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Gratuito • Número 1 • Janeiro 2012

LOBO IBÉRICO O seu nome científico Canis lupus signatus, mais conhecido como lobo-ibérico, é das subespécies de lobos mais ameaçada em todo o Mundo.

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A EXTINÇÃO DO BACALHAU

Este peixe encontra-se em vias de extinção devido ao consumo excessivo.

32 E N T R E V I S TA C O M ELISABETE PIRES

O mapa escondido do cão.

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CAÇA FURTIVA Tigres, guerrilheiros e pesquisadores de ouro competem pela sobrevivência no “Vale da Morte”, em Myanmar.

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GROUS

SENHORES DO MUNDO

Editorial Com o intuito de alertar a população para a conservação e preservação do planeta, criamos este jornal com artigos cuidadosamente seleccionados acerca da fauna e flora em vias de extinção. É por sabermos que existem injustiças, a cada momento que passa, existe vida que se extingue. A ambição de criar um mundo melhor em que humanos e animais coexistem de forma a melhorar a vida de ambos e a diversificar o planeta em que vivemos propôs-nos à criação deste projecto editorial. Com um tema tão delicado como o nosso estamos ainda a aprender a pré-história deste universo. Por fim, um agradecimento profundo aos nossos leitores que nos irão apoiar e transformar num jornal de culto e uma referência para todos os que se identifiquem com o nosso universo. Esperamos antes de mais poder contar convosco e agradecemos sugestões quanto a conteúdos e a tudo o que possa contribuir para sermos melhores e fazermos a diferença neste, que já é o seu jornal. Dar é receber e ao estarmos a dar o melhor de nós iremos contribuir para um mundo melhor. Equipa Editorial CLAMOR

Opinião crítica

Ficha técnica Clamor Directora Soraia Eugénio Coordenador Fausto Vicente Redação Rua Raúl Proença, 7º D 2500-248 Caldas da Rainha Editor Grupo Clamor Impressão CMYK0 Rua Dr. Leonel Sotto Mayor Nº 50 R/C Drt. Caldas da Rainha Colaboradores Fausto Vicente Filipe Guimarães Hugo Dias José Lino Soraia Eugénio Grafismo/ Paginação Direcção de Arte Filipe Guimarães Ilustração José Lino Grafismo Fausto Vicente Filipe Guimarães Hugo Dias José Lino Soraia Eugénio Publicação Gratuita Caldas da Rainha, Janeiro 2012

A pergunta a ser feita é sem duvida, o real porquê da humanidade continuar a olhar para a vida natural sem qualquer tipo de respeito ou preocupação. Queria deixar bem claro antes de mais nada que nós, pessoas, fazemos parte também deste sistema natural. Nós também temos a nossa função no anel maravilhoso chamado Natureza. O meu nome é José Miguel Oliveira Lino, tenho vinte e cinco anos e o lugar que desempanho de momento na minha sociedade é de estudante. Estou a estudar Artes, e desde muito novo adorei e venerei a vida selvagem como se fosse a razão número um para respeitar o que quer, que fosse. Assim sendo, acho que consigo ter uma noção clara sobre o assunto. A sociedade sempre foi algo que não compreendi de todo, logo, quis saber mais e envolver-me nela. Basta dizer que através da desilusão, a iluminação apareceu, e consegui aprender e encarar a vida de outra maneira dando importância a coisas que a maioria não dá. Sei disto, pela simples situação de nos encontramos a comentar esta situação! Para mim, a grande razão da nossa maneira, medonha e triste, de lidar com o que nos é natural é simplesmente fruto de falta de informação! Como poderá um ser humano proteger algo que não conhece? Como não conheçe, não é capaz de dar o devido valor. Realmente acho que são perguntas fundamentais para perceber o tema. A maneira como a nossa sociedade está organizada poderá ser comparada com uma colónia de formigas, quando estaskjjn direccionam a sua vida unicamente para a sua reprodução e habitação. Queria deixar bem claro, que este tipo de comparação é estúpida, pois nós não somos insectos, e a partir do momento que temos raciocinio conseguimos fazer muito melhor que isso. Não consigo deixar de fazer então, a pergunta do porquê de nós, seres humanos, andarmos a seguir os passos das formigas há tantos anos, quando temos a capacidade de desenvolver muito mais que isso, como por exemplo aceitar diferentes raças e bem tratar e compreender tudo aquilo que a Mãe Natureza nos dá. A principal razão é a falta de informação que circula nos nossos canais. A partir do momento que sabemos que algo é valioso, é motivo do ser humano proteger. Agora, quando uns pensam que as massas se deviam concentrar na alta produção, irá haver outros sectores que não poderão ser olhados com bons olhos nem ter tempo para se informar sobre o assunto.A partir do momento que fizermos algo em nome da alta produção e não da alta conservação, espécies irão desaparecer, e será uma questão de tempo até chegar a nossa vez.

José Lino

Os Grous estão representados em túmulos egipcios, nas canções russas, nos clãs dos povos americanos, nas danças australianas e nos mitos gregos e romanos.

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stes vôos migratórios guiados por seres humanos são uma das mais recentes medidas de intervenção energética para salvar da extinção, estas criaturas singulares. Durante milhares de anos, os seres humanos apreciaram os grous pela sua beleza, antiguidade, tamanho impressionante e voo: a espécie está representada em túmulos egípcios, nas canções russas, nos totens e clãs dos povos nativos americanos, nas danças australianas e nos mitos gregos e romanos. Em muitas regiões da Ásia, os grous são símbolo de felicidade, de sorte, de vida longa e de paz. Depois do lançamento da bomba referida pelas pessoas como mais brilhante do que um milhar de sóis, uma jovem rapariga atingida pelas radiações decidiu dobrar mil papeis com a forma de grous, na esperança de recuperar da doença. Embora morresse antes de atingir o objectivo, a sua tarefa foi continuada por outras crianças e actualmente os monumentos do Parque Comemorativo da Paz, em Hiroxima, encontram-se adornados de milhões de pequenos dobrados. O apreço que as pessoas mostram por estes animais não os poupou da destruição. Os grous pertencem a uma das mais ameaçadas famílias de aves. O homem caçou-os, perseguiu-os e afastou-os dos seus últimos refúgios. Nove das 15 espécies do planeta estão ameaçadas de extinção. No Leste Asiático, o desaparecimento das zonas húmidas ameaça o grou da Manchúria, o grou-de-capuz e o grou-de-nuca-branca. O gracioso grou-do-paraíso, a ave nacional da África do Sul, tem sofrido com a predação imposta pelos mabecos e pelo plantio de árvores, que eliminou grandes extensões de prados, que constituem o seu único habitat. A caça, a apanha de ovos e a destruição do habitat erradicaram o grou-trombeteiro de grande parte do seu território da América do Norte no século XIX, período em que os colonos drenaram as zonas húmidas, e as lavras da agricultura tomaram conta da pradaria. No princípio da década de 1940, restavam apenas 21 aves. Graças a iniciativas como a protecção do habitat, as restrições à caça e os programas de reprodução em cativeiro, lançadas a partir da década de 1960, a população remanescente dos grous-trombeteiros começou a crescer. Existem hoje cerca de 300 aves em estado selvagem e 100 em cativeiro: muito pouco, se comparado com a abundância original, mas um grande passo no caminho da recuperação. George Archibald, co-fundador da International Crane Foundation (ICF), È o homem que tem liderado a árdua tarefa de salvar o grou-trombeteiro. Autentico “grou-maníaco”, como ele próprio se descreve, Archibald é considerado o maior especialista mundial em grous. Homem modesto, empenhado em salvar os grous do abismo da extinção, mostra-se sempre optimista quanto suas probabilidades de sucesso. Ao longo dos últimos 25 anos, ajudou a lançar programas de conservação dos grous no Japão, China, na Coreia do Sul, na India, no Irão, na África do Sul, na Austrália e na Rússia. Archibald e a sua equipa da ICF criaram um banco em cativeiro, destinado a proteger a espécie da extinção.

Já transpôs dezenas de milhares de quilómetros transportando ovos de grou em caixas de madeira contraplacada, para entregá-las a estações de reprodução de animais em cativeiro. Archibald dançou com grous, cantou com eles e dedicou-se a salvá-los e ao seu habitat. Porquê? “Os grous são embaixadores dos seus ecossistemas e da boa vontade internacional”, afirma. “São dois elementos necessários à conservação. Uma vez que estas aves precisam de um habitat prístino, é como se fossem uma espécie de guarda-chuva: se as salvarmos, estamos também a salvar os ecossistemas de que dependem - as zonas húmidas e os prados. E como as suas rotas migratórias não têm em consideração as fronteiras políticas, qualquer medida destinada a protegê-las exige que várias pessoas em diversos países tenham de participar. Por isso, funcionam como veículos de cooperação entre países muitas vezes politicamente opostos.” Faz uma pausa. “E além disso, adoro-os.” O objectivo mais recente de Archibald consiste em levar de novo a população dos grous-siberianos migratórios até á Ásia Central. O magnífico grau-siberiano é o grou mais altamente especializado e depende exclusivamente de pauis, pântanos e outras zonas húmidas para nidificar, encontrar alimento e abrigo durante a noite. É também a espécie mais gravemente ameaçada. Tradicionalmente, os grous-siberianos migram mais de 5.OOOkm, entre as regiões da tundra siberiana mais setentrionais e os territórios de Inverno na

China, na Índia e no Irão, 11 países. O êxito da migração depende da boa saúde global das zonas húmidas do continente que servem de pontos de escala no percurso das aves. Juntamente com uma equipa internacional, Archibald trabalha no sentido de aprovar legislação que salvaguarde estas zonas melhore a sua protecção. O esforço exige paciência, uma vez que muitos destes países se en­ contram numa situção politicamente difícil, marcada por recursos limitados e líderes cépticos. No Verão de 2005, a equipa prevê criar uma dúzia de grous-siberianos em cativeiro, com progenitores vestidos com fatos de grous, treinando-as para voar no encalço de asas-delta tripuladas por pilotos mascarados de grous. No Outono, três asas-delta partirão de Uvat, na Rússia: depois de sobrevoar a região ocidental do Cazaquistão, fazendo escala na Reserva Natural de Astrakhan, rumarão a sul sobre o Azerbaijão, ao longo da margem ocidental do mar Cáspio, até aos terrenos alagadiços de Fereydun Kenar e Esbaran, ter– ritórios de Inverno dos grous no Irão. Atrás das asas-delta, virão as aves. No entender de algumas pessoas, iniciativa internacional no sentido de uma passagem segura através de zonas conturbadas È uma loucura. Outros, porém, consideram-na brilhante, por ser uma forma de atrair a atenção global para os grous e o seu mundo - feito de vairões, juncos, tabuas, zonas ribeirinhas de águas baixas e aura de antigas rotas migratórias que unem regiões e ignoram fronteiras.

NOVOS GALOS PERDEM TERRENO “Como uma panela de água a ferver”, é a expressão utilizada por Jessica Young, doWestern State College of Colorado, para descrever os sons produzidos pelos machos de uma espécie de galos silvestres quando tentam atrair as fêmeas. Young ajudou a descrever este animal como uma nova espécie, diferente da mais abundante nos Estados Unidos. Com uma população inferior a quatro mil animais, estes galos são candidatos a figurar na lista das espécies em extinção. Grande parte do seu habitat foi fragmentada por estradas, reservatórios e ranchos. “A sua vida depende da artemísia, que usam como alimento e refúgio”, afirma Young.


ÁGUIA DE BONELLI BELA E FURTIVA

Destemida a águia Bonelli continua a resistir às sucessivas provações impostas pelo homem.

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o início da segunda quinzena de Abril e após 40 dias de incubação, nascem dois pintos brancos e penugentos como bonecos de pelúcia. Durante alguns dias, as pequenas águias macho exploram o ninho e a paisagem em redor. Ao 15.º dia de vida, anoto no meu caderno: “Um dos pintos mostra maior porte e desembaraço que o irmão. De joelhos, foi até à borda do ninho e espreitou para o rio que serpenteia a base da escarpa”. O casal de águias de Bonelli proprietário deste refúgio possui mais seis ninhos construídos no mesmo paredão de rocha. Trata-se de um recorde no território a sul do rio Tejo. Esta espécie costuma construir ninhos alternativos, que vão sendo ocupados em rotatividade de ano para ano, mas enquanto a sul os ninhos são fa bricados em eucaliptos, sobreiros ou mesmo pinheiros bravos, a norte do Tejo a escolha dos casais recai em escarpas ribeirinhas. Este ninho, que talvez tenha mais de dois metros, é numa primeira fase recoberto diariamente com folhagens frescas — a tarefa visa afastar diversos tipos de insectos, parasitas e manter “fofa” a cama onde as frágeis crias se movimentam. Vinte e cinco dias depois, volto ao meu abrigo e sou confrontado com uma nova situação. Através da lente, verifico que só uma cria está no ninho. A penugem branca é partilhada com penas em vários tons de castanho. O que terá sucedido ao irmão? O abrigo onde me escondo, a algumas dezenas de metros, foi construído no final do Outono de 2001. Após meses de habituação, é na Primavera deste ano que fotografo as primeiras imagens com pormenor sem tenha habituado a este estranho. Ou talvez não dê conta destes olhos que a seguem atentamente. Não muito longe do ninho, ela ocupa-se a depenar uma perdiz que lhe foi entregue pelo macho. Embora a tarefa de caça seja partilhada pelos dois progenitores, praticamente só a fêmea vai ao ninho entregar a refeição preparada. A quarta maior águia nidificante em Portugal voa silenciosamente até à plataforma encavalitada na falésia. Apesar de a cria esboçar tentativas de romper a carcaça, a ave adulta tem de esquartejar a perdiz com o bico e dar, naco a naco, a sua captura à jovem. Tão discretamente como

chegou, a fêmea abandona o local com a carcaça de uma lebre ressequida. É necessário manter a higiene das crias e afastar os cadáveres dos insectos. Às 18h30, vejo, quase estupefacto, a outra cria aparecer por trás de uma rocha. Mais desenvolvida, estava instalada cerca de sete metros abaixo do ninho, apoiada em degraus de pedra. Foi um choque, “um misto de espanto e alegria quando vejo que as águias bebés sobreviveram”, escrevo. O fratricídio entre águias é comum, já que a cria mais desenvolvida escorraça frequentemente o irmão ou mata-o no ninho. Neste caso, a escarpa não era a pique e os deuses ajudaram a jovem a não se estatelar no rio. Com este cenário, os adultos continuaram a caçar para alimentar a prole. No final de Maio, este par de crias foi marcado. O biólogo Miguel Caldeira Pais, do ceai-Centro de Estudos da Avifauna Ibérica (Évora) e da Universidade do Algarve, instalou em 25 crias, de 17 ninhos da região sul, pequenos transmissores com cerca de 40 gramas. Estes aparelhos darão informações vitais para compreender o que acontece às águias após a saída do ninho. “Dez de Junho, as crias fazem ensaios de voo” — diz o meu diário. O irmão mais velho é sem dúvida mais aventureiro, ou mais inconsciente. O dia está ventosa e o céu já perdeu os tons azulados. Para estas jovens crias, saltar e voar já fora do ninho, mesmo que descontroladamente, é uma aventura. Através da teleobjectiva, registo um ensaio temerário. Por pouco, muito pouco mesmo, a águia não cai fora do ninho. No

dia seguinte, não tem tanta sorte e aterra na base de um volumoso monte de ramos. Durante dias, permanece ali procurando imaginar o que falhou no plano. “As crias passam cada vez mais tempo sozinhas. Têm 55 dias de idade e são alimentadas duas a três vezes ao dia”, registo. No início de Julho, acompanho Miguel Caldeira . Quase todas as águias juvenis já voam, mas não saem longe do ninho. A dependência dos progenitores é praticamente total, mas até meados de Setembro/Outubro, elas necessitam de saber caçar e dominar a arte do voo. Num cabeço da serra do Caldeirão, de antena portátil na mão, o biólogo procura o melhor sinal do emissor da águia a que chamou “Abril”. Um sumido Pit!... Pit!.. Pit! dá-nos a primeira informação. ‘’A ave está pousada ... provavelmente naquele vale”, diz ele, enquanto aponta para uma zona fortemente arborizada pelo típico matagal mediterrâneo. “Estes transmissores possuem um sensor de mobilidade, que permite saber se a ave está a voar ou se pousou”, explica o biólogo. O sinal apenas varia de cadência, encurtando o silêncio quando ela se movimenta significativamente. Entretanto, as águias adultas vão deixando penas. A muda tem início em Julho e prolonga-se por vários meses. Nas silhuetas das águias, são evidentes as falhas de algumas penas, como um puzzle a que faltam peças. As rémiges caem assimetricamente para facilitar o equilíbrio. No final de Outubro, os juvenis começam a abandonar o território dos progenitores. A fase da dispersão é um dos momentos mais

complicados. Os postes de média tensão são um flagelo. Um estudo espanhol refere que 60% a 70% das jovens Bonelli morrem em zonas “negras’~ como as planícies de Toledo. Mais a norte de Portugal, no Parque Natural do Douro Internacional (pndi), a águia de Bonelli está a baixar de efectivos. A bióloga Bárbara Fráguas enumera as causas: “Baixa disponibilidade alimentar, alteração pertur­ bação do habitat, grande densidade de outras espécies de aves rupícolas.” Tanto os casais de águia de Bonelli, como os de águia-real, são altamente territoriais, não permitindo a presença de outros indivíduos na área envolvente aos ninhos. “A distância mínima encontrada entre dois casais de águia de Bonelli é de 7 km. Ora, aqui, o ninho de águia-real mais perto está a 2 km. Ao longo do vale do Douro, a distribuição dos casais das duas espécies é quase sempre alternada. No entanto, o recente aparecimento de casais de águia-real contíguos é um indicador da regressão da águia de Bonelli nesta zona”, lamenta Bárbara Fráguas. Numa tarde de Dezembro, as paradas nupciais, momento-chave para os investigadores recensearem esta espécie, já são evidentes. Macho e fêmea fazem acrobacias vistosas, em manobras que se prolongarão até meados de Fevereiro, mês em que o novo ninho será preparado. Mais tarde, com as penas do peito enfunadas, a fêmea ajeitará os ovos com o bico. Talvez sonhe com o novo ciclo que se adivinha.


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M O R C E G O - orelhudo - castanho

m or c egos

MORCEGOS E GESTÃO FLORESTAL Estes mamíferos que muitos despresam, têm uma importância enorme para a gestão de um ecossistema.

O

s morcegos são os únicos mamíferos que voam activamente. As suas asas, são de pele esticada sobre os dedos das mãos, sendo estes bastante longos, perlongam-se até ao final das asas, terminando numa unha. O corpo, dos morcegos é coberto por pelo, ficando apenas as suas patas e asas descobertas. As fêmeas amamentam as suas crias logo após o seu nascimento. Existem mais de 1000 espécies de morcegos em todo o mundo, que ocorrem desde os trópicos até aos limites das regiões polares. Todas as subespécies de morcegos, insectívoros da Europa, alimentam-se de insectos e de outros artrópodes, que capturam no ar, chão ou em folhas. Os morcegos vêm perfeitamente, mas usam também a ecolocalização — sistema para navegar e localizar as suas presas no escuro. Neste sistema, os morcegos emitem sons em alta frequência e analisam os ecos reflectidos pelos obstáculos em seu redor, e são tão sensíveis que conseguem detectar e capturar pequenos insectos em voo. Apesar de possuírem sangue quente como o homem, os morcegos têm controle da temperatura corporal, e podem baixá-la de forma a ficarem frios e tórpidos, poupando energia. Em climas frios, muitas espécies hibernam, quando não há alimento disponível. Os morcegos têm vidas sociais complexas e a maioria é colonial pelo menos durante parte do ano. Formam colónias durante o período de criação, quando as fêmeas se juntam todas para o nascimento das crias. Dependendo das espécies, as colónias são mais pequenas ou maiores, desde poucos indivíduos a vários milhares. As maiores colónias encontram-se em grutas e outros abrigos subterrâneos. Noutros períodos do ano, os morcegos podem viver isolados ou em pequenos grupos. Durante o período de criação, procuram locais mais quentes ou mantêm-se agrupados para se aquecerem. Noutras alturas procuram locais frios, onde podem baixar a temperatura corporal. Os morcegos, maioritariamente abrigam-se numa grande diversidade de locais, mas os mais importantes são as árvores, edifícios e cavidades subterrâneas, como grutas, buracos cavernosos e minas abandonadas.

Algumas espécies, ocupam árvores, outras preferem grutas e algumas movem-se entre árvores e abrigos subterrâneos consoante o clima e a estação do ano. Muitas espécies abrigam-se em edifícios, já que estes disponibilizam condições algo semelhantes tanto as árvores como a cavidades subterrâneas. O morcego arborícola, tal como o nome indica, abriga-se em falhas, fendas e cavidades nas árvores, bem como em zonas onde a casca se separa do tronco. Algumas espécies, escondem-se em pequeníssimas fissuras, enquanto outras preferem grutas, resultantes do apodrecimento do tronco ou criadas por pica-paus. As árvores com estas características são muito importantes nos diversos tipos de floresta. A maior parte dos morcegos arborícolas necessita de árvores com abrigos adequados numa área restrita, e também de uma provisão regular de novos abrigos, já que as árvores mais antigas se vão degradando ou são removidas.

O dia do morcego é bem mais escuro que o normal Todos os morcegos da Europa são predominantemente nocturnos, saindo dos abrigos ao anoitecer e regressando durante a noite, ou ao amanhecer. Caçam nas zonas onde encontram os insectos ou artrópodes de que se alimentam, especializando-se em variados tipos de insectos, e alternando variadas estratégias de caça. Por exemplo, algumas espécies capturam borboletas nocturnas pousadas na folhagem, outras caçam pequenos insectos em espaço aberto ou sobre a água, e outras aguardam, penduradas em ramos, que surja uma presa, voando então para a capturar. A grande parte dos morcegos, alimenta-se a poucos quilómetros do seu abrigo, sendo necessário que as florestas disponibilizem abrigos e áreas de alimentação dentro das distâncias percorridas diariamente pelos morcegos. Adicionalmente, certas espécies de morcegos evitam voar em espaços abertos, sendo necessário a existência de corredores entre áreas florestadas.

O Plecotus Auritus, ou como é mais conhecido, Morcego-Orelhudo-Castanho é uma espécie de morcegos, que se distribui desde a Escandinávia central até ao Mediterrâneo. Verifica-se ainda, uma ocorrência descontínua na Ásia, com populações na Mongólia, Sibéria, China e Japão. Em Portugal, parece ser pouco abundante existindo um número mais elvado de registos a Norte do país. Na Europa, a espécie é mais abundante nos países Norte, que nos países do Sul. Existem evidências de declínios locais na Holanda e prováveis declínios históricos na Escócia. O tamanho e a tendência da população, em território português é algo ainda um pouco desconhecido, sabendo-se apenas que no norte do país existe maior probabilidade de uma população de elevado número. O morcego-orelhudo-castanho faz parte das espécies florestais, associadas á floresta de folhosas bem desenvolvidas. Utiliza principalmente cavidades em árvores e edifícios na época de cria. Durante o Inverno, utiliza ainda abrigos subterrâneos.

Parece caçar em áreas florestais, utilizando também estruturas lineares da paisagem, como zonas limítrofes de florestas ou galerias ripícolas.

Face ás ameaças a esta espécie adoptam-se medidas de conservaçã A diminuição das florestas de folhosas bem desenvolvidas, com redução das áreas de alimentação e da disponibilidade de abrigos (pela eliminação de árvores antigas com cavidades), influencia negativamente esta espécie. O uso generalizado de pesticidas poderá ser uma ameaça, dado causar a diminuição da diversidade de presas e a contaminação dos morcegos por ingestão de insectos contaminados.

Como espécie de voos baixos, encontra-se sujeita a mortalidade por atropelamento. Dada a pouca informação que existe sobre esta espécie em Portugal, a sua conservação depende da criação de acções de investigação para melhorar o conhecimento da distribuição, dos efectivos e das tendências populacionais, que permitam avaliar a situação da espécie e planear medidas de conservação. No entanto, a correcta gestão das zonas florestais de folhosas, com a preservação de árvores antigas, é essencial para a preservação desta espécie. Deve ser considerada a possibilidade de instalar caixas de abrigo em áreas de habitat favorável mas que não disponham de árvores com cavidades. A racionalização do uso de pesticidas e a realização de acções de sensibilização junto das populações humanas, de Norte a Sul poderão também beneficiar esta espécie.

Algumas espécies migratórias, enfrentam enormes distâncias, necessitando assim de locais adequados para repouso, em floresta, ao longo do percurso de migração.

Os morcegos, estão legalmente protegidos Pelo EUROBATS O eurobats, é um acordo criado com vista num plano de protecção, das espécies de morcegos no continente Europeu. Na União Europeia todas as espécies estão protegidas sob a Directiva Habitats. Os morcegos, não têm prefrência quanto ao tipo de florestas, desde as florestas Mediterrânicas do Sul da Europa, até às florestas de Coníferas Boreais no Norte da Europa, todas elas, são habitadas pelos morcegos. Muitas vezes, os morcegos exploram estruturas particulares, como charcos, linhas de água ou clareiras, onde os insectos tendem a ser mais abundantes. A importância destas estruturas depende do tipo de floresta e das espécies de morcegos presentes. A distribuição, diversidade e densidade dos morcegos nas florestas, pode ser afectada devido á competição entre indivíduos face a um número limitado de abrigos. A gestão de uma floresta deve manter ou melhorar as populações de morcegos, e para tal é necessário conhecer as espécies presentes e saber onde se abrigam e onde caçam. É também importante entender os efeitos da gestão da floresta nos morcegos. A grande diversidade das florestas Europeias, juntamente com a alargada variedade de práticas de gestão e das entidades competentes na área, faz com que a definição das recomendações detalhadas para a gestão de florestas e dos morcegos tenha de ser pensada a nível local. No entanto, existem diversos princípios que se se aplicam em toda a Europa e que podem formar a base para o desenvolvimento dessas recomendações. Deseja-se então que as regras de boa conduta sejam a base para o desenvolvimento de recomendações nacionais que considerem os tipos de floresta e as práticas de gestão locais.

D i a b os A mea ç ados

Cerca de 15 mil diabos-da-tasmânia vagueavam por esta ilha da Oceânia no final da década de 1990. Desde então, um cancro contagioso dizimou metade da população. A doença deforma a boca, o focinho e o pescoço. E é fatal. A origem da praga é desconhecida, mas alguns estudos indicam que os animais se infectam entre si, transmitindo células cancerígenas durante combates e sessões de acasalamento. Sem cura para a doença, os cientistas tentam controlá-la, retirando os doentes e colocando de quarentena os animais saudáveis. Apesar de tudo, a espécie é resistente: no início da década de 1990, os animais foram caçados quase até à extinção, mas recuperaram. Com ajuda, talvez sobrevivam a esta ameaça. Neil Shea


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VIDA NO FIO DA N A VA L H A LABIRINTO DE PEDRA EM MADAGÁSCAR Em passagens ainda por explorar do carso de Madagáscar, abrigam-se algumas das mais estranhas espécies da ilha e do planeta.

O biólogo Steven Goodman, do Museu Field de Chicago, que vive e trabalha em Madagáscar há 20 anos, descreve a região como um “refúgio dentro do paraíso”, um lugar onde o naturalismo oitocentista ainda pode ser praticado. “Se nos deslocarmos de um vale para outro, encontraremos coisas diferentes”: disse Steven. “As formações do carso de Madagáscar são um dos locais da Terra onde se guardam tesouros biológicos extraordinários. Basta entrar e olhar em redor.”

UMA FORMAÇÃO CALCÁRIA COM MAIS DE 300 METROS DE ESPESSURA DEPOSITOU-SE NUMA LAGOA JURÁSSICA.

O

lagarto deslocava-se a medo sobre a rocha escaldada pelo sol. Dava passos rápidos e virava a cabeça. Depois, imobilizava-se, como se pressentisse que estava a ser caçado. Em seu redor, pináculos e tubos ascendiam como torres de uma catedral gótica. Proveniente dos desfiladeiros mais abaixo, um papagaio levantou voo a grasnar, quebrando o transe. O lagarto fugiu, rapidamente, mas o braço de Hery Rakotondravony mexeu-se primeiro. Momentos mais tarde, o jovem herpetologista abria ligeiramente a mão. “Acho que é uma nova espécie.” Em poucos dias passados no Parque Nacional e Reserva do Tsingy de Bemaraha, em Madagáscar, era a segunda ou terceira vez que o ouvia dizer isto. Numa ilha famosa pela biodiversidade (90% das espécies aqui existentes são endémicas, não se encontrando em mais nenhum lugar do planeta), a área protegida de 1.550 quilómetros quadrados é uma ilha dentro da ilha, assemelhando-se a uma biofortaleza, acidentada, em boa parte nunca explorada e quase impenetrável devido à formação maciça calcária (o carso ou tsingy) que a atravessa. O maciço de rocha jurássica dissolveu-se num labirinto de gumes afiados, desfiladeiros estreitos e cavernas que repelem os seres humanos, ao mesmo tempo abrigam animais e plantas. É frequente serem descritas espécies novas provenientes dos habitats isolados no seu interior. Até animais de maior dimensão foram encontrados há pouco tempo, entre eles um lémure de pernas longas descoberto em 1990 mas baptizado apenas em 2005, de forma bizarra, com o nome do comediante britânico e defensor da conservação John Cleese.

