VOX MUSEI 1

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Revista VOX MUSEI arte e património Volume 1, número 1, janeiro-junho 2013 – Tema Arte, Património e Museus ISSN 2182-9489

Revista Internacional - Comissão Científica e Revisão

Aquisição de exemplares, assinaturas e permutas

por Pares (sistema double blind review)

Revista VOX MUSEI arte e património

Grupos de Pesquisa, CNPq “VOX MUSEI arte e

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

património”/ “Memória, Ensino e Património Cultural,

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Universidade Federal do Piauí, Brasil

Largo da Academia Nacional de Belas-Artes

CIEBA, Centro de Investigação e de Estudos em

1249-058 Lisboa, Portugal

Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Portugal

T +351 213 252 108 / F +351 213 470 689 Impressão e acabamento: Serisexpresso

Periódico que veicula publicação de trabalhos inéditos,

Tiragem: 500 exemplares

que versem sobre arte, património e museus, estudos

Depósito legal: 360924/13

que valorizem a memória social, identidades, organi-

PVP: 10€

zações reflexões sobre acervos, património, museus,

ISSN (suporte papel): 2182-9489

públicos, educação, sociedade, acessibilidade e sustentabilidade, dentre outros objetos, temas, problemas e abordagens relacionados.

Periodicidade: semestral

Grupo de Pesquisa, CNPq Memória, Ensino e Património

Revisão de submissões: arbitragem duplamente cega

Cultural, Universidade Federal do Piauí, Brasil

pelo Conselho Editorial

Mail: voxmusei@fba.ul.pt / voxmuseiartepatrimonio@gmail.com

Direção: Áurea da Paz Pinheiro

Website: www.voxmusei.fba.ul.pt

Design de Comunicação: Jorge dos Reis

Acesso on line: http://www.ojs.ufpi.br/index.php/voxmusei

Concepção e Composição: Cássia Moura e Jorge dos Reis Foto de Capa: Cássia Moura Composição gráfica: Inês Chambel e Tomás Gouveia

Relações públicas: Isabel Nunes Logística: Lurdes Santos Gestão financeira: Cristina Fernandes e Isabel Pereira Propriedade e serviços administrativos


Conselho editorial • Pares Académicos Número 1

Pares académicos internos

Pares académicos externos

Áurea da Paz Pinheiro, Brasil

Ângela Âncora da Luz, Brasil

Universidade Federal do Piauí

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Portugal

Cristiane de Andrade Buco, Portugal

Alice Nogueira Alves, Portugal

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Eloisa Capovila da Luz Ramos, Brasil

Edvania Assis, Brasil

Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil

Universidade Federal do Piauí

Enrique Caetano Henriquez, Espanha

Érica Rodrigues Fontes, Brasil

Universidade de Sevilha

Universidade Federal do Piauí

José Antonio Aguiar, Espanha

Fernando António Baptista Pereira, Portugal

Universidade de Sevilha

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Manuel Calado, Portugal

João Paulo Queiroz, Portugal

Instituto Politécnico de Setúbal

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Maria de Fátima Pereira Alves, Portugal

Jorge dos Reis, Portugal

Universidade Aberta

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Marta Rosa Borin, Brasil

Luís Jorge Rodrigues Gonçalves, Portugal

Universidade Federal de Santa Maria

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Mila Simões de Abreu, Portugal

Marta Rovai, Brasil

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Universidade Federal do Piauí

Miridan Bugyja Britto Falci, Brasil

Roseli Farias Melo de Barros, Brasil

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Universidade Federal do Piauí

Nuno Sacramento, Reino Unido Scottish Sculpture Workshop Olga Duarte Piña, Espanha Universidade de Sevilha








índice

Editorial

Caracterização Material e Técnica da Pintura

Áurea da Paz Pinheiro

de Veloso Salgado. Contributo Museológico.

pág. 14-15

Material and Technical Characterization of Veloso Salgado’s Paintings. Museology contributions.

Artigos

Ana Mafalda Cardeira

Da coleção ao museu: o colecionismo privado de

Stéphane Longelin

arte moderna e contemporânea em Portugal

Sónia Costa

FROM PRIVATE COLLECTIONS TO THE MUSEUM:

pág. 64-72

modern and contemporary art collecting in Portugal Adelaide Duarte

Exposição ou decomposição?

pág. 17-31

A natureza como entidade artística Exhibition or decomposition?

Conhecer, Conservar, Valorizar.

The nature as artistic entity.

Dos antecedentes de uma campanha

Ana Margarida Mata

de fundraising ao prémio APOM 2012

pág. 73-85

Know, Preserve, Appreciate. From the background of a fundraising campaign to the APOM prize 2012

Os museus eclesiásticos

Alexandra Braga

e a sua função pastoral.

pág. 32-41

Obstáculos e necessidades no Patriarcado de Lisboa Ecclesiastical museums and their

A degradação como performance.

pastoral function. Obstacles and needs

Questões Teórico-Práticas em Contexto

in the Patriarchate of Lisbon

Museológico – Três Peças de Miguel Palma

André das Neves Afonso

Degradation as an artistic performance,

pág. 86-100

Theoretical and Practical Issues in Museological context – Three art pieces of Miguel Palma

Um palácio para a imigração?

Alice Nogueira Alves

Uma apresentação da Cité nationale de l’histoire

Rodrigo Bettencourt da Câmara

de l’immigration na França

pág. 42-52

A palace for immigration? A presentation of the Cité nationale de l’histoire de l’immigration in France

Construção de conhecimento

Andrea C. J. Delaplace

com o Virtuoso Criador

pág. 101-113

Constructing knowledge with the Virtuous Creator

As dificuldades da Exposição de Cerâmica

Ana Duarte Rodrigues

Funerária Chinesa em Portugal

Anísio Franco

The difficulties of Exposing Chinese Funer-

pág. 53-63

ary Ceramics in Portugal Andreia Filipa Braz pág. 114-122


Patrimônio, Políticas Públicas

Visibility and Ambience of the Hill

e Culturas Híbridas

and The Monastery of Penha site in Vitoria

Patrimony, Public policies and hybrid cultures

Bay: delimitation and regulation of the buffer zone.

Ariane dos Santos Lima

Diva Maria Freire Figueiredo

Áurea da Paz Pinheiro

Caroline Maciel Lauar

pág. 123-127

Aline Barroso Miceli pág. 186-204

Miniaturas à luz das ciências Miniatures reliefs in the light of science

Discursos e Reflexividade: um estudo sobre

Camila Remonatto

a musealização da arte contemporânea

Anísio Franco

Discourses and Reflexivity: a study of

Agnès Le Gac

musealization of the contemporary art

pág. 128-141

Elisa Noronha Nascimento pág. 205-213

Um debate sobre questões de guarda de obras de arte: o acervo da Família Oiticica

Memórias das exposições temporárias do

A debate on the holding of

Museu Calouste Gulbenkian. Contributos para

works of art: the collection of the Family Oiticica

a divulgação do património cultural

Carolina Martins Etcheverry

THE MEMORIES OF GULBENKIAN MUSEUM’S TEMPORARY

pág. 142-148

EXHIBITIONS. Contributions to the cultural heritage awerness Elisa Ochoa

Arte, comunicação e vídeo documentário

pág. 214-222

Art, communication and documentary video Cássia Moura

Museus e Guerra: da Convenção de Haia (1954) aos

pág. 149-158

“tesouros nacionais” (2006)

Centro Cultural Bernardo Mascarenhas:

(1954) to “national treasures” (2006)

de ícone industrial a Espaço de Cultura

Elsa Cristina Carvalho Gomes Garret Pinho

Cultural Center Bernardo Mascarenhas:

pág. 223-237

Museums and War: from the Hague Convention

from an industrial icon to a Cultural Space Center Cláudia Matos Pereira

“Os Federais”, a Literatura e a Casa da Cultura

pág. 159-172

“Os Federais”, Literature and the House of Culture

Os espaços do museu do século XXI.

Érica Rodrigues Fontes

Museu Nacional de Arqueologia

pág. 238-246

The spaces museum of the XXI century. National Museum of Archaeology

Sociedade Portuguesa e Arte Contemporânea.

Cristina Maria Grilo Lopes

Análise socio-cultural do CAMJAP.

pág. 173-185

Portuguese Society and Contemporary Art. Oficial and Cultural Analysis of Camjap.

Visibilidade e Ambiência do Outeiro e

Filippo De Tomasi

Convento da Penha na Baía de Vitória:

Ana Dos Reis Furtado

delimitação e normatização da área de entorno.

pág. 247-255


Escultura renascentista em Abrantes:

Farroupilha, Brazil

reconstituição hipotética de um retábulo

Marlise Maria Giovanaz

narrativo a partir dos seus fragmentos.

pág. 318-329

Renaissance sculpture in Abrantes: hypothetical reconstruction of a narrative

As representações da morte e do carpir

retable from its fragments

The representations of death and weeping

Francisco Henriques

Marluce Lima de Morais

pág. 256-271

pág. 330-339

As vozes tipográficas do museu. Legibilidade

Diálogo entre o Restauro no

e leiturabilidade do texto no design expográfico

Contemporâneo e o Artista

The typographic voices of the museum

Dialogue between the Restoration in Contem-

– legibility and readability of text on museographic design

porary and the Artist

Jorge dos Reis

Marta Frade

pág. 272-284

pág. 340-351

O Direito à Imagem: As Elites nos Museus das Mi-

Resenha

sericórdias de São Paulo e Santos, Brasil

Patrimônio Arqueológico

The Right to the Image: The Elites in São Paulo

e Cultura Indígena

and Santos Misericórdias/Brasil

Miridan Britto Falci

Maria Beatriz Bianchini Bilac

pág. 353-357

pág. 285-297

Crítica de Arte e Design Os Leques da Coleção Ferreira das Neves

Desenhar uma voz, uma voz visível,

The Fans of the Collection Ferreira das Neves

uma voz humana

Maria Cristina Volpi Nacif

Jorge dos Reis

pág. 298-310

pág. 359-361

Convento de Nossa Senhora dos Remédios

Entrevista

– Reutilização Museológica de um Património Conventual

Coletivo Cultural VOX MUSEI arte e património

Convent of Our Lady of Remedies – Reuse of a

Áurea da Paz Pinheiro

Heritage Conventual Museology

pág. 363-370

Maria Filomena Mourato Monteiro Maria do Céu Simões Tereno

Notas de Dissertações e Teses

pág. 311-317

Por entre rezas e procissões. As celebrações em louvor ao Senhor Bom Jesus dos Passos. Oeiras, Piauí, Brasil

As Exposições Universais e seu impacto

(1859/2012)

museológico: o caso da Exposição do Centenário

Ariane dos Santos Lima

Farroupilha, Brasil

Em cada conta um lamento. Incelências, benditos

The Universal Exhibitions and

e rezas [Alto Longá, Piauí 1980-2011]

its museological impact:

Marluce Lima de Morais

the case of the Exposição do Centenário

pág. 372-374



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Editorial Áurea da Paz Pinheiro

arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 14-15.

Pinheiro, Áurea da Paz (2013) “Editorial.” Revista Vox Musei

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A Revista VOX MUSEI arte e património está vinculada aos Grupos de Pesquisa/ CNPq, Universidade Federal do Piauí, Brasil, “VOX MUSEI arte e património” e “Memória, Ensino e Património Cultural”, ao CIEBA, Centro de Investigação e de Estudos da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Portugal. Nesta edição o destaque é para o tema Arte, Patrimóno e Museus O periódico configura-se como um espaço de debates, reflexões e interlocuções entre investigadores ibero-americanos; o desafio que se propõe aos investigadores e profissionais é apresentarem trabalhos que permitam análises sobre o papel da arte, do património e dos museus, nomeadamente neste século, marcado por dinâmicas informativas e comunicacionais, diversidade de culturas, perspectivas e olhares sobre o mundo. A Revista publica trabalhos inéditos que versem sobre arte, património e museus, estudos que valorizem a memória social, identidades, organizações e refelxões sobre acervos, património, museus, públicos, sociedade, educação, acessibilidade e sustentabilidade, dentre outros objetos, temas, problemas e abordagens relacionados, tais como: Arte, Património e Museus: dinâmicas informativas e comunicacionais Museus: memória social e criatividade Museus: património cultural e natural Museus e Públicos Museus e Comunidades Museus: acessibilidade e sustentabilidade Património, Educação e Museus Universidade: formação e investigação museológica Museus Universitários A vocação dos Museus Museus: educação e deleite da sociedade Património, sustentabilidade social e ambiental Patrimónios, relações interculturais e ecologia de saberes No que se refere à política padrão de seções de artigos, resenhas, críticas de arte e design, ensaios, entrevistas, relatórios e dissertações, a Revista possibilita submissões abertas, indexados e avaliados pelos Pares. A Arte, o Património e os Museus tornaram-se sinônimos de marcadores identitários, memória social, cidadania, educação, sustentabilidade. A articulação, contudo, não é propriamente nova, as interligações entre esses campos de saber-fazer estiveram a inspirar no passado e no presente significados culturais, rotineiramente, incorporaram objetos e lugares associados às memórias sociais e às narrativas; mesmo com a “globalização” e “mundialização”, as culturas continuam firmando-se em


suas histórias, identidades e memórias. Arte, Património e Musesus se articulam com memórias, culturas, identidades, sustentabilidade, a cada dia, entrelaçam-se os sentimentos de pertencimento cultural, social e político das pessoas em suas comunidades; cada vez mais, a definição do que pode ser incorporado e excluído do património e da memória social integra as táticas políticas de cerceamento e afirmação de identidades culturais. A Revista VOX MUSEI arte e património é publicada em formato impresso e eletrónico. Em sua versão on line, utiliza-se o SEER (Sistema Eletrónico de Editoração de Revistas) e está disponível em http://www.ojs.ufpi.br/index.php/voxmusei. Ao se disponibilizar o conteúdo da Revista na rede mundial de computadores, pretende-se ampliar uma rede de pesquisadores e públicos interessados nos debates que envolvem as temáticas centrais do periódico.



Da coleção ao museu: o colecionismo privado de arte moderna e contemporânea em Portugal From private collections to the museum: modern and contemporary art collecting in Portugal

Adelaide Duarte Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Direção da Associação Portuguesa de Historiadores da Arte, ICOM

Resumo: Neste artigo, estuda-se a formação de quatro coleções de arte moderna e contemporânea de proveniência particular – José-Augusto França, Manuel de Brito, José Berardo e António Cachola – que originaram um núcleo, um centro de arte e dois museus, em espaços públicos adaptados à sua nova função. Essa musealização é, contudo, problematizada porque as coleções poderão retornar ao espaço privado da sua propriedade, após o período de duração dos respetivos protocolos. Palavras chave: Museu. Coleção. Colecionador Privado. Público.

Abstract: This article reflects the study of four modern and contemporary art collections of private nature – José-Augusto França, Manuel de Brito, José Berardo e António Cachola – which originated a nucleus, an art center and two museums, all in public spaces and adapted to their new function. This turn toward “musealized” collections must, however, be vigorously analyzed as the collections themselves may return to the private sphere once the public display protocols have ended. Keywords: Museum. Collection. Private Collector. Public. Introdução

Em Portugal, a primeira década do século XXI ficará na história da museologia da arte como aquela em que se abriram ao público várias coleções de proveniência particular, em espaços adaptados e vocacionados para esse efeito. Abriu, por exemplo, o Núcleo de Arte Contemporânea Doação José-Augusto França (NAC-DJAF), em Tomar, no ano de 2004; a Ellipse Foundation for Contemporary Art Collection, Cascais, e o Centro de Arte Manuel de Brito (CAMB), em Oeiras, em 2006; o Museu Coleção Berardo de Arte Moderna e Contemporânea (MCBAMC), em Lisboa, o Museu de Arte Contemporânea de Elvas Coleção António Cachola (MACE), em Elvas, em 2007; a prefiguração do Museu do Design e da Moda Coleção Francisco Capelo (MUDE), em Lisboa, em 2009. Essas iniciativas indiciam um ambiente dinâmico e promissor, no âmbito dos museus de arte e do colecionismo particular, abrindo novas questões e motivos de reflexão nesta área.


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em Portugal.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 17-31.

Duarte, Adelaide (2013) “Da coleção ao museu: o colecionismo privado de arte moderna e contemporânea

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Este artigo sistematiza a investigação desenvolvida no âmbito do doutoramento, no qual se problematizou a formação de coleções de arte por particulares, na óptica da sua disponibilização pública, através da criação de novos museus (DUARTE, 2012). Analisam-se quatro coleções: a do crítico e historiador da arte José-Augusto França, do marchand galerista Manuel de Brito, do investidor José Berardo e do empresário António Cachola. Estas coleções, de arte moderna e contemporânea, reunidas a partir de meados do século XX, de âmbito nacional e uma internacional, originaram, respetivamente, o NAC-DJAF, o CAMB, o MCBAMC e o MACE. A partir do pressuposto de que colecionar pode ser uma idiossincrasia do indivíduo, quais são os principais vetores de divergência para com a prática de um colecionismo de carácter institucional? (Lichtenstein,1995:28-30) entende que todas as “verdadeiras coleções são necessariamente privadas” porque têm a “marca do gosto do seu autor.” Segundo esta fonte, as que se constituem como um modelo institucional são coleções anónimas, objetivas e científicas. O colecionismo privado é perspetivado como a “manifestação de um sujeito,” onde o gosto tem o reflexo do seu rosto-autor nos objetos prediletos. Pelo contrário, a coleção institucional seguiria critérios de estilos, de escolas ou de categorias. Será que esta leitura se mantém na atualidade? O acesso público e a musealização das coleções particulares afigura-se determinante. Quais são as causas que levam o colecionador a prescindir do usufruto dos seus bens e a partilhá-los com o público? A filantropia, o prestígio social, os benefícios fiscais, a ideia de perenidade da coleção com o nome do colecionador ligado a uma instituição pública? E que tendências se registam contemporaneamente no colecionismo privado? Enunciámos algumas questões deste domínio que serão problematizadas neste artigo, mas que, todavia, não o esgotam. Numa perspetiva analítica, pretende-se compreender a estrutura das coleções e do colecionador (o perfil, o gosto, a estratégia, o contexto) e a sua musealização. Organizadas pela cronologia da sua constituição, parametrizam-se vetores segundo o método quantitativo para comparar as coleções e, também, para as singularizar. 1. José-Augusto França, a coleção de um crítico e historiador da arte Com muitos desses quadros eu convivera, em Lisboa e em Paris, outros estavam há muitos anos encaixotados, por preguiças da vida: vê-los assim, em conjunto [...] com um núcleo surrealista no meio [...] foi surpresa. Foi, durante dias, uma festa bonita no Chiado, que correspondeu, em data certa, a cinquenta anos de crítica que tinha feito o ‘coleccionador’ – que sempre se defende de o ser, por falta de meios, de espaço, de paciência e de psicologia. (FRANÇA, 2001: 365-366)


1.1 O colecionador que “sempre se defende de o ser”

Estudar a coleção de José-Augusto França (n. 1922), que “sempre se defende de o ser” por não se considerar colecionador, é uma incongruência retórica que deve ser lida sob a exigência intelectual de quem a profere. França, vê-se, antes, no papel de amateur e no de crítico e historiador da arte. Este cuidado linguístico radica na função que desempenhou – professor e historiador da arte contemporânea, por conseguinte, instrutor dos que se reveem nesse papel – e no modo, por excelência, como a coleção se constituiu, a oferta. Por outro lado, defende que uma coleção de arte exige um ‘programa coerente,’ um saber escolher, um gosto que garanta a qualidade e a autenticidade dos valores artísticos, em suma, um conhecimento em história da arte (FRANÇA, 1984: 204-206). Esta característica, ao invés de constituir uma negação do seu papel de colecionador, revela-se, antes, a sua singularidade. 1.2 A formação da coleção

França protagonizou uma plêiade de funções que o definem como um grande pensador do século XX: romancista, dramaturgo, crítico de cinema, artista, diretor artístico de uma galeria, crítico e historiador da arte, professor e acrescentamos o colecionador. Recordamos algumas funções, na sua relação com a formação da coleção de arte. Desde os anos 1940 que participa ativamente na vida cultural portuguesa. Em 1947, integrou o Grupo Surrealista de Lisboa, organizado por Cândido Costa Pinto por sugestão de André Breton. A atividade pública do Grupo foi reduzida; apenas se realizou uma exposição no então atelier de António Pedro e de António Dacosta, em janeiro de 1949, onde França expôs vários objetos, qual artista. A ligação ao surrealismo, para além de simbolizar, neste período, a expressão de uma liberdade desejada, verifica-se na presença preponderante deste movimento na coleção. França tem obras relevantes, por exemplo, de Fernando de Azevedo, Lemos, António Pedro, de Marcelino Vespeira (Carne vegetal, 1948), Alexandre O’Neill (A linguagem, c.1948). As duas últimas, de importância central para o surrealismo português, estão hoje no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado (MNAC-MC). Depois da aventura surrealista, sucedeu o papel de diretor artístico da Galeria de Março. Tratou-se de um projeto de curta duração, ativo entre 1952 e 1954. Através dele, dinamizou o incipiente mercado da arte português e promoveu correntes, como o neorrealismo, o abstracionismo, o surrealismo e a arte figurativa dos anos 1930 e 1940. O objetivo principal, “mais cultural que comercial,” foi o de contribuir para a criação de um gosto pela arte moderna na sociedade portuguesa, desígnio difícil, pois “tentar vender pintura em Portugal era como procurar vender frigoríficos no Pólo norte, as pessoas não precisavam” (França, 2009: 325-326). Desta atividade resultou a incorporação de peças, algumas adquiridas outras oferecidas, de artistas como Almada Negreiros, Lanhas, Joaquim Rodrigo ou Mário Eloy. O temporário diretor artístico da Galeria de Março enveredou pela crítica da arte.


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em Portugal.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 17-31.

Duarte, Adelaide (2013) “Da coleção ao museu: o colecionismo privado de arte moderna e contemporânea

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Membro da Association Internationale des Critiques d’Art, França presidiu esta associação (1985-1988), tornando-se num profissional neste domínio. A partir de 1971, dirigiu a Colóquio/Artes, Revista de Artes Visuais, Música e Bailado, da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) até ao seu termo, em 1996. Esta revista divulgou e valorizou a produção artística contemporânea no país, e fora dele. Na capa destacou-se a obra de vários artistas portugueses que vieram a figurar na coleção, como Vasco Costa, Joaquim Rodrigo, Noronha da Costa, João Cutileiro, Alberto Carneiro, René Bertholo ou José de Guimarães. A coleção que reuniu decorreu das suas funções profissionais e também esteve ao seu serviço. Por exemplo, quando dirigiu o Centro Cultural Português de Paris, da FCG (1983-1989), revestiu o gabinete com peças de arte moderna portuguesa que levou para Paris, da sua coleção e de amigos. Este objetivo de divulgar a produção artística do país foi continuado com a programação expositiva, onde mostrou a obra de muitos artistas modernos portugueses. A coleção iniciou-se em 1944 com a aquisição de um desenho de Júlio. Reunida ao longo de cinquenta anos, representa várias gerações de artistas portugueses do século XX, sendo a do colecionador a mais “nutrida de obras como de camaradagens” (França, 1997: 13-14). Formada por 186 peças, de 86 artistas, este número resulta da soma das obras expostas no MNAC-MC e das que foram doadas ao NAC-DJAF. A sua data da incorporação é, em geral, desconhecida, o que induz acaso e despreocupação no seu registo, mas a sua maioria foi oferecida ao colecionador, numa percentagem de 69%. Identificou-se, porém, o presumível primeiro inventário das obras de 1983, elaborado por Marie-Thérèse Mandroux-França, a sua esposa em segundas núpcias. Julga-se que a si se deve a organização da coleção como tal, atribuindo-lhe um sentido museológico. Predominantemente de pintura e de desenho, a coleção é de pequenas dimensões, condizente com a condição doméstica do seu usufruto. Do ponto de vista do gosto, sugerido pelos movimentos artísticos presentes, destaca-se o surrealismo, seguido do abstracionismo, com obras realizadas nos anos 1950 e posteriores, de artistas como Fernando Lanhas, Vieira da Silva ou Joaquim Rodrigo; e da nova-figuração, com obras realizadas nos anos 1960 e 1970 por artistas como José de Guimarães, os ligados ao Grupo KWY e os Quatro Vintes. Quase todos os artistas da coleção foram seus amigos e sobre eles publicou obras, prefaciou livros e escreveu artigos – Amadeo de Souza Cardoso, Almada Negreiros, António Pedro, Joaquim Rodrigo ou Noronha da Costa constituem exemplos. Outros foram por si escolhidos para figurarem em livros, revistas e mesmo nos compêndios da história da arte portuguesa do século XX que também escreveu. A oferta foi uma forma simbólica de retribuir o seu trabalho, significando também reconhecimento, confiança, amizade e cumplicidade. Esta circunstância coloca-a à margem do mercado da arte. É, pois, uma coleção instrumento de trabalho, ou de ‘autores,’ que foi, deste modo, comissariada pelo seu trabalho intelectual e pela sua vivência artística.


1.3 A passagem da coleção da esfera privada para a pública

Identificam-se três momentos que assinalaram a passagem da coleção da esfera privada para a pública. O primeiro foi em 1989, quando se exibiu a Peinture portugaise contemporaine dans une collection privée, no Centro Cultural de Paris da FCG. Foi a primeira apresentação de obras da coleção França, sob anonimato, atitude que pode entroncar em razões de discrição pelo papel que desempenhava no Centro. Em 1997, a coleção foi exibida no MNAC-MC, a pretexto da comemoração dos seus cinquenta anos de carreira. Aqui radica a ideia de doar um conjunto de obras da coleção a Tomar, a sua cidade natal, com o qual o município viria a constituir o NAC-DJAF. A Câmara nabantina adquiriu e remodelou uma antiga residência habitacional, convertendo-a num Núcleo da tutela do Museu Municipal João de Castilho. As obras ocupam todo o seu espaço exíguo, a título permanente. Inaugurado em 2004, a sua montagem esteve a cargo de uma Comissão Orientadora, à qual compete organizar exposições temporárias na galeria dos Paços do Concelho, um espaço que funciona como extensão do programa do Núcleo, desde 2000. Entre 2000 e 2010 contabilizaram-se 37.445 visitantes, no Núcleo permanente e nas exposições temporárias. O NAC-DJAF assenta num contrato celebrado entre o colecionador, o município e o então representante do Instituto Português dos Museus, em 2004. Apesar de ser uma doação de um conjunto de obras da sua coleção – em regime aberto, com contínuas doações —, aquele contrato integra uma cláusula que prevê a sua reversão para o MNAC-MC se o município não assegurar, durante dois anos, os encargos contratualizados, como o idóneo tratamento museológico das peças. Reconhece-se, pois, o risco do NAC-DJAF perder a sua atual função. 2. Manuel de Brito, a coleção de um marchand e galerista Pode parecer irrealista, mas a maior parte das peças têm histórias. Todas elas funcionam como amigos, familiares com sentimentos implícitos. (AFONSO, 1985: 20) 2.1 O colecionador marchand romântico

Manuel de Brito (n. 1928, m. 2005), negociante de quadros, desenvolveu uma atividade galerística de grande significado no contexto português. Ao longo da sua atividade profissional, de quarenta e um anos, reuniu um relevante número de obras de arte moderna e contemporânea, principalmente de artistas portugueses. A designação atribuída, de marchand romântico, foi parafraseada do título de uma entrevista realizada por Maria João Martins para o Jornal de Letras Artes e Ideias, em 1994. Ocorrida na sequência da exposição da coleção no MNAC-MC, naquele ano, nela ficamos a conhecer um Manuel de Brito que se sente violentado por discorrer sobre a memória que cada objeto reúne. Brito projetou nos objetos um conjunto de vivências que o fazia olhar, recordar e sentir emotivamente a coleção,


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a ponto de lhes atribuir sentimentos paralelos aos da amizade e da família. É, pois, um colecionador que atribui uma vida aos seus objetos e se fragiliza no momento de revelar essas histórias.

em Portugal.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 17-31.

Duarte, Adelaide (2013) “Da coleção ao museu: o colecionismo privado de arte moderna e contemporânea

2.2 A Galeria 111 e a formação da coleção

O reputado galerista Manuel de Brito começou por ser livreiro, inicialmente na Livraria Escolar Editora e, mais tarde, na Livraria 111, fundada em 1960, no Campo Grande. Especializada em livros escolares, nela ficaria ligado até 1983. Numa pequena sala que vagou ao lado da livraria, Brito principiou por mostrar obras de artistas portugueses, então de forma amadorística, longe de prever a importância que essa atividade teria na sua vida. Aquelas mostras incipientes deram lugar à abertura da Galeria com o mesmo nome, 111, no ano de 1964. Atualmente, a entrada da Galeria realiza-se pelo 113, um espaço ocupado em 1970. No ano seguinte, abriu uma sucursal no Porto, de seu nome Zen que, a partir de 1996, se passou a designar por Galeria 111 Porto. A partir de 2000, abriu um novo espaço, próximo da Galeria-mãe, no Campo Grande, que dispõe de uma reserva desafogada e de uma generosa área expositiva que permite mostrar outro tipo de obras, como instalações artísticas. A Galeria 111 desenvolveu uma programação regular desde a sua abertura, com exposições individuais e coletivas, e organizou também eventos culturais. Na década de 1960, verificou-se um grande dinamismo decorrente do contexto favorável de crescimento do mercado da arte que se fez sentir nesse período. Comparando a programação da Galeria com a coleção, verifica-se uma inequívoca complementaridade de papéis, o de galerista e o de colecionador. Observa-se que os núcleos mais coesos são constituídos por obras de artistas com quem o galerista trabalhou. Este gosto pela formação de núcleos autorais revela um perfil com a especificidade do enfoque, que procura acompanhar as sucessivas fases dos artistas que mais admirava. Júlio Pomar, Paula Rego, Eduardo Luiz, António Dacosta, Menez, Eduardo Batarda, António Palolo, Graça Morais são artistas que expuseram amiúde na Galeria e bem representados na coleção, figurando, inclusive, na sua metafórica pinacoteca de escolhas eletivas. Com eles desenvolveu laços de grande afetividade e cumplicidade, qual galeria de afetos, e as obras reunidas espelham muitas histórias de amizade. A importância destes núcleos de obras de autores da geração do galerista constituem a sua singularidade. A par deles, na coleção também se regista um conjunto de obras-primas, que figuram nos compêndios da história da arte portuguesa: Sá Nogueira (HIGHLIFE, 1964), Costa Pinheiro (a série Os Reis, 1960), António Palolo (O jardim das delícias, 1970), Dacosta, Júlio Pomar ou Graça Morais. Este fator torna esta uma das mais importantes coleções particulares de arte portuguesa, que se constitui de grande riqueza e valor patrimonial. A coleção tem 287 obras, de 97 artistas, o número de peças disponibilizadas ao público no CAMB, desde 2006. É sobretudo uma coleção de pintura, a técnica exposta de modo preferencial na Galeria; já outras expressões artísticas, como a instalação


ou a performance, estarão distantes da preferência do colecionador (SILVA, 1994). As obras provieram, na sua maioria, por aquisição direta aos artistas, na sequência das exposições na Galeria, e a particulares. O maior número de incorporações realizou-se entre 1964 e 1990 e, nesta década, verificou-se uma estabilização, decorrente do reconhecimento público da coleção. Devedora do projeto da Galeria, ao nível dos meios de investimento e das escolhas, a coleção também foi fruto do saber e da experiência que o meio artístico lhe proporcionou. Nela se representa a arte portuguesa do século XX, em sucessivos movimentos artísticos, com uma clara tendência para a figuração (Silva, 1994). Engloba obras modernistas realizadas a partir da década de 1910; surrealistas dos anos 1940; neo-realistas dos anos 1940-1950; abstracionistas dos anos 1950; a nova-figuração, a categoria mais expressiva na coleção, com peças de Lourdes Castro, René Bertholo, Eduardo Luiz, Costa Pinheiro ou Palolo; e neo-expressionistas patente em obras dos anos 1980. A presença dos movimentos artísticos da primeira metade do século XX, revela que a coleção está para além do trabalho galerístico e traduz o esforço que, por vezes, representou reunir algumas peças. Foi o que sucedeu com os painéis de Almada Negreiros, provenientes do Cine San Carlos, de Madrid, descobertos por Ernesto de Sousa (Sousa, 1983), e que integraram a coleção Brito após morosas negociações. O sucesso da sua atividade assenta quer na qualidade da programação expositiva quer sua personalidade. De carácter discreto e defensor de uma deontologia e ética profissional, o galerista granjeou respeito entre pares e a fidelização de clientes colecionadores. O trabalho que desenvolveu na Galeria 111 contribuiu para a construção de valores artísticos (Moulin, 1997), para dinamizar o mercado da arte e ajudou a criar um gosto pela arte contemporânea portuguesa. Esta galeria já histórica acumula, assim, a função cultural à comercial. 2.3 A passagem da coleção da esfera privada para a pública

Identificam-se duas fases significativas que marcam a passagem da esfera privada para a pública da coleção Manuel de Brito. A primeira aconteceu em 1994, no contexto do evento Lisboa Capital Europeia da Cultura 94. Neste ano, a coleção integrou a programação do MNAC-MC no âmbito da reabertura do Museu, após a sua remodelação. Esta mostra teve uma grande importância para a obtenção do reconhecimento público do seu papel de colecionador e do valor patrimonial das obras. Por outro lado, o conjunto exposto serviu de matriz à coleção agora disponível no CAMB. A segunda fase corresponde à inauguração do CAMB, em 2006, um ano após o colecionador falecer. A abertura do Centro efetiva a disponibilização das obras ao público, num espaço musealizado para esse efeito, o Palácio Anjos, em Algés (Oeiras). Este antigo edifício de veraneio e o jardim envolvente, adquirido pelo município, foi alvo de uma grande remodelação e ampliação, entre 2004 e 2006, com a construção de novo corpo de apoio multiusos. A intervenção efetuada procurou respeitar a imagem do Palácio.


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Para a abertura do Centro de Arte foi celebrado um protocolo entre o município e os herdeiros do colecionador. Ao abrigo deste acordo, a coleção foi cedida em regime de comodato, por um período de onze anos, em simbólica referência à designação da Galeria. Nele se designa que o município tem por competência gerir o Centro e garantir as condições idóneas de apresentação e salvaguarda das obras. Já a programação das atividades depende de uma comissão com funções consultivas. Esta adotou como estratégia promover exposições coletivas temporárias, organizadas cronologicamente, em simultâneo à apresentação de monografias de artistas com núcleos significativos. Entre 2006 e 2010, as exposições alcançaram 58.958 visitantes. O objetivo foi o de dar a conhecer a totalidade da coleção, de modo rotativo. Findo, porém, esse propósito, o público passou a encontrar no CAMB uma exposição permanente. 3. José Berardo, a coleção de um investidor Without always realizing it, the collector in fact also fulfils the dreams of others. It is this link between the individual dream and the dreams of others that assures the destiny of a collection that secures its place within society. (BERARDO, 1996: 6)

3.1 A ambiguidade de um colecionador investidor

José Berardo (n. 1944) figura entre os maiores colecionadores de arte contemporânea, do mundo atual, pelo montante investido na aquisição de obras de arte. Em Portugal, será o colecionador que mais despendeu neste tipo de obras (em arquivo, apuraram-se valores superiores a quarenta milhões de euros). Berardo pertence ao mundo dos negócios. Neste universo radica o seu saber e experiência, e as mais-valias que lhe permitiram formar as várias coleções que possui. No entanto, o seu perfil afigura-se ambíguo porque, por um lado, manifesta um gosto por colecionar e partilhar as obras com o público – e afirmou nunca ter vendido uma obra – e, por outro, a sua disposição para vender a coleção sugere o objetivo de investimento. Com efeito, a disponibilização pública da coleção de arte moderna e contemporânea, a mais valiosa entre as suas coleções, partiu da assinatura de um protocolo com o Estado português. Acordou-se a possibilidade de adquirir 862 obras, por via do direito de opção de compra, e segundo o valor de 316 milhões de euros, atribuído por uma leiloeira internacional, a Christie’s. Estamos, assim, perante uma grande coleção de arte, de âmbito internacional, de propriedade privada, passível de ser comprada pelo Estado português e, nessa medida, rentabilizada. 3.2 Francisco Capelo, o arquiteto de uma coleção internacional

A coleção de José Berardo, reunida no MCBAMC, de igual modo se poderia designar por ‘coleção Francisco Capelo.’ Deve-se a este economista e gestor, que participou na


gestão dos negócios do milionário português, o conceito, a estratégia e a aquisição das obras, entre 1993 e 1999. Neste período adquiriu 80% das mesmas e preparou as primeiras exibições. O papel determinante que desempenhou faz dele o ‘arquiteto’ da coleção. Capelo é também uma figura maior na arte de colecionar em Portugal. Desde 1990 que tem constituído as mais diversas coleções de arte, sendo a do MUDE a que detém maior visibilidade pública. Para a formação da coleção, Capelo principiou por definir o conceito: reunir obras de arte internacionais, ilustrativas das sucessivas tendências artísticas do século XX. Defendeu a importância da cronologia e da história, a ideia da raridade da obra de arte única, a excelência e a qualidade assegurada no percurso e na proveniência. Preterindo o gosto pessoal de Berardo, alargou as potencialidades interpretativas do conjunto de obras. Numa primeira fase, as aquisições focaram-se na produção artística do pós-Segunda Guerra Mundial. A ideia da coleção ancorar neste período tem sido exemplificada com a pretensa primeira compra da tela de Vieira da Silva (Composition, 1948), em 1992. No entanto, a análise da faturação arquivada fez concluir que a obra só ingressou na coleção em 2002, por venda de um conjunto de peças de Capelo a Berardo, o proprietário até essa data. A partir de 1997, aquela cronologia recuou até se abarcar as primeiras vanguardas do século XX na coleção. As aquisições iniciaram-se em leiloeiras internacionais, a Sotheby’s e a Christie’s, em 1993. Mas o recurso ao mercado das galerias de arte internacionais teve uma maior expressividade na formação da coleção. The Mayor Gallery, Galerie 1900-2000, Lisson Gallery, Galerie Albert Loeb, Adrian Mibus e a Waddington Galleries foram as galerias mais procuradas, situadas em Londres, Paris e Nova Iorque, as principais cidades da cena artística internacional de então. Observando as aquisições realizadas por Capelo, verifica-se que o movimento artístico com maior expressividade é a arte Pop, seguida da arte produzida na década de 1990, da abstração e do surrealismo, e das obras produzidas na década de 1980. A estratégia foi a de ter uma larga representação de artistas, onde a esmagadora maioria detém uma ou duas obras na coleção. A título excecional, verifica-se um conjunto de 117 obras de Fernando Lemos na coleção, comprado em 2005. É, pois, uma coleção de artistas. Entre estes, figuram muitos nomes consagrados na cena artística internacional, como Pablo Picasso, Salvador Dali, Piet Mondrian, Dubuffet, Niki de Saint Phalle, Andy Warhol, Lichtenstein, Mário Merz, Bernd e Hilla Becher, Paula Rego, Gerard Richter, Julian Schnabel, Cindy Sherman, Thomas Ruff. Com o afastamento de Capelo, o seu lugar não foi formalmente preenchido. A história da coleção entra numa segunda fase, com as incorporações a reduzirem-se substancialmente. Passou a contar-se com a sugestão de Maria Nobre Franco, então diretora do Sintra Museu de Arte Moderna (1997-2006) e de Isabel Alves, a coordenadora da coleção. A principal distinção face à estratégia antecedente foi introduzir-se um grande número de obras de artistas portugueses na coleção, uma opção divergente do conceito inicial. Com a abertura do MCBAMC, em 2007, esse papel passou a competir ao diretor artístico indigitado.


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3.3 A passagem da coleção da esfera privada para a pública

A partilha das obras com o público foi o principal desígnio da formação da coleção. Logo em 1993, Capelo mostrou as aquisições recentes na Galeria Valentim de Carvalho, Lisboa, sob anonimato do colecionador. A recetividade foi grande, considerando-se estar perante um conjunto de peças de qualidade, que comporiam um museu necessário para o país. Nesta data, não existia nenhuma coleção de âmbito internacional acessível ao público em instituições públicas; o Museu da Fundação de Serralves inaugurou em 1999 e o Centro de Arte Moderna, da FCG, apenas reuniu, no início da sua atividade, uma coleção com alguma dimensão internacional, o núcleo de arte inglesa, mas sem sistemática continuidade. Em 1997 abriu o Sintra Museu de Arte Moderna, causando muita expectativa. Acomodar a coleção no antigo Casino sintrense implicou a adaptação do imóvel às novas funções museais. Foi celebrado um protocolo entre o município e a Sintra Modernarte, uma sociedade constituída para cuidar da coleção, que definiu o regime de comodato do acervo durante dez anos (1996-2006). Neste período, a coleção, apresentada em exposições temporárias, foi visitada por 348.357 visitantes. Em 1996, foi também assinado um segundo protocolo entre a Sintra Modernarte e a Fundação das Descobertas/Centro Cultural de Belém, que estabeleceu as condições de armazenamento da coleção neste espaço. Estava criada a ligação ao espaço expositivo por excelência, no país, o Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém (CCB), no qual o colecionador ambicionava instalar a coleção. Em 2007 abriu o MCBAMC, ocupando a totalidade daquele Centro de Exposições. Esta situação alterou a identidade do Centro para a de Museu, com base numa coleção privada. Celebrou-se um novo protocolo e criou-se a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea – Coleção Berardo, por decreto-lei (n.º 164/2006, publicado a 9 de agosto). Esta tem por missão instalar, manter e gerir o Museu. A coleção ficou em regime de comodato por dez anos (2006-2016). Neste período, o Estado pode exercer o seu direito de opção de compra, pelo valor anteriormente avaliado. Acordou-se um fundo de aquisições, com a contribuição do colecionador e do Estado, em montantes iguais de €500.000. Partindo do pressuposto de que o Estado não investiria numa coleção privada, será que esta cláusula indicia a sua intenção de a adquirir? Nos primeiros dois anos, o Museu atingiu um milhão de visitantes. Para este resultado contribuíram vários fatores como a política de divulgação, a qualidade da coleção e do espaço, a sua centralidade mas, também, a sua gratuitidade. 4. António Cachola, a coleção de um empresário Essa viagem a Londres [1973] foi uma espécie de pedra de toque para um dos meus projectos futuros. Na altura ainda não o sabia mas, com o passar dos anos, essa viagem assumiu com mais clareza os contornos de causa, uma causa que teve como consequência a colecção que hoje se pode ver no Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE). [...] Visitei


todos os museus que consegui e observei coisas que só conhecia através de livros ou dos conteúdos noticiosos que o lápis azul deixava passar. (Cachola, 2009: 11).

4.1 O colecionador empresário empreendedor

O economista António Cachola (n. 1954), empresário na Delta Cafés, com sede em Campo Maior, tem-se destacado na cena colecionística portuguesa, ao longo da primeira década do século XXI. Promoveu um projeto de coleção que tem a especificidade de se disponibilizar ao público desde o seu início, primeiro numa exposição e, posteriormente, instalando-se num espaço adaptado a esse efeito, no coração do Alentejo, o MACE. Com esta metodologia contrariou a longa tradição colecionista que mostra as coleções a passarem da esfera privada para a pública depois da sua constituição ou após o falecimento do colecionador. Identifica-se uma forma de empreendedorismo neste desejo de partilha com o público, de intervenção cívica na comunidade em que se insere, gerando valor através do Museu. 4.2 A formação da coleção e o papel de João Pinharanda

Cachola começou a colecionar nos anos 1990 e a coleção ganhou rosto público em 1999. Para além do impacto que a primeira viagem a Londres provocou no colecionador, houve outros fatores que o aproximaram do mundo das artes. Nos anos 1980, acompanhou as exposições internacionais ibéricas de arte moderna decorridas em Campo Maior (a última foi comissariada por João Pinharanda) e, a partir de 1995, passou a ser um visitante atento à programação do Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo (MEIAC), em Badajoz. Este Museu configurou-se como um modelo para Cachola ao nível do âmbito de influência na região, e no enfoque da coleção. Esta incide na produção artística dos anos 1980, da região da Estremadura espanhola, portuguesa e da Ibero-América, nas várias linguagens plásticas e nos múltiplos suportes. A coleção Cachola segue esta linha, divergindo no seu âmbito que, neste caso, é apenas nacional. Neste estudo, entende-se por coleção o conjunto de obras que figuram no primeiro catálogo raisonné, publicado em 2009. O seu número, de 407, é muito superior às 116 peças anexas ao depósito acordado entre o colecionador e o município elvense, em 2001. Esta opção permitiu identificar três momentos significativos na sua constituição: 1999, 2001 e 2009. Em 1999 inicia a coleção. Nesse ano, Cachola pretendeu mostrá-la no MEIAC e foi aconselhado por António Franco, o seu diretor, a reunir primeiro um número suficiente de obras para esse objetivo. Este também sugeriu ao colecionador o nome de João Pinharanda, comissário com saber e experiência, para a completar e construir um discurso coerente (Jürgens, 2008). Assim se iniciou a colaboração do historiador da arte, um fator determinante na sua posterior indigitação como diretor artístico, durante os três primeiros anos de funcionamento do MACE


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(2007-2010). O conceito gizado para a coleção seguiu dois critérios, o do tempo e o do espaço. No primeiro, incidiu em obras realizadas a partir dos anos 1980, por razões pessoais, de cumplicidade geracional do colecionador, e também históricas, por alguns artistas alcançarem reconhecimento naquela década, inclusive internacional; o segundo diz respeito ao ‘espaço’ da arte contemporânea portuguesa (Pinharanda,1999). Deseja-se seguir percursos autorais, constituir núcleos, e não subordinar a coleção a temas, tendências ou disciplinas. Arte portuguesa anos 80-90. Coleção António Cachola foi o título da exposição do MEIAC. Mostraram-se 88 obras, de 34 artistas, a sua maioria produzida nos anos 1990. Manuel Rosa, Rui Sanches, José Pedro Croft, Xana, Pedro Proença, artistas com percurso desde os anos 1980, participaram na exposição mas com obras de produção recente. Também se mostrou o trabalho de Fátima Mendonça, Rui Serra, Marta Soares e Susana Campos, então jovens artistas cuja presença configurava uma coleção de ‘risco,’ com trabalhos ‘escolares,’ que ainda não tinham o reconhecimento dos ‘eventuais consensos’ (Pomar, 1999). Sentiu-se a falta de autores que fortaleceriam um ‘discurso inter-geracional,’ como Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Jorge Molder ou João Paulo Feliciano (Pinharanda, 1999). Hoje, todos eles fazem parte da coleção. Finda esta primeira etapa, a segunda corresponde ao momento em que se celebrou o acordo de depósito das obras entre o colecionador e o município de Elvas, em 2001. Por sua vez, a edilidade propôs o antigo Hospital e Mesa da Misericórdia de Elvas para MACE. O número de obras cresceu de modo substancial na última década, em virtude das aquisições continuadas. Segundo o catálogo raisonné, publicado em 2009, a coleção perfazia 407 obras, de 82 artistas. É, por conseguinte, uma coleção já bastante numerosa e que continua a aumentar. Em termos técnicos, regista-se o predomínio da fotografia, para além de vários suportes: desenho, pintura, escultura, gravura, instalação, vídeo. O recurso a várias linguagens técnicas, e mesma a sua confluência, é um desígnio do colecionador e uma característica da produção artística contemporânea. Relativamente aos núcleos que seguem o percurso dos autores, verifica-se uma certa hesitação. Alguns artistas detém um número significativo de obras na coleção – como José Pedro Croft, Jorge Molder, Marcelo Costa e André Gomes – mas trata-se, sobretudo, de séries de trabalhos e só a título simbólico poderiam demonstrar a evolução do respetivo percurso. As obras realizadas na década 2000 são mais representativas numericamente. Da autoria de artistas ‘emergentes,’ como Nuno Viegas, Pedro Gomes ou Rui Calçada Bastos, estes integram-se no contexto internacional, com uma linguagem de estilos plural (Melo, 2007). Verifica-se na coleção uma presença significativa de artistas que alcançaram prémios e distinções, na ordem dos 30%. Estas distinções significam reconhecimento e mérito sobre as obras e as potencialidades das carreiras artísticas, mas também consenso da parte dos agentes que configuram o sistema da arte português. A maioria das obras ingressou na coleção por via aquisitiva, feita diretamente aos artistas, embora se tenham registado compras a galerias portuguesas e internacionais.


