6749/010.013 Finalistas Mestrado em Arte Multimédia da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa 30 MAIO — 27 JULHO 2013 — Plataforma Revólver
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O perfume da passagem do tempo «A arte é uma língua em si mesma, é um idioma à parte. Ninguém é capaz de falar sobre ela. E para quê falar sobre ela? Miremo-la.» — Francis Bacon in Franck Maubert, Conversations avec Francis Bacon. Nas últimas décadas, a rápida expansão do campo criativo da arte multimédia incorporando uma vasta série de variantes híbridas (para nomear algumas possibilidades: Ambientes Interativos, Animação, Audiovisuais, Fotografia e Performance/Instalação...), tem sido uma das principais zonas de interesse e atenção dos observadores de arte contemporânea, teóricos e curadores. O termo arte multimédia diferencia-se ele próprio e pode ser visto como — new art —, em oposição à pintura e à escultura entendidas como arte tradicional. A crescente preocupação com o média fez sobresair e destacar muita da atual arte contemporânea, por consequência diversas universidades de arte oferecem licenciaturas em arte multimédia e um crescente número de mestrados emergiu internacionalmente. A exposição 6749/010.013 é o resultado prático do Mestrado de Arte Multimédia da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, referente ao ano letivo 2010-2013. A Plataforma Revólver tem o prazer de apresentar nove dos finalistas do Mestrado (Ana Filipa Garcia, Anabela Bravo, Conceição Abreu, Fernando Fadigas, Filipa Cordeiro, Luísa Baeta, Paula Nobre, Sandra Henriques e Teresa Cortez) e, sente que mais que estabelecer uma curadoria, antes, terá de se posicionar enquanto interlocutor em relação ao público, de forma a deixar transparente e perceptível a exposição 6749/010.013 que se pretende, envolva o público fazendo-o interagir com as obras apresentadas. Nesse sentido, interessa compreender a multimédia enquanto linguagem artística; todos nós sabemos o que é a arte multimédia mas na verdade a maioria não sabe. Assim, decidi procurar a origem da arte multimédia, retrocedendo até à primeira parte das coisas, até à célula mãe e, inspirado pela «história da cultura», recuei ao prelúdio da modernidade (sabe-se que as origens da new media art podem ser traçadas com a invenção do processo fotográfico no fim do século XIX...) e a Baudelaire: recordei-me do último poema
de Les Fleurs du Mal: “Le voyage”. “O Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l’ancre!”. É a última viagem: a morte. A sua meta: o novo. «Au fond de l'Inconnu pour trouver du Nouveau!». É o prelúdio da modernidade! A arte começava a questionar a sua tradicional separação da vida e procurava deixar de ser inseparável da utilidade, desejando unir os artistas à indústria; Baudelaire, proclama que a arte é inseparável da utilidade pelo que deverá fazer do Novo o seu principal valor. O desenvolvimento industrial — no século XIX — deitará por terra o estandarte da «Arte pela Arte» que tentava imunizar a arte frente ao desenvolvimento da técnica; é o desenvolvimento industrial que emancipará a forma de construir da arte (tal como no século XVI as ciências emanciparam a filosofia). Primeiro, foi a arquitetura que se tornou dominante na construção da engenharia (na materialização de edifícios), seguiu-se a «fotografia» como forma artística da reprodução da natureza. Na minha procura, até à última propriedade, indo à modernidade, — pode ser que não tenha razão — encontrei a pista que ansiava encontrar, do aparecimento da fotografia (a origem da média arte) e, que procurava para obter a percepção da descendência ancestral da arte multimédia. Avanço agora para a fase seguinte, aquela que vem depois da percepção: a definição de arte multimédia. Segundo a Enciclopédia Livre (Wikipedia), artistas multimédia são artistas contemporâneos que utilizam uma grande variedade de meios para comunicar a sua arte. Arte multimédia inclui, por definição, mais do que um meio, portanto, artistas multimédia usarão as artes visuais em combinação com o som, imagens em movimento, e outros meios. A arte pode assumir a forma de instalação, objetos encontrados apresentados no contexto artístico, ou escultura cinética, entre outros. Arte multimédia também envolve frequentemente outros sentidos além da visão, como o tato, a audição, ou o olfato. A arte multimédia também pode mover-se, ocupar tempo, ou desenvolver-se ao longo do tempo, ao invés de permanecer estática como os media tradicionais. Outra característica frequente de obras de arte multimédia é o uso de tecnologia
avançada, como o som, o vídeo, a animação e a interatividade gerados por meios digitais. Para terminar, resta-me falar da exposição 6749 /010.013 na plenitude mais simples da sua multisensorial manifestação. A exposição apresenta o potencial comunicacional multimédia e percorre uma grande diversidade de perspectivas artisticas individuais e métodos de trabalho adquiridos ao longo da formação académica dos nove finalistas participantes. Victor Pinto da Fonseca
6749/010.013 O título escolhido para a exposição recupera o código de uma contingência que juntou nove artistas num tempo e num lugar, voltando a juntá-los na contingência de outro tempo e outro lugar. Ainda que nada esclareça sobre os enigmas trazidos por cada autor a esta exposição, o código é um sistema convencionado de sinais reconhecíveis e por isso define, como propõe Roman Jakobson, o sistema em que eles se revelam e o título anuncia. O primeiro tempo corresponde aos anos lectivos de 2010 a 2013 (010.013) e o primeiro lugar é a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, mais concretamente o Mestrado de Arte Multimédia da mesma faculdade (6749). O segundo tempo é o tempo da exposição destes nove artistas, agora Mestres, que concluíram com sucesso as suas investigações teórico-artísticas, sendo o segundo lugar a Plataforma Revólver que, pela segunda vez e no que à faculdade diz respeito, acolhe um projecto desta natureza. A Era dos Falsos Profetas, de Filipa Cordeiro, é o título de um conjunto de peças realizadas por diversos processos de apropriação, entre 2010 e 2012, no que a autora designa por uma expedição arqueológica à banalidade de um quotidiano imobilizado na sua contínua e aparente mudança, onde o nada acontece como não-acontecimento nas localidades colonizadas (deslocalizadas) pela cultura global. É na procura dos indícios das origens sem história, mas antropologicamente significantes, que a artista se torna arqueóloga, ser da linguagem que só nela existe para reorganizar os fragmentos do mundo — as suas ficções — ficcionando-o a partir de uma subjectividade (a sua) que o integra e lhe imprime a estranheza no que lhe é familiar. Nessas sucessivas operações de (re-)significação, o movimento é o da deslocalização das imagens e das palavras que pairam
sem aqui e sem agora, significantes flutuantes, como os entendeu Lévi-Strauss, à procura de um lugar, i.e., de uma significação. Mas, tal como as que a antecedem ou que com ela coexistem, essa significação, voluntariamente posta em causa enquanto verdade ou milagre convencionalmente operados pelas práticas artísticas, é ainda ironizada na frase que intitula o conjunto de peças presentes na exposição. A Era dos Falsos Profetas é fundamentalmente um convite ao abandono das falsas profecias que sustentam o estado do mundo e um convite à errância pela dimensão poética da sua banalidade. Nas Asas de um Colibri intitula o vídeo de Ana Filipa Garcia, construído a partir de um filme caseiro, em Super 8, do casamento dos pais e das espectativas mantidas pela sua invisibilidade no tempo assombrado do presente. Dividido em três capítulos, o vídeo associa a nitidez do que se pretende fetiche à indeterminação do que só pode aparecer como fantasmagoria e que nada mais é do que a própria realidade. É assim que o desenrolar da película de uma bobina acompanhado pela cadência do bater de um coração, que é afinal o som produzido pelo projector a trabalhar, convive com a imagem impossível do casamento que é o que na imagem não se mostra, ou o que ela não mostra, o para-além-de-si, o que a afasta de si para que ela possa ser o que é, a différance teorizada por Jacques Derrida que, neste vídeo, se manifesta nos espectadores que assistem às imagens ausentes e em todas as perdas a que elas aludem, apenas pressentidas na sua errância sempre temporariamente alojada numa significação provisória. Se dar a ver o que não se vê é o primeiro desígnio da imagem, a invisibilidade e a ausência são o que ela encena também na soturnidade do voo onírico que acontece entre a casa e a impermanência dos lugares imaginados e de novo a volta a casa por ser ela que abriga o devaneio, nos termos de Bachelard, e é a ela que se volta para revisitar a dimensão onírica do que aí permanece, feita de lembranças e desejos, fantasmas e fantasias. Estar entre é estar em movimento, não seguir com os olhos o voo do colibri mas ser o colibri que voa, esse pássaro da fantasia, cujas asas batem tão rapidamente que deixam de se ver, mantendo-o parado no ar ou deslocando-o a uma velocidade imperceptível que o torna invisível no seu voo. É ele que Ana Filipa Garcia usa como metáfora num filme que conta a história de uma
