponto de vista socioambiental”. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese Afrodisíacos e alucinógenos nos herbários modernos: a história moral da botânica e da farmácia séculos XVI ao XVIII, Henrique Carneiro é professor de História Moderna da USP, tem experiência na área de História, onde leciona e desenvolve pesquisas em História da Alimentação, das Bebidas e das Drogas. Entre suas principais publicações estão os livros: Comida e sociedade. Uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003, e Pequena enciclopédia de história das drogas e bebidas. 1. ed. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2005.
Camponesa – Qual a finalidade do ato de comer? Em que medida “somos o que comemos”? Obviamente, os organismos vivos se alimentam para repor a energia perdida e constituir os seus corpos. Mas esse ato biológico nutritivo se torna o mais importante socialmente, revelando tanto a capacidade econômica das sociedades se abastecerem, como a forma social e política de dividirem a comida e os demais produtos e, de forma talvez ainda mais significativa, plasmando um conjunto de hábitos e regras culturais sobre os alimentos. Camponesa – Que lugar ocupa a obra “História da Alimentação no Brasil”, de Luís da Câmara Cascudo, na historiografia da alimentação no Brasil? É até hoje, certamente, o livro mais importante, pela amplitude e erudição. Suas debilidades: um ecletismo teórico e mesmo
um excessivo empirismo, não diminuem a importância desta obra.
ausência de liberdades durante o próprio regime militar.
Camponesa – Como esta obra pode ajudar a pensar a soberania alimentar no Brasil? Este aspecto é menos presente no livro de Cascudo, mais voltado para os aspectos socioculturais do que para a elaboração de políticas concretas relativas ao tempo presente, no sentido político o autor foi bastante conservador e vinculado aos poderes vigentes, sem grande crítica aos aspectos de injustiça social e de
Camponesa – Historicamente, que relação se estabelece entre o consumo de alimentos de origem animal e a dieta vegetariana? O ser humano é, por essência, um ser carnívoro? Quais as conseqüências disso? O ser humano, desde a domesticação dos grãos e dos animais, na chamada revolução neolítica, viveu predominantemente de cereais e outros produtos vegetais. A carne sempre foi alimento de luxo, aristocrático. Apenas no século XX que os derivados da carne se tornaram um consumo predominante em certos países industrializados, como os EUA, causando diversos problemas de saúde, tais como obesidade e males cardiovasculares. O ser humano é onívoro. O debate sobre o consumo de carne é muito antigo. Os hinduístas condenam a carne. Pitágoras
“O modelo agroindustrial globalizado traz danos socioambientais irreparáveis, devido ao uso excessivo de fertilizantes”
9
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
“O modelo alimentar do fast-food derivado de uma cadeia alimentar agroindustrial é pernicioso do ponto de vista da saúde e da autonomia e identidade cultural dos povos da terra” no Ocidente, e depois Plutarco e, na Idade Média, os cátaros, hereges combatidos e massacrados pela Igreja, foram todos vegetarianos. No século XX, houve uma retomada do vegetarianismo nos países ocidentais devido a mudanças culturais, abertura à influências orientais e uma atitude de crítica ao modelo agroindustrial devido a suas conseqüências nefastas do ponto de vista socioambiental. Camponesa – Nesses tempos de globalização, observa-se a ocorrência de uma padronização cada vez maior dos produtos consumidos, dos comportamentos alimentares e dos gostos. Caminhamos para formas de alimentação idênticas entre diferentes povos? Que implicações têm isso? O modelo agroindustrial globalizado traz danos socioambientais irreparáveis, devido ao uso excessivo de fertilizantes, alterando o ciclo do nitrogênio e produzindo eutrofia nas águas, e também do uso de agrotóxicos, monocultura e sementes transgênicas, que, diferentemente da agricultura familiar, levam a desigualdade social, concentração de renda, poluição, aumento do aquecimento global. Além disso tudo, o modelo alimentar do fastfood derivado de uma cadeia alimentar agroindustrial é pernicioso do ponto de vista da saúde e da autonomia e identidade cultural dos povos da terra. Camponesa – Que desafios se apresentam à pesquisa historiográfica no campo da alimentação? A maior de todas é obter fontes, pois quanto mais remoto o período histórico mais as fontes são escassas. Depois é preciso diferenciar os grupos sociais internos a cada sociedade, pois as suas práticas e representações alimentares não são as mesmas. Finalmente, é preciso comparar sempre e o máximo possível para tentar escapar dos particularismos e tentar alcançar descrições mais dinâmicas e abrangentes que devem ir em direção de uma história “total”, como dizia Lucien Febvre1, fugindo de uma historiografia que faça dos próprios alimentos um sujeito histórico. 1 Lucien Febvre, nascido em 22 de julho de 1878 e falecido em 11 de setembro de 1956, foi um historiador francês, co-fundador da chamada “Escola dos Annales”.
10
Próximo número da Camponesa:
Eleições 2010: o que vem lá?
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
Entrevista: Neneide Lima
“Eu gosto de ser trabalhadora rural” Francisca Eliane de Lima conta como surgiu a experiência produtiva do Grupo de Mulheres Decididas a Vencer, do Assentamento Mulunguzinho, em Mossoró, e mostra as mudanças que este acontecimento provocaram em sua vida e na vida de outras mulheres da região
N
“
o início, a gente não pensava em grupo de produção. A gente pensava em ir atrás dos direitos. Por que as mulheres eram tão isoladas das discussões do Assentamento?”, afirma Neneide Lima, em entrevista concedida à Camponesa, na sede da Rede Xique Xique de Comercialização Solidária, em Mossoró (RN). Neneide fala de onde vem a alimentação das pessoas que vivem no Assentamento Mulunguzinho, de como surgiu o grupo produtivo, o que e como produz, o destino da produção do grupo, a distribuição dos resultados do trabalho, as dificuldades, os apoios recebidos, as influências que marcam sua trajetória, as mudanças ocorridas em sua vida e na própria comunidade a partir dessa experiência. Diz do seu prazer em trabalhar com a terra e com firmeza acrescenta “não queríamos produzir só para livrar as hortaliças de produtos químicos e não ter mais nenhuma preocupação com nada. A gente queria ir além disso. A gente queria ter um produto agroecológico, não pensar só no valor monetário mas noutras relações de economia solidária, de agroecologia, da questão do meio ambiente.” Neneide Lima é assentada do Assentamento Mulunguzinho, em Mossoró (RN), onde vivem 112 famílias e cerca de 500 habitantes, e é integrante da coordenação da Rede Xique Xique de Comercialização Solidária.
Camponesa – O Assentamento Mulunguzinho, em Mossoró/RN, é constituído por 112 famílias. De onde vem a alimentação dessas famílias? O que é produzido e consumido no próprio assentamento? A alimentação do assentamento vem muito de produtos adquiridos na cidade de Mossoró. Como Mulunguzinho fica neste município, as pessoas vêm fazer feira aqui, em Mossoró. Só que tem muita coisa que é produzida lá no Assentamento. Por exemplo: eu não compro fruta porque hoje, nessa época, eu tenho sirigüela, caju, mamão, manga, goiaba, acerola. Tudo isso tem no Assentamento, além dos produtos que são de sequeiro, de roçado. Só compra feijão quem não planta ou quem planta mas tem uma colheita pequena. Quando o meu lote não dá milho, eu compro milho do vizinho. Milho e feijão, que são de sequeiro, a gente compra dentro do próprio assentamento quando não planta. O que a gente
compra fora do assentamento são produtos que a gente não produz, como arroz, massas (o macarrão, por exemplo). E têm as hortaliças. Como eu sou do grupo de mulheres, onde a gente produz também hortaliças, o Assentamento também disponibiliza hortaliça. Tanto eu tenho pra consumo como também o pessoal do Assentamento compra lá na horta. Do coentro à
“A gente queria ter um produto agroecológico, não pensar só no valor monetário mas noutras relações de economia solidária, de agroecologia, da questão do meio ambiente”
cebolinha, cenoura, beterraba... Só não temos o que não é de nossa região, como a batatinha. Têm pessoas que ainda compram batatinha, chuchu, mas o que a gente tem no assentamento dá conta. Têm pessoas que têm a diversidade no seu quintal. Minha mãe mesmo tem a horta dela no quintal. Também é muito raro as pessoas no Assentamento comprarem ovo, tem muita galinha lá, tanto se consome a carne quanto o ovo. Camponesa – Você participa do Grupo de Mulheres Decididas a Vencer, constituído por mulheres do assentamento Mulunguzinho. Como surgiu o grupo? O grupo surgiu a partir da participação de algumas mulheres num evento que teve aqui em Mossoró, há alguns anos, promovido pelo Centro Feminista 8 de Março1 e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais. E, nesse encontro, elas perceberam que existiam
11
Camponesa - Novembro de 2009
vários outros grupos de mulheres organizados e que no Assentamento Mulunguzinho não existia grupo. Isso foi por volta de 1994. Minha mãe participou dessa atividade, ela era presidente do Assentamento, eu não era inserida no processo ainda. Elas voltaram desse evento decididas a formar um grupo de mulheres dentro do Assentamento. Nessa época, não tínhamos ainda nem agrovila. Cada qual morava nos seus lotes, nas suas casas, e elas andaram a pé nos lotes, de carroça, e conseguiram juntar um número de mulheres, e convidaram o Centro Feminista 8 de Março pra fazer uma reunião com as mulheres. E foi aí que tivemos a nossa primeira reunião, pra realmente ter um grupo de mulheres no Assentamento. No início, a gente não pensava em grupo de produção. A gente pensava em ir atrás dos direitos. Por que as mulheres eram tão isoladas das discussões do Assentamento? Da discussão de crédito, de ser sócia da associação porque só quem podia se associar eram os homens, raramente se tinha uma mulher como titular, apenas aquelas que não tinham marido. Minha mãe foi presidente porque ela era titular do lote mas a maioria das outras mulheres ficavam só em casa, não participavam das reuniões. Depois de muito tempo de organização, a gente percebeu que vinha crédito pras famílias, que era dito que era pra família, mas só quem tinha direito de comprar, de mexer com o dinheiro eram os homens. E foi aí que reivindicamos ao Centro Feminista 8 de Março um encontro de trabalhadoras rurais onde o tema fosse “Geração de Renda para as Mulheres”. E aí foi quando a gente veio para esse encontro e foram convidados vários grupos de mulheres e várias agências financiadoras. E teve uma agência que se interessou pelo grupo de Mulunguzinho. 1 Centro Feminista 8 de Março é uma organização feminista que acompanha grupos de mulheres e jovens mulheres da periferia de Mossoró, assentamentos da zona rural da cidade e municípios vizinhos da região. Articula também atividades, cursos, seminários e palestras junto aos movimentos sociais rurais e urbanos. Maiores informações no site: www.cf8.org.br.
Camponesa – O grupo produtivo: o que e para quem produzir? Tivemos muita reunião pra discutir o que a gente queria. A gente pensou em beneficiar uma fábrica de doces porque existia um megaprojeto de irrigação lá em Mulunguzinho, que até hoje ainda existe. Como estava no início, pensamos em fazer doces das frutas que vinham desse projeto e, também, desse recurso a gente ia comprar freezers, uma estrutura e tal. Depois refletimos: “Ora, vamos começar uma coisa pra depender dos outros, dos homens?”. A gente continuaria dependendo dos homens. E ainda bem que a gente desistiu disso porque até hoje ainda não vi fruta desse projetão. Depois pensamos em criar galinhas mas logo desistimos. A gente queria uma coi-
12
www.aaccrn.org.br
“O grupo de mulheres surgiu a partir dessa concepção de auto-organização e da vontade de dar visibilidade às mulheres dentro do Assentamento na luta por direitos” sa que fosse iniciativa nossa, que dependesse do nosso esforço e que também não nos tirasse de nossas raízes, que era ser trabalhadora rural, lutar com a terra, produzir. Foi aí que chegamos nas hortaliças, que também iriam servir pra nossa alimentação. Mas qual hortaliça? Dessa hortaliça convencional? Na época, hortaliça estava no auge, as hortaliças orgânicas. Era 8% mais caro no mercado e nós pensávamos em ganhar dinheiro, em melhorar de vida. E foi aí que a gente chegou na horta orgânica. Se queremos horta orgânica, vamos ver no grupo de mulheres (30 mulheres), quem se interessa, quem quer participar. Eu sei que ficamos com nove mulheres. Começamos nesse projeto, cercar o terreno, adubação natural e as primeiras sementes. Tivemos cursos de formação em agricultura orgânica porque a gente era acostumada ao padrão convencional; e cursos de contabilidade, como fazer a gerência. No decorrer do processo, percebemos que não queríamos produzir só para livrar as hortaliças de produtos químicos e não ter mais nenhuma preocupação com nada. A gente queria ir além disso. A gente queria ter um produto agroecológico, não pensar só no valor monetário mas noutras relações de economia solidária, de agroecologia, da questão do meio ambiente. Chegamos a ter mais de 60 variedades de coisas dentro da horta. Ficou um negócio muito cheio, muito diverso. Teve um período que resolvemos trabalhar só com 15 produtos porque não tínhamos condições de ficar com tanta produção. Camponesa – Quantas mulheres participam do grupo atualmente e o que o grupo produz? Nós temos o grupão e o grupo produtivo. O grupão discute essa parte organizacional, essa parte que discute direitos, saúde, reivindicações para o Assentamento, participa da Marcha Mundial das Mulheres2, do Grito dos Excluídos3, do Encontro dos Trabalhadores Rurais, que está muito na discussão política e do Assentamento, e temos o grupo produtivo. Hoje o grupo produtivo tem só 5 mulheres e o grupão tem pouco mais de 20 mulheres. O grupo de mulheres surgiu a partir dessa concepção de auto-organização e da vontade de dar visibilidade às mulheres dentro do Assentamento na luta por direitos, por igualdade. Só depois é que surgiu o grupo produtivo.