Entrar lá dentro é a parte difícil. Em Março, no final da estação das chuvas, antes de as folhas amarelecerem e caírem e o Inverno secar os córregos da floresta, eu e o fotógrafo Stephen Alvarez aventurámo-nos até ao interior do parque. Hery Rakotondravony concordara em acompanhar-nos como guia. Era a sua quarta viagem ao carso de Bemaraha: ele é um dos poucos cientistas que entraram lá mais de uma vez. Chegámos à capital, Antananarivo, logo depois de o presidente ter sido deposto por um golpe de estado. Manifestações violentas ocorriam com intervalos de poucos dias. O turismo, base da economia nacional, quase entrara em colapso. Partimos da cidade sem saber se seríamos travados no caminho. Porém, assim que nos infiltrámos na região rural, os sinais do golpe de estado desvaneceram-se. Demorámos quase cinco dias a alcançar o carso. Volvidos três dias de viagem, atingimos um troço de estrada degradada, uma pista de terra com marcas profundas dos rodados, que mergulhavam em valas de lama escura. Para atravessàr os rios, vermelhos do solo arrastado em virtude da desflorestação ocorrida a montante, éramos transportados por barcaças. As aldeias diminuíam de tamanho, os automóveis desapareciam e a floresta ganhava densidade. A partir de um trilho localizado perto de uma aldeia, infiltrámo-nos na floresta. Após vários meses de chuvas, começava a prolongada estação seca, período durante o qual numerosas criaturas entram em hibernação estival, enquanto aguardam o regresso da humidade. Montámos as tendas perto de um riacho de águas límpidas. A cozinha foi instalada debaixo de uma plataforma saliente numa falésia que se erguia através das copas das árvores e, bem mais acima, lá nas alturas, se dividia e fragmentava nas agulhas, barbatanas e torres de rocha que dão o nome a este lugar. A rocha furava-nos as botas, deixando buracos na borracha. Normalmente, assim que ultrapassávamos alguma elevação afiada como uma

agulha, logo descíamos sobre tapetes de solo fino forrando um manto de rocha ainda mais pontiaguda. Procurávamos primeiro o equilíbrio, receosos, e só depois pensávamos no que havíamos de fazer a seguir. Com muita sorte, lá conseguíamos fazer um quilómetro por dia - imagine o que seria tentar atravessar uma cidade trepando cada arranha-céus e descendo pelo outro lado. No entanto, mesmo percorrendo distâncias muito mais curtas do que tínhamos previsto, vimos centenas de animais e plantas, mais do que éramos capazes de reconhecer. Em momentos mais tranquilos, punha-me a imaginar mil lugares do parque nunca visitados por seres humanos e que talvez nunca viessem a sê-lo. Certa tarde, quando regressava de uma pa­sseata quente e húmida, as trepadeiras que rastejavam pelo trilho agarraram-me um pé e o meu joelho aterrou sobre uma pequena pedra. Na região onde cresci, ter-me-ia seguramente safado com uma simples escoriação. Mas esta pedra era carso em miniatura. Uma lâmina de calcário enterrou-se quase até ao osso. Demorei dois dias a alcançar um hospital, onde uma enfermeira me limpou a ferida. “Porque anda a fazer isto? Acho que você é um bocadinho burro”, Olhou para cima. Eu suava. As formações invulgares aqui existentes pertencem ao sistema cársico, uma paisagem formada a partir de calcário que foi dissolvi­do e polido pela água. Os processos que entalharam esta paisagem extraterrestre são complexos e raros: fora de Madagáscar, encontram-se poucas formações cársicas semelhantes.

Os desfiladeiros do carso de Bemahara formaram-se a grande parte abaixo da superfície, como grutas profundas e estreitas. Enquanto as chuvas da monção cinzelavam os cumes de uma jazida de calcário, as águas subterrâneas dissolviam e desgastavam a rocha ao longo de uma grelha de linhas de fractura. Quando os tectos das grutas abateram e a toalha de água desceu, surgiu o labirinto de desfiladeiros denominados grikes. PERFIL DO CARSO As formações do carso encontram-se mais complexamente entalhadas em duas zonas: O Grande Tsingy e o Pequeno Tsingy. Localizado a altitude superior, o Grande Tsingy contém desfiladeiros mais profundos.


10 | 11 Em língua Malgaxe, Tsingy significa “lugar onde não se pode andar descalço”, em passagens ainda por explorar do carso de Madagáscar, abrigam-se algumas das mais estranhas espécies da ilha e do planeta, como o fantasmagórico sifaca de Decken, (página direita) e uma enorme variedade de répteis, insecto e plantas. À semelhança de outros lémures, os sifacas de Decken vivem provavelmente em pequenos grupos familiares. Pouco se sabe acerca do seu comportamento, mas a evolução equipou-os com almofadas nas mãos e nos pés, ajudando-os a tirar partido do seu lar aguçado.

Segundo os investigadores, as águas subterrâneas, ricas em dióxido de carbono, ter-se-ão infiltrado nos grandes leitos calcários, começando a dissolvê-los nas proximidades das juntas e das falhas, criando cavernas ou grutas. As cavidades cresceram e acabaram por desmoronar-se ao longo dessas juntas, criando desfiladeiros rectilíneos denominados grikes, com uma profundidade pode alcançar os 120 metros e ladeados por pináculos de rocha colunada. Alguns grikes são tão apertados que um ser humano tem dificuldade em atravessá-los. Outros são largos como uma avenida. Ao observarem o carso de avião, os pilotos pensam nos desfiladeiros urbanos de Manhattan. Esta metáfora aplica-se igualmente aos habitantes do carso, uma vez que estas formações rochosas se tornaram “arranha-céus residenciais”, que dão abrigo a um diferente conjunto de espécies em cada patamar. Nos planos mais elevados, existe solo e quase nenhuma protecção relativamente ao sol. Aqui as temperaturas superam frequentemente os 32°C e a vida vegetal e animal restringe-se a criaturas capazes de resistir à seca extrema ou de se deslocar no meio dos pináculos e dos desfiladeiros. No das fendas e frestas, os lagartos perseguem insectos através de jardins de xerófitas tolerantes à seca e outras plantas que deitam raízes compridas, semelhantes a cabos, sobre a rocha, em busca de água. A meio dos “arranha-céus’: mais nichos aparecem nas paredes do desfiladeiro. Várias espécies de grandes morcegos frugívoros e papagaios empoleiram-se nestas paragens. Em lugares com mais sombra, as abelhas fixam as colmeias em fendas. Mas é nos fundos húmidos dos grikes: onde a água e o solo se acumulam, que o ambien– te é mais rico. Aqui, entre orquídeas e enormes árvores tropicais, deambula um bestiário: caracóis gigantes e insectos semelhantes a grilos, do tamanho de um punho, camaleões grandes, serpentes verde-esmeralda e ratos vermelhos. Por fim, debaixo do solo e da lama, ficam as cavernas e as passagens com forma de túneis, o sistema subterrâneo peixes, caranguejos, insectos e outras criaturas residem e se deslocam, algumas delas sem nunca vir à superfície. Esta cidade amuralhada conseguiu abrigar os seus moradores mesmo quando os restantes ecossistemas de Madagáscar se desintegravam. Chama-lhe o refúgio perfeito.

maram-se em formas variadas, incluindo espécies hoje desaparecidas que seriam tão grandes como gorilas e o lémure Microcebus sp., do tamanho da palma da mão humana, o mais pequeno dos primatas vivos. O carso funciona como refúgio numa escala mais pequena. Protegida por muralhas de pedra e humedecida pelas chuvas sazonais, a floresta no seu interior é distinta da savana de palmeiras que a circunda a leste e das áreas costeiras que a ladeiam a oeste. É um vestígio de outra era. Desde que os primeiros seres humanos desembarcaram na ilha, há cerca de 2.300 anos, quase 90% do habitat original foi destruído, a maior parte do qual derrubado para obter madeira ou queimado para criar espaço para as colheitas e, mais recentemente, para o gado. Pensa-se que muitas das espécies outrora existentes na ilha se tenham extinguido. A oeste, o carso amuralha uma grande parte da floresta. A pedra serve de barreira à colonização humana e à criação de gado, que ameaçam o habitat dos animais selvagens em toda a África, com os seus cascos pesados e o seu apetite insaciável. O carso funciona também como corta-fogos, protegendo a floresta dos incêndios naturais e desencadeados por seres humanos.

Os lémures são as criaturas mais conhecidas da ilha. Os seus antecessores habitaram outrora África, mas acabaram por extinguir-se ali, deixando o continente para outros primatas. Actualmente, os lémures encontram-se apenas em Madagáscar. Livres da concorrência que provavelmente os conduziu à extinção noutros lugares, aqui evoluíram e transfor-

A dificuldade do terreno dá origem a refúgios ainda mais minúsculos, onde algumas, criaturas parecem ter evoluído em solidão, restringidas a um punhado de desfiladeiros dentro do carso. Brian Fisher já se deslocou à região três vezes para perceber como estes refúgios se formaram e como moldaram a vida no interior.

Numa manhã sufocante, eu e Hery passeávamos por uma floresta emaranhada que cobria o solo de um grike. Em redor, atmosfera era húmida, cheirando a caves molhadas. Dentro do desfiladeiro e da floresta, pairava o zumbido de mil milhões de asas de insecto. Hery apontou para várias plantas, entre as quais árvores semelhantes a palmeiras, com frontes mais esguias. Tratava-se de uma espécie comum nas florestas húmidas do Leste de Madagáscar, mas ausente no Oeste, bastante mais seco. Só aqui, dentro grikes, é que as plantas conseguiram escapar ao sol ressecante e à errância dos fogos florestais. As plantas eram apenas mais um exemplo. Também há certos tipos de rãs cujos parentes mais próximos vivem a centenas de quilómetros de distância para leste.

“ É possível que desapareçam em breve. Trata-se de uma fortaleza vulnerável.”

Analisando o dna, ele compara formigas oriundas da região do carso com formigas da região oriental de Madagáscar, na esperança de identificar o momento exacto em que elas se separaram. Os resultados fornecerão pistas sobre o modo como os animais evoluem isolados de outras populações e sobre a sua reacção às alterações climáticas. As respostas poderão ter implicações para o futuro, à medida que a actividade humana destrói os habitats e o clima do planeta se altera.

“ É possível que desapareçam em breve. Trata-se de uma fortaleza vulnerável.”

Por ser longínquo e impenetrável, o desenvolvimento parece ter menos probabilidadesde ameaçar o ecossistema do carso do que uma alteração climática na região. Entre as ameaças que poderiam causar danos às florestas e à pedra estão as reduções dos níveis de humidade e pluviosidade e o da acidez da chuva. Num dos últimos dias que passei no carso, demorei-me sobre uma plataforma de vigilância, observando os cumes e os pináculos. A plataforma fora construída para os turistas, mas estes, assustados com o golpe de estado, tinham deixado de vir. Más notícias para o parque, uma vez que 50% do seu orçamento provém de comissões associadas ao turismo. Em Abril de 2008, 147 turistas tinham visitado o carso de Bemaraha: em 2009, durante o mesmo mês, apenas doze. Não muito longe dali, um grupo de sifacas saltava entre os topos dos pináculos, transpondo desfiladeiros e aterrando sobre lâminas de rocha. Com uma brilhante pelagem branca, estes lémures parecem criaturas polares encalhadas nos trópicos. Passeiam numa das mais temíveis paisagens do planeta como se as leis da física nada significassem. Os sifacas desapareceram juntamente com a luz. Os papagaios rasgavam o céu em formações arqueadas, passando por morcegos silenciosos. No fundo dos desfiladeiros, a floresta tornava-se unidimensional, reduzida a uma mancha cinzenta. Encaminhámo-nos para o acampamento, usando as lanternas dos capacetes para descobrir o caminho. Milhares de olhos lampejavam na escuridão. Eram os olhos de lémures nocturnos que apenas existem aqui, de osgas de pele macia e iridescente, de aranhas e traças, com corpos magros como sombras. A própria noite estava a transformar-se numa espécie de continente temporário, fechando a cidade de pedra e todas as suas criaturas. As que já têm nome e aquelas que ainda iremos descrever.

NOVOS LÉMURES Os cientistas descobriram duas novas espécies de lémures em Madagáscar. O Mirza zaza, um lémure gigante, foi descoberto na ilha usando os métodos tradicionais: “Uma série frustrante de armadilhas e muitas árvores trepadas”, conta o investigador Peter Kappeler. A outra espécie foi descoberta num local inesperado: na Internet. Quando comparavam as sequências de genomas do Mirza zaza com outros lémures numa base de dados online, os investigadores repararam que um deles tinha uma divergência genética de 3,8%. Kappeler e os colegas localizaram o lémure em questão num jardim zoológico de Zurique, onde mais análises o identificaram como uma nova espécie, que recebeu o nome de Microcebus lehilahytsara.


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MAMUTES O bebé do gelo

Um mamute, em estado de conservação quase perfeito, reemerge ao fim de 40 mil anos. O longo Inverno chegou ao fim: o canto das aves e o aroma da argila enchem o ar. O calor do Sol distraiu talvez a mãe e, por um instante, ela perde o rasto da sua cria. A bebé dirige-se para a água. Tropeça na margem escorregadia e desliza para dentro de uma mistura de argila, areia e neve acabada de derreter. Debatendo-se para se libertar, cada movimento arrasta-a mais para o fundo. A lama entra-lhe na boca, na tromba, nos olhos. Desorientada, arqueja por uma lufada de ar, mas em vez disso enche a boca de lodo. Tossindo, vomitando, tomada de pânico, emite um guincho agudo que faz a progenitora correr até ela. Inspirando com todas as suas forças, a cria suga a lama para o fundo da traqueia, selando os pulmões. Quando a progenitora chega à margem, a bebé está parcialmente submersa no lodaçal gélido e mexe-se debilmente, entrando rapidamente em estado de choque. A cria afunda-se debaixo da superfície sob o olhar da progenitora e do resto da manada.

O melhor achado alguma vez encontrado

Em 2007, numa manhã de Maio, na península de Yamal, no Noroeste da Sibéria, um pastor de renas do povo nenets, chamado Yuri Khudi, e três dos seus filhos olham para um banco de areia no rio Yuribey e ponderam o que fazer com ocadáver de pequenas dimensões que ali emergiu. Embora nunca tivessem visto um animal daqueles, conheciam-no das histórias cantadas pelo seu povo nas noites escuras de Inverno. Era um bebé de mamute, o animal que os nenets dizem vaguear pela escuridão congelada do submundo, conduzido por deuses infernais. Yuri já vira muitas presas de mamute, as hastes cor de mel em forma de saca-rolhas, grossas como ramos de árvore, que o seu povo encontrava todos os verões. Mas nunca vira um animal inteiro, muito menos um tão estranhamente bem preservado. À excepção do pêlo e das unhas, estava intacto. Yuri sentia-se pouco à vontade. Por um lado, pressentia tratar-se de um achado importante de que outras pessoas deviam tomar conhecimento. No entanto, recusava tocar no animal, porque os nenets acreditam que os mamutes são maus presságios. Acabou por percorrer 240 quilómetros para sul, rumo à pequena vila de YarSale para consultar um velho amigo chamado Kirill Serotetto, que conhecia melhor o modo de funcionamento do mundo. Kirill ouviu a história do seu amigo e depois levou-o a contactar o director do museu local, que convenceu as autoridades a transportar os dois homens de volta para o rio Yuribey num helicóptero. Contudo, ao chegarem ao banco de areia, o mamute desaparecera.


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Terras outrora Habitadas por gigantes, os Mamutes Os mamutes, são um grupo extinto, de elefantes do género Mammuthus, cujos antepassados migraram de África há cerca de 3,5 milhões de anos, espalhando-se pela Eurásia e adaptando-se a um domínio caracterizado por matas, savanas e estepes. O mais conhecido destes proboscídeos é o mamute-lanudo (Mammuthus primigenius), parente próximo dos elefantes actuais e com aproximadamente o mesmo tamanho. Surgiu no Plistocénico médio, há mais de 400 mil anos, provavelmente no Nordeste da Sibéria. O mamute-lanudo encontrava-se perfeitamente adaptado ao frio, com uma camada de pêlo inferior bastante densa, pêlos exteriores com 90 centímetros de comprimento e orelhas revestidas a pêlo. Como muitos dos mamutes ficavam frequentemente enterrados em sedimentos e estes congelaram, muitos restos mortais sobreviveram até à época contemporânea, sobretudo no vasto permafrost (ou solo permanentemente gelado) da Sibéria. Com efeito, as lendas dos nenets relativas ao submundo estão correctas: o subsolo siberiano está repleto de mamutes-lanudos. Todos os verões, aquando do degelo, centenas de presas, outros dentes e ossos surgem nas margens de rios e lagos e ao longo da orla costeira, libertados pela erosão do solo congelado do local onde repousam há dezenas de milhares de anos. Desde que o botânico Mikhail Ivanovich Adams recuperou a primeira carcaça de mamute-lanudo na Sibéria em 1806, foram descobertos cerca de uma dezena de outros especímenes de tecidos moles, incluindo várias crias, desde recém-nascidos a bebés com cerca de um ano de idade. No entanto, nenhuma carcaça estava tão completa como a criatura descoberta, e entretanto perdida, por Yuri Khudi no rio Yuribey. No tempo dos mamutes, a paisagem da maior parte do seu território era muito diferente das charnecas estéreis e da tundra pantanosa que hoje rodeiam o rio. A atmosfera era mais seca, a nebulosidade era limitada e ventos fortes varriam os céus. No lugar da tundra, crescia uma vasta pradaria árida que o paleobiólogo R. Dale Guthrie denominou estepe dos mamutes, que se estendia desde a Irlanda até Kamchatka, atravessando a ponte terrestre de Bering até ao Alasca, Yukon e grande parte da América do Norte. Ervas compridas, ervas de folha larga e arbustos rasteiros da estepe forneciam alimento nutritivo, alimentando uma profusão de mega-fauna mamífera e exuberantemente peluda de enormes dimensões além dos mamutes, como os rinocerontes-lanudos, os gigantescos bisontes-de-chifres-longos e castores grandes como ursos, bem como os temíveis carnívoros que os perseguiam: tigres-de-dentes-de-sabre, hienas-das-cavernas e os ursos-de-pernas-longas.

Os dentes de Lyuba contêm um diário pormenorizado da sua breve vida. Os isótopos de oxigénio da dentina do segundo (no topo) e do terceiro (em cima) pré-molar e outros dentes revelam que ela nasceu na Primavera. Comparando o tamanho do cropo e o nível de desenvolvimento das presas com os elefantes, os cientistas estimaram que el teria quatro meses. Porém, ao abrirem o segundo prémolar e analisarem as linhas de crescimento concluíram que se passara apenas um mês entre o nascimento e a sua morte.

No período de há 14 mil a dez mil anos, os mamutes desapareceram da maior parte dos seus domínios, juntamente com a maioria das restantes espécies de grandes mamíferos do hemisfério norte. Estima-se que a extinção tenha atingido 70% da megafauna em algumas regiões. Estas extinções foram tão arrasadoras que os cientistas evocaram uma série de acontecimentos cataclísmicos para as explicar. Para alguns, ela justifica-se pela colisão de um meteorito; para outros, as causas foram incêndios e secas mortíferos; outros ainda sugerem que uma doença virulenta teria afectado dezenas de espécies. No entanto, uma vez que as extinções coincidiram com o final da última idade do gelo, muitos investigadores pensam que a principal causa para a mortandade foi o aumento acentuado da temperatura, que alterou de forma dramática a vegetação. Uma recente simulação computorizada das alterações na paisagem durante o Plistocénico tardio indica que 90% do antigo habitat do mamute desapareceu. “Temos provas irrefutáveis de que as alterações climáticas desempenharam um papel significativo na sua extinção”, diz Adrian Lister, paleontólogo e especialista em mamutes do Museu de História Natural de Londres. “A cronologia de ambos os acontecimentos é bastante próxima na Eurásia.”

As extinções também coincidiram com a chegada de outra força modificadora da ecologia. Os seres humanos evoluíram em África há cerca de 195 mil anos e espalharam-se pelo Norte da Eurásia há cerca de 40 mil anos. Com o tempo, a expansão das populações exercia uma pressão crescente sobre as suas presas. Além de explorarem os mamutes como fonte de alimento, os humanos usavam os ossos e marfim para fabricar armas, utensílios, figurinhas e até mesmo habitações. Alguns cientistas pensam que estes caçadores humanos, utilizando lanças de arremesso, foram tão culpados pela extinção como as alterações climáticas. A discussão sobre a extinção da megafauna é uma das mais acesas da paleontologia contemporânea e não é provável que venha a ser resolvida por um único espécime, por mais completo que ele se encontre. Mas Yuri Khudi tinha razão ao pensar que a cria, a sua carne, os órgãos internos, o conteúdo estomacal, os ossos, as presas decíduas e outros dentes, teriam enorme interesse para o mundo exterior. Yuri suspeitava também que quem se dispusesse a tocar no animal e o vendesse conseguiria provavelmente um bom lucro. Afinal, os coJllerciantes de marfim visitavam regularmente a região para comprar presas de mamute e quem sabe quanto pagariam

por um mamute intacto? As suspeitas não tardaram a recair sobre um dos seus primos, que tinha sido avistado no banco de areia e posteriormente se afastara num trenó puxado a renas rumo à vila de Novyy Port. Yuri e Kirill montaram na mota de neve e largaram em sua perseguição. Ao chegarem, deram com o pequeno mamute apoiado contra a parede de uma loja. As pessoas fotografavam-no com os telemóveis. O proprietário da loja comprara o corpo ao primo de Khudi em troca de duas motos de neve e provisões de alimento para um ano. Embora já não estivesse em condições perfeitas, pois alguns cães tinham arrancado parte da cauda e da orelha direita, Yuri e Kirill conseguiram reclamar a cria com a ajuda da polícia local. O corpo foi então embalado e enviado de helicóptero para a segurança do Museu Shemanovsky, em Salekhard, a capital regional. “Felizmente, a história teve final feliz”, diz Alexei Tikhonov, director do Museu Zoológico de São Petersburgo e um dos primeiros cientistas a ver a cria. “Yuri salvou o mamute mais bem preservado da idade do gelo que chegou até nós.” Num gesto de gratidão, o mamute foi designado por Lyuba, o nome da mulher de Yuri.

as pistas num dente Alexei Tikhonov sabia que nenhuma pessoa ficaria mais entusiasmada com o achado do que Dan Fisher, um colega norte-americano da Universidade de Michigan. Dan é um paleontólogo de 59 anos que dedicou grande parte dos últimos 30 anos a compreender as vidas de mamutes e mastodontes do Plistocénico, combinando o estudo de fósseis com pesquisa experimental de carácter muito pessoal. Curioso por saber como os caçadores do Paleolítico conseguiam armazenar carne de mamute sem desperdícios, Dan desmanchou a carne de um cavalo de trabalho com ferramentas fabricadas por si e guardou a carne num bebedouro para gado escavado na terra. Naturalmente preservada dentro de água por micróbios denominados lactobacilos, a carne emitia um odor ligeiramente azedo e ácido que afastava os necrófagos mesmo quando flutuava até à superfície. Para testar o seu sabor, Dan cortou e comeu bifes dessa carne de quinze em quinze dias entre Fevereiro e o pico do Verão, demonstrando assim que os caçadores de mamutes poderiam ter armazenado as suas presas da mesma forma.

Alexei convidou Dan Fisher a visitá-lo em Salekhard em Julho de 2007, juntamente com Bernard Buigues, um caçador francês de mamutes que ajudara a organizar estudos científicos sobre descobertas anteriores de mamutes. Dan e Bernard tinham examinado outros especímenes, incluindo crias. No entanto, estes encontravam-se em condições relativamente más, possibilitando pouco trabalho pormenorizado. Lyuba era uma história completamente diferente. “Quando vi, percebi que era perfeita”, conta Dan. “Parecia que adormecera. Subitamente aquilo que eu tanto me esforçara por visualizar estava ali deitado à minha frente, ao alcance dos meus dedos”. Além do pêlo e das unhas em falta e dos danos sofridos após a descoberta, o único defeito do seu aspecto prístino era uma curiosa mossa no focinho, mesmo por cima da tromba. Mas o seu aspecto global e a saudável bossa de gordura sobre o seu pescoço indicavam que a bebé estava em excelentes condições na hora da morte. Um exame mais profundo aos seus dentes, órgãos internos, conteúdo estomacal e outras características, prometia revelar uma variedade de novas informações sobre a biologia e o modo de vida de um mamute normal. Assim começou a investigação ao mamute.

Dan estava particularmente entusiasmado com uma parte específica da anatomia de Lyuba: as suas presas decíduas. As presas são incisivos modificados que crescem em camadas de um modo contínuo ao longo da vida do animal. Ao longo de 30 anos de estudo, Dan concluíra que estes depósitos são acrescentados em incrementos anuais, semanais e até diários e que, à semelhança dos anéis de uma árvore, contêm um registo pormenorizado da história da vida do animal. As camadas espessas representavam pastagens abundantes durante o Verão e as mais finas indicavam a alimentação pobre de Inverno. A partir de um estreitamento súbito da camada por volta do 12.0 ano, Dan consegue discernir quando um macho atingiu a maturidade sexual e foi afastado da manada matriarcal pela sua progenitora. Passados alguns anos, observam-se sinais das ferozes batalhas travadas pelos machos adultos durante o cio, que determinam qual ganha a oportunidade de se reproduzir. Para terminar, nas camadas da raiz da presa, que são as últimas a formar-se, Dan descobriu pistas sobre a morte de um animal: a decadência lenta provocada por ferimentos, doença ou stress ambiental ou a quebra acentuada da morte súbita. Ele também descobriu que os níveis de determinadoselementos químicos e isótopos nas presas forneciam dados sobre a dieta do animal, situação climática e até sobre grandes mudanças geográficas, como a migração. Dan já recolheu centenas de amostras de presas e pensa que nelas existe a resposta para a pergunta sobre a extinção maciça no Plistocénico tardio. Pelo menos na região dos Grandes Lagos, na América do Norte, onde a maior parte destas amostras foi descoberta, as presas de mamute e mastodonte mostram que estes animais continuaram a prosperar, apesar das alterações climáticas do Plistocénico tardio. Por outro lado, segundo Dan, as presas forneceram evidências reveladoras de caça por seres humanos. As amostras do final do reinado dos mamutes provêm frequentemente de animais falecidos no Outono, quando deveriam estar no pico físico, após as pastagens de Verão, ou seja, quando <1/ morte por causas naturais seria menos provável. Essa seria porém a altura em que os caçadores humanos estariam mais ansiosos por armazenar comida para o Inverno. As presas pertenciam frequentemente a machos que, tal como os elefantes actuais, viviam provavelmente sozinhos, sendo por isso alvos mais fáceis para os caçadores do que as fêmeas que viajavam em manadas matriarcais. Muitos restos mortais foram descobertos em turfeiras e lençóis de água, nos quais, segundo Dan, os caçadores primitivos os poderão ter submergido de modo a conservar a carne. Os especímenes norte-americanos também pareciam mostrar um declínio na idade média da maturação ao longo do tempo, que Dan atribui à pressão exercida pela caça. Ele realizara um trabalho limitado na Sibéria, mas as suas medidas de presas oriundas da ilha de Wrangel, na costa nordeste da Sibéria, onde os últimos mamutes morreram há 3.900 anos, sugere as mesmas conclusões.

R i no c eronte da sumatra

Um parto muito especial. Primeiro nascimento em 112 anos. O rinoceronte da Samatra é um dos mamíferos mais ameaçados da Terra, já que existam apenas 300 animais em estado selvagem e 15 em cativeiro. Este primo dos rinocerontes couraçados é tão raro que os especialistas nem sabiam ao certo qual a duração do seu período de gestação. Até ao dia 13 de Setembro de 2001! Após cinco gravidezes fracassadas e 475 dias de gestação, Emi, uma fêmea do jardim zoológico de Cincinnati, deu à luz Andalas, uma cria com 33 kg – a primeira da espécie a nascer em cativeiro desde 1889. Andalas vai possivelmente integrar um programa de reprodução em cativeiro na Indónesia ou na Malasia. Os dados obtidos durante a gravidez vigiada de Emi serão um valioso contributo para estes esforços.