4.3 A passagem da coleção da esfera privada para a pública

A exposição no MEIAC, realizada em 1999, foi o primeiro momento de passagem da coleção do domínio particular para o público, com a durabilidade do calendário expositivo. A segunda etapa corresponde à abertura do MACE, na cidade raiana de Elvas, em 2007. Este momento constituiu-se como uma das etapas mais significativas deste projeto colecionista. Motivada pela iniciativa particular, a sua concretização convergiu do interesse entre o colecionador e o poder autárquico e central. Para este efeito, António Cachola assinou um acordo com a autarquia elvense, em 2001, no âmbito do qual a coleção, de arte contemporânea portuguesa, foi cedida em regime de depósito, por um período de treze anos. Ficou previsto o colecionador acrescentar novas peças ao seu espólio, ficando essas obras no MACE em regime de empréstimo. A coleção foi instalada no antigo Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Elvas, um edifício com qualidade patrimonial, adquirido e adaptado pelo município à função de Museu. A intervenção guiou-se por premissas como a proteção do edificado, a nova funcionalidade e a neutralidade para com o discurso das obras. No que concerne à gestão, o município garante a equipa, o funcionamento e a sua manutenção. A estratégia expositiva adotada foi a de dar a conhecer a coleção através da apresentação de obras em sucessivas exposições temporárias, uma programação da responsabilidade de João Pinharanda, o diretor artístico. Entre 2007 e 2010, foram contabilizados 23.396 visitantes. A servir de extensão às galerias do MACE, é utilizado o lugar do Paiol de Nossa Senhora da Conceição que, apesar de exíguo, tem características cenográficas que enriquecem a narrativa da exposição. Com a saída de Pinharanda da direção do MACE – um lugar vago até à data —, a programação passou a ser proposta pelo colecionador, com o apoio da equipa do Museu e a cooperação de outras instituições. Conclusão

O estudo destas coleções demonstrou estarmos perante colecionadores heterogéneos, cuja motivação para as reunir advém do contexto e da interação social e profissional que desenvolveram. Da experiência acumulada, e da formação cultural e intelectual, derivou a construção do gosto que se reflete nas opções estético-artísticas dos colecionadores. As coleções, ao nível da sua natureza, são de carácter panorâmico, históricas, com autores e obras representativas dos sucessivos movimentos artísticos do século XX e XXI, e uma de âmbito internacional, a Berardo. Apenas a coleção Cachola apresenta a característica do enfoque. Sobre as tendências do gosto, à luz da sua representatividade, predomina o surrealismo e o abstracionismo na coleção França; a nova figuração e o neo-expressionismo na Brito; a arte Pop e a realizada nos anos 1990, na Berardo. A este respeito, as fontes são omissas na coleção Cachola. Em termos da técnica, destaca-se a pintura por razões de gosto mas, possivelmente, também por razões de reserva de valor que ainda se associa a


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esta técnica. Uma das características diferenciadoras do colecionismo institucional face ao particular é a objetividade da definição do conceito e o recurso a profissionais para o implementar. Porém, muitas coleções particulares têm recorrido a estas estratégias, revelando, também, um carácter institucional. A coleção particular já não é necessariamente a manifestação do sujeito ou a marca do gosto-rosto do seu autor. Por outro lado, a ação de colecionar tende a dirigir-se para o espaço público, mesmo quando é promovida pela iniciativa particular. Esta característica é reveladora de uma tendência no colecionar, no tempo presente (Stourton, 2007). A coleção Berardo e a Cachola inserem-se nesta tendência na medida em que, desde o momento fundador, tiveram o objetivo da dimensão pública no propósito de se musealizarem. Pelo contrário, a coleção França e a Brito desenvolveram-se com tempo, o da vida e das vicissitudes, e o interesse construído. São também duas coleções que beneficiam do prestígio e do valor simbólico associado ao papel profissional que ambos desempenharam na sociedade. Estas coleções foram transferidas para o domínio público, por via da musealização. No entanto, a sua acessibilidade não está assegurada. As coleções foram disponibilizadas por um período curto, de cerca de dez anos, respondendo a um conjunto de regras. A sua falta de cumprimento permite, a cada um dos outorgantes, antecipar o terminus protocolar. Deste modo, o quadro de otimismo associado à proliferação de museus, na primeira década do século XXI, com base em coleções particulares, apresenta o constrangimento das regras protocolares que mantém a propriedade privada. Mesmo na única doação verificada, a coleção França, contempla-se a sua reversão em favor do MNAC-MC. Será, pois, de acautelar a identidade e a vocação destes espaços após o período sucessor do protocolo, agora identificada com a coleção que acolhe. Por conseguinte, o poder político deve ter a capacidade de negociar o prolongamento dos acordos e saber apelar à generosidade dos colecionadores para que estes abdiquem, progressivamente, das suas coleções em favor da causa pública, maximizando o investimento público efetuado. Contactar a autora: duarte.adelaide@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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Conhecer, Conservar, Valorizar. Dos antecedentes de uma campanha de fundraising ao prémio APOM 2012

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Know, Preserve, Appreciate. From the background of a fundraising campaign to the APOM prize 2012

Alexandra Braga Museu de Lamego, Universidade Lusófona

ao prémio APOM 2012.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 32-41.

Braga, Alexandra (2013) “Conhecer, Conservar, Valorizar. Dos antecedentes de uma campanha de fundraising

de Humanidades e Tecnologia de Lisboa

Resumo: Este artigo trata do projeto em curso no Museu de Lamego, Conhecer, Conservar, Valorizar, delineado a partir da necessidade de definir uma estratégia de ação, que visasse colmatar a ausência de meios relacionados com a preservação do seu acervo. Iniciado em 2011 e galardoado, no ano seguinte, com um prémio da APOM, pretende-se uma abordagem sobre as motivações que conduziram ao reconhecimento e apontar caminhos para a sua conclusão. Palavras chave: Museu de Lamego. Gestão de Coleções. Fundraising. Público.

Abstract: This article concerns the project currently underway in the Lamego Museum, “Conhecer, Conservar, Valorizar” (Know, Preserve, Appreciate), designed from the need for a plan of action that aims to minimize the absence of means for the preservation of its collection. Started in 2011 and awarded in the following year with a prize from APOM, we aim to approach the motivations that led to this recognition and point the way to its completion. Keywords: Museu de Lamego (Lamego Museum). Collection Management. Fundraising. Audience Introdução

Conhecer, Conservar, Valorizar insere-se numa estratégia de afirmação do Museu de Lamego assente em linhas programáticas de estudo, conservação e comunicação do património cultural, que tem como princípio estruturante um modelo que privilegia a relação entre o(s) público(s) e as memórias que as coleções do museu evocam, no quadro do papel educativo que cabe aos museus, enquanto mediadores fundamentais na relação que se estabelece entre o público e o património cultural. Nesse sentido, deve, o museu, ser responsável pela promoção da criação permanente de novas problematizações, novos conteúdos e novas abordagens, de modo a dar resposta não só aos desafios colocados por uma sociedade em constante mutação, mas também de ser capaz de provocar e gerar a própria mudança. Composto por diversas componentes e obedecendo a diferentes formatos propiciadores de múltiplas abordagens, que visam refletir sobre o modo como nos


posicionamos em relação ao património cultural, e em última instância, em relação a nós mesmos, o projeto tem como epicentro, a conservação do valioso acervo do Museu de Lamego, numa visão abrangente e como elemento fundamental do modelo de gestão do museu. Com uma história de 96 anos, o Museu de Lamego possui uma coleção que, não sendo muito numerosa, integra objetos que são referências no panorama da história da arte portuguesa, de que são exemplo o conjunto de 18 obras distinguidas com a classificação de Tesouros Nacionais e sobre as quais incidem medidas excecionais, no que respeita à sua salvaguarda, estudo, conservação e divulgação. Excluído desta categoria encontra-se um conjunto muito significativo de objetos que, para além de inegáveis qualidades estéticas, artísticas e significado histórico, partilham o mesmo tipo de vulnerabilidades em termos de conservação, que poderão comprometer a sua preservação, caso não se submetam a uma intervenção de conservação e restauro urgente e não se assegure uma estratégia de gestão integrada. Seria justamente sobre estes objetos que recairia a atenção do projeto, apresentado na Noite dos Museus de 2011, sob a forma de uma campanha de fundraising. Ao fim de um ano de intensa atividade, foi possível aferir os primeiros resultados, concluída a intervenção de conservação e restauro da primeira de dez obras recenseadas, como corolário de diversas iniciativas, cujo sucesso dependeu de uma comunicação eficaz e do envolvimento do público em todo o processo. O mérito do projeto seria reconhecido, a nível nacional, em dezembro de 2012, ao ser galardoado com o prémio da APOM – Associação Portuguesa de Museologia, na categoria de “Melhor Intervenção em Conservação e Restauro”, pelo pioneirismo e inovação que configura. Numa altura em que a segunda edição do projeto é uma realidade ainda embrionária, o momento é de viragem. De reflexão sobre o caminho percorrido e de experimentação de novas possibilidades alicerçadas na prática adquirida anteriormente. Dividimos o texto em duas partes, que decorrem do parágrafo anterior: na primeira, descrevem-se os antecedentes, principais componentes e processo de execução das diversas fases já concluídas; na segunda, apontam-se sumariamente caminhos com vista à conclusão do projeto, o que só ocorrerá quando a intervenção de conservação e restauro de todas as obras contempladas for uma realidade. 1. Conhecer, Conservar, Valorizar 1.1 A viagem do rinoceronte (1.º capítulo)

Em 2010, quando decorriam os trabalhos de reestruturação do espaço destinado à reserva de pintura do Museu de Lamego, foi descoberta uma gravura encaixilhada numa velha moldura sem vidro que, apesar da sucessão de camadas de sujidade que dificultavam em muito a sua leitura, de imediato surpreendeu pelas dimensões, invulgarmente grandes (76x126 cm), e pela presença de policromia, que se adivinhava vibrante sob a acumulação de poeiras; o tema iconografado – uma alegoria – onde


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se evidenciava a figura de um rinoceronte, réplica do famoso desenho de Albrecht Dürer (1515), e o apurado domínio da técnica de buril, revelando um desenho de grande correção e rigor académico, confirmavam a convicção de uma produção de grande erudição, porém, obscurecida pela velatura operada pela voragem do tempo e pelo facto de ser completamente desconhecida (Figura 1)

Fig.1 - Gravura África (antes da intervenção) © Museu de Lamego, José Pessoa, 2011

As diversas inscrições revelavam os nomes de Pierre Landry (at.1650-1701), um prestigiado gravador e editor parisiense, com oficina na rua de saint Jacques (JIMÉNO, 2009) e de Louis Licherie de Beurie (1629-1687), discípulo do pintor régio da corte de Luís XIV, Charles le Brun, com quem colaborou na manufatura de Goblins, na execução de cartões a partir de obras do mestre (GOLDESTEIN, 1969). O facto de o próprio Charles le Brun ter tratado o mesmo tema, primeiro nas decorações do Palácio do Louvre (c.1664) e, mais tarde, em Versalhes, na grande escadaria dos embaixadores (reputada como uma das suas obras primas, foi destruída em 1752) (SABATIER, 2000) colocaria em evidência a circunstância de estarmos perante uma obra de grande interessante, que nos remetia para um contexto de produção artística extraordinário, de difusão e exaltação do poder, promovido pelo Rei-Sol Luís XIV de França (SABATIER, 2000), mas que arriscava perder-se, caso não fosse urgentemente recuperada. Definida a necessidade da conservação e restauro da gravura como prioridade dava-se início ao que apelidamos a viagem do rinoceronte (SANJURGO, 2013), — numa alusão à viagem do paquiderme, procedente da Índia para Lisboa e com destino a Roma, que Dürer eternizou numa que se tornaria das mais célebres gravuras de sempre e também a que mais reproduções originou – das reservas do museu para uma sala de exposição e, daí, para um ateliê de conservação e restauro de documentos gráficos, no Porto, onde viria a ser beneficiada. 1.2 A campanha de fundraising

Neste contexto, afigurou-se a promoção de uma iniciativa de angariação de fundos, que permitisse ultrapassar a completa ausência de meios materiais e humanos e o alargamento da campanha a um conjunto de obras de referência do Museu, igualmente muito fragilizadas em termos da sua conservação (Quadro 1).


Importa referir que o Museu de Lamego não possui, no seu mapa de pessoal, nenhum técnico com formação superior em conservação e restauro, nem oficina (e/ ou laboratório) devidamente equipada que pudesse acolher recursos externos, o que limita a sua capacidade de intervenção no domínio da conservação preventiva; se as essas circunstâncias, juntarmos o facto de o edifício se debater com diversos problemas estruturais, como a falta de impermeabilização e isolamento, facilmente se pode depreender que o número de objetos do museu a necessitar cuidados de conservação e restauro ultrapassa largamente os objetos referenciados. No fundamento da seleção estiveram critérios como: a representatividade no contexto específico da coleção do museu, o significado histórico e qualidades estéticas e artísticas. De sublinhar que, apesar da relevância de que se revestem, alguns dos objetos se encontravam apeados da coleção permanente há largos anos devido às debilidades que apresentam. Categoria

Identificação

Autoria

Datação

Metais

Cruz processional

Desconhecida

Séc. XIII e XV

Escultura

Cruzeiro

Desconhecida

1480-1525

Pintura

Quo Vadis?

Artista seguidor de Vasco

Séc. XVI

Fernandes Pintura

Calvário

Gonçalo Guedes (atr.)

Séc. XVI

Pintura

Três anjos visitam Abraão

Artista seguidor de Jan

Séc. XVII

Brueghel, o Velho Pintura

O Sacrifício de Abraão

Artista seguidor de Jan

Séc. XVII

Brueghel, o Velho Pintura

Santa Ana e a Virgem

Artista seguidor de Jan

Séc. XVII

Brueghel, o Velho Pintura

Descanso na fuga para o Egito

Artista seguidor de Jan

Séc. XVII

Brueghel, o Velho Ourivesaria

Salvas com pé

Desconhecida

Séc. XVII

Gravura

África

Lauurs Coenradt, a partir

Séc. XVII

de L. Licherie Quadro 1 - Obras do Museu de Lamego incluídas na campanha de fundraising

Estabelecidos o propósito e objeto do programa de fundraising, importava criar uma narrativa (NIGHTINGALE, 2008a) que enformasse o conceito Conhecer, Conservar, Valorizar, como parte integrante da gestão global do museu, aberta à experimentação de novas estratégias de relacionamento com os públicos, capazes de promover a “formação e fidelização de uma audiência (…) activa, participativa e crítica” (SILVA, 2006: 162) e, por essa via, o reposicionamento do papel do museu na comunidade, enquanto instituição cultural e educativa. Implícita a essa abordagem, esteve o enfoque na construção de uma relação de crescente cumplicidade entre o(s) público(s) e o património que o museu possui, e a partir da qual se organizou o evento de


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apresentação pública do programa de fundraising que simbolicamente decorreu em maio de 2011, por forma a comemorar a Noite dos Museus, subordinada, esse ano, ao tema Museus e Memória. Em correspondência com o que refere Javier Pes “More an art than a science, charm, institutional prestige and powers of persuasion are crucial in fundraising” (Pes, 2008:49), a apresentação da campanha decorreu num ambiente de festa e animação, tendo atraído cerca de centena e meia de convidados, que atravessaram a passadeira vermelha que os conduziu ao pátio interior do Museu, onde seriam brindados por um concerto de guitarra clássica, por alunos do Conservatório de Música de Vila Real, acompanhado de um beberete confecionado e servido pela Escola de Hotelaria e Turismo do Douro. Entretanto, nas paredes envolventes, iam sendo projetadas imagens das obras do museu para as quais se pretendia sensibilizar a atenção dos convidados. O programa prosseguiu, no interior do museu, com uma visita orientada pelo itinerário Conhecer, Conservar, Valorizar, integrado em diferentes espaços do percurso da exposição permanente, de modo a que as obras fossem apresentadas em harmonia com diferentes narrativas destinadas a sublinhar contextos diversos de produção, as principais vulnerabilidades que apresentam e respetivas propostas de tratamento. A noite terminou com a atribuição de certificados aos alunos do Colégio da Imaculada Conceição, de Lamego, que tinham obtido menções honrosas no concurso nacional A minha escola adota um museu, palácio, monumento, como forma de agradecimento pelo seu contributo na campanha de fundraising, na medida em que os trabalhos submetidos ao concurso, elaborados a partir das coleções do museu, pressupunham a angariação de fundos, através da confeção e venda de doces. (Figura 2) O sucesso desta primeira iniciativa ficaria a dever-se a diversos fatores, dos quais destacamos: a aposta na divulgação e comunicação, com a criação de uma identidade visual específica e a produção de materiais gráficos apelativos e de boa qualidade, com grande repercussão nos órgãos de comunicação social, redes sociais e listas de mailing, o conjunto de parcerias locais envolvidas e a articulação com a comunidade educativa.

Fig. 2 - Preparação de doces no âmbito do concurso A minha escola adota um museu…©Museu de Lamego, Patrícia Brás, 2011

Aos primeiros donativos angariados na noite de lançamento juntar-se-iam outros, sobretudo, de privados, obtidos através de iniciativas em que os participantes eram convidados a colaborar com um montante, previamente estabelecido,


deduzido ao custo das mesmas, ou através de contribuições diretas, no contexto da visita ao museu e no espaço especificamente destinado para o efeito. O primeiro capítulo da campanha terminaria com a produção de um mural dos mecenas, onde foram divulgados todos os nomes que aderiram ao fundraising, e com a intervenção de conservação e restauro de uma das obras inscritas no projeto, a gravura África, que inicialmente despoletara todo o processo e, por força das circunstâncias, serviria de pretexto para o segundo capítulo. 1.3 A viagem do rinoceronte (capítulo II)

O segundo capítulo ficaria marcado pelo regresso ao Museu de Lamego da gravura África depois de concluída a intervenção de conservação e restauro, efetuada por uma empresa de referência na conservação de documentos gráficos. A peça apresentava problemas evidentes de degradação do suporte, sob a forma de extrema sujidade superficial e entranhada, inúmeras ondulações, vincos, dobras e rasgões, assim como oxidação do verniz e uma forte coloração castanha, implicando grave prejuízo na leitura da composição, para além de inúmeras manchas de maré, resultantes da penetração de água (VELEDA, 2012:2). Sucintamente, o processo de conservação e restauro compreendeu diversos exames de observação e análise; a limpeza mecânica e química, por via aquosa, depois de ponderados os vários testes efetuados (VELEDA, 2012); a remoção dos vários suportes secundários, vincos e ondulações e preenchidas as lacunas. O processo ficaria concluído com a elaboração de um passpartout para exposição e posterior armazenamento. Através de uma intervenção suportada exclusivamente por pequenos donativos, tinha sido possível recuperar e devolver a leitura a uma obra que, apesar da relevância, permanecia desconhecida na sua real dimensão. (Figura 3)

Fig. 3 - Gravura África (depois da intervenção) ©Museu de Lamego, José Pessoa, 2012

Nesse contexto, de agremiação do público, sob a forma de doadores privados, para participar ativamente na preservação das coleções, torna-se evidente uma aproximação entre o público e o património, que cabia ao museu acarinhar e ampliar: Once hooked, relationships with private donors need to be nurtured. (…) It means inviting them to events, keeping them up to date on projects with newsletters and bulletins


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(…) in short, trying to bring them as close as possible to the work you are doing. (NIGHTINGALE, 2008b)

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Apontando na mesma direção, Alexandre Beites (2012:14) vai mais longe, ao sustentar a necessidade de fomentar uma linguagem emocional na relação com o público. “ Uma comunicação mais intimista, mais próxima, alicerçada em valores universais e culturais que fazem parte da condição humana e que devemos emprestar à comunicação num museu”. Acrescenta ainda que, como feedback de uma comunicação mais humanizada, vai ser a própria comunidade “a construir parte da identidade do museu.”, tornando-se, por isso, essencial que se criem “condições para que a expressão do público seja relevante na marca do museu”. (2012:14-15) Partindo destas considerações e na esteira do que já havia sido ensaiado anteriormente, na persecução dos objetivos da campanha houve lugar a uma mudança de atitude, que se traduziu numa efetiva transferência do centro, em torno do qual gravitava todo o projeto, dos objetos para a relação, nos dois sentidos, público-objetos. Uma das consequências mais diretas desta mudança relacionou-se com o desafio de envolver o público no processo da criação e realização da programação do dia e noite dos museus de 2012, mais uma vez, vinculada ao projeto Conhecer, Conservar, Valorizar, numa lógica propiciadora de uma oferta diversificada e transversal e de se assumir o museu como um espaço onde se cruzam diferentes olhares. As Artes cruzadas encheram o Museu de Lamego, com performances (aut. Alexandre Sampaio) música clássica (Quarteto de Cordas do Grupo de Jovens da Sé), dança clássica (Escola de Bailado de Vila Real) e contemporânea (ArtDance) e magia (Prof. Chasten) apresentadas pelo público e para o público, com diferentes idades, vivências e sensibilidades, com o fito de emprestar maior visibilidade à apresentação pública do resultado da intervenção da primeira das peças a beneficiar do fundraising e à exposição das propostas de pastelaria criativa (réplicas em chocolate e em pão, de outros objetos inseridos na campanha). Elaboradas por alunos de pastelaria da Escola de Hotelaria e Turismo do Douro, no âmbito do concurso A minha escola adota um museu, palácio, monumento…, estas destinavam-se a um leilão a reverter para a conservação das obras, agregando os objetivos da Escola com os do fundraising. (Figura 4)

Fig. 4 - Noite dos Museus 2012 © Museu de Lamego, Alexandra Braga, 2012

Longe de se esgotar no retumbante êxito, que atraiu cerca de 400 participantes, houve um longo trabalho preparatório de interação de todos os atores envolvidos na


apropriação dos espaços e património do museu, a que emprestaram as suas sensações, emoções e vivências, propiciadora de uma experiência global do museu, com repercussões ao nível do sentimento de pertença e de identificação com esse património, que tiveram um forte impacto na comunicação com o exterior. Os vídeos e notícias regularmente disponibilizados nas redes sociais, que acompanharam todo o processo de construção e montagem do evento, com atores que a comunidade facilmente identificava, porque inseridos na mesma, despoletariam uma apetência muito especial para que tivesse sido a própria comunidade o principal veículo de publicitação da programação e a posterior adesão Num sentido mais amplo e a longo prazo, a comunicação do projeto de fundraising e do próprio museu sairiam reforçados, conquistando maior visibilidade, projeção e o reconhecimento nacional, que a atribuição do prémio da Associação Portuguesa de Museologia (APOM), em dezembro de 2012, viria reforçar. 2. Conhecer, Conservar, Valorizar. Que futuro?

O prémio da APOM, corolário das iniciativas promovidas entre 2011 e 2012, para além do evidente sentimento de orgulho pelo caminho percorrido, trouxe consigo o aflorar de algumas inquietações e questões relacionadas com o futuro do projeto Conhecer, Conservar, Valorizar, numa altura em que o objetivo final (a conservação e restauro da totalidade das peças incluídas) estava longe da sua conclusão e num aparente impasse. Tornando-se evidente a necessidade de abrir espaço à reformulação e introdução de novas abordagens e conteúdos, de modo a evitar que viesse a resvalar para o esquecimento, com que parecia comprometido, o atual plano de ação iniciou-se com a construção de uma nova narrativa ao itinerário das obras para as quais se pretende continuar a chamar a atenção e a todo o projeto. Desde o lançamento do fundraising, integradas na exposição permanente, conquistaram, recentemente, uma sala própria, no final do percurso do museu. (Figura 5) Pretendeu-se, assim, reunir num só espaço as diversas componentes do projeto, antes dispersas, num favorecimento de maior unidade e coesão entre as partes, e de renovação e atualização da imagem. Paralelamente, houve a preocupação de materializar uma visão holística do património e da sua gestão, que não se esgota nos objetos e preservação dos mesmos, mas na sua relação com o público, que se traduziu na introdução de conteúdos multimédia, onde a experiência do público ao longo de toda a trajetória do projeto está fortemente vincada, e na introdução de um conceito dinâmico ao mural dos mecenas, cuja expressão e crescimento dependerá dos registos que aí deixarem em post its.


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Fig. 5 - Exposição Conhecer, Conservar, Valorizar © Museu de Lamego, Paula Pinto, 2013

Entrando no plano das ações previstas, refira-se o projeto de edição de uma revista científica on-line, com a colaboração de especialistas portugueses e estrangeiros, nos domínios da história, história da arte e conservação e restauro, que reúna uma visão integradora e contextualizante das obras em destaque; o alargamento da rede de parcerias envolvidas; a captação de mecenas do tecido empresarial; a intensificação da oferta educativa especificamente relacionada com o projeto; a aposta numa comunicação mais assertiva, que compreenderá a realização de material audiovisual, de acesso universal e gratuito, de caráter formativo e informativo, em vários formatos, de acordo com a heterogeneidade de públicos e, entre outras, a produção de merchandising específico. Conclusão Não sendo novidade que atravessamos um período difícil que afeta negativamente as instituições culturais, a crise tem obrigado os museus a repensar o papel das suas coleções, modelos de gestão e estratégias de comunicação. O fundraising, francamente enraizado noutros países, tem sido pouco explorado nos museus portugueses e, menos ainda, como parte integrante de um modelo abrangente, pluridisciplinar e transversal da gestão de coleções, o que acentua o pioneirismo e caráter inovador do projeto em desenvolvimento no Museu de Lamego. Encarado como um meio de minorar os efeitos da crise, Conhecer, Conservar, Valorizar, para além das receitas que tem vindo a proporcionar, tem sido também uma plataforma de crescente cumplicidade com o público, em particular, da comunidade onde o museu se encontra inserido. Tem sido igualmente uma fonte de enriquecimento pessoal e profissional, pelas aprendizagens e partilha de experiências que tem propiciado a todos aqueles que têm acompanhado o seu crescimento, com muita persistência, empenho e dedicação, sobretudo, a equipa do Museu de Lamego, a quem dedicamos este artigo. Contactar a autora: alexandrabraga@sapo.pt Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013


Referências · BEITES, Alexandre. A Inclusão da Emoção na comunicação museológica – contributos do markting de serviços. Ensaios e Práticas em Museologia, n.º 2 Porto: Departamento de Ciências e Técnicas do Património da FLUP. Disponível em < http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/10513.pdf > . Acesso em 21 mar. 2012. · GOLDSTEIN, Carl (s/data) “The Theory and Practice in the French Academy: Louis Licherie’s Abigail and David”. The Burlington Magazine. V. 111, n.º 795 The Burlington Magazine Publications Lda. [346-351]. Disponível em <www. jstor. org/stable /876001> Acesso em 28 abr. 2011. · JIMENO, Frédéric. (2009) “Les tailles-douces en tableau de Pierre Landry et de ses héritiers (1679-1720)”, Bulettin de la Société de l’Historie de l’Art français. Paris: Société de l’Histoire de l’Art français. Disponível em: http://www.academia.edu/1259377/Les_taillesdouces_en_tableau_de_Pierre_Landry_et_de_ses_heritiers_1679-1720_ Acesso em 15 abr. 2013. · PES, Javier (2008) “Introduction: Fundraising”. Issue, n.º42 [49]. Disponível em <http://www.museumsassociation.org/museum-practice/fundraising/16527> Acesso em 27 abr. 2013. · NIGHTINGALE, Julie (2008a) “Planning a successful fundraising campaign”. Issue, n.º42 [50-52] Disponível em <http://www.museumsassociation.org/museum-practice/fundraising/16528. Acesso em 27 abr. 2013. · NIGHTINGALE, Julie (2008b) “Cultivating private donors” Issue, n.º42 [60-62] Disponível em http://www. museumsassociation.org/museum-practice/fundraising/16528. Acesso em 27 abr. 2013. · SANJURGO, Ana. “Los viajes del rinoceronte de Durero”. El Blog de la BNE Disponível em <htpp://blog. btne.es/?p=1307> Acesso em10 mar. 2013. · SEBATIER, Gérard. “La gloire du roi. Iconographie de Louis XIV de 1661 à 1672”. Histoire, économie et société. 19e n.º 4 [527-560] Disponível em http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/hes_07525702_num_19_4_2134 Acesso em 15 abr. 2011. · SILVA, Susana Gomes da. “Museus e públicos: estabelecer relações, construir saberes”. Revista Turismo & Desenvolvimento. n.º 5 (Jun. 2006) Lisboa: Editorial Notícias, 161-167. Disponível em < http://www.bprmadeira.org/imagens/documentos/File/bprdigital/revistas/turdesen/2006_n05.pdf > Acesso em 15 abr. 2013. · VELEDA, Mafalda. Relatório de Conservação e Restauro. 1 Gravura a Buril (relatório intercalar). Conservation Clinic ® [1-10] (policopiado), 2012.


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A degradação como performance. Questões Teórico-Práticas em Contexto Museológico – Três Peças de Miguel Palma

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Degradation as an artistic performance, Theoretical and Practical Issues in Museological context – Three art pieces of Miguel Palma

Alice Nogueira Alves Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Rodrigo Bettencourt da Câmara

Museológico – Três Peças de Miguel Palma.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 42-52.

Alves, Alice Nogueira; Câmara, Rodrigo Bettencourt (2013) “A degradação como performance. Questões Teórico-Práticas em Contexto

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: Neste artigo são analisadas questões relacionadas com a conservação de objectos artísticos que colocam em causa os conceitos de conservação e preservação de acervos museológicos. Como casos de estudo, foram escolhidas três peças do artista contemporâneo Miguel Palma. Palavras-chave: Conservação e Restauro. Documentação. Arte Contemporânea. Miguel Palma.

Abstract: This article analyzes issues related to the conservation of art objects that call into question the concepts of conservation and preservation of museum collections. As a case study, we selected three pieces of art produced by the contemporary artist Miguel Palma. Keywords: Conservation and Restoration. Documentation. Contemporary Art. Miguel Palma Introdução

Pensamos a obra de arte existente em contexto museológico como um elemento eterno, congelado num tempo imutável que permite preservar a arte contemporânea como testemunho dos nossos contextos sociais e culturais para as próximas gerações. No entanto, é já largamente consensual o facto de os métodos de produção artística e materiais utilizados pelos artistas contemporâneos, na maior parte dos casos invulgares no contexto tradicional, terem tornado este objectivo numa tarefa árdua e desafiadora para os Conservadores Restauradores dedicados a esta área. 1. O Contexto Museológico

Segundo a definição instituída pelo ICOM – International Council of Museums, o museu tem como objectivos principais: adquirir, conservar, investigar, comunicar e expor o património, seja ele material ou imaterial (DEFINIÇÕES, 2007).


Tendo este princípio em consideração, nos museus onde se expõem objectos como símbolos do desenvolvimento da criação artística do Homem, uma das suas principais funções é conservar as obras existentes no seu acervo, permitindo o seu estudo e usufruto, não só das gerações actuais, como das futuras. Uma espécie de local de memória, onde vamos registando a nossa evolução ao longo dos séculos. Este processo deve dedicar-se não só aos períodos da nossa História passados, como também ao momento contemporâneo. Este último aspecto merece alguma reflexão. Numa obra publicada em 1903, Aloïs Riegl defendia sermos nós, no momento contemporâneo, quem valoriza determinados períodos históricos em detrimento de outros, consoante os nossos enquadramentos históricos, sociais e culturais (RIEGL, 1999). Se assim acontece em relação ao passado, cujo conhecimento depende da própria evolução da História da Arte e das suas diferentes abordagens, como podemos considerar estas questões no presente? Qual o critério de selecção sobre o qual nos baseamos para fazer esta escolha das peças que nos irão representar no futuro? Estas questões têm ocupado muitas pessoas dedicadas ao tema ou sido suscitadas pelos próprios artistas, seguindo critérios que não cabe num trabalho desta natureza aprofundar. Entre vários aspectos, interessa-nos agora destacar alguns relacionados com os desenvolvimentos da Arte nas últimas décadas, como o conceito de Instalação, Performance, Efemeridade, ou mesmo, uma tendência dos anos sessenta e setenta, a autodestruição do objecto artístico (POWELL, 2007). Como conseguiremos conservar peças cuja finalidade é exactamente a oposta? Esta é uma das questões-base de toda a problemática da Conservação e Restauro da Arte Contemporânea. Quando a materialidade deixa de ser a sua característica mais importante e passa a haver todo um conjunto de elementos localizados num determinado local ou num período de tempo limitado, como se conserva este conjunto de características? Responder a este tipo de questões não tem sido tarefa fácil, começando a existir várias publicações, resultantes de congressos internacionais e nacionais, bem como de monografias ou estudos académicos que tentam investigar a fundo estas problemáticas e procurar soluções exequíveis, alguns dos quais no contexto português (MACEDO, 2008) (CAMPOS, 2011). As questões relacionadas com a conservação da Arte autodestrutiva e a sua conservação em contexto museológico foram estudadas por John D. Powell (2007). Este movimento teve como um dos seus eixos fundamentais a luta contra a instituição museológica. Encarada como capitalista, como desvirtuadora da própria arte e da sua função social, considerava-se que tirava o objecto artístico do seu contexto original, transformando num espécime isolado, um pouco como os animais dos Jardins Zoológicos, fora do seu habitat natural. Como meio de combater este aspecto, começaram a ser criadas obras autodestrutíveis, com períodos de tempo variáveis entre os minutos e os vinte anos, mas cujo objectivo final seria, teoricamente, o seu desaparecimento e eliminação total. Obviamente, na prática, estas vontades acabaram por não ser totalmente seguidas, até mesmo pelos próprios autores ao permitirem a


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Museológico – Três Peças de Miguel Palma.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 42-52.

Alves, Alice Nogueira; Câmara, Rodrigo Bettencourt (2013) “A degradação como performance. Questões Teórico-Práticas em Contexto

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conservação dos resultados materiais destas peças nos Museus. No entanto, tal como refere Salvador Muñoz Viñas (VINÃS, 2010), estes ‘restos’ de objectos ou de performances não podem ser considerados como a obra de arte original, mas apenas um símbolo seu, um ‘congelamento’ da sua componente performativa. Por essa razão, já não podemos considerar aquela peça como a original. Quando estas peças integram uma colecção podemos ainda observar outro tipo de procedimento: o travamento do processo de degradação. Uma espécie de ‘congelamento’ no tempo, ao modo dos Museus, quando conservam as várias etapas do nosso desenvolvimento artístico ao longo do tempo. De facto, este processo verifica-se nas colecções de arte antiga, onde as intervenções de conservação e restauro realizadas respondem a uma expectativa perante um determinado objecto de uma época histórica específica, sendo normalmente valorizado o aspecto do “antigo” portador desta leitura. Na arte contemporânea a expectativa é diferente, como está mais próxima de nós esperamos encontrar a obra com um aspecto novo, acabada de sair da mão do seu autor, sendo os sinais de degradação incomodativos e interpretados como ‘desleixo’. Quando nos deparamos com uma obra onde a degradação faz parte da sua própria essência conceptual, num processo demonstrativo da relatividade da nossa existência, com um princípio, meio e fim, ao qual assistimos mais ou menos passivamente, sempre com um sentimento de inevitabilidade presente, esta problemática torna-se complicada de resolver no nosso modo de pensar. Acabamos por ver no próprio testemunho um reflexo da nossa fragilidade. Mais uma vez frisamos o facto deste conceito de efemeridade, procurado por muitos autores, ir contra a necessidade de conservação ou seja do dito ‘congelamento’ do Museu, onde a peça adquire um estatuto de ‘relíquia’, a ser preservada sobre todos os meios, num culto à arte, à sua eternidade e à sua capacidade de passar gerações e ser usufruída e interpretada por todas de modo diferente. Com este discurso, pretendemos dar a entender as várias problemáticas levantadas por estas peças, não só do ponto de vista museológico, como da sua relação com a própria concepção. Neste contexto uma outra questão pode ainda ser discutida: Será que a materialidade acaba por ser novamente fundamental, baseando-se a performance na sua própria destruição, ou será a própria ideia de degradação o processo artístico? Esta nova contenda, onde aparecem os problemas da conservação da Arte Conceptual, é também de difícil resolução num contexto museológico. Se a obra acaba com o fim do objecto, apenas se definindo naquele objecto específico, temos uma obra de arte efémera. Se, por outro lado, ao terminar a performance, esta pode ser reiniciada com um novo objecto igual ou semelhante, o caso já muda de figura. Há muitos exemplos em museus internacionais onde este tipo de procedimento acontece, sendo a obra constantemente substituída segundo indicações precisas do seu autor, num ciclo de eterno retorno, interminável, acabando por ir ao encontro das preocupações da sua preservação. Nestes casos, o problema principal coloca-se na eventualidade do desaparecimento dos materiais ou objectos necessários para a sua performance, do mercado ou fonte de fornecimento, voltando-se a colocar a


questão do ‘congelamento’ da peça. Antes de chegar novamente a este extremo, o papel do Conservador Restaurador secundariza-se totalmente, visto ser a degradação como ideia que interessa e não a degradação de um determinado objecto específico. Actualmente, este tipo de problemáticas tem tido como solução a sua Documentação, através de vários meios de registos audiovisuais, como fotografia ou filme, relatos escritos etc. ficando guardada a performance, num registo secundário, que não pode ser considerado como o próprio objecto, como vimos anteriormente. Por outro lado, têm também utilizado como recurso o registo em forma de entrevista realizada ao artista, onde são colocadas questões relacionadas com a produção, materiais, objectivos conceptuais e ideias relativamente à sua vontade de se conservar a obra ou meios de o fazer. No entanto, há uma questão que deve ser colocada e reflectida com muito cuidado. Será esta informação um factor decisivo quando chega o momento de intervir ou, pelo contrário, apenas um esclarecimento a ser adicionado à obra e ao seu contexto? Ao colocarmos esta dúvida não estamos a tentar ser provocadores, mas apenas a chamar a atenção para o facto de se tornar a sociedade e os seus objectivos de transmissão para o futuro, concretizados no Museu, quem acaba por definir o modo como a peça será tratada, independentemente da vontade do seu autor. Qual é o papel do Conservador Restaurador nestes casos? É importante a conservação do material ou a preservação do conceito artístico? Devemos conservar a peça não seguindo a intenção do artista e impedindo o objectivo conceptual no momento da sua criação ou, pelo contrário, ajudar a atingir o fim predestinado, pela promoção da degradação e, consequentemente, do seu desaparecimento? 2. Miguel Palma

Miguel Palma é um artista contemporâneo, nascido em Lisboa em 1964. O início da sua produção enquadra-se nos anos oitenta, tendo começado a ser mais conhecido na década seguinte, quando se enquadra nos movimentos artísticos da época e nas suas questões conceptuais e práticas, tendo em conta a consideração da “arte como questionamento social e político da realidade contemporânea” (WANDSCHEINDER, 2007, s.p.). Em 1994 assinou, conjuntamente com outros artistas da sua geração, o “Golpe de Estado — Documento para um Realismo Activo”, publicado em 1994 (BRITO, FELINO, LOURO, CARVALHO, MENDES, MOURA, PALMA, TABARRA, VIDAL, 1994), onde eram assumidas posições muito claras face aos novos objectivos e posições artísticas dos seus autores. Desde então, a obra deste artista tem-se pautado pelo questionamento dos valores dos objectos comuns e daqueles identificados como ‘arte’, resultado de uma codificação prévia atribuída pelo mercado (LAPA, 2000). Neste sentido, grande parte da produção de Miguel Palma passa pela apropriação de elementos preexistentes, readymades, aos quais é atribuído um novo valor, ao serem por si alterados e transformados, perdendo muitas vezes a sua utilidade prática (LEITÃO, 2012: 13). Este interesse pela mudança (Maneiro, 2011: 143) vai para além deste valor, focando-se


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por vezes, na mudança performativa do próprio objecto como manifestação artística. Esta apropriação é realizada através de uma recolha sistemática com as mais diversas proveniências, posterior selecção e adaptação a novas ideias do artista. Entre estas peças encontram-se também antiguidades e raridades, o que pode tornar este processo muitas vezes conturbado: Confessa Miguel Palma que, por vezes, pegar num objecto de coleção e transformá-lo de alguma forma é-lhe doloroso, no mínimo incómodo. São objetos aos quais foram atribuídos valor no mercado de antiguidades ou raridades e, portanto, o simples ato de não os conservar inalterados é em si questionável do ponto de vista da conservação. Miguel

Museológico – Três Peças de Miguel Palma.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 42-52.

Alves, Alice Nogueira; Câmara, Rodrigo Bettencourt (2013) “A degradação como performance. Questões Teórico-Práticas em Contexto

Palma está ciente disso e é um dos factores que para ele é claramente problemático, mas é também por isso que se lhe apresenta a oportunidade de ter o peso da história no momento de cada um dos seus trabalhos. (LEITÃO, 2012: 13)

Ao fazer esta apropriação de uma antiguidade, Miguel Palma vai concorrer para a ‘dessacralização’ do seu valor patrimonial, colocando em causa a sua existência atemporal (Jürgens, 2005: 19). De facto, o artista acaba por colocar em causa a questão fundamental das discussões da conservação e do restauro desenvolvidas desde o fim do século XVIII, onde o modo como se procede à interrupção dos processos de degradação e a sua anulação no elemento a preservar se tornou um ponto de especulação e experimentação. Nos três casos referidos seguidamente, é exactamente nesta relatividade e fragilidade que se encontra a essência conceptual da obra, como se tentasse demonstrar a necessidade de reconhecer e aceitar a degradação como parte da existência material do mundo onde vivemos, ou melhor, como parte da sua ‘existência’, indo ao encontro das questões aprofundadas anteriormente. Embora Sandra Vieira Jürgens defenda que esta visão é tida relativamente ao objecto comum, ao entrarem em colecções privadas, estas peças passam a ter o estatuto de museológicas, logo ficam sujeitas às questões inerentes à sua preservação enquanto parte de um conjunto com especificidades muito próprias. 2.1. Caso de Estudo 1 – Valor (2002)

A obra Valor de Miguel Palma actualmente pertence ao acervo da Colecção Berardo. A peça é composta por uma caixa de acrílico dentro da qual se encontra uma cadeira Chipandelle, sobre uma base de veludo. Segundo testemunho do artista e das várias referências publicadas por diferentes autores presentes no fim deste artigo, o propósito inicial desta instalação era confrontar o público com uma situação onde o objecto artístico se degradasse lentamente, através do ataque biológico da madeira pelo caruncho (insecto xilófago), até se transformar completamente em pó, convocando deste modo noções como vida, morte e tempo. Neste processo era colocado em causa o seu próprio ‘valor’ e a sua alteração devido às circunstâncias da sua própria concepção. Como refere António Cerveira Pinto:


This means that, as the concept of the work gains in strength, its substance disappears! The more crystalline the concept, the less of a work there will be at the end! (PINTO, 2007: s.p.)

Apesar disso, até ao momento a cadeira contínua inalterada; o facto de a caixa se encontrar completamente isolada face aos agentes exteriores impede o desenvolvimento da degradação, gorando a pretensão original. Temos por isso um ‘congelamento’ deste mesmo processo, embora não tenha existido essa intenção deliberada por parte do seu proprietário. Este objecto levanta-nos uma consideração muito pertinente, ultrapassando as suas próprias fronteiras físicas. Se avançássemos com a vontade original do seu autor (que pode entretanto já ter mudado), contribuiríamos para a degradação e desaparecimento da peça, mas também poderíamos colocar em risco a restante colecção. Este facto prende-se à presença de um agente de degradação activo. Um dos processos comuns de manutenção de uma colecção, ditados pela Conservação Preventiva, é a eliminação de parasitas e sua manutenção através de procedimentos de desinfestação periódicos. Por aqui vemos o grau de conflito suscitado por uma peça desta natureza dentro de um contexto museológico.

Fig. 1 - Valor, Miguel Palma, 2002. Caixa de acrílico expondo cadeira Chipandelle, com madeira infectada por caruncho, 160 x 110 x 110 cm, UID 102-1514, Cortesia Museu Coleção Berardo (http://www.miguel-palma.com)

No entanto, existem trabalhos semelhantes realizados por outros artistas onde o processo se desenvolveu, acabando o Museu por fazer essa concessão. Podemos referir uma obra de Dieter Roth, Mar de Chocolate, composta por chocolate e papel dactilografado, onde se manteve um microclima activo no interior da sua caixa de acrílico, permitindo o desenvolvimento do processo de degradação. Dada a estanquidade face ao exterior, evitando a contaminação de outras peças, os técnicos da Fundació Museu d’Art Contemporani de Barcelona optaram por permitir o desenvolvimento da componente performativa deste objecto (MÁRQUEZ, 2008: 95-96).


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Museológico – Três Peças de Miguel Palma.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 42-52.

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2.2. Caso de Estudo 2 – Património (2002)

A obra Património faz parte da colecção do extinto Instituto das Artes. Com um enquadramento muito diferente do anterior, neste caso foi o próprio artista quem provocou activamente a destruição da peça e, posteriormente, procedeu ao seu restauro. No contexto da inauguração de uma exposição individual – Mini Mind, no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, no dia 9 de Novembro de 2002, Miguel Palma apresentou uma cópia de um Jarrão japonês do século XVIII ainda intacto. A performance consistiu na destruição deste objecto, que se partiu em mil pedaços depois de elevado do chão e deixado cair. Em seguida os fragmentos foram recolhidos, identificados e separados pelo artista com o apoio de alguns ajudantes, começando um longo processo de identificação de uniões e remontagem do jarrão. Este procedimento pretendia reconstituir uma intervenção de conservação e restauro, mas não foram exactamente seguidos os procedimentos ou utilizados os materiais comuns para este tipo de situações. Todo o processo foi filmado por Paulo Mendes e, mais tarde, a peça foi colocada noutro contexto expositivo, com a sua componente formal reconstituída, onde se observam lacunas preenchidas com massas, provavelmente resultantes de uma opção do artista em não colocar novamente todos os fragmentos no local, nem realizar a reintegração das lacunas, assumindo estes novos elementos do jarrão. Nesta ocasião a peça era acompanhada pelo vídeo onde se relata todo o procedimento. Para alguns autores, o absurdo deste processo tem um significado muito preciso dentro das questões dos ‘valores’ atribuídos aos objectos referidos anteriormente: Uma vez recolhidos esses pedaços, o jarrão foi diligentemente reconstituído durante o período em que a exposição esteve patente, num dispêndio desproporcionado e absurdo de esforço e tempo, considerando que o objecto danificado não se distingue pelo valor artístico ou económico (trata-se, afinal de contas, de uma cópia) e dada a inutilidade do restauro como forma de o restituir à sua integridade. O gesto iconoclasta é o pretexto para uma reparação “sem valor”, consumindo tempo e mobilizando técnicas especializadas de forma “irracional”. Esta é a medida da eficácia e do interesse artísticos de Património, que se oferece como uma magnífica metáfora (e ao mesmo tempo paródia) do acto criativo e da lógica de excepção que preside à constituição quer do valor artístico, quer do valor económico das obras de arte. (WANDSCHEINDER, 2007, s.p.)

Tendo em conta o raciocínio já desenvolvido, mais uma vez podemos encetar uma reflexão sobre a peça e o seu contexto museológico. De facto, o processo de criação baseia-se na sua destruição e reconstituição, acompanhada de uma descrição do processo através de imagens. Quando entra num contexto museológico, além da própria peça, temos também uma espécie de ‘relatório’ de todas as fases da sua existência a partir do momento em que lhe foi atribuído um novo valor por Miguel Palma.


Fig. 2 - Imagens da filmagem de Património, Miguel Palma, 2002. Obra da Colecção da Fundação PLMJ. (http://vimeo.com/44243183)


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Para Mónica Maneiro, “o interesse da acção consiste na sua capacidade de evidenciar a necessidade que o ser humano tem de reconstruir os artefactos culturais pois estes são meios por intermédio dos quais o homem procede à conservação da sua cultura.” (Maneiro, 2011: 144-145). Esta afirmação vai ao encontro do defendido ao longo deste texto e insere esta peça no contexto preciso do questionamento dos valores fundamentais deste conceito museológico. Por outro lado, não podemos deixar de questionar se o nome escolhido pelo autor de Património, se prende com o referido anteriormente, ou se será uma alegoria ao facto de identificarmos o nosso Património como a arte antiga, onde valorizamos a degradação do tempo e as medidas que o homem foi tomando sobre ela para a conservar. Teria a intenção de colocar a arte contemporânea no mesmo patamar ao assumir e provocar ele próprio a sua degradação e restauro? 2.3. Caso de Estudo 3 – Instabilidade (2005)

O último caso de estudo sobre o qual nos debruçaremos foi denominado pelo seu autor como Instabilidade. Apesar de produzido num período diferente das duas peças anteriores, mais uma vez encontramos aqui um desafio à ideia de estabilidade e ‘congelamento’ do museu tradicional, significando o seu nome, exactamente a questão colocada em causa. Esta peça é constituída por um jarro do início do século XIX, colocado dentro de uma vitrina e assente sobre uma base vibratória. A informação sobre este caso é muito escassa, não nos permitindo um grande desenvolvimento, mas é absolutamente indiscutível o carácter provocatório procurado pelo seu autor. Neste exemplo, o processo não é natural, mas provocado por um dispositivo de alimentação. Este facto significa que se pode encontrar ligado apenas quando a peça está exposta, como aconteceu em 2011 numa grande exposição do autor organizada no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (Miguel Palma…, 2011). No seu estado normal, acondicionada nas reservas da Fundação Leal Rios, o sistema pode estar imobilizado. Deste modo, o processo de degradação eventualmente causado pela vibração não é contínuo, podendo durar um tempo muito superior ao previsto pelo artista, bem como não ser contínuo, devido aos diferentes ciclos aos quais está sujeito.