2 A Marcha Mundial das Mulheres é uma ação do movimento feminista internacional de luta contra a pobreza e a violência sexista. Sua primeira etapa foi uma campanha entre 8 de março e 17 de outubro de 2000. Aderiram à Marcha 6000 grupos de 159 países e territórios. As manifestações de encerramento desta primeira fase da Marcha no dia 17 de outubro de 2000 mobilizaram milhares de mulheres em todo o mundo, nesta ocasião foi entregue a ONU um abaixo assinado com cerca de 5 milhões de assinaturas em apoio às reivindicações da Marcha. Maiores informações: www.sof.org.br/marcha/. 3 O Grito dos Excluídos é uma manifestação popular carregada de simbolismo, é um espaço de animação e profecia, sempre aberto e plural de pessoas, grupos, entidades, igrejas e movimentos sociais comprometidos com as causas dos excluídos. Maiores informações: www.gritodosexcluidos.org/.
Camponesa – Como se dá a organização do trabalho no grupo produtivo? O grupo surgiu com a horta e hoje nós temos um sistema de produção integrado. Trabalhamos com três produtos ou três cadeias: apicultura, hortifrutigranjeiro e caprinovinocultura. O grupo de caprino envolve o grupo de mulheres e outras pessoas do assentamento, trabalha desde a parte de abate até o beneficiamento. O grupo de apicultura é só o nosso grupo de mulheres. Como a apicultura tem uma demanda pontual, não é permanente, a gente faz a revisão de 15 em 15 dias, e faz a colheita no tempo da colheita, três por ano. Que é nisso que hoje eu estou participando porque eu estou liberada pelo grupo para a coordenação da Rede Xique Xique de Comercialização Solidária4. Tem a parte de hortifrutigranjeiros. Hoje, trabalha-se de 6h:30 até 11h e de 15h:30 até às 17h:30. Tem todo um calendário de atividades: desde ações que fazemos juntas (canteiro, limpar a área...) até outras individualizadas. Toda terça-feira é dia de plantar canteiro pois trabalhamos no sistema de entrega de cestas, tem que ter planejamento semanal para que todo mês tenha aquela cesta. Tem as mulheres que raleiam, as que plantam mudas, a que cuida da bandeja. E, além da produção em si, a gente é quem faz a gestão, aí tem a contabilidade, tomar de conta dos recibos, das notas. Esse manejo é feito entre essas cinco mulheres. A horta produz alface, coentro, cebolinha, beterraba, cenoura, jerimum, rúcula, berinjela, pimentão, toda essa variedade. Além disso tem as frutas, temos mamão, goiaba, manga, acerola. E outras coisas, como a macaxeira. 4 A Rede Xique-Xique de Comercialização Solidaria constituída em 2003, é resultante de um processo de construção coletiva com participação de grupos produtivos de áreas reformadas de nove municípios: Apodi, Baraúna, Grossos, Governador Dix-Sept Rosado, Janduis, São Miguel do Gostoso, Mossoró, Serra do Mel e Touros. Em sua maioria, esses grupos são formados por mulheres, que produzem mel de abelha, castanha de caju, artesanato de palha, sisal e sementes, marisco, além de derivados da caprinocultura e hortifrutigrangeiros, seguindo os princípios da agroecologia. A Rede tem sede em Mossoró, cidade-pólo da Região Oeste do Estado do Rio Grande do Norte.
Camponesa – Qual o destino da produção do grupo? A alimentação no próprio Assentamento e a Rede Xique Xique de Comercialização Solidária, para o grupo de consumidores que temos, a quem fazemos a entrega de cestas. Quando decidimos produzir hor-
Camponesa - Novembro de 2009
taliças já pensamos em pra quem íamos vender. O Centro Feminista 8 de Março, a Terra Viva5, a AACC/RN, a COOPERVIDA6 começaram a convidar pessoas que gostariam de consumir hortaliças. Marcavam uma reunião com essas pessoas e nós vínhamos. Era uma festa. A gente vinha para o que chamávamos de “assembleias” pra discutir a quem iríamos entregar essas verduras. Antes da Rede Xique Xique, criamos a “Associação dos Parceiros da Terra – APT”. A gente produzia o que as pessoas queriam, entregávamos a cesta padrão e, nessas assembleias, discutíamos o preço. Toda semana a pessoa recebia uma cesta, que tinha tudo o que produzíamos no Assentamento e a gente entregava nas entidades. Essas pessoas do grupo de consumidores eram de classe média, pessoas da universidade, médicos etc. Chegamos a entregar de 50 a 60 cestas por semana. As pessoas vinham pegar nas entidades. Atualmente, o grupo de consumidores tem cerca de 30 a 40 participantes. Varia muito. Algumas pessoas se mudam, outras saem do grupo e depois voltam. 5 O Centro de Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura Familiar - Terra Viva, foi constituído em 03 de outubro de 1997, por um grupo multidisciplinar de profissionais autônomos, inicialmente sob o nome de Cooperativa de Trabalho para a Agricultura Familiar do Oeste Potiguar - Terra Viva. O Centro Terra Viva vem desenvolvendo, ao longo desses anos, ações baseadas em metodologias sintonizadas com as características dos trabalhadores e das trabalhadoras dos assentamentos da Reforma Agrária e comunidades rurais, nos mais diversos programas e projetos de assessoria técnica e capacitação. Maiores informações: www.terravivarn.org.br/. 6 A Cooperativa de Assessoria e Serviços Múltiplos ao Desenvolvimento Rural – COOPERVIDA é uma entidade que desenvolve suas ações voltadas para o desenvolvimento rural, numa perspectiva agroecológica, pautada na equidade de gênero e geração, que tem como missão “trabalhar atividades que promovam o desenvolvimento sustentável, considerando a cultura e os recursos naturais existentes, promovendo/potencializando a transformação da sociedade, mediante a construção de novos valores que possibilitem a igualdade de gênero e etnia, melhorando a qualidade de vida e o exercício da cidadania”. Maiores informações: http:// coopervidarn.org/?pagina=acoopervida.
Camponesa – Como o resultado da produção se distribui entre as participantes? Cada pessoa tira, durante o dia, o que necessita pra se alimentar. Isso é uma coisa. A outra coisa, o dinheiro que a gente apura vendendo hortaliças, em primeiro lugar, é destinado às despesas da horta. Não temos subsídio, a horta se mantém com os próprios recursos. A gente paga energia, que é altíssima porque temos um poço de 1.500m, um poço que estava desativado e nós reativamos. Energia do poço e da irrigação da horta. Pagamos esterco (antes a gente ia buscar no curral), hoje um carro vem direto deixar; o frete do carro. Terminou isso, tirou o dinheiro das despesas, o que sobra a gente divide em partes iguais entre as cinco mulheres. Camponesa – Quais as principais dificuldades enfrentadas pelo grupo, atualmente? Já passamos por muitas dificuldades. Por estarmos no semiárido, a necessidade de água é muito grande e quando nos decidimos
www.aaccrn.org.br
“Se hoje nós temos crédito, como trabalhadoras rurais, é porque alguém se organizou e foi buscar isso” pelas hortaliças não pensamos nisto. Hoje nos preocupamos muito em como poupar, como reduzir, a história das “coberturas mortas”7, todo esse manejo. Essa é uma dificuldade pela qual a gente paga caro. Por isso que hoje a horta não tem um rendimento melhor. Outra coisa é a mão-de-obra porque nós escolhemos uma atividade, que a maioria das mulheres dentro do assentamento não tem condições de trabalhar, por serem idosas ou terem muitos filhos. Por mais que as pessoas pensem que a igualdade já existe mas a gente sabe que ainda tem muita desigualdade, as mulheres não tem com quem deixar os filhos. Como a horta necessita de mão-de-obra diária, temos muita dificuldade. Tentamos agora envolver algumas jovens mas o trabalho é muito pesado. A gente disse que elas ficariam na parte mais maneira de limpar os canteiros, limpar com a mão, ralear, mas elas não conseguiram. Não queríamos funcionárias, queríamos pessoas que se sentissem donas, parte do processo. Um dos critérios que a gente usa para entrar no grupo de produção é que, pelo menos, a pessoa passe pelo grupo de mulheres pra ter o convívio de trabalho com outras pessoas. 7 “Cobertura morta “ é a prática agrícola de cobrir a superfície do solo com uma camada de material orgânico, como a palha ou cascas que sobraram de outros cultivos. Visa proteger o solo do impacto direto das chuvas e da radiação solar mediante a colocação de materiais diversos sobre a sua superfície. Ajuda também a manter a umidade do solo, dificulta o aparecimento do mato, evita a evaporação da água e mantém o ponto de aeração do solo que é a circulação do ar nos espaços do solo, essencial a respiração das raízes das plantas e demais organismos vivos.
Camponesa – O grupo conta com algum tipo de assistência ou apoio? Como isso acontece? Nós nunca ficamos sem assessoria. Por mais que as entidades passem por dificuldades, a gente sempre teve apoio ou diretamente em assessorias ou em projetos especiais dessas entidades que eu citei. A AACC/RN sempre contribuiu com tudo que nós temos e somos. O Centro Feminista 8 de Março tem duas agrônomas que acompanham o grupo. O Centro Terra Viva teve um período que dava assessoria no Assentamento e também tinha a preocupação de passar lá na horta, de saber como a gente estava. Tem o PDA Margarida Alves8 que sempre está por lá. E a gente tem até consumidores mesmo que ajudam, dando assessoria quando a gente precisa. Relação com as Universidades, visitas de alunos. Atualmente, a assessoria vem mais diretamente do Centro Feminista 8 de Março, na parte de organização e de assesso-
ria técnica com as agrônomas. Hoje, até a Prefeitura disponibiliza um agrônomo que está lá, também, junto. 8 A Visão Mundial é uma organização não governamental cristã, brasileira, de desenvolvimento, promoção de justiça e assistência, que, combatendo as causas da pobreza, trabalha com crianças, famílias e comunidades a fim de que alcancem seu potencial pleno. Dedica-se a trabalhar lado a lado com as populações mais vulneráveis e a servir a todas as pessoas, sem distinção de religião, raça, etnia ou gênero. Nos mais de 100 países onde atua, a Visão Mundial trabalha com uma ferramenta chamada Programa de Desenvolvimento de Área – PDA. A tecnologia do PDA fortalece nas comunidades as noções de cidadania, mobilização comunitária e defesa de direitos, com foco nas áreas de educação, saúde e segurança alimentar, desenvolvimento econômico, agroecologia, organização comunitária, promoção de justiça, formação sociopolítica e compromisso cristão, além de socorro e reabilitação em situações de emergência. É a esta ferramenta que Neneide está se referindo. Maiores informações: www.visaomundial.org.br/.
