Caminhando entre estrelas (1-13)

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CAMINHANDO ENTRE ESTRELAS

SANTIAGO DE COMPOSTELA

GILSON MARQUES

eBook

2ª edição - 2024

Este livro é dedicado a Ilda, Larissa e Felipe, família amada.

Meus agradecimentos aos queridos Neila Márcia Nucci Géllio, Ilda Madalena de Araújo Marques, Larissa e Felipe de Araújo Oliveira Marques, Pedro de Arruda Monteiro, Paulo Roberto Buchaim e Mauro Lopes, revisores, leitores de primeira hora e incentivadores que, com especial paciência, ajudaram a construir o texto final deste diário e destas impressões; a minha mãe, que atentamente acompanhou meus passos; e a todos de minha família e aos amigos que quiseram meu bem neste caminhar.

Também agradeço de todo o coração à professora Alina Monteiro por suas inspirações e a Verbena Neves Reis, grande incentivadora, assim como a Sérgio Reis Alves, Tânia Pulier, Shirley Oliveira e Cezar Bergantini. Todos têm minha gratidão.

Meu reconhecimento à dedicação com que Bartira Costa Neves se empenhou na cuidadosa revisão e a seu olhar atento a todos os detalhes do processo de edição.

A George Barcat que, com sua lucidez e seu saber, despertou-me para a verdadeira essência do caminhar, meu muito obrigado.

Meu especial agradecimento a Dom Bernardo Bonowitz, OCSO, que me indicou leituras preparatórias preciosas, leu pacientemente estes escritos e brinda a todos os leitores com um prólogo que traduz a alma destes relatos.

¿A dónd’irá aquel romeiro, meu romeiro,adónd’irá? Camiño

de Compostela, non sei s’alíchegará.

(“Romance de don Gaiferos”, publicado por Manuel Murguía)

Quem quer que venha a tomar e ler “Caminhando Entre Estrelas”, com sua prosa pura e despretensiosa, pouco a pouco se verá movendo em nove mundos interconectados. Cada um deles é rico, variegado e, como Gilson o apresenta, não para ser julgado, simplesmente é o que é.

O primeiro mundo é o de Compostela – o destino invisível, o ímã que atrai Gilson e uma multidão diversificada de outros peregrinos de toda a face da Terra. Embora o santuário só se torne manifesto no fim do livro, ele já está lá desde o princípio e durante todo o caminho. A cada dia, o diário começa com o número de quilômetros rodados no caminho para Compostela e o que ainda falta para chegar lá. Compostela é a causa finalis, o fim da viagem, o símbolo da nova Jerusalém.

O segundo é o mundo da natureza. Tanto com seu olhar quanto com sua caneta, Gilson tem os olhos voltados para os esplendores, a graça e as tragédias da natureza: campos de milho intermináveis, crescendo ou já colhidos; a majestade dos Pireneus; um rio raso, correndo depressa; a tristeza de um vasto terreno queimado, incendiado acidentalmente por duas crianças brincando com fósforos... Ele nos faz sentir que a natureza é uma das companheiras principais e mais fiéis em sua peregrinação – incluindo a eventual nuvem de pernilongos persistentes.

Um mundo ainda mais colorido é o das pessoas que Gilson encontra ao longo da viagem. Certamente, ajuda o fato de esse autor ter um dom para fazer amigos. Com facilidade e alegria, ele entra em muitos novos relacionamentos, sempre com um rápido, mas eloquente, insight sobre a pessoa que acaba de encontrar. A maioria delas é verdadeiramente simpática – em particular, as pessoas que dirigem os albergues e aquelas que trabalham como voluntárias durante as férias para dar uma ajuda. Elas irradiam acolhida, afeto e generosidade. Em quase todos os albergues, Gilson encontra uma caixa de ofertas que diz: “Dê quanto quiser” ou Recibimos y damos. Os hospedeiros parecem ter sido, eles mesmos, transformados pela santidade de Compostela. De um jeito sorridente, pé-no-chão, eles são anjos da guarda durante a viagem.