história e o que a elas falta para poder ser contada como a história a que assistimos. Numa discreta ressonância do poema homónimo de Sá-Carneiro, Teresa Cortez escolheu Quase para título da sua peça site-specific, uma interminável animação instalada no espaço a que se propaga fazendo com que entrar no espaço implique estar dentro do desenho ouvindo-o a fazer-se no som do lápis que risca sobre a textura das paredes. Quase é sempre presente e o presente é o tempo de uma obra que imperceptivelmente se renova perante os nossos olhos incapazes de reconstituir um princípio e um fim, reféns de um entretanto que é o infinito do presente e o infinito do espaço que o movimento vai criando em cada traço, como é próprio do rizoma, tal como o definiram Deleuze e Guattari. Nesse sentido, o espaço é tanto o desenho em movimento como o movimento que o desenho lhe imprime em todas as direcções, animando-o (entretanto) num ritmo de ruídos gráficos que o som amplifica no intervalo entre as imagens (entre-tanto). Ser presente é assim entrar no infinito da imagem que se anima (um organismo quase), fazendo parte do movimento (da renovação) que ele imprime ao espaço. E se entretanto a imagem é a segunda pele da parede, é pelo intervalo entre-tanto que o observador se esgueira para ser presente ao acto da sua unificação. «Quase o princípio e o fim — quase a expansão ...» é um verso do poema de Sá-Carneiro que Teresa Cortez utiliza como epígrafe de um dos capítulos da sua dissertação. Tão relevantes como o que enunciam são as reticências que ligam todos os versos deste poema, ou os de Walt Whitman, que a autora também convoca no seu trabalho. Porque neste contexto elas são simultaneamente a marca do infinito do sentido como o sinal gráfico de tudo o que fica por dizer. Sem Pés nem Cabeça e Corpo de Imagem são as duas peças que Sandra Henriques selecionou de um imenso conjunto de Experiências genericamente intitulado A Árvore dos Estapafúrdios, numa reminiscência da série televisiva que via na sua infância. No argumento destas peças, um vídeo e duas fotografias impressas em papel vegetal, a existência de um corpo é entendida como uma passagem à qual um ininterrupto movimento imprime três estádios: formação, transformação e destruição. Mas o próprio corpo é aqui considerado como uma pele, sendo a pele um corpo de imagem que existe na estratificação das suas imagens. Quando, no processo de transformação,
as imagens são excessivas, o corpo fica exposto a um processo de entropia que o desestratifica até ele se converter, por um máximo de acumulação, num sem corpo — matéria indiferenciada, desclassificada, informe, como Bataille a denomina, inominável, nas palavras de Beckett, para referir a turbulência que impede a correspondência entre um significante e um corpo, pondo em causa todos os nomes e fazendo-nos duvidar da existência de todos os corpos. Imprevisibilidade, descontrolo, entropia e excesso são os quatro conceitos que operacionalizam estas peças nas quais o corpo, tendendo para a desordem do que não tem nome ou forma, se dilui na sua matéria / imagem. Um sem corpo, Sem Pés nem Cabeça, onde as imagens, no tempo de um frame, desfilam à velocidade de 25 frames por segundo ou, como acontece em Corpo de Imagem, um corpo esmagado de um lagarto, de um pombo ou de pimentos assados, que permanece suspenso e remendado nas várias imagens que o reconstituem, dificilmente reconhecível, quase desclassificado, quase inominável. Janela I e Rio são duas das quatro peças que Luísa Baeta realizou no âmbito do Mestrado, às quais deu o título genérico Long Piece para se interrogar sobre o que é longo no tempo de uma imagem. O lugar é uma casa de família e um rio, filmados ao longo de dois anos. A interrogação estrutura-se em torno das operações sobre a imagem (vídeo e fotografia) e do tempo que ela cria, que é o tempo da memória, o tempo de um momento que lhe é irredutível por ser fundamentalmente o conjunto de sensações que provoca no observador. A partir das três figuras do esquecimento enunciadas por Marc Augé: o retorno (neste caso, a um lugar), a suspensão (do tempo contido nos planos do vídeo e nas fotografias, mas também o tempo das gerações numa família) e o recomeço (da relação com o lugar e a sua imagem), Luísa Baeta faz do tempo um palimpsesto de espaços e do tempo longo um tempo sintético onde a extensão do espaço se transforma em densidade temporal, por sua vez alongada na espacialidade da imagem actualizada no tempo em que nos convoca. O tempo tanto é o da fotografia que surge como um intruso na extensão da imagem vídeo e na cadência da sua repetição, como é uma subtil mudança nesta imagem, quase sempre surpreendida tarde demais. É o tempo real, o tempo das horas do dia e da sua
acção sobre a paisagem e os lugares, o tempo vivido da contemplação, eliminadas que são as razões da velocidade e da acção, o tempo interminável. A imagem é esquecimento do tempo que passa para poder ser recordação do tempo que foi e nela está contido. E é preciso fechar os olhos para continuar a vê-la, para fugir à cegueira do que se olha insistentemente e se deixa de ver, como acontece em Janela I. Símbolo da passagem do tempo, o rio não consente que nos banhemos duas vezes nas mesmas águas. Mas no tempo de Rio, um tempo de águas paradas, a paisagem escondida pelo nevoeiro é a paisagem do tempo longo, a paisagem que se imagina ouvindo o som dos seus tempos e que subitamente emerge como uma aparição para a ele voltar imperceptivelmente, até começar tudo de novo. Paula Nobre expõe um conjunto de fotografias de uma longa série produzida nos fins-de-semana ao longo de dezoito meses consecutivos, a que deu o título Lugares-comuns: a Fotografia como lugar de afectos. Nesta obra, o artista é entendido como um semiólogo que aborda a questão do sentido dos sistemas sígnicos a partir do afecto subjacente às artes de fazer o quotidiano, como as designa Michel de Certeau. Neste caso, essas artes consubstanciam-se nas práticas culinárias de uma família, aqui aparecendo como definidoras de um retrato do pai e da mãe, absorvidos nos gestos rotineiros da preparação dos alimentos, e de um lugar, a casa, o lugar-comum, o lugar comum a todos os que a habitam, que é tanto o lugar da comunicação e da partilha (o lugar que torna comum), como o da Fotografia (o lugar dos afectos) e das fantasmagorias da imagem fotográfica (o lugar dos sentidos e das sensações que eles arrastam) mas, sobretudo, o lugar do inconsciente óptico a que a câmara nos conduz, de que fala Walter Benjamin, o lugar que vem para re-significar a experiência do quotidiano, revelando-o a partir do que o coração sente e os olhos não vêem, ou se vêem a visão é incapaz de processar. Comum ao retrato e ao lugar na indiscernibilidade que os define — retrato e natureza-morta —, este lugar-comum é ainda o lugar da reduzida profundidade de campo e da ambiguidade do espaço abreviado no vestígio do gesto que o ocupou e onde os vestígios, para além das suas circunstâncias, resgatam para o plano dos sentidos e das sensações, agora do observador, os afectos de que é investido o quotidiano. For life to go Exactly as Planned intitula o conjunto