Camponesa – A Rede Xique Xique de Comercialização Solidária, que atualmente conta com mais de 50 grupos participantes, teve seu início na experiência de organização, produção e comercialização do Grupo de Mulheres Decididas a Vencer. Como a Rede Xique Xique fortaleceu o trabalho do Grupo de Mulheres Decididas a Vencer? Quando a gente começou com a “Associação de Parceiros da Terra – APT”, tivemos muitos intercâmbios. Fomos visitar uma experiência em Fortaleza, juntos com outros grupos de Apodi, e lá nessa visita, percebemos que existia também entrega de cestas e que não era só hortaliça. Tinha queijo, galinha, outras coisas. E a gente veio com a ideia de criar isso aqui em Mossoró. De deixar de ser o grupo de Mulunguzinho, que entregava cestas, e pensar em algo maior, que envolvesse outros grupos, outras cooperativas, outras pessoas. Junto a isso, o PDA (da Visão Mundial) estavam pensando em construir uma Central de Comercialização para os grupos e famílias que acompanhavam. Existia uma produção e não tinha onde as pessoas escoar esta produção. Decidimos somar com a ideia do PDA, chamar outras entidades e construir essa Central juntos. Achamos o nome Central muito pesado e juntos pensamos em construir algo que estivesse a altura dos trabalhadores e trabalhadoras, artesãos, grupos urbanos e rurais. Não queríamos um mercado convencional, queríamos uma coisa diferente, onde as relações fossem diferentes. Aí pensamos no espaço de comercialização solidária e numa carta de princípios que regulasse a participação nessa construção. Nasce a Rede Xique Xique de Comercialização Solidária Começamos a construir isso. O PDA tinha um projeto que bancava o aluguel de um espaço e começamos a ter essa dinâmica de formação e, também, de comercialização. Surgiu o espaço. Como a gente não perdeu essa dinâmica de se reunir, de dialogar, dissemos: “Não queremos só o espaço”. Não adianta trazer os produtos de Apodi, São Miguel do Gostoso e não ter uma dinâmica em cada município. Foi aí, depois de um ano, em 2004, que construímos a Rede Xique Xique. O es-
13
Camponesa - Novembro de 2009
critório da Rede é em Mossoró mas a rede é formada pelos núcleos. E a Rede adquiriu essa dinâmica. Com isso, pudemos nos aproximar de outros grupos. A Rede fortaleceu nessa integração com outras pessoas porque éramos sós. Hoje, trabalhamos fortemente a agroecologia, a economia solidária e o feminismo porque a Rede Xique Xique bebe muito da fonte dos grupos de mulheres organizados. Têm muitos grupos na rede e a gente consegue se entrelaçar nesses temas que a Rede hoje trabalha. Camponesa – Qual a relação da Rede Xique Xique com as instituições de apoio às comunidades rurais? O que precisa melhorar nesta relação? Desde o início até hoje, as instituições tem um papel fundamental na Rede porque hoje a gente considera a Rede Xique Xique como de produtores e produtoras, de artesãos e artesãs, mas se não fossem as parcerias a Rede não existia. Mesmo que as assistências técnicas, parcerias e entidades de apoio não tenham direito a voto na Rede porque são os trabalhadores e trabalhadoras que tomam as decisões finais, mas essas entidades trazem formação em economia solidária, agroecologia e dão sua contribuição pra gente poder estar aqui. No início da Rede, o Conselho Diretor ou os grupos que vinham, só vinham porque essas assessorias estavam por trás apoiando. Hoje, as pessoas que assumem e defendem a Rede Xique Xique o fazem porque tiveram formação. E, assim, as assessorias são muito importantes para que a Rede sobreviva. Camponesa – Que mudanças a participação no grupo provocou em sua vida pessoal, na relação com a família e com a comunidade? Eu devo muito de minha formação a essas assessorias que fazem parte da Rede. Minha formação política, de gostar do que faço, do que desenvolvo porque quando a gente vive no assentamento e que não tem essa formação acha que as coisas caem do céu. E quando você passa a ter uma forma-
www.aaccrn.org.br
“A Marcha Mundial das Mulheres é, pra mim, o espelho com que me identifico porque é quem me fortalece como mulher” ção, você percebe que não é assim. Hoje, se as mulheres tiveram direito ao primeiro voto é porque alguém lutou pra isso. Se hoje nós temos crédito, como trabalhadoras rurais, é porque alguém se organizou e foi buscar isso. Não é porque foi dado, é porque alguém lutou por isso. Quando você começa a se formar, começa a perceber isso. As coisas não caem do céu e não são dadas, alguém lutou pra que elas estivessem ali. A formação no movimento de mulheres Minha formação veio a partir do movimento de mulheres. Hoje, a Marcha Mundial das Mulheres é, pra mim, o espelho com que me identifico porque é quem me fortalece como mulher, e faz com que sempre eu esteja lutando. Eu casei com 14 anos, tive meu primeiro filho com 15. Percebi como eram as relações familiares e que as pessoas tinham direitos iguais, poderiam dialogar. As mudanças são muitas. Eu dizia que não participava de nada por causa dos meninos. Mas fui me dizendo: “Pra eu participar, meus filhos têm de participar porque eu não tenho com quem deixar”. Eu não tinha esse diálogo familiar que hoje já existe dentro do Assentamento. Se você chegar hoje e perguntar as mulheres da horta se elas fazem alimentação quando chegam em casa, você vai escutar que não. Já tem diálogo com os maridos. As mulheres dizem: “Meu marido só fazia o almoço, hoje ele faz até o pé da porta”. “Eu gosto de ser trabalhadora rural” Eu comecei armando rede debaixo dos galpões pra poder participar de uma reunião de capacitação com minhas filhas. Hoje, todas as mulheres que participam da horta e que já participaram, dizem: “Eu criei meus filhos aqui”. A gente tinha até um berço. E pra onde
VISITE O SITE DA FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER:
www.kas.de/brasil
14
ia ajudava as outras armando as redes nos pés de árvores pra poder garantir que as mulheres estivessem. Hoje temos uma relação boa, um diálogo, as mulheres dizem: “De primeiro eu ia deixar o lanche do meu marido, hoje ele vem deixar o meu”. Quer dizer, hoje a gente já tem esse reconhecimento. Terminei meus estudos, passei um ano e meio fazendo supletivo, saía da horta, não dava nem pra tomar banho direito, pegava um ônibus, saía do Assentamento, vinha aqui pra Mossoró, voltava, o ônibus atolava no caminho, eu ajudava a empurrar o ônibus pra poder chegar em casa mas consegui terminar. Tem toda essa história também de como eu cresci como pessoa, na militância e nos meus estudos, mas com a cabeça centrada no Assentamento, nada de querer ir embora de lá, de querer sair porque eu gosto de lá. Eu gosto de ser trabalhadora rural, gosto de trabalhar com a terra, de ser apicultora, pra mim isso é muito importante. Não perder essa identidade porque se eu estou hoje aqui foi a partir do grupo e o grupo é meu alicerce. O grupo é que me dá sustentação porque se um dia eu disser que não sou mais do grupo, acabou meu alicerce, caiu minha casa. Camponesa – Pela sua experiência, em que essa participação das mulheres melhorou o desenvolvimento do assentamento, as relações entre as pessoas, o trabalho? Se você chegar em Mulunguzinho, o povo diz que o assentamento só é visto porque existe o grupo de mulheres. Dentro do assentamento você tem que brigar pelo seu espaço. Têm pessoas que defendem mas têm pessoas que criticam, também. Não é tudo as mil maravilhas, como também dentro do grupo. Quem quer formar grupo, tem que ter jogo de cintura e respeitar as diferenças porque a gente discute, a gente briga, também. Agora tem que ser adulta pra quando sair do portão (tem um portão lá) ser as mesmas amigas. Um empreendimento com várias donas é difícil, é muito mais fácil ter uma que manda e as outras que obedecem, mas ter várias que mandem, é difícil porque cada uma quer mandar do seu jeito, tem suas diferenças.
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
Entrevista: Severina Araújo
Alimentação equilibrada é essencial para a vida
Alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, garantem o bom funcionamento do organismo e são cada vez mais essenciais no tempo em que vivemos
O
ato de comer exige cuidados especiais. Para Severina Araújo, nutricionista, “o alimento deve ser escolhido para a nutrição de cada célula que compõe o nosso organismo e não simplesmente como fonte de calorias”. Na época em que vivemos, onde a oferta de alimentos é cada vez maior e menos nutritiva, é preciso encontrar tempo para se alimentar de forma saudável pois como afirma ela: “A alimentação equilibrada é fator essencial na manutenção de funções vitais básicas, além de prevenir e ajudar a tratar inúmeras doenças da vida moderna”. Severina Araújo é nutricionista, com pós-graduação em Nutrição Social, Nutrição Clínica e Tecnologia de Alimentos e Nutrição, trabalha no Centro de Reabilitação Infantil (CRI) e na Clínica São Marcos.
Camponesa - As opções alimentares são definidas pela cultura, ou seja, pelos homens e mulheres que a compartilham, também o alimento escolhido constrói a pessoa que o ingere, que se busca construir no ato alimentar. Por isso é que se fala que “somos o que comemos”. Dentro dessa perspectiva, que cuidados deve-se ter com o ato de comer? Devemos utilizar alimentos saudáveis bem variados que possam suprir as necessidades de proteínas (substâncias que servem para formar e reparar as células), lipídeos (fonte de energia que serve para função, manutenção e integridade das membranas celulares,do sistema imunológico e formação dos hormônios), glicídeos, que fornecem combustível contínuo para o funcionamento do sistema nervoso central, vitaminas (reguladoras do metabolismo, convertem lipídeos e glicídeos em energia e colaboram na formação de osso e tecidos) e minerais, que regulam o ritmo cardíaco, respiratório e comunicação neural. Esses nutrientes em harmonia são fundamentais para um bom funcionamento do nosso organismo. Camponesa - Quais os princípios de uma alimentação saudável? Quais são os alimentos considerados saudáveis? Escolher o alimento indispensável para a formação de cada célula que compõe o organismo, e não simplesmente utilizar como fonte de energia, cada célula do organismo necessita pelo menos de 44 nutrientes para sua função normal. Os alimentos considerados saudáveis são os naturais sem agrotóxicos e sem aditivos químicos. Camponesa - Observamos, atualmente, em tempos de globalização, a ocorrência de uma padronização cada vez maior dos produtos consumidos, dos comportamentos alimentares e dos gostos. Como a
senhora vê essa situação e qual a conseqüência disso para nossas vidas? Nossos hábitos alimentares vêm sofrendo grandes mudanças nos últimos anos, com uma enorme distância entre a alimentação e hábitos alimentares saudáveis, a oferta de alimentos está cada vez maior, porém bem menos nutritiva e com uma carga de produtos químicos e gorduras trans promovendo a praticidade e gerando desequilíbrios funcionais com prejuízo para o organismo, concorrendo com os nutrientes das células e deixando mais vunerável á doenças. Camponesa - Há quem afirme que uma dieta centrada na carne é geradora das principais doenças que levam ao óbito nas sociedades ocidentais, como cardiopatias, diabetes, vários cânceres e pressão alta. Como a senhora vê esta situação? A carne é um alimento protéico que pode ser utilizado em nossa alimentação, porém a quantidade e freqüência de ingestão deve ser moderada por diversos motivos; um deles é que a grande quantidade de proteína de origem animal na refeição acidifica o ph sanguíneo, aumentando a excreção de nutrientes como, por exemplo: excreção urinária de cálcio, de oxalatos e de ácido úrico que formam os cálculos renais. Camponesa - Na sua prática de nutricionista, quais as principais dificuldades que as pessoas enfrentam para seguir uma dieta saudável? As principais dificuldades encontradas são seguir horários regulares de alimentação, fracionar as refeições durante o dia e
“Existe uma enorme distância entre alimentar-se e nutrir-se”
horário suficiente para alimentar-se, devido a longa jornada de trabalho. Camponesa - Qual a importância de se consumir alimentos sem agrotóxicos? Que conseqüências podem advir do consumo de agrotóxicos? Os alimentos sem agrotóxicos permitem um bom funcionamento orgânico. Os agrotóxicos são substâncias estranhas ao nosso corpo, “xenobióticos” que levam a intoxicação orgânica e conseqüentemente desequilíbrios funcionais gerando principalmente uma baixa imunidade deixando o sistema de defesa debilitado. Camponesa - Ter comida em abundância é sinônimo de nutrição? Quais as diferenças entre passar fome e ser desnutrido ou mal nutrido? Comida em abundância não é sinônimo de nutrição, existe uma enorme distância entre alimentar-se e nutrir-se. A escolha do alimento é muito importante, cada alimento se destaca pelo nutriente que ele contém em maior quantidade. Os nutrientes agem em conjunto nas nossas células, portanto, ser desnutrido ou mal nutrido vem do desequilíbrio da carência ou excesso de alimentos. Camponesa - Que mensagem a senhora deixa aos nossos leitores? A alimentação equilibrada é um fator essencial na manutenção de funções vitais básicas, além de prevenir e ajudar a tratar inúmeras doenças da vida moderna, lembrando que temos cerca de 100 trilhões de células no corpo e cada uma delas exige um suprimento constante e diário de nutrientes para funcionar com perfeição e poder alcançar seu potencial pleno em todo o metabolismo orgânico.