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Os cientistas cortam um pedaço de pele e gordura do abdómen de Lyuba. “Vai dizernos tanto sobre a bem como sobre o bebé”, diz Dan Fisher, pois a camada de gordura branca indica que a cria estava bem alimentada. “Se a mãe estivesse doente ou com dificuldades em encontrar comida, a camada seria mais fina.” Naturalmente, sem o resto do corpo, as deduções são falíveis e Dan nunca submetera a teste as suas inferências, mas o soberbo estado de preservação de Lyuba prometia novidades. Oferecendo provas directas sobre a sua dieta e estado de saúde, os conteúdos do estômago e intestino e a quantidade de massa gorda poderiam fornecer uma corroboração independente do breve “diário” dietético registado nas suas presas decíduas ainda inclusas. “Neste caso, não precisamos de uma máquina do tempo para ver a precisão do nosso trabalho”, diz. Além disso, como as presas decíduas se desenvolvem desde o início da gestação até à altura do nascimento, Lyuba poderia proporcionar novos dados sobre um período decisivo da vida de um mamute: a vida no ventre (estimada em 22 meses, com base na duração da gestação de um elefante). Acontecimento traumático para qualquer mamífero, o momento do nascimento fica registado na microestutura dentária por uma linha neonatal. Comparando o desenvolvimento das presas decíduas com as dos elefantes, os cientistas avaliaram inicialmente que teria quatro meses quando morreu. A contagem dos incrementos de marfim assentes após a linha neonatal forneceria uma idade mais exacta.

O R i no c eronte Q ue J á F o i U rso

época do mamute Para começar o estudo, foram enviadas amostras de tecido de Lyuba para a Holanda, onde a datação por carbono 14 revelou que ela morrera há cerca de 40 mil anos. Em Dezembro de 2007, Bernard tomou medidas para que o espécime fosse transportado num contentor refrigerado para o Japão, onde foi submetido a uma tac por Naoki Suzuki, da Faculdade de Medicina da Universidade de Jikei. O teste confirmou que o esqueleto, dentes e tecidos moles estavam intactos e os órgãos internos também pareciam incólumes. A ponta da tromba, a garganta, a boca e a traqueia estavam cheios de um sedimento denso, o que sugeria a asfixia com lama. O teste revelou umas estranhas bolhas que se apresentavam opacas ao raio X nos tecidos moles e uma distorção de determinados ossos. Estas anomalias enfatizavam um enigma: passados 40 milénios no solo, como estava ela tão bem preservada? O estado de conservação de Lyuba tornou-se muito mais, misterioso, em Maio de 2008, quando Dan e Bernard visitaram o rio Yuribey. Imediatamente a montante do banco de areia onde fora encontrada havia uma falésia alta e íngreme que era constantemente desbastada pelo rio. Sobre a borda da falésia estavam assentes blocos de solo permanentemente gelado, alguns grandes como casas. Talvez Lyuba tivesse permanecido congelada dentro de um desses blocos e depois caído à água durante o degelo anterior, tendo flutuado rio abaixo e atracado no

banco de areia quando as cheias provocadas pelo degelo elevaram brevemente o rio até aquele nível. Só havia um problema: os filhos de Yuri Khudi encontraram-na naquele local em Maio de 2007, antes do degelo primaveril. A não ser que se tivesse levantado do mundo dos mortos e caminhado até ao banco de areia sozinha, a única explicação era que se libertara do solo permanentemente gelado e ficara ali estendida quase um ano antes de ser descoberta, durante o degelo de Junho de 2006. Para Dan Fisher, a hipótese não fazia sentido.“Ela teria estado aqui deitada, na margem do rio, durante todo esse tempo, incluindo um Verão inteiro exposta ao sol”, disse. “Porque não se decompôs nem foi atacada por necrófagos?” Dan Fisher e Bernard Buigues tinham feito o possível para compreender as circunstâncias da morte da cria e da misteriosa preservação. Teria de ser a própria Lyuba a dar mais respostas.

AUTÓPSIA ao mamute A 4 de Junho de 2008, num laboratório de genética de São Petersburgo, na Rússia, Dan Fisher, Bernard Buigues, Naozi Suzuki, Alexei Tikhonov e outros colegas deram início a uma maratona de três dias de análises e intervenções cirúrgicas a Lyuba. Os outros cientistas utilizaram uma broca eléctrica para retirar uma amostra do interior da bossa de gordura do pescoço, procuraram ácaros nas orelhas e no pêlo, abriram-lhe o abdómen e removeram secções do intestino para estudar o que comera. Por último, no terceiro dia, Dan cortou o focinho de Lyuba e extraiu uma presa decídua, bem como quatro pré-molares.

Inicialmente os investigadores, mantiveram-na congelada, através do contacto com tubos de plástico de gelo seco. Depois, para facilitar as operações mais invasivas, deixaram-na a descongelar lentamente, vigiando-a cuidadosamente, sempre atentos a sinais de putrefacção. À medida que a carne aquecia, Fisher reparou num odor ligeiramente azedo que lhe era familiar, mas não conseguia identificar. “Tal como os outros, eu sofria de sobrecarga sensorial”, recorda. “Tivemos de despachar tanto trabalho em tão pouco tempo. Fiz um apontamento mental daquilo e continuei:’ Ele também reparou que os dentes do mamute não estavam presos aos orifícios pelo habitual tecido conjuntivo e que os músculos tinham sido separados do osso em sítios onde, num espécime normal, deveriam estar firmemente ligados. “Esse facto deixou-me pasmado”, explica. “Mas não havia muito tempo para reflectir.”

As zonas opacas ao raio x visíveis na tac eram cristais azuis brilhantes de vivianita, provavelmente formados por fosfato libertado pelos seus ossos. Dan reparou então numa mistura densa de argila e areia no interior da sua boca e garganta, sustentando a hipótese sugerida pela tac, segundo a qual ela sufocara, provavelmente na lama da margem do rio. Com efeito, os sedimentos da tromba de Lyuba estavam tão compactados que Dan os considerou uma possível explicação para a mossa no focinho. Se ela se esforçara freneticamente para respirar e inalado de forma convulsiva, talvez se tivesse formado um vácuo parcial na base da tromba, aplanando os tecidos moles contra a testa. Para Dan, as circunstâncias da morte de Lyuba eram claras, embora Naozi propusesse mais tarde outra interpretação por observar mais provas de afogamento do que de asfixia. No fim da autópsia, enquanto se suturava o

pequeno corpo, Dan teve uma revelação sobre aquele odor peculiar. A sua mente descontraía finalmente do esforço intenso dos três últimos dias e ele lembrou-se subitamente da sua experiência com o cavalo de trabalho e do cheiro que os seus pedaços de carne inchados, naturalmente avinagrados pelos lactobacilos, emitiam ao flutuarem até à superfície do lago. Lyuba tinha o mesmo cheiro. O seu soberbo estado de preservação fazia finalmente sentido. Ela fora literalmente avinagrada depois de morrer, ficando assim protegida de apodrecer quando o seu corpo voltou a estar exposto, milhares de anos mais tarde. O ácido láctico produzido pelos micróbios também podia ter provocado a estranha distorção óssea e a separação muscular que Fisher observara durante a autópsia e talvez até encorajado a formação de cristais de vivianita ao libertar fosfato dos ossos.

Assim, Lyuba morrera provavelmente devido a um passo em falso junto a um rio lamacento e fora preservada para a ciência graças a uma combinação de acaso químico e a singular determinação de um pastor nenets. Embora os estudos ainda estivessem em curso, ela também começara a revelar os segredos da sua curta vida e algumas pistas sobre o destino da sua espécie. O seu estado saudável e bem alimentado repercutia-se no seu desenvolvimento dentário, uma satisfatória confirmação para Dan de que os registos dentários são uma amostra fiel para avaliar a saúde com base apenas na dentição, sendo portanto fundamentais para investigar as causas da extinção dos mamutes. A análise do seu bem preservado dna revelou que ela pertencia a uma população distinta de Mammuthus primigenius que, pouco depois do seu tempo de vida, seria substituída por outra população que migrou para a Sibéria vinda da América do Norte. Numa escala mais íntima, o intestino de Lyuba continha as fezes de um mamute adulto, provavelmente a sua progenitora, provando que, à semelhança dos elefantes contemporâneos seus parentes, as crias de mamute comiam as fezes da progenitora para inocular os intestinos com os micróbios maternos, preparando-se deste modo para a ingestão de plantas. Por fim, os pré-molares e as presas de Lyuba revelaram que ela nascera no final da Primavera e tinha apenas um mês quando morreu. As últimas camadas da sua presa correspondiam ao padrão que Dan Fisher associa à morte acidental: uma constante sucessão de dias prósperos terminando num final abrupto.

Há muito tempo, quando manadas de rinocerontes pastavam nos vales das montanhas do que é agora o Noroeste de Espanha, uma cria de rinoceronte perdeu-se e morreu numa gruta. Cerca de noventa mil anos depois, em 1970, espeleólogos britânicos encontraram o fóssil do animal e pensaram tratar-se dos restos de um burro. Mais tarde, peritos espanhóis declararam que era um urso pré-histórico e tentaram levá-lo para Madrid. Os residentes da área, porém, não estavam dispostos a abdicar de uma descoberta com potencial para atrair turistas. “Viva o urso!”, tornou-se o grito de protesto da campanha. Por fim, no ano 2000, agricultores locais mostraram uma fotografia do fóssil à paleontóloga Ana Pinto Llona, e esta esclareceu a controvérsia: o urso era, afinal, um rinoceronte. Depois de raspar a rocha para ver a forma original de um dente, Pinto Llona e os colegas fizeram uma descoberta espantosa: a gruta, chamada La Peruyal, abriga o que pode ser o único esqueleto juvenil intacto do extinto rinoceronte Stephanorhinus hemitoechus. “O pobrezinho tinha apenas 18 meses”, diz Pinto Llona. Um centro interpretativo que possui uma réplica do fóssil (em cima} está a ser criado perto da gruta. A R. Williams


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O lobo-ibérico desempanha um papel ecológico

LOBO IBÉRICO F elino M ais A meaçado

O seu nome científico Canis lupus signatus, mais conhecido como lobo-ibérico, é das subespécies de lobos mais ameaçada em todo o Mundo.

E

m Portugal, existe uma subespécie do lobo, conhecida cientificamente por Canis lupus signatus. Oriundo da Península-Ibérica, o lobo-ibérico, tem em média, um comprimento de 140 cm, uma altura ao garrote de 70 – 80 cm e um peso de 35 – 55 kg. Geralmente as fêmeas tendem a ser mais pequenas. O lobo-ibérico é caracterizado por possuir uma pelagem de coloração cinzenta-acastanhada, com manchas faciais brancas, bem evidentes, e as canelas das patas anteriores possuem uma mancha negra. Têm uma pelagem densa durante o Inverno, mas bastante rala no Verão, o que lhe confere um aspecto mais magro e escanzelado. O lobo é o mamífero terrestre com maior distribuição geográfica, bem como um dos mais adaptáveis. Esta espécie é capaz de tolerar uma ampla variação de condições ambientais, como temperaturas de -50ºC a + 50ºC, e habitar todos os tipos de paisagens, desde desertos a tundras. Originalmente, esta espécie encontrava-se distribuída por todo o hemisfério Norte, acima de 15º N latitude na América do Norte e de 12º N na Índia e Arábia Saudita. No entanto, a partir da Idade Média, inicia-se uma intensa perseguição por parte do Homem, a qual reduziu a área de ocorrência original do lobo em cerca de um terço, e levou à sua extinção no Japão e na maioria da Europa Ocidental e Central; China; sub-continente Indiano; México e Estados Unidos da América. No início do século xx o lobo-ibérico ocorria por quase todo Portugal, iniciando-se nessa altura por causas humanas, uma regressão da sua distribuição, do litoral para o interior e de Sul para Norte do país. Ainda durante a década de 1960, o lobo existia em todo o território português, de Norte a Sul do país, o que demonstra a alarmante regressão que esta espécie sofreu face a preseguição, que perseguição que o Homem lhe move ao

longo de todo o século xx. No entanto, esta regressão das populações parece ter-se atenuado nos últimos anos. De acordo com o último censo nacional de lobos, efectuado nos anos de 2002 e 2003, a população lupina em Portugal distribui-se por cerca 20.000 km2, sendo estimada em 65 alcateias, o que corresponde mais ou menos 300 lobos. Actualmente, o lobo subsiste somente nas serras mais agrestes do Norte e Centro interior do país (regiões caracterizadas pela baixa densidade populacional humana), tendo os seus principais e mais estáveis núcleos de ocorrência nas montanhas e florestas, que constituem o Parque Nacional da Peneda-Gerês, o Parque Natural de Montesinho e o Parque Natural do Alvão. Estes três núcleos lupinos, devido à sua estabilidade, são uma fonte regular de animais dispersantes, tendo por isso influência em alcateias que ocorrem nas regiões envolventes, caracterizadas por uma maior instabilidade. A distribuição dos lobos em Portugal não é contínua, devido a separação das duas populações: uma a Norte do Rio Douro, que é estável e está conectada com a restante população lupina espanhola (estimada em cerca de 2500 indivíduos); e outra pequena e isolada população a Sul do Rio Douro, com aproximadamente 30 lobos que se encontram em eminente perigo de extinção. O lobo é um mamífero social, que vive em grupos familiares estruturados (as alcateias) constituídos normalmente, por um casal reprodutor e seus descendentes directos. (crias desse ano ou de anos anteriores). As alcateias são constituídas por cerca de 3 a 12 animais que ocupam um território definido (cuja dimensão, em Portugal, varia entre 150 e 300 km2), variando o efectivo da alcateia e a dimensão do seu território ao longo do ano e encontrando-se dependente da disponibilidade de alimento e do nível de perseguição que o Homem lhe move (caça

furtiva; exterminação). Os lobos só se reproduzem uma vez por ano, nascendo cerca de 5 cachorros por ninhada em Abril/Maio, após cerca de dois meses de gestação — de 61 a 64 dias. A maturidade sexual de ambos os sexos é normalmente atingida a partir dos 22 meses de idade, embora os jovens possam adiar a maturação sexual enquanto permaneçam nas alcateias onde nasceram, como resultado da competição reprodutiva. As crias, normalmente mantêm-se com os seus progenitores por 10 a 54 meses, dispersando da alcateia natal maioritariamente , com 1 a 2 anos de idade e durante o Outono/início do Inverno e Primavera. Os lobos comunicam entre si através de um conjunto de sinais visuais, olfactivos e auditivos, tal como marcações de excrementos e urina, esgravatados efectuados com a patas e vocalizações, como por exemplo, o uivo.Trata-se de um animal carnívoro, alimentando-se preferencialmente de ungulados e grandes roedores. Nas regiões onde se verifica a ausência, ou raridade de espécies de ungulados silvestres (corço, veado, javali), o lobo preda animais domésticos, e em zonas humanizadas do Sul da Europa e da Ásia, pode basear a sua alimentação em

pequenos roedores e desperdícios humanos. Apesar de ter hábitos necrófagos, o lobo é essencialmente um predador, que caça em grupos, através de enormes e persistentes perseguições ás presas, embora com uma reduzida taxa de sucesso predatório (50%). Por essa razão este carnívoro tem a capacidade de ingerir numa só refeição cerca de 10 kg de carne, e de poder não se alimentar durante várias semanas. Sendo um predador de topo, o lobo exerce vários efeitos sobre outros componentes e processos do ecossistema onde se insere: o efeito sanitário, uma vez que ataca preferencialmente animais doentes ou debilitados; o controlo ou limitação dos efectivos das populações das presas; a estimulação positiva da produtividade das populações das presas; a disponibilização de alimento para um grande número de espécies necrófagas, e a predação sobre mesopredadores — cães e outros carnívoros, de pequeno e médio porte. Desta forma, alterações na presença, abundância e comportamento do predatório do lobo, podem conduzir a mudanças na dinâmica populacional das sua s populações-presa, e consequentemente através dum efeito cascata, reflectirem-se em todo o ecossistema.

Apesar da reduzida área de distribuição do lobo a nível nacional, este apresenta uma grande variedade de características ecológicas, como consequência das condições do habitat onde ocorre e das capacidades de adaptação destes carnívoros. Desta forma, nas serras do noroeste de Portugal (área de influência do Parque Nacional da Peneda-Gerês) os lobos baseiam a sua alimentação nos elevados efectivos de equinos e bovinos pastoreados em regime de liberdade, o que faz com que nesta região se verifiquem os maior número de prejuízos a nível económico, causados pela predação do lobo na pecuária, a nível nacional. Já no nordeste de Portugal, (zona Este do Parque Natural de Montesinho), a grande disponibilidade em número e densidades de presas silvestres (javali, corço e veado) faz com que o lobo baseie a sua alimentação nestes ungulados, não tendo necessidade nenhuma de consumir qualquer animal doméstico. Na região central de Trás-os-Montes, verifica-se uma situação intermédia, onde o lobo se alimenta basicamente dos únicos ungulados comuns nesta região: o javali e os pequenos ruminantes (caprinos e ovinos). Na região a Sul do rio Douro o lobo também segue uma conduta ecológica semelhante, embora recorra frequentemente às lixeiras e vazadouros, apresentando assim um acen-tuado comportamento necrófago. Segundo a uicn, o lobo apresenta a nível Mundial, desde 1996, o estatuto de “Baixo Risco”, com indicação de dependente de conservação para a Península Ibérica, que constitui um dos seus últimos redutos na Europa Ocidental. Em Portugal, o lobo está totalmente protegido desde 1988, sendo proibido o seu abate ou captura e a destruição ou deterioração do seu habitat. Há mais de uma década que o lobo é classificado como “Em Perigo de Extinção” no Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, e encontra-se ainda incluído no Anexo II da CITES (Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies de Fauna e Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção) e no Anexo II da Convenção de Berna (Convenção Relativa à Conservação da Vida Selvagem e dos Habitats Naturais da Europa). A nível da Comunidade Europeia, o lobo é considerado uma espécie prioritária para a conservação segundo a Directiva Habitats. Apesar do lobo-ibérico ser uma das espécies protegidas, continua a enfrentar várias ameaças à sua sobrevivência, como sejam: A perseguição directa ilegal (principalmente através do tiro, veneno e laços) resultado da atitude negativa das populações rurais que convivem com o lobo; A redução da disponibilidade de alimento (raridade das presas silvestres e diminuição dos efectivos pecuários); E a crescente deterioração e fragmentação do seu habitat devido a incêndios ou à cons trução de infra-estruturas.


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Entrevista com

ELISABETE PIRES

Recuemos um pouco mais na história do cão na Península Ibérica. Uma das hipóteses de partida do projecto era a investigação sobre possíveis eventos independentes de domesticação do lobo ibérico. Podemos determinar que não terão ocorrido novos eventos de domesticação?

O M apa E scondido do C ão Não creio que irão desaparecer, porque há sempre criadores interessados neles, mas em termos funcionais já se detectam diferenças entre os animais da mesma raça que são criados em ambientes diferentes. No ambiente rural, são seleccionados pelo desempenho da sua função , mas, no sistema de canicultura, a selecção é baseada essencialmente pelos aspectos morfológicos ou estéticos. Começa a haver uma diferença morfológica e, talvez mais tarde, funcional. É legítimo temer que os animais percam aptidões no futuro.

Passamos por eles todos os dias, mas nem sempre lhes damos valor. Há dez raças endémicas de cães em Portugal e todas elas têm baixo número de reprodutores. A investigadora Elisabete Pires, do Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação, terminou um projecto de avaliação da diversidade genética das raças de cães portuguesas e já está pronta para nova investigação. Agora, vai recuar no tempo e mapear o processo evolutivo do cão na Península Ibérica. No laboratório, talvez as amostras de DNA do melhor amigo do homem ajudem a preencher lacunas de um passado desconhecido.

O efectivo reprodutor é só metade da questão. A outra questão tem muito a ver com a análise da diversidade genética. É possível que uma espécie com um efectivo reprodutor elevado tenha paradoxalmente baixa variabilidade genética?

Pensamos em espécies ameaçadas, e os cães não são propriamente a primeira preocupação. Porque foram a sua? De certa forma, este projecto germinou no Grupo Lobo [organização não governamental de defesa e protecção do lobo ibérico]. Preocupados com a conservação do lobo, tentámos recuperar a utilização de um método tradicional de protecção dos rebanhos, utilizando cães de guarda que dissuadem os lobos, podem contribuir para diminuir os prejuízos e assim reduzir os conflitos entre o homem e o lobo. No campo, percebemos que as raças autóctones de cães já tiveram populações muito superiores às actuais. À medida que o número de pastores diminui, há menos necessidade de cães de guarda, e as raças ficam mais vulneráveis. Foi por vontade de quantificar esse património animal ameaçado que participei num projecto abrangente que envolveu a caracterização biométrica, comportamental e genética das raças de cães endémicas de Portugal. Na primeira etapa do seu trabalho, avaliou o efectivo de fêmeas reprodutoras de cada raça, usando os dados do Clube Português de Canicultura (cpc). Até que ponto eles são uma amostra fiável do que existe em Portugal? É verdade que são apenas uma amostra. Nem todos os cães estão registados no cpc, principalmente os cães de trabalho, como os dos lavradores e os dos pastores, porque no ambiente rural não é tão importante a inscrição dos cães num clube. A preocupação, nesses casos, centrase no desempenho da sua função e não tanto no seu registo e participação em concursos. Reconheço que são efectivos subestimados mas são os mais fiáveis de momento. E fez todas as recolhas em cães inscritos no clube? Não. Com base nos registos do CPC, procurei amostrar animais de forma a cobrir diferentes linhagens. Procurei diferentes criadores com linhas reprodutoras distintas, evitando assim cães que partilhassem os mesmos ascendentes. Procurei, desta forma, amostrar o máximo da diversidade genética de cada raça. Depois desse trabalho, fiz inquéritos a proprietários de cães, identifiquei as aldeias mais isoladas e procedi à selecção dos animais em ambiente rural, de modo a, mais uma vez, reduzir a probabilidade de amostrar cães aparentados entre si.

Exacto. Imagine uma raça em que existam muitas fêmeas em idade reprodutora, mas em que os criadores recorram preferencialmente a um macho muito premiado, muito conhecido, que está na moda no circuito. A curto prazo, perder-se-á muita da diversidade genética dessa raça.

As raças portuguesas partilham a mesma origem de outras no mundo. Elisabete Pires testou a hipótese de a subespécie do lobo ibérico ter contribuído para a origem de algumas das raças caninas na Península Ibérica, mas não encontrou nenhum padrão específico que o pudesse comprovar. É inquestionável, pela avaliação dos seus dados, que as dez raças de cães portugueses têm um efectivo reprodutor baixo ... Todas! O número de fêmeas em idade reprodutora, que potencialmente podem contribuir para as futuras gerações, é reduzido. Quanto ao seu estatuto de conservação, estas raças podem classificar-se em duas categorias [definidas pela FAO Food and Agriculture Organization]: vulnerável (quando o número de fêmeas em idade reprodutora é inferior a cinco mil) ou em perigo (quando é inferior a mil). Na primeira, encontra-se o cão da serra da Estrela, o rafeiro do Alentejo, o cão de fila de São Miguel, o perdigueiro português e o podengo português; na segunda, estão o cão de Castro Laboreiro, o cão da serra de Aires e o cão de água português. O caso das duas restantes (o cão de gado transmontano e o barbado da Terceira) é diferente: elas foram definidas como raças muito recentemente, quando a investigação já estava no final e, por isso, não foram apreciadas. Todas as raças são funcionais, ou seja, cumprem uma função. É legítimo pensar que com algumas funções em desuso, como o pastoreio, também esses cães vão perder utilidade?

Das análises genéticas que conduziu, apurou que algumas raças têm uma composição genética única. Isso pode ser extrapolado para dizer que elas estiveram mais tempo isoladas geograficamente?

Claramente. Queria perceber se alguma destas raças que são endémicas de Portugal foram apuradas aqui e se teriam tido a participação do lobo ibérico na sua origem. Utilizámos um marcador molecular, o DNA mitocondrial, uma região do material genético diagnóstica para este tipo de questões. Percebemos que entre o lobo e as raças que temos no território não encontramos nenhum padrão diferente do resto do mundo. Ou seja, as raças endémicas portuguesas partilham a mesma origem de outras no mundo. Chegaram cá os primeiros cães e foram apuradas as raças a partir destes . ... o que nos transporta para a sua origem. Serão produto de cruzamentos com raças de cães do Norte de África? Do Oriente? Dada a proximidade geográfica e histórica com o Norte de África, testei a hipótese de raças de cães portugueses terem tido influência de cães dessa região, tal como já está documentado para os bovinos. Mas não tiveram. Não há qualquer indício genético de que os muçulmanos que chegaram a este território no século VIII tenham trazido os seus cães e que estes tenham cruzado com cães locais. Em retrospectiva, a conclusão não surpreende. Os muçulmanos não têm uma relação próxima com o cão. Não o criam como animal doméstico, e portanto é normal que este não os acompanhasse nas suas migrações.

Poderão ter ocorrido dois fenómenos demográficos distintos: um efeito fundador, ou seja, o grupo de animais que fundou aquela raça foi pequeno; ou pode também ter acontecido que, ao longo do tempo, se tenham perdido alguns genótipos por deriva genética e/ou selecção. No caso do cão de Castro Laboreiro, por exemplo, chegamos à actualidade com uma composição genética muito particular e uma baixa variabilidade genética.

Morfologicamente, nós vemos que são cães diferentes. Mas será que geneticamente, a nível molecular, estes indivíduos estão separados? Será que, esquecendo o aspecto exterior e olhando para os marcadores moleculares que nós agora temos disponíveis, podemos verificar se eles estão de certa maneira diferenciados? Evidentemente, não analisámos os primeiros cães párias que vimos! Fomos às zonas de origem histórica de algumas raças, visitámos canis e colhemos amostras de cães sem raça definida. Verificámos, de facto, que eles não têm relações genéticas próximas. Apurou a vulnerabilidade de cada raça, estimou a sua riqueza genética. O que se segue? É fundamental passar à conservação. A gestão da conservação das raças, ao contrário do que sucede com as espécies de fauna e flora silvestres, pertence aos clubes e às associações, que mantêm livros genealógicos, que estabelecem cruzamentos, que identificam reprodutores e tudo mais. É fundamental que eles disponham destes dados e possam delinear uma estratégia de conservação mais objectiva e rigorosa. A meio deste projecto, começou a contemplar a expansão do universo de análise para o passado. Sabemos que o cão terá sido domesticado há cerca de quinze mil anos, mas conhecemos mal a sua evolução genética.

A população do cão da serra da Estrela é vulnerável, poisexistem menos de cinco mil fêmeas em idade reprodutora.

Para compreender a evolução das raças não se pode dissociar a genética do cãodo contributo humano cultural e histórico das sucessivas migrações e Colonizações E existem? Em Portugal, não. Por isso, o projecto tem uma parceria com um laboratório de Lyon (França). É essencial tratar a amostra em salas independentes, isoladas, em que temos reagentes especialmente desenvolvidos, com capa’cidade para recuperar esse escasso DNA que possa existir. Há muitos riscos de contaminação ... ... e implica a destruição de uma parcela do osso? De uma pequena porção do osso, sim. Para recolher, temos de cortar uma porção na zona linear do osso [ diáfise ]. Nunca retiramos amostras das zonas utilizadas pelos arqueólogos para identificar a espécie, que são as articulações [ epífise ]. Depois, a amostra que vai para o laboratório é forçosamente destruída, pois tem de ser macerada e misturada com reagentes para extrair material genético. Tão ancestral como a ruptura entre o cão e o lobo é seguramente a separação entre os investigadores das ciências naturais e os das áreas humanas. O seu projecto faz a ponte entre as duas áreas.

E o que espera encontrar?

Eu estou interessada em perceber a evolução das raças domésticas, e isso está intimamente associado aos humanos porque estes animais são criados pelo homem e acompanham-no. Não posso dissociar a genética do cão do contributo humano, cultural e histórico das sucessivas migrações e colonizações. É necessário contemplar esta informação das populações humanas na interpretação dos resultados genéticos dos animais domésticos, como discutimos no caso das raças de cães do Norte de África.

Até agora, trabalhou com recolhas de sangue ou pêlo em animais vivos. Qual será a diferença em termos de metodologia?

É um processo comum às dez raças analisadas?

de humidade. E depois há o problema técnico: temos de utilizar laboratórios especializados neste tipo de amostras, diferentes daqueles onde se fizeram as análises no projecto anterior.

Agora que temos estes resultados sobre as raças modernas, queremos viajar para trás*. O esqueleto mais antigo de cão que foi encontrado em Portugal terá oito mil anos e foi escavado nos concheiros de Muge, no século XIX. Temos ossos de vários períodos em museus e colecções de referência e temos, hoje, as ferramentas certas para analisar a composição genética desses indivíduos para perceber se houve melhoramento, se houve perda de variabilidade. Queremos fazer um mapa desse processo evolutivo.