de peças que Anabela Bravo traz a esta exposição. Uma colecção de 610 dados, que teve início em Abril de 2011 sendo dada por terminada em Outubro de 2012, um catálogo concebido no formato de um dado cúbico que contém todos os outros, e um conjunto de 36 mapas obtidos por ligações de expressão linear tão arbitrárias como essenciais. Cada um dos dados foi lançado sobre uma folha de papel com dois metros de altura por três metros de comprimento para que o mapa pudesse ser rigoroso. O lugar em que cada dado caiu foi marcado com a cota que lhe corresponde e a face que ficou virada para cima. Cada mapa é o resultado de uma selecção do mapa maior (por local de compra, por cor, pela forma das faces, pelo peso, pelo tamanho do lado maior, pelo tipo de material), num total de trinta e seis mapas (trinta e seis desenhos ou trinta e seis padrões), resultantes da ligação de cada ponto a todos os outros, segundo os princípios de conexão e heterogeneidade esclarecidos por Deleuze e Guattari no contexto da definição de rizoma. É um desses mapas desenhado a grafite na parede que vemos agora, bem como a colecção, à qual foram apenas subtraídos os dados utilizados na construção do mapa, e o catálogo. Acaso e jogo são os conceitos que tutelam esta obra, ambos convergentes num terceiro conceito — alea, proposto por Roger Caillois para designar o conjunto de jogos em que o poder de decisão do jogador é mínimo e o poder do acaso é máximo. No entendimento de uma produção artística que delega na experiência e no acaso os seus resultados, associando a colecção a um mapa ou a uma rede de informação que não a esgota, mesmo que caiba ao catálogo a função de a encerrar, no duplo sentido de terminar e conter, Anabela Bravo é o último termo da sua colecção, ela que é uma menina com uma líbido enorme que deseja apenas conquistar o mundo. Partindo do pressuposto que um agradecimento é simultaneamente um acto de reconhecimento e de gratidão, em meu nome e em nome da faculdade, resta-me agradecer a este grupo de artistas, ao qual se juntam Conceição Abreu e Fernando Fadigas, a qualidade do trabalho que desenvolveram e, talvez mais importante que isso, a qualidade humana com que souberam habitar o código 6749/010.013. M. João Gamito
SUBJECTIVIDADE E LUGAR A série de fotografias que Conceição Abreu aqui apresenta centra-se na investigação em torno do lugar, entendido como criação e recriação da memória de lugares, e da experiência vivida nos lugares, a partir do que nos é dado a ver. A fotografia de um dado lugar remete sempre para um espaço objectivo; o lugar efectivamente percorrido, testemunhado e registado. Contudo, a origem destas imagens — stills a partir do registo vídeo tomado em deslocação, de que resulta a desfocagem do primeiro plano e o arrastamento dos planos seguintes —, bem como a sua natureza — paisagem árida, monótona, de espaços abertos, desprovida de elementos reconhecíveis, ou marcos identitários —, coloca particular ênfase nesse processo de reconhecimento. As imagens apresentam um plano superior (o céu) e um plano inferior (a terra), separados por uma linha do horizonte situada abaixo do meio do rectângulo. Os poucos elementos acentuam a horizontalidade predominante e, desse modo, também o plano do concreto e próximo; o da localização do espaço objectivo, vivido (antes e agora: memória e registo). Buscamos o reconhecimento mas poucos objectos (ou marcos) na paisagem permitem localizar o lugar. A extrema semelhança das imagens — captadas no mesmo tempo e ponto de vista — dificultam esta tarefa. Resta-nos questionarmos a nossa relação com a natureza destas imagens que, ao ser elusiva, remete para a deslocação, para a viagem, e para a nossa própria jornada de identificação e reconhecimento. Como afirma Yi-Fu Tuan — autor a que Conceição Abreu recorreu na sua reflexão em torno deste trabalho —, o espaço subjectivo é o espaço daquilo a manifestar, lugar da expectativa e do desejo, do futuro, do devir, do mental, que corresponde ao aspecto “interno” da experiência e é simbolizado pelo eixo vertical que aponta o zénite bem como o submundo. Percorrer qualquer distância implica tempo, como diz Yi-Fu Tuan. A distância pertence ao espaço objectivo (o do tempo vivido), mas apenas até um certo limite — a partir do qual passa a pertencer ao tempo e ao espaço míticos. É neste cruzamento de vectores que melhor podemos entender este trabalho de Conceição Abreu: a vontade de situar-se no encontro entre o tempo objectivo do registo fotográfico e o da memória do espectador, o qual traz também o seu espaço subjectivo. É na distância que vai deste eixo vertical da subjectividade ao representado que se abre espaço para percorrer a curta distância até um lugar concreto (reconhecido)
ou, pelo contrário, para acentuar a distância ao que se vê, entrando assim no plano do mítico: aquilo que não pode ser conhecido mas que resulta do encontro (ou fusão) entre subjectividade e lugar. Fernanda Maio
UMA SIMPLES CASCA DE ÁRVORE Existem pessoas que são um buraco negro onde tudo cai sempre, sem nunca chegar a qualquer fundo. Existem pessoas feitas de ferro que enferrujam, mas não desistem de ser impermeáveis até se desfazerem em pó. Depois existem aqueles, poucos, que têm uma catedral que cresce para dentro, com os seus arcos em ogiva que ascendem ao ar rarefeito e as fundações que anseiam as escuras profundidades da terra. Por fora, estas pessoas são apenas uma simples e frágil casca de árvore. O vento e a água nunca os olharam como obstáculo e, às vezes, gostam de percorrer as suas catedrais invertidas. Aprendi com o Fernando que uma simples casca de árvore é o suficiente para deixar o mundo ecoar nos nossos vazios. Aprendi que, no fundo dos espaços, existe uma arte invisível em potência. Aprendi que, afinal, os olhos podem enganar, e nem sempre refletem o vazio que nos anima ritmicamente. Continuo a aprender como deixar o mundo entrar pelos orifícios espiralados que me fizeram sofrer e aos quais, mesmo assim, eu não dei atenção. Os olhos engoliram-me. Das muitas horas de conversa com mantas nas pernas, ficaram umas quantas páginas que pouco dizem dos muitos anos dedicados às ondas invisíveis. Tornam, no entanto, mais claro o perscrutar da escuridão das profundezas: da terra e da água. Tal como Fernando Fadigas refere “O som é o lugar das fissuras que só se podem preencher com o vazio, o silêncio ou a água, as matérias sem forma.” A arte sonora é, para ele, o lugar de uma abolição formal procurada, onde podem ecoar os passos de um interior cheio de vontade que o Mundo possa ainda, e sempre, ser descoberto e redescoberto. Onde tanto Silêncio como Ruído possam construir paredes com as quais nos tenhamos de confrontar. A referência a Luigi Russolo e aos 100 anos do manifesto da Arte do Ruído deste futurista, são um dos exemplos da redescoberta de um Mundo pouco violado que o Fernando insiste em nos fazer crer, como possibilidade de uma arte não imagética. Rogério Taveira
ÍNDICE BIOGRÁFICO
p. 16–21 Ana Filipa Garcia: Coimbra, 1975. Artista portuguesa, 37 anos, Bacharel em Artes Plásticas na ESTGAD em 1996. Nesse ano realiza a sua primeira exposição colectiva de artes plásticas nas Caldas da Rainha, e integra o grupo de teatro experimental do Atelier de Arte e Expressão das Caldas, participando em alguns eventos. Em 2004 licencia-se em Pintura pela FBAUL. Dá formação de gravura num Workshop promovido pelo Projecto de Cooperação Criativa, Portugal, França, Palestina e Turquia, no espaço do Instituto Superior Politécnico de Tomar. Entre 2001 e 2009 frequenta o IPF (Instituto Português de Fotografia), a APAF (Associação Portuguesa de Fotografia), e o ETIC, e faz formação ao nível da fotografia e da escrita para multimédia e audiovisuais. Em 2002 participa no Caldas Latenight, com uma intervenção performativa do grupo ArteoKupa. Expõe para a 7ª Bienal de Artes Plásticas da Cidade do Montijo e para o V Concurso Nacional Francisco Wandschneider — ANJE, no Porto. Em 2004 integra o IV Festival Internacional de Gravura de Évora. Em 2007 participa na colectiva Gravura Contemporânea da FBAUL, na Sala do Veado, em Lisboa, e em 2010 no evento Gabinet D’Amateur, que tem lugar no mesmo espaço expositivo. Em 2013 finaliza o Mestrado em Arte Multimédia com especialização em Fotografia na FBAUL.