Fig. 3 - Instabilidade, Miguel Palma, 2005. Coleção da Fundação Leal Rios (http://www.miguel-palma.com/)


Conclusão

Na nossa concepção ocidental de património, torna-se complicado aceitar que o interesse do autor seja apenas produzir um objecto temporário, concebido para durar um determinado período de tempo e desaparecer. De facto, mesmo depois de vividas todas as experiências do século XX, ainda não conseguimos aceitar totalmente esta realidade. Os nossos métodos de intervenção viram-se sobretudo para a conservação da existência física da obra de arte e sua permanência pelo maior tempo possível e, muitas vezes, a intensão do artista é exactamente a oposta, residindo na degradação material a mais-valia conceptual. Ao pararmos esse processo, a manifestação artística não se concretiza. Ao se deixar avançar, perdemos o objecto. As soluções acabam por passar pela guarda ou exposição do que restou ou, e aí o caso torna-se mais problemático no seio de um museu, por assumir o desaparecimento de uma peça. Tendo em conta a magnitude do contexto museológico e todas as considerações necessárias para a manutenção das colecções como conjuntos coesos, a documentação acaba por ser a única forma de salvar e guardar a memória de todos os aspectos relacionados com um objecto artístico desta natureza, sem contudo o substituir. Contactar os autores: alicenalves@gmail.com · bettencourtdacamara@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Referências · LEITÃO, Bruno. “’In order to go on living one must try to escape the death involved in perfectionism’ Hannah Arendt”, In: Atelier Utopia – Miguel Palma, Galeria Fundação EDP, Porto, Fundação EDP, Edições Documenta Lda., s.l., 2012, p. 12-13. · CAMPOS, Mariana Moraes Leitão Camarate de. Conservação na Arte Contemporânea, Curadoria como possível estratégia de conservação? Estudo de duas obras apresentadas na exposição Alternativa Zero, Mestrado em Curadoria da Faculdade de Belas-Artes da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2011 · BRITO, Fernando, FELINO, João, LOURO, João, CARVALHO, José Maçãs De, Mendes, Paulo, Moura, Leonel, Palma, Miguel, Tabarra, João, Vidal, Carlos . “Golpe de Estado — Documento para um Realismo Activo”, In: Artes & Leilões, ano 6, n. 25, Lisboa, Out-Nov 1994, p. 26-35. · Definições – Museu (2007), Disponível em <http://www.icom-portugal.org/documentos_def,129,161,lista.aspx> Acesso em 25 abr. 2013 · JÜRGENS, Sandra Vieira (2005), “Inventário Artístico de um Fazedor de Raridades”, In: Miguel Palma, ADIAC, Público, s.l., p. 18-22. Disponível em <http://sandravieirajurgens.files.wordpress.com/2005/08/miguelpalma_adiac.pdf > Acesso em 11 abr. 2013 · LAPA, Pedro. “A ocasião de um ocaso & outros signos”, In: Miguel Palma, Exposição de Ocasião, 07.07.200008.10.2000, Museu do Chiado, 2000. · Macedo, Rita. Desafios da Arte Contemporânea à Conservação e Restauro. Documentar a Arte Portuguesa dos Anos 60/70, Doutoramento da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2008.


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· Maneiro, Mónica. “Miguel Palma. Ingeniería Estética para el Cuerpo sin Órganos – Engenharia Estética para o Corpo sem Orgãos — Aesthetic Engineering for the Body Without Organs”, In: Dardo magazine, N.º 15, Santiago de Compostela, Out 2010 – Jan 2011, 2011, p. 130-153. · Márquez, Maria del Carmen Bellido. Materialidad y Conservación del Arte Contemporáneo. Um caso actual: Colección José Guerrero, Departamento de Escultura, Universidad de Granada, Granad, 2008. · Miguel Palma, Linha de Montagem – Assembly Line. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2011. · Powell, John D. Preserving the Unpreservable: A Study of Destruction Art in the Contemporary Museum, MA Museum Studies, University of Leicester, 2007. · Pinto, António Cerveira (2007), The Archeology of Lost Time: Miguel Palma – an Interpretive Hypothesis. Disponível em <http://pt.scribd.com/doc/91862441/The-Archaeology-of-Lost-Time>. Acesso em 27 maio 2013.

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· Riegl, Aloïs. El Culto Moderno a los Monumentos, Visor, Madrid, 1999. · Viñas, Salvador Muñoz. “The artwork that became a symbol of itself: reflections on the conservation of modern art”, in ed. Ursula Schädler-Saub e Angela Weyer, Theory and Practice in the Conservation of Modern and Contemporary Art, Reflections on the Roots and Perspectives, Vol. 13, Archetype Publications, Hildesheim, 2010, p. 9-20. · Wandscheinder, Miguel. Miguel Palma. O Mundo às Avessas, 2 de Junho- 2 de Setembro, Jornal de Exposição, Culturgest, 2007 Netgrafia · http://vimeo.com/44243183 (28-4-2013) · http://www.miguel-palma.com/ (30-4-2013)


Construção de conhecimento com o Virtuoso Criador Constructing knowledge with the Virtuous Creator

Ana Duarte Rodrigues FCSH, UNL, Docente Colaboradora FCSH, Investigadora Integrada do CHAIA, Universidade de Évora e Investigadora Associada do CHAM, FCSH, NOVA

Anísio Franco Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). Centro Nacional de Cultura

Resumo: Neste artigo, pretendemos demonstrar que uma exposição é uma forma de construção de conhecimento. Nesse sentido, tomamos como estudo de caso a exposição O Virtuoso Criador. Joaquim Machado de Castro (1731-1822) que decorreu entre 18 de Maio a 30 de Setembro de 2012 no MNAA e comparamo-la com o trabalho académico que esteve na sua base e com duas outras exposições realizadas com base nesta mostra. Palavras chave: Machado de Castro. Virtuoso Criador. Exposição. Conhecimento

Abstract: In this article we seek to demonstrate that an exhibition is a way of constructing knowledge. Thus, we take the Virtuous Creator. Joaquim Machado de Castro (1731-1822) exhibition set up at the National Museum of Antique Art between the 18th May until 30th September 2012 as a case study and we compare it with the academic work in which it is based and with two other exhibitions realized based on the former one. Keywords: Machado de Castro. Virtuous Creator. Exhibition. Knowledge. Introdução ‘The context of display is an important issue for art history because it colours our perception and informs our understanding of works of art.’ (BARKER, 1999: 8)

Uma exposição é uma narrativa, uma história que num determinado momento e espaço é contada de uma determinada maneira, mas acima de tudo uma exposição constitui um modo único de construção de conhecimento. Um dos fundamentos que justifica a nossa participação no colóquio internacional VOX MUSEI, reside precisamente na vontade e necessidade de dar voz à construção de conhecimento que se realiza nos museus e que não é entendida na sua total dimensão pelos parâmetros da ciência e tecnologia. A título de exemplo podemos invocar as entradas dos relatórios anuais que as unidades de investigação pedem aos investigadores para preencher.


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Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 53-63.

Rodrigues, Ana Duarte; Franco, Anísio (2013) “Construção de conhecimento com o Virtuoso Criador.”

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No topo da hierarquia encontram-se os artigos publicados em revistas internacionais com sistema de referees indexadas nas mais reputadas bases científicas como a Web of Science ou a Scopus, seguem-se os livros, primeiro como autor e em segunda categoria como editor ou coordenador, e ainda na categoria das atividades positivamente contabilizadas encontram-se as conferências em colóquios internacionais com sistema de referees, como aquele em que estamos a participar. Menos prestigiantes são as categorias onde se colocam os capítulos de livros e artigos publicados em revistas internacionais e participação em cursos, seminários, workshops até que acaba na categoria “Outras” para todas as outras publicações que não têm entrada específica e onde são colocados os catálogos por precisamente não serem considerados equivalentes a livros e não haver para eles uma entrada específica. Ironia das ironias o texto que agora apresentamos neste colóquio internacional será mais valorizado do que o catálogo de O Virtuoso Criador. Joaquim Machado de Castro (1731-1822), que até já tinha sido na sua maioria avaliado por um júri uma vez que parte dos textos foram defendidos em provas de mestrado (RODRIGUES, 2004).

Fig. 1- Capa do catálogo da exposição O Virtuoso Criador. Joaquim Machado de Castro (1731-1822)

A situação atual só se pode explicar porque de forma generalizada não se percebe que uma exposição é um modo de construir conhecimento. Este não resulta só dos laboratórios, nem dos arquivos e das bibliotecas, nem dos livros, mas também das exposições porque só aqui nos podemos confrontar diretamente com as obras de arte, o que no caso da escultura se torna mais premente visto que é uma arte tridimensional jamais reproduzível na íntegra em duas dimensões. Para além de tudo isto, a narrativa de uma exposição resulta de uma seleção de peças realizada pelos comissários e coloca em diálogo peças ou obras de arte que nunca estiveram em confronto em anterior situação. De tal forma este dado é significativo que as mesmas peças em diferentes exposições e, como tal, distribuídas de forma distinta, proporcionam leituras outras e interpretações outras. ‘C’est précisément à la façon dont une oeuvre autorize la réflexion que peut se definir son exposition.’ (HUYGHE, 1998: 118)


O caso do Virtuoso Criador

O fundamento científico que importa para cada exposição é apenas uma base que serve para desenvolver o trabalho de investigação que preparará a mostra. A exposição O Virtuoso Criador. Joaquim Machado de Castro (1731-1822) que decorreu entre 18 de Maio a 30 de Setembro de 2012 no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) (RODRIGUES e FRANCO, 2012) e foi depois praticamente na íntegra apresentada no Museu de Aveiro e um núcleo no Museu Nacional Machado de Castro (MNMC) em Coimbra entre Dezembro de 2012 e 30 de Março de 2013, servirá como interessante estudo de caso no sentido de mostrar como uma exposição conta uma história e constrói conhecimento. Neste texto, demonstram-se as possibilidades de diálogo potenciadas pela aproximação de peças e análise resultante dos efeitos dessa vizinhança. O espaço dedicado ao Escultor do Rei no MNAA permitiu revelar novidades e estabelecer relações absolutamente inéditas, contribuindo claramente para o conhecimento que se tem sobre o processo criativo e de construção de uma imagem do rei-herói com a assinatura de Machado de Castro.

Fig. 2 - Joaquim Machado de Castro, Modelo para a estátua equestre de D. José I de cera patinado a dourado, 1771, MNAA

Na exposição do MNAA onde houve a possibilidade única de visualizar o modelo de cera patinado a dourado com que Machado de Castro ganhou o concurso para realizar a estátua equestre de D. José I em 30 de Março de 1771, mas também de perceber que só este modelo poderá ter sido utilizado para o retrato do marquês de Pombal, mais conhecido como A expulsão dos Jesuítas de Lisboa, e finalmente compreender o papel dos modelos de cera patinados a dourado, dos quais só conhecemos dois e que terão sido assim realizados para apresentar a obra que se desejava executar ao encomendante. O referido modelo de cera patinado a dourado, que há anos não tinha exposição pública por se conservar numa coleção particular, foi colocado pela primeira vez em confronto com a pintura. A exposição no MNAA constituiu, assim, possibilidade única para aqueles que a visitaram perceberem a importância da peça, aí apelidada de momento número um da exposição porque toda a narrativa


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Rodrigues, Ana Duarte; Franco, Anísio (2013) “Construção de conhecimento com o Virtuoso Criador.”

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aí contada partia da data em que Machado de Castro ganha o concurso promovido pelo marquês de Pombal para executar a estátua equestre de D. José I a partir dos desenhos de Eugénio dos Santos. O diálogo que se estabeleceu entre o retrato do marquês de Pombal, e outro modelo patinado a dourado da estátua pedestre de D. José I conservada no Museu da Cidade e ainda com a representação a dourado nos vários objetos que acompanharam a inauguração da estátua permitiram estabelecer relações, fazer reflexões e tirar conclusões nunca antes atingidas. Por exemplo, perceber neste que os modelos patinados a dourado destinavam-se à apresentação da peça ao cliente. Devido à forma expositiva e às peças na mostra, as leituras proporcionadas pela exposição no Museu de Aveiro e no Museu Nacional Machado de Castro foram completamente diferentes.

Fig. 3 - Quadro atribuído a Van Loo, A expulsão dos Jesuítas de Lisboa, 1771, exposto no Museu de Aveiro

A localização que o quadro A expulsão dos Jesuítas de Lisboa teve no Museu de Aveiro permitiu observá-lo sob diferentes ângulos, uma vez que se encontrava no patamar intermédio de umas escadarias abertas, sendo possível observá-lo de baixo para cima, assim como de cima para baixo. Aqui, este era a peça número um da exposição. ‘(…) who is empowered or disempowered by certain modes of display?’ (MACDONALD, 1998: 4) torna-se uma questão pertinente pois o marquês de Pombal ganhou na exposição de Aveiro uma maior proeminência. Porém, como se encontrava isolado, a leitura que foi sugerida na relação com o modelo de cera patinado a dourado perdeu-se porque este aliás nem fez parte da mostra de Aveiro uma vez que sendo de uma coleção particular o proprietário exigiu a sua devolução logo a seguir à exposição no MNAA. O quadro atribuído a Van Loo ganhou, assim o valor de ponto de partida da exposição destacando a figura do marquês de Pombal não só na reconstrução de Lisboa, na qual afinal a estátua equestre tem um papel fundamental, mas no patrocínio da carreira de Machado de Castro. No Museu Nacional Machado de Castro em Coimbra a exposição limitou-se a um núcleo dedicado ao Laboratorio de Machado de Castro, localizado na galeria de exposições temporárias onde se enquadrava outro núcleo sobre o desenho de escultura tumular medieval. Nesta exposição em Coimbra, os modelos da estátua equestre não aludem ao momento do concurso nem à promoção de Joaquim Machado de Castro a Escultor do Rei, mas foram utilizados para evocar as fases intermédias da criação


da escultura que parte do desenho, sendo este o valor fundamental desta mostra até porque a exposição foi apresentada no contexto das atividades paralelas à Primeira Trienal do Desenho. Retomando a análise do núcleo do Escultor do Rei no MNAA, este foi um momento único de ter perante os nossos olhos todos os passos da criação da estátua equestre tomando como ponto de partida para a evolução do modelo o momento em que Machado de Castro ganha o concurso, até que o trabalha em barro, retirando da composição o leão pensado por Eugénio dos Santos porque faria “mau efeito visivo” quando fosse observado ao longe numa praça pois o leão ia parecer apenas uma massa disforme e, finalmente, a maquete em bronze feita por Bartolomeu da Costa porque também ele tinha de demonstrar que sabia fundir a estátua equestre. A observação dos diferentes materiais e escalas utilizados nos modelos são possíveis com um só olhar, assim como a alteração que a composição foi sofrendo e as fontes internacionais que serviram de referência a Machado de Castro. A ampliação da gravura com a estátua pedestre de Luís XV de Guibaldo tornava evidente a importância que os modelos franceses tiveram na construção de uma imagem de rei-herói vestido como imperador Romano. Machado de Castro já tivera a intenção de vestir o rei na estátua equestre à romana, mas não lhe foi autorizado mudar o traje proposto por Eugénio dos Santos. Contudo, socorrendo-se claramente de fontes francesas, na criação da iconografia régia, Machado de Castro construiu uma imagem de rei-herói coerente e transversal a todos os reis e o escultor acabou por trajar à romana tanto o rei D. José I, na proposta de estátua pedestre, como a D. Maria I (cujos modelos se encontram noutra sala por falta de espaço no núcleo dedicado ao Escultor do Rei) e no projeto para um monumento a D. João VI para uma praça do Rio de Janeiro no Brasil. Neste último caso, não é só o traje que denuncia a fonte francesa, mas toda a composição da estátua e do monumento que se inspirou na gravura de Guibaldo e na imagem de rei francês para projetar o rei português.

Fig. 4 - Núcleo dedicado ao Escultor do Rei no Museu de Aveiro.

No Museu de Aveiro, o núcleo dedicado ao Escultor do Rei encontrava-se quase no fim da exposição e colocava a ampliação do projeto para o monumento a D. João VI frente a uma ampliação da gravura da estátua equestre de D. José I, ao mesmo tempo que num outro plano se perspetivava a ampliação da gravura de Guibaldo e entre estas o modelo em bronze de Bartolomeu da Costa e o modelo de cera patinado


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a dourado da estátua pedestre de D. José I. Como a secção seguinte mostrava as peças alusivas à inauguração da estátua equestre, seria o discurso sobre esta obra e a pompa da sua inauguração que ganhavam proeminência. Em nenhum outro momento histórico como na exposição do MNAA a escultura de jardim realizada por Machado de Castro para a Quinta Real de Caxias ganhou uma tal dimensão. Efetivamente, o destaque que a escultura de jardim toma na exposição do MNAA ultrapassa largamente o que tinha na tese de mestrado que lhe serviu de base (RODRIGUES, 2004). Revela-se claramente influenciada por outro trabalho científico realizado posteriormente sobre a escultura de jardim (RODRIGUES, 2011), mas também pela investigação sobre a Quinta Real de Caxias e acompanhamento do restauro das peças de escultura em barro de tamanho natural de Machado de Castro (RODRIGUES, 2009). A ampliação da fotografia da cascata a cores no átrio do MNAA revelou ao público um tesouro praticamente escondido, e revelou também um Machado de Castro para além da estátua equestre e dos presépios. O facto de no Museu de Aveiro a imagem da Quinta Real de Caxias ter menos um quarto da dimensão da imagem apresentada no MNAA, retirou destaque e parece ter aproximado de novo do texto, sendo apenas um capítulo entre os vários que constituem a produção de Machado de Castro. Por outro lado, permitia que a mesma se inserisse ao mesmo nível em termos de discurso expositivo que os demais núcleos. O facto de decorrer cinco anos entre a primeira proposta de exposição sobre o Machado de Castro e a sua realização, permitiu inclusive promover o restauro destas peças e poder tê-las na exposição não só os originais restaurados como um exemplar das réplicas que ainda se estão a produzir para substituir nos jardins as do Laboratorio de Machado de Castro. O facto de se estar a preparar a exposição durante o restauro das esculturas de Caxias permitiu estabelecer-se um diálogo entre o restaurador e os comissários, discutindo-se opções e estratégias de conservação das peças. Outra das opções que se tomou, uma vez que não era possível trazer a estatuária produzida pelo Laboratorio de Machado de Castro da quinta do marquês de Pombal em Oeiras, das Reais Quintas de Belém e da Quinta Real de Caxias, recorreu-se à tecnologia e realizaram-se filmes em todos estes jardins para depois os projetar numa sala onde se poderia confrontar deste modo as estátuas, visualizando-as in situ, com os modelos de barro de muitas delas que ainda se conservam nas reservas do MNAA e que foram agora expostos. Relativamente ao núcleo do Laboratorio, permitam-nos citar José Luís Porfírio na crítica que fez à exposição no Semanário do Expresso: Logo a seguir fica o coração da mostra, a evocação do seu laboratório ou oficina por onde passaram dezenas de aprendizes e oficiais com a demonstração do seu método de trabalho: prioridade ao desenho e, logo a seguir, à modelação aproveitando a plasticidade do barro ou, mais raramente, do gesso ou da cera. Aí em enorme ampliação uma gravura do artista em defesa da superioridade da escultura que até os cegos podem ver, palpando, é um curioso manifesto em defesa da sua arte; aliás, todo este espaço é, ele próprio, um


manifesto, desta vez dos comissários, aderindo intelectual e sentidamente às intenções do artista.” (PORFÍRIO 2012: 28)

Fig. 5 - Ampliação do desenho de Joaquim Machado de Castro, Alegoria à Escultura, exposta no Museu de Aveiro

O núcleo dedicado ao Laboratorio no MNAA permitiu-nos demonstrar toda a empatia sentida para com o escultor ao trazer para o primeiro plano a Alegoria à Escultura que ampliada evoca o cenário do Laboratorio do escultor e, sobretudo, pode-se assim passar a mensagem de Machado de Castro sobre a superioridade da Escultura. A exposição constituiu a única possibilidade de praticamente reconstruir a vida do escultor no seu laboratorio, como os livros que lia e em que se inspirava, ao lado dos que ele próprio escreveu sobre a defesa do Desenho como primeira fase da Escultura; mas também os seus estudos das mais famosas esculturas da Antiguidade Clássica que depois serviram para informar os seus próprios desenhos de imaginária e estatuária. Importa ainda referir que pela primeira vez foi exposto o álbum com mais de cem desenhos de Machado de Castro, que foi integralmente partilhado com os visitantes da exposição pois todos os desenhos eram passados em filme. Finalmente, neste núcleo teve-se a oportunidade de numa só perspetiva acompanhar a passo e passo o processo criativo do escultor desde o desenho com quadratura do relevo do Sagrado Coração de Jesus para a Basílica da Estrela, o modelo em gesso e imagem da sua concretização em pedra, assim como uma peça em madeira policromada, que prova como o mesmo modelo era aproveitado para várias obras. Seguia-se na exposição do MNAA o núcleo da Fama e Fortuna. A festa realizada na inauguração da estátua equestre não tinha merecido destaque na tese dedicada à escultura de vulto figurativo do Laboratorio de Machado de Castro, mas na exposição esta questão tornava-se duplamente pertinente porque, por um lado, permitia estabelecer ligação com o primeiro núcleo dedicado ao Escultor do Rei e relacionar este facto com a fama e fortuna conseguida por Machado de Castro e, por outro lado, permitia apresentar uma mostra variada de peças concebidas de propósito para a ocasião da festa ou para promoção da estátua equestre régia e que se encontravam dispersas entre diferentes museus e coleções particulares, tendo sido pela primeira


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vez colocados lado a lado uma travessa do serviço da Companhia das Índias encomendado especificamente para a festa com o motivo da estátua equestre ao centro, um leque com idêntico motivo, etc. Durante o decorrer da exposição, vindo de um particular, um pequeno desenho de valor único porque desenhado a partir do natural por alguém que presenciara a chegada da zorra com a estátua equestre à Praça do Comércio permitiu estabelecer a ligação entre as peças anteriormente citadas e a preparação do local onde se desenrolaria a festa. Utilizou-se uma pintura de outro contexto – do batizado de D. João VI (portanto do tempo de D. Maria I) — para precisamente evocar a decoração e preparação da Praça do Comércio para festas régias. Este núcleo pretendia igualmente apresentar uma nota biográfica sobre o escultor com a sua árvore genealógica. O facto desta se ter inserido junto do “merchandising” criado para a festa da inauguração da estátua equestre permitiu destacar a ascensão social do escultor e o caminho percorrido desde os avós que eram alfaiate, sapateiro e costureira até ao lugar de Escultor da Casa Real; ascensão esta que é indissociável do triunfo que significou a execução da estátua equestre do rei. No núcleo dedicado aos discípulos de Machado de Castro, sem dúvida um dos mais significativos para a construção do conhecimento que se tem sobre Machado de Castro e a sua Escola, pretendemos também tornar evidente que muitos destes nomes que gravitavam anonimamente em torno de Machado de Castro, eram artistas de grande talento como se pôde constatar pela observação dos modelos em barro realizados por Faustino José Rodrigues, Alexandre Gomes, Nicolau Vilela, entre outros que foram aqui colocados lado a lado, identificando assim os detalhes que denunciam o ensino do mestre assim como aquilo que os diferencia enquanto artistas/ autores. Vendo praticamente lado a lado os modelos de barro realizados por Joaquim Machado de Castro e pelos seus discípulos percebemos que a escola é a mesma, tratam-se todos modelos com cerca de vinte e poucos centímetros, muito bem acabados e com muita atenção dada ao detalhe. Porém, para além desta base comum a todos eles, é possível através de uma análise comparativa discernir os pequenos tiques que permitem individualizar estes escultores.

Fig. 6 - Vitrina com os modelos de barro realizados pelos discípulos de Machado de Castro, MNAA

Neste espaço, em confronto com a pequena dimensão dos modelos encontrava-se uma imagem de tamanho maior que o natural, tornando visível aos nossos olhos


a disparidade de escalas em que estes escultores trabalhavam. A Nossa Senhora da Conceição é uma imagem que até hoje nos inquieta e levanta dúvidas, mas mesmo admitindo um certo grau de incerteza quanto à sua proveniência a verdade é que permite pensar no enorme número de obras que se encontram nas nossas igrejas e que apresentam alguns traços que as aproxima do Laboratorio de Machado de Castro (como o detalhe das mãos) assim como outros que a afastam (como o facto de tapar os pés e ter umas pregas muito redondas). Pareceu-nos por isso legítimo incluí-la nesta exposição como hipótese, no seio da produção artística realizada pelos discípulos mas num contexto fora do Laboratorio. Esta hipótese conheceu um momento único no Museu Nacional de Arte Antiga, uma vez que o pé direito do Museu de Aveiro não permitia apresentar imagens desta dimensão, deixando assim de fora a sugestão de uma hipótese de leitura, assim como a Nossa Senhora da Encarnação, peça-chave para compreender toda a capacidade de invenção iconográfica de Machado de Castro. Tanto no MNAA como no Museu de Aveiro mais de setenta nomes foram estampados na parede evocando a plêiade de discípulos, ajudantes e escultores que gravitavam em torno de Machado de Castro. No trabalho científico que subjaz à exposição, apenas os principais ajudantes de Machado de Castro tinham merecido lugar num capítulo, no entanto, uma série de nomes aparecia em documentação diversa relacionada com o Laboratorio, que não fora incluída de imediato na tese e que se foram acumulando ao longo de oito anos. Neste caso, não só a investigação revelada na exposição era inédita, revelada pela primeira vez numa exposição, o que muitas vezes acontece, e neste caso tão importante quando revelar material e visualmente o conhecimento construído, é o desafio, o convite a novas investigações com as mais de setenta novas janelas que a investigação futura pode e deve abrir. Mais uma vez, nos núcleos dedicados à Basílica da Estrela e à Imaginária foi possível através da narrativa expositiva colocar em confronto os modelos com as obras. Só assim se pôde comparar, com as peças lado a lado, a diferença de acabamentos, de execução e de qualidade dos modelos para as imagens, particularmente com as peças que se encontram hoje na nave da igreja. A mostra da Estrela foi também um momento único pedagógico por ter lado a lado o bozetto, o modello e o riccordo, permitindo assim ensinar as subtis diferenças entre eles e como a mesma peça pode passar de modelo a riccordo ou a imagem devocional por lhe ser aplicada pintura. A exposição isolava o núcleo da imaginária pela mudança da cor aplicada às paredes e enquanto toda a exposição que pretendia apresentar Machado de Castro como estatuário tinha as paredes pintadas a azul claro, o núcleo da imaginária era rosa. Nas exposições, muitas das imagens devocionais que se encontram afastadas do crente por estarem coladas em nichos ou altares aos quais se tem acesso visual mas distante espacialmente, são aqui passíveis de ser observadas de perto, a toda volta e em relação com outros objetos relativos à sua criação. Foi o que aconteceu com a exposição da Nossa Senhora da Encarnação colocada em paralelo com o projeto da imagem com dois anjos e o livro Analyse Grafic’Orthodoxa (1805) que explica toda a polémica em torno daquele projeto e porque se acabou por realizar sem os dois anjos.


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Relativamente à exposição no Museu de Aveiro, a maior unidade espacial gerada pela abertura do espaço em que a individualização dos núcleos se esbate, mas também por todas as paredes estarem pintadas de branco, toda a narrativa anterior se dilui e ganha-se no maior diálogo entre as peças porque cada perspetiva parece evocar a unidade de toda a produção de Machado de Castro. Mais uma vez, pela dimensão da imagem, mas também porque a imagem se encontra no altar-mor da igreja com o mesmo nome não podia estar mais tempo em exposição. Ainda no núcleo sobre a imaginária importa sublinhar que só se incluiu um presépio na exposição precisamente para desfazer a associação errada e imediata que se faz do nome de Machado de Castro a presepista quando na verdade o escultor não fez assim tantos presépios, nem sequer valorizava a sua produção no seio do Laboratorio porque se via como um estatuário. Na exposição de Aveiro, o confronto das peças de imaginária que são comprovadamente de Machado de Castro e dos seus discípulos, com a Sagrada Família desse museu que se encontrava numa sala contígua à da exposição, permitiu de uma vez por todas perceber que aquela Sagrada Família está erroneamente atribuída a Machado de Castro pois não resiste à mais superficial análise formal. No núcleo dedicado ao Palácio Nacional da Ajuda desfizemos de uma vez por todas a ideia de Machado de Castro, escultor neoclássico. Sempre defendemos que Machado de Castro era um escultor do tardo-barroco, mas a colocação de modelos das obras de Machado de Castro face a uma maquete para o monumento a D. Maria I da autoria de um escultor verdadeiramente neoclássico que tinha aprendido com Antonio Canova, José João de Aguiar, torna evidente o enquadramento estilístico e conceptual de Machado de Castro. A diferença de cânone, de volumetria e de formas torna-se percetível para qualquer visitante. Queríamos precisamente acabar com o momento de transição para um novo mundo ao qual Machado de Castro já não pertencia (sobre a comparação entre Antonio Canova e Machado de Castro ver RODRIGUES, 2006). O Palácio Nacional da Ajuda de arquitetura neoclássica tinha ainda na escultura do seu átrio dois mundos em concorrência: a velha escola de Mafra de que Machado de Castro e seus discípulos ainda eram devedores e a nova corrente do neoclassicismo de fino traço e linhas direitas muito diferente do desenho de Machado de Castro que, ainda que fosse um clássico, era-o no seio do barroco. Conclusão

Concluindo, para além das relações passíveis de estabelecer nestas três exposições no MNAA, no Museu de Aveiro e no Museu Nacional Machado de Castro, e da possibilidade oferecida ao visitante de ver as peças de perto e em conjunto, O Virtuoso Criador, juntamente com o programa televisivo Câmara Clara, revolucionou a imagem que se tinha de Machado de Castro – do escultor da estátua equestre dos presépios —, cristalizada por Henrique Lima em 1925 e tantos outros antes e depois dele, para a do estatuário a la gran maneira romana.


Como historiadores da arte, investigadores do tema e comissários da exposição, parece-nos legítimo afirmar que as exposições constituem em si mesmas um método de investigação histórico-artística, que para além de permitir o contacto visual com e entre as peças em exposição, promove interpretações, suscita novas problemáticas e constitui, sem dúvida, verdadeiro motor de construção de conhecimento em História da Arte, injustamente subvalorizado pelas normas da Ciência e Tecnologia. Contactar os autores: anisiofranco@gmail.com · ana.duarte.rodrigues@fcsh.unl.pt Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Referências · BARKER, Emma (ed.). Contemporary Cultures of Display, New Haven/London: Yale University Press in association with The Open University, 1999. · DÉOTTE, Jean-Louis e HUYGHE, Pierre-Damien (ed.) Le jeu de l’exposition, Paris: L’Harmattan, 1988. · KARP, Ivan e LAVINE, Steven. Exhibiting cultures: the poetics and politics of museum display, Washington/ London: Smithsonian Institution Press, 1991. · MACDONALD, Sharon (ed.). The politics of display: museums, science, culture, London/New York: Routledge, 1988. · PORFÍRIO, José Luís. “A morte do pai”, in Sep. Expresso, n. 2080, 8 de Setembro, 2012, p. 28. · RODRIGUES, Ana Duarte e FRANCO, Anísio. O Virtuoso Criador. Joaquim Machado de Castro (1731-1822), Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga/Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2012. · RODRIGUES, Ana Duarte. A Escultura de Jardim das Quintas e Palácios dos Séculos XVII e XVIII em Portugal, Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia/ Ministério da Ciência e Ensino Superior, 766 págs. E CD-Rom com Anexo Gráfico de 729 imagens, 2011. · RODRIGUES, Ana Duarte et al. A Quinta Real de Caxias. História. Conservação. Restauro, Caxias: Câmara Municipal de Oeiras, 2009. · RODRIGUES, Ana Duarte. O Belo Ideal, Lisboa: Ela por Ela, 2006. · RODRIGUES, Ana Duarte. A Escultura de Vulto Figurativa do Laboratorio de Joaquim Machado de Castro (17711822): fontes, produção, iconografia, morfologia e significado, dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à F.C.S.H./U.N.L., Lisboa, 2 vols., 294 páginas de texto e cerca de 400 páginas de anexos, 2004.


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Caracterização Material e Técnica da Pintura de Veloso Salgado. Contributo Museológico.

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Material and Technical Characterization of Veloso Salgado’s Paintings. Museology contributions.

Ana Mafalda Cardeira Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Centro de Física Atómica da Universidade de Lisboa

Stéphane Longelin Centro de Física Atómica da Universidade de Lisboa

Salgado. Contributo Museológico.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 64-72.

Cardeira, Ana Mafalda; Longelin, Stéphane; Costa, Sónia (2013) “Caracterização Material e Técnica da Pintura de Veloso

Sónia Costa Laboratório HERCULES e Centro de Évora da Universidade de Lisboa

Resumo: Contribuição para o alargamento dos níveis de informação disponibilizados pelo Museu Virtual da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBA-UL). No presente caso de estudo é exemplificada a informação obtida através de técnicas de investigação analítica. A disponibilização de dados materiais e técnicos sobre os bens culturais à disposição de investigadores e público em geral em crescente desenvolvimento dentro Museus e outras instituições Nacionais e Internacionais afins. Palavras-chave: Veloso Salgado. Métodos de exame e análise. Colecção FBA-UL. Museu Virtual

Abstract: Contribution to extending the levels of information available through the Virtual Museum of the Faculty of Fine Arts of the University of Lisbon. In this case study is exemplified the information gathered through techniques of analytical research. Providing material and technical information about cultural heritage to researchers and general public represents an increasing development within Museums and International Institutions alike. Keywords: Veloso Salgado. Examination and Analysis Methods. FBA-UL Collection. Virtual Museum. Introdução

Os níveis de informação livre sobre os objectos artísticos disponíveis ao público e investigadores são cada vez maiores. De facto, a mera descrição de uma pintura e a sua ponderação artística e estética têm vindo a ser complementadas com informação relativa aos materiais, técnicas de produção e alterações ao longo da sua existência proveniente da aplicação de métodos de exame e análise. De entre muitos outros níveis de informação, contribuindo para um conhecimento mais alargado, estes dados podem ser utilizados por várias áreas da ciência, como a História da Arte, a Química, a Física, a Conservação e Restauro, entre outros.


Com os novos meios de comunicação e a enorme facilidade de partilha de informação possibilitada pela Internet, temos vindo a observar os grandes museus (Museum of Modern Art, Van Gogh Museum, Guggenheim Museum e National Portrait Gallery London) e instituições (Getty Research Institute e Art Intitute of Chicago) relacionadas com o Património, a disponibilizar informação sobre os seus acervos, normalmente obtidas pelas chamadas Ciências ‘Exactas’, num processo interdisciplinar, com as Ciências Sociais e Humanas. Esta informação é obtida através da utilização de vários métodos de exame e análise, cujas aplicações à arte foram sendo desenvolvidas ao longo do século XX (Goméz, 2008: 147-156). Neste sentido, observamos um processo gradual de adaptação do trabalho de ‘laboratório’ aos ‘dados históricos’, investigando sobre a natureza dos materiais através do conhecimento científico, metodologia de produção do artista e o comportamento dos materiais ao longo do tempo até à imagem plástica hoje contemplada. Com este objectivo, podemos considerar os seguintes aspectos da aplicação da ciência no estudo de obras de arte defendido por Maria Augustias Orti (1994: 148-149): • Caracterização material e técnicas de execução, contribuindo para a autenticação, atribuição, localização geográfica e datação. • Diagnóstico de patologias e suas causas. • Diagnóstico de intervenções anteriores. • Contribuição para a Conservação Preventiva através da determinação das condições ideais para cada objecto. • Acompanhamento e comprovação da eficácia das metodologias de restauro através de estudos realizados antes, durante e após a intervenção (estabilidade, compatibilidade, retratibilidade e efeitos secundários).

A mesma autora vai mais longe afirmando a importância do que ‘não é visível’, como o desenho subjacente, a sobreposição de camadas pictóricas ou materiais utilizados, elementos indispensáveis aos historiadores da arte. Por outro lado, se na arte antiga os métodos de exame e análise são tão importantes para o seu estudo material e dos processos de alteração, na arte contemporânea torna-se fundamental, visto desconhecermos grande parte dos materiais utilizados e as suas composições em muitos casos tornando-se qualquer aproximação a este conhecimento essencial à sua preservação. Tendo em conta esta metodologia, encontra-se em curso o estudo analítico de um conjunto de dezanove pinturas de José Veloso Salgado no âmbito do Mestrado em Ciências da Conservação, Restauro e Produção de Arte Contemporânea, pela autora principal deste texto. Este trabalho resulta de uma colaboração interdisciplinar entre a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, o Centro de Física Atómica da Universidade de Lisboa e o Laboratório Hércules da Universidade de Évora.


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Para este efeito, foram utilizados exames de área (fotografias sob luz normal, rasante, ultravioleta e reflectografia de infravermelhos) consistindo, essencialmente, no registo de imagens com informações específicas, relativamente aos materiais, execução e intervenções a que obra foi sujeita no decurso da sua existência; e exames de ponto (microscopia óptica, espectroscopia de fluorescência de raios-X e de Raman) permitindo fazer a identificação e caracterização dos materiais constituintes. Foi também utilizada a reflectografia de infravermelhos para determinar o método utilizado na prática artística. O conjunto destas técnicas de investigação permitiu identificar os pigmentos utilizados pelo artista, caracterizar a técnica de produção da obra, determinar se as obras em estudo sofreram intervenções anteriores e estudar o comportamento dos materiais aplicados na intervenção de conservação e restauro levada a cabo pela Licenciatura em Ciências da Arte e do Património. Pretende-se que os dados recolhidos sejam incorporados no Museu Virtual da Faculdade de Belas-Artes, em construção, podendo a informação obtida tornar-se pertinente para futuras estratégias de musealização, contribuindo para um alargamento dos níveis de linguagem disponibilizados pela plataforma digital. A título ilustrativo, apresenta-se a caracterização material e técnica da obra Caim de 1891, cópia realizada da obra Caïn (1880) de Fernand Cormon aquando da estadia de Veloso Salgado em Paris como aluno pensionista. 1. Veloso Salgado e a Academia de Belas Artes

José Maria Veloso Salgado nasceu na Freguesia de Sta Maria de Melón, em Orense, na Galiza, em 2 de Abril de 1864. Com apenas 10 anos partiu para Lisboa ao abrigo do seu tio Miguel Veloso Rodrigues, mestre na Litografia Lemos na Rua Ivens (Aldemira, 1940: 5), para aprofundar a sua educação e conhecimento no ofício litográfico. Com o crescente gosto pelo desenho, inscreveu-se no curso nocturno para operários da Academia de Belas-Artes de Lisboa em 1878, Curso de Rudimentos de Desenho e em seguida no Curso Geral de Desenho, já na escola de Belas Artes (FRANCO, 2011: 31), matriculando-se no curso de Pintura Histórica cinco anos depois (FALCÃO, 2003: 258). Neste curso foi discípulo de Simões de Almeida em Desenho e de Ferreira Chaves em Pintura Histórica (MACEDO, 1954: 6). O plano curricular do curso de Pintura Histórica obedecia a metodologias próprias que permitiam a obtenção de conhecimentos históricos e técnicos, simultaneamente. Para este efeito, era dividido em quatro anos, abarcando cadeiras de conhecimento técnico, como os processos da pintura a óleo, composição e expressão, mas também em domínios teóricos como História da Arte, Estética e Arqueologia (Lisboa, 2007: 80). Após a realização do curso de Pintura, em 1887, candidatou-se ao lugar de pensionista do Estado, com a obra A morte de Catão (presente no Museu Nacional de Arte Contemporânea) que lhe valeu a classificação de 20 valores e a sua passagem para Paris (Faria, 2009: 326) e mais tarde, a partir de 1891, para Itália (Macedo, 1954: 12). Durante os sete anos de pensionista (1888-1895), Veloso Salgado teve como base


os ensinamentos de Cabanel, e como mestres Jules-Élie Delaunay, Benjamin Constant e Fernand Cormon (LISBOA, 2007: 191). Deste último, realizou a cópia de Caïn aqui estudada, então presente no Musée du Luxembourg em Paris (actualmente no Musée d’Orsay), seguindo a metodologia académica da técnica de cópia como veremos em seguida. Com apenas 28 anos, recebe o prémio Hors Concours com a obra Jesus que enviou para Paris após o seu período de pensionista (ALDEMIRA, 1940: 11), cujo esboço de pequenas dimensões, realizado em Florença, se encontra na Colecção FBA-UL. Como Professor, foi importante para o ensino da Pintura Histórica na Academia / Escola de Belas-Artes de Lisboa entre 1895 e 1941. Este longo período correspondeu a uma vasta produção artística (perto de 150 obras) da qual encontramos vários estudos e obras no espólio da actual FBA-UL. O conjunto representa a linguagem e estilo do ensino académico durante estes anos em Portugal e no estrangeiro. Ao longo do seu período académico, manteve os ‘convencionalismos académicos franceses’ (FARIA, 2009: 327) que bebera como pensionista em Paris para se afirmar como uma das maiores referências da linguagem académica no seu tempo. Chegando a ser caracterizado através das palavras de Júnior como “o maior pedagogo no sentido educativo e o maior metodólogo no aspecto didáctico” (JÚNIOR, 1948: 20).

Fig.1- Atelier de Veloso Salgado (1912), fotografia de Joshua Benoliel (1873-1932), Arquivo Municipal de Lisboa.

São de salientar as palavras de José Amaro Júnior que Veloso Salgado “não criava pintores à sua maneira; limitava-se a ensinar como se devia pintar e era tudo” (Júnior, 1948: 15). Tendo em conta o crescente despoletar das novas vanguardas por toda a Europa, Salgado via a técnica académica da pintura como um meio e base ao desenvolvimento artístico. Também nas palavras de Júnior temos indicações sobre a preocupação conservativa: Não se limitava à técnica da pintura e aos seus segredos de oficina, indicando as sobreposições de tons, perigosas para o futuro, o contraste cromático dos valores quentes e frios, o risco das lacas e dos crómios, a aplicação dos óleos e vernizes. (JÚNIOR, 1948: 17-18)


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Curiosamente, hoje em dia conseguimos observar estas problemáticas, que nos dão uma determinação material, pelas técnicas de investigação como a fluorescência de raios-X e microscopia Raman, averiguando se, de facto, o seio académico do século XIX e inícios do XX problematizava estas determinadas questões materiais.

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Cardeira, Ana Mafalda; Longelin, Stéphane; Costa, Sónia (2013) “Caracterização Material e Técnica da Pintura de Veloso

2. Caracterização material e técnica

A obra Caim, descrita no Catálogo n°105 das Exposições na Escola de Belas-Artes de Lisboa como A família de Caim (Cópia reduzida do quadro de Cormon), com as dimensões 64,6 x 115 cm, foi realizada em técnica de óleo sobre tela e posteriormente colada a uma madeira. Na investigação levada a cabo, foi possível caracterizar a técnica de execução do pintor através de exame de reflectografia de infravermelhos. Analisando os dados obtidos, pode concluir-se que, para realizar a cópia da obra de Cormon intitulada Caïn, Veloso Salgado recorreu a uma grelha de orientação para transpor o desenho da composição para a sua obra como é possível observar nas Figuras 2 e 3.

Fig. 2 - Fotografia sob luz visível da obra Caim (1891) de Veloso Salgado.

Fig. 3 - Reflectografia de infravermelhos da obra Caim (1891) de Veloso Salgado, realizada por Sónia Costa (Laboratório HERCULES – Universidade de Évora).

Neste caso concreto, o cruzamento de informação entre os dados obtidos a partir da documentação e a reflectografia de infravermelhos com a informação disponibilizada pelo Musée d’Orsay permitiu localizar com precisão local de realização da cópia no já referido Musée du Luxembourg. Através das técnicas de fluorescência de raios-X e microscopia Raman foi possível identificar os pigmentos utilizados pelo pintor, bem como repintes posteriores. Com a primeira técnica, identificou-se o branco de chumbo (PbSO4.PbO) em toda a área pictórica, exceptuando as zonas de repinte, distinguíveis através


da reflectografia de infravermelho como é possível observar na Figura 3, onde o pigmento maioritário é branco de titânio (TiO2, em substituição do branco de chumbo na camada de preparação). Por outro lado, foi possível observar na técnica de preparação da tela o facto do pintor terá recorrido ao gesso e ao branco de chumbo (também utilizado como pigmento na mistura dos tons). Quanto à paleta do pintor, identificaram-se pigmentos, para além dos já mencionados acima, como branco de zinco (ZnO), amarelo-ocre (Fe2O3. H2O), vermelhão (HgS), azul ultramarino (Na6-10Al6Si6O24S2-4) e negro de fumo (C).

Fig. 4 - Análise de fluorescência de raios-X com espectrómetro portátil realizada na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa.

De forma a sistematizar a informação obtida através de fluorescência de raios-X e microscopia Raman, apresenta-se uma tabela síntese com indicação dos pigmentos encontrados em maior quantidade por área de coloração na obra Caim.

Área de coloração

Pigmentos

Branco Amarelo Laranja Rosa Vermelho Azul Castanho Preto

Branco de Chumbo

Branco de Titânio

• • • • • • • •

Branco de Zinco

Amarelo ocre

• • •

• •

• •

• •

• • •

Vermelhão

• • • • •

Azul Ultramarino

• • •

Negro de fumo

• • •

Tabela 1 - Resultados obtidos através de fluorescência de raios-X e microscopia Raman, relação dos pigmentos maioritários por área de colocação na obra Caim.

Através destas técnicas, foi possível concluir que os tons foram realizados a partir de uma paleta reduzida, fazendo variar as proporções de pigmento aplicado consoante o tom pretendido. Por outro lado, através de análises de área, como a luz ultravioleta, e de ponto como a microscopia digital com auxílio de luz ultravioleta e a microscopia Raman, identificou-se uma camada de cera sob a superfície pictórica. Esta camada terá sido aplicada de forma a proteger as obras de factores de degradação extrínsecos.


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Fig. 5 - Simulação da plataforma online referente à

Fig. 6a - Modelo de Ficha com informação para

informação sobre as técnicas de investigação.

incorporar no Museu Virtual, dando como exemplo

Salgado. Contributo Museológico.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 64-72.

Cardeira, Ana Mafalda; Longelin, Stéphane; Costa, Sónia (2013) “Caracterização Material e Técnica da Pintura de Veloso

a obra Caim (1891).

Fig. 6b - Modelo de Ficha (continuação)

Fig. 6c - Modelo de Ficha (continuação)

com informação para incorporar no Museu Virtual,

com informação para incorporar no Museu Virtual,

dando como exemplo a obra Caim (1891).

dando como exemplo a obra Caim (1891).

Fig. 6d - Modelo de Ficha (continuação) com informação para incorporar no Museu Virtual, dando como exemplo a obra Caim (1891).


3. Além do visível – contributo científico no Museu Virtual

O Museu Virtual representa uma plataforma online acessível através do site da FBA-UL. Até ao momento, apenas se encontra disponível o espólio de Desenho Antigo, estando em preparação a inserção das obras referentes à colecção de Pintura (projecto de inventariação e catalogação em curso por Luís Lyster Franco), bem como dos outros espólios previstos no site. É com este propósito que o arranque da investigação ligada às ciências exactas pretendem contribuir com informação para além da visual e auxiliar a documental, incentivando à interdisciplinaridade e novas colaborações institucionais. Pretende-se desta forma representar desta forma um aumento do conhecimento em torno das obras e das técnicas de investigação. Este tipo de informação tem vindo a ser disponibilizado por vários museus e instituições, começando a tonar-se comum no contexto internacional, como referimos na introdução. Como projecto pedagógico, é proposta uma página com ilustração das técnicas de investigação (fotografia sob luz visível, rasante, transmitida, radiação ultravioleta reflectida, fluorescência ultravioleta; reflectografia de infravermelhos, radiografia, microscopia digital com luz normal e ultravioleta, fluorescência de raios-X, microscopia Raman, etc.), dando exemplos e descrições de linguagem simplificada para toda a tipologia de investigadores e público em geral. Na página referente às técnicas de investigação, como se pode observar na Figura 5, sempre que possível, a ilustração será acompanhada de obras do espólio, de forma a enriquecer e cultivar o interesse por estas técnicas, podendo ser alargado a outros ramos artísticos, como é o caso do Desenho e da Escultura. No que se refere à informação inerente ao inventário, pretende-se seguir a metodologia de Desenho, inserindo um link directo ao sítio virtual onde se apresenta a obra original de Cormon como será o caso da obra Caim de Salgado (por exemplo). Desta forma, a ligação de referentes para as obras inventariadas alarga-se, possibilitando novas investigações de estudiosos estrangeiros através da utilização de páginas gémeas em língua inglesa. Como se pode observar na Figura 6 (a, b, c, d), a ficha simplificada pretende contribuir com os dados científicos adquiridos através dos métodos de exame e análise referidos, e até mesmo uma ficha anexa com o historial de restauro, incorporando a ficha de inventário modelo já existente. Conclusão

O desenvolvimento das técnicas analíticas nas últimas décadas tem constituído uma ferramenta essencial a historiadores de arte e conservadores e restauradores, resultando em informação com maior profundidade e objectividade para o entendimento do património cultural. Por outro lado, a informação que resulta desta interdisciplinaridade também possibilita compreender processos de degradação associados às obras, e desta forma, evitando danos futuros.


