Fala Roça - Edição 3

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ANO 2

RIO DE JANEIRO, FEVEREIRO 2014

NÚMERO 3

Esporte página 4

Mobilização no surfe Em meio à campanha pela despoluição na praia de São Conrado, projeto social oferece aulas de bodyboarding

Reportagem Ímpar página 5

Pra voltar meu coração pro morro da favela. A resolução 013 e a vida cultural das comunidades do Rio

Megafone página 7

Não esqueceremos A família fala sobre Amarildo e segue lutando por justiça

Cadê o Amarildo Você conhece? página 6

Lentes sagazes A história do Favela Art & Foto, projeto que reúne fotógrafos da Rocinha e do Vidigal

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2 Editorial FINALMENTE CHEGA A TERCEIRA EDIÇÃO DO FALA ROÇA, APÓS UM INTERVALO MAIOR QUE O ESPERADO. O JORNAL PASSOU POR ALGUMAS MUDANÇAS, ESTÁ DE “CARA” NOVA, MAS MANTÉM A IDEIA FIRME:

ser um veículo de comunicação comunitária comprometido com a comunidade, e com foco na cultura nordestina presente na Rocinha e cultivada pelos moradores. Finalmente chega a terceira edição do Fala Roça, depois de um intervalo maior que o esperado. O jornal passou por algumas mudanças, está de “cara” nova, mas mantém a ideia firme: ser um veículo de comunicação comunitária comprometido com a comunidade, e com foco na cultura nordestina presente na Rocinha e cultivada pelos moradores. E não é apenas o jornal que vem passando por mudanças. Como temos acompanhado, a cidade do Rio de Janeiro passa por um momento importantíssimo, com grande parte da população indo às ruas, reivindicando seus direitos, e muitas questões sociais fervendo nas discussões em âmbitos diversos. Mais do que importante, imprescindível para que as mudanças desejadas aconteçam. O importante é lembrar que as favelas nunca dormiram e que as lutas e os movimentos sociais fazem parte do cotidiano e da constituição da favela no espaço urbano. Desde a reforma encabeçada pelo então prefeito Pereira Passos, as favelas são alvo de remoções ou de tentativas de remoção. Nas décadas de 1960 e 1970, o poder público nova-

BAIÃO DE DOIS

mente conseguiu remover centenas de famílias de favelas que ocupavam a Zona Sul, levando-as para localidades afastadas desse centro urbano, desfazendo comunidades, amizades, laços afetivos de longa data, como bem mostra o filme recente de Anderson Quack e Luiz Antônio Pilar, Remoção. Recentemente, diversas áreas da cidade são mais uma vez alvo de remoções e de gentrificação, um movimento de valorização e especulação imobiliária que acaba encarecendo o custo de vida em certos lugares da cidade e afastando as pessoas que lá viviam para dar (mais) lugar a pessoas de maior poder aquisitivo. No entanto, a favela resiste, e sempre resistiu. E, em meio a esses processos, movimentos, tensões da cidade, a presença de um jornal comunitário que se comprometa com a comunidade e com o interesse dos moradores, priorizando uma visão da comunidade para ela mesma, em contraste com a visão das instituições e dos grandes meios de comunicação, se faz ainda mais importante. O Fala Roça se firma, então, no rastro aberto pelo Viva Rocinha e por tantos projetos sociais e culturais,

mostrando que a Rocinha e todas as favelas do Rio são os lugares de maior produção e efervescência política, cultural e artística. Nesta terceira edição, portanto, o Fala Roça se manifesta em relação ao assassinato de Amarildo e presta uma homenagem, trazendo uma carta de sua sobrinha, Michelle Lacerda, e uma matéria publicada pela agência Pública. Apesar de ser de julho do ano passado, pouco tempo após o ocorrido, decidimos republicá-la pela maneira respeitosa com que trata o assunto e a família de Amarildo. Nesta terceira edição, portanto, o Fala Roça se manifesta em relação ao assassinato de Amarildo e presta sua homenagem, trazendo uma carta de Michelle Lacerda, sobrinha de Amarildo. Outra questão que vem tomando as discussões nas comunidades é a da Resolução 013 e as consequências para a vida artístico-cultural das favelas. Para isso, convidamos Hanier Ferrer para escrever uma matéria sobre o assunto e contribuir para o debate. Dois projetos recebem destaque em duas matérias. Na coluna “Você con-