15
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
Entrevista: Marília Leão
Alimentação saudável é um direito humano inviolável Nossa alimentação está cada vez mais padronizada em todo mundo e os alimentos vão deixando de ser um meio de reproduzir a vida e as culturas para se tornarem meras mercadorias
A
necessidade de maiores investimentos nas políticas públicas de desenvolvimento agrário, em particular às que favorecem a agricultura camponesa e familiar, o incentivo ao associativismo e cooperativismo como também a promoção da agroecologia e da economia solidária, na opinião de Marília Leão, são essenciais para garantir o direito humano à alimentação saudável e adequada. Segundo ela, “é preciso reafirmar que as raízes da fome estão no modelo econômico e de desenvolvimento vigente no mundo”, o que desafia a sociedade a pensar para além de um outro modelo de desenvolvimento agrário, sendo imprescindível repensar o “próprio modo de organização da economia”. Mas ressalta que “isso só será possível com muita luta política, tanto dos movimentos sociais de massa como de organizações que trabalham com foco em políticas públicas e nas instituições formais da democracia”. Entre as muitas formas de luta, o consumo consciente se apresenta como uma delas pois “o poder do consumidor urbano é enorme e ele precisa saber disso”, afirma Marília. Marília Leão é Especialista em Políticas Públicas e Mestre em Nutrição Humana. Atualmente preside a Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) e é conselheira representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Camponesa - Os pilares mais fundamentais da soberania alimentar incluem o reconhecimento e o cumprimento do direito à alimentação e o direito à terra; o direito de cada nação ou povo a definir a sua própria política agrícola e alimentar, respeitando o direito dos povos indígenas aos seus territórios, os direitos dos pescadores tradicionais a áreas de pesca, etc.; um refúgio das políticas de comércio livre, com uma concomitante maior prioridade de produção alimentar para mercados locais e nacionais, e o fim da venda abaixo do preço de custo (dumping); reforma agrária genuína; e práticas agrícolas sustentáveis, com base nos camponeses, ou agroecológicos. O que nós, habitantes de centros urbanos, temos a ver com a soberania alimentar? O debate sobre soberania e segurança alimentar e nutricional no contexto dos centros urbanos é muito interessante e nos remete a questões novas e necessárias, pois estamos condicionados a pensar a questão quase sempre da perspectiva da produção agrícola camponesa e familiar, daqueles que vivem nas áreas rurais e quase nunca dos consumidores urbanos. Sabemos
16
hoje que mais de 80% da população brasileira vive nas áreas urbanas e que qualquer movimento desse contingente tem um alto poder de transformação da realidade. Assim, começar a discutir como podemos promover a soberania e segurança alimentar e nutricional enquanto consumidores urbanos conscientes, politizados e militantes da causa poderá gerar impactos importantes na sociedade em curto, médio e longo prazo. Camponesa - Muitos pesquisadores contemporâneos tentam relacionar sistemas sociais e sistemas ecológicos para enfrentar os desafios alimentares do século XXI. Como conciliar soberania alimentar e o manejo sustentável dos agroecossistemas com base nos princípios da agroecologia
“As grandes empresas agrícolas não cultivam alimentos, elas produzem mercadoria, e aí reside a questão crucial do atual modelo de desenvolvimento do Brasil”
e no fortalecimento da produção familiar? É imperativo ampliar o compromisso dos governos em destinar recursos expressivos para as políticas públicas de desenvolvimento agrário que fortaleçam a agricultura camponesa e familiar por meio de medidas de acesso à terra e ao território, à água e às sementes crioulas; ao crédito; à infraestrutura e serviços; à educação, capacitação e assistência técnica que articulem o conhecimento formal com as culturas e os saberes locais; que incentivem o associativismo e o cooperativismo; que promovam a agroecologia e a economia solidária; e que garantam o controle de toda a cadeia alimentar, da produção à distribuição, dentre outras etapas. Os programas públicos devem ainda fortalecer as organizações da sociedade civil como forma de contribuir para a consolidação de espaços públicos plurais e a participação ativa, democrática e informada. Camponesa - Nesses oito anos de governo Lula, em que estágio se encontra a disputa entre o modelo agroindustrial, baseado na produção monocultural em larga escala voltada para exportação, e o modelo de agricultura praticado pelos camponeses e pequenos agricultores? Que avanços e
Camponesa - Novembro de 2009
“Não podemos, portanto, pensar apenas em mudar o modelo de desenvolvimento rural, mas o próprio modo de organização da economia” que dificuldades pode-se apontar? A concentração de terras no Brasil aumentou no Governo Lula e continua entre as mais altas do mundo. O modelo hegemônico no campo, baseado no agronegócio de exportação e nos monocultivos, se radicalizou e colocou o Brasil como o maior exportador de alimentos do mundo. Por exemplo, a maior empresa de carne bovina do mundo, inclusive com ramificações em vários países, é brasileira. Não faltou fomento para as monoculturas de cana, para agrocombustíveis, eucalipto para papel e soja para rações animais. O plantio da cana de açúcar avança sobre as áreas de cultivos de alimentos e tem aumentado o desmatamento da Amazônia, e a devastação de outros biomas, como o Cerrado e o Pantanal, além de ainda trazerem consigo o trabalho escravo ou semi-escravo. O número de famílias assentadas pela Reforma Agrária empacou nos últimos anos (136 mil em 2006, 68 mil em 2007 e 70 mil em 2008). Ainda assim, os movimentos sociais que defendem a Reforma Agrária vêm sendo criminalizados, os trabalhadores do campo continuam com dificuldades de acesso a muitas políticas públicas, entre outros problemas. Então, o balanço no campo da soberania e segurança alimentar e nutricional não é positivo. Mas não podemos deixar de fazer justiça e reconhecer que tivemos avanços em alguns setores, como por exemplo: as estatísticas oficiais mostram a redução da fome, da desigualdade social, e refletem o aumento da renda entre os mais pobres; além disso, a desnutrição infantil aguda foi virtualmente eliminada do país. O fato de o Governo Federal ter colocado o combate à fome como uma de suas prioridades acabou gerando algumas conquistas importantes: (i) a aprovação de uma Lei Federal (LOSAN – Lei n° 11.346 de 15/09/2006), formulada com a participação ativa da sociedade civil e que tem como objetivo a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada; (ii) a institucionalidade permanente para o CONSEA Nacional como espaço de aperfeiçoamento da democracia, da participação social e do exercício propositivo das políticas públicas na área da segurança alimentar e nutricional; (iii) a adoção de nova lei que fomenta a compra de alimentos da agricultura familiar por programas públicos de alimentação escolar (Lei n° 11.947/09 de 16/16/2009); (iv) a política de transferência de renda, que efetivamente têm contribuído para reduzir a extrema pobreza urbana e rural (Programa Bolsa Família); (v) a adoção de novas políticas públicas de
www.aaccrn.org.br
aquisição de alimentos da agricultura familiar, como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) que apenas no ano de 2008 executou R$ 551,7 milhões. Camponesa - Há quem diga que as raízes da fome e da desnutrição no Brasil associamse a duas dimensões interdependentes de uma mesma crise de nosso modelo de desenvolvimento: baixo poder aquisitivo da população e insuficiência de produção de alimentos para o consumo interno. Como enfrentar essas questões? Em primeiro lugar, é preciso reafirmar que as raízes da fome estão no modelo econômico e de desenvolvimento vigente no mundo. As políticas de desenvolvimento têm se pautado em interesses do mercado financeiro e dos grandes conglomerados multinacionais e não na garantia de direitos e da dignidade humana. Nesse contexto, o alimento é visto como mercadoria e não como um direito humano cuja garantia é obrigação dos Estados. Atualmente, o mundo produz alimentos em quantidade suficiente para todos. O que ocorre é que muitos não têm acesso a eles. Milhões de pessoas não possuem rendimentos ou outros meios para comprar ou produzir os alimentos que necessitam para viver com dignidade. No mundo todo, estima-se que, depois da crise dos preços dos alimentos (2007/2008), mais de um bilhão de pessoas têm o seu direito humano à alimentação adequada violado, isto é, convivem diariamente com o flagelo da fome, em situação de insegurança alimentar permanente. No Brasil, ainda temos fome no país das supersafras. O balanço líquido das calorias mínimas necessárias para cada brasileiro ou brasileira consumir é positivo, tanto é que somos um dos maiores exportadores de alimentos. Ou seja, temos um problema de acesso aos alimentos, determinado pela pobreza e vulnerabilidade social. Mas a questão é: que alimento é esse que estamos produzindo em larga escala? Que modelo agrícola é esse que produz muitas “calorias”, mas que traz juntos os resíduos – como os agrotóxicos – que causam doença e morte? As grandes empresas agrícolas não cultivam alimentos, eles produzem mercadoria, e aí reside a questão crucial do atual modelo de desenvolvimento do Brasil. Nas últimas décadas, temos assistido ao avanço vigoroso
“Falamos muito da preservação da natureza, e é claro que isso inclui o ser humano, mas falamos pouco da ecologia humana, da preservação da saúde dos homens e mulheres”
do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema alimentar dos países e do mundo. Desde o controle das sementes a venda cada vez maior de agrotóxicos, até a compra da colheita, o processamento dos alimentos, transporte, distribuição e venda ao consumidor, tudo já está em mãos de um número reduzido de empresas. Os alimentos deixaram de ser um meio de reproduzir a vida e a cultura das pessoas, tornaram-se apenas mercadorias. Camponesa - Como fazer a passagem dos atuais padrões de desenvolvimento rural ou de sistemas de produção de baixa sustentabilidade para modelos de agricultura e de manejo rural que privilegiem e incorporem princípios, métodos e tecnologias de base ecológica? O desafio é enorme, pois o modelo hegemônico na indústria da alimentação (incluindo todas as suas dimensões, da produção agrícola à venda dos produtos, passando pelo processamento, pela publicidade, pela distribuição etc) hoje é um dos pilares do capitalismo, é uma das suas indústrias mais rentáveis e que maior número de pessoas, empresas e instituições envolvem. Não podemos, portanto, pensar apenas em mudar o modelo de desenvolvimento rural, mas o próprio modo de organização da economia, que precisa ser focado no desenvolvimento da sociedade como um todo, e não apenas de um punhado de empresas e seus acionistas. Alternativas existem e mostram que são capazes de se tornarem padrão: as experiências de economia solidária, com algumas funcionando há décadas e com indicadores de eficiência financeira até melhores do que os bancos e instituições tradicionais do mercado; os projetos de agroecologia, que inclusive têm criado um novo nicho de mercado, o dos produtos orgânicos, que hoje já são uma alternativa de negócio rentável e possuem um mercado consumidor crescente, entre outros exemplos possíveis, mostram que é possível construirmos um outro modelo de organização social, no campo e na cidade. Mas isso só será possível com muita luta política, tanto dos movimentos sociais de massa como de organizações que trabalham com foco em políticas públicas e nas instituições formais da democracia. Camponesa - Em 2008, o Brasil tornou-se o maior consumidor mundial de venenos agrícolas (733,9 toneladas), ultrapassando os Estados Unidos (646 milhões de toneladas). Há que se deve isso e que implicações têm para os consumidores? Isso se deve, novamente, ao modelo agrícola vigente, que só enxerga os lucros possíveis ao final da próxima safra. Isso se
17
Camponesa - Novembro de 2009
deve às empresas e ao mercado dos agrotóxicos que não encontram barreiras concretas para entrarem no Brasil. Muitos agrotóxicos que são proibidos nos Estados Unidos, na União Europeia e na China conseguem registro no Brasil. Isso é inaceitável! Num encontro recente, quando discutíamos o aumento do consumo de frutas, legumes e hortaliças pela população - alimentos importantes na promoção da saúde - muitos dos especialistas presentes defendiam a tese de que devemos iniciar uma campanha nacional por um país livre do uso de agrotóxicos na produção das frutas, legumes e hortaliças e na conseqüente adoção dos princípios da agroecologia. Todos os presentes, entre nutricionistas, pesquisadores, produtores camponeses, gestores governamentais e militantes sociais foram unânimes em defender esta tese como a única saída para a promoção da agricultura familiar e a sustentabilidade do meio ambiente e da ecologia humana. Aliás, este é um ponto: falamos muito da preservação da natureza, e é claro que isso inclui o ser humano, mas falamos pouco da ecologia humana, da preservação da saúde dos homens e mulheres. Camponesa - Segundo o Censo Agropecuário 2006, divulgado no último dia 30 de setembro pelo IBGE, a concentração da terra, no Brasil, aumentou: a área ocupada pelos estabelecimentos rurais de mais de mil hectares concentra mais de 43% do espaço total, enquanto as propriedades de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7%. No entanto, estas propriedades menores, onde se encontra a agricultura familiar são as principais responsáveis pelo abastecimento dos itens da cesta básica. Como a senhora analisa esses dados e outros apresentados pelo Censo Agropecuário 2006? Eles confirmam o que já citamos acima: a concentração do capital e das empresas nas mãos de poucos donos, o que gera a brutal desigualdade social e econômica do Brasil. Por outro lado, sabemos que
www.aaccrn.org.br
“Estar livre da fome e ter acesso regular e permanente a uma alimentação adequada e saudável é um direito fundamental de cada brasileiro ou brasileira” milhares de famílias sem terra lutam por condições dignas de viver, trabalhar e produzir. Os dados nos confirmam a importância da realização de uma verdadeira e efetiva Reforma Agrária. Camponesa - Nesses tempos de globalização, observa-se a ocorrência de uma padronização cada vez maior dos produtos consumidos, dos comportamentos alimentares e dos gostos. Caminhamos para formas de alimentação idênticas entre diferentes povos? Que implicações têm isso? Há cerca de 20 anos, vi uma charge numa revista americana que mostrava uma raposa muito dócil dentro de um galinheiro, dormindo serenamente ao lado das galinhas, com o seguinte título: “Isso é a globalização”. Então é isso: a globalização serviu aos interesses dos países mais fortes, das espertas raposas capitalistas, dos países bem posicionados economicamente, dos países desenvolvidos com situação social e econômica bem resolvida. A globalização serviu ao grande capital, para crescer e se ampliar cada vez mais. Vejam quantas fusões de grandes empresas ocorrem a cada ano no Brasil. As pequenas empresas de alimentos, as cooperativas de produtores foram todas compradas por gigantes multinacionais dos alimentos. E, então, se no campo da produção agrícola, na indústria de alimentos, na distribuição e no varejo dos alimentos temos concentração, o resultado é que caminhamos para uma dieta cada vez mais monótona – com menos variedade de alimentos – e vamos comer o alimento ou
a “mercadoria” que der mais lucro ao capitalista. Este prognóstico é sombrio, mas de fato, caminhamos para esta situação. Nossa alimentação está cada vez mais padronizada em todo mundo, não comemos necessariamente o que queremos, mas sim alimentos de má qualidade, a preços que são controlados pelas bolsas de valores dos grandes países. As tradições culinárias de nossos povos estão se perdendo. Só há uma maneira de reverter o processo: apoiar e ampliar a pequena produção, a produção agrícola camponesa e familiar, pois é ela que garante a biodiversidade, a continuidade da produção em qualquer tempo, a preservação da cultura local e saúde dos alimentos na sua forma tradicional. A produção agrícola camponesa e familiar pode resolver, ao mesmo tempo, a crise econômica – gerando milhares de empregos permanentes a um custo muito mais baixo do que os empregos industriais – e a crise alimentar, com a produção de alimentos saudáveis voltados para o mercado interno. Camponesa - Que papel joga o consumidor na afirmação do princípio da soberania alimentar? O consumidor urbano precisa estar informado sobre o seu importante papel na cadeia alimentar. O consumo consciente e a cobrança por alimentos oriundos da agroecologia e da produção sustentável, que promove famílias e pessoas que defendem a natureza, podem causar uma revolução no campo da soberania e segurança alimentar e nutricional. Na realidade, o poder do consumidor urbano é enorme e ele precisa saber disso. Vale ressaltar que estar livre da fome e ter acesso regular e permanente a uma alimentação adequada e saudável é um direito fundamental de cada brasileiro ou brasileira, indispensável à realização de todos direitos consagrados na Constituição Federal. É um direito humano inviolável e é uma obrigação do Estado Brasil garantir este direito a todos(as) que vivem no território nacional.