p. 22–23 Anabela Bravo: nasceu numa sexta-feira treze, em 1986, na então pacata cidade de Évora, com praticamente cinco quilos. Gorda e pequenina até entrar para a escola, Anabela cedo se meteu em relações inevitavelmente sem futuro, apenas pelo prazer da conquista. Aos 13 anos casou em segredo com Deus mas pediu o divórcio aos 20 para poder experimentar outros homens. Teve, como todos os adolescentes, a sua fase gótica com um guarda-roupa recheado de preto e, durante esses poucos anos, viveu fugida da polícia sob o nome falso de
Dulcineia. No 10º ano seguiu ciências, tendo como grande objectivo tornar-se astrónoma, mas rapidamente esse percurso se lhe apresentou demasiado fácil intelectualmente e decidiu enveredar pelas artes — o único curso desaconselhado pelos resultados dos seus testes psicotécnicos. Deixou cedo as saias da mãe porque procurava aventura mas no fundo Anabela andou todo o tempo a fugir da vida que era suposto levar, aproveitando para se licenciar em Artes Plásticas — Multimédia, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto. Já em Lisboa, e enquanto mantinha o seu trabalho em part-time na Zara mais movimentada de Portugal, Anabela terminou o mestrado em Arte Multimedia — Fotografia na Faculdade de Belas-Artes e gastou os piores 1200 euros da sua vida na Pós-Graduação em Ciências da Documentação e Informação — Ramo Arquivística na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Actualmente com 26 anos, Anabela define-se como uma straight edge com a mania que é artista. Sempre preocupada em questionar o sentido da vida, Anabela faz viagens de metro a ler livros de filosofia enquanto alimenta a sua ingenuidade e equaciona o suicídio. A tentar a sua sorte no estrangeiro, a menina que anda quase sempre de vestido é tímida e pouco faladora, contudo é possuidora de uma enorme libido. O seu objectivo a longo prazo: conquistar o mundo!
p. 24–33 Conceição abreu: nasceu em 1961, Portugal, onde hoje vive e trabalha. Em 2012 termina o Mestrado em Arte Multimédia — Fotografia, na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, tendo em 2010 concluído a Licenciatura em Dança na Escola Superior de Dança, do Instituto Polictécnico de Lisboa. No ano de 2000 completa o Projecto Individual em Pintura, na Escola Ar.Co, Lisboa. E, em 1998, nessa mesma Escola, os Estudos Completos de Pintura. Tem participado em diversas exposições colectivas, desde 1997. Em 2012, Contextile, Trienal de Arte Textil Contemporanea, Guimarães, Desviar do Olhar, Caroline Pagès Gallery, Lisboa. No ano
de 2011, participou em PIN ANONIMUM_Useless, Tangencial EXD’11, Lounging Space, Lisboa; [Re] visitações, Galeria Municipal do Montijo, e em Espaço_Arte (Centenário da Universidade de Lisboa), Reitoria da Universidade de Lisboa, Lisboa. Em 2010, Artists Books, Galeria Diferença, Lisboa; nos Encontros da Imagem, curador Rui Prata, Braga, Portugal; Small is Beautiful, Caroline Pagès Gallery, Lisboa; Cabinet d’Amateur, Sala do Veado, Museu Nacional de História Natural, Lisboa (cat.) e Espacio Atlantico, Vigo Art Fair (Spain), rep. por Caroline Pagès Gallery, Lisboa. Em 2008, On Europe, I International Biennial, Montijo, Portugal. No ano de 2006 AR.CO Bazar, Centro Cultural de Belém, Lisboa, e Papéis, Galeria Diferença, Lisboa. Em 2005, Diferenças, Galeria Diferença, Lisboa. Em 2004, 30 x 30, Galeria Diferença, Lisboa e Sensibilizarte, Museu das Comunicações, Lisboa. No ano de 2001 Cabinet de Curiosités, Galeria Diferença, Lisboa e Feira de Arte de Lisboa (rep. por Galeria Diferença, Lisboa). De 2000 a 1997 participa nas Exposições dos Finalistas da escola Ar.Co. Em 2013, expõe individualmente na galeria Caroline Pagès, Lisboa, o trabalho Entretempos. Em 2011, no Museu da Imagem, Braga, o trabalho Absence que foi também apresentado no ano anterior (2010) no Museu Nacional de História Natural (Sala do Veado). No ano de 2009, na Galeria Diferença, em Lisboa, apresenta a exposição Ties (Amarras), e em 2008 no Museu do Traje em Lisboa, expõe o vídeo-instalação Attached. Neste mesmo ano foi-lhe atribuído o Prémio de Fotografia, na 1ª Bienal Internacional do Montijo, Portugal, com a fotografia Attach. O ano de 2007 marca o início da sua colaboração com a sua actual galeria Caroline Pagès, em Lisboa, com a exposição individual Within. Em 2013 participará na 14th International Tapestry Triennial, Lòdz, na Polónia, como representante oficial de Portugal na Exposição-Concurso. Na Universidade do Porto, participará com o trabalho Desenhos Tácteis (2012) na Drawing in the University Today — International Conference on Drawing, Image and Research, e, em Maio, fará parte da exposição colectiva dos Finalistas de Mestrado em Arte Multimédia, da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, 6749/010.013, na Plataforma Revólver, Lisboa. Ainda em Novembro deste mesmo ano, irá expor individualmente na Plataforma Revólver — Project 1, em Lisboa.
p. 34–39 FERNANDO FADIGAS: Oeiras, 1968. Artista multimédia com actividades na arte sonora, música e outras vertentes das artes experimentais. A terminar o Mestrado em Arte Multimédia na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, frequentou ainda o Mestrado em Comunicação e Arte na Universidade Nova e fez estudos avançados na Escola de Artes Visuais Maumaus, Fotografia no Ar.Co e Estética na Sociedade Nacional de Belas-Artes. É membro do Pogo, um colectivo artístico multimédia onde se divide em programador, músico, sonoplasta e por vezes actor. Em 2001 fundou com Miguel Sá a editora e promotora independente variz.org, e ao longo dos últimos anos promoveram concertos de artistas como os Cluster, Terre Thaemlitz, Frank Bretschneider, Jacob Kirkegaard, Fennesz, Ikue Mori, Victor Gama, Rafael Toral, Sei Miguel, Kim Cascone, entre muitos outros. Participou em várias Exposições, Espectáculos Multimédia e Festivais de Música em Portugal e Europa (Espanha, França, Alemanha, Irlanda do Norte, Républica da Irlanda e Inglaterra). Em Portugal o seu trabalho passou por salas tão diversas como o Centro Cultural de Belém, Culturgest, Casa da Música, Jardim de Serralves, Centro Cultural Vila Flôr, Coliseu dos Recreios de Lisboa, Museu do Chiado, Galeria ZDB, Galeria Graça Brandão, Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e do Porto, Plataforma Revólver, Fundição de Oeiras, Espaço Avenida, Passos Manuel e Anikibóbó no Porto, Capela, Incógnito, Musicbox e Lux-Frágil em Lisboa. Como artista sonoro e músico participa com os Whit (Experimental Turntablism); A Parte Maldita (Electro Jazz Rock); Tra$h Converters (DJ) e Invaders (Dub Video Connection).
p. 40–47 Filipa cordeiro: Coimbra, 1988. Concluiu em 2010 a Licenciatura e em 2012 o Mestrado, ambos em Arte Multimédia, na Faculdade de Belas-Artes
da Universidade de Lisboa. Participou na 4ª edição de Residências de Artes Visuais da Galeria Zé dos Bois, e em exposições colectivas em Hamburgo, Lisboa e Ílhavo.