hece?”, Raquel Magalhães apresenta o Favela Art & Foto, coletivo idealizado pelo fotógrafo Felipe Paiva, morador do Vidigal, e composto por fotógrafos do Vidigal e da Rocinha, feras dos cliques, dos quais trazemos alguns nessa edição. Estreando nossa coluna de esportes, o outro projeto destacado é a escola de bodyboarding de Wanderley Silva, o Tio Ley, na matéria sobre o movimento pela despoluição da praia de São Conrado, organizado por surfistas e frequentadores tanto do morro quanto do asfalto. É Jorge Kadinho, outro convidado dessa edição, quem assina o texto. Para completar, Michele Silva traz a história da amizade entre uma estrangeira da Alemanha e uma moradora da Rocinha, então camareira do hotel onde estava hospedada, que perderam o contato. Heike anda tentando reencontrar Gorette e pediu a ajuda do Fala Roça. E Michel Silva compartilha a história de Nilton Oliveira, vendedor de sonhos, balas de coco e maçãs do amor conhecido em toda a comunidade, que percorre a pé quase todos os dias.

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por Michele Silva

VOCÊ CONHECE A GORETTE? Essa é a pergunta que a alemã Heike Schrader se faz desde outubro de 2010. Heike veio ao Rio de Janeiro a passeio, ficou hospedada no South American Copacabana Hotel e lá conheceu a funcionária Gorette Vieira de Abreu. As duas ficaram amigas e Gorette convidou Heike para conhecer a Rocinha. Chegando aqui, claro, Heike ficou encantada: “Gostei das pessoas, das casas, das ruas, principalmente a casa dela e a vista.” Heike voltou para a Alemanha e perdeu o contato com a amiga. O número de telefone pelo qual elas se falavam não funciona mais. Então, nesta

Heike e Gorete na laje, na Rocinha

terceira edição do Fala Roça perguntamos: Você conhece a Gorette? A Heike quer saber e nós também! Na infância, Heike Schrader morou no Brasil e tem um caso de amor pela Rocinha. Mesmo hoje morando longe, acompanha tudo que se passa na comunidade através da internet. Quando conheceu o Fala Roça, logo lembrou da amiga Gorette. “Ela é do nordeste. Não tenho certeza, mas acho que é de Pernambuco. Gostaria muito de encontrá-la, saber como está. E aproveita para mandar um recado: Oi Gorette! Estou com saudades de você. Espero que consiga te encontrar outra vez com a ajuda do Fala Roça.”

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Gorette, moradora da Rocinha, então funcionária do South Caso possa ajudar a Heike a encontrar sua amiga, entre em contato com a gente pelo e-mail michele@falaroca.com American Copacabana Hotel

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Delícia

Rio de Janeiro, fevereiro 2014

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O homem dos sonhos Perseverante, sonhador e batalhador. É assim que se pode definir Nilton Oliveira, de 47 anos, trabalhador autônomo. Carioca da gema do ovo, cria da Rocinha e filho de mineiros, a vida dele é de um andarilho.

por Michel Silva texto e fotos

Há 15 anos, o doceiro percorre os becos da Rocinha carregando uma caixa com 60 kg de doces, como sonhos, maçãs do amor e balas de cocos caramelizadas que oferece por R$ 2,00 cada. Com seus gritos, Nilton anuncia sua chegada: “Quem quer sonhar, quem quer! - ou então: Olha a maçã do amor freguesa!”. A vida do doceiro é digna de aprendizado. Os primeiros empregos foram como entregador de farmácia, entregador de jornais e feirante. O envolvimento com os doces começou quando Nilton conseguiu um emprego como lavador de pratos em um hotel. O supervisor, atento à dedicação do empregado, ofereceu uma oportunidade para que ele trabalhasse na confeitaria. “Ganhava pouco como lavador de pratos. Com a oportunidade na confeitaria, ia somente na minha folga e não recebia salário. Eu ia por con-