Calendário das Feiras Agroecológicas e de Economia Solidária Núcleos da Rede Xique Xique: Governador Dix Sept Rosado - Domingo Tibau - Domingo Baraúna - Domingo São Miguel do Gostoso - Segunda-feira Janduís - Segunda-feira Apodi - Sábado Jucuri - Sábado Mossoró - Sábado Rede de Comercialização Solidária Xique Xique Rua Mário Negócio, 158A- Centro - Mossoró-RN- Cep: 59610-080 e-mail: redexiquexique@gmail.com - fone(084) 3316-1315
18
Camponesa - Novembro de 2009
3ª Ação Internacional da Marcha Mundial Com o tema “Seguiremos em marcha até que todas sejamos livre”, a Marcha Mundial das Mulheres está preparando a sua terceira Ação Internacional para 2010. Com as articulações e discussões girando em torno de quatro campos de ação para as atividades que serão desenvolvidas no próximo ano: Autonomia econômica das mulheres, Bens comuns e serviços públicos, Paz e desmilitarização e Violência contra as mulheres; as militantes da MMM no Brasil já estão envolvidas em atividades preparatórias para a execução do calendário 2010. Uma das ações internacionais será no período de 8 a 18 de março de 2010, e deverá reunir 3 mil mulheres numa caminhada de Campinas a São Paulo.
Censo Agropecuário 2006 (1) A área ocupada pelos estabelecimentos rurais de mais de mil hectares concentra mais de 43% do espaço total, enquanto as propriedades de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7%. A gritante desigualdade consta do Censo Agropecuário 2006, divulgado, após mais de 10 anos da última edição, no dia 30 de setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Utilizandose do índice de Gini, o estudo mostra a ferida aberta da concentração de terras no país e a falta de estímulo ao pequeno agricultor. O censo revela ainda a opção por um projeto primário-exportador em detrimento da realização da reforma agrária.
Censo Agropecuário 2006 (2): a agricultura familiar produz mais em menos terra A simples comparação do destino da produção de nossas terras, entre o que tem origem nos latifúndios e o que é gerado pela agricultura familiar (pequenas propriedades rurais), prova que o direito humano fundamental à alimentação do povo é garantido pela última e não pelos primeiros. A agricultura familiar chega a responder por “até 70% da produção” que integra a cestabásica, assim superando, “em muitos casos,
www.aaccrn.org.br
o agronegócio”. 70% do feijão, 87% da mandioca, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% do de aves. Mesmo em lavouras voltadas para a exportação, a agricultura familiar tem um espaço de destaque. É o caso do milho, cultura na qual possuía uma participação de 46%. O mesmo ocorre com o café, cujo peso é de 38%.
Censo Agropecuário 2006 (3): a concentração da terra
A concentração da propriedade privada da terra no Brasil, em vez de diminuir, está aumentando. Em matéria assinada por Jacqueline Farid, o jornal Estado de São Paulo, de 30 de setembro, demonstra: “A concentração e a desigualdade regional é comprovada pelo índice de Gini da estrutura agrária do país. Quanto mais perto esse índice está de 1, maior a concentração. Os dados mostram um agravamento da concentração de terra nos últimos 10 anos. O Censo do IBGE mostrou um Gini de 0,872 para a estrutura agrária brasileira, superior aos índices apurados nos anos de 1985 (0,857) e 1995 (0,856). “De acordo com o Instituto, enquanto os estabelecimentos rurais de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área total ocupada pelos estabelecimentos rurais, a área ocupada pelos estabelecimentos de mais de 1.000 hectares ocupam mais de 43% da área total.”
Índice de Produtividade Rural Índices de produtividade são indicadores usados para verificar se propriedades rurais são utilizadas de forma racional e adequada - condições para a chamada função social, parâmetro para desapropriação visando à reforma agrária. Sua atualização está prevista na Constituição Federal de 1988 e na Lei Agrária, de 1993, com o intuito de garantir a função social da propriedade da terra. A liderança nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vê a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), criada em outubro/2009, como uma represália da chamada “bancada ruralista” às pressões do movimento para que o governo federal altere os índices de produtividade rural em vigor no País.
Agrotóxicos no seu estômago “Na safra passada, as empresas transnacionais, e são poucas (Basf, Bayer, Monsanto, Du Pont, Sygenta, Bungue, Shell química...), comemoraram que o Brasil se transformou no maior consumidor mun-
dial de venenos agrícolas. Foram despejados 713 milhões de toneladas! Média de 3.700 quilos por pessoa. Esses venenos são de origem química e permanecem na natureza. Degradam o solo. Contaminam a água. E, sobretudo, se acumulam nos alimentos”, escreve João Pedro Stédile, economista e integrante da coordenação nacional do Movimento dos Sem Terra (MST), em artigo publicado no jornal O Globo, 24-09-2009.
Sobre o consumo de carne “Os chineses compõem 20% da população do mundo, mas têm apenas 6% da terra arável e 6% da água doce. Os brasileiros têm tudo: muitas terras, muita água (cerca de 20% da água do mundo ou mais). Os indianos começam a entrar no paraíso do Mc’Donalds. Eles eram, desde muitos séculos atrás, vegetarianos, mas agora muitos deles começam a comer carne. E, em 20 anos, haverá mais indianos que chineses. Pense que os indianos têm ainda menos terra e água por pessoa do que os chineses. Então, quando estes povos mudam o hábito de comer, sentimos isso no mundo inteiro, sobretudo no Brasil, porque o país tem muita terra e água. Quando você ”consome carne, precisa de muito mais terra e água do que quando consome verduras, grãos, frutas, nozes, etc. Com o boom econômico da China, agora eles têm muito dinheiro para, por exemplo, comprar terras. Eles compram no Brasil e na África e muito barato!”. A afirmação acima é de Luc Vankrunkelsven, filósofo e teólogo, consultor independente da Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil, em entrevista para o IHU-Online, em 13/08/2009.
Merenda escolar produzida por agricultores familiares Em agosto, o deputado estadual Fernando Mineiro (PT) realizou audiência pública para discutir a Lei 11.947, de julho de 2009, que dispõe sobre a compra dos produtos da agricultura familiar para a alimentação escolar. Segundo a lei federal, pelo menos 30% dos alimentos consumidos na merenda escolar devem ser produzidos por agricultores familiares. Representantes de mais de 20 municípios estiveram presentes, além de inúmeras entidades e cooperativas de agricultura, no evento que ocorreu na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. O parlamentar explicou que para participar desse programa, os agricultores familiares têm que se organizar através de associações e cooperativas, além de garantir a continuidade da produção e a qualidade dos produtos comercializados.
19
Camponesa - Novembro de 2009
20
www.aaccrn.org.br
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
Quando o alimento é mais gostoso Com o apoio da AACC/RN, famílias rurais de São Miguel do Gostoso vivenciam a agricultura familiar de forma organizada e baseada na agroecologia Por Bethânia Lima
21
Camponesa - Novembro de 2009
A
simpática cidade de São Miguel do Gostoso está localizada a cerca de 100km de Natal, a capital do Rio Grande do Norte. São Miguel do Gostoso nasceu em setembro de 1884, mas só passou a ser município em 1993, pois, até então, pertencia ao município de Touros. A primeira reação das pessoas que não a conhecem, ao ouvir seu nome, é: “Por que Gostoso?”. A cidade foi batizada com esse nome em virtude de um vendedor ambulante que tinha uma risada tão contagiante que os moradores denominavam de “gostosa”. Sob o signo do riso, os moradores de São Miguel, ainda comunidade de Touros, passaram a chamar o local de “Gostoso”. São Miguel do Gostoso. Cidade com uma população de pouco mais de 9 mil habitantes (IBGE, 2009). Seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0,558 – o que a deixa na 165º posição na escala dos 167 municípios no Rio Grande do Norte, e na 5240º posição quando comparada aos 5561 municípios do Brasil. Com uma taxa de alfabetização de 56,1% (Idema, 2000), percebe-se que a situação do município não é tão alegre. Pelo contrário, é delicada com referência a alguns aspectos. Embora, sua localização litorânea, tenha rendido destaque na mídia nacional. Em 2008, por exemplo, na edição especial da Revista
22
www.aaccrn.org.br
VEJA – O Melhor do Brasil, São Miguel do Gostoso foi apontada como o melhor “Novos Destinos” da região Nordeste. Com características do semiárido nordestino, o município integra o território do Mato Grande, junto com outros 15 municípios. Em São Miguel do Gostoso, as chuvas costumam se concentrar entre os meses de fevereiro e julho; já entre setembro e dezembro é rara a ocorrência das chuvas. Apresentando mudanças na sua história local e com muito que ensinar para outros lugares do país, o município tem se tornado referência diante experiências desenvolvidas por parte da população, distribuída entre a sede do município e cerca de 20 comunidades e assentamentos rurais. São inúmeras as famílias rurais do município que estão envolvidas em trabalhos que refletem na soberania alimentar delas e, indiretamente, de outras pessoas do município.
soberania alimentar, foi concebida pela Via Campesina (movimento camponês mundial que luta pela dignidade e acesso à terra) e está na Declaração de Nyélény – Fórum Mundial pela Soberania Alimentar – 2007. É um conceito que tem sido adotado em todo o mundo devido sua importância. Os crescentes investimentos e, principalmente, o avanço do agronegócio, nesses últimos anos, fragilizam a agricultura familiar camponesa e a soberania alimentar dos povos, provocam o aumento do uso de agrotóxico nos plantios, incentivam a mecanização dos processos agrícolas e reforçam o esgotamento das fontes e dos recursos naturais que levam ao comprometimento da biodiversidade. As experiências dos trabalhadores e trabalhadoras rurais de São Miguel do Gostoso vão na contramão desse movimento, afirmando que “um outro mundo é possível”.