p. 48–49 LUÍSA BAETA: Lisboa, 1972. Licenciada em Antropologia Cultural pelo ISCSP-UTL (1997) frequentou o curso de fotografia do AR.CO (2001), completou o curso profissional de Audiovisuais da Restart (2004) e o curso profissional de Fotografia do IPF (2008) e é finalista de Mestrado em Arte Multimédia pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (2013). 2009: Inside out (individual), Galeria Municipal Lagar de Azeite, Oeiras; Joie de vivre (individual) Ogâmico, Lisboa; 2010: Emergentes dts (leitura crítica de portfólios e exposição colectiva), Festival Encontros de Imagem, Braga.
p. 50–59 PAULA NOBRE: Caldas da Rainha, 1971. Vive e trabalha entre as Caldas e Lisboa. Mestrado em Arte Multimédia, especialização em Fotografia na FBAUL (Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa), 2013. Licenciada em Artes Plásticas, variante Pintura na FBAUL (Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa), 2000. Bacharel em Artes Plásticas, variante Pintura na ESAD (Escola Superior de Arte e Design), Caldas da Rainha, 1995. Participou em diversas exposições colectivas, destacando a 1ªBienal Internacional de Artes Plásticas — IX Prémio Vespeira, Câmara Municipal do Montijo, em 2008; 13 Artistas — Arte Digital, Bienal de Artes Plásticas de Vila Nova de Cerveira, em 2007; 9ª Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira, Celeiro da Patriarcal — Vila Franca de Xira, e, a Pele das Coisas, CALdesign, Caldas da Rainha, ambas em 2005.
p. 60–69 SANDRA HENRIQUES: Ferreira do Zêzere, 1980. Mestrado em Arte Multimédia (2010/12) e Licenciatura em Arte Multimédia — Audiovisuais (2007/2010) pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa; Licenciatura em Ensino de Educação Visual e Tecnológica pela Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Santarém (1999/2003). Workshops: Cinema Independente (Galeria ZDB); Escrita Criativa (FBAUL).
p. 70–79 TERESA CORTEZ: Lisboa, 1981. Artista plástica, licenciou-se em Pintura na FBAUL e realizou uma Pós-Graduação em Ilustração no ISEC. Trabalha em ilustração e animação, tem colaborado com Discos Pataca, Universal, EMI, 2034, Take it Easy, Ink Publishing, Bayard Jeunesse, Tcharan, Texto Editora. Desde 2009 é monitora do atelier As Técnicas do Cinema de Animação, na Cinemateca Júnior. Em 2011 ganhou o prémio Melhor Curtíssima Portuguesa, no Festival de Animação de Lisboa, Monstra, com o videoclip A pele que há em mim, também seleccionado para o Prémio Jovem Cineasta Português, Cinanima, 2010. Foi seleccionada para a exposição internacional de ilustradores, Bologna Children’s Book Fair 2011, em Bolonha e seleccionada para o Prémio António Gaio, Cinanima 2011, com 2034 Communication and Arts. Das várias exposições colectivas em que tem participado destacam-se: Exposição Internacional de Ilustradores, Bologna Children’s Book Fair, Bolonha, 2011; Quartos/Rooms/Chambres/Zimmer, Pavilhão 28, 2009; Besquare — Artists Edition, Fábrica Features, Lisboa, 2008; Tudo Menos a Palavra…?, Maumaus, Instituto Camões, 2007; Jovens Criadores: 2003 em Silves, 2005 em Amarante e 2007 em Lisboa; Bienal Internacional de Jovens Criadores da Europa e do Mediterrâneo, Nápoles, 2005 e Under Construction, Degree Show of Fine Art, NTU of Fine Art and Design, Nottingham, Inglaterra, 2005. O seu trabalho pode ser visto em www.teresacortez.com.
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Ă— Figura 26
Martin Heade, Orchid and Humming bird near a Mountain Waterfall, 1902.
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O vídeo que apresento, Nas Asas de um Colibri, nasce de um antigo filme caseiro em super 8, um filme do casamento dos meus pais nunca antes visto. Ao longo dos anos criei expectativas quanto àquilo que revelaria, mas acabei por nunca o ver. Esta deambulação imaginária à volta do seu conteúdo, levou-me a acreditar numa realidade assombrada escondida na bobina do filme. Este objeto constituíu o elemento fetiche que influenciou a narrativa do vídeo. A partir daí elaborei a ideia segundo a qual o objeto artístico do projeto não residiria concretamente na matéria do filme, mas naquilo que é sugerido e não vemos, extrapolado para uma realidade ulterior e atemporal. Tal como acontece no cinema, esta tipologia doméstica cria uma espécie de fantasmagoria ao convocar um tempo específico, uma narrativa que pode ser revisitada as vezes que se quiser. Com base no pressuposto de que a recordação é uma das dimensões do nosso quotidiano, Nas Asas de um Colibri reflete no fundo sobre a ontologia da imagem e parte da produção visual de fantasmagorias para propor um território de novos significados na interpretação da realidade quotidiana. Se por um lado, o filme super oito não mostra o casamento propriamente dito, no sentido em que as circunstâncias filmadas são redundantemente circunstanciais, por outro lado ele convoca um imaginário pessoal, irrepresentável, só possível por aproximação. Esta questão remete para a imagem impossível que o deslocamento da significação apaga. A história do vídeo Nas Asas de um Colibri é quase circunstancial. Ela não conta propriamente nada, ao invés, narra de modo aparentemente arbitrário um quotidiano assombrado pela memória e pela fantasia. O projeto está dividido em três capítulos ou momentos não lineares. No primeiro momento, intitulado No Casamento é de Noite?, o vídeo materializa o seu fantasma no objeto específico da bobina e faz a apresentação dos preparativos para a projeção do filme antigo. O segundo capítulo corresponde ao momento da projeção do casamento, ao tempo que antecede essa visualização e ao “tempo já acontecido”. Um grupo de amigos, num contexto bastante familiar, está a comer e a conversar e essas imagens misturam-se com as do filme. Esse momento remete assim para o presente que emerge entre aquilo que constitui o futuro de uma renovada projeção e o passado que esse registo também passa a ser. Um aspeto revelador dá título ao que constitui o final do segundo capítulo: O meu pai não era controlador aéreo. À ideia da projeção é associado o imaginário de uma época passada, cheia de possibilidades e que termina em declínio. O capítulo fecha com uma sucessão de imagens que convoca outro nível de irrealidade ou de sonho, exemplos anacrónicos da realidade que se quer contar. No contexto familiar descrito, outras imagens irrompem no cenário, e embora digam respeito ao mesmo local instalação, não coincidem temporalmente. Os