Obviamente há os coperegrinos também. Parece que o caminho de Compostela está cheio de personagens, como a estrada dos peregrinos de Chaucer em Os Contos de Cantuária. Há muitos pares de namorados, avós e netos, numerosos pares de amigos e muitos peregrinos solitários como Gilson – que, aliás, nunca fica sozinho por muito tempo. Um grupo que nunca vou esquecer é o de senhoras espanholas de meia-idade que acompanhavam uma querida amiga, recentemente viúva, durante a viagem como uma forma de ajudá-la a superar sua depressão.

A história é outro mundo que Gilson atravessa em seu caminho para Compostela. E não apenas uma pequena fatia da história humana, mas toda ela. Em Atapuerca, próxima a Burgos, ele visita as escavações onde foi encontrado o mais antigo crânio humano, datado de mais de um milhão de anos atrás. Pouco depois, ele está batendo papo com espanhóis acerca da atual situação econômica do país: o alto nível de desemprego, a demissão de muitos funcionários por volta dos 50 anos e as grandes dificuldades que estes experimentam em encontrar um novo emprego. No meio da cidade, há muitos conventos medievais, uma impressionante capela templária, prefeituras renascentistas na Plaza Mayor e dois prédios extraordinários de Gaudí, que parecem, ao mesmo tempo, medievais, modernos e atemporais. A fascinação de Gilson com a história se faz sentir, assim como sua convicção de que aquilo que aconteceu no passado não está “morto e acabado”, mas continua a ressoar no mundo que ocupamos agora durante o breve espaço de nossa geração de peregrinos.

Há também um mundo de pequenos, inesperados acontecimentos que tocam o coração de Gilson profundamente, um mundo de bênçãos delicadas. Ao entrar numa igreja de clarissas logo após o fim da missa, ele encontra um sacerdote que o abençoa numa oração simples, eloquente, que o deixa em lágrimas e de joelhos. Ocorre a cerimônia do aplauso ao sol do lado de fora de um albergue na hora de seu glorioso ocaso. Ao entrar em outro albergue, nosso autor ouve uma gravação de Roberto Carlos, e imediatamente seu coração está de volta ao Brasil. Ele participa de uma caminhada entre a hospedaria e a padaria no centro da cidade para buscar e trazer a torta de maçã que será a sobremesa da noite. É nesse mundo de coisas aparentemente pequenas e insignificantes que seu dom para a gratidão se manifesta. É uma gratidão contemplativa. Vez após vez, em minúsculos incidentes e detalhes, Gilson encontra motivo de reconhecimento.

Ele tem dois companheiros que o acompanharam desde os primeiros preparativos para o Camino e que ficaram a seu lado durante toda a viagem, dois peregrinos do espírito: Dostoiévski e Thomas Merton. Estes

constituem um mundo a mais neste diário. Gilson havia assimilado uma grande obra de cada um deles (Os Irmãos Karamázov e Merton na Intimidade) antes de começar a peregrinação física. Então, em momentoschave da viagem, os dois acompanhantes se manifestam a ele como professores e profetas, como Moisés e Elias, e Gilson os cita aqui em letras destacadas. A presença destes autores deixa claro que a busca e a peregrinação se encontram no coração da aventura humana.

As Escrituras formam outro mundo dentro do texto. Todos os dias, a esposa de Gilson manda-lhe uma breve mensagem, e com frequência é um versículo dos Salmos. Na capela do albergue em Bercianos del Real Camino, ele encontra pintado na parede o versículo de um salmo: “Confia ao Senhor o teu Camino e com certeza ele agirá”.

Saudades de seu grupo de Lectio Divina no Brasil também o visitavam de tempos em tempos.