A noção de soberania alimentar
Áreas rurais conquistadas no município
A soberania alimentar é um direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e seu direito de decidir seu próprio sistema alimentício e produtivo. Essa abrangência da noção de
Cerca de metade da área do município de São Miguel do Gostoso é constituída de assentamentos rurais. Foram criados seis assentamentos federais nos últimos 12 anos com o apoio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA/
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
apoio do INCRA e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, para a criação do Arizona. Com uma área de 5.914 hectares, o assentamento fica a 15 Km da sede do município e está dividido em três agrovilas: Paraíso, Arizona e Novo Horizonte. A divisão em agrovilas foi uma forma de descentralizar a estrutura administrativa do assentamento, e ainda facilitar o acesso aos lotes. Cada agrovila conta com 60 famílias, aproximadamente, e cada família possui uma casa de alvenaria e um lote de 25 hectares. Com o acesso a terra, as famílias de agricultores e agricultoras cultivam milho, feijão e roça para autoconsumo, e para comercialização os plantios maiores são de abacaxi e caju.
Agroecologia fortalece a agricultura familiar RN. Várias comunidades rurais também fazem parte do município, sendo algumas mais antigas do que a própria cidade. É o caso da comunidade de Reduto, com mais de 300 anos, e cerca de 80 famílias moradoras. “Quase todo mundo tem uma tirinha de terra, do mar para dentro. Nós nos reunimos e plantamos na terra que não tinha dono, depois eles foram aparecendo”, diz o apicultor Gonçalo Miranda. A “peleja” pela terra em
Reduto refletia a situação de vários outros lugares e de outras famílias, que buscavam a terra para o sustento familiar. “Trouxeram jagunços e nos expulsaram, e acabaram com os plantios, mas conquistamos apoios e a terra foi desapropriada, em 1999”, relembra orgulhoso o apicultor. Com uma história mais pacífica de conquista da terra, as famílias do Assentamento Arizona, em 1996, contaram com o
No intuito de contribuir com a autodeterminação das agricultoras e agricultores familiares do Rio Grande do Norte, a Associação de Apoio às Comunidades do Campo do RN (AACC/RN) vem atuando junto a alguns grupos do Assentamento Arizona e de comunidades de São Miguel do Gostoso. A instituição, juntamente com os grupos, tem apostado nos processos agroecológicos, organizacionais e de economia solidária. Em
23
Camponesa - Novembro de 2009
fins da década de 90 e início dos anos 2000, a AACC/RN passou a desenvolver e apoiar grupos e famílias nos processos produtivos de transição agroecológica. A agroecologia foi o ponto de partida para a reinserção e superação dos agricultores e agricultoras familiares, diante das dificuldades vividas no meio rural. Assimilada e vivenciada como algo que vai além do conceito científico, a agroecologia tem sido trabalhada e disseminada como uma prática de muito respeito às relações humanas e ambientais. “A Agroecologia resgata o que de há de mais valioso para mulheres e homens que vivem no campo, o valor dos saberes e costumes, ou seja, o valor das pessoas. Com isso, a agroecologia a partir do seu princípio que é pra mim o fundamental - a diversidade, de produção, de participação (mulheres e homens), tenta alcançar o elementar para a manutenção das pessoas que vivem no campo, a segurança alimentar”, comenta a integrante da equipe da AACC/RN, a engenheira agrônoma, Ivi Aliana Carlos Dantas. “A agroeocologia é a preservação da natureza”, frisa a agricultora Sônia Maria Pereira, da Agrovila Paraíso. Em Paraíso, dois grupos de mulheres desenvolvem trabalhos de cultivo de hortas e criação de pequenos animais no sistema agroecológico. O Grupo Unidas Venceremos é constituído por cinco mulheres e, desde 2002, desenvolve atividades produtivas com o apoio da AACC/RN. Já o Grupo de Mulheres Juntas Venceremos está formado por quatro mulheres, que atuam há pelo menos quatro anos, e também desenvolvem trabalhos agroecológicos. Com vários princípios em comum, essas mulheres já estiveram durante um tempo desenvolvendo ações conjuntamente, e devido a esse trabalho, elas foram vencedoras, em 2008, do Prêmio Valores do Brasil, concedido pela Fundação Banco do Brasil. A premiação gerou um recurso para as mulheres e elas converteram uma parte dele em recursos para o trabalho. “Compramos sementes, mangueiras, expressores e estamos investindo na produção de salgados e bolos”, diz a agricultora Maria do Socorro Gomes, do Grupo Juntas Venceremos. Com uma larga experiência no trabalho agroecológico, essas mulheres agricultoras já enfrentaram muitos obstáculos para chegarem onde estão hoje. Maria Salete e Sônia Maria, do Grupo Unidas Venceremos, resgatam que para conseguir a permissão de uso da terra coletiva para fazerem a horta, foi preciso muita negociação com a associação, porque as mulheres não tinham o poder de participação e nem eram reconhecidas. “Hoje em dia, a associação já conta com seis mulheres na coordenação, em um total de 12 pessoas”, diz Salete. A área destinada aos grupos é de um hectare e meio para cada um dos grupos.
24
www.aaccrn.org.br
Entrosado com a participação no meio rural João Eudes Rodrigues da Silva, 23 anos, morando temporariamente na sede da cidade, São Miguel do Gostoso. É natural da comunidade de Tabua, e é para lá que ele voltará, em breve
E
nvolvimento e emoções. Não há como não perceber na voz, no olhar e na narração da sua história, que o jovem João Eudes é dedicado e apaixonado pelo que faz. Tem algumas datas gravadas na memória, não como símbolo de presunção e exibição, mas como significado de conquista e partilha de algo importante para várias pessoas, como foi o primeiro dia de realização da Feira Agroecológica e da Economia Solidária de São Miguel do Gostoso – o dia 28 de agosto de 2006. Com apenas 23 anos, João Eudes é um dos Coordenadores do FOPP – Fórum de Participação Popular nas Políticas Públicas, Coordenador do Núcleo de São Miguel do Gostoso da Rede Xique Xique, e foi eleito recentemente Conselheiro Tutelar da Criança e do Adolescente do município. “Eu comecei a participar de movimento muito cedo, eu tinha uns 12 anos e morava na Tabua e já coordenava o grupo de jovens da minha comunidade”, relembra João Eudes. A participação no FOPP, segundo João, também foi conseqüência desse entrosamento e gosto pelas atividades em grupo, “fui um dos escolhidos pela comunidade para ir representá-la no fórum, e foi lá que conheci o trabalho da AACC/RN”. Selecionado no espaço do FOPP, em 2004, para ser estagiário da AACC/RN e integrar um projeto temático que buscava trabalhar com o protagonismo juvenil, João diz ter aprendido e ensinado muita coisa. “O que eu aprendia de agroecologia no estágio, eu repassava para o grupo de jovens que trabalhava com horta na comunidade”, afirma. A socialização, a solidariedade e a força estão entrelaçadas na vida de João Eudes, e os caminhos percorridos até agora mostram isso. Enquanto coordenador do Fórum de Políticas Públicas, ele avalia que “o FOPP é um instrumento da sociedade para cobrar e dar oportunidades; ele é um espaço político social e econômico que possibilita conquistas à população de São Miguel do Gostoso”. Reconhecer e saber identificar as dificuldades temporárias para o funcionamento de um espaço da sociedade civil também é algo avaliado pelos participantes do fórum. “A organização é fundamental para termos o FOPP existindo, passamos por momentos delicados, assim como temos nossas ações de destaque porque já realizamos Encontros de Juventude,
Encontros de Agroecologia e Mesas de Solidariedade e isso se deve à nossa organização”, afima João Eudes. A sua colaboração junto ao Núcleo da Rede Xique Xique também percorre a mesma lógica de dedicação e estímulo à organização dos grupos produtivos do município, que têm a agroecologia e a economia solidária como fontes dos trabalhos e realizam a feira agroecológica. “Não somos só uma feira”, defende João. Além da produção diferenciada, baseada no comércio justo e no reconhecimento dos valores do trabalho da mulher, por exemplo, a diferença da feira também está na proposta de reflexão das temáticas que cercam a vida em sociedade. “No dia 9 de março de 2009, as mulheres fizeram uma ação durante a feira agroecológica para comemorar o Dia Internacional da Mulher e quando eu cheguei em casa, para o meu espanto, eu ouvi o meu pai dizer emocionado que a feira tinha sido muito bonita com a atividade das mulheres”, relata João. Com a agenda cheia de planos para o futuro, uma das intenções de João Eudes é estudar agronomia, “penso em fazer o curso e implementar o meu saber aqui em São Miguel”, confessa. “Eu aprendi nesses anos todos de participação que é possível ter vida digna e oportunidades no meio rural”, encerra sorridente a conversa.
Camponesa - Novembro de 2009
O processo de assistência ao trabalho agroecológico possibilitou, e ainda possibilita, que todo o contexto vivido pelas mulheres tenha passado por mudanças. “A gente trabalha pela segurança alimentar”, diz convicta Dona Salete. Com a oportunidade de aprenderem e discutirem técnicas para a melhor execução do trabalho no campo, as agricultoras costumam participar de eventos e viagens para conhecer histórias semelhantes às delas. “Quando uma de nós vai conhecer uma experiência, na volta essa pessoa repassa para as outras o que aprendeu, e saímos multiplicando e testando na nossa área”, conta Sônia. “A gente não trabalha com queimagem nem com trator, e desde que me entendia de gente trabalhava assim, com meus pais, e não sabia que era agroecológico”, confessa rindo Dona Salete. Valorizar e resgatar práticas antigas e descobrir novas possibilidades que garantam a qualidade do plantio é uma tarefa que as agricultoras também executam no campo. “Quando dá praga a gente perde por completo o plantio porque a gente não usa veneno. Usamos caldas, nim, alho, pimenta e cobertura morta para que tudo dê certo com a terra e com o produto”, conta a agricultora Francisca Tenório. A diversidade cultivada na horta das mulheres é mais uma ferramenta aprendida, para que o plantio responda de forma saudável à dedicação do trabalho delas. “Jun-
www.aaccrn.org.br
to com as hortaliças e as frutíferas plantamos muitas flores também na horta, para que os insetos não estraguem os canteiros”, explica Sônia Tenório. A relação de sustentabilidade e partilha é bem interessante, porque o que acaba se estragando ou dando em excesso é aproveitado para os animais que os grupos criam. Frutas como mamão, bananas e resto de hortaliças são repassados para os porcos, ovelhas e galinhas. Assim como, o
esterco produzido pelos animais serve para enriquecer a terra.
Provocando mudanças de hábitos Ter hábitos saudáveis e consumir alimentos sem agrotóxicos são práticas que essas famílias vão adotando e estimulando à vizinhança a adotar. “Desde o tempo que começamos a cuidar da horta que o café da
25
Camponesa - Novembro de 2009
manhã da minha família é vitamina ou suco”, destaca Sônia. Já a agricultora Maria Matias, do Grupo de Mulheres Maria, da Agrovila Arizona, confessa que nem conhecia algumas das hortaliças que hoje em dia consome muito. “Eu não sabia como era a rúcula, e agora eu adoro comer”, diz a agricultora. O Grupo Maria é composto por quatro mulheres, e além da horta, elas também criam galinhas. Por enquanto, a maioria da produção da horta agroecológica é consumida pelas famílias dessas mulheres. “É um produto saudável que eu tenho na mesa para a minha família”, ressalta Maria Matias, mais conhecida por Dadá. Com a assessoria da AACC/RN, o trabalho de apicultura também é desenvolvido junto a alguns grupos. Desenvolver o trabalho com a apicultura traz o complemento do mel para as famílias. A partir da produção, o mel é utilizado pelas famílias para vários fins, dentre eles: adoçar comidas como bolos e vitaminas, preparo de lambedores e rechear pães e biscoitos. “Uma das sobremesas boas para a gente é comer o mel com farinha”, diz a apicultora Lucineide Menezes, da comunidade de Reduto.