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intervenientes já lá não estão. A casa do terceiro capítulo convoca um espaço mais solitário e noturno, mais ainda do que a noite anunciada premonitoriamente durante o primeiro momento do vídeo. A ideia de ausência é encenada. Os indícios que aí encontramos são evocações silenciosas que revelam um acontecimento trágico, o da perda, aquilo que já lá não está. Em diferentes momentos da peça, o desejo voyeurista parece “caminhar” a par com a câmara. No terceiro e último capítulo do vídeo, “viajamos” entre a casa e a cidade, absorvidos pelas imagens que representam alguns momentos domésticos e que estabelecem a “ponte” para outros lugares. Nas Asas de um Colibri revela-nos um lugar de impermanência espacial; o corpo que viaja nunca é visto, mas parece deslocar-se na dimensão do sonho e do pensamento. O colibri, o pássaro que dá rosto à peça vídeo, também conhecido por beija-flor, é muitas vezes associado ao universo da fantasia. As suas asas batem oitenta vezes por segundo e por serem tão rápidas quase que não se veem. Por isso, ele consegue ficar suspenso, parado no ar enquanto se alimenta. Este pássaro exibe particularidades que fazem do seu voo silencioso e veloz algo difícil de acompanhar com os olhos e cujo movimento apenas se intui. A metáfora do voo do colibri exprime o lado fantasioso e fantasmático do trabalho e aparece na peça por intermédio de um elemento visual específico. No vídeo, as “viagens mentais” da casa a outros locais e vice-versa, acontecem num movimento fluido, por exemplo, entre a imagem de uma pintura postal e as flores de um parque. O still da pintura postal Orchid and Hummingbird near a Mountain Waterfall (Orquídea e colibri perto de uma cascata de montanha), pintura a óleo realizada por Martin Johnson Heade em 1902, ajudou a dar título ao projeto e favoreceu a produção de sentido. O terceiro momento do vídeo é assim mais complexo: … são monstros: a história não tem fim! Ou seja, a história só existe no simples ato de a contar. Em Helás pour moi, filme realizado em 1983 por Jean Luc Godard, percebemos que o sentido da história poderá ser difícil de contar e nos confronta com o mistério da arte e da origem. Contar a história é fazer surgir o passado, ligarmo-nos a ele, isto é, a Deus, ao Universo, aos pintores e aos romancistas do passado. É uma forma de criar sentido. Considere-se o ensaio La structure, le sign et le jeu dans le discours des sciences humaines, inicialmente proferido por Jacques Derrida em 1966 para uma conferência na Universidade de Johns Hopkins. Nesse ensaio, o autor reporta a crise do estruturalismo à necessidade de negar entendimentos comuns como a génese e a causa. Derrida considera que não há uma causa para as coisas, que o evento é algo que emerge entre duas coisas e que surge como uma rutura ou a diferença dentro de um campo. (Derrida, 1967: 409). Aborda a ideia de “evento” na perspetiva de algo que não estava lá antes e que
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ao mesmo tempo permanece em nós como se já lá estivesse, ou sempre tivesse estado. Segundo Derrida, o centro representa uma contradição esgotada, isto é, para concebermos um centro que constitua um ponto estável numa estrutura, ele tem de fazer parte ao mesmo tempo dessa estrutura e estar fora dela (Derrida, 1967: 410). A causa ou origem espacial é assim, segundo Derrida, virtual. Embora essa causa imponha uma autoridade e organize uma estrutura de forma arbitrária, ela não existe espacialmente dentro da estrutura que influencia, (Derrida, 1967: 410). O que Derrida acrescenta a esse “evento” de que fala é que o novo sentido transcendental, ou a história, foi desviada do homem para a linguagem, ou seja, tudo se torna discurso ou sistema. O filme de Godard começa com o narrador a relatar a tarefa que o seu trisavó tinha para terminar de contar uma história. Deste modo, pouco a pouco, tal como acontece no vídeo Nas Asas de um Colibri, o passado é chamado ao presente através do imaginário de uma experiência visual que requer sempre vários olhares (Godard, 1983: 36:04).
Referências × DERRIDA, Jacques, (1967). «La structure, le sign et le jeu dans le discours des sciences humaines» in L’ Ecriture et la Différence. Paris: Seuil; pp. 409-428. × GODARD, Jean Luc (1993). Helás Pour Moi, França, Studiocanal-vega films S.E., 95 min., cores, 35 mm; (DVD, 2007).
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ANABELA BRAVO
Anabela Bravo, 2012 Mapa à escala—1:10
For Life to go Exactly as Planned MAPA DE TAMANHO × INFERIOR A 1 cm
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Caminhar, viajar, dançar são modos diferenciados, porém equivalentes, de percorrer ou de encurtar distâncias. Modos possíveis de conexão com o corpo, com o mundo, ou com o outro. Serão, portanto, formas alternativas de movimento que criam múltiplos relacionamentos, e, nesse sentido, podem ser pensados como parte constitutiva de uma experiência de lugar. Se, como afirma Yi-Fu Tuan (1983)1, a nossa percepção de lugar se dá a partir do momento em que um determinado objecto capta a nossa atenção (Tuan, 1983: 179), o mesmo será dizer que a elaboração de uma ideia de lugar só será efectuada se, num dado momento, houver algum tipo de ligação entre o indivíduo e um objecto. Podemos então entender que o sentido de lugar é produzido no instante em que se estabelecem essas conexões, sejam elas físicas e/ou mentais, com as quais o indivíduo realiza as suas construções. Estes processos, que se intuem dinâmicos e criativos, foram aqui aproximados a um empreendimento de uma viagem prospectiva2, que será feita de forma real ou virtual, e que se efectua segundo os afectos, as necessidades, as capacidades e as aptidões de cada indivíduo. Assim, as qualidades e as características de um lugar estarão directamente relacionadas com os interesses pessoais, as expectativas e a cultura de cada um. Ou seja, dependendo da história individual de cada sujeito, o objecto, que foi o alvo da sua atenção, será experimentado, ou não, próximo a uma ideia de lugar. O trabalho fotográfico que agora exponho, Percorrendo a Linha do Horizonte à procura do Lugar exacto para um Ponto de Fuga (2012), foi pensado enquanto possibilidade de construção de uma experiência de lugar, ou também poderia dizer, como proposta de uma forma de o habitar. A criação deste trabalho deve-se então, ao facto de querer perceber se, através de uma prática de movimento ou de deslocação, o sujeito pode vir a construir uma relação pessoal com um determinado espaço. Michel de Certeau (1998)3 defende que os “processos de cami- × 1. Tuan, Yi-Fu (ed.) (1983), Espaço e Lugar: a Perspectiva da Experiência, nhar” são um modo de experiência, que vão contribuir Trad. Lívia de Oliveira, São Paulo: Difel (1977). para uma aquisição de consciência de lugar. Isto porque, 2. Uma prospeção geotécnica é um o sujeito em deslocação vai estabelecendo relações (físi- × conjunto de operações realizadas no local de obra futura que visam a cas e virtuais) com referência “à sua posição”, e assim vai determinação da natureza e caractedeterminando “um próximo e um distante, um cá e um rísticas do terreno, sua disposição e acidentes para essa obra. lá” (de Certeau, 1998: 178). Este será, portanto, um proMichel de (ed.) (1998), cesso que se vai desenvolvendo à medida que o sujeito × A3. Certeau, Invenção do Cotidiano-Artes de Fazer, Trad, Ferreira Alves, Petrópercorre determinado espaço, e que, como resultado das polis: Editora Vozes (1990). 4 suas escolhas, o transformará em lugar ou não-lugar . Ver Augé, Marc (ed.) (2007), NãoNo caso do fotográfico, estes “processos de cami- × 4.-Lugares, Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, Trad. nhar” poderão ser percebidos, no meu entender, como Miguel Serras Pereira, Lisboa: Editomovimentos de aproximação e de distanciamento que o ra 90º (1992).