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Cardeira, Ana Mafalda; Longelin, Stéphane; Costa, Sónia (2013) “Caracterização Material e Técnica da Pintura de Veloso

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A proposta do presente caso de estudo pretende incentivar à colaboração interdisciplinar entre fotógrafos, químicos, físicos, historiadores, conservadores e restauradores e designers, alargando o campo documental e científico para o domínio virtual. Por outro lado, o contributo analítico na ficha modelo já existente no Museu Virtual e o cariz pedagógico de uma página dedicada ao público em geral em torno das técnicas de investigação revelam-se uma mais-valia institucional, colocando-se à margem de inovação museológica de nível internacional. É com intenção de melhorar e contribuir para a plataforma online do Museu Virtual da Faculdade de Belas-Artes que a discussão em torno desta proposta representa uma vantagem, não só no seio institucional como referido, mas também para incentivar outras instituições à divulgação da investigação em torno dos seus espólios e bens culturais em geral. Nota Final

Os autores desejam agradecer à Faculdade de Belas-Artes o acesso às obras de José Veloso Salgado, à Directora do Centro de Física Atómica da Universidade de Lisboa, Professora Doutora Luísa Carvalho, ao Diretor do Laboratório HERCULES da Universidade de Évora, Professor Doutor António Candeias, à Professora Doutora Marta Manso pela sua orientação e à Professora Doutora Alice Alves pela sua co-orientação. Contactar os autores: cardeira@ul.pt · longelin@cii.fc.ul.pt · sonia_lopes_costa@hotmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Referências · AA.VV. O restauro regressa às Belas-Artes: retratos da reserva de pintura. Lisboa: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2011. · Aldemira, L. V. Notas sobre a vida e a obra do pintor José Veloso Salgado. Lisboa: Academia Nacional de Belas Artes, 1940 · Falcão, I. Pintura portuguesa: Casa-museu Dr. Anastácio Gonçalves. Lisboa: Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, 2003. · Faria, A. A colecção de desenho antigo da Faculdade de Belas Artes de Lisboa – 1830-1935. Dissertação de Mestrado em Museologia e Museografia, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2009. · GÓMEZ, M. L. La restauración: Examen científico aplicado a la conservación de obras de arte. Madrid: Catedra-Cuadernos Arte, 2008 · Júnior, J. A. Mestre Veloso Salgado Pintor: Mestre de pintores. Lisboa: Elóquios, 1948 · Lisboa, M. H. As Academias e Escolas de Belas Artes e o Ensino Artístico (1836-1910). Lisboa: Colibri, 2007. · Macedo, D. Veloso Salgado [e] Luciano Freire. Lisboa: Museu Nacional de Arte Contemporânea, 1954. · Orti, M. A. C. Los métodos de análisis físico-químicos y la historia del arte. Granada: Universidad de Granada, 1994.


Exposição ou decomposição? A natureza como entidade artística Exhibition or decomposition? The nature as artistic entity.

Ana Margarida Mata Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: Numa leitura da exposição Ao Relento, desenvolvida pelo Teatro O Bando, várias questões foram levantadas em torno da decomposição planeada das obras, que fundir-se-ão com a natureza, que opera como entidade artística, num projecto que questiona as barreiras entre exposição, instalação e performance. Cabe-nos reflectir sobre a consistência das opções tomadas no âmbito deste projecto, inserido no campo da produção artística do Teatro O Bando. Palavras chave: Exposição. Teatro. Natureza. Performance. Instalação.

Abstract: Analyzing the exhibition Ao Relento, developed by Teatro O Bando, several questions were raised about the planned art work decomposition that will merge in the nature, which works as artistic entity. This project questions the boundaries between exhibition, performance and installation. It behooves us to reflect about the consistency of the options made in this project, wen introduced in the artistic production of Teatro O Bando. Keywords: Exhibition. Theatre. Nature. Performance. Instalation art. Introdução

Depois de mais de trinta anos de actividade, dos quais restavam inúmeros objectos que vinham a ser acumulados na sua sede, o Teatro O Bando faz a exposição permanente Ao Relento. A apresentação das obras, Máquinas de Cena e Figurinos estende-se pelo troço da encosta da Serra do Louro – Palmela, pertencente ao terreno da sede do colectivo. Assumir o inexorável desaparecimento das obras, expostas ao ar livre, está na génese deste projecto expressa a intenção de que essas venham a fazer parte do local onde são exibidas, através de um processo de deterioração que as dotará de vários aspectos e significados ao longo do tempo. As obras, apesar de terem sofrido uma intervenção de restauro, degradar-se-ão em consonância com os ritmos da Serra, protagonizando uma degradação visitável, durante a qual serão contempladas várias possibilidades de leitura sobre as obras. A exposição é um processo composto por vários tempos, ditados pela decomposição, cujo catalisador é o meio envolvente, no qual as obras gradualmente se diluem. Este projecto levanta-nos primeiramente a questão da barreira entre exposição e objecto artístico/ instalação. Os objectos são mostrados num domínio conceptual


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distinto do original, sendo a degradação um conceito adicionado posteriormente, protagonizando uma nova intervenção artística. Para uma leitura deste projecto nas suas várias dimensões, abordamos temas como a sua relação com as problemáticas da conservação de arte contemporânea e particularidades comuns a projectos artísticos caracterizados pela inserção no meio natural e também projectos que usam conceitos e procedimentos da museologia ao serviço da produção artística. Observando os acções e intuitos deste projecto verificámos um claro afastamento dos procedimentos convencionais de uma unidade museológica, pela falta de preocupação em conservar os objectos num estado imutável, relativo ao seu aspecto e especificidades iniciais, tal como pela ausência de investigação e inventariação das obras expostas. Estas opções justificam-se por este projecto ser desenvolvido por uma entidade que não tem na sua missão principal a conservação e apresentação de espólio. Podemos afirmar que estamos perante uma redefinição dos conceitos de expor e conservar, que se subordinam ao propósito de valorizar as peças, através da criação de uma nova intervenção artística. Não apenas esta redefinição, como as opções estéticas e conceptuais, são completamente consistentes se inseridas no percurso artístico do colectivo, pois os eixos orientadores do percurso do Bando são idênticos aos que ajudaram a definir conceptualmente este projecto, permitindo-nos atestar a sua coerência. 1. O Bando, um trajecto marcado pela natureza

O Teatro O Bando iniciou as suas actividades no rescaldo da Revolução de Abril de 74, muito influenciado pelo regresso de alguns dos membros fundadores do exílio, principalmente França e Bélgica, como foi caso de João Brites, director e encenador da companhia. O grupo de profissionais que está na base da fundação deste grupo, foi fortemente marcado pelo teatro de rua, pelo teatro operário de Paris e pelos happenings, que então se popularizavam como expressão artística. Até ao final dos anos 80 os espectáculos dirigiam-se principalmente ao público infantil, estando implícita a missão pedagógica das artes performativas e recusando o teatro como imitação ou ilustração da realidade e o teatro comercial. Pelo contrário era defendido “o respeito pela inteligência e as maneiras de ver das crianças.” (Bando, 1988:17) Gradualmente o público- alvo foi-se diversificando, acompanhando a maturidade estética e ideológica do grupo. Nos primeiros anos os textos eram escritos pelo colectivo, prática que se foi tornando cada vez menos comum, para dar lugar à adaptação de textos não dramáticos de autores nacionais consagrados e textos de origem popular. Apesar das diferentes origens dos textos, encontramos revisitados temas similares, como as dicotomias entre fracos e fortes e diferentes abordagens sobre a temática da morte e da passagem do tempo. Por várias vezes são feitas também revisitações a episódios da História de Portugal, sem aspirarem a reconstituição histórica. A opção de trabalhar textos não dramáticos é justificada pela liberdade que a sua


adaptação encerra, permitindo novas leituras e interpretações aquando da alteração da linguagem para o universo do espectáculo. A estética dos espectáculos do Bando é marcada por recolhas etnográficas, interpretadas nos vários elementos que constituem o espectáculo. As recolhas de marcas da tradição popular não se circunscrevem à recolha de textos, alargando-se a ladainhas, canções e artefactos que pautam a cenografia. Na base das premissas ideológicas do Bando está também consagrada a busca por uma maior interacção com o público, que é instigado a participar nos espectáculos, abandonando a sua posição passiva. Para além da interacção, o colectivo busca uma maior abrangência de público. Assim, os espectáculos do grupo saem em itinerância para locais, dentro e fora de Portugal, onde estes eventos são menos regulares. Muitas vezes os espectáculos do Bando rompem com os locais de representação convencionais. Podemos já assistir a espectáculos em matas, lagos, serras ou comboios. Esta opção está relacionada, não só com a sua demanda pela criação de uma simbiose com o público, mas com o desejo de dessacralizar do espaço de representação. As produções do Bando são também marcadas pelas suas monumentais cenografias que, auxiliadas pelos lugares não convencionais de representação, justapõem referências etnográficas e contemporâneas, em espaços cénicos mutáveis que acompanham o desenvolvimento da acção. É no campo da cenografia que surgem as Máquinas de Cena, espécimes que constituem a grande maioria das obras apresentadas na exposição que estudamos. As Máquinas de Cena são objectos que, mesmo fazendo parte da cenografia, são independentes desta. Objectos tridimensionais e metamórficos, que interagem fisicamente com os actores, actuando como equipamentos de auxílio à acção. Vejamos, a título de exemplo, o Trono (Fig. 1), uma das mais antigas Máquinas de Cena, realizada para o espectáculo Afonso Henriques estreado em 1982. Em consonância com o desenrolar da acção, este objecto, adquire seis posições distintas podendo ser um trono, berço, castelo, igreja, carreta ou sonho.

Fig.1- Máquina de Cena Trono (Bando, 2005:55) c. 3cm

Enfatizando a singularidade e autonomia estética e simbólica destas obras, quando desinseridas do espectáculo, desde 1992 até 2005 foram feitas várias exposições temporárias, inseridas em projectos pontuais, dedicadas em exclusivo às Máquinas de Cena.


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Fig. 2 - Vista da primeira exposição de Máquinas de Cena, Museu Antropológico de Coimbra, 1992. (Arquivo Teatro O Bando). C.6,5cm Fig. 3 - Vista da exposição em Querença, 2005 (Arquivo Teatro O Bando, fotografias de Ângelo Fernandes) c. 6cm

Durante os anos 90, as Máquinas de Cena foram expostas no museu antropológico de Coimbra (Fig.2), Museu Municipal Dr. Santos Rocha na Figueira da Foz, Culturgest, Centro Regional de Artes Tradicionais no Porto e no Cine- Teatro São João em Palmela. É de salientar, neste primeiro conjunto de exposições temporárias, o convite de duas instituições dedicadas ao estudo da antropologia e das artes tradicionais, afirmando o pendor etnográfico dos espectáculos do Bando. Em 2005, foram feitas três exposições. Na estação de metro Campo 24 de Agosto no Porto, nos Jardins do Centro Vila Flor em Guimarães e no centro da Vila de Querença, distrito de Faro. Esta segunda fase de exposições acusa já algumas das premissas que irão definir o projecto da exposição Ao Relento, dada a escolha de lugares de exposição não convencionais, os últimos dois ao ar livre. A exposição de Querença (Fig.3) pode ser interpretada como um ensaio da exposição permanente. Ainda que não visasse a simbiose e integração num meio natural, esta é também uma exposição ao relento. Foi também nesta exposição temporária que os figurinos do Bando foram mostrados pela primeira vez, servindo-se dos mesmos suportes expositivos eleitos, posteriormente, para a exposição permanente- discretos corpos de rede suspensos em árvores.


2. Enquadramento conceptual do projecto Estávamos cansados de não encontrar uma solução para guardar e preservar um númersignificativo de máquinas de cena que fomos construindo ao logo de dezenas de anos. Um dia decidimos, exasperados, que íamos colocar tudo na rua. Logo que imaginámos todos aqueles objectos, de inestimável valor afectivo, a desfazerem-se dia após dia, pensámos que talvez, em vez de lutar contra isso podíamos defender a inexorabilidade da degradação de uma exposição que, num diferente museu, fosse das únicas a não precisar de conservador. (BRITES, 2011:19)

Paralelamente à realização de exposições temporárias, o projecto da exposição permanente, que tomou forma em 2010, vinha já a ser amadurecido. No livro Máquinas de Cena d´ o bando, de 2005, podemos ler “Como todas as coisas as máquinas vão envelhecendo no reboliço das matérias e dos organismos. Que morram mas devagar, devagarinho, deixando o tempo cumprir a sua missão.” (BANDO, 2005: 111) A falta de espaço para armazenar um espólio em constante crescimento, serviu de impulso para a criação deste projecto, contudo o conceito foi desenvolvido assente em premissas que aceitavam a degradação das obras como parte de um processo evolutivo, onde a degradação visitável adicionaria significado às obras por contemplar, ao longo dos tempos, vários aspectos geradores de novas leituras. O projecto de instalação das obras define que estas ficarão instaladas no troço da Serra do Louro que faz parte do terreno da sede do colectivo. Prevê-se o aproveitamento do caminho de madeira que une o edifício ao cimo da colina, tal como das plataformas, do mesmo material, que o ladeiam, actuando como pequenos palcos, visando o aproveitamento deste espaço como lugar de representação. As Máquinas de Cena ocupam as plataformas que, simbolicamente servem de palco ao espectáculo da degradação. Os figuros agrupam-se no topo da colina, suspensos em árvores, criando a Mata dos Figurinos. Nos meses que precederam a montagem da exposição, decorreu o restauro das obras. Esta intervenção não pretendeu congelar as obras imutáveis ao longo do tempo, preferindo dotá-las de condições que desacelerassem a sua degradação. 3. Restauro para o abrandamento dos ponteiros do relógio da degradação

O restauro das Máquinas de Cena e dos figurinos patentes na exposição Ao Relento é marcado por procedimentos intuitivos e não convencionais, se comparados com os procedimentos canónicos de uma unidade museológica. Esta intervenção partiu de um diagnóstico elaborado pelos membros do colectivo, determinando as obras que deveriam ser intervencionadas, atenuando marcas do tempo e das utilizações, não as eliminando completamente.


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As principais intervenções sofridas pelas Máquinas de Cena passaram, principalmente pela reparação ou substituição de material nos locais mais danificados e repinturas mantendo as cores originais. Nos figurinos foram apenas cosidos rasgos mais profundos. Apesar destas intervenções, as principais acções centraram-se na impermeabilização dos objectos, preparando-os para as acções dos agentes naturais a que seriam expostos. As obras de madeira foram envernizadas e os figurinos impermeabilizados- recorrendo ao uso de um material não convencional para este propósito- um produto destinado convencionalmente à impermeabilização de paredes de betão. Seguindo opções aparentemente inusitadas, pelo uso de materiais não convencionais, verifica-se que cumprem os propósitos, protegendo os objectos das agressões do meio, sem as descaracterizarem. Mesmo O Bando não seguindo procedimentos canónicos da área da conservação e restauro, encontramos, neste projecto, relações processuais e conceptuais, comuns aos desafios e processos da conservação de arte contemporânea. Os problemas e alguns dos procedimentos seguidos pelos conservadores nos meios convencionais são intuitivamente seguidos pelo Bando. A arte contemporânea traz novos desafios aos conservadores, seja pela natureza efémera dos materiais ou da obsolescência electrónica de obras que se serviram daquelas que, no seu tempo eram novas tecnologias. Outros aspectos, também discutidos no âmbito da conservação de arte contemporânea, como a performatividade de obras que, pelo seu funcionamento continuado, põem em causa a perenidade material e do desaparecimento planeado que faz parte dos propósitos conceptuais de algumas obras, têm uma relação próxima com os conceitos e desafios da exposição Ao Relento. No Séc. XX começam a surgir trabalhos artísticos cuja intenção conceptual contempla o seu desaparecimento material, colocando em causa o trabalho convencional dos conservadores e dos restauradores. Conservar estas obras intactas significaria deturpar a génese da ideia que lhe deu origem, descaracterizando-as. Pela transitoriedade material de algumas obras, surge a necessidade de proceder à documentação exaustiva da obra de arte, não apenas a nível fotográfico mas também procedendo ao levantamento das ideias e conceitos da obra, instruções de montagem e preservação dos projectos que antecederam a sua realização. Dos aspectos comuns, encontrados entre os procedimentos na conservação de arte contemporânea e os processos empíricos desenvolvidos neste projecto, devemos destacar a aceitação da deterioração e desaparecimento do material, tal como o respeito pela performatividade das obras e das marcas da passagem do tempo impressas no material, como sinais históricos da obra. Apesar de muitas obras de arte contemporânea terem um tempo de vida prédefinido, que não deve ser alterado com risco de alterar os desígnios do projecto, esta não é uma questão pacífica quando analisada no contexto dos museus. Contudo, para o Bando, esta questão não só é aceite como constitui um dos alicerces conceptuais deste projecto.


A afirmação de Ernest Van de Wetering, acerca da conservação de arte contemporânea, quando analisada no contexto deste projecto do Bando, corrobora as opções tomadas: The transformation of a work of art is tragic. Who would not like to prolong its ´here and now-ness´? No doubt, like other aspects of human life, the existential forces at first have priority over prudence and conservative forces. But, like in the existential situation of humankind, the transition of present into past is inevitable. (WETERING, 2005:247)

A aceitação da desintegração das obras de arte é assumida pela própria forma como a exposição é definida no seu projecto inicial: exposição sem conservador. A performatividade das obras, que deverão manter a sua mutabilidade é contemplada neste projecto, e assumida com menos pudor que nos meios expositivos convencionais. As obras deverão ser manuseadas pelos visitantes, que poderão explorar os diferentes aspectos e utilidades das mesmas. À performatividade pré-existente das obras acresce a performatividade biológica, que enceta a sua degradação, conferindo-lhes diferentes aparências à medida que as marcas do tempo se multiplicam. As intervenções, anteriores à exposição, pretenderam dar as condições para abrandar os ponteiros do relógio da degradação, não aspirando à sua conservação imutável, subordinam-se a outros propósitos, como a fruição no espaço da Serra, onde estas obras se integrarão no seu último estádio assumindo que “We collect things. Old things just get older, but new things must first lose their newness. We cannot prevent that.” (MICHALSKI,2005:295) Apesar ser dado ênfase à documentação, nos meios convencionais, neste projecto do Bando, detectamos uma quase total ausência de documentação sobre as obras, restando apenas registos dos espectáculos e o livro Máquinas de Cena — o bando, que não constitui um registo exaustivo das obras expostas, verificando-se uma total ausência de documentação dos figurinos. Interpretando a decomposição das obras como um processo, o seu desaparecimento material será o culminar de um ciclo, onde os resquícios materiais das obras farão parte do meio ambiente. Este projecto é uma metáfora da efemeridade material humana, temática revisitada em vários espectáculos do colectivo, a passagem do tempo faz parte de um ciclo que se fecha com a morte. 4. Máquinas de Cena + Natureza = Ao Relento

Pouco depois da mudança para a sede que hoje ocupa, o Teatro O Bando começou a explorar a encosta da Serra que faz parte do seu terreno. Nunca pretendendo urbaniza-la, faz algumas tentativas de a humanizar e tornar usufruível dentro da sua actividade.


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A colina, hoje ocupada pela exposição Ao Relento, está provida de electricidade e água potável tal como de um caminho e plataformas de madeira, coluna vertebral de um espaço que pode ser considerado uma sala de espectáculos ao ar livre. A instalação da exposição (Fig.4 e Fig.5) opera como um novo passo na conquista de um espaço natural. Sem ser descaracterizado, adquire uma nova dimensão, como ferramenta de uma intervenção artística. As plataformas usadas como suporte para as Máquinas de Cena, não se transformaram em plintos suportando objectos escultóricos imutáveis. Dada a natureza dos objectos que comportam, e do próprio projecto de exposição, continuam a actuar como lugares de performance. Atendendo à performatividade e plurifuncionalidade intrínsecas às Máquinas, estas plataformas são agora palcos onde cada visitante poderá protagonizar a sua performance ao manusear as obras e onde, simultaneamente, decorre a performance de degradação e consequente fusão com o meio envolvente.

Fig. 4 e Fig. 5 - Pormenores da exposição Ao Relento mostrando as Máquinas de Cena: Relógio e Nora (fotografias Arquivo Teatro O Bando) C. 4,5 cm.

Não se cingindo a agir como local de exposição, a integração gradual das peças na matéria que constitui a Serra, potencia a sua fusão e indistinção visual. A própria Serra faz parte da matéria desta exposição. Mesmo antes da fusão das obras com o meio natural, a Serra já é o agente que dita os ritmos que configurarão às obras diferentes aspectos, e consequentemente novas leituras que se alteram e desdobram. Neste processo, a natureza é auxiliada pelas temáticas e materiais usados na construção das Máquinas, comuns ao imaginário do espectáculo.” Existe uma série de elementos que se repetem e que influenciam todo o colectivo: são a água, o grão, o pão, a fruta, a natureza, a pedra, a madeira, a farinha; o grupo não pode viver sem isso e a isso chamo religiosidade.” (LISTOPAD,1988:16) A importância da passagem do tempo e das alterações da natureza, que se traduzirão em alterações nas obras, tem uma forte relação com projectos artísticos caracterizados pela integração no meio natural como são exemplo as obras de Land Art, tanto na óptica da intervenção no espaço natural como no desfecho de um processo material cujo culminar é a total simbiose com a natureza.


Museums, like asylums and jails, have wards and cells- in other words, neutral rooms called “galleries”. A work of art when placed in a gallery loses it charge, and became a portable object or surface disengaged from the outside world. (SMITHSON, 1996:154)

Ao contrário do apontado por Robert Smithson, comentando a exposição de obras de arte em meio controlados, como museus ou galerias de arte, as Máquinas do Bando não são apresentados como objectos portáteis, isolados do mundo. Fazem agora parte da paisagem e do ciclo natural da Serra. Todo este processo adiciona significado à exposição, incluída num ciclo natural. Ao invés de se proceder à exaltação das obras como objectos independentes, estas são interpretadas dentro de um complexo contexto, onde as obras desenvolvem uma performance em harmonia com a natureza. 5. Uma exposição Ao Relento no percurso de uma companhia

No quadro das medidas tomadas pelo Bando, no sentido de preservar e expor o seu espólio, deparamo-nos com particularidades que consubstanciam aspectos ideológicos e estéticos patentes nos espectáculos da companhia. Em entrevista realizada em 1995, no âmbito da exposição no Centro Regional de Artes Tradicionais, Porto, João Brites afirma: Preservámos os objectos sem pretensiosismo. Os ciclos, os marcos são indispensáveis para quem quer saber onde está. A ritualização desses ciclos ajuda-nos a não perder um determinado tipo de referências. (ALMEIDA E SERRA, 1995) A afirmação do director artístico do colectivo indica-nos que, à opção de preservar, subjaz a missão pedagógica interna pois as obras são preservadas como âncoras da criação artística. Preservar não se subordina ao intuito primordial de conservar uma marca do passado, mas como uma acção relacionada com a criação artística indo ao encontro do afirmado por James Putnam The artist´s urge to accumulate objects in the studio is part of the age-old human impulse to gather and hoard. But artistic collecting is very different from that of the hobbyist or the ´serious´ collector and it has a distinct character which links it to the creative process. (PUTNAM, 2009:12)

Neste caso expor, dentro de um contexto artístico, onde os artistas intervêm e reflectem sobre as suas obras com distanciamento temporal, é não apenas uma forma de as dar a conhecer, mantendo a fidelidade aos conceitos e intensões que serviram de mote para a sua criação. A exposição é também o impulso para um novo momento de criação artística, como referido, por João Brites:


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A exposição corresponde a uma outra maneira de ver o que já foi visto. Quanto mais possibilidades tivermos de colocar hipóteses, mais possibilidades teremos de ser criativos. Um objecto desinserido do contexto onde estava previsto e reinscrito noutro contexto, como fizeram os

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Mata, Ana Margarida (2013) “Exposição ou decomposição? A natureza como entidade artística.”

dadaístas, ganha outra leitura, readquire outra dimensão. (ALMEIDA E SERRA, 1995)

Apresentar o espólio, desinserido do espectáculo, para o Bando, é simultaneamente uma forma de reflectir internamente sobre um percurso e lugar para novas abordagens artísticas. A reflexão sobre o passado, para um grupo criativo, faz-se através de uma abordagem que constitui uma nova obra de arte- a exposição. O conceito de expor, quando inserido num contexto de criação artística, pode constituir-se como modo de criação de novas acepções sobre a mesma obra. Substituindo o intento de conservar para a posterioridade, como legado de um tempo e de uma acção, as obras são matéria-prima para a execução de uma nova intervenção artística, materializada na exposição, quando interpretada não apenas como apresentação das obras, mas obra de arte completa, contemplando conceitos independentes dos que definiram a criação das obras apresentadas. As valências reflexivas e criativas estavam também patentes nas exposições temporárias, influenciadas não apenas pela criação de um discurso expositivo, gerador de novas narrativas, mas também pela ambiência dos lugares de exposição, que pelas suas diferentes características imbuem as obras de novos significados. O novo passo, da realização da exposição permanente, vem cimentar um percurso onde as exposições actuam como motes para a criação artística, coerente com a actuação teatral e ideológica do Bando. A exposição permanente, para além de resolver problemas de espaço, insuficiente e inadequado para conservar as obras, imbui-se do conceito de degradação visitável, onde a deterioração das obras, e sua consequente diluição no espaço natural onde se insere, é um novo conceito. De difícil definição, ao invés de ser tido como uma exposição pode ser abordada como uma instalação. Tratando-se de uma intervenção site specific cuja importância do lugar é de extrema importância no discurso. A apresentação das obras em exposição destina-se à criação de um uno, cuja anulação como entidades individuais é o último grau de um processo. Assim o espaço para além de apenas alojar as obras constitui uma nova entidade do projecto. Encontramos assim semelhanças com projectos artísticos que não constituem exposições mas cujos conceitos e procedimentos da museologia são usados ao serviço da produção artística The museum´s classification and display of its collections can have an aesthetic quality which has many parallels with and influence on art practice, and many artists are also interested in investigating methods used by museums in presenting an ´official´ cultural and historical overview. (PUTNAM, 2009:8)


Quando inserido no percurso da companhia, neste projecto, encontramos aspectos que justificam as opções conceptuais e processuais do projecto. Incluída num território de teatro, a encosta que faz parte da sede do colectivo, verificamos que conservar e expor que se subordinam ao objectivo de valorizar o património, não procurando a sua eternização ou a sua exposição como documento, mas como matéria para uma intervenção que explore várias das suas valências e aspectos. Esta diferente abordagem é feita com relação à performance, que vem concordar com a missão original do Bando e com a própria natureza destes objectos, respeitando as suas características plurifuncionais iniciais e o processo de alteração física impulsionado pelo local de exposição. Este projecto harmoniza-se com aspectos que caracterizam a criação artística do colectivo. Preservar o espólio e expô-lo agem em conformidade com a missão pedagógica das artes performativas defendida pelo Bando. A opção de expor num lugar não convencional vai ao encontro da opção por lugares não convencionais de representação, onde o Bando muitas vezes apresenta os seus espectáculos. O lugar natural de exposição, com o qual as obras se fundem, tem também uma forte ligação com as produções do colectivo, pautadas pela ligação à ruralidade e com referência etnologia. A degradação imparável das obras, auxiliada pelas condições adversas a que estão expostas relaciona-se com dois campos temáticos explorados nas suas produções do colectivo: a passagem do tempo e a morte. A passagem do tempo como processo evolutivo humano é trabalhada pelo Bando em vários dos seus espectáculos que tal como a morte é inevitável, e parte da transitoriedade da existência material. Neste projecto, também a morte dos objectos é assumida como inevitável e parte da condição do material, sob a acção do tempo. A exposição Ao Relento pode ser interpretada como uma metáfora da transitoriedade da vida e da passagem do tempo, através da degradação das obras, que fecham um ciclo de existência com a junção ao meio natural. A intenção de que todas as obras tenham uma leitura individual quando desinseridas do espectáculo tem uma forte presença neste projecto pois, apesar das Máquinas de Cena e figurinos expostos terem sido executados para um contexto de espectáculo, são passíveis de serem interpretados e fruídos individualmente, tal como de operarem como ferramentas para outra intervenção. A exposição permanente Ao Relento pode ser assim, entendida como uma obra artística do colectivo, inserida no seu percurso, não apenas como balanço da sua produção material mas como espaço criativo e reinterpretativo do passado, num discurso harmonizado com o percurso intenções conceptuais e ideológicas do Teatro O Bando. Conclusão

O projecto que apresentamos, neste estudo, afasta-se deliberadamente do meio museológico. Tendo sido promovido por uma instituição que não tem a preservação, estudo e divulgação de património material, como parte da sua missão primordial,


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Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 73-85.

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os procedimentos adoptados distanciam-se dos princípios normativos seguidos pelas instituições museológicas. Apesar de encontrarmos semelhanças com os intuitos de um museu (expor, estudar, divulgar, educar) este projecto aparta-se da ideia de objecto como legado de um tempo ou prática artística, para o inscrever num contexto onde estes operam como parte de uma nova intervenção artística. Actuando sobre as suas próprias obras, o Bando usa-as, sem as conservar, para criação de um discurso cujo conceito central é a degradação. Não pretendendo apenas apresentar as obras para criação de um discurso, baseado nas suas particularidades e funções originais, a exposição Ao Relento assume a mutabilidade orgânica das obras que se diluem no meio natural, onde a própria Serra muda o conceito e aspectos das obras, tornando-se um agente activo na obra de arte total. A apresentação das obras como objectos singulares adquire menor importância que a acção global que se desenrola no espaço, onde o conceito e função inicial das obras são subvertidos pela adição de novos conceitos. Assim, as obras afastam-se gradualmente dos propósitos e ideias que lhes deram origem para se diluírem num conceito total que as abarca a todas. Mesmo que este projecto não procure a fixação da memória do contexto que que estas obras foram criadas, assume-se que estas reportam a um tempo e a uma circunstância, cuja marca é subvertida e alterada. A acção sobre o presente e o futuro é mais relevante que o passado. Às obras executadas no passado são adicionados o tempo, o lugar e o homem (artista, espectador e visitante), na realização de uma nova obra geradora de memórias autónomas. A ausência da preocupação em conservar as obras num estado imutável, a escolha do lugar de exposição e definição do conceito do projecto relacionam-se com vários aspectos do trabalho que o Bando vem desenvolvendo, desde os anos 70. Este projecto é uma intervenção dos criadores sobre as suas obras, que actuando sobre o seu trabalho anterior, usam-no como ferramenta para criação de novas imagens e discursos, cuja redefinição conceptual obriga a novas leituras sobre as mesmas obras. A exposição Ao Relento é assim um exemplo de intervenção de uma companhia teatral sobre o seu património, numa abordagem consistente com o seu domínio de criação artística. Podemos afirmar que apenas o Teatro O Bando podia ter feito este projecto. Contactar a autora: mata.margarida@hotmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Referências · ALMEIDA, Vitor, SERRA, Rui. Máquinas de Cena, João Brites d´O Bando – entrevista. Revista Virtual [UP] ARTE http://www.cidadevirtual.pt/up-arte/brites-p.html (acedido 22 de Abril 2013), 1995.


· BANDO, O (1988) Manifesto 2. (texto policopiado), 1988. · BANDO, O (org.) Máquinas de Cena- o bando. Porto: Campo das letras, 2005. · BRITES, João. Do Outro Lado|O que fazemos transcende o que pensamos in Do Outro Lado |Portugal| Quadrienal de Praga 2011| Espaço e Design da Performance. Lisboa: Direcção Geral das Artes, 2011, p. 11- 23. · MICHALSKI, Stefan. Conservation lessons from other types of museums and a universal database for collection preservation In: Modern Art: Who Cares? An interdisciplinary research project and an international symposium oh the conservation of modern Amsterdam: Archetype Publications, 1999. · PUTNAM, JAMES. Art and Artifact, The Museum as Medium. London: Thames and Hudson, 2009. · SMITHSON, Robert. Some void thougs on Museums in Robert Smithson Collected Writings. Londres: University of California Press, 1996. · VAN DE WETERING, Ernest. Conservation- Restoration ethics and the problem of Modern Art in Modern Art: Who Cares? An interdisciplinary research 127 project and an international symposium oh the conservation of modern and contemporary art. Amsterdam: Archetype Publications, 1999.


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Os museus eclesiásticos e a sua função pastoral. Obstáculos e necessidades no Patriarcado de Lisboa

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Ecclesiastical museums and their pastoral function. Obstacles and needs in the Patriarchate of Lisbon

André das Neves Afonso

no Patriarcado de Lisboa.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 86-100.

Afonso, André das Neves (2013) “Os museus eclesiásticos e a sua função pastoral. Obstáculos e necessidades

Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa

Resumo: Os museus eclesiásticos apresentam características que os podem tornar poderosos instrumentos colocados ao serviço da missão da Igreja. Propomo-nos contribuir para um debate em torno da concetualização desta tipologia de museu ao mesmo tempo que, num case study à realidade museal do Patriarcado de Lisboa, investigamos como esta é constituída e quais os obstáculos e necessidades verificados na concretização da sua função pastoral. A criação de uma rede museológica pode constituir-se como um modelo de gestão capaz de requalificar o setor e de dar respostas aos problemas encontrados. Palavras chave: Museus, Igreja Católica, Patriarcado de Lisboa, Rede de Museus

Abstract: Ecclesiastical museums, due to some of their own characteristics, may become powerful instruments when put at the service of the Church’s mission. We propose to contribute to a debate on the conceptualization of this type of museums while, in a case study using the museological reality of the Patriarchate of Lisbon, we investigate its constitution and what are the obstacles and needs found in the concrete fulfillment of their pastoral role. The creation of a museum network can be formed as a management model able to requalify the sector, providing solutions to the problems that were found. Keywords: Museums, Catholic Church, Patriarchate of Lisbon, Museums Network Introdução

O presente artigo surge no contexto da investigação em curso levada a cabo pelo autor e que se insere na temática dos museus eclesiásticos. O problema de investigação assenta no estudo e no diagnóstico dos obstáculos e necessidades ao desenvolvimento da função pastoral dos museus da Igreja Católica. Partindo de uma abordagem teórica em torno da figura do museu eclesiástico, alicerçada em determinados trabalhos científicos e documentos orientativos emanados por organismos da Igreja, procuramos apresentar algumas sistematizações e contribuições em torno da figura do museu da Igreja, enquanto tipologia museológica, e daquilo que efetivamente o diferencia dos demais museus. Esta concetualização corresponde, em grande medida, à primeira parte do presente texto e é sobre ela que nos debruçaremos mais detalhadamente.


Na segunda parte do texto procedemos ao desenvolvimento de um case study à realidade museal no Patriarcado de Lisboa, consubstanciada na identificação das unidades de natureza museal existentes, em visitas aos locais e entrevistas aos responsáveis dos projetos. A ausência de conhecimento, informação e documentação sobre tudo o que enforma esta realidade, nomeadamente no desconhecimento das unidades existentes no território diocesano, tem-se constituído como um dos principais obstáculos à própria investigação. Ainda que toda esta segunda parte do artigo seja abordada de uma forma resumida, já que a pesquisa ainda se encontra em curso, culminamos este texto com uma proposta de requalificação do setor materializada através da criação de uma Rede de museus e coleções do Patriarcado de Lisboa, dando uma dimensão iminentemente prática a esta investigação. 1. Museus eclesiásticos. Para uma caracterização tipológica 1.1 O museu eclesiástico e o primado da evangelização

A figura do museu eclesiástico ou museu da Igreja Católica surge, por vezes, envolta num emaranhado, confuso e incorreto contexto teórico-concetual, mercê, talvez, da existência, em Portugal, de poucos subsídios académicos e bibliográficos que a esta tipologia de museus exclusivamente se tenham dedicado e, também, do facto de uma grande parte dos projetos de natureza museal levados a cabo por organismos da Igreja Católica em Portugal terem replicado, no melhor e no pior, e por bastante tempo, as metodologias e os processos museológicos e museográficos desenvolvidos, sobretudo, pelos museus de arte. A frequente associação – ou mesmo sinonimização – entre os conceitos de museu eclesiástico e de museu de arte sacra surge, também, como uma falsa questão. A natureza do primeiro verifica-se sobretudo no plano tutelar (plano este que trará, pelo menos teoricamente, colossais implicações na definição da missão e objetivos do museu) e a do segundo diz sobretudo respeito à tipologia das coleções. Estes aspetos têm contribuído, no nosso entendimento, para o não desenvolvimento sustentado de um modelo museológico teórico e prático próprio que apenas pontualmente tem sido positivamente quebrado. Um dos principais contributos – se não o principal – para a definição da figura do museu eclesiástico é a carta circular A função pastoral dos museus eclesiásticos, datada de 2001 e que resulta do trabalho levado a cabo pela então Comissão Pontifícia para os Bens Culturais da Igreja (CPBCI). Dirigida a todos os bispos do mundo, assumindo portanto uma dimensão universal, esta carta apresenta um conjunto de “orientações e regulamentos concretos” (Igreja Católica, CPBCI, 2001: cap. VI), “a fim de conservar materialmente, tutelar sob o ponto de vista jurídico e valorizar pastoralmente o importante património histórico-artístico que já não se usa de forma habitual” e de “oferecer um ulterior contributo para reforçar a acção da Igreja através dos bens culturais, em ordem a favorecer um renovado humanismo à luz da nova evangelização.” (Igreja Católica, CPBCI, 2001: introdução). Nesta curta enunciação dos objetivos da supracitada carta circular surgem alguns elementos sucintos mas


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cruciais para definir e caracterizar esta tipologia de museus: conservar e valorizar pastoralmente o património eclesiástico, integrando-o no dinamismo da ação da Igreja (reforçando-o), em particular no contexto da nova evangelização (mas não só). O museu eclesiástico é, em primeiro lugar, uma instituição museal tutelada por uma entidade eclesiástica, seja uma diocese, paróquia, cabido, instituto de vida consagrada, sociedade de vida apostólica, confraria ou outro tipo de associação de fiéis, entre outros organismos da Igreja Católica. Não obstante as diferentes características e finalidades destes diversos membros, todos eles concorrem para a concretização da macro função do corpo – a Igreja – no qual estão enraizados: evangelizar. “Evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar, ou seja, para pregar e ensinar, ser o canal do dom da graça [...]” (Igreja Católica, Papa Paulo VI, 1975: nº 14). D. Manuel Franco Falcão refere, na sua Enciclopédia Católica Popular, que a evangelização [...] é a proclamação da Boa Nova da salvação de J. C. [Jesus Cristo], levada por seu expresso mandamento (Mt 26,19-20; Rm 10,12-18) a todos os povos e culturas. Tanto se pode dirigir aos não cristãos (missões ad gentes), como aos cristãos que perderam o sentido da fé cristã (‘nova evangelização’, recristianização), como aos cristãos necessitados de aprofundarem a sua fé e vida cristã (pregação, liturgia, pastoral em geral). É a primeira missão da Igreja.” (FALCÃO, 2004).

É, portanto, neste contexto que se deve inserir e centrar a dinâmica de trabalho em torno dos bens culturais da Igreja, na qual os museus eclesiásticos são, podem ou devem ser dos principais intervenientes e dinamizadores. A Associação Portuguesa dos Museus da Igreja Católica (2004: 29) refere explicitamente que o investimento em recursos financeiros e humanos só é passível de se efetuar caso se entenda o património da Igreja como meio de evangelização. É condição sine qua non. Numa perspetiva idêntica, já D. Albino Cleto havia dito [...] que a Igreja não existe para ser promotora de museus. A sua acção em prol da cultura e da arte compreende-se como meio para fins mais elevados: reconhecer e contemplar Deus, falar dele aos que O procuram, elevar para ele os corações, humanizar e santificar o homem.” (1996:45)

O museu eclesiástico, enquanto instituição de tutela eclesiástica, surge, assim, como um espaço onde se prolonga a ação da Igreja no mundo concreto, inserindo-se no contexto da sua missão. Assume, assim, uma clara função pastoral, associada à cultural, mas é, sobretudo, esta função pastoral que o diferencia das demais tipologias de museus e sobre a qual gravitam as tradicionais funções museológicas. As funções de estudo e investigação, incorporação, inventário e documentação, conservação,


segurança, interpretação e exposição e educação são, contudo, cruciais. Em primeiro lugar, cruciais porque naturalmente indispensáveis para a confirmação destes espaços como verdadeiros museus, necessariamente enraizados no espírito da definição do Internacional Council of Museums que define o museu como [...] uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite. (SANTOS, 2005: 20)

Funções cruciais, também, em segundo lugar, porque só com um integral e qualificado desenvolvimento destas funções e premissas poderá haver um correspondente trabalho pastoral (são como que a sua base). Para concluir este tópico podemos afirmar que a especificidade e, até, o motivo existencial dos museus eclesiásticos radica, sobretudo, na sua natureza pastoral – através do património e da cultura – e, desta forma, na sua integração na atividade missionária da Igreja. Não são um fim em si mesmo, concorrendo, sim, para uma outra meta. 1.2 Os museus e os projetos pastorais

Partindo do postulado atrás desenvolvido em torno da especificidade motriz dos museus da Igreja, torna-se crucial e indispensável que desta dimensão teórica e contextual se transponha para um plano iminentemente prático e de intervenção museológica. Aqui surge, talvez, um dos principais desafios que se coloca aos museus eclesiásticos, já que a sua eficácia pastoral resulta, em primeiro lugar, da necessidade de uma clara assunção, por parte dos responsáveis dos vários organismos das Igrejas locais (ao nível das dioceses e paróquias e das várias instituições eclesiais existentes nas suas áreas geográfico-administrativas), das potencialidades do património da Igreja no contexto da evangelização e da catequese e, de seguida, da integração das unidades de índole museal e de outras estruturas de intervenção e dinamização patrimonial nos projetos ou programas pastorais destes vários organismos, i.e., inclui-los nas suas estratégias e políticas de ação tendentes à concretização da sua missão. Assumindo-se, portanto, como uma “instituição pastoral de pleno direito” (Igreja Católica, CPBCI, 2001: nº 2.1.1), o museu eclesiástico, não se coadunando com um trabalho independente e individualista, deve envolver-se e relacionar-se com as várias instituições existentes na área diocesana e paroquial onde se encontra estabelecido (idem, ibidem), bem como, no caso, por exemplo, de um museu tutelado por uma diocese, desenvolver um trabalho conjunto e simbiótico com os vários departamentos e setores da respetiva cúria diocesana (departamentos de cultura e bens culturais e com aqueles vocacionados para as questões da evangelização, catequese e comunicação). Talvez seja, somente, nesta perspetiva de trabalho integrado (aproveitando as


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competências de cada membro) que se conseguirá desenvolver um projeto coerente e pastoralmente eficaz. Mas se a museologia e os museus não forem vistos como elementos que possam tomar parte, de uma forma claramente assumida, dos projetos pastorais diocesanos, a alocação de recursos para a criação de unidades de índole museal ou para a qualificação das existentes será (ou permanecerá) praticamente nula ou inexistente e a dinâmica dos espaços existentes dificilmente ultrapassará a mera perspetiva cultural e expositiva (quando não se limitando a simples armazéns de objetos). Monsenhor Damián Iguacen Borau, refere, de uma forma interessante, e numa referência a práticas desenvolvidas pela Igreja em Espanha, que esta

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Afonso, André das Neves (2013) “Os museus eclesiásticos e a sua função pastoral. Obstáculos e necessidades

[...] tem um plano pastoral para o património cultural que compreende duas acções: pastoral sobre o património, e pastoral a partir do património. A pastoral sobre o património inclui uma série de acções tendentes à conservação, restauro e promoção da moderna arte sacra e seu uso adequado, através das comissões diocesanas. A pastoral a partir do património consiste num plano de evangelização a partir do cultural – anunciar Jesus Cristo partindo do património. (1996: 38)

A primeira, alargada a todo o património eclesiástico, talvez seja a mais óbvia; a segunda, e não se circunscrevendo somente à programação expositiva, aquela que realmente importa fazer e onde importa investir. Os museus eclesiásticos, bem como outras estruturas que atuam a partir dos bens culturais da Igreja e, também, os próprios templos religiosos, são espaços privilegiados de encontro com crentes e não crentes. São, por vezes, os únicos elos de contato entre a Igreja e os que dela se encontram afastados, assumindo-se, enquanto autênticos átrios dos gentios, em locais de diálogo respeitoso e frutífero mas, simultaneamente, de anúncio da fé cristã. Associado a este fenómeno observam-se, também, as potencialidades dos museus das Igreja no contexto específico da catequese e da educação religiosa. A permanência, ainda hoje bem visível, de um “abuso do discurso e da explicação na acção pastoral, a superprodução de ensino religioso escrito, a prevalência de uma catequese de tipo escola.” (CLETO, 1996: 45), leva-nos a concluir que, partindo das ideias de que “tudo quanto nos entra pelos olhos se fixa melhor do que aquilo que aprendemos só pelos ouvidos” (idem: 46) e de que “a imagem é mais eficaz do que as palavras para suscitar afectos” (CHAPPIN, 1996: 20), contribuindo para experiências significativas e duradouras, os museus e os bens culturais da Igreja têm necessariamente que integrar as metodologias de ensino religioso e de catequese. 1.3 Ideias em torno do programa museológico integrado dos museus eclesiásticos 1.3.1. Natureza das coleções. Mais que arte sacra

Como já tivemos a oportunidade de sublinhar no início deste texto, a figura do museu eclesiástico não deve ser associada (nem sequer confundida) com a tipologia do


museu de arte sacra, não obstante o facto da maioria dos museus da Igreja serem constituídos exclusivamente ou em grande medida por coleções de objetos de natureza religiosa, litúrgica ou devocional, enquadráveis, sobretudo, na usual designação de arte sacra ou, talvez de uma forma mais precisa, na mais abrangente designação de arte religiosa (vd. COSTA, 2011: 36). Tendo em conta que “o âmbito de conservação patrimonial de proveniência eclesiástica deverá ser muito mais vasto, abrangendo também objectos etnográficos, independentemente do seu valor comercial, objectos de carácter científico e técnico.” (GUEDES, 1997: 203), torna-se particularmente limitada a perspetiva unidirecional em torno das coleções de arte sacra. Se recuarmos até Frei João José de Jesus Maria Mayne (n.1728-m.1792) e D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas-Boas (n.1724-m.1814), figuras de referência no contexto da história do colecionismo e do pensamento museológico em Portugal, talvez possamos recuperar alguns importantes conceitos de utilização pastoral de coleções não necessariamente artísticas e litúrgicas. Frei José Mayne, ao instituir, em 1792, um Gabinete de História Natural no Convento de Jesus, em Lisboa, cuja direção científica da Aula se encontrava sob a alçada da Academia das Ciências (BRIGOLA, 2003: 420), pretendia que, com este projeto, “pela via da doutrinação religiosa e dos métodos pedagógicos baseados na observação e na experimentação – as ‘demonstrações’ no Gabinete —, deveriam os professor evidenciar a conciliação entre Fé e conhecimento científico da Natureza.” (Idem: 421). Por sua vez, na célebre Oração do Museo, discurso apresentado aquando da inauguração, em 1791, do Museu Sisenando Cenaculano Pacense, em Beja, e apesar de atribuída a Frei José de São Lourenço do Vale, encontra-se patente o ideal museológico de D. Frei Manuel do Cenáculo: [...] o estudo do Museo he o estudo de todas as sciencias, para conhecermos a Deos e sua religião. (....) Em hum Museo há hua sciencia q.e encerra todas as outras. (....) He hum labyrinto de encanto em que a rezão se acha e a alma se illustra, e a religião triunfa (cit. BRIGOLA, 2003: 425).