ta própria porque queria ter uma profissão adequada”, lembra Nilton. Bastante interessado pelo ofício de confeiteiro, o doceiro trabalhou em outros hotéis, como o Sheraton, no Leblon. Com a saída do emprego, Nilton começou a vender doces pelos becos da Rocinha. Sempre fazendo o mesmo trajeto, há 15 anos, de terça a domingo. Ele inicia a caminhada a partir da própria casa, na Cachopa, passa pela Vila Verde, volta para a Cachopa, Paula Brito e Dionéia. “Vendo mais ou menos 600 sonhos por mês. Às vezes a venda é fraca, então vou para a praia vender sorvetes e biscoito Globo, aos sábados e domingos, para complementar a renda”. Perguntado sobre a abertura de uma loja para vender seus produtos, o doceiro revelou um desejo: “O meu maior sonho é ter meu próprio negócio. É um trabalho árduo. Não é nem questão de andar. Às vezes está chovendo e atrapalha muito a minha renda., e exalta: Os sonhos, as balas de coco... eu faço com prazer.”

O andarilho fez com que percebesse a transformação urbanística na Rocinha. “Na Vila Verde você tinha que andar se agarrando nas paredes porque era barro puro. Só depois de um tempo que os moradores se reuniram e colocaram concreto na rampa.”, relembra. A entrevista é interrompida por uma moradora que havia comprado dois sonhos fiado. Durante todos esses anos, andando pelos becos da Rocinha, Nilton é uma figura conhecida. Todos o conhecem. Mesmo aceitando fiado ele demonstra cautela. “Eu confio e não confio. Eu não posso ver o coração das pessoas.O que prevalece é a palavra da pessoa.” Sonhos, maçãs do amor, balas de coco caramelizadas. Nilton também aceita encomendas e vende os doces em eventos. “A pessoa me liga e diz que em tal hora e tal dia vai ter uma festa em um local. Eu preparo as coisas e fico na entrada da festa. Isso me ajuda.”, conta ele.

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O telefone para contato de Nilton é (21) 3322-8023.

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4 Esporte “DESDE O FINAL DE AGOSTO, A PÁGINA DO MOVIMENTO NO FACEBOOK CONTA COM QUASE 1.200 ”CURTIDAS”.

Mobilização no surfe Em meio à campanha pela despoluição na praia de São Conrado, projeto social oferece aulas de bodyboarding por Jorge Kadinho texto e fotos

Pepino, Praia da Gávea, São Conrado, Cantão ou “Canto Esquerdo”, estes são alguns dos nomes que são atribuídos a essa praia. Cravada entre quatro bairros da Zona Sul carioca, a praia de São Conrado foi a maior diversão na década de 80 para os moradores da Rocinha, uma febre. Todos pegavam ou queriam pegar ondas. O pico sempre foi frequentado por surfistas como Chiquinho Calango, Byla Ramon, Xandinho, Abelhudo, Cão, Marcelo Pedro, Nano Dias, Kung, Guilherme Tâmega e Fábio Aquino. Eles foram responsáveis pela integração entre o morro e o asfalto, além dos competidores locais que sempre levaram o nome de nossa comunidade. Entre eles, Guilherme Ximenes, Bruno Pão, Juninho Back Fliper, Marcos Bambam, Ricardo Ramos “Choco” e muitos outros esportistas. Desde a década de 80, muitas coisas mudaram e houve até autorização para colocarem uma placa em homenagem aos antigos surfistas e bodyboarders próxima à praia. A poluição aumentou junto com o “crowd”. São Conrado é

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uma das praias cariocas mais procuradas pelos surfistas, já que as ondas são perfeitas para a prática do esporte. É também a mais frequentada pelos moradores da favela da Rocinha, que fica próxima ao local.

ESCOLINHA DE BODYBOARDING FAZ SUCESSO

SURFISTAS LUTAM CONTRA O ESGOTO Cansados de pegar onda em meio a tanto esgoto, surfistas criaram um movimento chamado “Salvemos São Conrado” para combater a sujeira na praia de São Conrado. O projeto foi desenvolvido para denunciar o despejo irregular de esgoto na praia. Os constantes vazamentos estão poluindo a água, que fica imprópria para banho e para a prática de esportes, como o surfe. Desde o final de agosto, a página do movimento no Facebook conta com quase 1.200 ”curtidas”. Lá, os membros do grupo publicam mensagens e outros conteúdos de protesto contra a degradação da praia. Diante de tanta mobilização, o projeto conseguiu conquistas significativas. As obras do programa Sena Limpa já foram iniciadas e a esperança é que o problema do despejo irregular de es-

goto chegue ao fim. De acordo com o presidente da Cedae, Wagner Victer, o projeto de engenharia é um dos mais complexos dos últimos anos. A Estação Elevatória de São Conrado será feita dentro das mais avançadas técnicas de automatização, redução de consumo de energia elétrica, baixo nível de ruído e sistema de desodorização próprio.