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sujeito faz no momento de uma visualização ou leitura. Isto porque, devido ao carácter indicial da fotografia, o sujeito, enquanto espectador, irá encontrar algum tipo de relação entre aquilo que vê na imagem fotográfica e a realidade que a originou. Será na tentativa do preenchimento da distância — que separa a coisa que “esteve lá”5 (Barthes, 1981: 109) e a coisa que é sentida como “estar ali”6 (Crimp, 2004: 151, itálico do autor), que a fotografia toma uma forma de presença. É, portanto, a partir da nomeação desta presença, num processo criativo de reconhecimentos, associações ou disjunções (movimentos a que chamei de viagens), que o sujeito vai construindo as suas histórias ou narrativas. Sendo que, as narrativas ao apresentarem um “valor de sintaxes espaciais” (de Certeau, 1998: 199), irão contribuir para uma transformação do que era antes um espaço circunscrito, ou uma localização, em lugares ou não-lugares. Os objectos fotográficos, que integram a presente mostra, são fragmentos ou instantes que foram subtraídos à duração de um percurso que foi sendo, simultaneamente, registado em vídeo. O que se pretende com a selecção destes stills e com a sua respectiva exposição é pôr em prática as questões que foram sendo levantadas ao longo da minha pesquisa no Mestrado Teórico-Prático em Arte Multimédia — Área de Especialização em Fotografia. Próximo a um entendimento de que o lugar se organiza a partir de processos relacionais, também o fotográfico foi aqui entendido como possibilidade de relação ou conexão entre o sujeito e a sua realidade. Fazer e ver fotografia são formas de atenção e de vivência com aquilo que nos rodeia. Os seus sentidos, à semelhança do que acontece com a construção de lugares, são criados a partir da experimentação que, como afirma Yi-Fu Tuan (1983)7, significa actuar sobre o dado e criar a partir dele (Tuan, 1983: 10). × 5. Barthes, Roland (ed.) (1981), A Câmara Clara, Trad. Manuela TorAssim, fazer ou ver fotografia, serão acções com qualires, Lisboa: Edições 70 (1980). dades de relação e movimento que deixam subentender × 6. Crimp, Douglas (ed.) (2004), La actividade fotográfica de la posmouma ideia de encontro e de descoberta, características dernidade in Ribalta, Jorge (2004), estas, próximas a uma prática de viagem. Se, como diz Efecto Real, debates posmodernos sobre fotografia,Trad. Elena Llorens de Certeau (1998)8, “caminhar é ter falta de lugar” (1998: Pujol, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, AS (2004). 183), também esta será uma forma de procura. Assim, à × 7. Tuan, Yi-Fu (ed.) (1983), Espaço e semelhança de caminhar, viajar, ou mesmo dançar, faLugar: a Perspectiva da Experiência, zer e ver fotografia são também modos de relação, que Trad. Lívia de Oliveira, São Paulo: Difel (1977). possibilitam, em tempo presente, a magia do encontro. × 8. Certeau, Michel de (ed.) (1998), A Nesse sentido, são modos operacionais de criação de Invenção do Cotidiano-Artes de Fazer, Trad, Ferreira Alves, Petrópolis: sentido, que entrelaçam, como diz Jean-Marie Schaeffer Editora Vozes (1990). (1998)9, comportamentos afectivos e condutas explíci× 9. Schaeffer, Jean-Marie (ed.) (1998) tas de discernimento (Schaeffer, 1998: 50-51). Modos Think Art: Theory and Practice in the Art of Today. Symposium dicom os quais descrevemos, arrumamos e/ou desarrurected by Jean-Marie Schaeffer. Rotterdam: Witte de With. mamos os elementos que constituem a nossa realidade.
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× Percorrendo a Linha do Horizonte à procura do Lugar exacto para um Ponto de Fuga de Conceição Abreu.
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× Percorrendo a Linha do Horizonte à procura do Lugar exacto para um Ponto de Fuga de Conceição Abreu.
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Ă— Power corruption and liars is a noise performance specially programmed for the exhibition opening and and also a sound installation that celebrates a century of the Art of Noises, the Futurist manifesto written by Luigi Russolo in 1913.
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ÂŤWith the endless multiplication of machinery, one day we will be able to distinguish among ten, twenty or thirty thousand different noises. We will not have to imitate these noises but rather to combine them according to our artistic fantasy.Âť Luigi Russolo, Painter, The Art Of Noise, Milano, March 11, 1913.
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Num dos vídeos que integra A Era dos Falsos Profetas, uma mulher com um longo vestido com padrão de manchas de tigre abre duas latas de refrigerante: uma Coca-Cola e uma Pepsi. Perante os olhos surpresos e inquiridores de três crianças, a mulher verte misteriosamente os dois líquidos para um mesmo copo. O vidro brilha à luz dos neons de uma feira popular. Trata-se de uma operação alquímica. O final da experiência não nos é dado a ver. O que poderá possivelmente resultar de uma alquimia do capitalismo tardio, deslocalizado, produzido em fábricas lúgubres em lugares de Nesta página: × 1994 filme 16mm transferido para vídeo (2011). fim de mundo? Intui-se a cris- Seguintes: × Alergia ao Pó projecção de diapositivos (2010-2013). talização de ambos os líquidos sob a forma da mítica Pedra Filosofal; a génese de uma crença renascida no dia seguinte. Ou irá a mistura esgotar-se na banalidade de um sabor adocicado, indistinguível, desmistificado como mais uma invenção falsa, criação de um con-artist inspirado? No segmento final do filme, a mesma mulher reaparece num solarengo carrossel de feira. A banda sonora nostálgica, interpretada por uma obscura banda de rock, recupera um optimismo momentâneo. Mas o optimismo é toldado por notas amargas de premonição de que, mais uma vez, nada irá acontecer. Provavelmente, a mistura de líquidos não produziu nada. A imobilidade assombra as pequenas localidades, micro-universos acelerados pela colonização da cultura global em que, ainda que tudo mude, nada verdadeiramente acontece. E só entre o tédio e a banalidade pode surgir um milagre. A Era dos Falsos Profetas reúne um conjunto de peças concebidas entre 2010 e 2012 através de processos de apropriação e deslocação de elementos dos media e de imagens pessoais produzidas sem uma intenção artística previamente determinada. Nesta expedição arqueológica por entre a realidade quotidiana, as origens e as histórias anteriores dos objectos apenas podem intuir-se. O arqueólogo não pode senão reorganizar os fragmentos segundo a sua própria
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linguagem, ela-mesma uma ficção através da qual recria o passado e inventa as linguagens do futuro. O trabalho de prospecção de A Era dos Falsos Profetas opera sobre o tempo de vida conhecido: o final do século XX e o início do século XXI, tempos porém mais difíceis de escavar, porque atolados de estratos e de símbolos. A pesquisa prossegue, ainda assim, com a afirmativa subjectividade do pesquisador que sabe integrar o objecto de estudo. Não será improvável que o espectador reencontre certas imagens deste trabalho ao abandonar o edifício, na rua nocturna mais ou menos povoada, na janela de um transporte tardio. E pode acontecer que as imagens subitamente o assombrem. Escreveu, a este propósito, Herberto Hélder, no livro Os Passos em Volta: «A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?...». No momento em que a matéria se torna fonte de incerteza, abre-se um abismo perante o indivíduo: não se sabe o que quer dizer o mundo, mas é sempre significante (Deleuze, Guattari, 1972: 154). A estranheza rapidamente inunda as cenas do mais banal quotidiano. Filipa Cordeiro, 2013. A partir da dissertação de Mestrado A Era dos Falsos Profetas: Para uma teoria simbólica da apropriação (Lisboa, 2012).
Referências × DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1972) Capitalisme et Schizophrénie 1. L’Anti-Oedipe. Paris: Les Editions de Minuit. [Mil Planaltos: 2º Vol.: Capitalismo e Esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004; 653 p.]
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Espécime nº 3 Cabana de pescador, praia de Santa Rita Exemplar arquitectónico paradigmático de cabana de pescador da região Centro-Oeste. Categoria de construções precárias, erigidas junto ao mar, geralmente em locais de difícil acesso e em convivência com plantas rasteiras autóctones. Auto-retrato de mulher junto à sua casa. Após um ano de residência ininterrupta na cabana aqui apresentada em regime de isolamento, a mulher afirma que eclodiram na sua pele desenhos simbólicos de carácter figurativo. Caso examinado atentamente pelos estudantes do Hospital Universitário de Santa Maria, e fenómeno único na história da ciência dermatológica. Aquando do internamento da mulher, a cabana foi reclamada pelo Estado e desmantelada. As tábuas foram doadas aos Caminhos de Ferro Portugueses, com vista à requalificação do troço da linha do Oeste que liga Valado a Louriçal.
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× Arquitectura Morta-Viva Filipa Cordeiro, vídeo (2012).
Espécime nº 1: Sede do grupo recreativo centeeirense Arquitectura tumular do século XX tardio, apresenta insígnias simétricas, começando pelo número da porta, 88. Diz-se que não é possível captar uma imagem completa do edifício e sua heráldica, mesmo com um aparelho fotográfico com objectiva grande angular. Crê-se que a integridade da imagem do edifício é essencial aos ritos fúnebres dos Centeeirenses. Por isso elegeram a estreita travessa particular, cujo recuo mal possibilita a passagem de um carro e de um peão em simultâneo, como local para a construção do seu edifício.