Apesar de, nestes e noutros casos históricos, estarmos, sobretudo, perante coleções de propriedade particular que, contudo, são acessíveis e utilizadas para fins públicos, esta dimensão pastoral passível de se realizar através das mais variadas tipologias de espécimes museológicas, ainda que com metodologias adequadas à atualidade, merece uma reflexão por parte das entidades eclesiásticas possuidoras de acervos de história natural, etnográficos, de ciência e técnica, entre outros, e, também, por parte dos organismos da Igreja responsáveis pelas áreas dos bens culturais, cujos documentos orientativos têm focado exclusiva ou hegemónicamente o património histórico-artístico. A própria carta circular A função pastoral dos museus eclesiásticos, quando enumera as tipologias de objetos reunidos (vd. Igreja Católica, CPBCI, 2001: nº 2.3.2), remete, sobretudo, para esta tipologia de património (apesar de o referir, legitimamente, como aquele que mais frequentemente faz parte da coleções eclesiásticas),


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nomeadamente obras de arte, vasos sagrados, adornos, relicários e ex-votos, têxteis litúrgicos, instrumentos musicais, livros litúrgicos e, ainda, bens culturais mais associados aos arquivos e bibliotecas. Contudo, a referida carta circular assinala ainda que “seria para desejar que o museu eclesiástico incentivasse a conservação da memória dos usos, tradições e costumes próprios da comunidade eclesial e da sociedade civil” (idem, ibidem), o que remente, num primeiro plano, para coleções etnográficas e, também, para as dimensões imateriais e subjetivas associadas às práticas cultuais da liturgia e da devoção privada (ROQUE, 2011: 246) e, num segundo plano, para o universo dos museus interdisciplinares e de território.

no Patriarcado de Lisboa.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 86-100.

Afonso, André das Neves (2013) “Os museus eclesiásticos e a sua função pastoral. Obstáculos e necessidades

1.3.2. Os novos museus eclesiásticos. Com e para as comunidades

A museologia contemporânea, no seguimento, em grande medida, dos debates e desenvolvimentos teóricos e concetuais iniciados, sobretudo, nas décadas de 1960 e 1970 (apesar de contributos anteriores), passíveis de se sintetizar, ainda que mais que isso, no paradigma da Nova Museologia, centra cada vez mais a sua ação em torno das comunidades – de museus das e para as coleções, para museus das e para as comunidades. Potencia-se a função social das instituições museais, instituições que se assumem, preponderantemente, como instrumentos ao serviço do desenvolvimento social, cultural e económico das comunidades e da promoção integrada da sociedade. Surge a noção de museu integral, “destinado a proporcionar à comunidade uma visão de conjunto de seu meio material e cultural.”, sendo necessário “abrir o museu às disciplinas que não estão incluídas no seu âmbito de competência tradicional” (International Council of Museums, 1972), i.e., à interdisciplinaridade. Hoje, o paradigma do museu interdisciplinar, que nos seus programas científico e museológico estuda e comunica uma determinada realidade ou universo a partir de coleções e conteúdos de vários campos temáticos, cruzando variadas perspetivas em torno do mesmo fenómeno (RIVIÈRE, 1993: 179), deve ser equacionado no contexto da programação dos museus da Igreja. Joaquim Roque Abrantes e Manuel Serafim Pinto (1996: 67) já haviam contribuído para esta reflexão ao proporem que, entre a designada museologia tradicional e a nova museologia (enquanto tendências e não campos opostos), devem os museus da Igreja aliar estas perspetivas [...] que mutuamente se complementam. A primeira, de carácter mais permanente e estático, voltada para o seu património, defendido e evidenciado como memória de fé; a segunda, de carácter mais interventivo e dinâmico, faria a leitura evangélica das situações procurando encontrar as soluções possíveis. (idem: 68).

Os organismos pontifícios partilham, também, desta ideia do museu eclesiástico enquanto museu de território, já que se caracteriza “fazendo referência ao território, de modo a colocar em evidência o seu tecido histórico, cultural, social e religioso.”


(Igreja Católica, CPBCI, 2001: nº 2.1.2). Surgem, também, os conceitos de museu integrado e difuso que, numa ótica de gestão museológica e patrimonial em rede, une, numa estrutura reticular em torno do museu diocesano (ou de outra instância-coordenadora), todas as unidades de índole museal e demais bens culturais. No contexto das funções concretas do museu eclesiástico poderíamos destacar a conservação das peças […] a investigação sobre a história da comunidade cristã, já que na ordenação do museu, na escolha das ‘peças’ e na sua estruturação, tem que reconstruir e descobrir a evolução temporal e territorial da comunidade cristã; […] evidenciar a comunidade histórica, dado que o museu histórico deve representar juntamente com outros vestígios do passado, a ‘memória estável’ da comunidade cristã […] o encontro com as expressões culturais do território […].” (idem: nº 2.2.1)

Mas conseguirão, os museus da Igreja, através da sua ação, contribuir para fomentar o sentido identitário-religioso de pertença da comunidade eclesial onde se encontra inserido? Isto remete novamente para a ideia da construção dos programas museológicos com as comunidades, envolvendo-as e aproveitando as suas competências e experiências. “Que receptividade teria a ideia de criar um pequeno museu na dependência de uma igreja ou, depois, de criado, esperar o seu interesse por ele, se a comunidade não foi motivada? (ABRANTES e PINTO, 1996: 70). Estarão os museus eclesiásticos ou coleções visitáveis eclesiásticas animados para esta dimensão, crucial para a sustentabilidade do próprio espaço museal (uma comunidade envolvida, vai ao seu museu)? Não serão os instrumentos e processamentos museológicos da nova museologia aqueles que verdadeiramente podem inserir a museologia no contexto da nova evangelização? Os programas científicos destas estruturas museais devem, como já referimos, ser de natureza interdisciplinar, cujas consequências, no âmbito do programa museológico e expositivo, deverão resultar na seleção dos objetos tendo em conta um discurso previamente organizado em torno de um “fundamento eclesiológico, de uma perspetiva teológica e de uma dimensão espiritual”. (Igreja Católica, CPBCI, 2001: introdução). Aquilo que se verifica, em muitos casos, é que a incipiência dos discursos expositivos verificados em variadas unidades museais de tutela eclesiástica tem origem na construção de uma narrativa em torno de uma coleção previamente definida, não se equacionando a possibilidade de recolha ou incorporação de outros materiais expositivos que a complementem e completem. As coleções continuam a ser o elemento central da cadeia operatória, remetendo os discursos e os conteúdos para um plano posterior (e posteriormente surgem, ainda, e de uma forma tendencial, as comunidades). No contexto da interpretação das coleções em contexto expositivo, a herança dos modelos dos museus de arte reflete-se, novamente, de uma forma extremamente perversa. Se a musealização dos objetos implica a descontextualização dos mesmos,


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não é menos verdade que, no âmbito dos museus da Igreja, sobretudo aqueles com coleções de objetos de natureza litúrgica e devocional que continuam a participar, de forma pontual ou regular, no âmbito do culto divino, essa descontextualização é menos evidente. Torna-se ainda menos evidente se estivermos perante tesouros eclesiásticos em que os objetos se encontram associados, em grande medida, aos templos que os geraram. Un ‘trésor’, c’est donc dans le langage courant un trésor d’église, un ensemble d’objets précieux et beaux, ou humbles au contraire, liés à la fonction liturgique et à la dévotion, conservés in situ, mis en sécurité et presentés au publique. Ce sont ces vitrines qu’on instale dans les

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sacristies ou dans les bases des clochers, dans des locaux désaffectés voisins des sanctuaires ou encore dans des cryptes. Textiles, orfèvrerie, objets divers; (POISSON, 1997: 217)

É um dinamismo próprio do património religioso e, sobretudo, de uma considerável parte dos museus eclesiásticos com coleções de arte sacra, garantido pela “rotatividade dos fundos entre o ‘altar’ e o ‘expositor’ ” (FALCÃO, 2012: 63). Este fator, de crucial importância no enquadramento teórico dos museus da Igreja, surge, contudo, na prática museológica, e vezes de mais, completamente desaproveitado. A descontextualização do objeto religioso não surge por via da transferência de propriedade e, consequentemente, de um novo uso que lhe é atribuído, como acontecera no contexto das nacionalizações dos bens eclesiásticos, mas surge, sobretudo, por via de uma ineficácia comunicativa em torno daqueles elementos cruciais para o entendimento de toda a carga semântica associada ao objeto litúrgico (mas extensível a outras tipologias de objetos): a sua “função, significado e símbolo.” (Roque, 2011: 223). Pode a exposição realizada num museu eclesiástico apresentar uma dimensão catequética e evangelizadora se o discurso expositivo não for entendido e se os objetos não forem apreendidos individualmente e nas várias interconexões que desenvolvem? Como refere Natália Correia Guedes, [...] estará a Igreja a disponibilizar ao público em geral (não necessariamente crente e até eventualmente ateu) os conhecimentos de que, sobre estas matérias, este gostaria de adquirir e é seu empenho que adquira? […] não pode a legenda apenas conter a designação, a matéria de que se compõe o objecto, dimensões e proveniência. Tem que explicar o tipo de utilização, as condições técnicas, o contexto inicial, partindo do princípio que palavras como ‘sacrário’, ‘incunábulo’ ou ‘hissope’ nada dizem a um público não iniciado. (1997: 204)

2. A realidade museal do Patriarcado de Lisboa 2.1 O território e a estrutura

A diocese de Lisboa é uma circunscrição eclesiástica que corresponde, sensivelmente, à divisão civil do distrito de Lisboa acrescida da zona sul do distrito de Leira, tendo


como dioceses fronteiriças Leiria-Fátima, Santarém, Évora e Setúbal. Encontra-se, atualmente, dividida em dezassete vigararias (i.e., um conjunto de paróquias) e incorpora cerca de 265 paróquias. É um território vasto e bastante diversificado que se prolonga, de uma forma genérica, desde as vigararias de Lisboa (que integra quatro vigararias), Oeiras e Cascais, a sul, até à vigaria de Alcobaça-Nazaré, a norte, e das vigararias de Torres Vedras e Caldas da Rainha-Peniche, a oeste, até à vigararia de Vila Franca de Xira-Azambuja, a leste. No contexto da cúria diocesana, i.e., a estrutura que “presta aju­da ao bispo no governo da diocese, prin­cipalmente na direcção e acção pastoral, na administração e no exercício do poder judicial (DCD, 469ss).” (FALCÃO, 2004), a entidade que atualmente tem à sua responsabilidade a conservação e valorização dos bens culturais da Igreja é o Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa. Herdeiro da pioneira Comissão de Arte Sacra do Patriarcado (criada em 1963), do Departamento dos Bens Culturais e do Sector dos Bens Culturais da Igreja, o Centro Cultural é criado em 2009. Apresentando o estatuto de departamento da Cúria Diocesana (também designado por Departamento de Cultura), é constituído de forma a promover um “melhor cumprimento do seu encargo pastoral [do Patriarca de Lisboa] e para que o património cultural, propriedade das diversas pessoas jurídicas canónicas ou em seu uso e administração, esteja ao serviço da missão da Igreja”, sendo atribuídos, a esta nova estrutura, os objetivos de “dinamizar na Diocese a acção cultural e a dimensão pastoral dos Bens Culturais e valorizar e promover iniciativas de interesse cultural no âmbito da Diocese.” (Lisboa, Cardeal-Patriarca, 2009: 326). O Centro Cultural encontra-se estruturado e repartido por vários serviços, nomeadamente o de Arquivo Histórico e Biblioteca, de Museus e Exposições, de Património: Investigação e Promoção Cultural, de Inventário e Apoio Técnico e, por fim, de Eventos Culturais. No caso do Serviço de Museus e Exposições, que particularmente nos diz mais respeito no âmbito do presente texto, compete-lhe “a direcção e gestão do espaço museológico do Mosteiro de São Vicente de Fora; o apoio aos museus da Igreja no Patriarcado de Lisboa e a promoção, apoio e acompanhamento de exposições a realizar na área da Diocese.” (idem: 328). Tendo o Centro Cultural apresentando, em determinado momento da sua existência, uma notável ação pastoral por intermédio da cultura e património da Igreja, conseguida através da promoção de um qualificado programa integrado de formações, conferências, visitas orientadas e itinerários temáticos, exposições, publicações, etc., a base da sua atividade assentava numa pequena mas sólida e permanente equipa de trabalho e numa rede de colaboradores externos. Apesar da sua dinâmica se ter abruptamente quebrado recentemente, é no contexto deste Centro Cultural do Patriarcado de Lisboa que se integrará a proposta que adiante se apresentará para (re) qualificar e valorizar a realidade museal diocesana.


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2.2 Contributo para uma análise às unidades de índole museal existentes

Como já tivemos a oportunidade de referir, a diocese de Lisboa é uma área vasta e bastante diversificada. No que diz respeito à sua realidade museal, a investigação em curso tem revelado a existência de diversas unidades, pouco conhecidas e não inventariadas, sobretudo enquadráveis no conceito de coleção visitável, com défices de qualificação a diversos níveis, mas, também, a existência de interessantes parcerias entre paróquias, municípios e freguesias que têm permitido a construção de interessantes modelos de gestão e intervenção. Identificaram-se, até ao momento, doze unidades de índole museal, geograficamente distribuídas, em termos de vigararias, da seguinte forma (as designações atribuídas aos vários espaços não obedecem a um critério concreto, sendo aquelas que mais usualmente surgem associadas aos espaços nos vários suportes de comunicação): Tesouro da Sé Metropolitana e Patriarcal de Lisboa, Núcleo museológico do Mosteiro de São Vicente de Fora, Núcleo museológico do Convento dos Cardaes, Núcleo museológico do Convento dos Paulistas (Igreja de Santa Catarina), nas vigararias de Lisboa; Tesouro da Igreja Matriz de Oeiras, na vigararia de Oeiras; Núcleo museológico da Igreja Matriz de Bucelas, na vigararia de Loures-Odivelas; Sala-Museu de Arte Sacra da Igreja de São Martinho de Sintra, na vigararia de Sintra; Núcleo museológico da Paróquia de São Mamede da Ventosa, na vigararia de Torres Vedras; Museu Paroquial de Óbidos e Centro Interpretativo de Atouguia da Baleia, na vigararia de Caldas da Rainha-Peniche; Museu da Paróquia da Benedita (ou Sala-Museu da Igreja Paroquial) e Museu Reitor Luís Nesi da Confraria de Nossa Senhora da Nazaré, na vigararia de Alcobaça-Nazaré. No cômputo global, estamos perante micro e pequenas unidades de natureza museal, tuteladas sobretudo pelas paróquias que são, também, as proprietárias de património nelas incorporado. Como já se referiu, a figura do tesouro eclesiástico musealizado, herdeiro dos thesaurus medievais, assume-se como um modelo particularmente apto para a conservação, exposição e valorização das coleções eclesiásticas (sobretudo de objetos litúrgicos e devocionais) nos seus contextos originais, sendo que é este modelo que se verifica na maioria das unidades analisadas, ainda que pautando-se, em grande medida, por uma falta de qualificação ou atualização ao nível dos programas museológico e museográfico e de um deficitário desenvolvimento da maioria das funções museológicas. Verifica-se também, em grande medida, situações em que a visita aos locais só é passível de se efetuar através de marcação prévia. No que se refere a interessantes modelos de gestão e intervenção, talvez paradigmáticos e modelares para outros casos e indispensáveis à sustentabilidade de um projeto museológico capaz, veja-se o exemplo do Centro Interpretativo de Atouguia da Baleia que, através de um modelo de gestão partilhado entre a Câmara Municipal de Peniche, a Junta de Freguesia de Atouguia da Baleia e a Paróquia da Atouguia da Baleia, conseguiu construir um projeto qualificado, apto a comunicar, interdisciplinarmente, a identidade territorial, social, cultural e religiosa da comunidade (que é


envolvida em projetos participativos). Situações em parte idênticas verificam-se nos casos do Museu Paroquial de Óbidos e, em certa medida, no Núcleo museológico da Igreja Matriz de Bucelas. O grande problema destes modelos é que, não raro, a entidade eclesiástica envolvida nestes projetos alheia-se, a breve trecho, da programação e dinamização dos espaços, i.e., da sua exploração pastoral. Um outro elemento comum a praticamente todos os casos analisados é ausência na web ou noutros meios de comunicação e informação em formatos tradicionais. Este fator contribui, em grande medida, para o desconhecimento a que estão votados mas que acaba por ser invariavelmente uma consequência da inexistência de equipas técnicas. A resposta a este desconhecimento e, também, isolamento, só se pode traduzir, em primeiro lugar, através da assunção, de uma forma clara e objetiva, da museologia eclesiástica (e, enfim, das restantes áreas de atuação em torno dos bens culturais da Igreja) como uma área de intervenção pastoral de pleno direito (tal como qualquer outra área pastoral), e, em segundo lugar, através da integração desta área e das várias unidades museais (ou da estrutura que as integre) no plano ou programa pastoral da diocese, algo que tem sido inexistente (vd. Lisboa, Patriarcado, 2012). E aqui entra o projeto de uma Rede de museus e coleções do Patriarcado de Lisboa. 2.3. A proposta de uma Rede de museus e coleções do Patriarcado de Lisboa

Tendo em conta a realidade atrás analisada e resumidamente descrita e tendo também em conta, e sobretudo, as potencialidades pastorais dos museus eclesiásticos e, mais adaptado ao contexto estudado, das coleções visitáveis eclesiásticas, torna-se premente desenvolver um plano integrado e programático para este setor. Contudo, esse plano só terá as necessárias condições para avançar se for integrado, de uma forma concreta e objetiva, no plano ou programa pastoral da diocese de Lisboa, como já foi várias vezes vincado. Só com essa integração formal se poderão, de seguida, reivindicar os recursos humanos, financeiros, logísticos (e, consequentemente, anímicos) necessários para se desenvolver um projeto minimamente qualificado. Este é o primeiro elemento da cadeia operatória. Os recursos humanos são, no nosso entendimento, o segundo elemento. Mesmo num contexto de escassez de recursos financeiros e de outros meios, com uma pequena mas coesa, permanente e flexível equipa de trabalho, mesmo que integrando alguns voluntários em determinadas áreas, consegue-se conceber e coordenar um plano de trabalho, integrando o fundraising nessa estratégia. Tendo em conta a escassez de recursos existentes nas unidades de índole museal analisadas e a necessária e desejável partilha de certos recursos, conhecimentos e experiências para minimizar as fragilidades apresentadas, a construção de uma rede museológica – o terceiro elemento desta cadeia – pode-se afirmar como um eficaz modelo de gestão no âmbito da pouco estruturada e qualificada realidade museal existente no Patriarcado.


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No que diz respeito ao modelo de funcionamento, a Rede de museus e coleções do Patriarcado de Lisboa funcionaria através da existência de uma instância-coordenadora não museológica, o Centro Cultural do Patriarcado, que geriria toda a atividade da rede (a rede, não os elementos) e promoveria a articulação e a partilha de recursos entre todos os seus elementos, não obstante a existência de situações individualizadas que requerem procedimentos distintos, nomeadamente nos casos das unidades com gestão partilhada. Tendo em conta o facto de grande parte das unidades da rede não desenvolverem de forma integral (muitas nem de forma parcial) as tradicionais funções museológicas, a lógica da rede permite construir uma solução eficaz de enquadramento das unidades que, por si só, não se afirmam como “entidade assumidamente museológicas.” (LAMEIRAS-CAMPAGNOLO, 1998: 104). De uma forma sintética, a rede, enquanto instrumento de gestão, permite que haja uma partilha, entre os vários nós (as várias unidades), de “certas funções (t.c. conservação, documentação, formação) e de equipamentos, com vista a uma optimização dos meios humanos, técnicos e financeiros afectados a cada núcleo e à própria instância-coordenadora.” (idem, ibidem). Torna-se imprescindível, contudo, que a instância-coordenadora seja dota de uma equipa, mesmo que pequena, com características interdisciplinares e polivalência. Tendo em conta a dimensão do território diocesano, na qual a rede trabalharia, e de forma a agilizar procedimentos e, também, a melhor conhecer a realidade museal e patrimonial de cada zona (incluindo identificar outros núcleos de natureza museal e patrimonial), a criação da figura de um embaixador da rede em cada vigararia (trabalhando junto do vigário forâneo e, portanto, estando em contacto com o clero da vigararia) poder-se-ia constituir como um interessante elemento de comunicação de toda a cadeia. A aposta inicial do trabalho da rede seria a sensibilização do clero e comunidade eclesial, em todas as vigararias e paróquias, para a existência desta nova estrutura, ao mesmo tempo que se desenvolveria um trabalho próximo e simbiótico junto da cúria diocesana, criando redes entre os vários departamentos e captando novos recursos. No contexto concreto de qualificação dos espaços, o princípio base radica numa forte aposta no desenvolvimento de contactos com as administrações locais (municípios e juntas de freguesia) das áreas onde se encontram as várias unidades para que se encontrem parcerias e modelos de gestão sustentáveis, capazes de garantir o bom funcionamento dos espaços. Num segundo nível, a criação de uma estrutura de divulgação da rede, no seu todo, e das várias unidades, torna-se, também, crucial. Conclusão

O museu eclesiástico, enquanto instituição de tutela eclesiástica, surge, cada vez mais, como um espaço onde se prolonga a ação da Igreja no mundo concreto, inserindo-se no contexto da sua missão: evangelizar. Assume, assim, uma clara função pastoral e é, sobretudo, esta função pastoral que o diferencia das demais tipologias de museus e sobre a qual gravitam as tradicionais funções museológicas. Mas para


que estes espaços se assumam como verdadeiros instrumentos ao serviço de uma catequese ad intra e de uma evangelização ad extra, de promoção cultural e humana, têm de estar integrados, objetivamente, nos planos pastorais diocesanos. Em relação à realidade analisada no Patriarcado de Lisboa, a investigação em curso tem revelado a existência de diversas unidades, pouco conhecidas e não inventariadas, sobretudo enquadráveis no conceito de coleção visitável, com défices de qualificação a diversos níveis, mas, também, a existência de interessantes parcerias entre paróquias, municípios e freguesias que têm permitido a construção de interessantes modelos de gestão e intervenção (mas com as suas lacunas). No contexto da criação de um plano de requalificação para o setor, sobretudo ao nível da estratégia diocesana, da formação, da qualificação e, consequentemente, da programação museológica, a construção de uma Rede de museus e coleções do Patriarcado de Lisboa pode-se afirmar como uma resposta competente a muitos dos problemas e necessidades verificados, nomeadamente ao nível da sensibilização, formação, coordenação, articulação, mediação, partilha de serviços e recursos, com vista a uma qualificação integrada do setor. A discussão em torno do modelo a desenvolver – cujo debate se inicia através deste texto – torna-se crucial. A eficácia de todo um programa de comunicação e recontextualização das coleções e discursos, a par de um relacionamento simbiótico com as comunidades e públicos (adotando, como vimos, metodologias dos museus interdisciplinares, de território), passa por todas estas questões que surgem a montante. Mesmo que funcionando com uma pequena equipa, mas permanente e flexível, as potencialidades pastorais de um projeto museológico reticular e integrado poderão ser a chave necessária para transformar depósitos de coleções em verdadeiros espaços de diálogo e anúncio. Contactar o autor: andre.afonso@live.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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Um palácio para a imigração? Uma apresentação da Cité nationale de l’histoire de l’immigration na França A PALACE FOR IMMIGRATION? A presentation of the Cité nationale de l’histoire de l’immigration in France

Andrea C. J. Delaplace Doutoranda em História da Arte – especialização Museus e Patrimônio na Sorbonne-Paris1.

Fig. 1 - Entrada da cité nationale de l’Histoire de l’immigration

Resumo: Com a globalização e o surgimento da Comunidade Europeia, a questão das migrações se apresenta no centro das preocupações políticas mundiais contemporâneas. E nesse contexto histórico de países de imigração ou de emigração organizam-se os museus de estudos das migrações que pertencem à categoria dos museus de história e de sociedade. Na França é criada a Cité nationale de l’Histoire de l’Immigration: um museu que apresenta ao público uma abordagem histórica e cultural da imigração assim como obras de arte contemporânea que tratam do tema. Palavras-chave: História da Imigração. França. Museus. Museus de História.

Abstract: Globalization and the emergence of the European Union have propelled the topic of immigration to the center of the current political climate. In this historical context, museums about immigration are springing up everywhere, comparable to history and sociological museums. In France, the Cité nationale de l’Histoire de l’Immigration has opened its doors. This is a museum that presents a historical and cultural approach to immigration as well as contemporary works of art dealing with the theme of immigration. Keywords: Immigration History. France. Museums. Historic Museums.


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de l’immigration na França.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 101-113.

Delaplace, Andrea C. J. (2013) “Um palácio para a imigração? Uma apresentação da Cité nationale de l’histoire

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Introdução

Nesta primeira década do século XXI houve uma redefinição no âmbito dos museus franceses que tratam de temas das ciências humanas, sobretudo no que diz respeito à égide antropológica. Com a criação do Museu do Quai Branly (Musée du Quai Branly) (1) ocorreu uma ampla reorganização das coleções de antropologia e do sistema de museus neste setor, já que seu acervo é constituido em grande parte pelas coleções do Museu do Homem, importante instituição museológica na história da antropologia francesa, e de outros museus. A paisagem museográfica francesa transformou-se assim por completo neste quadro de renovação. O Museu Nacional de Artes da África e Oceania (Musée National des Arts d’Afrique et d’Océanie – MNAAO) encerrou suas atividades em 2003, consecutivamente, em 2005, foi a vez do Museu Nacional de Artes e Tradições Populares (Musée National des Arts et Traditions Populaires – MNATP), ambas coleções foram enviadas a outros museus, respectivamente, ao Museu do Quai Branly, aberto em 2006, e ao Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo (Musée des Civilisations de l’europe et de la Méditerranée – MuCEM), com abertura prevista para o ano de 2013 em Marselha (2). O Museu do Homem (Musée de l’Homme – MNH), grande museu de antropologia e pré-história que durante anos foi um “museu-modelo” para outros museus, passa atualmente por uma nova reestruturação prevista para terminar em 2012. No mesmo passo do contexto de remodelação, a Cidade Nacional da História da Imigração (Cité Nationale de l’histoire de l’immigration – CNHI) abre suas portas em outubro de 2007, após um longo período de gestação. A Cité Nationale de l’histoire de l’immigration é um estabelecimento nacional francês sob tutela de três ministérios: o ministério da Educação Nacional, da Cultura e da Pesquisa. Entretanto, o museu não estava completamente pronto, quando de sua abertura, e durante os anos seguintes (2008 e 2009) uma série de complementos foi adicionada ao projeto inicial. O propósito desta comunicação é de fazer uma apresentação do projeto da CNHI, assim como, elucidar a importância no imaginário francês do espaço escolhido para abrigar este museu. Ela foi baseada na minha pesquisa de mestrado e na minha dissertação apresentada na École des Hautes études en sciences sociales em 2010. Assim muitas das questões apresentadas neste artigo foram aprofundadas em minha dissertação de mestrado mas que dada a natureza do artigo não serão discutidas. (3) 1. Histórico do projeto

A ideia de um lugar dedicado à história da imigração foi defendida por muito tempo pelos meios associativos e universitários na França. Já em 1992, uma associação de historiadores e militantes (l’Association pour un musée de l’immigration) tinha como projeto central a criação de um museu sobre a história da imigração na França, corroborando com a efetivação desse empreendimento influentes historiadores franceses como Gérard Noiriel e Patrick Weil.


Após quase uma década, em 2001, o então primeiro ministro, Lionel Jospin, pediu a redação de uma primeira proposta de museu dedicado à imigração. O relatório defendia a criação de um Centro Nacional de História e Culturas da Imigração e apresentava várias propostas, tais como a implantação de um centro nacional e uma rede de parcerias com associações ligadas aos imigrantes, um espaço aberto para as universidades, um museu aberto ao público, etc. Em 2002, o projeto da CNHI foi anunciado dentro do programa do presidente francês Jacques Chirac e, em seguida, foi relançado num quadro mais largo do Comitê Interministerial de Integração de 10 de abril de 2003. Uma das decisões do Comitê foi de lançar uma nova missão, presidida pelo ex-ministro francês Jacques Toubon, de prefiguração de um centro de documentação e de memória da imigração. Ao levar em conta as lições do relatório anterior de 2001 e as competências da Agência para o Desenvolvimento das Relações Interculturais (Gip Adri), esta nova missão possibilitou a criação das ferramentas necessárias à realização de uma instituição com vocação cultural, social e pedagógica novas, destinada a reconhecer e valorizar o lugar das populações imigrantes na construção da França.Em 2004, depois de um ano de trabalho e sustentada por uma reflexão universitária e associativa de anos, a CNHI foi oficialmente criada e o estabelecimento público da Porte Dorée – CNHI foi estabelecido em 1 de janeiro de 2007, depois da publicação no Jornal Oficial de 17 de novembro de 2006. A abertura do museu foi anunciada para a primavera de 2007 (abril-maio), depois para o verão do mesmo ano (julho) e, finalmente, a abertura aconteceu no outono, dia 17 de outubro de 2007. 1.1 Missões

No seu projeto científico e cultural (4), a CNHI revela sua missão e seu caráter de museu. Dentre os quatro grandes objetivos definidos pelos criadores do projeto, os dois primeiros deixam muito clara a ligação da instituição à questão patrimonial: 1- Conceber e gerar o museu nacional de história e cultura da imigração, conjunto cultural original à caráter museológico e científico, encarregado de conservar e de apresentar ao público coleções representativas da história, das artes e das culturas da imigração. 2- Conservar, proteger e restaurar em nome do Estado os bens culturais inscritos no inventário do Museu Nacional da História e das Culturas da Imigração da qual ele guarda e contribui ao enriquecimento das coleções nacionais. Segundo o dossiê de imprensa de 10 de abril de 2007: L’établissement public de la porte Dorée – Cité nationale de l’histoire de l’immigration est chargé de rassembler, sauvegarder, mettre en valeur et rendre accessibles les éléments relatifs à l’histoire de l’immigration en France, notamment depuis le XIXe siècle


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et contribuer ainsi à la reconnaissance des parcours d’intégration des populations immigrées dans la société française et faire évoluer les regards et les mentalités sur l’immigration en France. (DOSSIÊ, 2007).

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Delaplace, Andrea C. J. (2013) “Um palácio para a imigração? Uma apresentação da Cité nationale de l’histoire

Assim a CNHI se define, antes de tudo, como um Museu Nacional da História e das Culturas da Imigração encarregado de conservar, proteger e enriquecer as coleções nacionais e de divulgá-las para o público. A escolha do léxico utilizado aqui é essencial para compreender a vontade de deixar bem clara a natureza patrimonial da CNHI. Segundo Marie-Hélène Joly: La CNHI aurait pu ne pas être un musée: baptisée « Centre de ressources et de mémoire » dans le rapport de la Mission de préfiguration de 2004, son nom définitif a fait l’objet de plusieurs hypothèses, chacune révélant des intentions et un positionnement symbolique différents. Cependant, sa mission de musée a été clairement inscrite dans tous les textes de création de l’institution certes en partie pour des raisons conjoncturelles de recherche de financement, mais il n’est pas indifférent que les associations à la base du projet aient souhaité cette inscription, révélant par là un attachement à la nature patrimoniale et pérenne de l’institution « musée ». L’existence d’un patrimoine leste en effet un établissement: le patrimoine témoigne visiblement de l’existence d’un phénomène et par ailleurs on ne peut faire disparaitre d’un trait de plume un monument, une collection. (JOLY, 2007 : 5)

A CNHI engloba assim um museu, uma midiateca e uma rede solidária entre os diferentes grupos associativos. Ela se difere de outros projetos museais justamente pela sua diversidade e multidisciplinaridade. A vontade de se tornar um centro de convergências, de documentação e de iniciativas ligadas às temáticas da imigração está muito presente nos textos de fundação do museu. Assim, o terceiro ponto das missões do museu da CNHI é de recolher e divulgar os documentos e informações sobre a imigração. 3- Recolher em um centro de documentação os documentos e informações de toda natureza, portando sobre a história e as culturas da imigração assim como sobre a integração das pessoas que proveem desta última, incluindo suas dimensões econômicas, demográficas e sociais, e difundi-las, de forma digitalizada, ao público no geral e aos profissionais da área A mídiateca que abriu suas portas em maio de 2009 é então definida claramente como um espaço de difusão de informações e de documentação ligada ao tema da imigração. Ela se revela como um instrumento muito prático para os pesquisadores e as comunidades ligadas à imigração. Um dos pontos fortes da CNHI é a vontade de


desenvolver e de manter uma forte interação com a rede associativa, objetivo que confingura o quarto ponto das missões. 4- Desenvolver e animar no conjunto do território uma rede de parceiros, constituída por associações, coletividades territoriais, instituições científicas e culturais, empresas e organizações sindicais com objetivos similares. Esta rede é constituída de representantes da sociedade civil, coletividades locais, associações culturais ou sociais, universidades, atores econômicos e sociais, profissionais da educação nacional e artistas. Ela é um elemento constitutivo essencial do projeto da CNHI pois permite uma apropriação coletiva deste último e marca assim a especificidade da CNHI como um lugar “federador” de iniciativas, como um espaço de co-produção e de difusão nas diferentes regiões da França, na Europa e, não obstante, no mundo, viabilizando ações a favor das diferentes comunidades imigrantes. O caráter fundador da rede associativa é, de fato, a principal inovação e a principal riqueza da CNHI e o que a distingue dos museus tradicionais. “ O caráter constitutivo da rede: nascida de uma demanda de associações, a CNHI se apoia sobre o trabalho anterior feito por elas há muito anos na área da história, da memória e das culturas da imigração; os representantes da rede participaram muito ativamente do debate inicial de 2003-2004 e eles mantêm um papel relevante nos órgãos decisórios e consultivos da Cité; enfim uma das missões afirmadas da Cité é de nutrir a rede e ao mesmo tempo de se nutrir desta ultima em constante interação.” No edifício da CNHI, especificamente na sala de festas de 1931, o “fórum”, encontra-se o quiosque da rede. Este tem por objetivo instalar no museu um espaço de comunicação e de difusão para os diferentes parceiros da rede. O quiosque é também uma mistura de arte contemporânea (instalação) e de funcionalidade. “Uma animação multimídia realizada pelo grafista Pete Jeffs, simboliza essa rede enquanto que uma instalação sonora realizada pela associação Agrafmobile/Malte Martin coloca em cena nesse quiosque ‘uma palavra’ sobre a imigração coletada dentre os diferentes parceiros da Cité. Por outro lado, e por alguns meses, uma instalação móvel e provisória oferece através dos espaços da Cité um trabalho tipográfico apresentando diversas séries de painéis formando tríticos e detidos expondo citações de imigrantes coletadas dentre os diferentes parceiros da rede da Cité.” Com a rede e a mídiateca, a Cité Nationale de l’histoire de l’immigration tem como intuito deixar de ser somente um museu para se tornar um espaço borbulhante de discussões e espetáculos vivos no qual as diferentes “culturas” da imigração podem se expressar. Um verdadeiro fórum, uma verdadeira Cité, pólis, no sentido grego do termo. Este intento da CNHI está presente na própria escolha do nome: Cité e não Musée national de l’histore de l’immigration en France. Nota-se que a originalidade do projeto da CNHI consiste em unir em um mesmo espaço, este já estando carregado de história, um museu, um centro de documentação e informação e uma rede associativa (a coletividade do projeto reside


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neste ultimo). Este projeto se desenvolve então em três dimensões principais: a dimensão cultural, a pedagógica e a cidadã. Nisto, o caráter inovador da CNHI e o lugar singular que ela detém no centro dos museus não poderia ser colocado em dúvida. Ainda que o tema da imigração, abordado pela CNHI, seja complexo, sua ambição e âmbito são novos. Deste modo, a força e o impacto do projeto residem na sua originalidade, tendo em vista que antes da criação da CNHI não existia um museu destinado à história da imigração na França. À exceção de algumas exposições temporárias ou experiências em alguns museus, o tema esteve completamente ausente do panorama dos museus franceses. Segundo Marie-Hélène Jolie em seu artigo “Une collection en devenir”: À l’exception de quelques expositions temporaires à Grenoble ou à Fresnes, les musées de France sont généralement restés silencieux sur le thème de l’immigration. La création du musée de la CNHI marque donc une innovation, d’autant plus que son originalité et son importance relèvent aussi de son poids symbolique et politique. Depuis sa genèse et sa mise en place, elle est au centre de nombreux réseaux et enjeux et devra, demain, aider à relever le défi de mieux penser l’immigration. (5)

Entretanto, estas são apenas as premissas presentes no projeto, será necessário avaliar com o tempo se essas missões serão cumpridas. 1.2 História da imigração e caráter político da instituição

O caráter social e político da CNHI está muito presente em todos os documentos e publicações oficiais do museu. O desejo de “inscrever” a história da imigração na história da França é um dos fortes pontos de vista apresentados pelos detentores do projeto do museu e, portanto, o projeto da própria CNHI se afirma como um ato político em direção à “integração” da história e das culturas da imigração na história nacional. Segundo Jacques Toubon, presidente do Comité de orientação da CNHI, o projeto é de “escrever a história da imigração não apenas como um componente da história social, mas como parte integrante da História da França.” (DOSSIÊ..., out. 2007). (6) Segundo o dossiê de imprensa da CNHI da primavera de 2007: A Cité quer ser um elemento fundamental de coesão social e republicana da França. Para além de sua função patrimonial, ela também tem um papel importante como produtora de cultura e de significados. Suas principais missões são então missões de longo prazo cujas questões fundamentais se desenrolarão durante vários anos. (DOSSIÊ..., out. 2007). (6)

Percebe-se, portanto, muito claramente, o caráter nacional e republicano da CNHI. A integração da história da imigração dentro da história nacional é o objetivo


último desta nova instituição. O projeto reafirma os conceitos de integração, coesão social e república. Sem demasiada concisão, pode-se explanar a ambição deste projeto em mostrar como os “outros” (imigrantes estrangeiros) integram gradualmente o “nós” nacional (identidade nacional). [...] O projeto político que funda a CNHI é o de integração republicana, apoiada sobre uma visão histórica de longo prazo (de dois séculos de história nacional). Pode-se perguntar se este projeto não está um pouco atrasado, já que o ideal de integração pode parecer enfraquecido hoje, ou pelo menos questionado, mas ele tem o mérito de cumprir bem o desafio. (PROJETO, nov. 2005). (7)

Pode-se dizer que este seria um típico projeto “à la française”, porque esse projeto político da CNHI tem como objetivo de expressar uma visão nacional da imigração e não uma visão comunitária como fazem muitos museus anglo-saxões. Como Sally Price discute muito bem em sua obra “Paris Primitive – Jacques Chirac’s Museum on the Quai Branly”; na França, a criação de novos museus está intimamente ligada ao Estado nacional enquanto que nos Estados Unidos, por exemplo, muitas instituições são privadas e criadas a partir da iniciativa de colecionadores ou comunidades locais. Paralelamente, é a primeira vez em muitas décadas que o governo se engaja em um projeto de museu nacional com um caráter social e político sólidos como o da CNHI. No entanto, durante a inauguração do museu, Nicolas Sarkosy não esteve presente, o que gerou polêmica e paradoxo, pois, na França, a presença do presidente nacional é protocolar na cerimônia inaugural de um museu nacional. Esta ausência durante a abertura do museu demonstra a extrema sensibilidade de qualquer discussão relacionada à imigração na França e isso é evidente até mesmo na forma como o museu aborda os temas presentes em sua exposição permanente. Entretanto, esta atitude do presidente Nicolas Sarkosy também está ligada ao fato de que o projeto de criação da CNHI foi aprovado sob o governo de seu antecessor Jacques Chirac e que ao assumir a presidência da República ele herdou um projeto que não condiz com as ações de seu governo. Assim, pode-se dizer que do ponto de vista político, a criação da CNHI que reflete uma atitude muito significativa do governo francês, que permite e financia a criação de um novo equipamento cultural dedicado aos imigrantes contrasta com a política austera em relação à imigração (xenofobia, expulsão de estrangeiros do território nacional). Outro ponto relevante a ser suscitado, ao dissertar sobre a funcionalidade da CNHI, é a falta de contextualização do edifício que tende a culminar na lacuna entre os espaços expositivos e as exposições, problemática latente na constituição do locus museológico. A seguir vamos ver como a escolha de um edifício com carga símbólica e histórica importantes trazem desafios para a CNHI.


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2. Uma sede com grande carga simbólica/histórica

Vários locais foram considerados para a Cité Nationale de l’histoire de l’immigration dentro destes estavam a Bolsa Comercial, uma parte do Palais de Chaillot, o hospital Laennec, o antigo Centro Americano em Bercy ou o telhado da “Grande Arche”, em la Défense. Finalmente, a escolha recaiu sobre o Palais de la Porte Dorée (Palácio da Porte Dorée) devido ao seu status de monumento histórico, a sua influência artística e ao seu estilo de arquitetura típico dos anos 30, três elementos que fizeram dele um lugar de prestígio. Além disso, o papel deste palácio na história da França durante a Exposição Colonial Internacional de 1931, se revela como um convite para revisitar a história dos laços entre a França e o mundo, delineando o modo como o país se relaciona com outras culturas. Esta escolha foi polêmica porque o Palácio da Porte Dorée abrigou o museu das ex-colônias, lançado na Exposição Colonial de 1931. Assim, o “significado histórico” do lugar fomenta o medo que o tema da imigração na França seja confundido com o da colonização de uma maneira estigmada para o novo museu. No entanto, o discurso dos líderes do projeto da CNHI defendia a necessidade de transformar o significado do edifício: de um lugar de memória ligado a uma forma de exaltação da missão civilizadora da França nas colônias, ele deve se tornar uma instituição cultural que irá ilustrar a contribuição decisiva dos imigrantes na construção e identidade francesas. O Palácio não havia sido renovado desde a sua construção e ao passo que não era um edífio de raiz para abrigar a CNHI, foram necessários serviços de reparação adequados com as normas patrimoniais, tornando o local eleito um sítio acessível e seguro. A firma de arquitetura de construção (Patrick Bouchain e Loïc Julienne), vencedora do concurso organizado pela Direction des Musées de France em 2005, foi responsável pelo planejamento do espaço do Palácio da Porte Dorée. Seu projeto, de um ponto de vista funcional, teve o intuito de abrir o edifício, de forma que a circulação do público e a funcionalidade do espaço fossem favorecidas. A criação de espaços mais iluminados foi também um objetivo desta “abertura” do palácio. Contudo, este projeto de desenvolvimento excedeu a meta funcional, não restringindo-se aos ajustes essenciais para abrigo das exposições da CNHI, o objetivo deste empreendimento ampliou-se singularmente a uma imediata mensagem destinada ao público de que o edifício abrigava um novo projeto. Depois do início da reforma, os arquitetos permitiram que o prédio não fosse fechado ao público: o aquário tropical continuou aberto e visitas foram organizadas em todos os momentos. A ideia era de fazer com que todas as fases do projeto fossem acessíveis ao público antes mesmo da abertura oficial do museu. Fotos do local foram o tema de uma exposição em setembro de 2007, “No trabalho, as imagens da construção”. Esta exposição temporária cruzou o olhar de fotógrafos com o de Chanchabi Brahim Michèle Schembri e seguiu os passos do desenvolvimento proposto assim como as pessoas que trabalhavam no local.


A primeira parte do trabalho incluiu a remodelação do “salão da cidade” de 1931, até então muito limitada, que passou a ter diferentes entradas e se tornou assim um “fórum”, uma verdadeira ágora da Cité (pólis), concebido para receber reuniões públicas e eventos. Os espaços de exposições, no terceiro andar, que abrigam a exposição permanente e as exposições temporárias foram também completamente redesenhados. Essas vastas galerias, pontuadas por clarabóias desenhadas por Laprade foram reformadas de modo a permitir uma maior expansão do prédio assim como a renovação das escadas de emergência e terraços, projetados como “treehouses” que projetam o prédio em meio à vegetação do bosque de Vincennes que se estende ao redor do edifício. Em ambos os pátios antigos, todos os “aspectos técnicos”, tais como elevadores, escadas de incêndio, sanitários e empresas, foram ocultados. Finalmente, o Salão de Honra do Palácio recuperou seu brilho original e hoje acomoda a bilheteria, uma livraria e um café no pátio ao ar livre. Assim, quando abriu em outubro de 2007, o Palácio da Porte Dorée apresentou ao público a primeira fase deste trabalho de reestruturação do prédio concluído. A impressão do visitante, no entanto, durante os primeiros meses após a abertura, era de vazio. Havia muito espaço e poucas exposições. A área não foi totalmente utilizada. Sentia-se que o museu estava incompleto e ainda em construção. Em 2009 foram criados um auditório com 200 lugares no átrio, salas de seminários para pesquisadores, associações, escolas e também novas salas de exposições temporárias. A abertura da biblioteca cria uma galeria Mezanino, no oeste, e uma rampa, “Le nid”, que liga a cidade ao monumento, dado ao artista Tadashi Kawamata, foram as contribuições em 2009. Posteriormente, o ordenamento do território da cidade vai acabar com a restauração das áreas circundantes, fachadas, exposições históricas e murais.

Figs. 2 e 3 - À esquerda: Palais de la porte Dorée com suas Colunas imponentes e seu baixo relevo; À direita: Palais de la Porte Dorée

2.1 A história do Palais de la Porte Dorée

O Palais de la Porte Dorée (Palácio da Porte Dorée) foi criado em 1931 por Albert Laprade e inaugurado na Exposição Colonial. Ele foi o único edifício dedicado a sobreviver à exposição Colonial porque foi concebido com o objetivo de tornar permanente o


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discurso colonialista. A proposta era então de apresentar uma visão resumida do Império Francês a partir de um empreendimento histórico, artístico e econômico, para incentivar os visitantes a investir em produtos relacionados com as colônias ou para propaganda no exterior. O prédio e as pinturas murais que decoram os espaços interiores, visíveis ainda hoje, mostram uma ideologia manchada de contradições que foi incorporada nas pedras, não sem um debate considerável. O palácio foi projetado para cristalizar os diversos estilos de dominação do Império e expressá-lo em suas colônias. Sua planta quadrada, perfeitamente simétrica, incorpora o estilo arquitetônico de um palácio marroquino, com um grande salão central, rodeado por galerias. No entanto, a fachada lembra a monumentalidade dos templos antigos, com os pilares que evocam as colunas iônicas dos templos gregos. O domínio da França sobre as colônias está representado nos baixos-relevos feitos por Laprade assim como no interior do edifício, paredes e chão, com vários afrescos e mosaicos decorativos que serão restaurados e apresentados ao público ao fim dos trabalhos de renovação do palácio. Durante a decáda de 30 o palácio recebeu diferentes designações, passou a ser chamado de “Museu Permanente Colonial” (Colonial, durante a exposição em 1931), posteriormente, em 1932, tornou-se “Museu das Colônias e fora da França”; foi em 1935 que se firmou como o “Museu da França Além-mar” (Musée de la France d’Outre-mer). Com a descolonização, o museu mudou a sua vocação e, sob a liderança de André Malraux, ministro de Estado para Assuntos Culturais, em 1959, tornou-se o “Museu das Artes da África e Oceania” (Musée des Arts d’Afrique et d’Océanie — MAAO) em 1960. Esse museu foi fechado ao público em 2003 e suas coleções foram transferidas para o Musée du Quai Branly. O CNHI fecha simbolicamente o antigo Palácio das Colônias, em 14 de julho de 2006, com uma representação do Discurso sobre o colonialismo por Aimé Césaire, famoso poeta e anti-colonialista martiniques morto em 2008, antes de começarem as reformas, que possibilitaram a abertura de suas portas ao público. A ideia deste evento foi de reafirmar o “novo” caráter do espaço: o “Palácio das Colônias” se transformou em uma “Cité”, dedicada à história e cultura da imigração. De acordo com os líderes do projeto da CNHI, o edifício torna-se um verdadeiro fórum de encontros e debates sobre a imigração. No entanto, será que este objetivo foi alcançado? Será que a Cité nationale de l’histoire de l’immigration conseguiu transformar o “imaginário” relacionado ao Palais de la Porte Dorée? Na verdade, ao percorrer o museu, o visitante experimenta uma “sensação de vazio” e não consegue identificar a razão para tal sentimento. O Fórum Central, antigo salão de baile, é um exemplo claro onde a “sensação de vazio” é muito acentuada. O primeiro andar não tem nenhuma exposição no momento, apenas um modelo do Palais de la Porte Dorée, embora, durante a abertura do museu, algumas exposições temporárias foram realizadas neste espaço.