Há 12 anos, um sonhador e amante do bodyboarding, Wanderley Silva, conhecido como Tio Ley, vem mantendo uma escolinha de bodyboarding que profissionaliza jovens da Rocinha e adjacências no esporte. “Eu treinava alguns atletas locais quando começaram a aparecer crianças querendo praticar o esporte. E foi assim que nasceu a escolinha”, conta ele. O projeto possui quatro instrutores: Renan, Rafaela, Luiz e Daniel, e atende mais de 100 jovens de 9 a 17 anos para que possam ter no esporte uma vida melhor longe das drogas. As aulas da escolinha são feitas na praia de São Conrado, no canto esquerdo, todas as terças e quintas das 8h às 10h e aos sábados das 9h às 12h. Para fazer parte da escolinha, o jovem precisa estar estudando (a frequência escolar é monitorada pela escolinha), apresentar uma foto 3x4 e atestado médico. Um dos maiores problemas do projeto é a falta de material para atender a demanda de jovens interessados em praticar bodyboarding.

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Reportagem Ímpar

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“Pra voltar meu coração pro morro da favela.” A resolução 013 e a vida cultural das comunidades do Rio por Hanier Ferrer “Zero-treze”. Por este nome, atende o polêmico mecanismo do Estado que regulamentou o Decreto 39.355 de maio de 2006, que estagnou a efervescência cultural do funk e dos eventos em lugares populares. Pela sua formação, após uma leitura paciente, fica fácil perceber que, apesar de afirmações como “uniformizar atuação de órgãos da ordem no âmbito do Estado”, ela, como um todo, é voltada para o impedimento da realização de eventos à parte popular da sociedade civil, mais diretamente às favelas, subúrbios e periferias. Um resquício de medidas da ditadura civil-militar. Requisitos pouco objetivos, inúmeros termos indefinidos e sem conceituações claras, prazos ambíguos e extremamente curtos, grande poder de decisão nas mãos da PMERJ… Enfim, desde sua promulgação e publicação nos idos de 2007, tem servido ao Estado como meio para conferir à Secretaria de Segurança uma prerrogativa que deveria ser primordialmente da Secretaria de Cultura, principalmente, apesar dos defeitos apontados, pela temática tratada na resolução. O que ocorre dentro da política atual de gestão do Estado é a busca pela obtenção do controle dos territórios populares de forma a manter a ideia de asfalto e morro, do que é cidade e o que não é cidade, reforçando conceitos que não são democráticos, mas, pelo contrário, favorecem a manutenção de um apartheid na cidade. Fato é também que o secretário Mariano Beltrame defende a ideia de que isso deve ser controlado pelas forças de ordem para evitar a corrupção de seus subordinados. Então, a ordem cronológica dos acontecimentos deixa tudo às claras. Em 2006, o Decreto é publicado, tendo sido regulamentado em 2007, para que em 2008 o projeto piloto das UPPs fosse lançado no Santa Marta, favela estrategicamente escolhida para vender o projeto para a mídia nacional e internacional como uma metodologia eficaz que proporcionasse a inserção das favelas, áreas supostamente carentes, na lista de espaços a serem ocupados com planos sociais. Um grande problema, ao se perceber isso, é justamente o que o governo estadual diz, sem precisar