Quero confirmar os resultados anteriores. Por exemplo, ao analisar as raças modernas, cheguei à conclusão de que não houve participação do lobo ibérico na formação destas raças, mas será que houve cruzamentos e esse registo se perdeu e não se recupera só pela análise dos cães modernos? Pode acontecer que descubramos informação nova e que tenhamos de rever o que sabemos.

as raças endémicas portuguesas partilhama mesma origem de outras no mundo chegaram cá os primeiros cães e foram apuradas as raças a partir destes.

Estes são, de facto, fenómenos comuns a todas as raças, mas no caso do cão de Castro Laboreiro, podem estar mais acentuados, pois essa raça tem um solar que é a sua zona de origem muito restrita, no Gerês. Esse cão tein, não só uma distribuição restrita, como esteve muito isolado, pois o contacto entre aquela zona montanhosa e o resto do país seria muito reduzido no passado.

Sei que também analisou os cães párias, ou cães sem raça definida, para tentar perceber geneticamente como eles se relacionam, a nível molecular, com as raças que estão estabelecidas. Que conclusões registou?

É totalmente diferente. É difícil extrair DNA de esqueletos antigos. Podem estar muito degradados, pode não existir uma zona íntegra, suficientemente longa para obter sinal genético. Podemos ser obrigados a fazer tentativas em vários ossos que estiveram depositados em diferentes condições ambientais, de acidez, de temperatura,

Gosto de pensar que estou a trabalhar com zooarqueólogos, ou seja, arqueólogos que escolheram dedicar-se à fauna, pelo que partilham interesse pelas duas áreas. E faz assim a ponte?

* O novo projecto tem como parceiros o Centro de Biologia Ambiental da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, a Universidade Aberta, o Intituto Português de Arqueologia, o INETI e a École Norma/e Supérieure de Lyon.


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O S Ú LT I M O S BOSQUES TESOURO DA HUMANIDADE Este valioso ecossistema serve de pulmão ao planeta e representa, para um número infinito de seres vivos, um dos últimos refúgios para a sua sobrevivência.

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om a Primavera, os dias alongam-se e o bosque, até então adormecido, pouco a pouco, parece despertar. Em pleno coração da serra do Caramulo e com um sol radiante, embrenho-me no mutável reino das folhas. Já prospectei o local noutras ocasiões. Nele reinam os carvalhais, as bétulas e alguns castanheiros. carismática deste importante e cada vez mais raro ecossistema. Refiro-me a uma das mais belas e fugazes aves, que habita no interior da massa florestal: o pica-pau-malhado-grande que, para a ciência, dá pelo nome de Dendrocopus major. Em meados de Maio, este mágico da floresta escolhe uma árvore que perfura com o seu potente bico. Mais tarde, o tronco servirá de casa para as suas futuras crias. Com os amores primaveris, o som produzido por diversas espécies de passeriformes, com um sem-número de notas vocais triunfantes, fazem lembrar uma sinfonia que, só por si, torna este lugar encantador e único. Instalado no meu abrigo e sempre com dúvida sobre a real capacidade da minha camuflagem para enganar as aves, observo atentamente tudo o que me rodeia. No bosque, não detecto vivalma, mas, num segundo, torno-me espectador de uma cena pouco comum. Um belo exemplar de gavião fêmea, dissimulado na espessura da folhagem, surpreende um pequeno passeriforme, com uma espantosa acrobacia. É uma emboscada digna das melhores artes predatórias. Esta pequena ave de rapina acabou de demonstrar que, nos céus do bosque, não é necessariamente a ave de maior porte que tem direito melhor refeição. A agilidade e a velocidade de acção são essenciais. Em torno deste aglomerado giram múltiplas actividades. Os bosques são um dos biótopos mais ricos em biodiversidade. encontram um dos seus últimos refúgios, mas restam cada vez menos destas pequenas manchas de bosque de folha caduca. O Norte e o Centro de Portugal albergam os últimos vestígios deste ecossistema (mapa). Para conhecer melhor a história das nossas florestas, temos de retroceder alguns milhares de anos. “Durante as grandes mudanças climáticas plistocénicas, com o avanço e recuo dos gelos continentais, o nosso território esteve coberto por uma floresta diferente da actual”, defende Jorge Paiva, investigador do Departamento de Botânica da Universidade de Coimbra. A Península Ibérica,

com um clima subtropical e húmido, estava coberta de uma floresta de folha persistente, semelhante à que se observa ainda hoje nos Açores e Madeira, conhecida por laurissilva. “Actualmente em algumas serranias continentais ainda se podem presenciar estas relíquias do Terciário”, conclui Jorge Paiva. Percebo a argumentação do investigador quando me desloco ao Parque Nacional da Peneda-Gerês, onde ainda perdura uma floresta mista. Ali resistem árvores de folha caduca, como os carvalhos, as faias, as bétulas, os freixos, e algumas manchas do que foi outrora a floresta ibérica, nomeadamente loureiros, azevinhos, medronheiros. Durante a última glaciação, o actual território nacional passou a sofrer as agruras de um clima excessivamente frio para as espécies que então vingavam. A laurissilva desapareceu praticamente, e a flora da maior parte das florestas adequou-se ao novo clima. “Quando o homem inicia o cultivo de cereais (como o trigo e cevada) e a domesticação de animais, há cerca de sete a oito mil anos, inicia-se a degradação da fagosilva”, explica o botânico. “Por outro lado, a Època dos Descobrimentos e a respectiva expansão em busca de novos mundos tiveram um impacte nefasto na floresta portuguesa:” Na construção naval, utilizou-se basicamente a madeira de azinheira e sobreiro, pela sua abundancia nas proximidades dos estaleiros da capital. Porém, devido à utilidade destas duas espécies arbóreas, o seu abate foi proibido. Rapidamente se optou pela utilização de carvalho-alvarinho para a construção das embarcações que viriam a cruzar os mares. Para construir uma embarcação eram necessários entre dois mil e quatro mil carvalhos. Só para a “campanha de Ceuta” foram necessárias 200 a 300 naus e durante os Descobrimentos construíram-se 700 a 800 naus para a Índia e cerca de 500 para o Brasil. “Durante essa época, derrubaram-se mais de cinco milhões de carvalhos. Foi assim que se desflorestou grande parte do País, tendo desaparecido muitos dos nossos riquíssimos bosques de carvalhos, plenos de biodiversidade. O declínio não foi apenas de plantas, pois outras espécies faunísticas viram os seus habitats reduzidos e acabaram por se extinguir. Estima-se que o urso­ pardo se extinguiu em Portugal durante este período”, afirma o biólogo. A Primavera já vai alta e todo o seu esplen-

dor sobressai aos meus olhos. Orquídeas, narcisos e outras espécies de flora chamam a atenção pela sua formosura. No meio do bosque de carvalho-negral, no Nordeste Transmontano, mais precisamente na serra da Nogueira, sigo o rasto de um felino cada vez mais raro. O gato-bravo, quer pelos seus hábitos nocturnos quer pela sua timidez, É difícil de observar. Com os meus binóculos e sentado numa encosta soalheira, miro todo o vale em busca de mais um episódio da vida dos bosques. Com o passar dos meses, os bosques enchem-­se de fantásticas colorações. Várias plantas florescem, assim como os fungos que, com as primeiras chuvas, rebentam no solo húmido. Rapidamente as folhas caem das árvores e cobrem por completo o solo do bosque com um manto dourado. Chega a altura de as espécies migradoras iniciarem o seu longo trajecto para outras regiões do planeta em busca de melhores condições climáticas. Com a chegada do frio, alguns seres vivos mudam de pelagem, como é o caso da raposa. Outros mudam as penas para passar o Inverno dissimulados, evitando predadores. Presentemente, o abate indiscriminado de espécies autóctones, para diversos usos de interesse simplesmente económico e a introdução de árvores exóticas de rápido crescimento ameaça seriamente estas massas residuais de bosque mediterraneo. Portugal é o país da União Europeia com a maior área ocupada de eucaliptos, o resultado da persistência na exploração do “ouro verde”, um erro continuado da política florestal iniciado na década de 1960 e prolongado quase até à actualidade. O flagelo dos fogos florestais É o factor mais recente de ameaça, pois provoca a diminuição dos nossos ultimos bosques, retratos vivos da história dos seres vivos da Península, incluindo a do ser humano. Esta é uma crónica de uma morte lenta, mas anunciada. Ao longo do ano em que me dediquei á cobertura fotográfica dos bosques portugueses, mais dois mil e quinhentos hectares deste tecido vegetal fundamental foram consumidos. Discretamente. Como se a extinção o fosse natural e irreversível.

CURIOSIDADES Ao modificar a paisagem florestal autóctone, introduzindo novas espécies, o homem foi responsável pela perturbação de ecossistemas que dependiam do coberto vegetal original. O pica-pau vive sobretudo nos troncos de espécies folhosas, onde consegue fazer ninhos e procura o seu alimento nas cascas de árvore. Já a coruja-das torres necessita da protecção florestal para caçar com liberdade de movimentos. As próprias presas de aves de rapina, como o rato-dos-bosques, dependem das espécies folhosas como refúgio e fonte de alimentação.


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A partir destes dados calculase que a densidade minima de coelho para permitir a reprodução do lince será de cerca de 4 indivíduos/hectare. Outros vertebrados como roedores, lebres, perdizes e outras aves podem também ser predados pelo lince. No entanto, em níveis significativamente inferiores aos do coelho-bravo. Na Península Ibérica as populações coelho têm vindo a sofrer um declínio muito pronunciado, durante as últimas 5 décadas No final dos anos 1950 a mixomatose entrou na Península e rapidamente se espalhou, provocando um declínio populacional que reduziu as populações para menos de 5%. No final da década de 1980 uma nova patologia denominada Doença Hemorrágica Viral (dhv) voltou a provocar um dramático declino do coelho-bravo. Ao mesmo tempo, mudança ao nível do uso do solo acabaram por tornar as populações extremamente vulneráveis e a sua recuperação surge bastante problemática.

LINCE IBÉRICO F elino M ais A meaçado

Na segunda metade do século XX, a caça descontrolada provocou uma diminuição drástica das populações de muitos rorquais.

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á milhões de anos que os seus olhos refulgem por terras mediterrâneas. No entanto, o lince-ibérico, ícone bravio de Portugal e Espanha, pisa terreno incerto. Em ambiente selvagem, não haverá mais de 225 animais. É um número superior aos 100 de há uma década, mas ainda insuficiente para assegurar a sobrevivência. A caça, os atropelamentos e a fragmentação do seu habitat aceleraram o declínio do Lynx pardinus. Mas o golpe mais forte foi produzido pela sua própria ecologia: o regime alimentar do lince é quase exclusivamente constituído por coelhos bravos. Caçados e dizimados por doenças, os coelhos vão desaparecendo e arrastando os linces consigo. Restam apenas duas populações com capacidades reprodutoras, sediadas em zonas classificadas de Espanha, às quais se junta o Centro Nacional de Reprodução do Lince-Ibérico em Silves. Este animal formidável necessita de ajuda.

O lince-ibérico tem uma pelagem castanho-avermelhada coberta de manchas pretas que podem ser desde pequenos pontos a riscas. Como todas as espécies do Género Lynx apresenta como características mais distintivas uma cauda pequena, pinceis nas pontas das orelhas e barbas. O peso médio de um macho adulto é cerca de 12 Kg já as fêmeas pesam em média cerca de 9 Kg. Dentro das presas disponíveis nos habitats mediterrânicos da Península Ibérica, o lince selecciona fortemente o coelho-bravo que constitui entre 80 a 100% da sua alimentação. Esta elevada percentagem varia muito pouco entre áreas geográficas e entre as estações do ano. As necessidades energéticas de um lince adulto variam entre 600 — 1000 kcal, o que corresponde a aproxidamente à energia contida num coelho adulto. Uma fêmea com duas crias necessitará de caçar cerca de 3 coelhos por dia.

O êxito da reintrodução do lince ibérico em Portugal, dependerá da ABundÂncia de coelhos

Em meados dos anos 1990 era globalmente aceite que os efectivos da espécie se situariam entre 1000 a 1200 indivíduos distribuídos por nove núcleos populacionais. Presentemente, a espécie encontra-se ausente da maioria da sua area de distribuição geográfica anterior, tendo desaparecido da maioria das comunidades autónomas espanholas e provavelmente do território português. Actualmente só está confirmada a existência de duas populações reprodutoras (Doñana e Andujár-Cardeña no extremo Oriental da Serra Morena), e o ultimo censo indica que os efectivos totais se situarão entre 84 a 143 indivíduos adultos. A população de Doñana é composta por cerca de 35 indívudos e Andujár-Cardeña terá cerca de 110. Estas duas populações estão isoladas entre si o que ainda as torna mais vulneráveis. Os efectivos actuais não são suficientes para a sua sobrevivência a longo-prazo e os especialistas concordam que a espécie se encontra no limiar da extinção. O lince-ibérico selecciona habitats de características mediterrânicas, como bosques, matagais e matos densos. A dieta da espécie é baseada no coelho-bravo, o qual pode representar entre 75 a 95% da biomassa do seu espectro alimentar. Em épocas e regiões de menor abundância, esta presa é secundada por outras, tais como roedores, cervídeos, anatídeos e lebres. O lince-ibérico é uma espécie territorial predominantemente solitária e só durante a época de cio os adultos têm encontros mais longos. Em Doñana, os territórios são estáveis ao longo da vida do indivíduo, sendo as áreas vitais dos machos, em média, maiores (10,3 km2) do que as das fêmeas (8,7 km2), sujeitas a flutuações em funçaõ da estação e das características do habitat.

Em outras zonas de maior abundância de coelho, as áreas vitais dos linces são menores, com consequente aumento da densidade. Tanto machos como fémeas não toleram a presença de outros linces no seu território.

Perda de habitat e fragmentação da paisagem são duas das ameças ao lince ibérico O lince-ibérico seleciona habitats heterogéneos onde manchas de matagal se alternam com áreas de pastagem, foi claramente prejudicado com a alocação deste tipo de habitats para áreas de intensa produção florestal, essencialmente para a produção de eucaliptos. Neste tipo de plantações o coberto de formações arbustivas é extremamente escasso e não permite a presença de coelho em densidades adequadas o que afecta negativamente o lince-ibérico. Os incêndios florestais que anualmente devastam consideráveis áreas da Península são também um factor que tem vindo a contribuir para a regressão do lince. Ao mesmo, a construção de infra-estruturas como estrada e barragens contribui para isolar as populações e introduzir importantes factores de mortalidade como os atropelamentos.

As actividades menos correctas do Homem são uma das principais causas da deminuição do lince-ibérico. As informações disponíveis indicam que um número significativo de linces foi deliberadamente morto por seres humanos. O abate intencional é um fenómeno que continua a ocorrer, bem como a utilização de laços e armadilhas. O impacto das estradas e consequente atropelamento é também uma importante causa de mortalidade. As doenças também têm o seu lugar nas ameaças ao lince-ibérico. A reduzida variabilidade genética, das pequenas populações isoladas, torna-as bastante vulneráveis a doenças, como a leucemia felina, toxoplasmose, tuberculose bovina, que constituem uma verdadeira ameaça à sobrevivência das populações de linces.

A reintrodução é uma das fases de recuperação da Espécie na região ibérica

A reintrodução é a tentativa de estabelecer uma população selvagem viável de uma dada espécie, numa determinada área geográfica que já foi parte da sua distribuição histórica mas onde esta espécie se extinguiu.

As reintroduções têm sido utilizadas como ferramentas para conservação de espécies, como o lince-ibérico cuja situação na natureza é muito crítica, recorrendo a animais que nascem em cativeiro. O sucesso destas acções dependem porém, do cumprimento de vários requisitos, tais como o desaparecimento das causas anteriores de extinção da espécie; a existência de qualidade do habitat numa área possibilitada para albergar uma população; a manutenção em cativeiros dos animais fundadores; e daqueles que são treinados para sobreviverem na natureza. A reintrodução de uma espécie requer sempre uma abordagem multidisciplinar em que vários aspectos são considerados nomeadamente a aceitação social da espécie na região em causa. No caso do lince-ibérico, existe já uma boa produção em cativeiro de animais, mas tem ainda que se estabelecer cientificamente os devidos protocolos para preparar os animais e a forma como serão reintroduzidos na natureza. As primeiras acções, de carácter experimental, tiveram início na Andaluzia, já em 2010, em zonas limítrofes à área onde existe actualmente uma população original de linces. Nesta zona têm sido realizadas importantes acções de gestão do habitat e presas. Em Portugal, deverão continuar as acções de recuperação do habitat de lince, nas áreas com maior potencial, antes de qualquer acção de reintrodução dos animais. A escolha das áreas mais adequadas carecerá ainda da realização prévia de estudos de viabilidade.

Assim, a conservação do lince em Portugal e na Penisula Ibérica, depende sobretudo da gestão e recuperação do seu habitat, a existência de uma população de linces em cativeiro não é, só por si, a solução para a subsistência da espécie.

O Centro Nacional de Reprodução do Lince Ibérico (silves)

O cnrli, em Silves, foi o terceiro centro e exclusivo a abrir na Península Ibérica em Outubro de 2009, após a transferência de 16 animais, provenientes de três centros espanhóis. O cnrli está dotado do equipamento necessário para a recepção e manutenção dos linces. Conta com uma equipa técnica específica residente de veterinários, biólogo e tratadores. Estão previstas translocações anuais de animais entre os vários centros da rede, de acordo com a gestão conjunta ibérica da população em cativeiro e respeitando o acordo assinado entre os ministros do ambiente de ambos os países. Foi criada a Comissão Mista para a Conservação do Lince-ibérico, com representação dos dois países, para discussão das medidas de conservação ex situ e in situ da espécie na Península Ibérica.

A Gestão do habitat em território Nacional

A Serra da Malcata, foi uma das áreas históricas de ocorrência dos linces-ibéricos em Portugal. Albergou em tempos parte de uma populalação transfronteiriça, de linces que inclui a Serra da Gata, em Espanha. Esta população sofreu uma forte regressão nas últimas décadas, resultante da perda de habitat natural e do colapso das populações de coelho-bravo. A Serra tem em muitos locais solos delgados que dificultam ou impedem a construção de tocas para o coelho-bravo. Esta espécie tem uma vida em grande parte subterrânea necessitando destas estruturas como local de refúgio. As tocas são utilizadas pelos coelhos para o repouso e a reprodução, sendo fundamentais para a protecção contra os predadores e para refúgio nos períodos de clima mais extremo. Os maroços consistem em estruturas artificias que facilitam a escavação e a consequente construção de tocas. São instalados escavando uma cavidade no solo que é preenchida com pedras e troncos, sendo depois estes recobertos com terra. O coelho-bravo, é uma espécie herbívora que se alimenta maioritariamente de plantas herbáceas. A escassez deste tipo de plantas pode ser um factor condicionante, importante para as populações de coelhos.

A Serra da Malcata, em toda a sua extensão está coberta por floresta e mato, bastante denso. Deste modo, a vegestação herbácea limita-se a uma área muito inferior, sendo necessário promover a criação de descontinuidades, para melhorar as condições para o crescimento das plantas. As descontinuidades são produzidas apartir da limpeza manual dos matos, criando-se clareiras na vegetação arbustiva, ou estabelecendo-se faixas sem matos, utilizando as técnicas de fogo controlado e de gradagens do solo. Considerando que, durante o Verão a quantidade de água na rnsm é reduzida, as charcas existentes nesta reserva são muito importantes para os animais. Nesse sentido é necessário, realizar periodicamente um controlo da vegetação das suas margens de forma a facilitar o acesso aos animais. Esta acção contribui, além disso, para facilitar o acesso aos veículos de combate aos fogos no caso de ser necessário o seu reabastecimento com água. O Vale do Guadiana, está classificado como Parque Natural desde 1995. Esta área protegida abrange 69600 hectares dos concelhos de Mértola e Serpa no Baixo-Alentejo. Esta zona, possui um elevado número de habitats, naturais e semi-naturais, associados a uma ancestral intervenção do homem na paisagem. A relevância desta área para o lince-ibérico prende-se com o facto de se tratar de um corredor com características de um habitat adequado ou susceptível de serem optimizadas de forma, a promover a ocorrência da espécie ou permitir a sua reintrodução a médio/longo prazo, num programa integrado com, os Sítios circundantes. Neste sentido, este território está designado como área prioritária de aplicação do Plano de Acção para a Conservação do Lince Ibérico em Portugal. Desde o ano de 2001, são desenvolvidas no Parque Natural do Vale do Guadiana várias acções com vista ao crescimento das populações de coelho-bravo. Como exemplo, as construções e gestão de cercados de reprodução do coelho, realização de sementeiras, construção de moroços, a disponibilização de pontos de água para bebedouro e a libertação de coelhos em áreas pré-definidas.



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BRANCO NO BRANCO E S P E R A N Ç A N O Á R T I C O

Pesquisadores do Departamento de Biologia da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, publicaram na revista Science um estudo sobre os impactos do aquecimento global nos ecossistemas no Ártico, no Pólo Norte.

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studo da Science indica que a re­gressão do gelo no Árctico, ‘habitat’ desta espécie, pode ser impedida, mas emissões terão de diminuir nos próximos 20 anos. Afinal não é ainda tarde demais para os ursos-polares. Esta é a boa notícia de hoje na Science, que faz capa do tema a partir de um artigo de cientistas dos Estados Unidos e do Canadá. O seu estudo indica que, se as emissões de gases com efeito de estufa forem reduzidas nas próximas duas décadas, as grandes extensões de gelo do Pólo Norte, que são o habitat destes animais, têm grandes hipóteses de não desaparecer do mapa. Um estudo de 2007, da mesma equipa da Geological Survey dos Estados Unidos que também participa no estudo publicado hoje, lançou o alarme: até 2050, dois terços dos ursos-polares poderiam desaparecer devido ao degelo acelerado no círculo polar Árctico. Foi na sequência dessa análise que, em 2008, iucn decidiu classificar o urso-polar (Ursus maritimus) como espécie ameaçada, devido às alterações climáticas. Hoje existem nas regiões do Árctico dos Estados Unidos, Gronelândia, Canadá, Noruega e Rússia entre 20 mil e 25 mil ursos-polares e o degelo é uma realidade. Nos últimos 30 anos, o gelo árctico oceânico encolheu entre 15 e 20 por cento e há estimativas que apontam para uma perda que até final do século pode ir dos 10 ao 50 por cento. O urso-polar depende desse gelo para caçar a sua presa predilecta: a foca. Só que, com as alterações climáticas — no Árctico a subida da temperatura média é duas vezes superior à da média mundial — o gelo oceânico no Árctico está a diminuir, e a derreter mais cedo na Primavera e a regressar mais tarde no Outono. Os cientistas voltaram por isso a avaliar a situação e no estudo hoje publicado decidiram introduzir uma outra pergunta: e se as emissões de gases forem reduzidas? A resposta é que, nesse caso, o degelo pode ainda ser travado para preservar o habitat desta emblemática espécie. O urso-polar é citado pela cites sob baixo risco de extinção. Contudo alguns fatores podem mudar esta situação para pior. O encolhimento das camadas de gelo e o prolongamento do verão vêm obrigando os ursos-polares a buscar comida em lugares habitados, colocando a espécie em conflito com o homem. Em 2005, testemunhas afirmaram ter visto

um total de cerca de 40 ursos nadando centenas de quilômetros em busca de alguma camada de gelo flutuante à qual pudessem subir. Viram-se pelo menos quatro corpos de ursos flutuando até 260 km de distância do gelo ou terra firme. Os povos indígenas do Ártico caçam o urso por sua gordura e pele. O Canadá permite a estrangeiros caçar, desde que guiados por um inuit em seus trenós de cães. Apesar de florescente no século passado, esse tipo de atividade mostra-se estar em declínio atualmente. O interesse por tapetes de urso diminuiu, assim como seus preços. Uma pele que era

“ Embora se registem variações acentuadas, actualmente o degelo começa cerca de duas semanas mais cedo do que há 20 anos.” vendida por 3.000 dólares atinge hoje o preço máximo de 500 dólares. Atividades humanas como exploração de gás e petróleo, turismo, pesquisa científica e esportes na neve perturbam o animal em seu ambiente. Poluição ambiental é outra ameaça. Estando no topo da cadeia alimentar, o urso-polar concentra substâncias tóxicas em seu organismo. A quantidade de metais pesados e hidrocarbonos clorados tem se mostrado em curva ascendente em amostras de tecidos. Derramamentos de óleo também afetam os ursos-polares. O óleo é altamente tóxico e de lenta decomposição, sendo ingerido pelo animal quando este se alimenta ou executa seu asseio. A população actual de ursos polares é estimada entre 22 000 e 27 000 indivíduos, 60% dos quais vivendo no Norte do Canadá. Pesquisadores do Departamento de Biologia da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, publicaram na revista ‘Science’ um estudo sobre os impactos do aquecimento global nos ecossistemas no Ártico, no Pólo Norte. De acordo com a pesquisa, enquanto a temperatura média na Terra subiu 0,4ºC nos últimos 150 anos, no Ártico essa elevação foi até três vezes maior. Além disso, entre os últimos 20 e 30 anos, a calota de gelo polar sobre o Mar Ártico diminui aproximadamente 45 mil quilômetros quadrados por ano. Com a quantidade de gelo diminuindo

ano após ano, animais como a foca-decrista ou foca-de-capuz, a foca anelada, a morsa do Pacífico, o narval e o urso polar vêm sendo os mais afetados e correm riscos de extinção já que dependem das calotas para reproduzirem-se, escapar de predadores e obter alimento. Outros sinais do ciclo ‘anormal’ do Ártico é o crescente número de raposas-­ -vermelhas, enquanto a população de raposas-do-Ártico diminui. Já as renas sofrem com a antecipação do período de crescimento da vegetação, uma vez que o auge da oferta de alimento ocorre enquanto esses animais ainda estão

Os cientistas disseram que, caso o gelo não derreta mais, isso poderia ajudar as raposas a sobreviver em período de gestação. E quando elas e seus filhotes mais necessitam as áreas verdes já estão escasseando, o que acarreta um desequilíbrio nutricional, reduzindo o número de crias e o tempo de vida das espécies. A Raposa do Ártico além de ser um dos mais belos animais das regiões geladas da Terra é também o que apresenta a mais fantástica integração com o meio hostil onde vive cujas temperaturas chegam aos -50º C. Sente-se completamente à vontade e adaptada tanto no verão quanto no inverno e consegue criar os filhotes que, aliás, não são poucos com um sentido de família altamente desenvolvido. As raposas do Ártico podem desaparecer caso o gelo na região continue a derreter. Os animais dependem de mares congelados para sobreviver no inverno do norte. Pesquisas monitoraram os movimentos de 14 jovens raposas durante seu primeiro inverno no Ártico no norte do Alaska, onde a temperatura chega a – 30ºC e há escuridão 24 horas por dia. Estes animais podem ser encontrados nas maiores e mais remotas ilhas do norte do Canadá e da Groelândia, onde não há qualquer outro mamífero terrestre, excepto os ursos polares. Os cientistas disseram que, caso o gelo não derreta mais, isso poderia ajudar as raposas a sobreviver porque há muito poucos predatores e a comida é fácil de encontrar nessa região. Claro que o chamado novo Ártico, ou seja, uma região que apresenta grandes transformações climáticas actualmente, representa um desafio ainda maior para este animal. O aquecimento global tem provocado mudanças cada vez maiores na região. O gelo derrete antes do previsto. Placas continentais gigantescas desprendem-se e avançam pelo oceano. Tudo isto modifica enormemente o eco-sistema local e influi na fonte de alimentação da Raposa do Ártico tornando a sua sobrevivência ainda mais difícil. De qualquer maneira parece que a Raposa do Ártico está mesmo preparada

para o que der e vier. Estes animais só possuem dois predadores, os ursos e os homens que os caçam por causa de sua pele. Entretanto como essas regiões são de difícil acesso a presença

“ Estas raposas só têm dois tipos de predadores: os ursos e o homem” do homem é mínima. Quanto aos ursos parece que as raposas já conhecem todos seus truques. Além das características físicas totalmente adaptadas à região onde vive, o seu maior segredo está na sua convivência. Apesar de ser nômada, vive em pequenos bandos que se ajudam mutuamente. É um animal monogâmico, cada macho fica com uma parceira por toda a vida e inclusive ajuda na alimentação dos filhotes caçando às vezes mais de 30 roedores por dia para alimentá-los. Algo muito

interessante de se notar é que, sendo a quantidade de filhotes às vezes muito grande, o bando é normalmente composto pelo macho e a fêmea com seus filhotes e ainda por outra fêmea de crias anteriores que permanece no bando para ajudar a criar a nova prole. A sua casa é em cavernas escavadas na tundra aberta ou nas regiões rochosas. Essas cavernas possuem sempre várias entradas chegando às vezes até oito e se estendem por até 30 metros quadrados. As mesmas são utilizadas por centenas de gerações de raposas. Até mesmo para sua procriação entre em jogo mais um segredo da natureza, a quantidade de filhotes vai depender da quantidade de alimentos disponíveis. A Raposa do Ártico é assim uma das maravilhas da natureza. Um equilíbrio perfeito entre o animal e o meio. Isto pelo menos enquanto o homem não conseguir estragar seu habitat ou simplesmente caça-la por dinheiro.