Lá pelo meio da viagem, Gilson experimenta a decepção de se deparar com um impressionante edifício medieval, muito convidativo, mas infelizmente trancado e inacessível. Pouco depois, para sua grande surpresa, ele se encontra com um peregrino francês que conhecera antes na viagem e que lhe diz num sussurro: “Eu tenho um segredo”. “O quê?” “Eu tenho a chave do edifício”. Gilson é o único que tem a chave para sua própria interioridade, e neste livro ele escancara suas portas a seus leitores. Este é um dos mundos mais preciosos de seu diário. O peregrino-autor partilha conosco suas emoções, suas memórias, suas chateações, seus rituais. Ele tem o dom das lágrimas, e o que com mais frequência as estimula não é a tristeza pessoal, mas a beleza ou a devoção religiosa ou a compaixão pelo próximo. Igualmente tem o dom da viagem pelo tempo e pelo espaço. Ao deparar-se com um exemplar em espanhol de Meu Pé de Laranja Lima, vê-se transportado de volta a sua infância e à comunhão de experiências que o ligam a José Mauro de Vasconcelos. Quando ele vê o amor que um pai esbanja sobre seu filho, com quem está fazendo o Camino, Gilson imediatamente se pergunta sobre seu próprio sucesso em demonstrar o afeto que sente pelos filhos no Brasil.

Ele também tem o dom de não deixar passar uma tarde sequer sem um copo ritual de cerveja. Toda vez que o vemos fielmente observando este ritual, dizemos: “Bravo! Você merece!”

Oito mundos. Será que esqueci algum? Sim: nosso mundo, o dos leitores. É impossível ler mais de algumas páginas do texto de Gilson sem se encontrar dentro dele. Você não consegue deixar de experimentar a alegria, o esforço, o cansaço, a delícia da refeição partilhada assim como uma merecida noite de sono e uma partida cedo, à luz das estrelas. Mas nossa identificação vai além disso. Não sei se era esta a intenção do escritor, mas o leitor deste diário de peregrinação necessariamente se vê pausando com frequência na medida em que lê, indo mais devagar e perguntando, “O que realmente importa na vida? O que realmente devo fazer neste breve tempo que me é demarcado? O que eu preciso tirar de minha mochila – algo que pode ser sedutor e brilhante, mas desnecessário e em última instância, algo que distrai? Como posso redescobrir e reassumir minha identidade de peregrino, nossa identidade universal de homo viator?” Este relato narrado com simplicidade toma posse de você e lhe faz questionar e reavaliar e rezar por autenticidade.

O sol, a estrela desses nove mundos, desses nove planetas, é o mistério de Deus. Ele é onipresente neste livro. Sua providência e sabedoria coordenam e guiam durante todo o caminho – não somente Gilson, mas tudo e todos. Mas com que leveza! O Deus de Gilson, como ele mesmo diz, não é o do vento forte e impetuoso, do terremoto ou do fogo, e sim o Deus da brisa suave, quase imperceptível. Muitas vezes, no decorrer de sua viagem, nosso peregrino sente uma leve brisa perfumada saindo dos campos ou das plantas e flores ao longo do caminho. Parece-me que esta brisa é um símbolo para o Senhor, que sempre nos envolve, mas nunca se impõe a nós.

Quando eu era mais novo, li livros com títulos como A Guerra dos Mundos ou Mundos em Colisão. Os mundos de Gilson não estão em guerra, não colidem. Eles se harmonizam, encontram-se e se juntam e se separam só para se reencontrarem logo depois. Todo o rico conteúdo deste livro é como a melodia unificada que Siddartha escuta subindo do rio Ganges no grande romance de Hermann Hesse. O som que Siddartha ouve no fim de sua própria peregrinação é o som de toda a realidade. E na realidade, há espaço para tudo.

Alguns anos atrás, um jesuíta amigo meu me informou que um benfeitor havia deixado os recursos necessários para ele e um amigo de sua escolha fazerem o Camino. Contou-me depois que eu era o amigo escolhido e que me aguardaria tanto tempo quanto fosse necessário. Muitas vezes, lembrei-me de seu convite, e a palavra que sempre me vinha era: “Impossível!”. Depois de ler o livro de Gilson, já não tenho mais tanta certeza assim disso.

Bernardo Bonowitz, OCSO Abade da Abadia de Nossa Senhora do Novo Mundo Campo do Tenente, Paraná Julho de 2015

A dimensão do fluxo de peregrinos rumo a Santiago remete à deliciosa lenda que diz ter sido a Via Láctea formada pela poeira levantada pelos que para lá andam.