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“NO GRUPO DE TRABALHO SOBRE A RESOLUÇÃO QUE VAI SUBSTITUIR A “ZERO-TREZE ONDE ESTÃO MORADORES, ASSOCIAÇÕES, FUNKEIROS E OUTROS PRODUTORES DE CULTURA DAS FAVELAS, SUBÚRBIOS E PERIFERIAS NESTE GRUPO DE TRABALHO?“ falar, que todas as ações, realizações e militância das Associações de Moradores, de ONGs e projetos diversos foi ineficaz ou inexistente nestes contextos territoriais. Assim, busca levantar o foco para uma falsa ideia de cuidado e preocupação com a redução das desigualdades sociais, que veio sendo fomentada pela mídia convencional, e busca invisibilizar os problemas e o terror causado pelos entraves com a presença da PMERJ nas favelas, que tem o aval do governo estadual para proibir, inclusive, festas de aniversário de crianças. A PMERJ também tem o poder totalmente autoritário de mudar de ideia, caso tenha permitido a realização de algum evento e, no dia, avisar que não será mais possível a realização do mesmo – caso que aconteceu certa vez na realização de um evento no Borel. Há algum tempo, grupos como a Agência de Redes para Juventude, a Associação de Profissionais e Amigos do Funk (APAFunk), Meu Rio, as Comissões de Cultura e Direitos Humanos na Assembléia Legislativa, entre outros, têm lutado para que a realização dos bailes e outras festividades voltem a acontecer nas favelas. Três meses atrás, ocorreu a II Conferência Municipal de Cultura, no Teatro Imperator, no Méier. Lá, debatemos sobre a resolução 013 e redigimos uma moção, assinada por todos os presentes, exigindo a revogação dessa medida, o que foi feito alguns dias depois. Militarizar a cultura na favela é simplesmente dar respaldo à utilização do termo “pacificação”, de cunho militar, que significa nada mais que invasão de um território específico por meio de ações incisivas, posteriormente visando a desestabilização dos

moradores do lugar para anulá-los, além de ir contra a própria Constituição por vedar a liberdade de expressão e direito à reunião. Tal medida é inviável e comemoramos a queda dela. Agora, o que está em pauta é a discussão sobre a resolução que vai substituir a “zero-treze”. Cabral já declarou que um grupo de trabalho com integrantes da Casa Civil do Governo do Estado, Secretaria de Segurança, Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos, Corpo de Bombeiros e Prefeitura irão estabelecer as novas normas – mas onde estão moradores, associações, funkeiros e outros produtores de cultura das favelas, subúrbios e periferias neste grupo de trabalho? Do outro lado, a Fundação Getúlio Vargas, juntamente com a APAFunk, também estuda uma proposta de texto e fará frente ao que o governo estadual quer empurrar sem a participação popular na fiscalização, construção e organização da nova resolução. Não podemos apenas comemorar! A luta continua para que o funk e outras expressões culturais populares retornarem com total liberdade não só nas boates do asfalto, mas na vielas, esquinas, quadras, ruas e calçadas, onde há o vigor originário, sendo produzido, festejado e promovido pelos seus próprios criadores!

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6 Você conhece?

Lentes sagazes

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A história do Favela Art & Foto, projeto que reúne fotógrafos da Rocinha e do Vidigal por Raquel Magalhães No dia 14 de Janeiro de 2011, quatro amigos resolveram criar um projeto em que o morador de favela pudesse registrar o seu espaço, se reconhecer ali e fazer com que os outros moradores também reconheçam as belezas que aquele espaço tem. Assim, Felipe Paiva e Pedro Castro, do Vidigal, junto com Flavio Carvalho e Leandro Lima, da Rocinha, criaram o Favela Art & Foto. Felipe Paiva (28) explica: “O foto clube Favela Art & Foto nasceu a partir do anseio de um grupo de fotógrafos e amigos que se propuseram a criar um espaço onde pessoas oriundas de favelas e de outras partes da cidade pudessem discutir e popularizar a arte da fotografia, onde profissionais e amadores se encontram aos fins de semana para registrar as favelas do Rio de Janeiro. Nosso objetivo principal é fomentar e popularizar a arte da fotografia dentro dos territórios de favelas. Queremos fazer exposições itinerantes, além de percorrer os espaços que a gente foi fotografar. Queremos também estar em outros espaços da cidade, e consequentemente em galerias, mostras culturais etc.”. Nascido na favela do Vidigal, Felipe sempre gostou de fotografar, é um jovem humilde, estudioso, alegre, divertido, e encontrou na fotografia uma forma de expressar seus sentimentos. A ideia de percorrer outros espaços surgiu na primeira vez que saíram para fotografar no Complexo do Alemão, onde já existia um foto clube. Os fotógrafos perceberam que valia a pena ampliar, até para fazerem um paralelo de como são as favelas da Zona Sul, Zona Norte e Zona Oeste. E o caminho deles agora é esse, a cada sábado vão fotografar em favelas diferentes, conhecendo culturas distintas. Quando o grupo vai fotografar em outras favelas, as pessoas ficam curiosas: perguntam o que estão fotografando, de onde são... Depois que eles se apresentam como fotógrafos de favelas, e explicam que foram lá para mostrar a beleza daquela comunidade específica, há um acolhimento grande. A união dos moradores chama a atenção deles: “No morro do Ma-