A raposa do ártico suporta temperaturas muito baixas, de até -50 °C. No folclore escandinavo, acreditava-se que as raposas do ártico provocavam a Aurora Boreal, ou Luzes do Norte, que brilham no céu noturno. Em finlandês, a antiga palavra para Aurora Boreal era “revontulet”, que significa fogo da raposa.


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Uma baleia-anã é puxada para uma embarcção no mar do Norte.

BALEIA-ANÃ alvo de navios baleeiros

Na segunda metade do século XX, a caça descontrolada provocou uma diminuição drástica das populações de muitos rorquais.

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sta situação parecia simbolizar a capacidade das sociedades modernas para tudo dominar, até mesmo os maiores seres vivos e os mares outrora ilimitados. Em 1986, a Comissão Baleeira Internacional (iwc)     —     criada em 1946, para representar os países baleeiros     —     emitiu uma moratória à escala mundial para a caça comercial às baleias. Desde então, muitas pessoas habituaram-se a pensar que, em geral, as baleias correm perigo grave de extinção. Se isso é verdade para algumas espécies, já o número total de baleias-anãs nunca sofreu reduções muito significativas, aproximando-se do milhão     —     talvez mesmo mais. Presentes em todos os oceanos, são, sem dúvida, as mais comuns das baleias com barbas e, provavelmente, as mais numerosas de todas as baleias. Na actualidade, as baleias-anãs são também as únicas que continuam a ser caçadas, em grandes quantidades, pela Noruega e pelo Japão. Na sequência da proibição imposta pela iwc, os noruegueses apresentaram um protesto formal e reivindicam o direito soberano de caçar baleias nas águas territoriais, onde arpoam 400 a 600 baleias-anãs por ano. Ao abrigo de uma disposição do regulamento da iwc, os japoneses caçam baleias para fins científicos, capturando quase todos os anos mais de 400 baleias-anãs no alto mar, junto à Antárctica, e 100 no Pacífico Norte. Os investigadores japoneses defendem que precisam deste número de cadáveres para realizar estudos genéticos e determinar as taxas de crescimento e de reprodução. O conteúdo dum estômago pode dar indicações sobre o regime alimentar de uma baleia-anã, enquanto que as camadas de cera que, em cada ano, se acumulam no ouvido,revelam a idade do animal. Mas há quem não esteja de acordo. Diz Karen Steuer, do Fundo Internacional para a Protecção dos Animais, um grupo de representação política: “A caça científica às baleias é caça para fins comerciais encapotada.” O Japão e a Noruega solicitaram à iwc que levantasse a moratória

e legalizasse a caça comercial às baleias-anãs, sendo apoiados nesta iniciativa pela Islândia, Gronelândia e outros países. Solicitaram igualmente uma flexibilização das restrições impostas pela Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies de Fauna e de Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção (cites) à exportação de produtos obtidos de baleias. Em resultado disso, as baleias-anãs estão no centro de um debate mundial acerca da relação entre o homem e todos os tipos de baleias. As baleias-anãs são das mais rápidas, tendo sido registadas velocidades de 30 km/h. Raramente se mantêm à superfície por muito tempo e expelem um sopro tão baixo e difuso que muitas vezes é mais fácil ouvi-lo, ou cheirá-lo, do que ouvi-lo.

Os noruegueses perguntam como podem ser criticados por países como os EUA, que toleram a caça à baleia no Alasca. As baleias-anãs à semelhança de muitas outras, costumam abandonar as águas ricas em alimento onde vivem durante o Verão situadas a latitude elevada, e migram para águas mais quentes, a fim de acasalarem e darem à luz. No entanto, a localização exacta das zonas de reprodução permanece um mistério, conhecendo-se melhor os locais onde passam o Verão. Alguns animais não são regressam todos os anos à mesma área, como frequentam locais particulares dentro desta. Jon Stern e os colegas assinalaram a presença de 60 baleias-anãs conhecidas, em 450 ocasiões. Uma delas foi observada 37 vezes ao largo das ilhas de San Juan, em Puget Sound, ao longo de 9 anos. Nem todas as baleias-anãs são tão fiéis a áreas sazonais específicas: no hemisfério sul, muitas são as que percorrem toda a

Antárctica em busca de krill. No hemisfério norte, as baleias-anãs também podem ser encontradas muito longe da costa — por vezes alimentando-se de enormes quantidades de copépodes microscópicos, junto aos limites da calota polar — mas a maioria parece preferir as plataformas continentais. Deslocando-se por entre as bolsas de alimento existentes em áreas que lhes são familiares, é possível que, em parte, sejam as aves marinhas, os peixes grandes, as focas, os leões-marinhos e, até, outras baleias que as ajudam a localizar as presas, que depois reúnem em quantidade suficiente para uma refeição. Mas estas ágeis baleias também são capazes de capturar, sozinhas, um bacalhau corpulento. Em meados dos anos 50, a Noruega, o vizinho continental mais próximo da Escócia, capturava em média 3.500 destas baleias no Atlântico Norte, todos os anos, antes de reduzir voluntariamente o número de capturas para cerca de 1.800 por ano, até 1983. Entretanto, os soviéticos e os japoneses intensificaram a caça às baleias-anãs nas águas da Antárctica, aí capturando 65 mil animais entre 1971 e 1981, numa época em que as baleias de maiores dimensões começavam a rarear. Após o anúncio da moratória, a Noruega parou de caçar em águas internacionais, mas aumentou o total de capturas em águas territoriais — que se elevou de um número simbólico para quase 600, em 1999. O que dizer então dos naturais da Escandinávia, cuja cultura esteve sempre intimamente ligada ao mar? A palavra em língua norsa antiga para designar as baleias-anãs  — vågehval, quer dizer, baleia das baías — ilustra a tendência que esta baleia costeira tem para entrar nos fiordes e outras enseadas: Desde o tempo dos vikings que os pescadores lançam as redes nesses estreitos, impedindo que os animais se escapem e caçando-os, depois, com arpões. Hoje em dia, o bastião da indústria baleeira norueguesa é a ilha de Lofoten, a 150 km a norte do Círculo Polar Árctico.

Introduzida no cano de um canhão guiado por laser, a lança transporta uma granada térmica. Assim que a ponta de metal penetra 65 cm numa baleia-anã, a carga de pentrite arde a mais de 3.000 graus. O animal não morre do calor, mas das ondas de choque provocadas pela velocidade de combustão supersónica deste material. Os japoneses costumam caçar as baleias-anãs no alto mar, por vezes em águas das mais revoltas do Planeta — no oceano que rodeia a Antárctica. Precisando, por isso, de navios maiores e tripulações numerosas, esta pesca aproxima-se da escala industrial. Essa é uma das razões pelas quais a actividade é polémica. A outra é que as baleias-anãs capturadas com objectivos científicos acabam nos pratos dos japoneses. “O regulamento que nos autoriza a caçar baleias com fins científicos exige que utilizemos os subprodutos na íntegra, vendendo-os no mercado”, explica Masaki Sakai, um consultor para as pescas da embaixada japonesa em Washington, dc. “O total das receitas é atribuído ao nosso Instituto de Investigação sobre Cetáceos, uma organização sem fins lucrativos, servindo para financiar outros trabalhos. Segundo os estudo que realizámos, as baleias-anãs conseguem reproduzir-se mais depressa do que as pessoas pensavam, existindo abundantes populações nos mares da Antárctida.” O Japão tem aprendido muito sobre a biologia deste animal. Mas a maioria dos cientistas não acredita que essa informação seja necessária para a gestão futura da espécie. Ao longo dos anos, o Japão matou milhares de baleias-anãs. Embora a captura com finalidades científicas não constitua uma violação da moratória, muitos consideram-na uma violação do seu espírito. Além disso, apesar de, em 1994, a iwc ter classificado os mares em torno da Antárctida como santuário, o Japão continuou a capturar baleias-anãs na região. Foi após Segunda Guerra Mundial, que os eua encorajaram os japoneses a caçar baleias para resolver as suas carências alimentares. Nesse tempo, as espécies caçadas eram as baleias grandes de reprodução lenta, como a baleia-comum e a baleia-azul, que têm crias cada dois ou três anos. As baleias-anãs fêmeas, pelo contrário, podem engravidar de novo pouco tempo depois de darem à luz, desmamam as crias ao fim de alguns meses e, em condições favoráveis, têm uma todos os anos. Segundo a iwc, existem 120 a 182 mil baleias-anãs no Atlântico Norte e outras 13 a 50 mil no Pacífico Norte. No hemisfério sul, crê-se que a estimativa inicial de 510 mil a 1.400.000 baleias-anãs poderá pecar por excesso. Mesmo assim, o comité científico da iwc aprovou grande parte de um plano de gestão que permite a captura de 5 a 10 mil baleias-anãs por ano — uma quota ainda assim ultraconservadora, uma vez que corresponde a menos de um por cento da população. Recentemente, os japoneses propuseram que sejam autorizadas capturas para fins científicos de baleias de Bryde — rorquais com o dobro do tamanho das baleias-anãs — e cachalotes. Embora alguns membros da iwc apoiassem a proposta, a maioria opôs-se. Japão emitiu uma licença na mesma e capturou 5 cachalotes e 43 baleias de Bryde, além de 40 baleias-anãs.

Os eua retaliaram, limitando os privilégios de pesca concedidos aos japoneses ao largo das costas americanas e ameaçando impor sanções comerciais. Contudo, em Novembro passado, os baleeiros japoneses zarparam na intenção de capturarem um número máximo de 440 baleias-anãs nas águas protegidas em torno da Antárctida, durante uma viagem de investigação que durará 5 meses. Pouca gente contesta o argumento apresentado pela Noruega e pelo Japão, segundo o qual existem baleias-anãs em número suficiente para sustentar a captura para fins comerciais, desde que devidamente controlada. Masaki Sakai afirma que “a baleia está a ser recuperada como bem alimentar e pode ajudar a resolver problemas de fome em todo o Mundo. As pessoas caçam todo o tipo de animais, muitas vezes apenas por desporto. As espécies ameaçadas e as espécies em vias de extinção devem ser protegidas, mas nós, no Japão, não conseguimos compreender esta preocupação especial com as baleias. Não há razão para não se capturarem as espécies abundantes”.

No mercado japonês de tsukiji, as baleias-anãs são vendidas sob a forma de toucinho salgado, carne crua e Cartilagens.

Em 1999, o debate sobre as baleias-anãs assumiu novos contornos. Depois de analisar mais de uma centena de amostras recolhidas em restaurantes e lojas em todo o Japão, uma equipa composta por toxicólogos japoneses e geneticistas americanos anunciou duas surpresas: primeira, a carne rotulada como de baleia-anã era, num quarto dos casos, proveniente de espécies de baleia totalmente protegidas, golfinhos ou botos; segunda, metade da carne apresentava um elevado teor de metais pesados e produtos químicos. Outro estudo realizado nas ilhas Faroe revelou uma taxa mais elevada de lesões cerebrais e cardíacas em crianças cujas mães tinham comido carne de baleia.

No início dos anos 80, foi aumentando o número de baleias-anãs que, durante o Inverno, nadavam em volta dos barcos e de mergulhadores ao longo de vários troços da parte norte da Grande Barreira de Coral. Esses encontros tornaram-se tão frequentes que algumas empresas acrescentaram a observação de baleias-anãs aos programas de aventura nos recifes de corais que ofereciam. Dois especialistas em vida marinha  — Peter Arnold e Alastair Birtles —  ajudaram a definir regras para esta nova actividade, antes que provocasse sanções contra a perturbação de mamíferos marinhos. O acordo alcançado foi o seguinte: os mergulhadores nadariam agarrados a uma corda presa a uma embarcação, deixando que fossem os animais a decidir a frequência e a distância com que entravam em contacto com os humanos. Nas áreas de alimentação a norte, as baleias-anãs são bastante solitárias e relativamente silenciosas. Os grupos que aparecem junto às costas coralíferas da Austrália comunicam através de rápidos grunhidos e rosnadelas, e de bizarros “boi-oi-oings”: Estas criaturas são tão ruidosas que Jason Gedamke, da California University, em Santa Cruz, passou a usar hidrofones para seguir os seus movimentos e tentar compreender o seu comportamento — que ainda permanece, em grande medida, um mistério.

BI V A L V E S EM RISCO Em Junho de 2007, após cinco anos de investigação, foi completado o Atlas dos Bivalves de Água Doce de Portugal Continental, coordenado pelo biólogo Joaquim Reis. O Atlas integra o Projecto de Documentos Estruturantes em Conservação da Natureza, da responsabilidade do Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade, que descreve o estado das 16 espécies de bivalves de água doce confirmadas em Portugal continental, das quais seis são mexilhões. Curiosamente, o mexilhão-de-rio-do-norte, considerado “Em Perigo” pelo Livro Vermelho da iucn e dado como extinto em Portugal, foi redescoberta em 2001 nos rios Cávado, Neiva, Paiva, Tuela e Rabaçal. Para Joaquim Reis, a espécie mostra-se estável nos rios Mente, Tuela e Rabaçal, mas nos restantes rios enfrenta risco iminente de extinção. Ás espécies endémicas, junta-se a amêijoa-asiática, introduzida nos últimos anos nas bacias dos rios Minho, Lima, Douro, Vouga, Mondego, Tejo, Sado e Guadiana. Além de competir potencialmente pelo espaço e por recursos alimentares, esta amêijoa provoca prejuizos económicos em sistemas de rega, infra-estruturas hidráulicas e centrais hidroeléctricas. Segundo Joaquim Reis, ela não é a única fonte de preocupação. Se não se tomarem medidas, o mexilhão-zebra, outra espécie invasora que tem causado problemas ambientais e económicos em Espanha, poderá chegar brevemente a Portugal através dos rios transfronteiriços. Jorge Nunes


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FOCAS-MONGE L obos - marinhos em extinção

À medida que as focas morrem, também o mar morre, diz o provérbio grego. Nas Desertas, um grupo ainda resiste.

E

m Agosto de 2009, na pequena casa do Parque Natural da Madeira (pnm) na Deserta Grande, quatro pessoas rodeiam um computador portátil ligado à corrente através de painéis solares. Observam uma fotografia com implicações importantes. “É o Esbranquiçado”, explica entusiasticamente Pedro Gouveia, um dos vigilantes da natureza. Desde 1988, que os vigilantes acompanham o último refúgio de focas sobreviventes no arquipélago da Madeira, são como membros das suas famílias. Há 20 anos, havia seis a oito animais nas Desertas.

Há 20 anos, havia seis a oito animais nas desertas.

A E X T I N ÇÃ O DO BACALHAU Bacalhau é o nome comum para os peixes do género Gadus , pertencente à família Gadidae. De origem latina baccalaureu. Actualmente, este peixe encontra-se em vias de extinção devido ao consumo excessivo, sendo que Portugal é o maior e principal consumidor a nível mundial, possuindo na sua gastronomia dezenas de maneiras diferentes de o confecionar. O bacalhau foi introduzido na alimentação inicialmente pelos portugueses, que o descobriram no século XV, época das grandes navegações. O peixe foi descoberto e adequava-se às necessidades da época, de um produto não perecível — pelo fato de poder ser salgado, e manter suas características gustativas — que aguentasse longas jornadas. As longas travessias pelo Atlântico duravam mais de três meses e após diversas tentativas com os peixes da costa local os portugueses encontraram o bacalhau perto do Pólo Norte. Iniciaram tempos depois a sua pesca na costa do Canadá, descoberta em 1497.

Hoje, esta população possui cerca de trinta e cinco indivíduos, que começam a aventurar-se na sua morada histórica — a ilha da Madeira. Nas escarpas da costa ocidental da maior das ilhas das Desertas, os três vigilantes da natureza são um piquete de emergência em permanência. Têm uma missão de importância global: proteger o habitat de um dos mais raros mamíferos do mundo — a foca-monge. Aliás, o pnm tem um objectivo ambicioso: pretende criar condições para que uma população que prodigiosamente sobreviveu à extinção volte a ocupar os seus espaços ancestrais na ilha da Madeira. Na Antiguidade, a foca-monge — Monachus monachus — ocupava toda a bacia mediterrânea, o mar Negro, a costa atlântica do Norte de África, os Açores, as Canárias, a Madeira e Cabo Verde. Na Grécia, o seu avistamento era apreciado como um augúrio de sorte e prosperidade, uma espécie protegida por Posidon e Apolo e imortalizada pela escrita de Homero e Aristóteles. A silhueta chegou a ser utilizada em moedas. Foi certamente durante o império romano que as praias soalheiras onde repousavam colónias que podiam juntar vários milhares de animais terão sido palco das primeiras caçadas organizadas a esta espécie endémica para obtenção de carne, óleo e pele. A despeito desta actividade ter reduzido de

intensidade com a queda do império romano, manteve-se nos séculos seguintes, levando a uma mudança de habitat dos extensos areais mediterrâneos para grutas sem acesso e costas rochosas remotas. Progressivamente, numa extensão de séculos as popula­ções foram-se concentrando em locais geogra­ ficamente isolados e reduzindo os contactos com as populações humanas. Terá sido na ilha da Madeira que os marinheiros portugueses tiveram o primeiro contacto com esta espécie, que posteriormente vieram a baptizar de lobo-marinho devido aos seus uivos prolongados à noite. Os Descobrimentos potencializaram estes contactos e as expedições à costa africana revelaram enormes populações inexploradas, que rapidamente se transformaram numa fonte de receita pelo valor comercial obtido com a venda das peles e óleo. O abate de focas tornou- se uma prática corrente. Apesar de ter sobrevivido a mais de dois mil anos sem a protecção dos deuses gregos ou das leis humanas, na primeira metade do século XX os últimos indivíduos desta espécie desapareceram da costa da maioria dos países mediterrâneos. A extinção esteve iminente. Actualmente, a espécie está drasticamente resumida a duas pequenas populações — uma no Nordeste do Mediterrâneo e outra no Nordeste do Atlântico. É uma distribuição ínfima se comparada com o que sucedeu no século XV. Em 1420, João Gonçalves Zarco terá presenciado algo que instantaneamente se tornaria apenas uma memória longínqua na história natural da ilha da Madeira: uma enorme baía coberta de vegetação e habitada por uma colónia de lobos-marinhos. Ao local foi aliás dado o nome de Câmara de Lobos, como conta o cronista João de Barros: “Ao tempo que João Gonçalves [Zarco] saiu em terra ( ... ) o chão estava muito sovado dos lobos marinhos, ao qual lugar ele deu o nome de Câmara de Lobos ... E não foi pequeno refresco e passatempo para a gente, porque mataram muitos deles e tiveram na matança muito prazer e festa”. Após este primeiro contacto com as focas, popularizou-se a perseguição, como o abate descontrolado das mesmas para posterior utilização da sua pele curtida no fabrico de produtos de couro e utilização da gordura derretida para a produção de óleo.

Rapidamente, a perseguição constante, as alterações ecológicas, o conflito com a actividade piscatória e a consequente perda de habitat devido à progressiva ocupação do litoral pelo homem remeteram as focas para zonas remotas no agreste litoral oriental da ilha. Na década de 1980, os últimos resistentes da Madeira desapareceram, recuando para as Desertas. Mesmo nestas ilhas remotas, a introdução das redes de emalhar e a “pesca à bomba” levaram à dilapidação dos recursos marinhos das ilhas das Desertas e à competição entre pescadores e focas pelos recursos restantes. Segundo os registos pesqueiros, alguns exemplares morreram aprisionados nas redes ou foram abatidos pelos pescadores que os encaravam como responsáveis pela falta de peixe e destruição das suas redes. Em menos de dez anos, também esta população foi dizimada até ao ponto de extinção iminente. A casa de apoio instalada nas Desertas foi a primeira resposta a esta situação alarmante. Esta pequena casa é ocupada desde 1988, e teve como objectivo estabelecer contacto com os pescadores, desencorajando práticas ilegais e sensibilizando-os para a importância da conservação desta espécie. Em 1990, foram dados passos firmes para uma intervenção efectiva na preservação das focas, com a criação da Reserva Natural das Ilhas Desertas. O seu objectivo principal era precisamente a protecção e recuperação do habitat desta espécie. As três ilhas que compõem a Reserva (Ilhéu Chão, Deserta Grande e Bugio) foram divididas entre uma Zona de Protecção Integral e uma Zona de Protecção Parcial, de modo a conciliar a conservação com as actividades piscatórias. A Zona de Protecção Integral tornou- se interdita à pesca e navegação, com excepção da pesca de tunídeos, considerada uma importante actividade para a economia da região e que não colide com a conservação das foca-monges. Na área da Reserva Natural, foi banida a pesca com recurso a redes de emalhar. Talvez por esta ser uma história de perseverança de uma espécie que se obstina em sobreviver contra todas as adversidades, o momento a que acabáramos de assistir foi acrescido de emoção. O Esbranquiçado acasalava com uma fêmea não identificada, tranquilamente, ao lado do bote do pnm.

A datar da implementação da reserva que pequenos grupos isolados e indíviduos têm escolhido esta baía, na costa sudoeste da Deserta Grande, denominada de “Calhau das Areias” como sendo uma das principais áreas de descanso e acasalamento. No entanto, durante a maré cheia, várias grutas inacessíveis que rodeiam este local e onde as focas se habituaram a procurar refúgio devido à perseguição humana ficam submersas, comprometendo esta população a arriscar-se no seu habitat primordial de praias abertas. Bastante próximo do “Calhau das Areias”, há uma segunda enseada de águas cristalinas onde as íngremes escarpas da Deserta Grande abraçam uma pequena praia ensolarada — a praia do Tabaqueiro. Desde 1997, que um grupo de fêmeas pro­cura anciosamente esta praia, e a pequena gruta que a ladeia, como local para repousar, fugir aos predadores e amamentar as suas crias. De vez em quando, outras focas-monge passam por ali, observando a actividade em terra ou juntando-se ao grupo de fêmeas e crias, devolvendo por breves momentos ao arquipélago da Madeira a reminiscência de uma saudável população de lobos-marinhos a viver em segurança nas suas águas. Embora a zona de Protecção Integral da Reserva Natural das Ilhas Desertas revelar um santuário para esta espécie e desempenhe um papel essencial na preservação do seu habitat, a foca-monge parece ter aceitado a declaração unilateral de paz e está pronta a voltar a confiar e esquecer a perseguição centenária de que foi alvo por parte dos humanos, aventurando-se cada vez mais para fora dos limites da reserva. Nos últimos trinta anos, esta foca passou de uma espécie perseguida para um símbolo emblemático do arquipélago. Talvez o caso mais representativo e aquele que de melhor forma contribuiu para a aproximação das espécies tenha sido a Desertinha, uma das primeiras focas a aventurar-se regularmente na ilha da Madeira. Em Novembro de 2008, fraca e doente, ela procurou abrigo entre os barcos da doca do porto do Funchal. A onda de curiosidade, simpatia e solidariedade dos madeirenses levou a uma desmedida cobertura noticiosa regional e nacional.

Apesar dos esforços desenvolvidos pelo pnm para o reimplantar, transportando a Desertinha para as instalações de recuperação nas Desertas, acompanhada de uma veterinária da Direcção Regional das Pescas e de dois especialistas do Centro de Reabilitação de Focas de Pieterburen (Holanda), a foca viria a morrer cinco dias depois. A Madeira perdeu uma das principais fêmeas reprodutoras, uma progenitora de dez crias confirmadas, mas ganhou uma embaixatriz que captou a atenção para a importância da preservação do habitat desta espécie que conquista, cada vez mais, o afecto da população local. Desde Maio de 2009, o Marina, um jovem animal nascido no final do ano anterior, tem sido avistado com frequência na marina e nos complexos balneares do Funchal. Segundo dados do pnm, já foram confirmados mais de seiscentos e trinta avistamentos em toda a extensão da costa da Madeira entre os anos de 1997 e 2008. Rosa Pires, bióloga do pnm que investiga esta espécie há mais de uma década, explica: “Já não podemos dizer que existe uma população de lobos-marinhos das Desertas, mas sim do arquipélago da Madeira. Existem focas residentes na Madeira que nunca foram vistas nas Desertas. Aliás, o Marina terá provavelmente nascido na Madeira”.

O PNM espera conseguir exportar o modelo de sucesso utilizado nas ilhas desertas para a Madeira. A ponta de São Lourenço, é o local mais próximo das Desertas e último registo da presença do lobo-marinho na ilha, parece oferecer excelentes condições para que a espécie volte a ocupar a sua morada histórica. Em 2001, o PNM identificou mais de duas dezenas de grutas que oferecem condições para descanso ou reprodução de focas no Sítio de Importância Comunitária da Ponta de São Lourenço.

No entanto, a importância da recuperação desta pequena população atlântica responde a desígnios mais fortes. Trinta anos volvidos desde o início dos esforços europeus para salvar o mamífero marinho mais vulnerável, que envolveram um investimento considerável, a população mundial continua abaixo dos seiscentos indivíduos, dividida em dois grupos longínquos, com pouco ou nenhum contacto entre si e em perigo iminente de extinção. Um antigo provérbio esquecido das Espórades, na Grécia, assegura que “à medida que a foca morre, também o mar morre”. É uma recordação de que a foca-monge representa mais do que um mero símbolo poético de uma espécie histórica em luta constante pela sua sobrevivência, mas antes um reflexo da relação do homem com o mar. A recuperação da única espécie de foca do Velho Continente passa pela reabilitação de todo um ecossistema arruinado por décadas de pesca intensiva, poluição das águas oceânicas e degradação de habitats sensíveis, devido à crescente ocupação do litoral.

O arquipélago da madeira oferece a esperança de que é possível preservar este legado do património natural mundial

NADAR A CUSTO

A população de manatins deveria estar a recuperar, pois estes ícones das vias fluviais da Florida, que chegam a pesar 450 kg, não têm predadores naturais. Em 2005, porém, a espécie registou o segundo ano mais mortífero de que há registo, com 79 animais mortos por barcos e outras mortes por confirmar. Embora o estado da Florida já tenha limitado a navegação de recreio nas zonas onde existem manatins, os barcos mataram cerca de 1.400 animais nos últimos 30 anos e mutilaram muitos mais. As fêmeas geram poucas crias e estas crescem lentamente, tornando díficil compensar as mortes acidentais. É possível qu já só restem 3.100 animais. Talvez os manatins cheguem ao próximo século, mas as suas prespectivas são sinistras. Cate Lineberry

Deste modo, aproximar os europeus desta espécie de focas, que historicamente lhes pertence e devolvendo-lhe o direito à existência nos seus domínios milenares. A fragilidade desta população torna-a vulnerável a adversidades naturais características em populações com pequena variabilidade genética, bem como ao infortúnio que um desastre ambiental poderia causar. Apenas o tempo dirá se esta espécie — foca-monge — conseguirá vingar na sua luta pela sobrevivência, voltando a conquistar o seu habitat histórico e talvez banhando-se um dia mais tarde, ao sol, nas praias do Mediterrâneo, na costa africana e na ilha da Madeira, local de eleição de muitas delas devido às condições envolventes.

Panorâmica das Ilhas Desertas, situada a sudoeste da Ilha da Madeira, que constituem a Reserva Natural das Ilhas Desertas.


A AMEAÇA ÁCIDA O CO2 AUMENTA. É O FIM DOS ANIMAIS COM CONCHA? O aumento da acidez dos mares, pode significar o desaparecimento dos animais com concha.

A

vida das criatura minúsculas perto da base da cadeia alimentar marinha é, na melhor das hipóteses, perigosa, e o risco é agravado por uma nova ameaça provocada pelo homem. Desta vez, não se trata do aquecimento global, embora a raiz do problema seja a mesma. A subida do nível de dióxido de carbono atmosférico (CO2) está a aquecer o mundo e, ao mesmo tempo, dissolve- se nas águas oceânicas, tornando-as mais ácidas. Para os animais com concha, isso pode significar um ambiente corrosivo. Os oceanos são um sumidouro natural de CO2 e absorvem mais de um quarto do que é libertado na atmosfera. Actualmente estamos a emitir enormes quantidades e os oceanos captam 25 milhões de toneladas diárias de CO2 em excesso e o impacte começa a notar-se. Os cientistas já mediram um aumento da acidez de cerca de 30% nas águas superficiais e prevêem um aumento de 100 a 150% até 2100. Ainda não foram documentados efeitos nocivos no mar aberto, mas a ameaça é evidente. Absorvido pela água do mar, o CO2 reage e forma ácido carbónico que, por sua vez, torna a água, normalmente alcalina, mais ácida. Durante o processo, a quantidade de iões de carbonato flutuantes reduz-se. Muitos organismos marinhos dependem do carbonato da água do mar para construir as suas conchas e outras componentes duras. Por fim, espécies

fundamentais perderão a capacidade de construir ou manter as suas conchas e esqueletos. Os utilizadores do mineral são particularmente vulneráveis. Entre estes, incluem- se minúsculos caracóis que ajudam a alimentar peixes comercialmente essenciais, como o salmão. Modelos computorizados prevêem que as águas polares se tornarão hostis para estes caracóis nos próximos 50 anos. Em 2100, o habitat de muitas espécies com concha poderá diminuir drasticamente e as repercussões sentir-se-ão pela cadeia alimentar acima. E se a acidificação atingir os trópicos, “será um cenário apocalíptico para os recifes de coral”, diz o oceanógrafo Ken Caldeira, que prevê que, se as tendências actuais se mantiverem, os recifes só sobreviverão em refúgios murados com acidez controlada. Erupções de CO2 e de outros gases de estufa já acidificaram os oceanos no passado geológico, mas o equilíbrio regressou à medida que o oceano armazenou o CO2 em excesso em minerais no leito marinho. Desta vez, a natureza pode demorar a sarar. “As emissões são enormes em comparação com os fluxos naturais”, diz Ken. “Se parássemos as emissões e esperássemos dez mil anos, os processos naturais talvez resolvessem o problema:’ Actualmente, porém, as emissões são muitosuperiores à capacidade de absorção dos oceanos.