Figs. 4 e 5 - À esquerda: Antigo salon des fêtes – Fórum central da CNHI imigração; À direita: Cabine onde os visitantes podem deixar depoimentos sobre a imigração

Ao subir para o segundo andar do museu, o visitante encontra a exposição permanente “Referências”, bem como um espaço para exposições temporárias e a galeria de doações de objetos. Contudo, o visitante tem a sensação de que o museu realmente não preenche o espaço físico do prédio. Ou seja, há uma enorme lacuna entre o que é exposto e o edifício. De um lado encontramos o espaço de exposição permanente no seu espaço remodelado, que apresenta uma museografia muito contemporânea e outras áreas restauradas durante a construção do museu, como, por exemplo, os afrescos da sala de festas ou ainda o escritório de Lyautey, importante Marechal francês ligado à história da colonizaçao na França, que não oferecem quase nenhuma informação, exceto algumas legendas para as salas de entrada. Sendo assim é evidente a necessidade de colocar em contexto os espaços históricos do palácio. Além disso, a CNHI ocupa apenas uma parte do Palácio da Porte Dorée, o subsolo é ocupado pelo aquário e as demais salas, que não pertencem ao espaço expositivo, estão vazias. A CNHI até possui uma seção em seu website onde ela oferece o espaço do Palácio para eventos privados. Seria interessante, então, necessário colocar o prédio no seu contexto, para que o público possa compreender melhor a decoração e o espaço histórico em que o museu está instalado. Neste caso, seria também interessante criar uma melhor integração entre o espaço histórico e o espaço do museu. Presumivelmente, a Cité nationale de l’histoire de l’immigration salienta um receio de mesclar história da imigração e história colonial perceptível com o fato de não contextualizar o prédio em seu período histórico. Este episódio na existência do CNHI desdobra-se, paroxalmente, dada a incoerência, em um problema que colabora para a manutenção da relação entre o edifício que ocupa e a história colonial. No entanto, a possibilidade de discussão da história colonial deixada pela abertura da relação entre edífico e história colonial faz-se muito relevante, mesmo que isso não seja o objetivo central, funcional, do museu, é inegável e imprescindível o denso passado histórico do prédio que abriga a Cité nationale de l’histoire de l’immigration, pretérito


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impregnado, literalmente, nas paredes e suprimido na contextualização do museu presente. Talvez a partir de uma melhor contextualização do prédio, a sensação de defasagem entre a exposição e o edifício seja acalantada pelo preenchimento histórico das lacunas e a atual “sensação de vazio” (8) seja substituída por uma sensação de harmonia. Esta falta de historicidade na CNHI está presente também em outros museus históricos e etnográficos como, por exemplo, o Museu Quay Branly citado anteriormente. Aliás uma das maiores críticas, quando da abertura deste último em 2006, foi a falta de contextualização das coleções apresentadas. Esta parece ser uma questão geral e relevante das novas instituições museológicas francesas e seria interessante poder aprofundá-la num artigo futuro. No caso da CNHI, acredito que a falta de historicidade na apresentação do prédio seja um dos principais problemas a serem resolvidos mas não o único (9). Seria imprescindível também que houvesse na exposição permanente “Referências”, uma análise da questão da imigração no período colonial e que o museu, ao invés de temer uma confusão entre os dois temas (e por isso não aborda o tema da Colonização), utilize-se justamente da particularidade e historicidade do prédio onde se instalou para apresentar ao público uma análise mais profunda do assunto.

Figs. - 6, 7 e 8: Exposição permanente Referências

Contactar o autor: andreajovanovitch@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Notas & Referências · (1) Cf.: <http://www.quaibranly.fr/fr/l-etablissement-public/le-film-promotionnel.html ou ainda o artigo “Reflexões sobre a arte primitiva: o Museu Branly”, de Ilana Goldstein: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832008000100012.> · (2) Os museus nacionais franceses se concentram em Paris e a abertura do MuCEM em Marselha cria um novo ponto importante na França no mapa dos museus franceses.


· (3) Também gostaria de explicitar que optei em deixar em francês as citações que julgava mais importantes. · (4) Projeto científico e cultural da Cité nationale de l’histoire de l’immigration, redigido em novembro 2005. · (5) Revue Hommes & Migrations (França). Une collection en devenir - La place de la Cité nationale dans le paysage muséal français. Hommes & Migrations, France, n. 1267, p.68, mai-juin , 2007. Article de dossier. Disponível em: <http://www.hommes-et-migrations.fr/index.php?id=4801 >. Acesso em: 9 maio 2012 · (6) Dossiê de imprensa da Cité nationale de l’histoire de l’immigration, redigido em abril 2007. · (7) Projeto científico e cultural da Cité nationale de l’histoire de l’immigration, redigido em novembro 2005. · (8) Seria interessante salientar aqui que esta sensação de vazio também é causada por um número relativamente baixo de visitantes. Este assunto foi discutido por um artigo de Michel Guerrin publicado no jornal francês Le Monde em 20 de março de 2010 «Le musée fantôme. Lancée en grande pompe en 2007, la Cité nationale de l’histoire de l’immigration, à Paris, est désespérément déserte. Pourquoi?». · (9) O museu oferece hoje um pequeno roteiro gratuito que conta um pouco a história do Edifício e das salas históricas ao visitante que der sorte de ver este folheto na entrada. Ele não é entregue ao visitante quando ele compra seu ingresso e isso mostra que as tentativas de adpatação do museu às criticas ainda são superficiais. Site Internet

· www.histoire-immigration.fr (Cité nationale de l’histoire de l’immigration).


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As dificuldades da Exposição de Cerâmica Funerária Chinesa em Portugal

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The difficulties of Exposing Chinese Funerary Ceramics in Portugal

Andreia Filipa Braz

Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 114-122.

Andreia, Braz (2013) “As dificuldades da Exposição de Cerâmica Funerária Chinesa em Portugal.”

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: Em contexto museológico, a cerâmica funerária chinesa possui uma mensagem que ultrapassa a da tecnologia e beleza artística, representando uma cultura cuja evolução ininterrupta nos permite contemplar e refletir sobre a China. Ao idealizar uma exposição neste contexto, é fundamental compreender a complexidade de se comparar os conceitos europeus a uma civilização anterior. Palavras-chave: Cerâmica funerária, China, Autenticidade

Abstratc: In museological context, Chinese funerary ceramics has a message that goes beyond its technology and artistic beauty, it represents an uninterrupted culture whose evolution allows us to contemplate and reflect on China. To devise an exhibition in this context, it is essential to understand the complexity of comparing the European concepts to a prior civilization. Keywords: Funerary Ceramic; China; Authenticity Introdução

O fascínio desenvolvido pelas relações Europa-Ásia enraizou na população europeia o gosto pelo exotismo que culminou no colecionismo sistemático de artefactos orientais, com datações cada vez mais antigas. Este interesse, influenciado pela opinião pública e os novos media, tem como resultado o trabalho até à exaustão da ideia de “China,” incutindo na população em geral inevitáveis pressupostos erróneos e fantasiosos desta civilização milenar. Consequentemente, ao tentarmos idealizar uma exposição acerca do tema, deparamo-nos à priori, com vários elementos impeditivos à realização de um discurso emissor — mensagem — recetor, influenciados por esta corrente de informação deformada. Tratando-se de uma civilização cujas tradições religiosas, rituais, sociais e políticas pouco se assemelham às europeias, o fosso criado pela descontextualização dos objetos do seu meio natural, é um elemento impeditivo à sua compreensão. Além disso, os significados são bastante diferentes para os mesmos símbolos místicos e religiosos, podendo os chineses usufruir de mais de um significado. Ao debruçarmo-nos mais especificamente sobre os costumes funerários e rituais chineses, vamos compreender que cada objeto pode possuir uma ou mais funções, muitas vezes determinadas pelo local onde foi encontrado.


Considerando que o museu é um templo de contemplação e ensino, no presente caso, a sua principal missão consiste na realização de uma ponte facilmente transponível entre uma cultura e a outra. Todavia, a realização de um discurso claro e conciso acerca de um extremo tão oposto, sobre o qual já possuímos uma ideia pré-fabricada, obriga à realização de um discurso complexo e pouco claro para o público comum. Por essa razão, encontramos duas dificuldades: como transmitir ao público a função desde tipo de objeto claramente e como realizar esse discurso sem deturpar o seu significado, ou seja, a sua autenticidade. Logicamente, ao se idealizar uma exposição com um objeto constituído por um material comum a ambos os povos, como a cerâmica, mas cujas aplicações e significados podem diferir, será sempre inevitavelmente necessária a aplicação de três pressupostos. Primeiro: o visitante tem ideias preconcebidas acerca do tema; segundo, o visitante pode não conhecer as religiões orientais e, por último, pode não estar apto à compreensão de determinadas terminologias. O valor cultural atribuído a estas peças pressupõe uma aproximação ao objeto de tal forma profunda, que cada vez mais os consideramos como algo digno de ser preservado, para poder ser usufruído por gerações futuras. 1. A questão da autenticidade no contexto expositivo

O desenvolvimento contínuo da Europa e de uma nova mentalidade entre a comunidade europeia, assim como o progresso cada vez mais acelerado das novas tecnologias, certamente obriga os museus a criar técnicas de divulgação e exposição cada vez mais elaboradas, na esperança de aliciar uma sociedade alienada e indiferente. Porém as dificuldades económicas, assim como a incapacidade de admitir as falhas de metodologias museográficas e museológicas desatualizadas, revela-se um elemento impeditivo à compreensão e apreciação de vários acervos. Apesar de estipulado que “a valorização da diversidade cultural e patrimonial no nosso mundo devem ser ativamente promovidas” (Nara, 1994), diversas são as instituições que não possuem meios para ativamente promoverem o seu acervo, ou simplesmente não ponderam a necessidade de quebrar a norma ou a tradição europeia (cuja influência desenhou os museus do mundo), para melhor transmitir a sua mensagem. A questão da autenticidade, largamente discutida nos últimos vinte anos, e da conservação preventiva, aplicada, ou como consequência do reconhecimento de um determinado património como ‘autêntico’, enquadram-se neste panorama enquanto principal elemento de preocupação de um museólogo ou conservador num museu. Neste contexto, a questão de autenticidade direcionada à conservação de bens culturais, apoia-se nas alterações realizadas ao documento de 1980 “World Heritage Operational Guidelines,” a quando da Conferência de Nara em Novembro de 1994. Esta última conferência foi um grande marco na conservação e definição ‘daquilo que é autêntico’ alargando o conceito prévio para um contexto mais alargado à escala mundial:


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Dependendo da natureza do património cultural, do seu contexto cultural, e da sua evolução através do tempo, os julgamentos de autenticidade podem estar ligados ao valor de uma grande variedade de fontes de informação. Entre os aspectos destas fontes, podem estar incluídos a forma e o desenho, os materiais e a substância, o uso e a função, as tradições e as técnicas, a localização e o enquadramento, o espírito e o sentimento, bem como

Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 114-122.

Andreia, Braz (2013) “As dificuldades da Exposição de Cerâmica Funerária Chinesa em Portugal.”

outros factores internos e externos [...] (NARA, 1994: 3)

Antes de 1994, a autenticidade era definida segundo quatro parâmetros: o material, o design, a configuração e acabamento. Após a conferência, passou também a ser valorizado “o sentimento e o espírito”, conceitos intangíveis. Apesar destas considerações, denota-se uma carência na reflexão sobre o tema, na área da museologia e da exposição de peças em ambientes descontextualizados culturalmente. Peças enquadradas nesta categoria necessitam de uma explicação, atenção rigorosa e diferenciada da norma, visto não possuírem muita relação com a mensagem comum a um determinado meio. Vejamos o exemplo das cerâmicas funerárias chinesas que, embora possam ser apreciadas pela sua estética, tecnologia e enquanto parte da História da China, são também símbolos de uma religião e da sua evolução, assim como de uma cultura ou clã, que trilhou e delineou a civilização chinesa. Um objeto representativo da dinastia Han (China) exposto em Portugal, não poderá representar corretamente e claramente a sua mensagem, se o colocarmos isolado a um canto, auxiliado somente por um texto reduzido e pelo guia do Museu. A sua localização espacial e no tempo, assim como todas as influências culturais, não poderão ser executadas na sua plenitude se pensarmos unicamente em termos estéticos e de conservação. A cultura, à qual esta peça pertence, é de tal forma diferente da portuguesa que o fosso criado pela descontextualização impede a formação de uma ponte entre conhecimentos, impossibilitando a perceção na sua totalidade. A agravar este facto, deve ser considerado o facto de o observador poder possuir à priori, informações fragmentadas ou deturpadas, difundidas pelas redes de informação social, como referenciado anteriormente. Visto tratarem-se de objetos representativos de uma civilização de ideologias, valores e costumes diferenciados da nossa, naturalmente o mesmo discurso minimalista, apoiado pela educação escolar introdutória ao tema, não será aplicado com semelhante sucesso. Esta problemática metodológica interfere com a capacidade do museu de apresentar as suas peças com autenticidade, visto que o diálogo emissor – mensagem – recetor, não está a ser realizado corretamente, transmitindo-se apenas uma parte da totalidade da informação. Se considerarmos as palavras de Jukka Jokilehto: […] etymologically the concept of ‘being authentic’ refers to being truthful, both in terms of standing alone as an autonomous human creation as well as being a true evidence of something. (Jokilehto, 2006: 8)


Podemos concluir que a questão da autenticidade está intrinsecamente ligada à noção de verdade e à sua representação enquanto detentora desse conhecimento. Logo, o museu, enquanto instituição cuja principal missão passa por proteger e promover a sua coleção, é o instrumento principal na compreensão e valorização do património por parte do público em geral, pois trata-se do detentor daquilo que ‘é autêntico.’ Um património não pode ser valorizado se a sua mensagem não for transmitida corretamente, o que significa que aquilo que o classifica enquanto autentico não está a ser comunicado, impedindo o reconhecimento do mesmo. É através dessa autenticação que um objeto pode ser valorizado, variando este valor consoante as influências, educação e experiência de vida do observador. Coloca-se então uma importante questão! Será que devemos impor, a uma cultura diferente da nossa, os nossos princípios e crenças? A maioria dos documentos redigidos acerca do tema da autenticidade e da conservação de objetos com valor histórico, cultural, religioso ou artístico, têm origens na Europa, sendo que muitos dos valores ai expostos são alheios, mesmo aos países que os assinaram (Sullivan, 1993: 15). A china tem atualmente, duas teorias regularmente aplicadas e reinterpretadas sobre o tema no que diz respeito há conservação do património: Chinese scholars have translated ‘authenticity’ mainly into two versions, which today both exist in academic context and government policies. In recent publications, Xu Songlin, Zhang Jie and Zhang Chenyu use “ yuanzhenxing 原真性” as the translation of “authenticity,” in which “ yuan 原” means “original,” and “zhen 真” refers to “real” and “trustworthy.” This version highlights the significance of a building´s “original state (原 狀 yuanzhuang).” Other scholars like Chang Qinand Wang Juinhui prefer the translation of “zhenshixing 真實性,” in which the word “zhenshi真實” solely stresses on “real,” “true,” and “verifiable” as the core of authenticity (Yujie Zhu, 2013)

No entanto a definição mais comum trata-se de “reparar o velho como estava” (xiujiu rujiu) de Liang Sicheng’s, que teve, ao longo do século XX, várias interpretações por parte da comunidade chinesa. Já Serge e Joan Domicelj, em A Sense of Place (1990) descrevem o conceito de autenticidade como, “o moderno não nasce do vácuo; cresce através das normas da tradição; não a substitui; transforma-a...” (apud. Sullivan, 1991: 15). Esta dualidade permite conjeturas acerca da validade dos objetos por parte da comunidade chinesa, cujas crenças religiosas e filosóficas privilegiam o símbolo e o seu significado em detrimento do objeto em específico. Um conceito que diverge da norma europeia. Para a nossa cultura um objeto é validado pela sua originalidade, idade, estado de conservação e técnica, enquanto na China o conceito de originalidade e integridade (histórica ou física) pode diferir. A exposição e realização de um discurso sobre esta cultura, ou a sua representação, deverá ter em consideração esta vertente do pensamento chinês, pois trata-se de uma característica determinante na forma como uma peça deve ser exposta e o seu


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discurso orientado. Assim, devem ser reconhecidas três premissas: não devemos impor valores alheios a terceiros, o discurso deve ser idealizado de forma a melhor transmitir a mensagem (sem ser necessário interferir na sua integridade física ou significado para o povo chinês) e, por último, devemos admitir o facto de a informação a ser transmitida ser potencialmente confusa e por isso necessitar de uma explicação clara. Considere-se o caso do Museu do Centro Cientifico e Cultural de Macau. Esta instituição, localizada na rua da Junqueira em Belém, possui um vasto e bastante completo acervo de cerâmicas funerárias chinesas, adquiridas ao Dr. António Sapage. Estas peças estão expostas num ambiente obscurecido, ligeiramente abafado, num expositor tipo ‘escada,’ pintado de preto, com algumas tabelas e pequenos textos como única fonte de informação. Qualquer esclarecimento extra necessitara de ser adquirido através de fontes terceiras. Apesar de corretamente acondicionadas, conservadas e identificadas, acabam por não transmitir a sua mensagem, transferindo para o observador apenas um décimo do seu potencial. Sem um esclarecimento prévio sobre o contexto onde estão inseridas, o seu significado e a sua religião, este discurso, sem a colaboração de um guia, é impraticável. 2. A Definição de “Ritual”

A religião chinesa possuí três grandes vertentes: A Budista, “importada” para a China na dinastia Han do Este, que só se difundiu nas dinastias de Wei e Tang; a Taoista e a Confucionista, ambas teorizadas no final da dinastia Han (206 – 221 a.C.). O Budismo é uma religião não teísta e filosófica atribuída a Siddhartha Gautama (Índia, entre VI. e IV a.C.), ou Buda “O Iluminado”, compreendendo tradições, crenças e práticas, auxiliando o Homem a chegar ao Nirvana (descrito por Buda como um estado de calma, paz e pureza dos pensamentos, onde se alcança a libertação, a elevação espiritual e a realidade), normalmente através do Caminho do Meio. Uma prática descoberta presumivelmente por Buda, envolta na consideração de um meio-termo, num caminho com moderação e distância entre a autoindulgência e a morte (a harmonia), onde é possível atingir a explicação do Nirvana, entre outros. Tal como muitas outras religiões o Budismo possui varias vertentes, como é exemplo o Budismo Teravada, onde se rejeita a salvação divina ou perdão de um Carma (força samsara cujas ações, boas ou más, terão efeito sobre a nossa carne, reencarnação e sofrimento), a escola Maaiana ou o Budismo Tibetano, entre outros. O Taoismo, por sua vez, tem três vertentes, uma não teísta e filosófica, outra à qual são associadas algumas deidades com características humanas, denominadas Mestres Celestiais e, uma terceira, de influências budistas e confucionistas. Esta religião, originária da China, é virada para o “eu,” cujas práticas e crenças têm por finalidade a harmonia por via do Tao. O termo Tao significa “caminho,” atrás de tudo o que existe, e manifesta-se através da “virtude” ou Te, sendo inaudível, invisível e intangível e omnipotente. As vertentes referidas acreditam no caminho, onde primeiro


surge “aquele que está consciente” ou um, depois o “yin e yang” ou dois, de seguida, e também implícito, surge o Céu, a terra e a humanidade ou três, e por fim a totalidade do mundo como o conhecemos. Esta doutrina implica a nossa ação de acordo com a natureza, e envolve um sentido de unidade onde as coisas “apenas são”, a perspetiva passiva ou correta e não emotiva das coisas, é atingida através da reflexão, e a dualidade (yin e yang) entre o ativo e o passivo, o masculino e o feminino, a luz e a sombra. Essencialmente o Tao rege-se pelo Wu Wei, “agir pelo não agir,” seguir as regras da natureza em vez de lutar contra elas. Por sua vez, o Confucionismo é um sistema filosófico chinês criado por Kung-Fu Tzu, sendo considerado por muitos uma forma de religião. Esta filosofia centra-se na orientação da moral, da política, pedagogia e da religião através das ações praticadas em vida e para a vida. Orientado para a humanidade, esta prática contem uma série de guias que auxiliam o Homem a tornar-se num Ser benevolente, justo, integro, reverente, harmonioso, piedoso, corajoso, sábio, honesto, leal e modesto. No confucionismo o conceito de “ritual” diverge em significância do mesmo termo aplicado a outras doutrinas, referindo-se antes às ações do dia-a-dia, normas e regras de etiqueta que auxiliam o Homem. Efetivamente, o termo “ritual” aplicado à religião Cristã, refere-se às orações aplicadas à adoração dos santos, Deus ou Cristo, à vigia e orientação da alma humana e à expurgação dos seus pecados. O mesmo se aplica à religião Budista, na qual, algumas das suas vertentes, o recitar dos Mantras ou Sutras, liberta o corpo de Carmas negativos e é também considerado como um ritual. O Confucionismo, o Taoismo e o Budismo, ao contrário da religião Cristã, não possuem uma noção de “Céu e Inferno” ou “Deus”, no sentido em que não possuem uma, ou mais, entidades reguladoras do seu devir, ou mesmo um “lugar eterno” onde serão “castigados” ou “integrados” para todo o sempre. Mesmo o Budismo com os seus “Seis Reinos” dentro dos quais o renascimento ocorre, não possuí um lugar eterno, podendo o Ser evoluir de um reino para o outro. É precisamente esta dissemelhança entre a noção de “ritual” e “Deus” que dificulta, tanto por parte dos chineses, como por parte dos povos europeus, a compreensão da sua cultura e crenças religiosas. Por essa razão, qualquer abordagem realizada na tentativa do seu esclarecimento deverá ser meticulosamente estudada e redigida num discurso claro e conciso. Não podendo ser subservientes a uma ideologia e tipologia de exposição apoiada em conceitos europeus. Dada a natureza das peças, o ideal será realizar um discurso que possua 80% de imagem, 10% de texto e 10% de oralidade. Um conceito que implica a necessidade de material audiovisual acessório à perceção do objeto ou conjunto. Esta organização permite a qualquer observador, independentemente de possuir deficiência, barreiras linguísticas ou fraco nível de escolaridade, deduzir quase instintivamente a função, grau de avanço tecnológico e importância da peça para a época, assim como o seu valor simbólico. Sendo este último o qual, em grande parte, valorizará a peça enquanto objeto de relevância para o povo chinês e para a humanidade.


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Adquirido este valor podemos confirmar a sua autenticidade e com esta realizar um discurso claro e conciso retratando com veracidade uma realidade extinta, ou transformada, permitindo decifrar através do passado as ideologias do presente. Esta ‘autenticidade’ só pode ser atingida se quebrarmos as normas e deixarmos de influenciar e tentar incutir modos de expor carregados de preconceitos europeus e aderirmos a uma nova linguagem mais conivente e aberta.

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3. O enquadramento cultural

Em 1903, Aloїs Riegl, no “Culto Moderno dos Monumentos” afirmou que “estamos interessados no original e na forma íntegra da obra como foi deixada pelo seu criador,” passado mais de um século podemos concluir que a nossa forma de classificar algo como ‘autêntico’ ainda se baseia neste. Por outro lado, a preocupação com a ‘preservação da cultura’ lentamente ultrapassaram a questão da ‘divulgação eficaz’ da mesma, partindo do princípio que uma sociedade desenvolvida possuiria, à priori, os necessários conhecimentos para uma compreensão alargada das diversas culturas. Sem considerar que, a sobrecarga de informação e tecnologia leva a formação de preconceitos e ideias, na sua maioria, errados e fragmentados ou mesmo à ignorância: When it comes to information, it turns out that one can have too much of a good thing. At a certain level of input, the law of diminishing returns takes effect; the glut of information no longer adds to our quality of life, but instead begins to cultivate stress, confusion, and even ignorance. Information overload threatens our ability to educate ourselves, and leaves us more vulnerable as consumers and less cohesive as a society. (Shenk, 2007: 11)

Esta ‘ignorância,’ cada vez mais crónica, desenvolve-se através da abundância de informação, exercendo pressão social sobre os jovens. A necessidade de ‘integração’ criou a procura daquilo que é novo e ‘na moda’. Enquanto o capitalismo evolui e investe cada vez mais em estratégias de marketing, a cultura deixa-se cair no esquecimento, absorta em si própria. Assim, enquanto os teóricos divagam acerca da autenticidade ligada à conservação, a divulgação que leva à procura da mesma e, consequentemente, de novas leituras, perde-se. Questionamos qual será o objetivo de declarar o que é autêntico ou não, quando mais de metade do público, não sabe ao certo o que está a ver, guiando-se em valores empíricos como a estética, o sentimento e a idade aparente da peça em questão. Conclusão

Ao considerar o acima desenvolvido podemos concluir que a questão da autenticidade deve ser compreendida como algo intrinsecamente ligado à peça enquanto


elemento patrimonial, quer seja quando a classificamos como tal, como no momento de transparecer esse valor ao público. No entanto, temos também de compreender que não devemos impor valores europeus a culturas não-europeias, com ideologias e costumes diferentes, ou corremos o risco de não passar o seu significado original. Um museólogo, ao organizar uma exposição, deve ter em atenção a mensagem dos objetos, assim como a sua origem, organizando o discurso consoante a necessidade e nível de descontextualização face à cultura na qual os irá exibir. Este discurso deve ser idealizado de forma a ser o mais autêntico possível, apresentando a sua mensagem com precisão e clareza, para o maior grupo de pessoas diferenciadas possível. Esta inclusão social auxilia a sua valorização pelas gerações futuras, desmistifica preconceitos e auxilia as relações internacionais entre indivíduos de culturas diferentes. Em suma, as cerâmicas funerárias chinesas são, mais do que um objeto digno de ser contemplado pela sua beleza e mestria, parte da história religiosa e ritual da civilização chinesa, e por tal devem ser respeitadas e representadas de forma a serem valorizadas como um elemento etnográfico de extrema riqueza em termos de significado. A autenticidade não é mais do que o instrumento para fazer transparecer essa verdade que não deve ser deturpada pelas tradições e valores alheios. Contactar o autor: andreia5104@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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Patrimônio, Políticas Públicas e Culturas Híbridas Patrimony, Public policies and hybrid cultures

Ariane dos Santos Lima Universidade Estadual do Piauí

Áurea da Paz Pinheiro Universidade Federal do Piauí Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Programa Nacional de Pós-doutorado (PNPD — CAPES)

Resumo: Neste artigo, refletimos sobre os sentidos e significações do Patrimônio Cultural em um contexto de culturas híbridas, a exemplo a cidade de Oeiras, Piauí, Brasil. Apresentamos os resultados de pesquisa, cujas análises centraram-se em uma expressão cultural particular, que sofreu mudanças ao longo de séculos, trata-se da celebração em Louvor ao Bom Jesus dos Passos. Seguem-se, agora, novos desafios e estudos sobre a construção e vivências do espaço urbano e patrimonial da cidade por seus habitantes, além de indagar-se sobre as políticas públicas para o patrimônio cultural do estado brasileiro. Privilegiam-se questões ligadas à experiências históricas, as trocas simbólicas, que sustentam as relações entre os bens culturais, os indivíduos, a produção de sentidos nos espaços patrimoniais marcados pela presença de agentes e políticas públicas. Palavras-chave: Políticas Públicas. Patrimônio Cultural. Oeiras. Piauí. Brasil. Introdução

A reflexão que dar-se a ver neste artigo refere-se aos resultados de pesquisa e às propostas de continuidade, ao inserirmos elementos novos de análise. Nesse sentido, apresentaremos as formas de refletir sobre o papel socio-cultural de uma celebração religiosa secular da cidade de Oeiras – Piauí – Brasil que agrega valores patrimoniais à cidade e de que modo pensamos em alargar o foco da pesquisa para relacionar o espaço da Cidade de Oeiras e as políticas públicas patrimoniais. 1. Políticas de Salvaguarda: a historicidade das diretrizes e legislações brasileiras

As políticas de proteção do patrimônio cultural no Brasil foram orientadas, desde meados da década de 1930, por critérios que privilegiaram uma perspectiva dominante e elitista de valorização patrimonial. As políticas de salvaguarda de bens culturais no Brasil elegeram apenas o patrimônio material, chamados “pedra e cal”, ou seja, em grande medida as edificações herdadas da tradição europeia ligada à construção de moradias, monumentos e, principalmente, templos religiosos católicos. (PELEGRINI; FUNARI, 2011)


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Lima, Ariane dos Santos; Pinheiro, Áurea da Paz (2013) “Patrimônio, Políticas Públicas e Culturas Híbridas.”

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Essa perspectiva excludente e, por muito tempo hegemônica, havia sido percebida por Mário de Andrade na década de 1930, o intelectual analisou os critérios como limitados diante da diversidade cultural brasileira, principalmente no que se referia à cultural popular. Questionou-se sobre: como salvaguardar danças, músicas, modos de fazer? Portanto, o desafio, além de conceitual, era prático. Como o Estado protegeria, então, os bens imateriais? O Brasil, país de dimensões continentais, tem uma formação social e cultural de natureza híbrida, que necessitou de uma legislação de proteção e salvaguarda dos bens culturais de natureza imaterial, de saberes e fazeres frutos dos diálogos entre as culturas africana, indígena e portuguesa, cuja herança patrimonial não comportava nos limites de um patrimônio edificado. Os costumes e os rituais próprios dessas etnias, os traços de seu cotidiano e as suas formas de celebrar a vida merecerem a proteção do Estado. A visionária percepção da importância da cultural imaterial de Mario de Andrade só ganharia forma a partir dos artigos da Constituição Federal de 1988, principalmente o artigo 216. (BRASIL, 1988) Por meio da legislação o Estado e a sociedade civil abrem espaços para se pensar a identificação e salvaguarda dos bens imateriais: as formas de expressão, modos de criar, fazer e viver e lugares vinculados ao cotidiano de grupos tradicionais. A matéria valorizada pela Carta Constitucional levou a inúmeras discussões em torno de políticas públicas e regulamentações, o que resultou no decreto 3.551 de 2000. A regulamentação objetiva salvaguardar os bens de natureza imaterial, criam-se medidas como o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial- PNPI e Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial em um dos livros: dos Saberes, das Celebrações, das Expressões e dos Lugares. (PELEGRINI; FUNARI, 2011). A partir de 2000, as políticas de salvaguarda do patrimônio imaterial avançaram vertiginosamente, acompanhadas de igual crescimento do interesse de pesquisadores e suas equipes transdisciplinares pela cultura imaterial, desenvolveram-se, sobretudo, inventários de bens culturais, citemos o Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN em várias estados brasileiros, no caso do Estado do Piauí, o IRNC da Arte Santeira (PINHEIRO, 2009), das Comunidades Quilombolas e da Cajuína. · Implementar política de inventário, registro e salvaguarda de bens culturais de natureza imaterial. · Contribuir para a preservação da diversidade étnica e cultural do país e para a disseminação de informações sobre o patrimônio cultural brasileiro a todos os segmentos da sociedade. · Captar recursos e promover a constituição de uma rede de parceiros com vistas à preservação, valorização e ampliação dos bens que compõem o patrimônio cultural brasileiro. Incentivar e apoiar iniciativas e práticas de preservação desenvolvidas pela sociedade. (BRASIL, 2000)


· Pesquisa, documentação e informação. · Realização de pesquisas, levantamentos, mapeamentos e inventários. Apoio à instrução de processos de Registro. · Sistematização de informações, constituição e implantação de bancos de dados. · Apoio à produção e conservação de acervos documentais e etnográficos, considerados fontes fundamentais de informação sobre o patrimônio cultural imaterial. Sustentabilidade Formulação e implementação de ações de salvaguarda para bens culturais inventariados e planos de salvaguarda para aqueles registrados. · Estímulo e apoio à transmissão de conhecimentos entre produtores de bens e de manifestações culturais de natureza imaterial. · Incentivo a ações de reconhecimento e valorização de detentores de conhecimentos e formas de expressão tradicionais e apoio às condições sociais e materiais de continuidade desses conhecimentos. (BRASIL, 2000) 2. Patrimônio Imaterial e os sentidos da salvaguarda

Via sacracorpus O Brasil é rico em expressões da cultura imaterial, as festas religiosas fazem parte do cenário e ganham espaço como patrimônio cultural do país. Centenas de festas compõem esse rico universo, a grande diversidade cultural e o fluxo migratório refletiram e forjaram a diversidade das festas populares, que ocorrem durante todo o ano nas mais diversas e distantes localidades do país. São festas públicas ou privadas, de grande ou pequeno porte, com difusão nacional ou apenas regional, mas que demarcam culturalmente o país, por serem dotadas impressionante significado e sentidos permeados de conotação simbólica, mítica e função coletiva, enriquecendo o cotidiano do povo brasileiro, pois, de algum modo, têm significado particular relacionado à história da cidade, de seu passado mais ou menos longínquo de formação cultural. Nesse contexto encontra-se a Frsta do Bom Jesus dos Passos em Oeiras. Encenação a céu aberto têm como cenário a fração histórica da cidade, cuja construções arquitetônicas dão testemunhos da ligação da Festa ao passado oitocentista. A Celebração possui características únicas, associadas a comemorações de momentos importantes da vida cotidiana da localidade, que recriam, presentificam a memória coletiva, expressão tradições de outros tempos. O panorama religioso é marcado por festas que floreiam o calendário secular e religioso local. Portanto, viver o sagrado em Oeiras é experimentar um tipo de religiosidade que resiste e se adapta à secularização, que preserva identidades de fé. O culto ao Senhor Bom Jesus dos Passos e a Irmandade dos Passos exerceram papel fundamental na organização e manutenção da tradição religiosa tão fortemente arraigada às identidades de Oeiras, responsáveis pela representação simbólica e evocação mística do sacrifício de Cristo, dando sentido pleno à vida religiosa da comunidade. A ação é de catequese, a representação cênica da morte e ressurreição de Jesus, a mensagem evangélica é transmitida e ensinada às novas gerações, permanecendo


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Lima, Ariane dos Santos; Pinheiro, Áurea da Paz (2013) “Patrimônio, Políticas Públicas e Culturas Híbridas.”

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o sentido e valor pedagógico da tradição. Além disso, a ritualização da Semana Santa na cidade é referência de fé e devoção muito importante para as populações do entorno de Oeiras, no permitindo afirma de todo o Estado do Piauí, não há quem não tenha ao menos ouvido falar da Procissão do Bom Jesus dos Passos. Assim, o estudo da devoção enquanto patrimônio imaterial do Piauí se apresenta como uma possibilidade, somente válida se envolver a comunidade em seu registro e proposição de políticas públicas de salvaguarda, difusão, sustentabilidade, autoestima e valorização de tradições ancestrais. O ritual dos Passos da Paixão revela marcadores identitários, que, convertidos em patrimônio imaterial, garante o direito à memória, permitindo que essa de expressão religiosa seja protegida e transmitida às gerações futuras. A pesquisa, ao estar centrada na construção histórica e etnográfica da Celebração, permitiu uma série possibilidades para investigação futura. 2.1 Patrimônio e Políticas Públicas em Oeiras — Piauí

A pesquisa histórico-etnográfica realizada permite agora indagações sobre o papel das políticas públicas na cidade histórica de Oeiras. É nessa direção que pretendemos avançar com a investigação, privilegiar as inter-relações entre patrimônio cultural e políticas públicas. O patrimônio eleito como referência é a Celebração ao Bom Jesus dos Passos de Oeiras, primeiro núcleo populacional do estado. Os bens culturais possuem carga simbólica e, como todo signo, têm suportes físicos – dimensão material que viabiliza a comunicação; uma estrutura simbólica que lhes oferece sentido, e que forja pessoas capazes de atuarem segundo certos códigos (GEETZ, 1989). Constituem-se bens culturais que se caracterizam, segundo a Constituição Brasileira, como uma “referência à identidade, a ação, a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade”. (BRASIL, 1988) Nossa hipótese reside no fato de que patrimônio e políticas públicas são interfaces, campos de experiências, cenários em que, reconhecidamente, o Patrimônio Cultural aciona sua força, surge como força motriz de memórias e identidades ao lado do conflito com o caráter interventor das ações do Estado. Surge o desafio que se remete à forma particular à área de políticas públicas, a de formulação e implementação de ações para além da salvaguarda, mas que permeiem a reinvenção de espaços patrimoniais a fim de equacionar a dinâmica de culturas fluidas. O recorte temático proposto é passível de análise por considerar que atualmente as políticas públicas (re) controem contidianamente os espaços patrimoniais contribuindo significativamente para a producação e manutenção das relações estabelecidas entre os bens culturais, os indivíduos e gestores culturais. Portanto, justifica-se a pesquisa por contribuir nas discussões acerca dos sujeitos em destaque, o que inclui subsídios no pensar e excecutar políticas públicas que melhor reconheça e desenvolva as pontencialidades dos bens culturais atrelados as politicas públicas de patrimonio imaterial, o que nos remete a contribuição teorico e prática da pesquisa.


Para elucidar a inter-relação entre o patrimônio cultural políticas públicas e patrimônio imaterial, faz-se necessário, primeiramente, identificação das referências culturais da cidade bem como as discussões de conceitos para compressão de patrimônio que perpassa uma historicidade nas discussões histórica antropológica. Assim, os conjuntos metodológicos apresentados articulados permitirão compreender a rede patrimonial constituidas entre os sujeitos que consomem os bem culturais e interveções exteriores dos órgãos de salvaguarda. Em termos metodológicos nos insere em um campo interdisciplinar, pede-nos um diálogo de forma ampliada com diversos campos de saber permitindo a compreensão das relações entre a população e a produção de lugares patrimoniais. No se refere às fontes impõe ao pesquisador uma habilidade de leitura de um conjunto de fontes diversificado, é necessário sensibilidade para conjugar informações sem prejuízo da natureza específica de cada fonte. Considerações Finais

Educadores, historiadores, museólogos, artistas e gestores culturais, a provocação que se apresenta é a descoberta de novos sentidos e novas relações com o tradicional, com o patrimonial. Nos leva ao exercício junto a acervos da cultura, da quebra de preconceitos e desigualdades, das possibilidades de produzir conhecimento unindo o tradicional e o contemporâneo. É desta forma que o Patrimônio, seja religioso, artístico, natural, histórico ou científico consiga encontrar ressonância na população que o abriga, a percepção do passado atuando no presente, a História se concretizando na ação do hoje e nos percebermos sujeitos históricos, formadores de memórias. Contactar as autoras: limaariane88@gmail.com • aureapazpinheiro@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Referências · BRASIL. Decreto nº. 3.551, institui o Plano Nacional de Patrimônio Imaterial 2000. · GEERTZ, Cliford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. · Horizontes antropológicosFuturo PassadoLIMA, Ariane S. Por entre rezas, procissões e enterro: as celebrações em louvor ao Bom Jesus dos Passos de Oeiras, 2013.200f. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2013. · PELEGRINI, Sandra C. A. Pelegrini; FUNARI, Pedro Paulo . O que é patrimônio cultural imaterial. 4a.reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2011. · Senhores de seu ofício


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Miniaturas à luz das ciências Miniatures reliefs in the light of science

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Camila Remonatto Licenciatura em Ciências da Arte e do Património, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa (FBAUL)

Anísio Franco Historiador da Arte. Licenciado pela Universidade de Lisboa. Técnico do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA)

Agnès Le Gac

Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 128-141.

Remonatto, Camila; Franco, Anísio; Le Gac, Agnès (2013) “Miniaturas à luz das ciências.”

Professora Auxiliar. Doutorada pela Universidade Nova de Lisboa, Departamento de Conservação e Restauro. Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa (DCR-FCT-UNL)

Resumo: Um conjunto de sete altos-relevos miniaturais pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) faz parte daquele património de Arte Sacra que sofreu as vicissitudes inerentes às Reformas Liberais, em 1834. Perante a sua perda total de referências, trata-se de um caso de estudo que desafia a sua apresentação ao grande público. Mostrar-se-á como as Ciências podem contribuir para o seu resgate e valorização. Palavras-chave: Museu Nacional de Arte Antiga. Investigação Científica. Descontextualização

Abstract: A set of seven miniature reliefs belonging to Museu Nacional de Arte Antiga, Lisbon, is part of our heritage of sacred art that have suffered the vicissitudes the Liberal Reforms triggered in Portugal, in 1834. Given their total loss of references, these artworks challenge their presentation to the general public. This paper will show how science can contribute to the better understanding and valorization of the current set. Keywords: Museu Nacional de Arte Antiga. Scientific research. Loss of references. Introdução

Desde Setembro de 2012, o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) está a desenvolver, com o apoio da Fundação Amadeu Dias (FAD) / Universidade de Lisboa (UL), o “Estudo de um conjunto setecentista de altos-relevos miniaturais em barro cozido policromado”, com projecto de investigação científica integrado no Centro de Física Atómica da UL. Este estudo incide sobre um conjunto de altos-relevos de pequenas dimensões (Alt. 276 mm x Larg. 220 mm x Prof. 57 mm), em barro-cozido policromado e ornado com diversos materiais compósitos que contribuem para a riqueza plástica da obra, tornando-a única no seu género. Presume-se que estes altos-relevos


sejam oriundos de um ciclo narrativo da Paixão de Cristo, pela representação de 7 episódios específicos, a saber: ‘Cristo no Horto’, ‘O Beijo de Judas’, ‘O Coroamento de Espinhos’, ‘Ecce Homo’, ‘A Subida da Cruz’, ‘A Crucifixão’ e ‘O Descendimento da Cruz’ (Nos Inv. MNAA 244 a 250). Pouco se sabe sobre a sua proveniência, realização e vivência. Os registos mais antigos desta obra encontram-se no acervo do MNAA e datam de 1912, ou seja, dois anos depois da implantação da República em Portugal, a 5 de Outubro de 1910, consequência dos movimentos liberais que tiveram início em 1820. Um dos aspectos relevantes deste movimento foi a reacção adversa ao poderio da Igreja Católica em Portugal, o que levou à extinção das Ordens religiosas em 1834 e à consequente apropriação de seus bens pelo Estado. Este processo não ocorreu de forma linear e organizada resultando muitas vezes na destruição parcial do espólio artístico de temática sacra, como foi o caso do conjunto aqui focado. Considerando a qualidade do conjunto e a quase total ausência de indícios e fontes arquivísticas, propôs-se levar a cabo uma vasta investigação com duas abordagens paralelas mas complementares: a reconstituição do seu percurso histórico, sendo esta suportada por uma metódica investigação analítica sobre os materiais constituintes das pastas cerâmicas — base para o trabalho escultórico —, da policromia e dos elementos decorativos. Parte-se do princípio que a adequada caracterização material e tecnológica possibilita uma melhor contextualização da obra. A aquisição de dados objectivos quanto ao seu estado de preservação deve garantir a sua correcta salvaguarda, mas também a sua valorização através da sua exposição ao público. Propõe-se facilitar o acesso não só ao objecto artístico, como ao trabalho científico subjacente que resgata a sua história, desvenda a sua materialidade, e possibilita inseri-lo num contexto cultural específico. Estas preocupações foram levantadas com mais afinco, uma vez que estas peças irão integrar uma exposição temporária no MNAA, calendarizada para o ano de 2014, no espaço museológico da Sala do Tecto Pintado. Considerando a complexidade deste trabalho e as relações por ele estabelecida, optou-se por uma investigação com carácter interdisciplinar. Neste artigo, pretende-se relatar parte do desenvolvimento do projecto de investigação e ressaltar a importância do estabelecimento de parcerias para a construção colectiva do conhecimento em Arte. Enfatiza-se ainda a necessidade de articular os saberes e fazeres de distintos campos da ciência e compor um referencial adequado visando a divulgação do objecto artístico e a sua apreciação pelo grande público. 1. As Ciências na construção de um percurso histórico

Numa investigação versada no património artístico, procura-se estabelecer uma série de relações que permitam conhecer características distintas da obra de arte, nos seus aspectos materiais e imateriais.


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Estas relações podem ser estabelecidas de inúmeras formas. As fontes documentais são, de um modo geral, as mais cobiçadas, já que fornecem informações literais e, por vezes, explícitas sobre o historial do objecto. Uma referência directa, como um contracto de encomenda, pode revelar dados tais como a data em que o contrato foi assinado, o comitente da obra, a autoria, o local de execução, o local para o qual era destinado, os custos, e até mesmo os materiais que deviam ser empregues. Uma referência à determinada obra num texto literário, uma publicação de memórias ou até mesmo um simples inventário paroquial, podem às vezes ser de grande auxílio para elucidar o seu último paradeiro. Estas fontes, no entanto, são relativamente escassas. Acontece também que as fontes documentais nem sempre são tão explícitas, cabendo aos investigadores a tarefa de tecer relações para melhor compreender a obra e o seu contexto. No caso específico do Ciclo da Paixão de Cristo, os seus próprios elementos são a principal fonte documental. Neste panorama, os investigadores têm que produzir dados através de diversos métodos de exame e análise, e de uma metodologia científica rigorosa, para obter informações fiáveis. Só assim se poderá ir formulando novas hipóteses. Ao ter como alvo de estudo um objecto artístico deve-se, portanto, indagar e procurar responder a algumas questões fundamentais: 1- quando a obra foi feita, isto é, em que período histórico se enquadra; 2 – que materiais entraram na sua composição; 3 – que técnicas foram utilizadas na sua aplicação; 4 – quem foi ou foram os autores da Obra; 5 – onde e em que âmbito socio-cultural foi realizada, o que pressupõe também interrogar o local provável da sua execução. Ao responder a estas questões, torna-se possível apurar a intenção com que a obra foi concebida e o seu destino. Quando a obra é a única fonte de conhecimento, são antes do mais os métodos de exame e análise que podem providenciar informações valiosas. As principais respostas obtidas pela via das ciências exactas dizem respeito à sua materialidade, à sua tecnologia de fabrico e a possíveis acréscimos posteriores. No caso dos altos-relevos, é possível conhecer a composição das pastas cerâmicas utilizadas no trabalho escultórico; identificar os materiais pictóricos (pigmentos, corantes, ligantes) utilizados na policromia; caracterizar as folhas metálicas quanto à sua composição, qualidade da liga e espessura; verificar a presença de camadas superficiais de acabamento ou de protecção, e se essas são de natureza oleosa, resinosa ou de outro material. É na relação entre os dados obtidos que se pode fazer comparações pertinentes, a começar pelo facto de que os pigmentos utilizados na obra podem contribuir para a datação da mesma. Este processo é ainda mais enriquecedor quando se cruzam resultados analíticos com um estudo iconográfico e estilístico. 2. O ciclo da Paixão de Cristo

O conjunto possui grande riqueza material. Para conferir aspectos plásticos distintos, foi empregue uma variedade de materiais que não pertencem propriamente ao domínio da pintura, mas que conferem distintas texturas e qualidades de brilho ao


conjunto (Figura 1 e 2). Tendo sido modelados em barro e cozidos, cobertos por uma policromia a frio e finalizados com elementos decorativos, os altos-relevos encontram-se inseridos dentro de caixas de madeira simples. Estas estão desprovidas de qualquer ornamentação exterior e foram fechadas por vidros que nem sempre coincidem com o tamanho exacto dos contentores. Os vidros são nitidamente antigos, já que não têm espessura uniforme, e evidenciam zonas ligeiramente abauladas e bolhas de ar. No entanto, não é possível afirmar que estes faziam parte do conjunto na altura da sua concepção. Os altos-relevos são trabalhados de forma a permitir que as personagens se destaquem do plano de fundo, algumas vezes em vulto perfeito. O relevo da paisagem é subtil, favorecendo o destaque das figuras. Este destaque também é corroborado pelo tratamento cromático, sendo muitas vezes utilizados recursos apelativos para representar elementos como vestes, acessórios, e até mesmo características marcantes, como as chagas de Cristo. Saltam à vista a utilização de folhas metálicas (por vezes cobertas com velaturas coloridas), revestimentos felpudos, e até mesmo gotas vermelhas em relevo de dimensões tão diminutas que causam assombro (Figura 4). No tratamento decorativo das paisagens, verificou-se a utilização de uma pintura mais opaca nas representações do céu; de revestimentos de grãos de areia para simular o exterior de uma construção (Figura 1 e 4); de pequenos vidrinhos partidos e coloridos para, na maior parte dos episódios, cobrir o solo (Figura 2 e 4), bem como de uma policromia de mármore fingido, finalizada com verniz, para representar elementos arquitectónicos mais elaborados (Figura 1). Como remate, existe ainda, junto à borda interior das caixas, uma guirlanda de flores armadas em tecido ou papel e presas por fio metálico, complementando o conjunto com um toque vegetalista delicado. Além de acondicionarem as peças, as caixas de madeira participam activamente da encenação, já que suas paredes laterais interiores são decoradas para serem partes integrantes do decor.