E os números impressionam¹: em 2012, 192.458 peregrinos chegaram à Oficina del Peregrino de Santiago de Compostela. O número despencou para 54.144 em 2020, início da Pandemia, subindo para altos 446.072 em 2023.São bilhões de estrelas formadas a partir do caminhar desses seres tão especiais, os peregrinos.

Fui contado entre aqueles que chegaram a Santiago de Compostela em 2012. Caminhei, assim, entre as estrelas que subiam na forma de poeira. Entre as que subiam e as que ainda flutuavam à beira do caminho. Estrelas, algumas brilhantes, outras nem tanto, mas todas dignas do olhar atencioso a capturar o que lhes era sua mais pura essência.

MOTIVAÇÕES

Todas essas estrelas nascem das motivações que residem nas almas dos que decidem sair caminhando e cumprir a longa jornada rumo a Santiago de Compostela. Seriam elas, as motivações, semelhantes àquelas dos primeiros peregrinos do longínquo século IX, quando esse fluxo teve início?

É possível que alguns traços das convicções iniciais tenham permanecido, outras razões surgiram, mas o fato é que todas elas levam milhares de pessoas a saírem para enfrentar o mesmo desafio daqueles primeiros peregrinos. Talvez hoje sejam ressaltados motivos de outra ordem além dos religiosos, porém eles existem. Então, seja lá que motivações impulsionam para o Caminho, que impressões colhem esses peregrinos?

Amizades e solidão; sons e silêncios; devaneios e introspecções; sabores e aromas; natureza, num tempo, bela e, no outro, árida; instantes de vazios interiores e outros de profunda fé... São incontáveis as percepções que dançam no pó que se levanta do Caminho e que sobe sob a forma de estrelas.

JORNADA

Minha jornada teve início em Lourdes, na França, numa cálida manhã do verão europeu, e terminou depois de andados, por 37 dias, os 979 quilômetros que levam dali até Santiago de Compostela.

A cada dia, uma nova paisagem a ser descoberta, e que se foi apresentando de forma diversa e multicolorida: altas montanhas rochosas, verdes milharais perfumados, vinhedos ou campos ceifados de uma cor palha a contrastar com o azul límpido do céu; outras vezes, horas e horas caminhando sobre terrenos pedregosos e sob sol escaldante.

Acordar e sair quando o dia ainda era escurinho assegurava a presença no espetáculo esplendoroso de cada nascer do sol. Era poder ver uma aurora mais multicolorida que a outra. Chegar à tardinha ao destino diário, então, era desfrutar de um novo albergue, banho, descanso merecido e boa comida. Comida, muitas das vezes, preparada de forma comunitária, com gente que eu nunca tinha visto até então. Num dia, uma cerveja para apaziguar o calor, noutro, um bom vinho, numa rotina que deixou saudades. Com diferentes pessoas ir dormir depois, nos dormitórios comunitários dos albergues, num sono conjunto, necessário a todos nós para restaurar as energias para o desafio do dia seguinte. Descansávamos o corpo, enquanto os sonhos se entrelaçavam com as lembranças do dia. E que lembranças! O visual que impregnara na mente, as cores, os tons da paisagem e os perfumes da natureza ficavam gravados na memória e renasciam nos sonhos de cada um. Também nos sonhos vinham as lembranças das emoções, decorrentes das revisões pessoais que o caminhar solitário forçosamente faz acontecer.

Trilhar por caminhos seculares é poder apreciar pontes históricas que remanescem, igrejas românicas, arquitetura e estilos diversos a mostrarem a marca da criatividade humana ao longo do tempo.

Caminhar por lugares desconhecidos, ora vazios, ora com gente do mundo todo, é a certeza da construção de amizades, algumas fugazes, outras duradouras. São tantas personalidades e tantas razões pessoais para estar no Caminho...! Uma mistura de raças, crenças e objetivos de vida.