Alternativa que respeita a diversidade ambiental Com três grupos, a AACC/RN trabalha a perspectiva agroecológica na apicultura. Na comunidade de Reduto, o grupo é bem heterogêneo, sendo formado por jovens e adultos, homens e mulheres. No Assentamento Arizona, nas Agrovilas Novo Horizonte e Arizona os grupos também são formados por jovens e adultos, sendo também de caráter misto. “A gente tem cuidado com o lixo e com o desmatamento”, explica a apicultora Maria das Dores Cardoso, conhecida por Dorinha. A apicultura sendo desenvolvida na linha agroecológica consegue diminuir as queimadas na região, consequentemente aumenta e preserva a mata nativa e a sua diversidade. “Temos muita flor por perto do nosso apiário, é comum encontrar o cajueiro, coqueiro, mangueiras e a carnaú-
26
www.aaccrn.org.br
Uma jovem aprendiz que transforma a realidade local Maria Katiana Barbosa da Silva, 22 anos, moradora do Assentamento Arizona, em São Miguel do Gostoso
E
m 2003, com apenas 16 anos de idade, Maria Katiana Barbosa da Silva conheceu o trabalho da AACC/ RN; com vontade de acompanhar as ações da instituição, ela passou a participar de capacitações e cumprir a agenda de projetos desenvolvidos para fortalecerem a juventude nas organizações e nos espaços comunitários, provocando ainda a capacitação em temáticas como: agroecologia, organização e gênero. A partir do momento em que passa a se integrar às discussões entre a juventude e as mulheres do assentamento, ela passa também a conhecer outros espaços e movimentos, tais como o FOPP (Fórum de Participação Popular nas Políticas Públicas) e a Marcha Mundial das Mulheres - MMM. Envolvida pelas oportunidades de discutir temáticas que “tinham a ver” com a sua realidade, e o local em que vivia, ela foi conhecendo e cada vez mais participando. “Quando conheci a Marcha já comecei a me envolver, porque percebi que as temáticas e a proposta do movimento tinham a ver com a minha vida, e com a vida das outras mulheres que eu conhecia no assentamento”, diz Katiana. Batalhar contra as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, e buscar a instrução e o esclarecimento a partir da compreensão e do debate em torno de assuntos como: violência sexista e exploração trabalhista, só nutrem a importância do fortalecimento e da identidade enquanto mulher para Katiana, que passa a participar de várias atividades com o apoio da AACC/RN e das suas instituições parceiras. Integrada às mulheres do assentamento, e com ideias para colaborar com a organização, Katiana viu vários grupos de mulheres aparecerem no município em busca de melhorias para suas vidas. “Os grupos de mulheres surgem e vão além do trabalho produtivo e das discussões das políticas públicas”, destaca a jovem. E é com esse ritmo, organização e poder de participação que as mulheres de São Miguel do Gostoso se tornam referencial para o território do Mato Grande. “Somos organizadas e cobramos as responsabilidades cabíveis aos poderes; nas discussões de saúde e educação somos referência”, argumenta. Com pique para o engajamento e atuação nos espaços de decisões, Katiana é a Coordenadora de Jovens do Sindicato dos(as) Trabalhadores(as) Rurais do município, e uma das Coordenadoras do FOPP – já que o fórum
tem coordenações que costumam compartilhar as responsabilidades. Lidando ainda com pique e ritmo, Katiana acompanhou também o surgimento do “Batuk Feminista”, um grupo de jovens que toca batucada e faz o seu som a partir de instrumentos reciclados. Elas estão sempre animando e espalhando o batuque musical e político pelos eventos que acontecem na cidade. O que deveria ser somente uma ação de lazer, tornou-se uma atividade de reflexão. Em um curto período de luta pelas melhorias e qualidade de vida das mulheres e da juventude, Katiana é uma multiplicadora e disseminadora das possibilidades de transformar para melhor a realidade local. Morando no assentamento Arizona desde 1998 com sua família, ela sabe reconhecer a importância da sociedade civil para decidir e resolver o que é o melhor. “Sei que todos esses esforços vêm transformando a minha vida e recebo essas influências porque acredito nisso”, assegura a garota que com firmeza diz querer estudar, para cada vez mais atuar e ser capaz de contribuir com a melhoria das comunidades, dos assentamentos e do município.
Camponesa - Novembro de 2009
ba”, diz Gonçalo, mais conhecido como Seu Dadá, de Reduto.
Espaço de aprendizagem e decisão Todas as pessoas inseridas nesses projetos desenvolvidos pela AACC/RN, também fazem parte do Fórum de Participação Popular nas Políticas Públicas – FOPP. Esse espaço surgiu em 1999, a partir da necessidade da sociedade civil de se reunir e discutir melhorias para o município, visando reivindicar e controlar a aplicação das políticas públicas para o bem estar da população no âmbito municipal. O FOPP tem uma coordenação composta por seis pessoas da sociedade civil e se reúne uma vez por mês. Com o objetivo de afirmar a autonomia e o empoderamento dessas pessoas, a AACC/RN apoia esse espaço e recorre a ele para definir a execução de parte dos projetos aprovados para serem desenvolvidos no município. “Nesses dez anos de existência e resistência, conseguimos mais de dois milhões de reais para investimento no município. Isso é o que contamos, e em termos de atores locais e aprendizados é imensurável o que conseguimos”, diz João
www.aaccrn.org.br
Eudes Rodrigues, um dos coordenadores do FOPP. Reconhecido como um instrumento muito importante para a sociedade civil, a organização é visível no fórum a partir das discussões temáticas existentes e dos encaminhamentos e decisões tomadas. “Reivindicamos o que é nosso por direito, e às vezes, chegamos a incomodar”, diz João Eudes. Com representação e diversidade, o FOPP é o espaço para definir quem deve se capacitar em determinadas temáticas, quais as datas que merecem ser comemoradas pela população, quem pode participar de intercâmbios e eventos. E assim, o investimento na participação vai cada vez mais se consolidando. “As mulheres do município são beneficiadas pelas discussões do FOPP, porque temos participação e conquistamos esse espaço”, diz Maria Katiana Barbosa, uma das coordenadoras do fórum.
Água transformada em cidadania Executando o Programa 1 Milhão de Cisternas, desde 2001, a AACC/RN já construiu em parceria com as famílias rurais de São Miguel do Gostoso 583 cisternas. O propósito é levar um pouco mais de cidadania para as famílias que não tinham
água de qualidade para beber e cozinhar os alimentos. O reservatório é capaz de armazenar 16 mil litros de água da chuva, e pode garantir água para as famílias do semiárido por uns seis meses durante o ano. Uma das etapas de execução do programa é justamente a definição das famílias a serem beneficiadas, pois critérios devem ser atendidos, e é justamente no FOPP, um espaço civil e democrático, que a população de São Miguel do Gostoso discute quem deve ser contemplado. “A gente só tomava água salgada, e com a cisterna mudou tudo”, fala a agricultora Maria Matias, da Agrovila Arizona.
Diversos produtos, cores e sabores Também foi a partir do Fórum de Participação Popular nas Políticas Públicas que as discussões dos(as) agricultores e agricultoras foram convergindo para a necessidade de uma feira agroecológica na cidade. “Discutimos no FOPP a vontade de ter uma feira em separado da feira convencional, para mostrar e garantir às pessoas a qualidade dos nossos produtos”, fala a agricultora Maria Socorro. Conhecer a experiência de outras feiras que já existiam, e espaços que trabalhavam
27
Camponesa - Novembro de 2009
na perspectiva da economia solidária era o diferencial. “Fomos conhecer a experiência da Rede Xique Xique no Oeste Potiguar, e amadurecemos as discussões e a articulação em São Miguel do Gostoso”, resgata João Eudes Rodrigues. Fortalecer os princípios solidários na economia e na produção agroecológica foram coisas básicas para a criação do Núcleo da Rede Xique Xique de São Miguel do Gostoso, a partir da experiência da feira que começou a dar certo e a mobilizar cada vez mais as pessoas. “O lançamento da Feira Agroecológica e da Economia Solidária de São Miguel do Gostoso aconteceu no dia 28 de agosto de 2006, uma segunda-feira”, resgata João Eudes. O dia oficial da Feira é a segunda-feira, em local específico, numa das ruas principais do município, com barracas padronizadas e identificadas, e as pessoas também com roupas específicas para a feira. Lançada em 2006, porém com os grupos se reunindo há pelo menos um ano; a feira vem se consolidando e apresentando resultados de que é possível criar uma relação de comércio confiável, ética e de respeito entre os(as) produtores(as) e os(as) consumidores(as). “Somos organizados, padronizados e as pessoas sentem essa diferença na feira”, resume João, um dos coordenadores do Núcleo da Rede Xique Xique de São Miguel do Gostoso. “A minha família consome os produtos, e costumo vender também tudo o que trago para a feira”, diz satisfeito o agricultor Damião Pedro, da comunidade de Tabua. O Núcleo local da Rede Xique Xique é formado por uma diversidade de grupos
28
www.aaccrn.org.br
que trabalham com a economia solidária e a agroecologia, e oferece uma gama de produtos que contempla: hortaliças, frutas, mel, doces, salgados, roupas e artesanato. Nem todos os grupos participam efetivamente da feira, pois alguns produtos não são comercializados com a mesma praticidade das frutas, por exemplo. Porém, o Núcleo é composto por todo o pessoal que está nos grupos e não se preocupa somente com os momentos de comercialização, porque a participação e integração do Núcleo envolvem a discussão e a formação em eventos e outras atividades que servem para a instrução das pessoas. Com a dinâmica de estarem sempre debatendo a respeito das fragilidades e avanços, as pessoas que integram o Núcleo costumam se reunir uma vez no mês para conversarem. “Nossa vida melhorou com a feira porque não temos mais prejuízo com a produção, não temos mais a pessoa do atravessador”, reflete o agricultor Francisco Clemente, mais conhecido por Tiquinho e integrante da Coordenação da Rede Xique Xique. A integridade com que os produtores e produtoras trabalham e legitimam a feira, é algo notório porque os consumidores e consumidoras de São Miguel do Gostoso também reforçam e acreditam nessa relação e nos princípios democráticos e justos da economia solidária e da agroecologia. Um produto de qualidade e mais saudável, por não conter nenhum tipo de agrotóxico é motivo para cativar clientes. “Temos que incentivar a agricultura familiar com o produto sadio, e ainda
pensar na autoestima dessas pessoas que fazem cursos, trocam experiências e sabem que o que fazem é muito importante para muita gente”, diz Andrée-Anne Raboud, moradora de São Miguel do Gostoso, e consumidora dos produtos agroecológicos da feira. O Núcleo da Rede Xique Xique já está trabalhando pela certificação participativa dos produtos agroecológicos dos grupos, e para isso vem desenvolvendo, com a colaboração dos consumidores e consumidoras, as etapas necessárias para alcançar a certificação. Com a opção por desenvolver a agricultura familiar baseada na agroecologia e na economia solidária, os agricultores e as agricultoras do município de São Miguel do Gostoso vêm alimentando o sonho possível, de que a soberania alimentar pode ser garantida. Ainda que os resultados alcançados até agora sejam um trajeto pequeno da longa estrada de trabalho e conscientização a ser percorrida, o caminho é traçado com alegria e sorrisos. Para desenvolver os programas e projetos institucionais ao longo desses anos, a AACC/RN tem contado com a parceria de várias instituições que apoiam a organização social, as tecnologias de beneficiamento, a economia solidária e a produção agroecológica. Dentre estas parcerias, estão: Fundação Konrad Adenauer, União Europeia, Agrônomos e Veterinários Sem Fronteiras, Fundação Genéve Tiers Monde, Sebrae, Associação do Programa 1 Milhão de Cisternas, Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério do Trabalho e Emprego.
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
Para r a d n u f o r Ap Monoculturas da Mente
História da Alimentação no Brasil
Autor: Shiva, Vandana Editora: Global Editora Assunto: Ciências Biológicas - Ecologia
Autor: Cascudo, Luís da Câmara Editora: Global Editora Assunto: Ciências Sociais - Antropologia
Perspectivas da Biodiversidade e da Biotecnologia
Sinopse: De maneira séria e corajosa, Vandana Shiva tece suas críticas aos programas de biotecnologia e de monoculturas impostos por grandes empresas ou cooperativas, financiadas principalmente por agências internacionais que destroem a biodiversidade e abafam milênios de saber da humanidade. Em 'Monoculturas da mente', com uma linguagem de fácil compreensão, a autora expõe seus argumentos a favor da proteção da biodiversidade e sobre as implicações da Biotecnologia e as consequências da predominância global do tipo de saber científico do ocidente para a agricultura.
Sinopse: 'História da alimentação no Brasil' chama a atenção dos estudiosos pela sua ideia, conteúdo e pela apresentação dos temas. A obra dá oportunidade a todos os interessados e curiosos em culinária de conhecer o que se comeu e bebeu no Brasil, sob a influência de várias etnias, principalmente a portuguesa, a indígena e a africana. Luís da Câmara Cascudo pesquisou e selecionou os antigos costumes universais comparando-os com o do Brasil, bem como a fabricação de objetos de uso no preparo da alimentação e até a padronização de horários de refeições, suas superstições e crendices.