Fig. 1 - “Ecce Homo”. 14.09.2012 © C. Remonatto e A. Le Gac Fig. 2 - “A Subida da Cruz”. 14.09.2012 © C. Remonatto e A. Le Gac


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2.1 O Desvendar da Materialidade

Desde Outubro de 2012, está a ser desenvolvida uma vasta investigação analítica sobre os materiais constituintes da obra. As análises incidem particularmente sobre as características da pasta cerâmica, sobre a camada pictórica, com aplicação geral em todo a obra, e sobre os elementos decorativos, já que todos contribuem para o resultado estético final. Para a caracterização materialidade do conjunto, foram feitos exames e análises in-situ com técnicas não invasivas: o registo fotográfico sob luz visível e luz ultravioleta, o registo macrofotográfico e o registo microfotográfico com microscópio digital (ampliações até 215×) equipado com luz branca e ultra violeta. Também serão empregues as técnicas não invasivas como a Radiografia Digital e a Fluorescência de Raios X. Micro-amostras foram retiradas e observadas por Microscópia Óptica (MO) – sob luz visível, luz polarizada, e ultravioleta com distintos filtros – e por Microscópia Electrónica de Varrimento com Espectrómetro de Raios X Dispersivo em Energia (SEM-EDS), estando ainda prevista a análise por Espectroscopia Raman. Também se realizou a recolha de amostras da pasta cerâmica, para proceder à sua caracterização e datação, através das técnicas de Difracção de Raios X, Activação Neutrónica e Termoluminescência. Procedeu-se à aferição tanto das medidas exteriores das caixas de madeira, como dos vidros que cobrem cada relevo. Não só permitiu fazer a sua relação com as medidas constantes das fichas de inventário, como identificá-los e associá-los devidamente. Esta metodologia foi adoptada também a pensar no problema museológico de acondicionamento das peças e na divulgação de um património cuja manufactura implicava um processo totalmente artesanal; uma forma de realçar a unicidade de cada elemento produzido. Através deste processo, pôde-se facilmente concluir que as caixas apresentam algumas diferenças de tamanhos e que não correspondem a uma esquadria exacta (Quadro 1).

Nº Inventário / Designação:

246

Ecce Homo

Dimensões Exteriores da Caixa de Madeira(mm)

Dimensões do Vidro (mm)

Superior

Inferior

Média

Superior

Inferior

Média

Largura

212

211

211,5

218

219

218,5

Lado Esquerdo

Lado Direito

Média

Lado Esquerdo

Lado Direito

Média

Altura

276

274

275

264

265

264,5

Canto sup. esquerdo

Canto sup. direito

Canto sup. lateral esquerdo

Canto sup. lateral direito

56

57

55

57

Canto inf. esquerdo

Canto inf. direito

Canto inf. lateral esquerdo

Canto inf. lateral direito

54

56

Espessura

56

Quadro 1 - Tabela de Medidas de um alto-relevo

57

~1,5


Além de servir de ferramentas de trabalho, enquanto base para o planeamento e mapeamento dos demais métodos aplicados, os registos fotográficos constituem uma componente fulcral da investigação por ter uma função documental. A ciência tira partido das radiações visíveis e não perceptíveis ao olho humano para produzir também registos visuais, em que as diferenças de cor observadas sob luz ultravioleta ajudam a distinguir algumas famílias químicas bem como identificar possíveis intervenções de restauro. De facto a luz ultravioleta produz um fenómeno de fluorescência em determinados materiais que pode auxiliar o seu reconhecimento. Com estes métodos, já foi possível observar alguns detalhes, como os exemplificados na Figura 3, tais como a presença de folhas metálicas por vezes cobertas por velaturas e outras vezes não. No episódio “Descendimento da Cruz”, o Sol não apresenta qualquer acabamento com verniz, o que é evidenciado pela fluorescência sob luz ultravioleta, por emitir uma coloração arroxeada, característica dos elementos metálicos. Pelo contrário, no grupo das Santas Mulheres representado no episódio da “Crucifixão”, as vestes douradas e prateadas estão cobertas por veladuras, já que a fluorescência obtida, com algumas variações tonais, é específica dos seus materiais constituintes.

Fig. 3 - A esquerda, folha metálica sem aplicação de verniz. A direita, folhas metálicas cobertas por veladuras.14-09-2012 © C. Remonatto e A. Le Gac

Com o microscópio digital (215×) foram analisados muitos pontos de cada um dos altos-relevos do conjunto. Procurou-se principalmente comprovar a qualidade e a diversidade dos distintos elementos decorativos utilizados, tais como: o vidro partido/moído, as fibras que dão um aspecto texturado a determinadas vestes, a areia dos elementos arquitectónicos (Figura 4).

Fig. 4 - Imagens obtidas através de microscópio digital: Folha metálica coberta por velatura azul (150×); Revestimento felpudo sob luz ultravioleta (x45); Gotas tridimensionais sobre o rosto de Cristo (45×); Revestimento com areia (45×); Revestimento com aplicação de vidros (45×). 28.09.2012 – © C. Remonatto e A. Le Gac.

Entrando no campo das análises invasivas, fez-se a recolha de micro amostras. Os protocolos seguidos na amostragem são decisivos, e não esclarecendo este ponto ao futuro visitante da exposição, este não poderá conhecer nem a metodologia nem


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as exigências subjacentes a este processo. Mas na amostragem, não se deixou de dar preferência aos elementos que já se encontravam soltos, como é o caso dos pequenos pedaços de vidro e das fibras. Quando esta situação não se verificava, houve a preocupação de retirar amostras de lugares não-visíveis. Também procurou-se aplicar a “lei da representatividade”, para a análise do barro cozido, limitando a recolha das pastas cerâmicas a três elementos do conjunto. Escolheu-se, para este efeito, aqueles que possuíssem acesso a zonas do barro que não se encontravam cobertas por nenhum tipo de decoração, e tampouco se localizassem em zonas visíveis (Figura 5). A finalidade desta operação era submeter as amostras a três técnicas distintas, a saber: Difracção de Raios X, Activação Neutrónica e Termoluminescência, para obter informações quanto à natureza da argila empregue na obra, à temperatura de cozedura, e também à época em que as peças foram modeladas. As amostras recolhidas em cada um dos altos-relevos não ultrapassaram os cinco gramas de matéria. Os primeiros ensaios com estas técnicas analíticas possibilitaram saber que a temperatura de cozedura rondou os 400 ºC; dado esse que, pelo seu interesse no fabrico de objectos em barro no séc. XVIII, será merecedor da melhor divulgação.

Fig. 5 - Local onde se fez a recolha de amostra no episódio “O Beijo de Judas.” 07-01-2013 © C. Remonatto e A. Le Gac.

A radiografia digital portátil, e a microscopia óptica e electrónica de varrimento são uma mais-valia, pois fornecem registos visuais específicos, a cor (MO) ou a preto e branco (SEM) baseados em ampliações podendo ser extremamente elevadas (até 50000×), capazes de descer até à escala atómica (na unidade do nanómetro, ou seja, o milionésimo do milímetro). Com esses registos, entra-se na constituição da matéria nas suas dimensões mais insuspeitas para o leigo, mas com as quais ele poderá melhor se familiarizar com as devidas explicações e interpretações. A radiografia digital, que permite descortinar os aspectos invisíveis das estruturas internas dos objectos, fornece não só informações para quem procura entender os modos de fabrico, como representa uma mais-valia para servir de suporte demonstrativo no âmbito museológico. Todas estas imagens, enquanto dados concretos, podem ser exploradas não só com um intuito puramente científico, mas também com uma finalidade pedagógica para servir de ilustração no discurso expositivo. Exemplificando o que alcança a fluorescência de raios-X como a análise por SEM-EDS, um dos materiais que se identificou nas calças de uma personagem foi


o pigmento Vermelhão (HgS ou sulfureto de mercúrio) (Figura 6). Este pigmento foi reconhecido através da análise elementar que punha em evidência a presença de Mercúrio e Enxofre. (Cabral, 2006)

Fig. 6 - Imagem obtida por SEM de uma fibra com vestígios de pintura vermelha, e respectivo espectro. 13.12.2012 – © C. Remonatto e A. Le Gac.

3. Parcerias

A investigação que nos ocupa requer conjugar os saberes muito específicos das Ciências Sociais e Humanas, das Ciências Exactas e da Ciência da Conservação. Daí a criação de parcerias entre vários investigadores oriundos de diferentes áreas e instituições ser fulcral para lidar com a complexidade de estudo que implica o caso presente. Somente assim a riqueza de detalhes do conjunto de altos-relevos miniaturais poderá ser revelado através destes diferentes olhares. A acção conjunta e integrada dos diferentes laboratórios viabiliza ainda optimizar os recursos, cada vez mais escassos, para o desenvolvimento de um projecto científico. Nesta perspectiva celebraram-se parcerias entre o Museu Nacional de Arte Antiga, o Centro de Física Atómica da UL, o Instituto Superior Técnico da UL, o Instituto Tecnológico Nuclear da UL e o Departamento de Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. 4. Estado de Preservação

Avaliar o estado de preservação das obras é outra faceta importante do estudo, que também se baseia nos métodos de exame e análise supracitados, já que auxiliam a realização de um diagnóstico preciso, revelando e confirmando aspectos que, apreciados de outros modos, não seriam conclusivos. O estado de preservação dos altos-relevos miniaturais, que trás informações substanciais sobre a sua vivência até à sua incorporação no museu em 1912, já condiciona o modo como o percepcionamos e irá induzir estratégias no modo como serão apresentados ao grande público.


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5. Estratégias Expositivas

Com uma antecedência de dezoito meses, a divulgação das obras e do seu respectivo estudo foi calendarizada para o ano de 2014. Este prazo, que possibilita investigações e intervenções assaz complexas, permite simultaneamente que se vá construindo o projecto final da mostra, dando-lhe os contornos julgados mais adequados consoante os resultados alcançados. Diga-se de passagem que o segundo trimestre de 2014 foi apontado como o mais oportuno, de forma a fazer coincidir a inauguração da exposição centrada no ciclo da Paixão de Cristo com o tempo da Páscoa; uma referência implícita à cultura e espiritualidade de uma outra época, em que os tempos litúrgicos marcavam inexoravelmente o ritmo da vida das comunidades. A divulgação do conjunto de peças em apreço está intencionalmente planeada no espaço museológico da Sala do Tecto Pintado do MNAA. Excêntrica ao percurso das salas deste museu, a Sala do Tecto Pintado está particularmente vocacionada, desde 2010, para a mostra de objectos paradigmáticos, isoladamente ou limitados a algumas peças entre as quais fazer paralelismos, pondo a tónica no discurso científico que potencia uma melhor compreensão da nossa herança cultural (MNAA | Sala do Tecto Pintado, 2010 a 2013). 5.1 Paralelismos e estratégia expositiva

Tendo em conta o ciclo narrativo que nos ocupa, outros três conjuntos pertencentes também ao espólio do museu foram provisoriamente seleccionados, para estabelecer novas correspondências. Os critérios que presidiram à sua escolha foram: 1) o seu tamanho, por as obras serem todas miniaturais. Enquanto a miniatura no domínio da pintura foi bastante investigada, ela o foi muito menos no domínio da escultura; 2) os seus materiais constituintes, sendo as imagens produzidas em barro cozido ou em cera; 3) a construção de uma narrativa com base no princípio director de uma composição de elementos, aqui sob a forma de simples pares de obras que jogam como pendentes; 4) as suas componentes iconográficas, que remetem também para a devoção cristológica ou a salvação pela santidade. O primeiro par de obras, que coincide com dois episódios da Vida de S. Francisco de Assis (Nos Inv. MNAA 242 e 243), é quanto mais necessário no confronto ambicionado que apresenta uma elevada parecença com o ciclo da Paixão de Cristo. Têm as mesmas dimensões gerais, o mesmo estilo escultórico e um conceito decorativo comum; a tal ponto que parecem ter saído da mesma oficina. A sua incorporação no museu decorreu na mesma altura, em Novembro de 1912, e têm números de inventário seguidos, o que não deixa de surpreender quando se sabe que vieram de espaços religiosos diferentes (Le Gac & al, 2013). Além de promover uma comparação visual sistemática, os nove elementos reunidos (7 + 2) alimentam estes questionamentos


já referidos sobre o âmbito oficinal que os concretizou, os comitentes das obras, os lugares a que as peças estavam originalmente destinadas. Quanto aos outros dois conjuntos, ambos retratam a temática da dupla Adoração ao Menino Jesus – a dos Pastores e a dos Reis Magos (Nos Inv. MNAA 111 e 112, e MNAA 408 e 409). De modo que cada par oferece uma comparação substancial com o outro, quanto mais que estas obras baseiam-se no saber próprio da ceroplastia, ou seja, a arte da modelação em cera, com pastas previamente pigmentadas na massa (Le Gac, 2006). Inútil será dizer que os resultados materiais e artísticos que patenteiam obras em barro cozido policromado ou em cera colorida, pela sua elaboração específica, pela sua opacidade ou translucidez, pela igual minucia que deslumbra o neófito, merecem uma comparação até agora pouco explorada de forma sistemática. A falta de enquadramento físico das cenas do ciclo da Paixão de Cristo e dos episódios da Vida de S. Francisco, retirados dos seus suportes primitivos, é um outro aspecto a realçar. São hoje desprovidos de qualquer estrutura portante, sendo até o seu vidro protector ficado solto. Os outros dois pares têm molduras próprias, em talha dourada, que os autonomizam enquanto obras devidamente individualizadas, associadas nesse caso duas a duas. Esta questão da aparência final permite enfatizar o estatuto da obra, enquanto objecto independente, valendo por si, ou pelo contrário, criado com uma necessária relação orgânica com outros e inserido numa estrutura maior que define o sentido e coerência de cada uma das partes, e da totalidade. Sensibilizar o público a este conceito da “obra de conjunto” (ADCR, 2001) é possível precisamente através dos exemplos escolhidos que, postos em confronto, podem ajudar a demonstrar quanto a destruição de uma estrutura envolvente corre o risco de originar por sua vez uma perda imaterial: a da retórica intencionalmente criada entre peças específicas. 5.2 Meios de divulgação

No âmbito propriamente expositivo, são então fulcrais as opções feitas para sugerir visualmente, e num tempo que não requer do visitante mais que alguns minutos, estes paralelismos compositivos, técnicos ou históricos, estas menores ou maiores interdependências e articulações discursivas que acabamos de frisar. Pela sua eficácia comprovada ao longo das exposições já decorridas, os meios adoptados com recorrência na Sala do Tecto Pintado são quatro, fora a própria peça ou reunião de peças que em si representa a primeira fonte de conhecimento: 1) a organização espacial dos objectos, dispostos em vitrine ou não (Figura 7a), que favorece muitas vezes uma circulação dinâmica e o acesso pelo observador às faces geralmente ocultas das obras (o reverso é uma delas); 2) as poucas linhas introdutoras dos bens expostos e da temática em que eles se inserem, singelamente transcritas numa ou mais paredes da sala à maneira de painéis (Figura 7b); 3) o suporte vídeo fixo na parede direita à entrada do espaço, em que imagens, sequências fílmicas e comentários sintéticos procurem tornar palpável o historial das obras, a sua tecnologia construtiva, os desafios conservativos e


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outras questões que poderão ter suscitado (Figura 7b). É sem dúvida um dos meios de divulgação mais chamativos; 4) um exemplar do catálogo da exposição, seguro à parede por corrente, que disponibiliza de imediato ao visitante conteúdos mais alargados (Figura 7c). Este catálogo, à venda na livraria do museu, é evidentemente o registo documental que em si concentra todas as abordagens e assegura a transmissão da informação a longo prazo. Fruto das investigações e descobertas mais recentes, a edição do catálogo propícia novas referências e reflexões circunstanciadas em torno dos bens mostrados.

Fig. 7a - Presépio de Carnide. 13.02.2012. © A. Le Gac Fig. 7b - Sala do Tecto Pintado. 13.02.2012. © A. Le Gac Fig 7c - Catálogos das exposições. 30.04.2013. © A. Le Gac.

Esses meios serão novamente adoptados na exposição de 2014. De facto, esses modos de valorização, que poderiam ser julgados limitados, num espaço bastante confinado com invariável volumetria, são os mais adequados para peças de reduzidas dimensões que exigem uma grande aproximação, um olhar mais intimista e um número restrito de observadores de cada vez. Por outro lado, este enquadramento tão particular tem custos muito reduzidos, o que promove uma grande rotação de obras. Esta rotação, que decorre trimestralmente, é uma das grandes estratégias do museu e também um desafio constante para os membros investigadores do MNAA. Conforme se viu, o estabelecimento de parcerias com outras instituições é uma maneira de dar resposta a este desafio, ao aportar novos e sólidos conhecimentos sobre um património muitas vezes desenraizado. Esta política cria assim um polo sempre atrativo para um público curioso dos saberes-fazer antigos, das diversas formas de expressão que esses engendraram (as exposições testemunham a riqueza dos diferentes campos artísticos) e também dos meios científicos que potenciam a compreensão tanto dos mecanismos de criação como da decadência material que afecta as produções humanas.


5.3 Entre o decente e o “indecente”

No projecto delineado para os relevos miniaturais em estudo, este último aspecto ligado às grandes questões da conservação das obras de arte poderá ter um atendimento particular. Pelos dois ciclos da Paixão de Cristo e da Vida de S. Francisco terem tão estreitos vínculos, entende-se que um deles poderia ficar no estado em que chegou até nós, apresentado horizontalmente (e não verticalmente como seria de esperar), com os vidros desalinhados, o pó acumulado, os montantes das caixas disjuntos, uma ou outra estrutura de arames e guirlanda com flores vergadas sob o seu próprio peso. O estado de preservação de uma obra é sempre um dado relativo e altamente subjectivo, que somente pode ser avaliado qualitativa e quantitativamente com dados mensuráveis, claramente repertoriados. Contudo, o confronto visual imediato entre obras semelhantes mas cujo estado é díspar (um ciclo bem conservado, o outro não), pode esclarecer melhor que mil palavras as consequências desastrosas que tiveram certos desmembramentos perpetrados em obras de arte sacro no contexto histórico português. Este tipo de abordagem, em que se assume expor obras num estado “indecente” é sem dúvida pouco frequente. O enquadramento museológico tende antes em privilegiar as componentes autorais e artísticas das obras. Por isso, procura-se antes garantir a melhor leitura dos objectos patrimoniais que a das vicissitudes pelos quais passaram, sobretudo se as suas características tangíveis se ressentiram delas. Dar a ver a incúria ou ingerência humana como meios de sensibilização do público é um partido expositivo legítimo que pode ter uma dimensão didática muito valiosa. Juntamente com os resultados científicos capazes de despertar o interesse de qualquer pessoa pelo processo criador, entende-se que seria perfeitamente compatível promover também leituras diferentes das obras escolhidas para despertar no visitante uma verdadeira consciência do conceito de património. Os relevos miniaturais, em barro ou em cera, são altamente delicados e frágeis, o que induz à partida condições redobradas para a sua correcta salvaguarda. Procurar-se-á transmitir também estas noções, oportunas para questionar este ideal de perenidade para o qual tende a sociedade actual. Considerações Finais

As questões que levantam as áreas da conservação e do restauro têm especial relevância nesta reapropriação do património, pelo público, que o MNAA promove. Os desafios que colocam os altos-relevos em estudo têm muito que ver com o seu desmembramento e a sua perda de referência. Incitam, por isso, à reflexão sobre as possíveis estratégias de exposição e ferramentas de comunicação a adoptar, de modo a que o grande público possa inteirar-se, numa linguagem que lhe é acessível, do que se pôde resgatar do seu contexto histórico-artístico, das estruturas móveis / imóvel em que foram integrados, e dos processos científicos e tecnológicos utilizados que possibilitaram este processo cognitivo. A realização deste projecto de investigação


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e as possíveis resoluções das questões levantadas, permite evidenciar que a complexidade presente nas acções de investigar, produzir e disseminar o conhecimento no campo das Artes, pode ser melhor compreendida e superada quando se opta e se valoriza o trabalho integrado e interdisciplinar de distintos campos das Ciências Exactas, Sociais e Humanas, e da Conservação. Contactar os autores: kamymortari@gmail.com · anisiofranco@mnaa.dgpc.pt · alg@fct.unl.pt Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 128-141.

Remonatto, Camila; Franco, Anísio; Le Gac, Agnès (2013) “Miniaturas à luz das ciências.”

Referências · CABRAL, J. M. (2006). História breve dos pigmentos: das Artes da Idade Média. Química, Boletim da Sociedade Portuguesa de Química, 103, p. 33-44. Disponível em: «http://www.spq.pt/boletim/docs/boletimSPQ_103_033_09.pdf» Acesso em 29 abr. 2013 · LE GAC, A. A utilização de compostos à base de cera na escultura policromada dos séculos XVII e XVIII em Portugal. In Imagem Brasileira 3, Actas do III Congresso do Centro de Estudos da Imaginária Brasileira, São João del Rei, 29-31 Agosto 2003, Belo Horizonte – Minas Gerais: CEIB, 2006, p. 41-68. ·______., Madeira, T.I., Remonatto, C., Nogeira, I., Franco, A., Carvalho M.L. (2013). About two sets of Portuguese miniature high-reliefs. In Polychrome Sculpture: Decorative Practice and Artistic Tradition, Preprints of the 3rd SPAD (Sculpture, Polychromy and Architectural Decoration, ICOM-CC Working Group) Interim Meeting, 28-29 May 2013, Tomar, Instituto Superior Técnico – no prelo. · Obras de Conjunto, Boletim da Associação para o Desenvolvimento da Conservação e Restauro, Número especial, 10/11, Setembro 2001, Lisboa: ADCR. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2010). Sobre o Trilho da Cor: para uma rota dos pigmentos [23 Setembro — 28 Novembro 2010]. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2010). Esculturas de Género: Presépio e Naturalismo em Portugal. [10 Dezembro 2010 — 27 Fevereiro 2011]. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2011). Facciate Dipinte: Desenhos do palácio Milesi. [25 Março — 12 Junho 2011]. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2011). Esplendor Holandês: O «Retrato de Família» de Pieter de Grebber. [30 Junho — 11 Setembro 2011]. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2011). Viagens: Tesouro da Vidigueira. Lacas Namban e de outras paragens. [21 Setembro — 27 Novembro 2011]. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2011). Revelações: O presépio de santa Teresa de Carnide. [10 Dezembro 2011 — 26 Fevereiro 2012]. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2012). De Amicitia: 100 anos do grupo dos amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. [8 Março — 27 Maio 2012]. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2012). Jan Provoost: O tríptico de Nossa Senhora da misericórdia. [22 Junho -16 Setembro 2012]. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2012). Thesaurus: A ourivesaria sacra da Real Abadia de Alcobaça. [28 Setembro — 2 Dezembro 2012]. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2012). Do Mar e da Terra: Presépios Naturalistas — estudo e reabilitação. [8


Dezembro 2012 — 30 Março 2013]. · MNAA | Sala do Tecto Pintado, (2013). Ilusionismos: Os tetos pintados do palácio Alvor. [8 Abril - 26 Maio 2012]. Agradecimentos

Os autores agradecem: ao Professor Doutor António Pimentel, Director do Museu Nacional de Arte Antiga, pelo seu apoio incondicional; á Professora Catedrática, Doutora Maria Luísa de Carvalho, Coordenadora do Centro de Física Atómica da UL, pelo seu apoio e os meios disponibilizados; à Doutora Maria Isabel Marques Dias, do Instituto Tecnológico Nuclear da UL, e à Doutora Isabel Nogueira do Instituto Superior Técnico da UL, pela valiosa colaboração; à Doutora Teresa Madeira Amorim do Centro de Física Atómica da UL, pelo seu apoio científico. Camila Remonatto gostaria de agradecer a Fundação Amadeu Dias / Universidade de Lisboa pela bolsa concedida para o Projecto de Investigação: Estudo de um conjunto setecentista de altos-relevos miniaturais em barro cozido policromado (FAD-UL/2012-2013/05).


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Um debate sobre questões de guarda de obras de arte: o acervo da Família Oiticica

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A debate on the holding of works of art: the collection of the Family Oiticica

Carolina Martins Etcheverry Bolsista de Pós-Doutorado, Programa de Pós-Graduação em

Oiticica.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 142-148.

Etcheverry, Carolina Martins (2013) “Um debate sobre questões de guarda de obras de arte: o acervo da Família

Memória Social e Patrimônio Cultural, Universidade Federal de Pelotas

Resumo: Este artigo objetiva problematizar os acervos privados de obras de arte, a partir do estudo de caso do acervo dos Oiticica, incendiado em outubro de 2009, buscando trazer novas perspectivas ao debate. Uma parte do acervo ficava no Cento de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, a salvo, portanto, do incêndio. Igualmente, as fotografias de José Oiticica Filho haviam sido digitalizadas em alta definição, possibilitando que o pesquisador interessado tenha a possibilidade de visualizá-las, ainda que não em sua materialidade original. Palavras-chave: Acervo. Patrimônio Cultural. Memória Social

Abstract: This article aims to discuss the private collections of works of art, from the case study of the collection of the Oiticica’s, which caught fire in October 2009, seeking to bring new perspectives to the debate. A part of the collection was in Center of Art Hélio Oiticica in Rio de Janeiro, safe therefore of the fire. Also, the photos of José Oiticica Filho had been scanned in high definition, allowing the researcher the opportunity to view them, though not in its original materiality. Keywords: Collection. Cultural Heritage. Social Memory Introdução

Em outubro de 2009, a casa do arquiteto César Oiticica pegou fogo. Seria uma informação banal, não fosse ele filho do engenheiro e fotógrafo José Oiticica Filho (19061964) e irmão do artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980), e guardar em sua casa as principais obras de seu pai e de seu irmão. Na época, estimou-se que cerca de 1.500 trabalhos de Hélio Oiticica (artista fundamental do movimento neoconcretista brasileiro) tenham se perdido. Originais de José Oiticica Filho, fotógrafo amador integrante do movimento fotoclubista brasileiro, importante por suas experimentações em fotografia, também foram perdidos no incêndio. A perda para a história da arte é irremediável. Funcionários do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) auxiliaram na tentativa de recuperação do acervo, danificado tanto pelo fogo quanto pela água utilizada para apagá-lo.


Algum tempo depois, o Ministério da Cultura, através do então ministro Juca Ferreira, anunciou a recuperação de algumas das principais obras de Hélio Oiticica, como os Metaesquemas, por exemplo. O mesmo não aconteceu com os originais fotográficos de seu pai... Sabe-se que a família tomava precauções para que essa tragédia fosse evitada. Desumidificadores, rede elétrica em bom estado e visitas de especialistas garantiam que o acervo, que não contava com seguro, se mantivesse em perfeito estado. No entanto, o incêndio não pôde ser evitado. A discussão levantada pela mídia, na época, versou sobre a falta de estrutura do acervo, que, de grande valor como patrimônio cultural, deveria estar alocado em um museu de grande porte.

Fig. 1 - Incêndio no acervo da família Oiticica. Fonte: Gustavo Stephan/Ag. O Globo

Está descrita acima a situação a partir da qual propomos este diálogo. Como podemos pensar a respeito da conservação de acervos de obras de arte, para que tragédias como a que aconteceu com o acervo dos Oiticica não se repita? Uma solução a ser discutida é a relação entre os herdeiros (ou colecionadores), o Estado e a iniciativa privada, mas o debate está longe de estar encerrado. Para esta pesquisa, que ainda está em andamento, foram utilizadas como fontes principais reportagens de jornal publicadas à época do incêndio, a fim de absorver o debate produzido então. A partir desta primeira aproximação, a reflexão sobre o problema proposto acima foi realizada com base em bibliografia sobre o tema de políticas culturais no Brasil. O adensamento do debate, com a apresentação de propostas sobre a gestão de tais acervos, é apresentada na conclusão deste artigo. O texto foi estruturado do seguinte modo: em um primeiro momento há uma avaliação de outros casos de acervos particulares em risco no Brasil e das conseqüências do descaso em relação a eles, para, então, partir para a análise das políticas públicas existentes no país, que poderiam dar suporte a esses acervos. Por fim, apresentamos dois casos positivos de conservação e divulgação de obras de arte no Brasil: a Fundação Iberê Camargo e a plataforma digital Itaú Cultural.


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1. Sobre os acervos privados

A estimativa é de que no Brasil haja muitos acervos particulares nas mãos de artistas, colecionadores ou herdeiros, sem condições de garantir a sua conservação. Não existem números precisos, no entanto, e histórias surgem a todo o momento. O acervo do escultor Franz Weissmann (1911-1995) é um exemplo de acervos familiares em péssimo estado de conservação. Seu acervo fica guardado em um galpão da região de Ramos, uma zona conturbada no Rio de Janeiro. Lá, sujeito a goteiras, cupins, tiros, assaltos e outros tipos de danos, estão as esculturas de Weissmann. Outro exemplo: em agosto de 2012, o apartamento do colecionador de artes romeno, Jean Boghici, incendiou no Rio de Janeiro. Ali foram perdidas telas importantes de artistas sul-americanos, como Di Cavalcanti e Guignard. A crítica cultural Suely Rolnik escreveu, à época do incêndio no acervo dos Oiticica, sobre o “descaso pelo valor histórico e patrimonial da arte e da sua potência crítica” (ROLNIK, 2009). De acordo com a autora: O alcance de tal problemática ultrapassa o terreno específico da arte e diz respeito à fragilidade da vida pensante no Continente. Se esta fragilidade tem sua origem na própria história colonial do País, ela se agrava com a brutal interrupção que a vida pensante sofreu por parte do terrorismo de Estado que tomou conta da região nos anos 1960-70 (o que inclui as ditaduras, mas não se reduz a elas). Como acontece com todo trauma coletivo desse porte, seus efeitos tóxicos perduram mesmo após a redemocratização: a força disruptiva da arte só começa a recuperar fôlego nos anos 1990. (ROLNIK, 2009)

Ainda segundo a autora, é com a retomada dos anos 1990 que o interesse pelos acervos, arquivos e fundos documentais relativos à produção artística começam a ser retomados. Segundo ela, o Ministério da Cultura, apesar de sua preocupação com o patrimônio histórico e cultural, ainda não dá a devida atenção aos arquivos de arte, no que o incêndio das obras de Hélio Oiticica pode servir positivamente. Rolnik afirma que “o incêndio do acervo de Oiticica produz efeitos à altura de sua obra: a tomada de consciência coletiva de que o patrimônio artístico não pode ser tratado como matéria supérflua na agenda política” (ROLNIK, 2009). Devemos pensar, portanto, quais são as políticas públicas brasileiras em relação à preservação de acervos de arte no país, assim como quais são as iniciativas que devem ser tomadas como exemplo pelo Estado. 2. Políticas públicas brasileiras

Não há, no Brasil, uma política de aquisição de obras de arte. Essa ausência faz com que muitos museus operem a partir de contratos de comodato, através dos quais ficam com as obras de arte por um determinado período, com a contrapartida de


conservá-las e divulgá-las. Grandes museus como o MAM fazem uso desse dispositivo, na impossibilidade de comprar obras de grandes artistas para suas coleções. Vale lembrar que os dois principais museus brasileiros (o MAM-SP e o Masp) foram criados pela iniciativa privada, nos anos 1940... O que muitos herdeiros reclamam é da falta de incentivo do governo para conseguirem editais em leis de incentivo à cultura. Algumas famílias gostariam de ver as obras de seus parentes catalogadas, conservadas e disponibilizadas ao público, mas dependem de conseguir verba através dos variados editais de leis de incentivo à cultura existentes hoje em dia. Outras têm a sorte de ter a iniciativa privada interessada em seu acervo, como é o caso do Instituto Moreira Salles, agora um dos maiores acervos privados do Brasil, que recebeu recentemente o acervo do cartunista Millôr Fernandes. Vale à pena, nesse ponto, fazer um parêntesis para falar sobre o Instituto Moreira Salles. Organização sem fins lucrativos fundada em 1990 por Walter Moreira Salles, então um dos donos do Unibanco, tem por função exclusiva a promoção e o desenvolvimento de projetos culturais em quatro áreas: fotografia, música, literatura e artes visuais. Essas áreas também refletem a organização de seu vasto acervo. Importantes acervos pessoais, como o do escritor Érico Veríssimo, do fotógrafo Marc Ferrez, entre outras coleções importantes, encontram-se sob a guarda do Instituto Moreira Salles. A capacidade técnica de conservação e as iniciativas de divulgação ao público são alguns dos fatores que atraem os herdeiros a confiar nessa instituição. No caso de Hélio Oiticica e de José Oiticica Filho, há um impasse entre o Estado, na figura do Município do Rio de Janeiro, e os herdeiros. Em 1997, foi inaugurado o Centro de Arte Hélio Oiticica, extensão do Projeto Hélio Oiticica, instituição sem fins lucrativos responsável por gerir as obras dos artistas. O Projeto fez aliança com o Itaú Cultural para a digitalização das obras de Hélio Oiticica, que são documentos históricos diante da perda material dos originais. A Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro chegou a propor à família um contrato de comodato, para que as obras permanecessem no Centro de Arte Hélio Oiticica, mas não teve resultado positivo na negociação. No espaço aconteciam as exposições, mas a reserva técnica ficava na casa da família. Ou seja, há também o caso em que os entraves são colocados pelos próprios herdeiros, que, por exemplo, impedem que livros sobre os artistas sob sua custódia tenham ilustrações das obras em análise. O Estado, através de suas políticas públicas, privilegia a exposição e a catalogação de obras, mas não a formação de acervos. Os editais, como os da Funarte, contemplam a organização de exposições e o estímulo à produção artística e à crítica de arte. Já o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), criado em 1937, no governo de Getúlio Vargas, tem por objetivo a preservação do patrimônio nacional. Voltado à identificação, documentação, proteção e promoção do patrimônio cultural brasileiro, o IPHAN é mais voltado ao patrimônio histórico (prédios, cidades históricas, folclores), e não tanto às artes. O Programa Nacional de Incentivo à Cultura (Lei 8.313/91), ou, como é mais conhecida, Lei Rouanet, é uma lei de incentivo à cultura mediante incentivo fiscal. De


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acordo com Lia Calabre (2009:111), “a Lei Rouanet gerou um novo impulso às produções culturais, ainda que nos primeiros anos tivesse havido diversas dificuldades de implementação.” A lei vem desde então sendo incrementada. Em dezembro de 1999, o artigo 18 da Lei Rouanet foi alterado e “alguns segmentos artísticos passaram a contar com abatimento integral do investimento sobre o imposto de renda devido (CALABRE, 2009:117).” Entre eles, está a doação de acervos para museus, assim como treinamento de pessoal e aquisição de equipamentos para a manutenção de tais acervos. Na prática, a Lei Rouanet fez com que a decisão acerca dos projetos pertinentes passasse para as mãos do mercado – das empresas que efetivamente contribuem com os projetos – e tornasse a fase da captação de recursos a mais difícil de todo o processo. Ainda segundo Lia Calabre, O critério de aprovação dos projetos por parte do governo – que se limitava a verificar se os objetivos dos mesmos eram os previstos por lei – fez com que efetivamente o mercado decidisse em quais projetos deveria investir, quais renderiam a desejada imagem de marketing cultural. O que o governo terminou fazendo foi liberar recursos públicos para serem aplicados sob a ótica do interesse empresarial (CALABRE, 2009:117).

O que temos também, para além das políticas públicas, é a junção entre os herdeiros ou colecionadores, o Estado e a iniciativa privada, a fim de possibilitar a criação de espaços destinados a conservação e divulgação de obras de arte. É o caso, no Brasil, da Fundação Iberê Camargo, museu monográfico dedicado ao artista plástico gaúcho Iberê Camargo. A iniciativa privada também tem trabalhado em prol da preservação e da divulgação de obras de arte, como é o caso do Instituto Itaú Cultural e sua famosa Enciclopédia Itaú Cultural. 3. O caso da Fundação Iberê Camargo e o Itaú Cultural

Há casos muito positivos de conservação de obras de arte no Brasil. Dois exemplos são muito positivos: o da Fundação Iberê Camargo, criada em 2005, um ano após a morte do artista que dá nome à fundação e o Instituto Itaú Cultural, criado em 1987. O Instituto Itaú Cultural vem, desde sua criação em 1987, promovendo a divulgação das artes visuais no Brasil, a partir de projetos de digitalização de obras de arte e da Enciclopédia Itaú Cultural, na qual faz um mapeamento de artistas e movimentos artísticos no país. Além disso, existe desde 1997 o programa Rumos, destinado a fomentar a produção artística em várias áreas. Outra iniciativa interessante é o Observatório, destinado à reflexão política, gestão, economia e mercado cultural, disponibilizando online livros e artigos sobre o assunto. A Fundação Iberê Camargo é uma entidade privada destinada à catalogação, conservação e divulgação das obras do artista plástico gaúcho Iberê Camargo (1914-1994).


A fundação foi criada pela viúva do artista, que herdou suas obras. A decisão de criar uma nova sede para guardar o acervo foi encampada pela iniciativa privada, na figura do Grupo Gerdau. Em 2008 foi inaugurado o novo prédio da fundação, desenhado pelo arquiteto português Álvaro Siza. A fundação apresenta mostras freqüentes sobre os mais variados enfoques da obra de Iberê Camargo, sempre com um curador diferente, e, além disso, promove exposições de artistas renomados, como a de William Kentridge, em exposição até maio do corrente ano. A Fundação Iberê Camargo desenvolve, ainda, três projetos: (1) programa de bolsas para residências internacionais para artistas brasileiros, (2) a revitalização do ateliê de gravura de Iberê, a partir de artistas convidados a trabalhar o ateliê por uma semana e (3) a catalogação e pesquisa da obra de Iberê, feita em convênio com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, voltada para a recuperação da memória artística e documental do artista. João Vergara dos Santos (2008) estudou em sua dissertação de Mestrado diversas experiências de institucionalização de acervos privados de artistas plásticos, entre eles o de Iberê Camargo. Segundo ele, São iniciativas que oferecem ao público a oportunidade de conhecer as obras dos acervos pessoais desses artistas, e além disso tornar disponíveis informações, documentos referenciais e outras fontes para um maior aprofundamento da pesquisa artística e acadêmica (SANTOS, 2008: 20).

Para além da discussão entre os herdeiros do acervo e as diversas maneiras de promover o acesso a esse importante manancial de informações, Santos discute também as diversas formas através das quais é possível proceder ao processo de institucionalização dos acervos de artistas ainda em vida, como é o caso de seu pai, o artista Carlos Vergara. Essa seria uma das alternativas para a preservação dos acervos artísticos. Conclusão

Este artigo teve por objetivo, a partir de um caso concreto – o incêndio do acervo de Hélio Oiticica e de José Oiticica Filho – estabelecer um debate acerca da conservação e da divulgação dos acervos de arte no Brasil, muitos dos quais se encontram nas mãos de herdeiros ou de colecionadores particulares. Foram apresentados também outros casos de acervos que estão em estado de alerta, e buscou-se pensar, junto com os críticos que refletiram sobre o incêndio, qual o papel do patrimônio artístico dentro das políticas públicas nacionais. Em um segundo momento, procurou-se pensar sobre as políticas públicas brasileiras e quais os entraves para a formação de acervos de arte nos principais museus do país. A falta de verba para a aquisição de acervo, que depende, em grande parte, de doações ou de contratos de comodato, são um dos grandes problemas a serem apontados. Com isso, grandes coleções de artistas importantes acabam sendo encampados pela


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iniciativa privada, como é o caso do acervo constituído pelo Instituto Moreira Salles, que também trabalha com contratos de comodato, mas é procurado por famílias por ser considerado uma instituição de referência na conservação e divulgação de obras de arte. Toda essa reflexão faz com que seja possível levantar algumas questões a serem discutidas futuramente: (1) a necessidade de se revisitar os mecanismos públicos de incentivo à cultura, a fim de englobar também a formação de acervos de arte nos principais museu nacionais; (2) o levantamento das coleções de obras de arte nas mãos de herdeiros existentes no país; (3) a elaboração de planos de incorporação dessas obras em locais apropriados de conservação, a fim de que sua divulgação ao público se torne possível; (4) estudar modos para que os principais acervos e documentos permaneçam no país, não sendo comprados por instituições estrangeiras; (5) incentivar projetos de digitalização de arquivos de arte, como forma de preservação e de divulgação dos mesmos. Estes cinco itens, é claro, precisam ser amplamente refletidos, bem como outros podem a eles ser agregados, no sentido de proporcionar uma maior visibilidade aos acervos de arte ainda não institucionalizados, que estão nas mãos de herdeiros. Contactar a autora: etchev@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Referências · CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. · MIRANDA, André. Esperança-oiticica. Jornal O Globo, 21 out. 2009. · ROLNIK, Suely. Estado de alerta. Disponível em: <www.revistabrasileiros.com.br/2009/11/17/estado-de-alerta/> Acesso em 27 abr. 2013. · SANTOS, João Vergara dos. Sobre a formação e o acesso a acervos de arte contemporânea: o caso do ateliê Carlos Vergara. 2008. 90 f. Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais) – Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.


Arte, comunicação e vídeo documentário 1 Art, communication and documentary video

Cássia Moura Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: No limiar deste século XXI, tempo presente, não podemos negar o valor que assumem os públicos para os museus. O desafio que se impõe aos pesquisadores e profissionais é apresentarem propostas de investigação que permitam uma reflexão densa e complexa sobre as relações entre museus e públicos, comunicação e recursos audiovisuais. Palavras-chave: museus, arte, vídeo documentário

Abstract: At the beginning of this XXI century, present time, we can’t deny the value that audiences take to the museums. The challenge of the researchers and professionals is to submit research proposals to allow a deep and complex reflection about the relationship between museums and audiences, communication and audiovisual resources. Keywords: Museums. Art. Documentary video 1. Introdução Para o ICOM (1986), a função do museu “[…] não se limita em transmitir uma mensagem universal para uma audiência amorfa, mas deve centrar-se em colocar em contato a população local com a sua própria história, tradições e valores. Por meio dessas atividades, o museu contribui para que a comunidade tome consciência de sua própria identidade que, geralmente, havia sido escamoteada por razões de ordem histórica, social ou racial; ou que se havia provocado pela pressão de uma centralização ou pela urbanização.

Compreendemos os recursos audiovisuais2 como produtos culturais que podem atrair públicos diversos para os museus, instituições de deleite e fruição em uma sociedade que vive um contexto marcado pela dinâmica informativa e comunicacional, na qual há uma variedade de culturas, perspectivas e olhares sobre o mundo. Os espaços que elegemos para investigação e apresentação neste artigo se encontram em processo de constituição, tratam-se dos museus marítimos de base comunitária das Canárias e de Sesimbra; a primeira, uma comunidade que integra uma imensa rede de ilhas no delta do Rio Parnaíba, na região Meio Norte do Brasil, entre os estados do Piauí e do Maranhão; a segunda, Sesimbra, situada na Arrábida, Península de Setúbal, no Sul de Portugal. Atualmente, fazemos parte da equipe de profissionais de áreas diversas, que concebe e desenvolve os programas museológicos para os referidos museus. Selecionaram-se


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arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 149-158.

Moura, Cássia (2013) “Arte, comunicação e vídeo documentário.” Revista Vox Musei

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duas comunidades de pescadores, separadas pela Oceano Atlântico e unidas por uma cultura ancestral – a arte da pesca. Nas Canárias, existem preocupações recentes quanto ao registro e salvaguarda de memórias ancestrais, de saberes e fazeres ligados à pesca, à terra, ao rio, ao mar; mas revela-se um território com potencial para implantação de um museu de base comunitária; em Sesimbra, trabalha-se há mais de uma década no registro e salvaguarda de um rico e complexo patrimônio cultural e natural3; a comunidade está atenta ao direito à memória, aos modos de saber-fazer ligados à vida quotidiana da pesca artesanal. O que ocorre em Sesimbra, nos últimos dez anos, é um longo processo de sensibilização comunitária, além de se buscar a colaboração e a interação das pessoas do lugar com pesquisadores e instituições envolvidos na concepção e gestão do programa museológico do futuro Museu Marítimo de Sesimbra; dentre esses agentes institucionais estão a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e a Câmara Municipal do Conselho de Sesimbra. Canárias e Sesimbra têm experiências complexas e culturalmente situadas, estão unidas por um tempo presente cuja marca é a globalização, contexto no qual vivências e experiências locais são levadas à uniformização. O que se propõe neste artigo é apresentar uma investigação no campo da ciência dos museus — da Museologia: teorias, experiências, práticas e aplicações nos museus; a ciência museológica e sua projeção museográfica; adentrar os aspectos técnicos e socioculturais de instituições museísticas; em um amplo repertório de possibilidades e enfoques, opta-se por compreender o papel e a relevância que os públicos e os recursos audiovisuais, nomeadamente, os vídeos documentais, assumem nos museus. Las discusiones se centran a veces no sólo en el análisis y la definición científica de su objeto, objetivos y metodología (o en la existencia o no de un sistema específicamente museológico); no solamente en su capacidad para justificar o no la realidad cambiante del museo desde la vertiente de la museología tradicional, en contraposición con la nueva museología, y desde la perspectiva de adecuarse o no a las exigencias de esta sociedad finisecular y posindustrial de nuestros días, etc. Se mueve a veces este debate en el terreno incluso de las condicciones que surgen todavía de la diversa interpretación y terminología usadas por diferentes especialistas en temas prioritarios como es la definición de museología e museografía que llegam a confundir. (FERNÁNDEZ, 1993:17)

Neste artigo, o vídeo documentário é compreendido como um produto cultural de valor significativo, atrativo para os públicos, revelador de funções sociais nas instituições museísticas, consideradas de deleite para a sociedade deste século, lugar praticado por pessoas que vivem em um contexto marcado pela dinâmica informativa e comunicacional, pela diversidade de culturas e perspectivas diversas de olhares sobre o mundo.


Assim, a nossa inserção na equipe de trabalho de museólogos das instituições de Canárias e de Sesimbra nos permite realizar uma investigação de natureza teórico-metodológica-prática, que contempla estudos no campo da Museologia, nomeadamente da Museografia Interativa; ao tempo em que permite realizar vídeos de natureza documental para cada um dos museus referidos, nos possibilitando efletir sobre os usos do audiovisual nos museus, sua fruição, função social, educativa, comunicacional; refletir sobre as concepções da equipe no que tange à Museografia Interativa, uma novidade relativamente recente no mundo dos museus, que demandam cada vez mais elementos interativos em suas instalações. Mas, [...] son todavía una exigua minoría los museos que se plantean la interactividad como un concepto global, casi como una actitud o una necesidad para las exposiciones y el tratamiento del patrimonio. Ocurre con la interactividad com ocurría antes con los audiovisuales. En efecto, en el último cuarto del siglo pasado, cuando las pantallas planas y los métodos de reproducción digital de imágenes eran una novedad, la actitud de la clase más rancia de los museólogos españoles se resistía a introducir pantallas y audiovisuales en los museos con el argumento de que ‘se estropen’. Este argumento, a menudo era en realidad una excusa que demostraba su incapacidad para assimilar los cambios que se estaban produciendo a su alrededor. El mundo cambiaba pero ellos no. (MESTRE; PIÑOL, 2010:16-17)

A pesquisa, apresentada neste artigo, ao contemplar conhecimentos que se cruzam, arte, vídeo, patrimônio e museus, nos permite realizar reflexões sobre conceitos, metodologias, estratégias, práticas de gestão ativa e interativa em museus de base comunitária, em populações e territórios ricos e complexos, habitados por pessoas que desejam pensar as suas relações com o meio ambiente e sua sustentabilidade. Esta investigação além de contemplar a análise de um corpus documental e bibliográfico no campo da Museologia Social, acompanhará e analisará a experiência de trabalho da equipe transdisciplinar em duas regiões emblemáticas nesse campo de estudos – Brasil e Portugal; além de nos permitir conhecer e analisar experiências de Museografia Interativa nesses países. Para análise e interpretação dos Programas Museológicos de vários museus de natureza marítima de base comunitária que existem no Brasil e em Portugal, utilizaremos referências conceituais e metodológicas da Museologia Interativa; a nossa inserção, estudos e investigação na equipe de trabalho dos museus de Canárias e Sesimbra servirão para sistematizar, interpretar e registrar em vídeo as histórias dessas comunidades, nomeadamente, a história da vida privada e quotidiana, as relações das pessoas com a cultura marítima. Esta investigação e inserção em uma equipe de trabalho transdisciplinar, que concebe e gerencia os programas museológicos, é o primeiro a ser realizado no Piauí, o que justifica a importância deste artigo e investigação como contributo para se refletir sobre a possibilidade de promoção de uma rede de museus de base


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comunitários no Brasil e no Piauí em particular; programas que sejam elaborados por profissionais com a participação comunitária. Nesses territórios, as memórias são presentificadas em saberes e modos de fazer tradicionais de uma cultura marítima brasileira e portuguesa, uma diversidade de patrimônios cultural e natural que permanecem e se alteram quotidianamente; memórias e histórias de homens e mulheres de faixas etárias diferentes, marcadas pela tradição cultural de um tempo presente, em rápida e constante transformação. Propormos a realizar vídeos documentais sobre os saberes, fazeres, lugares, modos de vida, não só como registros, mas como elementos importantes do patrimônio cultural e natural brasileiro e português, não apenas para apreciar, dar a ver, mas para democratizar o acesso a esses bens, ao uso sustentável para as gerações futuras e para a melhoria das condições de vida e de trabalho dessas comunidades. Este estudo, além de permitir o conhecimento de particularidades locais e regionais dessas comunidades, possibilitará o aprofundamento dos diálogos entre arte, patrimônio, museus e registros audiovisuais; entre públicos e museus; estudos sobre a Museografia Interativa, vez que se trata de uma investigação em museus de comunidades que mantém, em estágios diferenciados, conhecimentos seculares, herdados de uma oralidade ancestral. Os estudos que envolvem a Museologia e a Museografia Interativa são relativamente recentes e complexos no universo da academia, sobretudo, no Piauí. Há necessidade de formação e de capacitação de pesquisadores, interessados no ensino, pesquisa e produção de espaços para sensibilização, divulgação e formação de um público interessado nos patrimônios de suas localidades. 2. O ponto da situação

O objetivo geral do estudo é realizar investigação de natureza transdisciplinar e interventiva no campo da Museologia Social em duas comunidades de pescadores: Canárias, Brasil; Sesimbra, Portugal. Sabe-se que a fototografia, enquanto imagem fixa, é uma das bases fundamentais das tecnologias da informação e comunicação, dos audiovisuais, compreendidos como produtos artísticos e culturais. Não há dúvidas da importância que as artes criativas, dentre elas a fotografia e o vídeo, assumem na atualidade das instituições museais, consideradas centros de pesquisa, educação, entretenimento, fluição, deleite, sensibilização comunitária; nesse sentido, ao se considerar a imersão dessas casas de cultura em sentido lato em um mundo marcado pelo som e imagem não há como negar a necessidade de se desenvolver de forma criativa e interativa produtos audiovisuais para museus. Nos limites deste artigo, o que se propõe é apresentar uma investigação que contempla a realização de vídeos documentais, produtos artísticos, que podem atrair as diversas categorias de públicos em museus marítimos de base comunitários no Brasil e Portugal.