caco, todas as casas têm bares, parece que todo mundo bebe. É uma coisa inusitada, que você não vê de forma comum... E nas favelas da Zona Norte, as pessoas têm o costume de criar animais; eu vi cavalos, porcos, galinhas, cabritos etc. Lá ainda tem essa cultura”, conta Felipe. Hoje, a equipe se tornou uma grande familia e pretende continuar sempre assim, unida pela fotografia. Rafaella Cardoso, moradora da Rocinha, estudante de design e de comunicação visual, afirma: “Fotografar é a melhor forma de expressão que encontrei para exteriorizar o que sinto e assim alimentar minha alma. Fazer parte do Favela Art & Foto é estar entre amigos que vivem em prol do mesmo alimento, que é fotografar, registrar e eternizar a beleza da vida”. Bruno Pires, também membro do FAF, fala de sua motivação: “Sempre interagi muito com favelas. O que me motiva a fotografar é a possibilidade de me entregar ao momento, eternizá-lo sempre me fascinou! Conheci o FAF através de uma amiga que soube que passariam perto de casa, no Morro dos Macacos. Hoje faço parte de uma grande família que tem em comum o amor pela fotografia.”

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Fiquem ligados na fanpage do grupo para saber onde o FAF irá fotografar nos próximos sábados e divirtam-se!

fotos 1 Karina Tude 2 Bruno Pires 3 Marcos L. Sales 4 Flavio Carvalho 5 João Lima Se você se interessou por esse projeto e quer fazer parte dessa grande familia, entre em contato: www.facebook.com/favelartefoto | avelartefoto.fc@gmail.com Telefones Felipe Paiva (21) 7425-0660 Flávio Carvalho (21) 9698-0154 Antônio Golgenstein (21) 7869-1321 Bruno Pires (21) 7530-0982 Wellington Costa (21) 8727-7200

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Megafone

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Não esqueceremos

pequena conserva a esperança de filha que sempre acreditou nas palavras do pai, e ele lhe prometeu um bolo grande no próximo aniversário.

A família fala sobre Amarildo e segue lutando por justiça

“ERA UM MENINO E PULOU NO FOGO”

por Anne Vigna , da Agência Pública* Não é preciso passar muito tempo junto à família de Amarildo para entender que a UPP da Rocinha se envolveu em um problema bem grande. Amarildo não é uma pessoa que poderia desaparecer sem que sua família deixasse de perguntar por ele, não é o pai de quem os filhos esqueceriam facilmente, não é o sobrinho, tio, primo, irmão, marido por quem ninguém perguntaria: onde está Amarildo? Neste pedaço bem pobre da Rocinha, onde nasceu, cresceu, viveu e desapareceu Amarildo, “muitos são de nossa família”, diz Arildo, seu irmão mais velho, apontando os quatro lados da casa. Em uma caminhada pela comunidade na companhia de um sobrinho de Amarildo, a repórter , conheceu algumas primas, depois umas sobrinhas, tomou um café com as tias lá em cima, de onde desceu acompanhada de irmãos e filhos de Amarildo. De todos, ouviu a descrição de Amarildo como “um cara do bem” que, por desgraça, tornou-se famoso – e não por sua característica mais marcante, o bom coração. As casas são ligadas por escadas antigas, feitas possivelmente por seus avós que vieram da zona rural de Petrópolis para o Rio, com os três filhos ainda bem pequenos. “A Rocinha nessa época ainda era mato e poucas casas de madeira, uns barracos, como se diz, e nada mais”, diz Eunice, irmã mais velha de Amarildo. A curiosidade da repórter sobre o passado da família é o suficente par que ela pegue o telefone, para ligar para uma tia avó, “a única que pode saber alguma coisa sobre a história é ela”, diz. A tia-avó, que também vive na Rocinha, confirma por telefone o que Eunice já sabia: a “tataravó era escrava, possivelmente em uma fazenda de Petrópolis, mas não se sabe mais do que isso”. Eunice diz ter retomado as origens familiares ao fazer de sua casa um centro de Umbanda. É aqui, na parte debaixo da casa, a mais silenciosa, que ela recebe as pessoas que querem saber de seu irmão. “Temos a mesma mãe, mas nosso pai não é o mesmo. Minha mãe gostava de variar”, comenta, rindo. Ali, na casa construída por ela, moram pelo menos dez pessoas, entre crianças e adultos. Na cozinha, as panelas são grandes, como numerosas são as bocas. No primeiro quarto, três mulheres comem sentadas na cama. Em outro quarto, duas sobrinhas estão em frente ao computador, trabalhando na página do Facebook feita para Amarildo, seguindo os cartazes virtuais de “onde está Amarildo?” que vêm de várias partes do país.