BORBOLETA DO ALVÃO B orboleta rara no alvão Necessidade de explicar a natureza à socidade civil

A

borboleta Maculinea alcon é um caso raro. Vive em turfeiras, mas precisa de coabitar com duas outras espécies: a planta Gentiana pneumonanthe, que servirá de “maternidade” e de alimento à lagarta nas primeiras duas a três semanas de vida, e formigas do género Myrmica que, devido a um singular truque de química, a adoptarão até à passagem ao estado adulto. Em Portugal este lepidóptero ocorre apenas no Norte e tem os principais efectivos nas serras do Alvão e do Marão. Esta borboleta, foi pretexto para mais uma das acções, do programa Ciência Viva, do Ministério da Ciência e do Ensino Superior, organizada pelo Tagis—Centro de Conservação das Borboletas de Portugal. Durante um dia, sob orientação de técnicos do Parque Natural do Alvão (pna), vários voluntários

procederam à captura de exemplares para marcação e imediata libertação. A acção visou aferir a mobilidade dos indivíduos e a capacidade de mistura com outras populações. Posteriormente, contabilizaram-se 523 ovos numa área de apenas 300 m2! Desde 2001, decorre uma investigação no pna, sob direcção de Ernestino Maravalhas. Segundo o investigador, “é necessário tomar medidas eficazes na conservação desta espécie, caso contrário alguns núcleos poderão desaparecer dentro de 5 a 10 anos”. No horizonte, há porém sinais positivos: “Confirmou-se a ampliação de um dos núcleos populacionais mais ameaçados e foi descoberta este Verão uma nova população, na serra de Leomil. É, até ao momento, a única registada a sul do Douro.” António Luís Campos


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C A Ç A F U R T I VA

FUTURO INCERTO Esta cria de leopardo ficou órfã. O corpo dos felinos têm muita procura para fins medicinais, e a mãe do leopardo não escapou. A caça com fins lucrativos será proibida se todo o vale de Hukawng for transformado numa reserva de fauna.

C onta , peso e medida

Tigres, guerrilheiros e pesquisadores de ouro competem pela sobrevivênvia no “Vale da Morte”, em Myanmar.

U

m clamor ruidoso assalta-me e levo alguns minutos a perceber onde estou. Enquanto desperto, conheço a tosse seca dos motores dos camiões e o ronco surdo e repetitivo dos motores das bombas hidráulicas. Através das persianas abertas da cabana onde me instalei, vejo ao longe as copas das árvores da floresta. Shingbwiyang continua a ser um pitoresco lugarejo nas profundezas do vale de Hukawng, no Norte de Myanmar. Outrora povoado por escassas centenas de habitantes, uma grande corrida ao ouro trouxe milhares de pessoas a este local remoto. Não estava à espera disto. Como director do programa de ciência e exploração da Wildlife Conservation Society (wcs), tenho por objectivo explorar e tentar conservar aqueles que são os últimos lugares bravios do planeta. Por isso regressei ao vale de Hukawng. Depois de um estudo preliminar ter demonstrado a abundância de tigres e outros animais selvagens na região, em Abril de 2001, Myanmar criou um refúgio de fauna numa parte desabitada do vale. Meses mais tarde, o governo elevou a parada: ainda me lembro do choque que senti quando o meu colega Saw Tun Khaing me telefonou para Nova Iorque e me deu a notícia.

“ Eles pretendem triplicar o tamanho da zona protegida! Propõem que todo o vale seja a primeira reserva de tigres do país.” Contou-me Khaing pelo telefone. “E querem que os ajudemos a concretizar o plano.” Desde o começo da minha colaboração com o governo de Myanmar, em 1993, nunca ninguém me tinha proposto nada de semelhante magnitude. Com 20 mil quilómetros quadrados [cerca de um quinto do território de Portugal continental], o vale de Hukawng seria a maior reserva de tigres do mundo.

Neste regresso, enquanto passeio pela aldeia de Shingbwiyang apercebo-me da terrível dificuldade de criar aqui uma reserva. Khaing, coordenador do programa da wcs para este país, acompanha-me numa caminhada pela orla de uma clareira com cerca de um quilómetro. Entramos numa zona com uma grande variedade de estruturas de lona e de edifícios. É aqui que se abastecem os garimpeiros. Num campo de terra, onde antigamente medi trilhos de tigres e elefantes, os vendedores negoceiam agora medicamentos, ferragens e roupas. Ao passarmos pelos restaurantes e cafés ouvimos a música dissonante emitida pelos altifalantes de um bar de karaoke. Vêem-se por todo o lado balanças usadas para pesar o ouro aqui trocado. Em 2000, a wcs fez o seu estudo preliminar, e parte deste vale era escassamente povoado ou até mesmo desabitado. É verdade que, durante a estação mais seca, os habitantes das aldeias vizinhas entravam nas florestas para extrair ouro em pequena quantidade e para colher madeira de bambu, rotim e aloés. Mas pouca gente ali permanecia muito tempo. Precisamente quando o Departamento de Florestas decidiu criar uma zona protegida, outro organismo da administração pública decidiu de reconstruir as pontes destruídas que mantiveram o vale isolado durante décadas. Deste modo, milhares de pessoas afluíram ao vale em busca de ouro: a princípio, buscavam riquezas, desbravaram a terra e fizeram planos para se instalarem. O troço de estrada que liga Shingbwiyang à cidade de Tanai — um percurso de 70 km — é agora atravessado por camiões apinhados com grandes quantidades de alimentos, bidões de gasolina e tubos pvc. A apanha de rotim acelerou: a manter-se o ritmo actual, estima-se que dentro de dois anos os recursos estarão esgotados. As armas de fogo substituíram as bestas como arma de preferência e a pesca com dinamite está a esgotar cursos de água outrora ricos em peixe.

Numa mina de ouro descobrimos uma reluzente e brilhante bola de ouro do tamanho de uma ervilha. Este troféu vale cerca de dez euros, no entanto, a maioria dos trabalhadores birmaneses lucram menos de um euro por dia, uma pequena porção daquilo que realmente seria justo. Os ribeiros que atravessam a zona estão envenenados com cianeto e mercúrio usados para extrair o ouro da lama. Dirigimo-nos os dois a uma tenda contígua e pedimos um refrigerante. Perto da cozinha, vemos pendurados numa trave um conjunto de quatro patas, presumivelmente do mesmo animal: são de javali, uma das presas favoritas dos tigres. Khaing diz-me que a tabuleta em frente da loja anuncia carne fresca de sambar e javali, a preços mais baratos que porco doméstico ou galinha. Parece preocupado. “Ainda acha que vamos conseguir criar esta reserva de tigres?”, pergunta, de supetão. Tenho exactamente a mesma dúvida. Quando ouvi falar no vale de Hukawng em 1996, estava no Norte de Myanmar. Nessa altura, estava a trabalhar no projecto de outra reserva de fauna. A junta militar que governava o país na altura era denunciada na imprensa por violar certos direitos humanos, mas a minha missão nada tinha a ver com política. Trazia-me ali uma tentativa desesperada para conservar e preservar a vida selvagem naquele recanto longínquo do planeta. Pensava-se então que Myanmar, país com vastas florestas e uma densidade demográfica relativamente baixa, possuía o segundo maior número de tigres da Ásia, a seguir à Índia — porém, a caça furtiva estava a diminuir a população. Segundo a traffic, uma rede de animais selvagens que vigia todo o comércio, tanto a nível nacional como internacional, durante a década de 1980, foram abatidos todos os anos em Myanmar pelo menos 50 a 100 tigres, para serem usados nos medicamentos tradicionais asiáticos. Se os números estivessem certos, a população de tigres do país iria passar por dificuldades.

Nas aldeias do Norte de Myanmar, vi partes de corpos de tigres da Indochina, gauros e panteras nebulosas vendidos no mercado com o objectivo de serem utilizados para a produção de medicamentos tradicionais. Sempre que perguntava de onde vinham os animais, a resposta era invariavelmente a mesma — do vale de Hukawng.

“Vale da morte” é assim conhecido, por lá terem morrido tantas pessoas durante a Segunda guerra mundial.

O nome primitivo ju-kawng dado ao vale, é traduzido para português como “território de cremação” no dialecto jinghpaw, falado pelo povo kachin, que há muito tempo domina esta região setentrional. Durante a Segunda Guerra Mundial, os japoneses controlavam a maior parte do território birmanês, e havia um trilho através do vale que se transformou em rota de evasão para refugiados e soldados aliados em fuga para a Índia: tantas pessoas faleceram neste caminho que Hukawng ficou conhecido como o “Vale da Morte”. Entre 1942 e 1944 o general americano Joseph Stilwell abriu uma estrada de terra com quase 800 km que atravessava pelo vale. Referida como “estrada de um-homem-por-quilómetro” por nela terem morrido bastantes indivíduos devido a malária, febre tifóide e fogo de atiradores furtivos, a estrada de Stilwell só ficou pronta poucos meses antes do fim da guerra. Pouco tempo depois, a selva voltava às mãos do povo kachin, nas terras baixas, e do povo naga, os seus vizinhos montanheses. Com a destruição pelas cheias das pontes sobre o rio Chindwin, a estrada tornou-se intransitável a todas as pessoas.

Num esforço para afastar as forças governamentais, o Exército Independentista Kachin (kia) demoliu as poucas pontes intactas que ainda restavam. Em 1961, quando os kachin iniciaram a sua luta pela autonomia face ao governo central, o vale passou a funcionar como base de operações do kia. A primeira viagem que fiz ao vale foi em 1999. Demorei duas semanas a percorrer 250 km, a maior parte foi a andar a pé ou de barco. O tempo alternava entre chuvas torrenciais e sol escaldante. No entanto, a fama de abundância em vida selvagem parecia corresponder à verdade: os estudos que realizáramos anteriormente confirmavam a existência de ursos, panteras nebulosas, sambares, muntjacs, javalis, cães-selvagens-indianos e outras espécies entretanto desaparecidas, ou em pleno declínio, noutras regiões do país. Mas o que mais nos entusiasmava era a evidência de que talvez vivesse em Hukawng uma percentagem significativa da população ainda existente de tigres da Indochina. Ao decidir classificar o vale como reserva, o governo reconheceu que, caso a situação não se alterasse, os tigres provavelmente não iriam conseguir sobreviver naquele que é o seu país. No entanto, proibir totalmente a caça, a pesca e outros aproveitamentos da floresta e da fauna selvagem em todo o vale não era uma medida realista. A aplicação da lei seria praticamente impossível. É precisamente por esse motivo que colaboro com o governo de Myanmar, com o objectivo de classificar os lugares mais povoados do vale, onde serão permitidas, embora regulamentadas, actividades como a pesca e a caça para consumo próprio, bem como a colheita de rotim. Assim, para conseguir salvar os tigres, vai ser preciso assegurar a proibição do abate de árvores, da agricultura por derrube e queimada, do comércio de espécies selvagens e da mineração do ouro em grande escala no resto do vale.


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Porém, ao observar as fotografias tiradas pelas armadilhas fotográficas, dou conta de que o comércio de animais selvagens não é provavelmente a maior ameaça que os tigres enfrentam no vale de Hukawng. Ao olhar para os instantâneos, preocupam-me principalmente as imagens que não vejo: devia haver mais fotografias das presas dos tigres-sambares e javalis. A própria extracção de ouro pode não ser mais do que a ponta do icebergue. Embora a destruição de todo o território em redor de Shingbwiyang seja horrível, está confinada a cerca de mil hectares, no máximo: é uma pequena fracção da floresta existente. Lembro-me da tabuleta de um restaurante, a anunciar carne de sambar e de javali, e apercebo-me de que a verdadeira ameaça aos tigres tem origem na diminuição das suas presas. Seguimos Ah Puh até à sua cabana, localizada nas imediações. Ah Puh ateia os carvões na fogueira, para ferver água para o chá. Quando o fogo reanima, a luz das chamas ilumina uma colecção de crânios de animais presos a uma armação de bambu, pendurada numa parede. Não é a primeira vez que vejo exposições como esta: os lisu acreditam que só guardando os crânios dos animais que matam são capazes de assegurar a sua sorte futura na caça dessa espécie. Conheci poucos caçadores que não possuíssem esse tipo de respeito pelos animais que matam.

V ÍB O R A V E N D I D A COMO AMULETO

Cabeças de víboras vendidas como amuletos. O Parque Nacional da Peneda-Gerês é o único local do País onde a víbora-cornuda Vipera latastei coexiste com a de seoane Vipera seoanei. Esta circunstância, aliada às condições de preservação deste habitat, motivou o biólogo José Carlos Britoa desenvolver um projecto de investigação desde 1998 com estas duas víboras ameaçadas. “A víbora-cornuda tem uma área vital de um hectare, encontra-se activa entre Março e Novembro e alimenta-se quase exclusivamente de roedores”, afirma. A época de reprodução dura apenas 15 dias e as fêmeas dão à luz entre três e dez crias. Das conclusões mais negativas para as duas espécies apuradas pelo estudo, destaca-se a perda de habitat devido aos incêndios frequentes na região e a substituição regular de bosques e matos autóctones por monoculturas de eucalipto. “O comércio das cabeças de víbora associado a superstições e bruxaria também é um risco”, explica José Carlos Brito. “Esta actividade ilegal, que na década de setenta dizimava cerca de 500 víboras por ano continua a proliferar e, surpreendentemente, ainda se vêm anúncios deste comércio em alguns jornais nacionais.” Por serem venenosas, as víboras sempre foram consideradas perigosas para o homem e deram origem a mitos e lendas. No entanto, as mordeduras registadas foram sempre acidentais ou resultaram de uma imprudência, pois estes répteis são animais tranquilos e tímidos que apenas mordem para se defender.

MUITOS DOS PLANOS DE CONSERVAÇÃO FRACASSAM PORQUE OS CONSERVACIONISTAS PARTEM DO PRINCÍPIO DE QUE A PROTECÇÃO DOS ANIMAIS SE GARANTE AJUDANDO A POPULAÇÃO LOCAL A SAIR DA POBREZA.

O meu modelo é bem diferente — creio que é possível assegurar um equilíbrio dinâmico e de aplicação viável entre as pessoas e a vida selvagem. Agora, que vejo como o vale está tão mudado, aflijo-me por pensar que pode ser demasiado tarde. Com tantos milhares de pessoas a viver perto da floresta, já se perderam possivelmente muitos tigres. Antes de avançar com a reserva, preciso obter provas da existência de tigres em número suficiente para garantir o êxito desta iniciativa. Essa prova, assim o espero, aguarda-me na cidade de Tanai. Ao chegar a Tanai, sou recebido pelos membros da equipa de campo da wcs. Saúdam-me, sorridentes, e entregam-me um envelope com provas de contacto fotográficas.

Os investigadores passaram três meses no vale de Hukawng a estudar sistematicamente aquele santuário de vida selvagem, utilizando como principal equipamento uma máquina fotográfica automática colocada no interior de um invólucro à prova de água, accionada por um feixe de infravermelhos que detecta o calor corporal. Esta armadilha fotográfica regista tudo aquilo que lhe passa pela frente, assinalando a presença de espécies que nem sempre deixam sinais óbvios. No caso dos tigres, vai ao ponto de identificá-los um a um, dado que cada animal tem um padrão de riscas diferente. Este estudo fornece a primeira estimativa realista da densidade de tigres no vale. “Quais são os números?, pergunto, referindo-me à contagem feita a partir das fotografias. “Existem dois ou três tigres por 250 km2, ou seja, talvez uns 80 a 100 em todo o vale”, responde o chefe da equipa. A quantidade de tigres é suficiente, embora em reduzida quantidade ao que se poderia esperar numa floresta de terras baixas como estar onde seria de esperar pelo menos dez tigres por 250 km2. Mesmo assim, há aqui uma população que é capaz de prosperar e de aumentar, caso seja protegida. Para além dos tigres, há fotografias de trinta e duas outras espécies de mamíferos e aves, que indicam um sistema natural intacto.

As armadilhas fotográficas que instalámos capturaram igualmente imagens de caçadores percorrendo os mesmos trilhos dos animais selvagens, muitos com armas de fogo e alguns com bestas. Um homem chamado Ah Puh agacha-se ao pé de mim e aponta para as fotos — membro da tribo nortenha dos lisu e um dos mais hábeis caçadores do vale, trabalha actualmente para a wcs, com o intuito de nos mostrar os melhores locais onde encontrar tigres. Ele conhece todas as pessoas das fotografias. Diz-nos que a maioria dos caçadores são lisu, oriundos da vizinha cidade de Putao, 130 km a norte, ao passo que os homens de uniforme verde pertencem ao exército independentista. Não sei porquê, sempre achei que a presença do kia contribuía mais para preservar a vida selvagem da floresta do que para ameaçá-la. Porém, estas fotografias provam o contrário. Pedindo a Khaing que actue como intérprete, pergunto a Ah Puh: “Acha possível impedir os lisu de matar tigres e outros animais?” ao qual ele responde: “Se os lisu puderem matar um tigre, matam mesmo. Os negociantes pagam muito dinheiro.” Em muitos dos países que possuem populações de tigres, os lucros provenientes da venda de um esqueleto de tigre de médio porte pode render o salário de dez anos.

CAPTURA VIOLENTA Por seis euros, os caçadores abateram um urso para vender as patas. Em Myitkyna, uma banca exibe lagartos, insectos e partes de animais úteis para o fabrico de medicamentos.

“Há dois anos, não viviam aqui tantas pessoas, especialmente durante as chuvas” — explica Ah Puh. “As viagens eram difíceis e muitas pessoas adoeciam e acabavam por morrer. Agora as coisas melhoraram, mas há demasiados forasteiros e os animais estão a morrer mais depressa do que as pessoas.” Olha para o quadro de troféus e fica silencioso por um momento. “Talvez seja tempo de parar.” Uma semana mais tarde, eu e Khaing fazemos uma viagem de barco de quatro horas pelo rio Tanai acima, até ao quartel-general do kia, situado numa zona do vale que ainda não conhecia. Em 1994, os combatentes do kia assinaram um acordo de cessar-fogo com o governo, mas nunca depuseram as armas e mantiveram algum controlo sobre o vale. Uma vez que o seu acampamento se situa no coração da projectada reserva de tigres, precisamos da sua aprovação para que ela seja bem sucedida. Soldados de uniforme, maioritariamente aparentando menos de 20 anos, aguardam-nos na margem e acompanham-nos até à aldeia que funciona como complexo militar, convidando-nos a sentar numa mesa ao ar livre. Os três oficiais mais graduados do kia sentados à minha frente têm entre 40 e 50 e poucos anos, mas apresentam rostos endurecidos por uma vida inteira de conflito. Khaing serve de intérprete, enquanto lhes explico sucintamente a história do trabalho desenvolvido pela wcs no vale de Hukawng

e lhes pergunto se estão dispostos a ajudar. “Esta é a nossa terra”, diz o comandante do kia.

“ O povo kachin sempre ouviu dizer

que não deve matar determinados animais, como tigres, elefantes e macacos. Sabemos que vamos precisar desses recursos no futuro.” “Sei que ensinam a respeitar certos animais”, digo-lhe. “Mas talvez não se apercebam do que se passa, quando não estão lá para ver.” Entrego-lhe algumas das fotografias tiradas pela armadilha fotográfica, onde se vêem soldados do kia a caçar, e observo as suas expressões quando as fotografias passam de mão em mão. Estes homens não ficam surpreendidos: sabem exactamente o que se passa na sua floresta. “Alguns dos vossos soldados usam as armas para matar tudo o que encontram”. “E os animais que vocês dizem que não devem ser mortos são expostos nos mercados de Tanai e nos acampamentos dos mineiros. Mesmo que os kachin não matem os tigres, matam toda a comida dos tigres. Em breve, os tigres e tudo o mais irá desaparecer”.


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TESOURO DA HUMANIDADE MERCADO NEGRO Em Myitkyina, uma banca exibe lagartos, insectos e partes de animais úteis para o fabrico de certos medicamentos.

Estes escaravelhos têm tanto valor para os cientistas como para os coleccionadores. Será que a fama pode salvar-lhes a vida?

Um dos oficiais franze o cenho e, em seguida, diz qualquer coisa a outro oficial. Ninguém sorri. “Nós ajudamos se pudermos”, diz o comandante. “Mas o nosso povo tem de comer. E precisamos de dinheiro para a causa. Por vezes, isso gera conflitos. Os conflitos fazem parte da vida.” Sentindo-me frustrado, começo a explicar alguns dos planos que a wcs pensa pôr em prática nos próximos cinco anos — programas de criação de gado, cultivo de produtos florestais sem corte de madeira, como rotim e bambu, desenvolvimento do ecoturismo e introdução de educação ambiental nas escolas. Se as pessoas criarem porcos domésticos e galinhas para comer, em vez de caçar sambares e javalis, os tigres podem voltar a ser numerosos. Digo aos homens que gostaria de me reunir com os representantes dos diversos grupos étnicos do vale de Hukawng. Seja qual for o próximo passo, tudo deve partir da vontade das pessoas que aqui vivem. Os oficiais parecem descontrair-se e autorizam os seus soldados a participar nessa reunião. É um primeiro passo decisivo, tal como foi decisivo para Ah Puh reconhecer que talvez seja tempo de mudar. Acompanhado por um capitão de vinte e poucos anos, passo o resto do dia a deambular pelo complexo militar e pela aldeia adjacente, onde vivem as famílias dos soldados. O capitão, tal como muitos dos outros jovens soldados, diz ter sido recrutado há dois anos sem possibilidade de recusa. Diz não se sentir

infeliz aqui, mas espera que os seus filhos tenham uma vida diferente. Nessa noite, os adolescentes uniformizados fazem uma serenata, entoando canções sobre o amor, a família e a revolução — canções sobre um passado conturbado e um futuro incerto. Todavia, não sinto tristeza nas suas vozes — parecem olhar em frente, com um optimismo sem limites. De repente, pela primeira vez nesta viagem, sinto-me também optimista e penso que talvez o projecto resulte. Não vim até cá para ajudar pessoas, mas para salvar os tigres. Porém, as fronteiras entre ambos estão agora um pouco esbatidas e isso deixa-me contente. Há mais de um século que o vale de Hukawng é um lugar de luta e de morte: pode ser que se torne agora um lugar de vida, de coexistência entre os humanos e a natureza. Não me iludo, por saber que os desafios que existem pela frente são enormes: sei que vai haver problemas e reveses. Mas estou convencido de que no final a reserva de tigres do vale de Hukawng poderá ser bem sucedida. Na manhã seguinte, eu e Khaing transportamos os nossos pertences até ao rio, onde um barco nos conduzirá de volta a Tanai. Embora o verdadeiro trabalho ainda esteja por realizar, o kia concordou com a reunião e, por agora, isso é um progresso. Enquanto esperamos, um rapazinho avança na minha direcção, vestindo um uniforme do kia. “Já és soldado?”, pergunto ao rapaz, que aparenta ter cerca de sete anos.

“Sou muito novo. Mas em breve vou ser um soldado”, responde-me solicitamente, ao mesmo tempo assustado e impressionado por falar com um estrangeiro. “Gostas de viver aqui na floresta?”, pergunto. “Não tens medo dos tigres?” “Eu gosto dos animais. Não tenho medo de nada na floresta. O meu pai diz que a floresta é a nossa casa.” Despenteio-lhe o cabelo e sorrio. “A floresta também é a casa dos animais”, respondo. Em seguida viro-me e caminho para o barco, que entretanto chegou para me recolher. “Também podemos partilhar a floresta”, ouço-o responder nas minhas costas. “Há que chegue para todos.”

ESCARAVELHOS JÓIA É evidente que os escaravelhos atraem os coleccionadores. Muitos são vendidos por tuta-e-meia, mas os espécimes vermelho-vivo podem valer cerca de 50 contos, e os de cor dourada quase 120. Por causa destes preços, alguns conservacionistas receiam que este comércio provoque rombos na espécie. Mas a nossa investigação sugere o contrário. Os coleccionadores só apanham animais adultos, deixando sob o solo milhões de ovos, larvas e crisálidas. Além disso, a muitas destas florestas só se chega após um caminho extenuante; a outras, só de helicóptero. A maior ameaça aos escaravelhos é, isso sim, o desaparecimento do habitat, causado pela conversão progressiva da floresta tropical em campos agrícolas. Cremos que a captura controlada de escaravelhos – e a sua criação – poderá ter o efeito de abrandar este processo. Noutros locais, esta solução tem tido êxito com borboletas e outros insectos. Com o desenvolvimento de uma pequena indústria, é possível que alguns habitantes se apercebam que, a longo prazo, um pedaço de terra sem árvores é menos valioso do que uma floresta viva e cheia de jóias. (ilustração à direita)


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ÍNDIA G AT E S O C I D E N TA I S O seu mundo está a fragmentar - se

As florestas tropicais desta cordilheira estão ameaçadas devido à explosão demográfica e ao desejo de modernização da Índia.

D

e manhã, com a luz quente própria do início do dia, as colinas do Parque Nacional de Kudremukh do estado de Karnataka, no Sul da Índia, parecem prolongar-se até perder de vista — mosaico sem fim composto por savana de capim dourado e por uma baixa floresta tropical verde-escura a que chamam shola. Não se vêem sinais de outros seres humanos e ouve-se apenas o cantar das aves e o zumbido contínuo dos insectos, vindos das profundezas da floresta. Ao partir na direcção do cume com dois companheiros de caminhada, a minha condição de recém-chegado leva-me precipitadamente a supor que os Gates Ocidentais, uma cordilheira com mais de l.500 km que se estende ao longo da costa sudoeste da Índia, permaneceram milagrosamente imunes à acção do homem.

BOA VISTA ATÉ QUANDO? A ilha da Boa Vista é a terceira maior de Cabo Verde e a menos povoada. Assente numa extensa plataforma subaquática, é a região do arquipélago que ostenta a maior biodiversidade e os recursos em melhor estado de conservação. A tranquilidade, porém pode estar por um fio. A aprovoção de projectos hoteleiros para mais 30 mil camas, a construção de um aeroporto internacional e a pressão política para que sejam desclassificadas algumas áreas protegidas ameaçam inundar a ilha de turistas. Centenas de tartarugas-comuns encontram na Boa Vista o território ideal para desovar, entre Junho e Novembro. Para acompanhar o fenómeno, o biólogo Pedro López trocou Espanha pela Boa Vista, desdobrando-se em trabalhos para a associação Cabo Verde Natura 2000, o Instituto Canário de Ciências Marinhas e a Fundação Universitária de Las Palmas. “Desde 1992 foram marcadas mais de cinco mil fêmeas numa área que compreende 5 a 10 km de costa”, diz. Na tradição local, estão enraizadas as capturas ilegais de aves e tartarugas, que persistem devido à débil fiscalização. Mas os novos projectos podem provocar danos mais persistentes. As praias e ilhéus da Boa Vista acolhem ainda aves emblemáticas, como o alcatraz-pardo ou a Calonectris edwardii, uma espécie endémica. Pedro López acompanha também estas populações, identificando problemas de conservação. António Sá

Os GATES SÃO A PRINCIPAL FONTE DE ÁGUA DE TODA A ÍNDIA PENINSULAR.