Geografia da Fome
O Dilema Brasileiro - Pão ou Aço
O Mundo Segundo a Monsanto
Autor: Castro, Josué de Editora: Civilização Brasileira Assunto: Geografia
Autor: Robin, Marie-Monique Editora: Radical Livros Assunto: Ciências Biológicas - Ecologia
Sinopse: Um ensaio sobre o fenômeno da fome generalizada, numa época em que esta se torna cada vez mais visível em tempos de globalização. Josué de Castro foca seu estudo no continente americano, dando especial atenção à fome no Brasil.
Slow Food - Princípios da Nova Gastronomia Autor: Petrini, Carlo Editora: SENAC São Paulo Assunto: Culinária-Gastronomia Sinopse: 'Slow Food' preconiza uma nova gastronomia. Ao gastrônomo cabe o papel que Carlos Petrini denomina 'coprodutor' - alguém conhecedor da agricultura e pecuária; das condições dos trabalhadores do campo; da procedência dos produto. Ser uma pessoa ativa na mudança do planeta - rejeitar alimentos provenientes de exploração humana, de meios de transporte poluidores em excesso, de empresas que arruínam culturas locais ao se instalarem nas comunidades. Tudo isso para que um mundo mais justo e sustentável se torne realidade.
Sinopse: 'O mundo segundo a Monsanto' apresenta os perigos do crescimento das plantações de transgênicos, e a verdade escondida por trás da empresa que tem 90% das sementes OGMs patenteadas e apresenta-se como uma 'empresa agrícola'. Essa hegemonia coloca a multinacional norte-americana no centro do debate sobre os benefícios e os riscos do uso de grãos geneticamente modificados.
Comida e Sociedade
Uma História da Alimentação Autor: Carneiro, Henrique Editora: Campus Assunto: Culinária-Gastronomia Sinopse: A alimentação é, após a respiração e a ingestão de água, a mais básica das necessidades humanas. Mas como 'não só de pão vive o homem', a alimentação, além de uma necessidade biológica, é um complexo sistema simbólico de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos etc. 'Comida e Sociedade - Uma História da Alimentação' abrange, portanto, mais do que a história dos alimentos, de sua produção, distribuição, preparo e consumo. O que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come. As mudanças dos hábitos alimentares e dos contextos que cercam tais hábitos é um tema intrincado que envolve a correlação de inúmeros fatores.
29
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br Articulação Nacional da Agroecologia – ANA
www.agroecologia.org.br A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) reúne movimentos, redes e organizações engajadas em experiências concretas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de desenvolvimento rural.
Rede Ecovida de Agroecologia
Rede Pardal
www.redepardal.org.br Constituída em 1999, a Rede Programa de Assessoria Rural para o Desenvolvimento e a Autonomia do Local, conhecida por Rede Pardal, no Rio Grande do Norte, surgiu da necessidade de uma ação mais integrada e articulada entre nove instituições, que assessoram áreas de assentamentos e comunidades rurais no estado, que possuem e, reafirmam até hoje, afinidades políticas e institucionais, a saber: AACC/RN, Centro Padre Pedro, Centro Terra Viva, Centro Proelo, Ceacru, Coopervida, Techne, CPT e Sertão Verde.
www.ecovida.org.br Agricultores familiares, técnicos e consumidores reunidos em associações, cooperativas e grupos informais que, juntamente com pequenas agroindústrias, comerciantes ecológicos e pessoas comprometidas com o desenvolvimento da agroecologia, organizados em torno da Rede Ecovida com o objetivo de desenvolver e multiplicar as iniciativas em agroecologia; estimular o trabalho associativo na produção e no consumo de produtos ecológicos; articular e disponibilizar informações entre as organizações e pessoas; aproximar, de forma solidária, agricultores e consumidores; estimular o intercâmbio, o resgate e a valorização do saber popular.
Fazendo a Agroecologia
O DVD “Fazendo a Agroecologia” apresenta as experiências desenvolvidas através da agreocologia e da economia solidária narradas em seus espaços naturais, o que ajuda a perceber a importância dessas ações e a possibilidade das trocas e de uma qualidade de vida para as pessoas. Trabalho com a agricultura familiar com mais responsabilidade, ética e compromisso com o meio ambiente e as relações sociais é o que vem sendo feito e pode ser acompanhado nesse vídeo executado pela Rede Pardal que teve ainda o apoio do MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário, através da Secretaria de Agricultura Familiar.
Brasil - Transição para o verde Semeando Agroecologia
O vídeo Semeando Agroecologia é uma síntese das experiências agroecológicas vivenciadas por diversos grupos produtivos espalhados por assentamentos e comunidades rurais do Rio Grande do Norte e assessorados pela Rede Pardal nesses seus 10 anos de existência. É possível ousar dizer que toda essa dinâmica de produção, respeitando a natureza e buscando uma relação direta com quem consome, alimentado pelo espírito da agroecologia e da economia solidária, significa a construção social de uma nova agricultura.
O DVD “Brasil: Transição para o verde e os desafios dos combustíveis” tem o objetivo de discutir o tema da Agricultura familiar e dos biocombustíveis – considerando riscos e oportunidades. A gravação aconteceu no estado do Rio Grande do Norte, e foi elaborado de maneira participativa, simples e objetiva. O DVD serve como um suporte para provocar a reflexão e o debate sobre o tema, a partir da apresentação da complexidade da situação no RN. As várias realidades agrícolas do RN são mostradas, a partir de imagens e depoimentos de pessoas das regiões Oeste e do Mato Grande. Produção da AACC e da Agrônomos e Veterinários Sem Fronteiras.
Outras Publicações
Soberania Alimentar Uma resposta às mudanças climáticas Autores: Anamuri - Associação Nacional de Mulheres Rurais Indígenas (Chile), Redes/Amigos da Terra Programa Uruguai Sustentável (Uruguai), SOF -Sempreviva Organização Feminista (Brasil), Programa Cone Sul Sustentável. Sinopse: Esta cartilha visa apresentar a Soberania Alimentar. Bandeira de luta da Via Campesina, a Soberania Alimentar propõe o direito dos povos, países e Estado de definir suas políticas agrícolas e alimentares, assim como de proteger sua produção e cultura no âmbito da alimentação. Isso significa que o povo deve ter o direito de decidir o que comer e como produzir. As prioridades se tornariam, portanto, a produção local de alimentos e o acesso à água, aos recursos naturais, à terra e às sementes. Acessível no site: www.sof.org.br/arquivos/pdf/portugues_completo.pdf
30
Agroecologia Garantindo a Segurança Alimentar Autor: Projeto Agricultura Familiar, Agroecologia e Mercado / Desenvolvimento Sustentável da Agricultura Familiar no Nordeste Sinopse: Este caderno pretende contribuir para o debate no contexto político desse direito humano básico para que se cumpram os outros direitos da Declaração das Organizações Unidas e dos Objetivos do Milênio, entre as quais se destaca o combate à fome no mundo, que passa pelos hábitos alimentares de cada um e cada uma. Acessível no site: www.agroecologia.inf.br/biblioteca/Cartilha %2003.pdf
Cartilha Fazendo a Agroecologia Autor: AACC/RN Sinopse: A Cartilha “Fazendo a Agroecologia Construindo processos de transição agroecológica” tem por objetivo discutir o tema da agroecologia a partir da compreensão dos agricultores e das agricultoras envolvidas em processos de transição agroecológica. A cartilha foi produzida pela Rede Pardal, e contou com o apoio da Secretaria da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA/SAF) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Camponesa - Novembro de 2009
www.aaccrn.org.br
Artigo
A agricultura familiar alimenta o Brasil
H
á alguns anos, ao assistir uma palestra da professora Nazaré Wanderley, naquela ocasião professora da UFRPE, ampliei consideravelmente minha compreensão sobre a agricultura familiar e o sentido da reforma agrária no Brasil. Na ocasião, a professora relatava sobre uma pesquisa que realizou sobre assentamentos rurais e o viver neles. Uma de suas conclusões foi que para a maior parte das famílias o estar vivendo no meio rural, numa área de assentamento e o fato de serem agricultores e agricultoras familiares, significa “ter onde viver e o que comer”. Este é o sentido inicial, apenas uma centelha, mas que toma dimensões gigantescas quando analisada em nível de país. Não se está falando somente de conquistar casa e comida. Tal afirmação possui, na verdade, uma relação direta sobre a soberania alimentar e econômica da agricultura familiar, pois os resultados deste “viver e ter o que comer” produzem resultados diretos no desenvolvimento do país. Por décadas, no Brasil, a imagem que se faz da agricultura familiar é a de que ela é atrasada, não possui nem desenvolve tecnologia nos seus processos de produção, não nos serve. Porém, os dados do Censo Agropecuário 2006 vêm contrariando isso, mostrando que a agricultura familiar ocupa outra posição. Os números do IBGE mostram que a agricultura familiar é mais produtiva, gera mais emprego e renda, produz a maior parte da cesta básica no país, ou seja, a agricultura familiar alimenta o país. Podemos avançar mais um pouco afirmando também que ela é mais saudável, pois consegue, quando as condições lhe são dadas, produzir um produto agroecológico, coisa que o grande latifúndio nunca poderia proporcionar. O resultado do Censo Agropecuário 2006 vem nos confirmar que viver no meio rural significa efetivamente contribuir com o desenvolvimento do país. A agricultura familiar consegue empregar 75% da mão-deobra da agricultura quando o latifúndio ocupa uma área três vezes maior e emprega menos (apenas 25 % da mão-de-obra). Apesar disso, a agricultura familiar ainda responde por 38% do valor total da produção, sendo cerca de 75% destes referentes a produção da cesta básica dos brasileiros/as. É responsável ainda por 87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café,
Por Emerson Cenzi
“Os números do IBGE mostram que a agricultura familiar é mais produtiva, gera mais emprego e renda, produz a maior parte da cesta básica no país, ou seja, a agricultura familiar alimenta o país” 34% do arroz, 58% do leite , 59% do plantel de suínos, 50% das aves, 30% dos bovinos e, ainda, 21% do trigo. O valor médio da produção anual da agricultura familiar foi de quase R$ 14 mil. Isso significa soberania e segurança alimentar não apenas para a agricultura familiar, mas para as cidades também, pois a maior parte desta produção é consumida nas cidades. Apoiar efetivamente a agricultura familiar é enfrentar duas grandes batalhas, uma é a luta por políticas de Estado, que cada vez mais percebam e incorporem as necessidades efetivas de se subsidiar os agricultores e agricultoras familiares como forma de distribuir renda e proporcionar soberania alimentar. A outra, que se relaciona com a primeira, é trabalhar para que a sociedade em geral reconheça e apóie a agricultura familiar pois ela é a responsável por alimentar o país. Nesta
perspectiva, a mídia tem um papel fundamental a desempenhar no sentido de valorizar as iniciativas desenvolvidas pelos agricultores e agricultoras familiares, muitas vezes unidos em pequenas associações ou até em grupos informais de produção, organizando-se em experiências de economia solidária, estabelecendo relações de trabalho e produção a partir de uma perspectiva de respeito aos homens e mulheres que ali vivem. Experiências que, geralmente, se desenvolvem nos quintais, sob os cuidados atentos do núcleo familiar, principalmente das mulheres e em sintonia com o meio ambiente, respeitando os limites da natureza. O censo vem, portanto, afirmar que nossa luta pela consolidação de políticas para agricultura familiar como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), as iniciativas de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) de Assistência Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária (ATES), bem como também pelo convencimento da sociedade civil, para que seja mais aberta e compreenda a importância da agricultura familiar, se colocam como fundamentais para a soberania alimentar não só da agricultura familiar, mas de todos os brasileiros e brasileiras. Emerson Cenzi é graduado em Tecnologia de Cooperativismo (UFRN) com mestrado em Ciências Sociais (UFRN)
31
Camponesa - Novembro de 2009
CÁLICE DA NATUREZA A consciência busca, brandamente, Acordar o beija-flor que invade o amanhecer... Despertar um sonho divino, encantador, Na esperança da soberana caatinga sobreviver. Precisamos erguer o ramo da civilidade na campina Para combater a desertificação que abate o juremal... A fumaça da olaria que tisna as nuvens do entardecer, Alegra o forno do egoísmo com flores de funeral. Por que será que o semi-árido é degredado? O homem selvagem não tem sensibilidade De passarinho, não voa pelas copas da alegria Nem pensa na felicidade da floresta. Floresta que oferta o vinho à vida No orvalho que adoça o cálice da flor, Onde o beija-flor degusta a natureza divina.
A poesia “Cálice da Natureza” é de autoria do poeta potiguar, Janduhi Medeiros, e está no livro “Mensageiro das Oiticicas”, de 2007
32
www.aaccrn.org.br