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FILIPA CORDEIRO
Alergia ao Pó Projecção de diapositivos 2010-2013 Cimento Vídeo 2011 Dead Hippie’s Elegy Vídeo Fotografias originais de Helena Vieira, Sara Rafael, Lisbum, et al. 2011 Milk Flood Vídeo 2011 Arquitectura Morta-Viva Vídeo Ambientes sonoros por Fernando Fadigas 2012 Real Life Fight Club Vídeo 2010 1994 Filme 16mm transferido para vídeo 2011 A Vingança da Tribo Bajaranã Vídeo 2012 The Table Vídeo 2011
× Cimento
Filipa Cordeiro, vídeo (2011).
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Agradecimentos: Maria João Gamito, Anabela Bravo, Luísa Baeta, Alexandre Estrela, Fernando Fadigas, Steven Silva, CLB, Rui Gonçalves, Helena Vieira, Sara Rafael, Carlos Gaspar, Alexandre Rendeiro, Lisbum, Rui Matoso, Rui Gato, Galeria Zé dos Bois, Sandra Henriques, Teresa Cortez, A.T. e pais.
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Em Long Piece, para além da dimensão temporal técnica, estrutural e física da imagem visual — o tempo da imagem —, aborda-se a sua dimensão temporal diegética, um tempo cinemático que permite a relação entre realidade, ficção e representação, a associação e a memória — o tempo na imagem. A estes aspetos acrescenta-se a imagem-tempo que existe para além do movimento daquilo que se passa no plano e para além do movimento do medium fílmico em si; em que o movimento existe, mas na perspectiva do tempo que revela a imagem e em que, partindo do conceito de Deleuze1, se associa o presente e a memória, a imagem real e virtual, o puramente visual e o puramente sonoro, espaços vazios, silêncios longos, relações mentais, um plano que permanece não para registar um movimento, mas regista-o num tempo que se torna, em si, visível, como elemento base da imagem. Por fim, O tempo para além da imagem, refere um tempo relacional, em que estamos perante uma imagem e a podemos observar, dependendo, por um lado, da nossa disponibilidade, do tempo de que dispomos ou que nos deixamos dispor e que permite que a imagem se dê a ver e, por outro, da acessibilidade da imagem, que pode ter um tempo pré-determinado em que é visível — um plano de um filme ou um loop — ou pode estar permanentemente acessível sobre uma parede ou impressa num livro. A partir destes parâmetros temporais Long Piece sugere o tempo longo de uma imagem, recorrendo ao tempo do plano, do movimento e da observação, incorporando o retorno, a suspensão e o recomeço, três figuras de esquecimento definidas por Marc Augé2, como formas de ligação da imagem e do tempo com a memória: o retorno a um lugar, a uma paisagem, a suspensão de um longo plano e o recomeço de uma relação com esse lugar e com a imagem em si, que se dá a ver. O tempo do plano é acentuado por demorar a imagem, num plano fixo, sobre o que há para ver; o movimento, como elemento temporal da imagem é, nestes planos, lento e quase imperceptível; e a observação implica uma atitude ativa, uma reciprocidade, uma interação com × 1. em referência a Deleuze, Gilles a imagem que suscita estímulos, associações e rela(1985) L’Image-temps, Cinéma 2. Paris: Éditions de Minuit [(2006). A ções, acrescentando significados, leituras, dimensões, Imagem-Tempo, Cinema 2. Tradução portuguesa e introdução de Rafael interpretações possíveis e diversas. “A emancipação Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim]. começa quando se compreende que olhar é também × 2. in Augé, Marc (1998). Les formes uma acção (...) O espectador também age (...) Obserde l’oublie. Paris: Payot & Rivages [(2001) As Formas do Esquecimenva, selecciona, compara, interpreta. Liga o que vê com to. Tradução portuguesa de Ernesto Sampaio. Almada: Íman Edições]. muitas outras coisas que viu.”3 × 3. in Rancière, Jacques (2008). Le Spectateur Emancipé. Paris: La Fabrique-Éditions [(2010). O Espectador Emancipado. Tradução portuguesa de José Miranda Justo. Lisboa: Orfeu Negro; p. 22].
Agradecimentos: Anabela Bravo, Carlos Silva, Cláudio Rego, Fernando Fadigas, Maria João Gamito, Rita Sá Marques, Susana Pires e à minha família.
× Rio
da série Long Piece, 2013 Vídeo HD, PAL. 10 min.
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Todos os corpos têm uma superfície: a pele, constituída por imagens. Do mesmo corpo, por exemplo o corpo y, podem retirar-se conjuntos diferentes: imagens a+b+c ou imagens a+b+j+u+o. As imagens de ambos os grupos podem ser suficientes para definir o Corpo de Imagem y. No entanto, os conjuntos não são iguais, nem são a totalidade de imagens ou de grupos possíveis de percepcionar do corpo y. Num Corpo de Imagem deve considerar-se a imagem como matéria que o constitui. As imagens que estão à superfície do corpo constituem-no por camadas. Formam corpos de imagem estratificados. Se a mistura da quantidade indeterminada de imagens, provenientes de todos os corpos existentes (seres vivos, objectos) fosse liberta na atmosfera, assistiríamos a imagens a saltarem das molduras dos museus, das cómodas, ou seja, da própria realidade, veríamos, por exemplo, uma paisagem dos Alpes por aí a esvoaçar, ou uma imagem de um pedaço de solo a arrastar-se. Se isto fosse possível, assim desta forma e com todo o tipo de matéria, a determinada altura surgiriam choques de imagens. Formar-se-iam aglomerados de imagens, de substâncias, de porções de matéria sólida, líquida ou gasosa. Surgiriam constantemente na atmosfera novos e estranhos corpos de imagem: corpos compostos por imagens sem sentido, corpos desestratificados.
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TERESA CORTEZ
× Contradigo-me? Muito bem, então contradigo-me, (Sou imenso, contenho multidões) Walt Whitman, Folhas de Erva, 1855
QUASE
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Em Quase o tempo e o espaço é ‘entre-tanto’. Como o espaço que a erva vai abrindo. Entra-se em Quase pelo ‘meio’. Pretendo que o espectador entre na imagem e que aí ‘permaneça’. O desenho movimenta-se e ramifica-se em qualquer ponto, como um rizoma. Um organismo em extensão que unifica todas as partes do espaço e que não tem um tempo definido. Não tem princípio nem fim, tudo é entre, tudo é quase.
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Teresa Cortez, animação tradicional e digital, p&b, loop, dimensões variáveis (2012-2013).
6749/010.013 Finalistas Mestrado em Arte Multimédia da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa 30 MAIO — 27 JULHO 2013 — Plataforma Revólver
Organização: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa · 213 252 108 · grp@fba.ul.pt · www.fba.ul.pt · fb.com/fbaul · Coordenação> Prof. Auxiliar João Paulo Queiroz · Coordenação do Mestrado> Prof. Auxiliar Vítor dos Reis · Relações públicas> Isabel Nunes. Catálogo: Edição> FBAUL · Design de comunicação> Tomás Gouveia · Impressão e acabamento> Gráfica Maiadouro · ISBN> 978-989-8300-52-2 · Depósito legal> 358491 / 13 · Lisboa, maio 2013. Exposição: Plataforma Revólver - Rua da Boavista 84, 1200-068 Lisboa · [+351] 213 433 259 · [+351] 961 106 590 · quarta a sábado das 14:00 às 19:00 (última entrada 18:30) · www.artecapital.net · www.transboavista-vpf.net · Curadoria> Victor Pinto da Fonseca e Pedro Cabral Santo · Produção> Patrícia Trindade, Kristine Urbanavica, Anabela Bravo e Luísa Baeta. Agradecimentos: João Paulo Queiroz, Maria João Gamito, Fernanda Maio, Rogério Taveira, Isabel Nunes, Tomás Gouveia, Víctor Pinto da Fonseca, Pedro Cabral Santo, Patrícia Trindade.
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