Em cada mês de Junho, as nuvens escuras da monção, caregadas de chuva, aproximam-se vindas do oceano Índico, sendo interceptadas pelos cumes ocidentais e aliviadas da maior parte da sua carga — mais de nove mil milímetros de pluviosidade anual em algumas zonas — antes de espalharem a pouca humidade que resta sobre as vertentes orientais das montanhas me nos inclinadas e sobre o vasto planalto do Decão, mais além. Cerca de 60 rios e inúmeros cursos de água precipitam-se rumo a oeste, escarpas abaixo. Três das principais bacias hidrográficas da Índia peninsular que correm para leste — dos rios Godavari, Krishna e Cauvery — nascem também nesta cordilheira e há pelo menos cinco mil anos que matam a sede e irrigam os campos da população do Sul da Índia. Totalmente implantados na zona tropical, protegidos de qualquer frio severo limitador da diversidade e possuindo uma rica variedade de coberto florestal, os Gates geram riquezas vegetais e animais que só agora começam a ser vislumbradas. O Parque Nacional de Kudremukh foi criado em 1987 para ajudar a preservar o endémico macaco-de-cauda-de-leão — um símio da floresta tropical com uma cabeleira prateada — hoje ameaçado de extinção devido à fragmentação do seu habitat. Este processo lamentável começou durante a administração britânica, mas acelerou-se

após a independência da Índia, em 1947, quando as necessidades inexoráveis gera­ das pela explosão demográfica se fizeram sentir em toda a cordilheira. Oriundas da Austrália, espécies exóticas de crescimento rápido com valor comercial, como o eucalipto e a mimosa, substituíram a preciosa shola nas encostas altas. Mais abaixo, as florestas de folha perene cederam o passo a plantações de chá, café, caju e cardamomo, além de minas, estradas e gigantescos projectos hidroeléctricos e de regadio. E mesmo que as copas das árvores pareçam intactas quando observadas de avião, lá por baixo há pessoas que, silenciosamente, praticam caça furtiva, ateiam fogos e alteram irreversivelmente a estrutura da floresta, colhendo enormes quantidades de produtos naturais que depois vendem a grandes empresas: frutos silvestres para a indústria alimentar, caules de rotim para os fabricantes de mobiliário, uma variedade de glicínia a partir da qual se preparam medicamentos contra a obesidade, para venda livre no Ocidente. Mesmo aqui, dentro do perímetro supostamente protegido de Kudremukh, os Gates estão à mercê da destruição humana. Embora aparente ser muito vasto do alto das colinas, o parque é, na realidade, relativa­­­mente pe­queno — apenas 600 km2. A cerca de um quilómetro de distância em linha recta, há 30 anos que a Kudremukh Iron Ore Company extrai minério, metodicamente arrasando colinas inteiras, esventrando as encostas daquelas que permanecem de pé e transformando um vale outrora florestado num vasto lago de escória vermelha. Durante a monção, o rio Bhadra, que nasce no centro da região mineira e abastece de água centenas de milhares de pessoas, corre vermelho cor de sangue: a jusante, durante vários quilómetros, as margens encontram-se enegrecidas pelo minério de ferro e os sedimentos que arranca às colinas desnudadas ameaçam destruir uma importante albufeira a 70 km de distância. E agora, depois de ter esgotado em grande parte a área que, antes da criação do parque, lhe foi concessionada por 30 anos, a empresa mineira quer obter licença para rasgar novas encostas e criar um novo lago de escórias que irá afogar mais um vale. Se o conseguir, as florestas de Kudremukh ficarão mais fragmentadas e a sua extraordinária diversidade será ainda mais reduzida, à medida que as espécies que aqui têm o único refúgio forem desaparecendo, juntamente com os nichos para cuja ocupação foram capacitadas pela evolução. Quanto ao emblemático macacode-cauda-de-leão, será ainda mais provável que desapareça da Natureza.

No final do século XX, os 160.000 km2 de floresta virgem que, segundo se crê, cobriam os Gates no início do século, estavam reduzidos a menos de 12 mil. “É por isso que nos sentimos tão impacientes”, explica Praveen Bhargav. Em Nova Deli, o governo central era antigamente o aliado mais poderoso da conservação na Índia; nos últimos anos, porém, o antigo poder centralizado tem sido gradualmente devolvido aos estados, todos com conflitos próprios no que respeita à explo­ração dos respectivos recursos. “Hoje muitas das áreas supostamente protegidas só o estão no papel”, diz Praveen. “Antes tudo ficava nas mãos do governo. Agora temos de ser nós a agir. A tempo inteiro.” Wildlife First! não é o único grupo de cidadãos que luta pela preservação daquilo resta dos Gates — o facto de estes grupos nascerem como cogumelos é um sinal de esperança para a conservação na Índia — mas é certamente o mais capaz e o mais empenhado. Tem como presidente K. M. Chinnappa, o antigo e len­­ dário administrador florestal cuja dedicação transformou Nagarahole num dos melhores parques naturais da Ásia. E o meu velho amigo Ullas Karanth, especia­­­­­­­­­lista em conservação que colabora com a Wildlife Conservation Society (wcs), sediada no Jardim Zoológico de Bronx, em Nova Iorque, é o consultor

científico do grupo e autor da sua declaração de intenções, contribuindo para a luta com objectividade científica e empenho sem cedências. “Com tantas pressões concorrentes entre si sobre recursos em vias de exaustão, e com o próprio governo tantas vezes indeciso quanto ao modo de afectar esses recursos, o que pode realmente fazer um punhado de cidadãos?” Ullas quase parece indignado com a pergunta. “Podemos procurar outras pessoas com as mesmas preocupações e construir alianças. Podemos levantar os ânimos na imprensa. Podemos avançar para os tribunais.” Wildlife First! tem feito tudo para defender Kudremukh, e um dos resultados decisão do Supremo Tribunal de Justiça indiano que obriga o estado de Karnataka a por que razão autorizou a mineração num parque nacional, violando a Lei de Protecção da Vida Selvagem da Índia. Porém, o governo estadual de Karnataka gizou uma estranha solução de compromisso: indeferiu o pedido da empresa no sentido de alargar a mineração a novas áreas mas, ao mesmo tempo, declarou que a actual área de extracção deixava de fazer parte do parque nacional. Assim, a extracção de minério pode prosseguir — e, com ela, a poluição causada ao rio Bhadra.

O futuro da Reserva de Tigres de Bhadra, localizada a menos de 50 km a nordeste parece mais garantido que o de Kudremukh; mas quando a visitei pela primeira vez há cinco anos, na companhia de Ullas, nada o faria prever. Bhadra é, sem dúvida, belíssima, com quase 500 km2 de floresta densa, delimitada por uma albufeira de águas azuis, de um lado, e por montanhas forradas a verde, de outro lado. Quatro variedades de bambu — o alimento ideal para os elefantes e para o corpulento boi selvagem chamado gaur — florescem entre os leitos dos riachos, entre elas uma variedade gigante cujos caules de 30 metros de altura balouçam e gemem ao vento como as madeiras de um veleiro ao serem batidas pela mais suave brisa. Mas em 1997 tudo aqui parecia completamente fora de controlo. Os negociantes de bambu cortavam enormes quantidades do coberto vegetal indispensável à vida selvagem, para não falar que as árvores estavam também a desaparecer. Os caçadores furtivos actuavam de forma imponente. Dentro deste parque, existiam cerca de dezasseis aldeias, nas quais os habitantes plantavam arroz, e exerciam pressões para obter electricidade, água canalizada e estradas de piso durável descontroladamente — elementos estes, entre outros que

poderiam ser catastróficos para a floresta. Para ajudar a garantir essa protecção, o Wildlife First! nomeou seu representante no terreno D. V. Girish, um alto fazendeiro de café. É óbvio que o trabalho compete à administração florestal; eu estou aqui só para que saibam que os apoiarei quando trabalharem como deve ser e que os pressionarei quando não o fizerem.” Sob esta vigilância implementada, Bhadra iniciou um considerável processo de recuperação. Em 1998, o parque foi integrado na rede Projecto Tigre, do governo central, e, com a ajuda de várias organizações estrangeiras lideradas pelo wcs, hoje já existem veículos suficientes para combater os incêndios e para assegurar um patrulhamento conveniente. O dinâmico funcionário D. Yatish Kumar celebrou um acordo com os cultivadores de arroz, ao abrigo do qual estes receberão terras de regadio e outras instalações noutro lugar, desde que se comprometam a abandonar a floresta. Os cortes de bambu pararam, e a protecção foi reforçada. Os guardas florestais capturaram um caçador furtivo — um agricultor de uma fazenda de café que, nos tempos livres, abatera no ninho um raro e grande esquilo voador castanho, para além disso, serviu-se dos cães para perseguir um mangusto-de-pescoço-listrado antes de o matar à paulada. O que pensava fazer com estes troféus pavorosos?, “Comê-los”, antes de o levarem. A floresta onde estes animais foram mortos de forma violenta e atroz está ainda mais deslumbrante. Embora floresça apenas com intervalos de 45 a 60 anos, o bambu gigante expõe-se florido de amarelo, coberto por pequenas nuvens de pintarroxos-carmíneos que dis­putam ruidosamente as sementes. Os animais de Bhadra não estão habituados aos seres humanos, mas existem pelo matagal porcos selvagens, veados e cervos em grande abundância; pegadas de um tigre; uma enorme quantidade de elefantes parece indiscutível. Estes grandes defecadores deixam atrás de si excrementos do tamanho de balas de canhão, e o seu cheiro a capoeira parece presente em toda a parte.

Os AGRICULTORES E AS SUAS FAMÍLIAS ESTÃO A SAIR DA FLORESTA, ABANDONANDO OS CAMPOS DE ARROZ. Desta forma, os campos, voltarão a transformar-se no habitat ideal para os bovídeos e para os elefantes. A despeito de todas as pressões de que são vítimas, Kudremukh e Bhadra mantêm um inconfundível ambiente selvagem. Mais para sul, nas Terras Altas do estado de Kerala, à primeira vista é difícil acreditar que a vida selvagem tenha a mais remota das capacidades, há mais de um século que esta terra se dedica ao cultivo do chá. No entanto, além da cumeeira destas colinas situa-se o Parque Nacional Eravikulam — um planalto com 97 km2 demasiado alto e frio para se plantar chá, que talvez seja o último reduto da espécie Nilgiri tahr. Esta espécie endémica de carneiros monteses de passo seguro era outrora vulgar em toda a metade sul dos Gates, mas a caça furtiva e a perda sistemática do habitat reduziu a população a menos de 2.500 animais. Cerca de um terço destes carneiros vive aqui sem ser perturbado, beneficiando de uma parceria única entre a administração florestal e os sucessores dos fazendeiros que alteram a ecologia das encostas baixas para sempre. No meio da bruma e a mais ou menos 2.500 metros acima do nível do mar, numa região em grande parte ocupada pela monocultura, um tigre continua a encontrar presas suficientes para sobreviver. Provavelmente estas provas tão prosaicas não sejam lá muito românticas. Mas a verdade é que elas existem — e com elas, permanece a máxima de esperança.


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SAPOS E RÉPTEIS

V IB O R A - C O R N U D A A víbora-cornuda é um dos dois únicos répteis portugueses venenosos. A tradição reza que a sua cabeça traz boa sorte aos portadores e a sua carne é um afrodisíaco. Este triste equívoco motivou a captura desregrada de víboras em algumas aldeias do interior e ameaçou o futuro da espécie.Hoje, as capturas já não se registam com a mesma intencidade.

AMADOS E ODIADOS

Répteis e anfíbios converteram-se desde tempos imemoreais em protagonistas de fábulas e mitos.

N

o início do mês de Abril, quando os raios solares aquecem os vales, as dunas e as mais recônditas serranias do território nacional, chega a altura para os herpetólogos iniciarem os trabalhos de campo. Após alguns meses de hibernação, e com a subida da temperatura, lagartixas e cobras começam a “proliferar” nos habitats, iniciando mais uma época de actividade. Dirijo-me ao litoral, mais concretamente às dunas da Torreira, na região de Aveiro, onde se encontra o biólogo Miguel Carretero, coordenador da região norte do Plano Nacional de Conservação da Herpetofauna e Atlas dos Anfíbios e Répteis de Portugal. Miro o relógio: os ponteiros indicam dez horas da manhã. O Sol, que se encontra quase a “pique’; começa a fazer-se sentir. De mochila às costas e máquina fotográfica pronta a “disparar’; acompanho o investigador enquanto ele procura animais entre a vegetação dunar.

Com o avanço da construção em direcção às dunas, todo o tipo de lixo é abandonado junto deste ecossistema de elevado interesse biológico. Persistentemente, o biólogo continua a levantar o “entulho” ali depositado. Finalmente, grita com entusiasmo: “João estáaqui um macho e uma fêmea”. A euforiajustifica-se. Miguel explica-me que esta lagartixa da espécie Podareis carbonelli “foi descrita em 1982 pelo investigador espanhol Valentin Pérez Mellado na Sierra de Francia, em Espanha. Até aí, pensava-se que o animal era apenas uma subespécie da Podareis bocagei”. “A distribuição desta espécie é mais ampla, pelo que existem grandes probabilidades de encontrarmos novos núcleos populacionais, como aconteceu recentemente com a descoberta de exemplares na serra do Caramulo”, afirma Miguel Carretero. Com o avanço do trabalho de campo, e passado o primeiro ano desde o início do projecto Atlas, as revelações sucedem-se.

A investigação teve como proponentes o cba (Centro de Biologia Ambiental da Faculdade de Ciências de Lisboa) e o cibio (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto), e foi coordenada e financiada pelo Instituto da Conservação da Natureza. A pergunta que adivinho na boca do leitor é natural: porque merecem estes animais ser alvo de um estudo de grande enver-gadura? A resposta é igualmente espontânea. Armando Loureiro, coordenador nacional da iniciativa, explica-me que o conhecimento sobre cada espécie é muito heterogéneo.

A PRIMAVERA ATINGE O SEU AUGE E OS CAMPOS ENCHEM-se DE VIDA

“Para algumas, conhece-se apenas um ou outro local de distribuição.” Para proteger, é fundamental conhecer. A Primavera atinge o seu auge e os campos enchem-se de vida. Encontro-me com três investigadores num dos maciços mais agrestes da região centro — a serra de Montemuro. Em tempos não muito longínquos, era usual em algumas aldeias deste enclave os habitantes capturarem ofídios para posterior venda. A víbora-cornuda (que, juntamente com a víbora-de-seoane, é um dos dois répteis venenosos que ocorrem em território português) era a espécie mais apreciada, pois pensava-se, erradamente, que o seu consumo era benéfico para a saúde e actuava como afrodisíaco. Enquanto a equipa que eu acompanho prepara os últimos pormenores, aproveito para trocar umas palavras com um pastor que se encontra a alguns metros da nossa viatura. Pergunto-lhe se ainda é habitual matarem víboras? Sorri e responde: “Agora, já é raro

vê-las, mas quando eu era mais novo matei algumas e aproveitava a cabeça para vender.” Enquanto estive na região, tive oportunidade de observar alguns exemplares no interior de frascos cheios de álcool com mais de 17 anos. Actualmente, esta prática diminuiu, mas provocou certamente um decréscimo nas populações da serpente. Junto-me de novo aos biólogos, que colocam uma carta militar sobre o “capot” da viatura e discutem a melhor área para prospectar. As únicas ferramentas que acompanham o trabalho dos jovens cientistas são um camaroeiro e um GPS transportados por Raquel Ribeiro, que se dirige para um pequeno charco. Não muito distantes, Bruno e Neftali levantam várias pedras em busca de répteis. “Com o calor, os animais têm tendência a procurar um abrigo mais fresco e isso obriga-nos a levantar todo o tipo de material que nos parece apropriado a um possível refúgio”, diz um dos herpetólogos.

Enquanto caminhamos, vamos observando os animais escondidos deste jardim zoológico natural. A poucos metros de mim, vejo o maior lagarto da herpetofauna europeia – o lagarto-ocelado ou sardão. Caso se sinta ameaçado, ele fugirá rapidamente, pelo que tento ser cauteloso na minha aproximação para obter algumas imagens. As formas, desenhos e texturas das cobras e lagartos que vamos observando fazem-me parar em busca de mais um momento de estética natural, mas Raquel Ribeiro continua a sua tarefa em busca de pequenas larvas de anfíbios. De vez em quando, pára, mostra-me alguns indivíduos e dá-me autênticas lições de zoologia. “Para identificar os girinos, observamos o desenho da boca e verificamos onde se encontra o espiráculo”, explica. A posição das espécies encontradas é marcada por GPS para que se possa criar uma base de dados fiável para futuros trabalhos e produzir mapas de distribuição.

Todos os animais encontrados sem vida, principalmente por tráfego rodoviário, são recolhidos e passam a integrar um banco de tecidos para estudos genéticos, anatómicos ou ecológicos. No âmbito do programa Life para o conhecimento e gestão do património natural, estudaram-se apenas cinco das 45 espécies existentes em Portugal Continental. Para as restantes 40 espécies, desconhecem-se os factores fundamentais que permitam conhecer e preservar estes vertebrados. Essa é a motivação do projecto Atlas: alargar o conhecimento e transmitir aos decisores políticos o máximo de informação, na esperança de que a importância da biodiversidade supere a superstição e a repugnância. Os meses sucedem-se, e o trabalho de campo continua. Com a aproximação do Outono, o clima torna-se mais rigoroso. A actividade da maioria dos anfíbios e répteis diminui consideravelmente. Resta-nos esperar.

SARDÃO SAPO-COMUM O sapo-comum apresenta um mecanismo de defesa notável. Quando ameaçado, segrega uma substância irritante para os predadores e ao mesmo tempo, dilata o corpo para parecer maior.

Se há uma espécie de reptil carismático da península Ibérica,esse animal é o sardão, o maior lagarto europeu. No campo, as equipas de investigação recencearam 45 espécies de répteis e anfíbios. Este primeiro censo nacional será essencial para fornecer referências para o futuro e dotar as entidades locais de dados concretos para a preservação dos habitats.


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FLORESTA TROPICAL M anta verde em risco

Cobrindo menos de 7% dos seus 1,4 milhões de quilómetros quadrados originais, a Floresta Atlântica abriga uma impressionante variedade de vida selvagem.

A

driano Chiarello, biólogo brasileiro flecte o pescoço à retaguarda como um professor de ioga, espreitando para os ramos mais altos de uma árvore, 30 metros acima do local onde se encontrava. Algures nas alturas, entre a copa, escondidos do olhar humano, movem-se uma fêmea da preguiça-de-três-dedos e a sua cria de oito meses. Embora o sinal de rádio da coleira no pescoço da mãe permitisse guiar Chiarello até à base desta árvore, a verdade é que a própria tecnologia tem limitações: agora, o biólogo vai ter de descobrir os dois animais à maneira antiga isto é, usando unicamente os olhos. “E são mesmo preguiçosas: é que passam horas e horas sentadas, dormindo, imóveis. É isso que fazem 80 a 90% do dia: nada.” O biólogo limpa os olhos, abana a cabeça e, depois, volta a assumir a sua pose de grua, igual à dos praticantes de ioga. “Espere aí. Talvez o meu insulto tenha resultado. Olhe ali, sobre a sua cabeça. Ela está agarrada a um ramo.” Sigo com o olhar o dedo de Chiarello e avisto o rosto castanho escuro da mãe preguiça, no meio da folhagem. Ela esconde o rosto debaixo do braço e, de repente, os meus olhos detectam apenas um enorme coco peludo. “Embora sejam animais grandes, estão muito bem camuflados. E ... ena! Está a mover-se!” Para Chiarello, esta visão de uma preguiça em movimentos é uma experiência importante, uns momentos biológicos trazendo consigo, conhecimento mais aprofundado. A cria de preguiça emerge dos braços da mãe. Trepa-lhe pelas costas e, depois, num gesto brincalhão — e muito preguiçoso — dá uma bofetada no rosto materno. A mãe nada faz em resposta, nem brincam nem se zangam com os filhotes. Em vez disso, à velocidade de uma tartaruga do deserto, a mãe estende um braço e puxa na sua direcção um ramo ali próximo, mordiscando as folhas tenrras. Alunos de pós-graduação de Chiarello não param de anotar relatando. Pescoços esticados para que não perdarmos de vista as duas preguiças, seguimo-las à medida que elas se deslocam, em busca das folhas. Surpreendentemente, apesar dos seus 7 kg,

a mãe e a cria conseguem agarrar-se a ramos finos como um lápis, balouçando-se como estranhos frutos com vida própria. A “actriz principal” de Chiarello, nome que o biólogo carinhosamente pôs à mãe preguiça, é estrela dos estudos, parcialmente financiado pela National Geographic Society e dedicado a mamíferos em perigo de extinção do Parque Municipal São Lourenço, um pequeno troço da florest a atlântica Brasileira — ou mata Atlântica, como os brasileiros lhe nomearam. À semelhança de muitos mamíferos que aqui vivem, as preguiças-de-três-dedos perderam de forma gradual enormes extensões do seu habitat primitivo desde que os primeiros navegadores portugueses desembarcaram nas praias brasileiras em Abril do ano 1500. Nessa época, crê-se que a mata Atlântica abrangesse cerca de 1,4 milhões de quilómetros quadrados — ou seja, aproximadamente um quinto da actual floresta amazónica, situada 800 km a noroeste. Esta floresta tropical envolvia a orla costeira desde a protuberância, semelhante a um focinho, que o país forma no que hoje é o estado do Rio Grande do Norte até mais à fronteira com o Uruguai. Em certos lugares, a floresta prolongava-se 500 km ou mais terra adentro, incluindo uma diversidade de habitats como os mangais costeiros e os maciços montanhosos, com uma altitude média de 900m, cobertos de árvores de folha de tipo largo perene e de coníferas. Em jeito de premonição, uma das primeiras acções dos marinheiros portugueses foi o derrube de uma árvore, com a qual construíram uma cruz e rezaram missa, reivindicando a terra e as suas florestas para o seu Deus e o seu rei. Durante os 500 anos que se seguiram, muitas mais árvores foram abatidas e a floresta transformou-se em cidades, minas e campos plantados com cana-de-açúcar, café, cacau e os eucaliptos — todas as espécies introduzidas. Na actualidade, cerca de 70% da população brasileira vive na região outrora ocupada pela mata Atlântica, como grande parte dos habitantes concentra-se em duas das três maiores cidades da América do Sul: São Paulo como tambem Rio de Janeiro.

Atendendo a esta história de destruição, não surpreende que hoje restem menos de 7% da antiga floresta atlântica, na sua maioria fragmentos isolados, alguns de dimensão inferior a três hectares. A organização Conservation International classifica a mata Atlântica brasileira na lista dos cinco “lugares mais ameaçados”, as regiões do planeta cujo ambiente corre perigo e com níveis mais elevados de endemismo, ou seja, possuidoras de espécies inexistentes em outra parte do planeta terra. Porém, mesmo nestes fragmentos, muitas das espécies únicas da mata Atlântica — entre as quais algumas das plantas e animais mais raros do mundo — conseguiram sobreviver. Uma delas é a preguiça-de-três-dedos. À semelhança de outros mamíferos encurralados em ilhas de floresta, no meio de um oceano de agricultura e construção, a preguiça parece condenada a reproduzir-se em consanguinidade, empobrecendo geneticamente e caminhando talvez para a extinção. “Pensamos que a variação genética das preguiças já diminuiu”, afirma Chiarello. “No passado, esta população estava ligada às do Sul da Bahia e às do Norte do Rio de Janeiro. No entanto, há pelo menos 50 anos que elas estão separadas!” Para determinar o nível de consanguinidade dos três grupos, uma das alunas de Chiarello, Srª.Paula Lara Ruiz, empreendeu um estudo do perfil genético do animal. Todavia, a determinação rigorosa das características particulares deste animal é uma pequena parte do projecto que Chiarello pretende desenvolver: à semelhança de outros biólogos, acompanham espécies na mata Atlântica, a sua visão tem um alcance maior. Chiarello e um grupo crescente de conservacionistas estão firmemente decididos a recuperar a mata Atlântica, voltando a ligar entre si um número tão grande quanto possível de fragmentos da exclusiva floresta. Quando ligar-mos as ilhas com as paisagens naturais por vias, de variados corredores de vegetação, cientistas acreditam que as florestas poderam ser parcialmente restauradas, tornando-se ai, então possível salvar da extinção muitas das muitas espécies. No essencial, estes corredores poderiam servir de passagem segura entre uma ilha e outra, permitindo o encontro e acasalamento de animais e aves pertencentes as populações isoladas. Desde a década de 1960 que esta ideia germina. Embora não existam provas definitivas de que os corredores permitem assegurar a sobrevivência de uma espécie,

estão actualmente a ser ensaiados em todo o mundo. Desde 1993, todos os anos, o Jardim Botânico supervisiona o plantio de 30 mil novos rebentos. “É evidente que é muito difícil”, observa. Para ter uma ideia do grau de destruição da floresta atlântica, basta olhar para os mapas da região. Em muitos deles, a floresta é representada por pontos de verde escuro no meio de extensões verdes claras e castanhas que correspondem à agricultura, ou de áreas vermelhas ocupadas pelas cidades. Em muitos lugares dos mapas, restam apenas raros pontinhos de verde escuro. Num desses pontinhos, a cerca de 100 km do Rio, encontro-me com a bióloga especialista em vida selvagem Marina Lapenta, membro da Associação do Mico-Leão-Dourado, no momento em que ela e o seu assistente procuram um grupo de micos-leão equipados com coleiras emissoras de rádio. O dito pontinho chama-se Reserva Biológica do Poço das Antas e abrange cerca de 5.500 ha, praticamente metade dos quais florestados. Estão em marcha planos para ligar a reserva a zonas florestadas nas fazendas vizinhas, através de corredores que quase duplicariam o habitat do mico-leão-dourado na região. A medida que vamos caminhando pelo meio de um emaranhado de trepadeiras, palmeiras espinhosas, árvores altas e esguias de folha larga — o tipo de árvores e de plantas que costumam crescer depois da destruição de uma floresta antiga. O seu assistente, Jadir Ramos, sintoniza as antenas do rádio numa frequência baixa, em busca de sinais dos micos-leão. Aproveitando a deixa, o ar envolve-se de repente com os assobios agudos, cacarejos e trilos dos micos-leão. Ao darem connosco, soltam um grito áspero de alarme e saltam de imediato para os ramos superiores das árvores, a tal velocidade que mais parecem gatos voadores. “Vão-se habituar à nossa presença”, sussurra Lapenta. “Mas estão nervosos porque vem aí outro grupo.” Ao longe, ouvimos os assobios e os cacarejos do outro grupo e os micos-leão viram-se para enfrentar o som. O macho mais velho salta para uma palmeira próxima, posicionando-se para defrontar o grupo desafiador, quando este se aproximar. “Estes encontros também servem para as fêmeas descobrirem parceiros”, explica Lapenta. “Às vezes um macho e uma fêmea partem juntos, formando um novo grupo.”


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JAGUAR O F antasma D A N O I T E

É o menos estudado de todos os grandes felinos. Se é verdade que os cientistas vão conhecendo melhor o Jaguar, não é menos verdade que continua a ser um alvo em movimento.

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m 1987, o México juntou-se finalmente aos países com legislação aprovada contra a captura de jaguares. Dez anos mais tarde, Rivera era contratado para participar num estudo ecológico conjuntamente realizado pela Universidade Autónoma Nacional do México, por um grupo privado conhecido como Unidos para a Conservação e por outros parceiros - além de desportistas acompanhados de guia, dispostos a pagar cerca de mil contos cada um para atirarem aos jaguares com dardos tranquilizantes. Depois de adormecidos, os animais receberam coleiras com emissor de rádio. A arte da cultura olmeca, que floresceu na América Central por volta de 1200 a.C., encontra-se inundada de representações de homens-jaguares. Depois da conquista dos Maias, as imagens dos jaguares, balam, que se cria serem a encarnação do sol nocturno debaixo da terra, passaram a guardar túmulos, templos e tronos. Os nobres vestiam-se com as peles amarelas dos grandes felinos e houve governantes, como Jaguar de Fumo, que adoptaram o nome do senhor da selva. Os vizinhos aztecas criaram sociedades do jaguar, uma elite de guerreiros denominados Cavaleiros do Jaguar. Mantendo a tradição dos sacrifícios humanos, tinham altares em forma de cabeça de jaguar, onde eram depositados os corações, ainda palpitantes, das vítimas. A palavra “jaguar” é originária da Amazónia: os índios Guarani referiam-se a uma fera — o yaguara — que matava com um salto. Os jaguares costumam matar as presas desta maneira, dando uma dentada no crânio ou no pescoço em lugar de estrangularem as vítimas com um aperto na garganta, como faz a maioria dos grandes felinos. El tigre, como os latino-americanos lhe cha­­­­­­­­mam, rica é o predador mais poderoso da Amé­ Latina, alguns machos medem 2,5 metros do focinho até à ponta da cauda e pesam mais de 140 quilos. Se alguém os encurralar ou ferir, ou se ameaçar uma fêmea com crias, estas feras podem rasgar o nosso corpo. À parte estas situações, os jaguares raramente atacam os seres humanos, apesar de todas as lendas e simbologia artística em contrário. Os jaguares são muito solitários, deambulando sobretudo entre o pôr do Sol e a alvorada. Preferem habitats com vegetação densa, como as florestas das terras baixas, o arvoredo rasteiro na margem dos rios e as zonas pantanosas. Ninguém tem uma ideia aproximada de quantos jaguares realmente existem – talvez centenas, talvez milhares. Alguns têm melanismo, apresentando tonalidades de pêlo que vão do acastanhado ao completamente preto. Na Venezuela, ouve-se falar em tigres mariposos, ou tigres-borboleta, cujas rosetas de manchas pretas são elipses delicadas em forma de um par de asas, dando a estes jaguares uma aparência fora do vulgar.