PEREGRINOS

Ao cruzar com um viajante pela primeira vez, apenas um leve aceno. Se nos encontrávamos uma segunda vez, cumprimentávamo-nos como velhos amigos, nós, os dois peregrinos que antes caminhávamos solitários.

Nos trechos em que eu andava junto com outros, histórias iam surgindo, buscas pessoais, sonhos, tristezas e alegrias sendo revelados. Éramos todos caminhantes, sentíamo-nos membros de um grupo com os mesmos objetivos e, então, compartilhávamos as razões pelas quais cada um estava naquela missão – quando se sabia as razões.

A cada dia, uma amizade construída, um esforço físico a ser superado, uma oportunidade de conhecer o limite da própria tenacidade para alcançar a meta proposta: chegar a Santiago.

Objetivo que fora fixado quando? E de que forma? Talvez ao ler um texto como este, que lá no passado me despertou um desejo. Vontade que, ao primeiro instante, parecia se tratar de projeto pessoal impossível, mas que agora, em pleno caminho, vai mostrando que valeu a pena perseverar na ideia.

DESAPEGO E COMPAIXÃO

Perseverar e seguir adiante por esse longo caminho, carregando apenas o indispensável para a sobrevivência física e deixando para trás o que não mais valia para a alma, para o espírito, enfim, exercer o desapego em sua plenitude.

Esvaziando-me para, no vazio, encontrar minha voz interior verdadeira e as reminiscências do sopro divino que nos fez e nos faz seres humanos e buscando as raízes da fé e da crença de que vale a pena viver e despojar-se, abria-me, sem medo para uma vida nova.

Desfrutei dias diferentes, vividos de uma forma nunca antes experimentada, sentindo continuamente o peso de meus próprios pertences e da comida guardados na mochila às costas, lavando a roupa diária e provendo água para o dia seguinte – nem tão pouca água, porque poderia me faltar, nem muita, porque não suportaria o peso.

Levar e viver apenas com o necessário, o indispensável; pautar-me pelo equilíbrio em tudo, no tamanho da bagagem, no comer e no beber; e estar preparado para as dezenas de quilômetros a serem andados no dia seguinte e sempre com o espírito alerta, porque, se estivesse bem, poderia auxiliar outro peregrino que por acaso precisasse de minha ajuda. Quantos peregrinos encontrei desolados ao longo do caminho porque não conseguiam continuar a andar por causa das bolhas que lhes infestavam os pés...! Outros, porque uma inflamação, a tendinite decorrente do esforço continuado, simplesmente os enchia de dor e os impedia de caminhar. Ajudava-os num dia e, no seguinte, seria ajudado, talvez por outros, desconhecidos.

Essa a lei do caminho, que também é a lei da vida, mas que eu, por muitas vezes, esquecia-me dela por viver numa cidade grande como São Paulo, com a individualidade fria que varre suas ruas. E é essa frieza que faz com que se vá sufocando a prática da compaixão, do procurar conhecer no olhar o outro sua situação, do ajudar sem outra intenção que não aquela de amparar.

COLHEITA

Não vislumbrei atalhos mágicos no Caminho, tampouco inspirações transcendentais. Colhi, sim, percepções que a alma foi delicadamente identificando, nascidas principalmente da observação das coisas simples do dia a dia de peregrinação. Tal colheita possível porque o ato de caminhar sozinho e por longos dias permitiu que eu me aproximasse de quem estava mais distante: de mim mesmo. O silêncio, grande companheiro cotidiano, levou-me a consultar com mais frequência minha memória, a reconstituir como trechos de filmes momentos importantes de minha vida e a ouvir com mais clareza minha consciência.

O objetivo não foi apresentar, nas memórias que escrevi desses dias, um roteiro técnico, embora eu compartilhe tudo o que fiz para me preparar, tanto física como espiritualmente. Também escrevi alguns conselhos práticos sobre roupas, calçados, equipamentos e outros itens que podem ser úteis àqueles que planejam empreender essa jornada.

O que registrei em meu diário, em verdade, são pequenos detalhes de cada dia, particularidades do impacto da paisagem no ânimo diário, do diálogo interno e das preces que ressoavam na alma, são observações

e impressões do cotidiano, anotações daquilo que se incrustava na memória e de seus reflexos na alma, decorrentes do encontro com as pessoas do lugar e com os peregrinos.