ENTRE ONZE IRMÃOS A mãe de Amarildo teve 12 filhos e trabalhou muito tempo como empregada doméstica na casa de uma atriz famosa do bairro do Leblon. “Essa atriz quis adotar um de nós, mas minha mãe nunca quis”, lembra o irmão Arildo, três anos mais velho do que ele. Sobre o pai de ambos, não se sabe onde nasceu, apenas que era pescador, com barco na Praça XV, no centro do Rio, onde conheceu a sua esposa. Os netos não se lembram como nem quando, mas ele se acidentou em um naufrágio e acabou morrendo em consequência de um ferimento na perna. Amarildo tinha um ano e meio. Mas, adulto, Amarildo tinha paixão pela pesca. “Era a única coisa que ele fazia na vida quando não estava trabalhando ou nos ajudando: ia pescar sozinho ou com um primo nas rochas de São Conrado. Voltava com muitos peixes”, conta, orgulhoso, Anderson, o mais velho dos seus seis filhos. As varas de pescar de bambu, que ele mesmo fazia, estão encostadas em casa desde o dia 14 de julho, um domingo, quando os policias da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha o levaram “para verificação”. Ele tinha acabado de limpar os peixes trazidos do mar e Bete, apelido de Elizabete, sua esposa há mais de 20 anos, esperou que ele voltasse da UPP para fritar os peixes “como em tantos domingos”, ela conta, o olhar perdido. Foram 20 anos de união, seis filhos, a vida dividida em um único cômodo que servia de dormitório, cozinha e sala. Semanas após o desaparecimento do marido, Bete se esforça para conseguir contar como conheceu o “meu homem”, ela diz, evocando a lembrança do jovem que se sentou ao lado dela em um banco em Ipanema: “Eu não saía muito desde que cheguei de Natal (RN) para trabalhar como empregada em uma família. No domingo, ia caminhar um pouco no bairro. Ele veio conversar comigo, nos conhecemos, e ele me trouxe para a casa de sua mãe aqui na Rocinha. Nunca mais saí”, conta. Bete trouxe os dois filhos que vieram com ela do Nordeste, sem criar problemas com Amarildo. “Ele adora crianças”, ela diz. O que as duas menorzinhas da família confirmam: “É o tio Amarildo que nos leva para a praia de São Conrado, ele que nos ensinou a nadar”. A mãe apenas sorri, sempre fumando, e, sem disfarçar a tristeza, conta que está preocupada com a filha mais nova, de cinco anos. “Ela sempre estava com o pai”, suspira. No começo, Bete lhe disse que o pai tinha ido viajar e que, por ora, não voltaria. A