E speran ç a Apesar de terem perdido 2/3 do território na América Central e 1/3 na América do Sul, os jaguares estão menos ameaçados do que a maioria dos grandes felinos. Ainda têm alguns bastiões na bacia do Amazonas e no Pantanal, o vasto pântano partilhado pelo Brasil, Bolívia e Paraguai. Existem áreas protegidas para os jaguares, mas muitas dessas reservas são pequenas e isoladas. PRIMORDIAL Criar corredores verdes que unam entre si os refúgios.

Os habitats dos jaguares estão a diminuir rapidamente; a reprodução da espécie decaiu mais de um terço na América do Sul e pelo menos dois terços no México e na restante América Central. Com a chegada dos colonizadores, vieram novas espécies de animais domesticados e as armas de fogo. Na linha da frente — sempre em expansão — o jaguar era rotulado como inimigo a abater. A procura de casacos de pele de felino com manchas começou logo em meados do século XIX. Na América Latina, os preços da pele de jaguar (e de três outros felinos tropicais mais pequenos, os ocelotes, os margaís e os ocelotes pequenos tigrados) foram subindo sem parar. Entre 1946 e 1966, foram expedidas a partir de Iquitos, no Peru, 12.700 peles de jaguar. O Brasil vendeu mais de 6 mil por ano, durante a segunda metade da década de 60. Entre 1968 e 1970, só os eua importaram 31.104. Os efectivos do jaguar foram caindo vertiginosamente, até que, em meados dos anos 70, entrava em vigor um acordo internacional para pôr termo ao comércio das peles de muitos felinos. Actualmente, o jaguar está oficialmente protegido em quase todos os países, mas tem de fazer frente à matança ilegal generalizada relacionada com a diminuição do seu habitat e com os conflitos por causa do gado.

Desde que as terras, selvagens continuem a existir, ha razão para nos sentirmos optimistas. Os grandiosos espaços verdes da Amazónia são o último baluarte desta espécie. Contudo, o jaguar atinge maiores dimensões, desenvolve-se em densidades mais elevadas e é mais visível na região do Pantanal, a bacia hidrográfica que se estende pelos estados brasileiros de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul até parte do território da Bolívia e do Paraguai. De seu nome completo Oélio Falcão Arruda Fião é o representante local de uma agência federal de protecção à vida selvagem. De tempos a tempos, enfia a cabeça num balde e ruge, fazendo com que o som se eleve acima dos caniços, das flores de algodão selvagem e dos carandás. A imitação da voz do jaguar macho é um velho truque dos caçadores que, porém, costumam tradicionalmente fazê-lo esfregando os dedos ao longo de uma taramela, introduzida numa cabaça oca ou num tambor. Acredita-se que os chamamentos dos jaguares, bem como as marcas de garras nas árvores e as raspadelas no chão com odor a urina, se relacionam com o território. Dependendo do terreno e dos alimentos disponíveis, o território marcado por um macho abrange 25 a 155km2, sobrepondo--se a vários territórios mais pequenos usados pelas fêmeas e crias. Normalmente duas, estas permanecem com as mães entre um

ano e meio a dois. Dentro do respectivo território, o jaguar tem tendência para caçar numa pequena área durante alguns dias, passando depois a outra. Pretende-se não só evitar que os jaguares e os pumas se extingam mas também aproveitar a simpatia das pessoas relativamente a estas espécies mais conhecidas, para salvar outras criaturas menos famosas. Embora em vias de extinção, o crocodilo de Morelet talvez não seja a espécie que mais faz vibrar os políticos, mas o Governo de Belize afectou 475km2 à nova Reserva de Vida Selvagem da Bacia de Cockscomb com o objectivo específico de preservar os jaguares. E os esforços feitos para preservar o território do pequeno ouriço de cauda negra poderão não ter grande êxito, mas a Sociedade para a Conservação da Vida Selvagem recebeu recentemente um milhão de dólares para ajudar uma espécie em particular. Doador: o fabricante de automóveis que beneficia do nome e prestígio desse animal — Jaguar. Douglas H. Chadwick

M ATA R PA R A S A LVA R J O H N W A M S L E Y, E A R T H S A N C T U A R I E S A abordagem suscita críticas, mas obtém resultados. “

A

doro gatos, mas não consigo comer um inteiro.” Este é o tipo de coisas que John Wamsley gosta de dizer para arreliar os seus críticos. Este homem sem rodeios é bruto com os felinos, mas a sua atitude provém do amor que ele sente pela fauna selvagem australiana, que lutou por salvar durante a sua vida. As espécies invasoras erradicaram os animais nativos das traseiras da casa da sua infância. “Era um local maravilhoso”, afirma ele. Essa

S A LTA D O R ANCESTRAL

“ Havia bandicutes, ratos-cangurus

e potorus por todo o lado. Quando começaram a desaparecer, ninguém quis saber. Achei que era minha missão fazer qualquer coisa” missão consistiu em comprar terra, vedar a entrada aos felinos selvagens, matar os animais invasores e reintroduzir os nativo — suma estratégia que outros estão agora a copiar. No seu primeiro refúgio para animais selvagens, Warrawong, perto de Adelaide, as espécies nativas voltaram a firmar-se. Wamsley fundou então a Earth Sanctuaries Ldt. (esl), a primeira empresa do seu género dedicada à conservação. Wamsley considera que os aspectos econó-micos ajudam os esforços da conservação. “Outros métodos dão-nos uma sensação de bem estar, mas não passam de fachada. Desta forma, temos resultados líquidos mensuráveis.

A esl tem tido imenso êxito. “Com efeito a abordagem de Wamsley ajudou a resgatar alguns dos animais em perigo de extinção na Austrália, nomeadamente o potoru-de-cauda-espessa, o bandicute-coelho e o numbate. Outros desenvolvem-se agora em mini-ecos-sistemas a salvo das espécies invasoras. O mais

recente parque da esl é perto de Sydney, e Wamsley planeia já uma nova operação. Espera conseguir converter 1% do interior australiano em terras sem felinos selvagens. “Farei isto até morrer”. Jennifer Steinberg Holland

Adivinhe o que saltava como um coelho, mas mastigava como um esquilo. Resposta: o Gomphos elkema, antecessor do coelho de há 55 milhões de anos, cujo fóssil foi encontrado na bacia de Nemegt (Mongólia). A descoberta reforça a teoria de que os roedores e os lagomorfos (o grupo que inclui coelhos e lebres) partilhavam um antepassado, que terá vivido no mesmo período em que os dinossauros se extinguiram. Tal como as lebres e os coelhos, o Gomphos elkema possuía longas patas traseiras para saltar. E os incisivos da frente encontrados no maxilar do fóssil assemelham-se aos dentes dos coelhos modernos, que crescem continuamente e se desgastam pela actividade roedora quase constante. No entanto, os molares do animal eram muito diferentes dos do coelho, diz Robert Asher, do Museu de História Natural de Berlim. “Tinham pontas e raízes como os molares de um ser humano ou de um esquilo.” Bastante grande, a cauda também se assemelhava mais à do esquilo do que à do coelho. Outra diferença entre o Gomphos elkema e o parente moderno: o crânio do fóssil sugere que o animal teria uma estrutura óssea do ouvido semelhante à dos roedores.


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NOVA ZELÂNDIA

PRESERVAR REGIÕES FRÁGEIS DA BIOSFERA

Textos de Neal Shea Fotografias de Stephen Alvarez

Abençoada por um clima generoso, afastada dos ataques da evolução continental, a vida na Nova Zelândia abrandou.

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a Nova Zelândia, evoluíram também o Anarhynchus frontalis, única ave no mundo com bico de ponta enviesada (para melhor descobrir insectos sob as pedras dos rápidos), o kea, papagaio de montanha que consegue, com a mesma facilidade, dilacerar o dorso de um carneiro ou retirar a borracha da janela de um carro, e a extinta Heteralocha acutirostris heteralocha, belíssimo pássaro azul-negro com barbeias cor de tangerina e um bico que difere entre machos e fêmeas — o dele robusto como o de um pica-pau, o dela mais fino e encurvado. As excentricidades abundam também entre os invertebrados. Estas ilhas geraram grilos sem asas, muitos dos quais munidos de patas traseiras cravejadas de espinhos que se elevam sobre a cabeça perante ameaças. Os machos possuem um par de defesas gigantescas para lutar. Há caracóis terrestres do tamanho de bolas de hóquei em patins, uma aranha que pendura o saco de ovos no tecto de grutas calcárias e - a mais paradoxal - uma mosca que não voa. Entre as mais de 150 espécies de minhocas endémicas (a maior das quais com mais de um metro de comprimento), há uma cuja luminescência é tão forte que, segundo se conta, um professor de zoologia leu uma palestra ajudado pela luz de uma só minhoca! Como pôde surgir um quadro tão singular nesta região? Na opinião dos biólogos que estudam a evolução, apresentam-se duas razões: a dimensão e o isolamento. A Nova Zelândia é o maior arquipélago oceânico do planeta e, também, o que fica mais distante de qualquer outra grande massa continental. A sua vasta superfície e a topografia variada ajudaram o processo de selecção natural a gerar resultados diversos. O isolamento terá estimulado, preservado e perpetuado esses resultados. A combinação destes factores fez da Nova Zelândia uma estufa de formação de espécies.

O território onde se desenrola este póquer genético separou-se há 80 milhões de anos do antigo supercont nente Gonduana e anda à deriva desde então. Durante esta solidão, passou por períodos de submersão, durante os quais emergiu apenas uma fieira de ilhasbaixas e pantanosas e periodicamente se for­maram montanhas. Vagueou entre os trópicos e o Pólo Sul e aguentou o gelo profundo das glaciações durante dezenas de milhares de anos. É admirável verificar que muitos dos animais primitivos ainda sobrevivem: as tuataras, semelhantes às iguanas, cujo metabolismo lento manteve um funcionamento silencioso enquanto a terra se erguia e se abatia em seu redor; as rãs primitivas sem orelhas e sem membranas entre os dedos e que não conseguem coaxar; e as lendárias moas — 11 espécies que abrangem os pequenos casuares de 20kg de peso até ao Dinornis giganteus de pescoço comprido, com mais de 250kg e 2m de altura de dorso, talvez a ave mais alta que alguma vez caminhou sobre a Terra. Os recém-chegados conseguiram atravessar a barreira oceânica voando ou flutuando. À excepção dos morcegos, mais nenhum mamífero conseguiu fazê-lo, ao contrário de milhares de aves, incluindo os antepassados do kiwi e do kakapo. Ao longo dos séculos, muitas das aves que aqui chegaram deixaram de voar perante a ausência de predadores que as perseguissem. Mais tarde, quando chegaram os seres humanos, um terço das aves da Nova Zelândia não voavam ou apresentavam alterações aerodinâmicas. Muitas espécies de vertebrados e invertebrados tinham-se transformado em gigantes.

Entre os herbívoros, os animais grandes processam os alimentos com mais eficiência do que os pequenos; logo, na ausência de outros factores (como a necessidade de escapar velozmente dos predadores rápidos), é melhor ser grande. Dos gorgulhos às aves aquáticas, espécie atrás de espécie seguiu o seu caminho, apropriando-se dos nichos ecológicos ocupados noutros locais pelos mamíferos: em lugar do veado, a moa; em lugar da vaca, o camão-takahoque come erva — e, em lugar do rato, os grilos que paradoxalmente não têm asas. Abençoada por um clima generoso, afastada dos ataques da evolução continental, a vida na Nova Zelândia abrandou. As espécies cresceramcomtranquilidade,reproduziram--se e transformaram-se em matusaléns de longevidade. Era bom de mais para durar. Por volta de 1300 d.C., o encanto quebrou-se. Atravessando de canoa o mesmo oceano que mantivera os outros mamíferos à distância, chegou um mamífero de pele macia. Embora existam provas de que os seres humanos estiveram aqui pelo menos mil anos antes esta segunda visita serviu para colonizar e para trazer ratos, cães, arpões e fogo. O impacte dos colonos polinésios foi imediato e catastrófico. Cem anos depois, as moas já estavam extintas. Algumas talvez tenham resistido até ao século XV, mas a viabilidade da espécie estava condenada. A sua morte tornou-se o exemplo da extinção, como o comprovam as palavras do canto maori: Ka ngaro i tengaro o te moa significa “perdido como a moa se perdeu”.

As outras aves que não voavam rapidamente se juntaram às moas nas panelas dos colonos e, pouco depois, à lista dos animais extintos. Privada destas presas, a águia de Haast, ave de rapina com três metros de envergadura de asa e garras do tamanho das de um tigre, seguiu o mesmo caminho. Menos de 500 anos após o desembarque dos polinésios, chegaram os europeus. Planeando criar a Grã-Bretanha do Sul, começaram a transformar o país numa combinação de quintas e parques de caça. Além das vacas e ovelhas que se tornariam mais tarde sinónimos da Nova Zelândia, introduziram-se com êxito dez espécies de veados e também um grande número de alces, na região chuvosa de Fiordland. Camurças austríacas e thars dos Himalaias foram soltos nos Alpes do Sul, onde se alimentaram de uma flora alpina única que nunca tinha sido sujeita à depredação de cascos e mandíbulas. Do vizinho do outro lado do mar da Tasmânia, a Austrália, vieram várias espécies de pequenos cangurus, além de sarigueias, que dinamizaram rotas de comércio de peles. Introduziram-se coelhos e lebres, seguidos de doninhas, arminhos e furões para os controlar quando o número aumentou em demasia. O país pagou um preço elevado por esta tentativa de controlo biológico. Ao intuir que as aves não voavam e faziam ninhos no solo, os mustelídeos perceberam que as poderiam caçar facilmente e ameaçaram gravemente as pouca:s aves grandes endémicas que restavam. O caso foi semelhante com as plantas endémicas: em grande parte do país, a floresta húmida nativa, composta por raros fetos gigantes, coníferas seculares e espessos tapetes de musgo, foi eliminada e substituída por uma flora híbrida caracterizada por carvalhos ingleses, pinheiros americanos e eucaliptos australianos. É provável que se tratasse da colonização ecológica mais abrangente e rápida do mundo.

Há locais onde ainda impera avelha ordem, como o cume de alguma montanha ou as ilhas costeiras. Temos de ir onde não chegaram os predadores. Cento e dez quilómetros a sul da ilha de Stewart, encontro uma peça viva desse mundo perdido. Aí, erguendo-se do oceano austral como um grupo de icebergs de granito, ficam as ilhas Snares, um dos cinco arquipélagos subantárcticos da Nova Zelândia. Este ecossistema, um dos menos alterados da Terra, possui também um conjunto muito próprio de particularidades - pinguins que se empoleiram em árvores e leões-marinhos que dormem nas clareiras da floresta. Embora estas manchas de terra possuam apenas 2,5km2 de área, diz-se que nelas nidificam tantas aves marinhas como em todas as Ilhas Britânicas. A Nova Zelândia é o centro mundial da biodiversidade das aves marinhas. Aqui reproduzem-se 84 espécies (quase um quarto das existentes em todo o mundo) e 36 são endémicas das zonas costeiras. Com uma área terrestre semelhante, as Ilhas Britânicas têm 24 espécies de aves marinhas e nenhuma delas é endémica. Nas ilhas Snares, a ave marinha mais comum é a pardela-preta, uma voadora impressio­ nante, na medida em que migra das ilhas onde se reproduz, no hemisfério sul, até às águas subárcticas entre o Japão e o Alasca, regressando de novo no ano seguinte. As aves das Snares fazem uma viagem de ida e volta de cerca de 24 mil quilómetros. São também mergulhadoras perfeitas, já que caçam peixes pequenos a profundidades de quase 12 metros. Os adultos viajam 1.800 km até às zonas de alimento abundante em viagens que levam 11 dias.

Tierra Média de Tolkien é como o fotógrafo Frans Lanting chama ao Fiordland, o maior parque nacional da Nova Zelândia. Quedas de água, véus de nuvens e bosques de faias conferem uma aura de mistério a esta região do sudoeste da ilha do sul. Os picos elevam-se 2.000m a partir do mar da Tasmânia, enfrentando massas de ar que “colidem com as montanhas e libertam dilúvios”, afirma o ecologista Alstair Jamieson. A taxa de precipitação anual é superior a 6,5m, um dos registos mais húmidos do planeta.


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S A LVA R O K A K A P O O PAPAGAIO QUE NAO SABE VOAR O kakapo é uma ave em perigo crítico de extinção, com uma população total de apenas 86 exemplares

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Refúgios insulares como as ilhas Snares, uns livres naturalmente de predadores outros libertos pelo esforço humano persistente, foram a salvação da flora e fauna endémicas da Nova Zelândia. Trezentas e trinta ilhas pontuam a linha costeira, além das numerosas ilhotas: 220 foram classificadas como reservas. As técnicas de controlo de predadores atingiram recentemente um nível de eficácia que tornou possível a gestão de áreas da superfície continental como ilhas ecológicas — um mero sonho há apenas duas décadas. Uma dessas ilhas situa-se no montanhoso Parque Nacional de Te Urewera, que reúne 212.672 hectares de floresta endémica perto da “barbatana” leste da ilha do Norte. Uma península com 770ha que entra pelo lago Waikaremoana adentro foi protegida contra ratos e arminhas graças à colocação de armadilhas na base, que capturam a maior parte dos predadores. O biólogo John McLennan radicou-se aqui há dez anos para estudar kiwis.

Na Nova Zelândia, as crianças aprendem duas histórias sobre pássaros. A primeira, cujas personagens são uma carriça, um gato e um faroleiro, passou-se há um século na ilha de Stephens, na ponta norte da ilha do Sul. A carriça era uma das quatro espécies de aves canoras do mundo que não voavam (duas das outras eram também carriças da Nova Zelândia). O gato apanhou vários destes pequenos pássaros castanhos e levou-os até à casa do faroleiro. Mais tarde, este homem enviou-os a museus nacionais e estrangeiros para identificação. Quando deram um nome à carriça, já não havia mais nenhuma para caçar. A carriça de Lyall extinguira-se. Servindo de linha de demarcação entre invasores e espécies nativas, uma vedação protege o Santuário de Vida Selvagem de Karori, em Wellington, onde os seres humanos precisam de convite para entrar. A encarregada de conservação Raewyn Empson esfrega o focinho de um furão contra o de um cão de busca, que chefiará a caça aos intrusos. O santuário é um dos refúgios vitais para as espécies ameaçadas da Nova Zelândia.

A outra história tem como protagonistas um pisco, um guarda-florestal e uma fábrica de cerveja. Em 1979, a população de Petroica traversi era apenas de cinco aves, das quais apenas uma fêmea, chamada Old Blue com capacidade de reprodução. Quando era criança, Merton entregara pintassilgos acabados de nascer aos cuidados da canária da sua avó. Por isso, tentou um truque semelhante com estes animais: entregou ovos da Old Blue a chapins (outro tipo de pisco) para eles incubarem. Resultou. Os chapins aceitaram os ovos e a Old Blue continuou a fazer ninhos e a depositar mais ovos. Quando começou a reproduzir-se, Old Blue já tinha nove anos, apesar de estas aves não viverem mais do que cinco ou seis anos normalmente. Ao morrer, com 13 anos, gerara 11 crias e a sua morte foi anunciada no Parlamento da Nova Zelândia. Old Blue salvara a espécie.

E a fábrica de cerveja? Embora se dediquem à agricultura e à pesca e não sejam o género de pessoas que se apaixonam por uma ave ameaçada, os habitantes da ilha de Chatham adoptaram a Petroica traversi como mascote. Deram o nome da ave à cerveja local, a uma companhia de navegação e a uma equipa de râguebi. A conservação na Nova Zelândia continuará a ser uma mistura dos dois. Esperamos que as vitórias vão superando as derrotas na batalha pela ecologia. Talvez um dia os kakapos possam regressar a alguns dos seus locais antigos, encontrando novas casas nas ilhas grandes. Gosto de pensar que isso é possível e imagino uma criança a acordar ao som de gritos distantes, sentindo o pulsar dos tempos antigos.

O KEA O papagaio da Nova Zelândia (Nestor notabilis), chamado ainda de kea, é uma ave da ordem Psittaciformes, família Strigopidae. Mede, em média, 48 cm de comprimento. Alimenta-se principalmente de brotos e folhas tenras e, na primavera, lambe o néctar das flores. Come também os insetos e larvas que encontram no chão e é necrófago, isto é, alimenta-se de carcaça de animais (carneiros). Ele vive em pequenos bandos e passa o verão nas montanhas. Se o inverno não for muito rigoroso, ele ficará aí o ano todo: é o único papagaio do mundo que pode viver na neve. É um animal brincalhão e cheio de curiosidade. É uma ave mal vista pelos criadores de carneiros da Nova Zelândia e Austrália. O carneiro é um animal considerado sagrado nesses países e o papagaio da Nova Zelândia é uma ave carniceira. O extermínio por parte dos criadores de carneiro, que a consideram “matadora de carneiros”, põe em risco a sobrevivência da espécie.

averá ave mais estranhado que o kakapo, o papagaio mais pesado do mundo e o único que não voa? Com apenas 86 indivíduos, a espécie está virtualmente extinta, embora os investigadores não desistam de salvar esta ave. Dos kiwis (à esquerda) aos pinguins, muitos animais endémicos da nova zelândia lutam contra a extinção. O kakapo é um papagaio de constituição robusta que pode medir até 60 cm de altura e pesar entre 3 a 4 quilos. As asas são atrofiadas e pequenas e servem apenas como balanço quando estas aves circulam entre os galhos de árvores. Outra característica destes papagaios é o seu odor intenso, descrito como uma mistura de flores e mel. Apesar de agradável ao nariz humano, este odor provou ser uma enorme desvantagem para a espécie em relação aos seus predadores. Quando em perigo, o kakapo fica paralisado à espera que a sua camuflagem o proteja dos predadores, o que foi uma grande estratégia para evitar o seu grande inimigo, a águia gigante de Haast, mas que nada lhe valeu junto de mamíferos de olfato apurado. Os antepassados dos kakapos colonizaram a Nova Zelândia há milhões de anos atrás. Com o passar do tempo geológico, o kakapo ancestral, que deveria ser semelhante aos papagaios modernos, evoluiu de acordo com o seu ambiente, livre de predadores e sem mamíferos nativos à excepção de 3 espécies de morcego. Em consequência, tornaram-se maiores e mais pesados, perderam a capacidade de voar e ocuparam o nicho ecológico normalmente preenchido por pequenos mamíferos noturnos e herbívoros. Antes da chegada dos humanos ao arquipélago, o kakapo era uma espécie muito bem sucedida, com uma população de milhões de indivíduos, distribuida por ambas as ilhas principais da Nova Zelândia.

A chegada dos maori deu início ao declínio dos kakapos. Os maori caçavam esta espécie como fonte de comida fácil, uma vez que os kakapos paralisam com o perigo, mas também pelas suas penas usadas para decorar capas. As cabeças de kakapo eram também muito procuradas como ornamentação de brincos, depois de secas. Em paralelo com a caça, os cães e ratos-do-pacífico introduzidos pelos maori, causaram uma hecatombe na população de kakapos, perseguindo não só os adultos, mas principalmente ovos e juvenis.

No final do século XIX, a introdução planeada de mustelídeos como doninhas, toirões e arminhos, destinada a controlar a população de coelhos (outra espécie invasora), colocou os kakapos à beira da extinção. A situação era de tal forma crítica que o governo neozelandês declarou a Ilha Resolution, livre de espécies invasoras, como reserva natural em 1891. O curador era o naturalista Richard Henry, que deslocou cerca de 200 kakapos e um grupo de kiwis para a zona. Este esforço de conservação foi destruido cerca de 15 anos depois, quando um grupo de arminhos colonizou a ilha e matou toda a população de aves em perigo. Ao longo do século XX, houve várias tentativas de conservação semelhantes, todas frustradas pela presença de espécies invasoras. Hoje em dia (início de 2006), os 86 exemplares de kakapo vivem nas ilhas Chalky, e Stweart, ao largo da costa Sul da Nova Zelândia, todas caracterizadas pela abundância de rimus. Como as ilhas são constantemente vigiadas para impedir a invasão de mustelídeos, ratos e gatos selvagens, a população de kakapos tem-se mantido estável, apesar de inferior a 100 indivíduos. Para estimular a reprodução, os conservadores “falsificam” todos os anos a frutificação do rimu, introduzindo frutos artificialmente, numa tentativa de convencer os kakapos a iniciar a época de reprodução. Para evitar a consanguinidade, os machos sobreviventes são transferidos de ilha todos os anos e as linhagens de cada indivíduo são cuidadosamente anotadas. Apesar de extremamente crítico, o estado de conservação do kakapo tem vindo a melhorar e há planos para construir uma reserva capaz de suportar outros 100 indivíduos na Ilha do Sul.


S A LVA R O K I W I ave s í mbolo do pa í s Ovos são retirados da natureza e chocados artificialmente; depois, filhotes são protegidos.

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az apenas mil anos desde que os primeiros seres humanos chegaram à Nova Zelândia, e desde então três quartos das espécies nativas de aves do país desapareceram. O kiwi, ave nãovoadora que parecia ser mais um forte candidato à extinção, mas um projeto dedicado a cuidar dos filhotes em sua fase mais vulnerável parece ter chances de resgatá-los desse destino. Hugh Robertson, chefe do Programa de Recuperação do Kiwi do Departamento de Conservação da Nova Zelândia, estima que existiam 5 milhões de kiwis quando os colonos europeus chegaram ao país da Oceania em 1820. Hoje, restam apenas 75 mil exemplares — isso contando as cinco espécies diferentes da ave. “A culpa é dos humanos e dos predadores introduzidos por eles: furões, arminhos, doninhas, cães e gatos”, diz Jeremy Maguire, gerente da Reserva Willowbank,

Tanto no ar como em terra, as aves contam a história da Nova Zelândia. Isolado durante 80 milhões de anos, este refúgio foi colonizado pelas espécies de aves mais intrépidas que prosperam com a ausência de mamíferos. Muitas já desapareceram, vítimas dos mamíferos introduzidos. Alguns resistiram alimentando-se do néctar das árvores e de plantas em flor importadas pelos seres humanos.

PINGUINS SNARES Amigos de ocasião bomboleiam--se numa “residência” pouco comum — a floresta luxuriante das ilhas Snares, ao largo da ilha do sul. Estes pinguins das Snares só se reproduzem em pequenos fragmentos de terra, o maior dos quais mede cerca de 3km de comprimento. As visitas são permitidas apenas para fins científicos ou de conservação. Há 700 anos, antes da colonização da Nova Zelândia, os pinguins deveriam habitar as costas das ilhas principais. Hoje, ainda existem seis espécies no país, o que constitui a maior diversidade de pinguins do mundo. Entre invasores e espécies nativas, uma vedação protege o Santuário de Vida Selvagem de Karori, em Wellington, onde os seres humanos precisam de convite para entrar.

que fica próxima à cidade de Christchurch. Duas das espécies de kiwi têm menos de 300 indivíduos cada uma. A situação se tornou tão crítica porque quase não havia mamíferos terrestres na Nova Zelândia antes da chegada dos colonizadores. Sem predadores, os kiwis perderam a capacidade de voar e se adaptaram ao solo, ficando vulneráveis a predadores estrangeiros. Faro aguçado. Os kiwis comem insetos, têm olfato muito aguçado e, por não voarem mais, suas penas lembram maispêlos do que a plumagem típica das aves. Seus ossos também são maciços, ao contrário dos ossos ocos de muitas aves. Os adultos pesam pelo menos 1kg e conseguem se defender da maioria dos predadores, mas os filhotes são praticamente indefesos. Calcula-se que apenas 1 em cada 20 kiwis conseguem chegar

a um ano de idade. É por isso que o governo neozelandês decidiu recrutar comunidades locais, organizações não-­ -governamentais e empresas para tentar proteger as aves até que elas fiquem menos vulneráveis. No plano, apelidado de Operação Ovo no Ninho, os ovos são retirados da natureza e incubados em laboratório. Depois, os recém-nascidos são levados a áreas protegidas, muitas das quais em ilhas isoladas onde não há predadores. Ficam lá até completar um ano e depois são levadas para o local onde seus ovos foram achados. O programa começou em 1994, mas demorou até alcançar a maturidade. O país deve comemorar uma marca significativa no começo de 2008, com o nascimento do milésimo filhote. As aves vivem em casais monogâmicos pela vida toda e é o macho que choca os ovos.


P RÓX I M A E DIÇ ÃO

BORBOLETAS A Borboleta é o símbolo da alma, pois da mesma forma que esta abandona a crisálida para voar, o espírito também se liberta do corpo físico para ganhar espaço infinito.


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