Tantas vidas circulando, tantas histórias pessoais captadas...! Verdadeiras estrelas por entre as quais caminhei, percepções que colhi e que partilho neste meu livro. Lendo-o, você será meu companheiro(a) de peregrinação, porque juntos trilharemos cada trecho dessa experiência única que é o Caminho de Santiago de Compostela, o caminho de nossas vidas.

O diário foi escrito no calor do final de cada jornada, como forma de manter a essência do que foi observado, vivido e sentido naquele dia. Muitos de seus trechos foram mesmo elaborados mentalmente, enquanto o andar se sucedia no silêncio da estrada, quando apenas o barulho dos próprios passos era ouvido, o mesmo silêncio que, em outros trechos do caminho, levou-me a chegar mais perto da presença do divino, que parecia então andar comigo. Era como sentir Deus muito pertinho, seja num sussurro interior, seja num aroma delicado que vinha da mata, embalado pela brisa, a mesma brisa que balançava de mansinho a copa das árvores...

Que esses momentos vividos e relatados sirvam de inspiração para os caminhos desejados por sua alma, leitor. E que você tenha a oportunidade de, também, caminhar entre estrelas.

E você, leitor(a), o que busca?

O que sua alma sussurra ao seu coração?

Um sonho conhecido só por você?

Se for um caminho, o que espera encontrar nessa sua jornada?

Hoje é dia 10 de agosto de 2012, véspera de minha partida para Lourdes, França, onde o Caminho de Santiago de Compostela, o Camino, começará para mim.

Reviso o conteúdo da mochila e avalio possíveis exclusões para aliviar o peso. A mochila pesa 9,5kg, exatos 1000g a mais do que planejo carregar. Nada, porém, parece-me dispensável, então decido levar tudo. Que o Camino, que vai se tornando cada vez mais presente, ajude-me depois a selecionar melhor o que for indispensável, acompanhando-me apenas o suficiente.

Com a vontade de que chegue o momento da partida, agora se misturam as expectativas do primeiro passo. Estou tranquilo, recebi mensagens de carinho, de amizade e de apoio. Tenho que seguir Camino afora, e esse, simplesmente, passa a ser meu objetivo.

O presente relato e os que vierem a ser escritos têm e terão como motivação formar uma memória das impressões vividas nesta empreitada e, também, deixar registros para futuros peregrinos como uma pequena forma de contribuição para a idealização de seus caminhos.

Li muitos textos sobre o Camino, os quais me ajudaram a entendê-lo e a me preparar um pouco antes de por ele passar. De minha parte, deixarei aqui algumas pegadas aos que estiverem numa busca semelhante a minha.

Também aos leitores que agora passam a caminhar comigo, espero que estes apontamentos sejam o elo a nos unir nesta viagem. Farei as anotações ao final de cada dia de jornada com o intuito de manter o calor das emoções e as percepções do dia. São esses os objetivos dos relatos.

Peço que Deus nos acompanhe numa jornada serena, em que o principal seja o Camino interior, não cabendo às pequenas notas aqui escritas mais importância do que às verdadeiras motivações que devem sustentar a viagem.

À pergunta sempre ouvida sobre o que busco no Camino, respondo que quero apenas caminhar e, assim, encontrar o silêncio, sentir e aprender.

Inspira-me o relato que Thomas Merton fez dias antes de sua partida para uma longa viagem de peregrinação:

Vou com a mente de todo aberta. Sem ilusões especiais, espero. Minha esperança é simplesmente desfrutar da longa viagem, dela tirar proveito, aprender, mudar, talvez encontrar alguma coisa ou alguém que me ajude a avançar em minha própria busca espiritual. 2

2 MERTON, Thomas. Merton na Intimidade – Sua Vida em Seus Diários. In: HART, Patrick Hart & MONTALDO, Jonathan. Rio de Janeiro: Fissus, 2001. p. 386.

Ajuda especial nos toques finais

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