Aos 11 anos, Amarildo se tornou o heroi da comunidade ao se meter em um barraco em chamas para salvar o sobrinho de quatro anos. “Era um menino, e pulou no fogo. Me salvou e também tentou salvar a minha irmã, que tinha oito anos. Não conseguiu tirá-la de lá, ela morreu, e eu fiquei meses no hospital”, lembra Robinho, hoje com 34 anos, a pele marcada pelas cicatrizes desta noite de incêndio. Aqui, Amarildo é conhecido por todos como “Boi”, por ser um homem forte que carregava as pessoas que precisavam de socorro para descer as escadas e chegar com urgência a um hospital. “Uns dias antes de desaparecer, ele carregou no colo uma vizinha, e a salvou. Era uma ótima pessoa, sempre ajudava os outros – numa emergência ou numa mudança”, conta a cunhada Simone, sem conter as lágrimas. “Eu tenho muita saudade dele, principalmente do seu sorriso. Meu marido não fala nada, mas eu o conheço, está com muita raiva. Na primeira noite, ficou debruçado na janela a noite toda, esperando o irmão voltar”, diz, emocionada. Toda a família está com raiva. E, dessa vez, ninguém quer ficar quieto, mesmo sabendo os riscos da denúncia. Vários familiares foram ameaçados por policiais. “Por que foram atrás dele? Estamos voltando à ditadura?”, pergunta a prima, Michelle. “Ele trabalhou toda a vida. Quando não trabalhava, nos ajudava, ou ia pescar para a família. Nunca se meteu com ninguém”, comenta, revoltada. Boi era pedreiro havia 30 anos e ganhava meio salário mínimo por mês. “Por isso, às vezes, carregava sacos de areia aos sábados para ganhar um pouco mais”, comenta Anderson, mostrando os tijolos que o pai comprou com o dinheiro extra para fazer um puxadinho no segundo andar na casa: “Na verdade, ele ia ter que voltar a fazer a fundação aqui de casa porque está caindo, eu e meu irmão íamos ajudar”, detalha. “Ele era meu pai, irmão, amigo, era tudo para mim”, diz, escondendo as lágrimas quando chega a irmã mais nova, de 13 anos. Os familiares vivem em suspense, à espera das notícias que não chegam. Não desistem: organizam-se como podem com vizinhos, amigos e outras vítimas da polícia. Negaram uma oferta do governo do Estado do Rio de Janeiro para entrar no programa de proteção à testemunha. Preferiram continuar na Rocinha, sua comunidade. “Temos que lutar para que essa impunidade não continue. Queremos justiça por Amarildo e para todos nós que convivemos agora com essa polícia”, revolta-se a sobrinha Erika. Aos 43 anos, Amarildo desapareceu sem que a família tenha direito sequer a uma explicação oficial, como tantas outras pessoas de tantas favelas brasileiras, vítimas de violência policial. Mas, dessa vez, ninguém vai se calar. Onde está Amarildo? *reportagem publicada em 29/07/2013 pela Agência Pública

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e reproduzida conforme as normas de republicação da Agência. http://www.apublica.org/2013/07/amarildo-presente/

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8 Megafone Carta da sobrinha de Amarildo, Michelle Lacerda

TIRINHAS Cambito e sua turma Otavio Rios

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Os dias são mais vazios, falta um espaço à mesa. Fica um abraço que não foi dado, um carinho que não foi feito, uma palavra que não foi dita, um sorriso que não foi entregue e, principalmente, os beijos e o amor que nunca mais teremos. Amarildo de Souza, Boi, como era conhecido por sua força de luta e de trabalho, tinha 43 anos e era pai de seis filhos e companheiro de Elizabete, mas antes disso ele era filho de Carmen, e criado pela irmã Maria Eunice e a companheira Jurema. Um homem de princípios e bem educado. Amarildo, negro, morador de comunidade e ajudante de pedreiro, uma pessoa muito companheira, solícita e ligada à família, que, por qualquer lugar que passava na comunidade, estava sempre acompanhado de Milena (a filha caçula, de 6 anos), foi retirado da porta de sua casa em 14 de julho de 2013 e fez um caminho sem volta, deixando um amargo gosto de quero mais. Nossa família, que luta diariamente, precisa dar um enterro digno a um membro que faz tanta falta. Toda vez que se ouvia aquele barulho de beijo, eu já sabia: “Já vem o tio Amarildo” que chegava chegando, com um ar de rei leão, um jeito de durão, mais um homem de coração mole que ficava muito triste quando eu não o beijava e nem o abraçava, e que toda vez que me via, dizia: ” Me amarro na minha sobrinha, mas acho que ela não gosta mais de mim, porque ainda não me deu o meu beijo hoje.” E sempre que sentia-se mal corria para os braços de minha mãe (Eunice), todos os medos compartilhava com ela e logo depois me perguntava “o que você acha minha sobrinha?”, pois a opinião da família era o que mais contava... Hoje já não temos mais o prazer de desfrutar de sua companhia. Está faltando um filho, um irmão, um marido, um pai, um tio, um vizinho, um Boi, está faltando um Amarildo!

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EXPEDIENTE repórteres Fabrício Souza | Gracilene Firmino | Jorge Freire | Michel Silva | Michele Silva | Raquel Magalhães editor Felipe Machado diagramação Rafael Rodrigues contato faleconosco@falaroca.com

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