Propõe, assim, realizar dois vídeos documentários com registros e narrativas audiovisuais e fotográficas em duas comunidades de pescadores, a primeira, localizada na Ilha das Canárias, no Delta do Parnaíba, Piauí-Brasil; a segunda, localizada no Sul de Portugal, em Sesimbra. O objetivo é produzir registros documentais da cultura e do patrimônio ligado à pesca artesanal e tradicional, à construção de embarcações e artefatos da vida quotidiana dos pescadores dessas comunidades. Esses registros nos permitirão realizar dois documentários de natureza etnográficos sobre os modos de ser e viver nessas comunidades de pescadores. A concepção e criação das narrativas dos documentários estarão imersas em um jogo dinâmico e complexo que envolve técnica, realidade, ficção e liberdade poética, que nos permitirá, ao longo do trabalho, uma reflexão e interpretação da vida quotidiana daquelas pessoas. A proposta é realizar registros documentais que nos permitam descrever e avaliar as experiências no trabalho de campo e na realização de documentários para aqueles museus. Nos documentários, a câmara será valorizada como instrumento tecnológico que aproxima a figura humana e a paisagem natural das regiões, dos lugares de memória, oferecendo uma intimidade entre o espectador e as vivências quotidianas dos pescadores. Discutiremos, ao longo do trabalho, as experiências com as etapas das produções, construção da estrutura narrativa dos documentários, da pesquisa e dos registros produzidos; pretende-se, ainda, elaborar uma etnografia escrita para descrever e interpretar comportamentos, apresentar os resultados mais detalhados, densos do estudo etnográfico realizado para a produção dos documentários. O foco principal da investigação, que resultará na tese e documentários, não estará apenas em questões técnicas e estéticas que envolvem a realização de um documentário desta natureza, etnográfica e documental, mas em questões éticas, recepção e circulação dos documentários, analisar registros, linguagens e discursos como expressões históricas, artístico-culturais. Ao longo do trabalho, será construída uma etnografia escrita da pesquisa, desde a sua concepção, roteiro, direção, etc.; como as imagens foram pensadas e articuladas, a participação dos informantes, suas falas, fugas; as cenas, como algumas imagens, sons foram selecionados, capturados. Estaremos preocupados em discutir os elementos culturais e artísticos dos registros, como o real, a ficção e a etnoficção se articulam. A questão do outro e sua representação tornam-se também basilares; o nosso olhar a partir de nossos próprios valores, que delineiam escolhas, temas, abordagens, instrumentos, materiais, técnicas de montagem; as intenções e as táticas para alcançar o outro, tornar a sua existência visível dizível nos documentários e registros, que demarcam valores éticos; a preocupação com o outro e sua representação, com as suas manifestações e identidades culturais. Essas são algumas questões que nos desnudam, revelam nossas posturas, quanto à seleção, gravação e montagem dos documentários; roteirizados, montados, exibidos, recebidos, demarcando o que representamos e o que vemos; questões que


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revelam encruzilhadas impressas no argumento, estilo, verossimilhança, realismo dos registros. Sabemos que o filme documentário não imita o real, mas representa uma experiência humana, a partir da inscrição do nosso olhar, marcado por posturas teóricas e metodológicas. Nossa experiência embasa e justifica a necessidade de um estudo desta natureza sobre o filme documentário e sua etnografia escrita, sobre os processos de criação, roteirização, direção, montagem, etc.; trabalho que envolve a produção histórica dos lugares, saberes, fazeres, pesquisas que indagam como as categorias memória e identidade se relacionam e nos permitem pensar e elaborar linguagens e investigar estéticas, conceitos e metodologias no campo da cultura imaterial e material, do patrimônio, das artes, dos museus e seus públicos. Em trabalhos anteriores, nos valemos da oralidade, da etnografia e do filme documentário, realizamos estudos e produzimos um rico acervo imagético, que agora nos serve como experiência. Na narrativa dos documentários privilegiaremos formas, cores, movimentos, dramatizações, teatralizações e diálogos mediados entre as pessoas e o meio humano e natural no qual estão imersas, para registrar e narrar suas histórias, que marcam seu quotidiano; histórias que definem, aprofundam e fortalecem os vínculos de indivíduos uns com os outros e com seus ancestrais; histórias de homens e mulheres, de diferentes faixas etárias, marcadas pela tradição de um tempo presente, em rápida e constante mutação. Na condição de documentarista e fotógrafa, que estuda possibilidades no contexto da museografia interativa, buscamos observar as pessoas, seus silêncios, gestos, rostos, movimento das mãos, olhares, de forma que nos permita perceber circunstâncias de saberes e fazeres, comunicar uma paisagem visual e sonora. Nos últimos anos, realizamos pesquisas de natureza histórico-etnográfica, que nos permitiram olhar a história, a etnografia, o filme e a fotografia documentais como possibilidades de observar teatralizações e diálogos imersos no universo da cultura brasileira e portuguesa. O trabalho de campo, a pesquisa documental, os processos criativos, técnicos e estéticos de montagem nos impõem desafios de método, sobretudo, no que tange à produção de conhecimento sobre o Outro. Como estabelecer um diálogo entre pesquisadores, produtores de bens culturais que registramos, capturamos, manipulamos, interpretamos? A procura é por compreender, antes de tudo, o que é o Outro, suas dúvidas, sentimentos, desejos, modos de ser e estar no mundo. Ao longo de vários anos de trabalho, vivenciamos experiências diferentes, formas e maneiras distintas, costumes e práticas múltiplas. O vídeo documentário nos fascina, nos sentimos atraídos por escrever com a câmera, por apurar e educar o nosso olhar, a observação participante, experimentar um mundo repleto de cores vibrantes — o mundo da arte, da cultura, dos museus. Diríamos, então — Eis um universo que nos fascina. As posturas teóricas e as opções metodológicas serão inquietações recorrentes na produção dos documentários que propomos. O convívio com as pessoas


nas comunidades nos permitirá compreender que não existem histórias sem sentido, mas que é preciso encontrá-las até mesmo onde os outros não as vêm. Estamos convictos da impossibilidade de repor a originalidade da realidade vivida e sentida no trabalho de campo, levando-se em consideração um conjunto de variáveis que a pesquisa eventualmente não dá conta, que a própria inscrição da cultura na temporalidade submete a mudanças. Usaremos a denominação vídeo documentário como forma de linguagem que fornece possibilidades de acesso ao conhecimento sobre o Outro. Somos viajantes, buscamos outros mundos, vivências e culturas. Como viajantes registraremos, tomaremos notas, refletiremos e narraremos o que vemos, inscrevendo o nosso olhar dentro de um universo de olhares possíveis. Dentre os produtos audiovisuais recorrentes em propostas de investigação e intervenção para os museus podem ser citados os catálogos temáticos digitais, os vídeos documentais, os jogos, as plataformas de registro de testemunhos, as coleções de fotografias e de arte, cada vez mais elaborados de forma criativa, permitindo o acesso e a interação de um público mais atento, com possibilidades de acesso e familiarizado com as mais variadas formas de tecnologias de informação e comunicação. Portanto, os produtos audiovisuais, as imagens em movimento, os diversos medias, o vídeo documentário, a internet e suas plataformas podem ser instrumentos valiosos para atrair, sensibilizar, criar formas de interação entre museus e públicos; as casas das musas passam a ser entendidas não somente como lugar de transmissão da informação, mas de interação, de emissão de vozes múltiplas. Dentre os objetivos deste estudo está a criação de produtos audiovisuais — vídeos de natureza documental, de caráter informativo, comunicacional e interativo para os Museu Marítimo de Sesimbra, Portugal; e Museu Comunitário da Ilha das Canárias, litoral Meio Norte do Brasil. A formulação e a construção do objeto desta investigação partem dos contatos e aproximações entre fotografia, vídeo documentário e interatividade, que envolverão ficção e realidade, nos permitindo mostrar e refletir de uma forma não dicotômica, mas circular, de troca de sentidos, as relações entre arte, patrimônio, vídeo documentário, museus e públicos. O que se propõe não é somente uma investigação no campo da museologia e da museografia interativa, sobre os usos dos vídeos documentais nos museus, mais que isso, propõe-se realizar vídeos documentais como plataformas de informação e comunicação para os museus comunitários do Brasil e de Portugal, de forma que se permita mostrar uma experiência de investigação e intervenção no plano museológico de instituições em fase de constituição — Museus Marítimos de base comunitária em Sesimbra, Portugal, e Ilha das Canárias, no Delta do Rio Parnaíba, Piauí, Brasil. O que se apresenta é uma proposta de investigação associada à realização de dois vídeos documentais como recursos de informação e de comunicação, que permitam uma viagem no tempo do mundo, da vida quotidiana de pescadores de uma comunidade do Sul de Portugal e outra no Meio Norte do Brasil; trabalho que será possível


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por intergramos as equipes de constituição dos Museus de Sesimbra e da Ilha das Canárias, particularmente a equipe de design de comunicação e novos media, o que permitirá um exercício de produção de vídeos documentais para os museus referidos. Trata-se, portanto, de criar obras artísticas que têm como propósito serem apresentadas nos dois museus, para um público que busca conhecer as vivências, as experiências, os saberes, os fazeres ligados ao mar, ao mundo da pesca, à cultura marítima; portanto, produzir de forma interativa arte e vídeo documentário, criar aproximações, diversificar caminhos, perceber o vídeo documentário como meio de expressão artística, que permite uma maior acessibilidade e interatividade dos públicos que frequentam os museus. Portanto, vídeo documentário, arte, museus e públicos se revelam com mediações, interatividade, ida e volta entre mundos artísticos, espaciais e sensíveis; mundos em que tradição e modernidade se entrecruzam de forma criativa, permitindo inevitáveis e constantes trocas. Considerações Finais

O que tentamos mostrar foi que a circulação e trocas entre arte, vídeo documentário, patrimônio, museus e públicos se tornam inevitáveis na atualidade; o que nos faz pretender constantes trocas, nas quais criação, realidade e ficção dialoguem de forma quase imperceptível, onde estão presentes sensibilidades e afetos, inseparáveis no processo de criação, de reinvenção, que nos permite refletir sobre situação pessoal, subjetiva, interpretar vivências, partilhar de forma criativa e sensível o universo que envolve o homem e o mar, as comunidades, os criadores, apresentar os fatos de forma intelegível, sensível, criadora e interativa, de forma convidativa, em que os visitantes sintam-se sensibilizados com o vídeo documentário, sintam-se imersos no real de forma que lhes possibilite a reflexão, fluição, imaginação; onde o público possa mergular no universo que tem uma relação direta com a vida no mar e na terra. Ao tomarmos como referência a bibliografia especializada mais recente sobre Museologia, podemos afirmar que presenciamos, desde os anos 60 do século passado, o que se convencionou denominar de uma verdadeira revolução teórica e prática que tem lugar nos estudos das Ciências da Arte, do Patrimônio e da Museologia. Nesse percurso, percebe-se a lenta e gradual presença de planos para os museus que consideram aspectos ligados à uma Museografia de caráter interativo: La interactividad no es una novedad en el campo del conocimiento, del aprendizaje y de las relaciones humanas; pero sí lo es en el campo del museografía. Supone contemplar y tratar el museo con otros ojos; con los ojos de usuarios a quienes les gusta participar en las cosas y aprender. (MESTRE; PIÑOL, 2010:16)


Na década de 1970, na Declaração de Santiago (1972), já se defendia que a instituição museu deveria estar a serviço das populações, elemento indispensável na formação das comunidades, desempenhando, assim, a sua função social e política, servindo à sociedade, o que requer, obviamente, mudança de paradigmas, de mentalidade, de concepção ideológica dos profissionais, de especialistas neste campo de conhecimento. A Declaração de Caracas (1992), vinte anos depois, reafirmou o compromisso social dos museus. Hugues de Varine proclamava a necessidade de abertura dos museus ao meio, às interfaces com a sociedade, à participação das comunidades, o que requeria um repensar no campo epistemológico, metodológico, no campo profissional, no caráter interdiciplinar e no próprio conceito de patrimônio e museus. Contactar a autora: cassia.moura@gmail.com Artigo submetido em 30 de abril e aprovado em 15 de maio de 2013

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CENTRO CULTURAL BERNARDO MASCARENHAS: de ícone industrial a Espaço de Cultura CULTURAL CENTER BERNARDO MASCARENHAS: from an industrial icon to a Cultural Space Center

Cláudia Matos Pereira Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA-UFRJ)

Resumo: O objetivo deste artigo é refletir sobre o contexto de transformação da desativada Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas, de Juiz de Fora, em Espaço Cultural. Pretende-se observar esta trajetória, por meio de relatos de artistas da família Bracher e intelectuais da cidade no movimento “Mascarenhas meu amor” para a preservação deste complexo arquitetônico, cujo espaço hoje abriga diversas manifestações artísticas e culturais da cidade e região. Palavras-chave: Imagem e cultura; Patrimônio Histórico; Arte brasileira; CCBM.

Abstract: The purpose of this article is to reflect on the context of the transformation of disabled Textile Company Bernardo Mascarenhas, Juiz de Fora, in a Cultural Space. We intent to observe this trajectory through the artists from Bracher’s family and intellectuals of the city in the movement “Mascarenhas my love” for the preservation of this architectural complex, whose space today, hosts several artistic and cultural manifestations from the city and region. Keywords: Image and Culture; Historic Patrimony; Brazilian Art; CCBM Introdução

Olhar para uma cidade pode trazer um prazer especial, segundo Lynch (1997:5), por mais comum que possa ser o panorama observado. Poderá expressar a circulação, os usos principais do espaço urbano, pontos focais, como também, as esperanças, anseios, senso comunitário, ambientações e relações repletas de significados construídos pelos indivíduos, que passam a refletir uma identidade, valores culturais e “a torna um verdadeiro lugar, notável e inconfundível.” (LYNCH, 1997:102) A cidade é vista por Argan como epifania, fenomenização, espaço urbano que também é espaço de produção de objetos – produtos que resultam de uma techné similar ao processo de realização de uma obra de arte (ARGAN, 2005: 1-45). Há uma cidade ideal enquanto módulo: vai muito mais além que um mero modelo – transcende. O espaço urbano representa a situação, a circunstância de quem age: o imaginário e a projeção de seu ideário. Para tal, este artigo coloca um holofote sobre uma fábrica têxtil em Juiz de Fora e busca trazer a memória de alguns atores sociais que estiveram presentes na composição de uma ação conjunta – um movimento coletivo.


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Para Fijalkow, a cidade pode ser comparada a uma máquina ou organismo vivo, ao exprimir a idéia de um sistema organizado, cuja estrutura global é formada pelas partes que se interagem e se influenciam, mediante funções específicas, rotinas e percursos que envolvem hábitos, moradia, trabalho e lazer. São os elementos, os vestígios, de uma cidade que a definem como um produto social (FIJALKOW, 2002:13). Halbwachs sugere que a sociologia participe da previsão das necessidades coletivas, essenciais para a síntese pluri-disciplinar urbana. A morfologia, os traços de uma cidade é que configuram as expressões de seus grupos sociais. Assim, quando em uma sociedade que se transformou subsistem vestígios do que pri-

de Cultura.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 159-172.

Pereira, Cláudia Matos (2013) “Centro Cultural Bernardo Mascarenhas: de ícone industrial a Espaço

mitivamente foi, os que a conheceram em seu estado primeiro também podem fixar sua atenção nos vestígios antigos que lhe proporcionam o acesso a um outro tempo e um outro passado. (HALBWACHS, 2006:152)

Falar de memória coletiva transcende ao próprio conceito quando se expande o horizonte para o sentido mais universal ligado ao homem enquanto ser biopsicossocial-cultural. A ‘carga genética vivencial’ eticamente partilha a consciência de que o patrimônio e a memória social, os resquícios, produtos, rastros, indícios simbólicos, fazem parte do universo, contexto e história humana: pertencem à sua verdade — à sua condição intrínseca de ser-no-mundo. Ser cidadão. Pode-se dizer que na questão do Patrimônio Cultural há uma combinação perfeita entre a ética e a poética. Assim, os princípios que unem os valores humanos à responsabilidade social e histórica são permeados pelos olhares daqueles cuja sensibilidade provém de uma alma de artista. Neste artigo serão evidenciados alguns relatos e depoimentos de artistas da família Bracher, que partilharam juntamente com inúmeras personalidades da cidade do movimento “Mascarenhas meu amor” – que tornou possível a preservação e transformação deste espaço industrial em Espaço Cultural. Faz-se necessário conhecer um pouco da história local que abrigou este empreendimento. 1. Juiz de Fora – breve contexto histórico

A gênese da cidade mescla-se ao desenrolar da construção de uma estrada que vem a constituir, na época, um grande avanço econômico para as principais províncias brasileiras da região. Segundo Pereira (2011), “Juiz de Fora confirma o provérbio latino: as águas fundam as cidades.” Em 1850, o vilarejo às margens do Paraibuna alcança o status de Município. A cidade nasce destinada a ser polêmica: “está situada em Minas Gerais e para muitos, não é mineira.” Constrói a primeira usina hidrelétrica da América Latina, é servida pela primeira rodovia aberta no país, a Rio-Juiz de Fora, abriga boa parte dos primeiros capitães de indústria têxtil. Entretanto, contraditoriamente, permanece provinciana e recatada como fiel testemunha da tradicional família mineira (PEREIRA, 2011: 1560).


Situada na Zona da Mata Mineira possui outras características: ficou à margem da dinâmica do ciclo da mineração. Fazia parte da condição geográfica estabelecida pela bacia do rio Paraíba do Sul; só a partir do início do século XVII, passou a funcionar como ponto de partida das bandeiras e passagem obrigatória para o território de Minas. “Com a abertura do então ‘Caminho Novo’, esta região foi parcelada e apropriada pelo sistema de concessão de terras através de sesmarias”. Juiz de Fora foi efetivamente ocupada na segunda década do século XIX, período em que as minas, em seu processo de exploração, se apresentavam em fase de esgotamento, segundo Passaglia (1982:21). Surge então um caminho significativo por onde iriam fluir atividades produtivas e econômicas. “Santo Antonio do Paraibuna, que se chamou Juiz de Fora a partir de 1865, núcleo principal do Caminho Novo, beneficia-se igualmente desse fluxo de mercadorias para o Rio” (WERKEMA, 2010:189). A região conhecida então como – Mata Mineira – polarizou-se por meio de rotas vicinais como ligação entre a sede do Império à Ouro Preto e, neste eixo, crescia a Juiz de Fora: ávida por usufruir da vida cultural propícia do Rio de Janeiro — centro de grande expressão. Houve a necessidade de se abrir caminhos e desenvolver transportes que facilitassem e permitissem o acesso e a organização de um crescimento sócio-econômico para a região (PASSAGLIA, 1982:22). No período ainda da década de 1850, inicia-se a construção da estrada União Indústria, cuja iniciativa parte de Mariano Procópio Ferreira Lage – inaugurada a 23 de junho de 1861. A viagem torna-se mais curta entre a Província de Minas e a Corte, ao facilitar o fluxo da produção cafeeira. A imigração alemã se faz marcante na cidade naquele momento. Passaglia (1982: 22-23) afirma que a construção da Estrada União Indústria foi uma das iniciativas de modernização da vida econômica brasileira, em uma fase onde a ferrovia era um meio de transporte, cujos investimentos e mão de obra exigiam demandas a médio e a longo prazos. Bastos (1973:28) declara ser notória a importância desta primeira via para transporte rodoviário que se construiu no Brasil, conforme os recursos técnicos disponíveis na época. Juiz de Fora se ligava a Petrópolis a 144 km de distância, sendo 96 km no Estado do Rio e 48 km no Estado de Minas Gerais. Vale ressaltar que naquela época Rio e Minas eram ainda Províncias. Não se pode deixar de ressaltar o ilustre jovem empreendedor Bernardo Mascarenhas, um visionário – que em 1888, já incorporara a indústria Tecelagem Mascarenhas à economia de Juiz de Fora. Ele enfrentou inúmeras dificuldades, inclusive acusações de colocar em risco a vida das pessoas. Foi necessário recorrer à imprensa em prol de sua defesa. Imensurável – a contribuição ao progresso do Estado e do país: “aqui instalou a primeira usina hidrelétrica da América Latina e fez com que a pacata Juiz de Fora substituísse os lampiões de gás pela iluminação elétrica, antes mesmo que a velha Europa” (MUSSE, 2008: 85). A primeira experimentação com a iluminação pública na cidade ocorre a 22 de agosto de 1889: motivo de grande festa para a multidão. Cinco dias após, a Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas utiliza a eletricidade como força motriz. Este é um marco para a industrialização na cidade e região.


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2. Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas

Os dados históricos mencionados sobre a Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas, a seguir, são coletados do relatório realizado pelo filho de Bernardo Mascarenhas, Enéas Guimarães Mascarenhas. Bernardo Mascarenhas deslocou-se para Juiz de Fora em 1887 e em 14 de maio de 1888, inaugurou as primeiras instalações da indústria têxtil (figura 1), com 60 teares do fabricante inglês George Hogson e máquinas de preparação da Robert Hall & Sons. A produção consistia em: zeferis, brins de algodão e linho, além de tecidos cujos fios eram importados da Inglaterra. A qualidade e bom gosto das padronagens trouxeram fama e grande prosperidade a esta fábrica. Com o crescimento das atividades, houve a necessidade de ampliação das instalações e remodelagem do edifício, conforme o projeto do arquiteto L. Sue. Novas máquinas foram instaladas à medida em a produção e os negócios expandiam (PASSAGLIA, 1982: 44-45).

Fig. 1- Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas (arquivo Marcelo Lemes). Fonte: http://www.mariadoresguardo.com.br/2010/03/av-getulio-vargas-fabrica-bernardo.html

Um momento relevante tem início a 27 de agosto de 1898, com a utilização da força motriz – assim, inaugura-se “o veterano dos motores elétricos do Brasil”, o motor elétrico Westhinghouse de 30 HP (PASSAGLIA, 1982: 45). Segundo dados da Prefeitura, a fábrica Mascarenhas foi pioneira ao instalar música ambiente em suas instalações, em 1932. No período de sua inauguração, os jornais e revistas do país destacaram o empreendimento, especialmente pelas características arquitetônicas do prédio, sendo referência da fase de industrialização mineira do início do século XX. A Companhia Têxtil encerrou suas atividades a 14 de janeiro de 1984, devido às diversas circunstâncias econômicas e tecnológicas. Seu patrimônio, que compreendia um terreno de 10.450 m2 e a área coberta de aproximadamente 7000 m2, foi utilizado para pagamento de dívidas ao Estado de Minas Gerais e à União. A fábrica Bernardo Mascarenhas situada em um ponto estratégico na Avenida Getúlio Vargas faz parte das raízes de Juiz de Fora, como também é paisagem afetiva para os juiz-foranos. Há um diálogo visual com o espaço urbano de forma silenciosa. O cidadão se sente parte da cidade e parte de sua história. Há o sentimento de identidade e pertença. Custódio (1995) complementa:


Com a valorização cultural do património industrial inicia-se um profícuo diálogo entre a técnica, a indústria, a história, a arqueologia e a cultura, cuja interacção dialéctica contribui para um aprofundamento das raízes e das memórias técnicas e sociais da industrialização (CUSTÓDIO, 1995).

O centro de Juiz de Fora é o coração da cidade: suas ruas e galerias entre as Avenidas Rio Branco, Getúlio Vargas e Itamar Franco (antiga Avenida Independência), guardam as sementes do trabalho e pioneirismo que a originaram. A história da cidade se entrelaça à história da indústria. Por este motivo, assim era chamada: a Manchester Mineira. Para ler uma cidade, deve-se olhar para sua cultura. 3. O olhar se desloca da dimensão industrial para a dimensão cultural

O autor Amado Mendes (2012) ressalta a importância de se estudar um ‘novo território’ para o que se denominava como patrimônio industrial, cujos valores, deslocavam- se para novas funcionalidades, que fizeram emergir a partir das décadas de 1980, o caráter museológico de forma inovadora. A exemplo do verificado no século XIX, quando fábricas foram instaladas em antigos conventos e mosteiros desactivados – na seqüência da extinção das ordens religiosas, em 1834 —, também a partir de meados do século XX a desindustrialização, nuns casos, e a modernização de tecnologia e estruturas, noutros, deixaram vagos numerosos edifícios, susceptíveis de reutilização para novos fins (MENDES, 2012:3).

Certas indústrias são propícias a abrigar grandes mostras, pela amplitude e imponência arquitetônica. Tornam-se museus ou espaços culturais, como por exemplo, a Tate Modern de Londres, que era uma antiga central elétrica às margens do rio Tamisa, desativada em 1981 e reaberta em maio de 2000, como museu promovendo exposições atrativas de arte moderna e contemporânea. Em Portugal, segundo Mendes (2012: 3) são muitos os exemplos de antigas instalações industriais ou afins que, após serem desativadas, passam a exercer novas funções ao preservar a essência do passado e da história, destacando-se a museologia, que vem a reforçar os valores da memória e do patrimônio. Ele cita então: A Central Hidroelétrica de Santa Rita, Fafe (museu vivo, com turbinas hidráulicas ainda a funcionar), Museu do Carro Elétrico em Porto, Museu da Água Manuel da Maia, em Lisboa (Estação Elevatória a Vapor dos Barbadinhos), Museu do Fado (na Estação Elevatória da Praia), Museu do Oriente (nos Armazéns Frigoríficos do Bacalhau de Alcântara). Inúmeros são os exemplos que poderiam ser citados em diversas cidades pelo mundo, pois esta conscientização se espalhou de forma exponencial.


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No Brasil, uma indústria em São Paulo se destaca por seu projeto arrojado dentro desta perspectiva da preservação e cultura: a antiga fábrica de tambores Pompeia. Conforme Ferraz (2008), a recente inauguração na França, do Centro Georges Pompidou – Beaubourg em 1977, “modelo extravagante de arquitetura, causava frisson nos estudantes e jovens arquitetos, e logo se tornaria referência.” Este fato coincide com o início do projeto de reabilitação da fábrica Pompeia na capital paulista, mas se difere do que se tornara o projeto da arquiteta Lina Bo Bardi e sua equipe, na reabilitação da fábrica, durante os anos de 1977 a 1986. Estas duas propostas eram muito distantes e dessemelhantes em suas origens, seu ideário e seus resultados (FERRAZ, 2008). Os vestígios das paredes, pisos, telhados, estruturas, foram mantidos de forma perceptível aos olhos desarmados e interessados dos freqüentadores, que puderam partilhar da linguagem visual e da textura espacial própria da visão daqueles que primaram pela memória, como testemunho do trabalho humano, ao ressaltar o aspecto fabril e industrial do conjunto arquitetônico. A unidade do Serviço Social do Comércio — SESC Pompeia — torna-se um centro de cultura e lazer em São Paulo, que reúne teatros, quadras esportivas, piscina, lanchonete, restaurante, espaços de exposições, choperia, oficinas e internet livre, entre outros serviços. É interessante observar que o calor da emoção na luta pela revitalização dos espaços urbanos e industriais ocorre em sintonia e com certa sincronicidade, em diversos países — com inúmeros exemplos que não cabe aqui relatar, atravessa as décadas de 1960, 1970, se estende aos anos de 1980 até o momento atual. No mesmo período de movimentação da fábrica Pompéia havia, em Juiz de Fora, a luta pela antiga fábrica Mascarenhas. Em 1982 foi inaugurada a primeira etapa do SESC Pompéia e o bloco esportivo inaugurado em 1986. Já em Juiz de Fora, a fábrica têxtil Mascarenhas transformou-se em Espaço de Cultura em 1987. A luta pela preservação do patrimônio começa a ganhar vez e voz. No Brasil o debate sobre a política municipal do patrimônio cultural ganha ênfase na década de 1980, período em que o país passa pelo processo de redemocratização. A temática atinge o seu ápice quando em 1988 é promulgada a nova Constituição no país. O artigo 216 estabelece dentre outras prioridades, a função social da propriedade urbana. Inicia-se uma política mais participativa em relação à cultura e ao patrimônio, até pela própria atmosfera perceptível, na nova formatação democrática que se elaborava no país ao final dos anos de 1970 e início de 1980. Os municípios começam a atuar neste sentido. A discussão inicial sobre o patrimônio cultural em Juiz de Fora ocorre efetivamente após a demolição do Colégio Stella Matutina em 1978. Este foi o fator crucial que chocou parte da população e despertou a consciência de alguns para que medidas de proteção fossem tomadas em relação a outros imóveis (PASSAGLIA, 1982: 18). Na década de 1970, houve no país também uma campanha maciça de preservação promovida pela Fundação Roberto Marinho, através da Rede Globo, com veiculação diária pela televisão como uma forma de ‘unidade’ nacional, que veio a atingir mais de cinqüenta milhões de brasileiros (Azevedo, 2012: 36). Dois eventos


marcam a trajetória da política oficial do patrimônio cultural de Juiz de Fora: a realização da “Primeira Semana de História de Juiz de Fora” em 1979, em que em uma mesa de debate se encontravam o arquiteto e artista plástico Décio Bracher e o arquiteto Luiz Alberto Passaglia e em 1980, a inauguração da exposição “Juiz de Fora – Ontem. Aspectos físico, humano e social,” organizada pela pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal de Juiz de Fora — UFJF. Nos debates e embates, prevalecia a idéia do bem cultural, sua valorização e preservação (AZEVEDO, 2012: 37-38). A Prefeitura percebeu a necessidade de criar um departamento para tratar destas questões – IPPLAN – Instituto de Planejamento e Pesquisa e, para coordenar a implementação da política de patrimônio na cidade, foi convidado o arquiteto Luiz Alberto Passaglia, que já mantinha, na cidade desde a sua chegada, a amizade com a família de artistas: os Bracher. Eles já partilhavam dos mesmos ideais de preservação e a visão cultural e humanística do patrimônio. Passaglia (1982: 20) relata que nos dois últimos anos da administração do Prefeito Mello Reis, (período de 1977-1982), se destaca em 1981, a finalização do trabalho de levantamento e identificação dos bens culturais, denominado como — pré-inventário de Juiz de Fora – contando com cerca de 550 imóveis. O fato mais relevante neste processo e que deu origem legal aos anseios da população foi a Lei Municipal nº 6.108, de 13 de janeiro de 1982: primeira norma a reger a proteção do patrimônio cultural do Município de Juiz de Fora. Quatro instrumentos importantes resultam desta norma: a implementação do tombamento como instrumento de proteção; a isenção de impostos como incentivo aos proprietários de bens tombados; a criação da Comissão Técnico-Permanente Cultural (CTPC) como órgão consultivo para formação de diretrizes; e a criação do Conselho Consultivo de Proteção ao Patrimônio Cultural como órgão de consulta de Poder Executivo (Azevedo, 2012:38). Em 1982, o conjunto arquitetônico da Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas foi tombado. No ano de 1983 inicia-se a gestão do Prefeito Tarcísio Delgado e a formação do CPTC conta com sete membros relevantes da vida cultural e intelectual da cidade: o novo diretor do IPPLAN Custódio Antônio de Mattos, Luis Alberto Passaglia, a artista plástica Nívea Bracher, a romancista e memorialista Rachel Jardim, o historiador e professor Reginaldo Braga Arcuri, o advogado Paulo Roberto de Gouvêa Medina e a arquiteta Inês Giffoni Passaglia. As reuniões ocorreram de forma esparsa, mas foram importantes para a definição de diretrizes e representativas, no tocante aos dilemas apresentados na luta pela preservação. Alguns êxitos vieram ocorrendo desde então, em meio a algumas perdas, como a demolição da Casa do Bispo em 1986. Em 25 de fevereiro de 1988, foi promulgada a Lei nº 7.282, que substitui a lei anterior de proteção ao patrimônio cultural no Município de Juiz de Fora. Em julho de 2004 é publicada uma nova Lei, a de nº 10.777, que dispõe sobre a proteção do patrimônio cultural da cidade, tendo como principal, o órgão Conselho Municipal de preservação do Patrimônio Cultural (COMPAC), que se vincula à Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA), encarregada da política cultural do Município. Os desafios são imensos e as polêmicas permanecem. A cidade assiste recentemente,


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em 2005, a demolição do Colégio Magister. Lamentável. A consciência cultural e o idealismo também permanecem nadando contra a correnteza dos outros interesses. A Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage – FUNALFA é mais um aspecto que reforça o pioneirismo juiz-forano. Instituída através da lei 5.471, em 1978, passa a ser a primeira fundação municipal responsável por cultura no Estado de Minas Gerais e inicia as suas atividades em 1979. Segundo dados da Prefeitura local, a trajetória da fundação incorpora ações como a recuperação da Bernardo Mascarenhas, na década de 1990, cria a Lei Municipal de Incentivo à Cultura — a Lei Murilo Mendes — relevante instrumento de incentivo a projetos de artistas e produtores locais. Neste período restaura e reabre ao público o Cine-Theatro Central, a mais nobre casa de espetáculos da cidade, construída em 1929 e que hoje pertence à Universidade Federal de Juiz de Fora. A FUNALFA administra a Biblioteca Municipal Murilo Mendes, o Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, o Museu Ferroviário e o Anfiteatro João Carriço, além de secretarias os Conselhos ligados à cultura e ao patrimônio CONCULT e COMPPAC. Diante de todas as ações, uma força parece invisível – atrás dos bastidores da cena: a força do grupo. 4. A visão dos irmãos Bracher

Décio Bracher, além de ser arquiteto, possuía o hábito de retratar em suas telas, edifícios que seriam posteriormente demolidos, como também pintava a cena durante o processo de demolição. Assim, ele poderia ser chamado, como dizem na família: ‘pintor das demolições’ (PEREIRA, 2012: 50-51). Em tantas outras telas, realizou pinturas da Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro, do Palácio Monroe, também demolido. Seu sentimento era de denúncia. Ambos os irmãos, artistas plásticos, Décio e Nívea Bracher caminharam nesta trajetória de conscientização em benefício da preservação. Segundo Décio, aquilo que somos é o somatório de todas as nossas influências e “cada um é um quadro com pinceladas de diferentes pessoas” (PEREIRA, 2012: 53). Segundo Nívea Bracher, “sensibilidade não se ensina.” Ela afirma que graças ao Décio, que possuía uma visão avançada para época, se desenvolveu na família um olhar amoroso em relação às construções ecléticas, e “ele foi o mentor de tudo isso, a luz de todos nós.” Ele ia contra a correnteza daqueles modernistas que viam, com maus olhos, as construções antigas (PEREIRA, 2012:55). Nívea Bracher afirma que seu irmão já lutava desde a década de 1950 pela preservação. Décio Bracher (2013) relata em depoimento, que no período em que o expresidente da República Itamar Franco era prefeito de Juiz de Fora, na década de 1970, ele foi à Belo Horizonte, junto com Aníbal Machado, pedir o tombamento da fábrica Bernardo Mascarenhas ao Governador de Minas Gerais. Foi orientado a retornar a Juiz de Fora e fazer um movimento junto à Prefeitura e aos empresários locais. Entretanto, Décio manteve-se cauteloso por um tempo, já que o prefeito Itamar Franco tinha uma empresa de engenharia em Vitória, a Itec, e demonstrava um perfil empreendedor na época.


Nos anos de 1969 e 1970, Nívea Bracher esteve morando em Paris como bolsista do governo francês. Neste período presenciou toda a turbulência em torno da polêmica demolição dos Les Halles. Ela vivenciou a angústia da população e paralelamente a conscientização da preservação da Estação Orsay, que veio depois a se tornar futuramente no Museé d’Orsay. Segundo Cogeval (2012: 24) havia naquela década uma comoção, um movimento em prol da criação de um museu do século XIX, principalmente pelo fato devastador que foi a destruição dos Halles, de Victor Baltard. Este foi um prenúncio do que poderia ocorrer a partir do florescimento da arquitetura moderna. O autor comenta que “apesar do escândalo internacional, no final dos anos 60, esta funesta barbárie salvou a Estação Orsay.” Com esta visão sobre a preservação do patrimônio cultural é que Nívea Bracher, ao retornar de viagem de estudos que havia feito, logo a seguir em 1971, aos Estados Unidos e Canadá, chega a Juiz de Fora e ‘levanta bandeiras’ em prol da preservação dos valores humanos e artísticos da cidade. 5. “Mascarenhas meu amor”

Segundo Nívea Bracher (2013) o movimento “Mascarenhas meu amor” ocorreu em uma manhã de sábado, por ocasião do lançamento de um livro em um espaço cultural no centro da cidade – o espaço do Rogerinho — na Rua São João, em frente à Galeria do Theatro Central. Vários amigos do escritor, vindos do Rio de Janeiro e artistas se reuniriam lá naquele dia e houve uma grande aglomeração de pessoas. O então prefeito Tarcísio Delgado estava a decidir em uma reunião que iria também acontecer naquela manhã, sobre a fábrica Mascarenhas: se seria um mercado, ou um espaço cultural. Ela disse ter telefonado para muitas pessoas convocando-as, no intuito de realizar uma interferência para convencer o prefeito a dedicar um espaço ou uma parte, à cultura. Surgiram mais pessoas do que ela poderia imaginar. Seu entusiasmo cresceu quando soube que o Governador do Estado de Minas Gerais, o ex- Presidente Tancredo Neves chegaria à cidade para a reunião. Uma parte significativa da Bernardo Mascarenhas pertencia ao Estado e dependeria do governador liberar o espaço para a comunidade. Nívea e outros amigos elaboraram cartazes e entraram em um anfiteatro onde se encontrava o Governador. Logo após, todos saíram acompanhando Tancredo Neves pelas ruas, descendo a Rua Halfeld (figura 2) e a passeata foi até a fábrica Mascarenhas (figura 4). No caminho, Nívea Bracher teve a oportunidade de se dirigir ao governador rapidamente e falar com ele. Tancredo Neves e sua tia Eugênia Bracher Lobo eram antigos amigos fraternos em Belo Horizonte. Sua tia era pianista, professora de música no conservatório e concertista. Ele se lembrava e, este raro momento fugaz, marcou com certeza sua memória e o inspirou a assinar, dias mais tarde, a doação da parte que cabia ao Estado para a concretização dos anseios da sociedade local. O prefeito Tarcísio Delgado tinha uma afeição especial pela Mascarenhas. No discurso de entrega ele disse “isso aqui é um prédio tombado, e o melhor uso para um prédio tombado é o uso cultural”. Neste momento, segundo Nívea, ele deu uma piscada de olho e ela sentiu um ar de vitória (Azevedo, 2012: 123-132).


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Fig. 2 - À esquerda, passeata descendo a Rua Halfeld. Fig. 3 - À direita, debate na fábrica Mascarenhas. Carlos Bracher e sua esposa Fani Bracher à esquerda,

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Nívea Bracher ao microfone e Décio Bracher à direita. Fotos de Heitor Magaldi (s.d.).

Fig. 4 - “Mascarenhas meu amor”, em Juiz de Fora, que reuniu Rubem Fonseca, Affonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti, Carlos Bracher, Rui Merheb, Dnar Rocha, Rachel Jardim, João Guimarães Vieira, entre muitos outros. À direita com cartaz, Nívea Bracher. Foto de Heitor Magaldi (s.d.).

O jornalista Jorge Sanglard, ao lado esquerdo de Nívea na figura 4, participou do movimento e relata: Exemplo concreto de uma luta anônima e grandiosa, porque impessoal e comunitária, o movimento “Mascarenhas, meu amor” conquistou uma significativa vitória e demonstrou a força da mobilização da comunidade na defesa de seu patrimônio histórico, artístico e cultural (SANGLARD, 2012).

Sanglard (2012) revela algumas personalidades que marcaram presença na passeata, dentre elas: Rubem Fonseca, Affonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti, Carlos Bracher, Fani Bracher, Nívea Bracher, Décio Bracher, Dnar Rocha, Rui Merheb, Jorge Arbach, Renato Stehling, Rachel Jardim, João Guimarães Vieira (Guima), Roberto Vieira, Arlindo Daibert, César Brandão, Fernando Pita, Walter Sebastião, Martha Sirimarco, Luiz Ruffato, José Santos, Fernando Fiorese, Kim Ribeiro, Henrique Simões, Guilherme Bernardes, entre muitos outros. Estes e tantos outros não citados aqui contribuíram para a defesa e “transformação da antiga indústria têxtil numa autêntica fábrica de arte.”


Carlos Bracher (2013), artista plástico e irmão de Décio e Nívea participou do movimento e em seu depoimento relata que, após a passeata, houve uma reunião nas dependências da fábrica Mascarenhas, (figura 3). Revela que as pessoas e a relação que elas estabelecem com a cidade é que trazem o sentido de realidade e de verdade para suas existências. “São as porosidades com a cidade e seus lugares, com as coisas, o habitat, tudo isso é que traz o aspecto poético para esta relação do viver. A Mascarenhas é um dos maiores documentos do nosso passado.” Conforme dados da Prefeitura, este movimento marca a história da cidade na década de 1980. Em 1982, inicia-se o processo de tombamento municipal do prédio, assinado em 19/01/1983. Entre os anos de 1983 e 1987, negocia-se a compra das instalações da fábrica, que foi totalmente restaurada para abrigar o Centro Cultural e o Mercado Municipal, preservando-se as suas características originais. A inauguração ocorre a 31 de maio de 1987, cem anos após o início de sua construção, com vários eventos artísticos e exposições. A artista plástica Lótus Lobo (2013), prima dos Bracher, em seu depoimento, relembra que a inauguração do Espaço Mascarenhas foi um evento de grande repercussão na cidade e região. Dentre as exposições, foi curadora da exposição de litografias juntamente com Maria José Boaventura e Fernando Pitta. Os painéis foram criados pelo arquiteto Passaglia. Na época ela era diretora técnica e artística da Casa da Gravura Largo de Ó, da cidade mineira de Tiradentes. Nesta mostra, ela liga a História da Litografia em Minas Gerais a duas vertentes – uma dedicada às artes plásticas e outra à indústria. Evidencia-se esta exposição – em especial neste artigo, pela afinidade temática à questão da litografia industrial. A mostra apresentava rótulos de indústrias juiz-foranas, de artistas ‘anônimos’: Guilherme Rudger, (em 1916 trabalhou na União Industrial), Clemente Zero (autor de marcas, desenhos de bandejas e pratos — cartografia). Dentre os transportadores (responsáveis pela gravação do desenho e transporte para a matriz da máquina impressora), Canário e André Oggero, que trabalharam em estamparias de Juiz de Fora. A exposição foi privilegiada com texto do crítico de arte Marcio Sampaio. Lotus Lobo (2013) relata: O Centro Cultural Bernardo Mascarenhas é o resultado do sonho e do esforço de toda comunidade juiz-forana, mas não se pode esquecer o empenho e luta dos irmãos Bracher, do Passaglia, mas principalmente pela generosidade de Waldemar Bracher na doação de seu trabalho de engenharia na restauração do espaço (LOBO, 2013).

Em 1997, o Centro Cultural Bernardo Mascarenhas – CCBM – foi fechado para reforma e reinaugurado em 2000, totalmente restaurado, mantendo suas características arquitetônicas originais. O espaço abriga diversas manifestações artísticas, culturais da cidade e região. Possui galerias de arte, anfiteatro, videoteca e salas de aula, além de corredores para realização de eventos, oficinas, palestras, reuniões, teatro e shows musicais.


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7. Waldemar Bracher — a concepção elevada do trabalho e produto humano

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Waldemar Bracher (1910-1988), engenheiro, músico, químico e professor na Universidade Federal de Juiz de Fora, era um estudioso, pesquisador com visão humanística e sensibilidade artística. Patriarca de uma família de artistas perpetuou em seus filhos esta consciência da valorização da cultura, da arte e da memória. Segundo sua filha, Nívea Bracher (2013), “o escritório de restauração da fábrica Mascarenhas era em nossa casa, no primeiro quarto à direita, ficava a prancheta e todos os dias o arquiteto Luiz Passaglia ficava no escritório com meu pai trabalhando no projeto.” Ela comenta que o Luiz Passaglia foi contratado pela Prefeitura para este trabalho, mas que na cidade, não havia um engenheiro que resolvesse a questão sobre os telhados da fábrica, para acompanhá-lo nesta solução. O terreno com certas instabilidades, devido a um aterramento antigo e retificação do curso do rio, merecia atenção especial e demandava a construção de uma laje invertida no subsolo para melhor sustentação. A fábrica aparentemente mostrava a fachada externa, mas internamente estava em ‘escombros’ e havia muito que ser feito. As telhas de barro antigas e pesadas, com o telhado em estrutura em ‘tesouras’ necessitava de uma experiência acirrada. Ao integrar-se à causa, ver a necessidade e urgência, Waldemar Bracher colocou-se à disposição e trabalhou voluntariamente sem nenhuma remuneração. Nívea Bracher (2013) comenta que ele dizia: “o importante é fazer!” Carlos Bracher (2013) revela que seu pai dominava com competência os três elementos relacionados ao cálculo na engenharia: o cálculo com o concreto armado, com a estrutura metálica e com a estrutura em madeira. Desta forma, contribuiu generosamente para a concretização deste sonho, colaborando com os cálculos e acompanhamentos da reestruturação dos telhados, construção do auditório e de uma escada que une dois blocos. Ele relata: “meu pai realizou muitas obras e projetos para templos religiosos e igrejas de vertentes variadas – gratuitamente. Possuía uma visão profunda da causa cultural e uma concepção elevada do trabalho e do produto humano.” Pode-se dizer que este foi um dos últimos trabalhos de Waldemar Bracher em equipe, realizado em Juiz de Fora. Ele esteve presente na inauguração, podendo partilhar da alegria do evento. Conclusão

O Centro Cultural Bernardo Mascarenhas representa a conquista do sentido de permanência histórica de tudo que representou o pioneirismo industrial na cidade. O jornalista e crítico de arte do jornal Estado de Minas, Walter Sebastião (2013) participou do movimento e em depoimento relata: “Mascarenhas meu amor foi um movimento criado coletivamente, em que todos os participantes e envolvidos tiveram papel fundamental.” Juiz-forano, reside na capital mineira de Belo Horizonte e faz uma observação singular sobre cidade: “a igreja está para nós aqui em BH, assim como a fábrica


está para eles lá, em Juiz de Fora. Provavelmente, o mesmo número de fábricas que os juiz-foranos possuem à sua volta é o mesmo número de igrejas que os belo-horizontinos têm ao seu redor.” Ele acha graça e comenta: “de acordo com as devidas proporções.” Observa que, em fotos antigas da cidade, pode-se verificar a incidência das fábricas. A transformação da fábrica em Espaço de Cultura carrega a simbologia – o extrato – a substância de uma sociedade e desperta o olhar atual para a arte e cultura que floresce. Para o artista Carlos Bracher (2013) “a Mascarenhas é um símbolo da beleza de nosso passado, que estabelece uma relação metafísica entre nós e o local em que vivemos. É uma célula que compõe nossa condição de viver e de perceber o poético das coisas.” Sob este prisma, no que diz respeito a este extrato-substância social, Duvignaud (1970: 19) afirma: “o artista intervém,” ele pode prolongar e modificar o que a sociedade impõe. Recria a história. Contactar a autora: claudiamatosp@hotmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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os espaços do museu do séc. XXI Museu Nacional de Arqueologia The spaces museum of the XXI century. National Museum of Archaeology

Cristina Maria Grilo Lopes Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: Este artigo pretende analisar alguns aspetos relativamente aos espaços do museu, tendo como base o Museu Nacional de Arqueologia. Refletir sobre os seus espaços, os setores e os circuitos, como se organizam, para dinamizar e oferecer ao público nacional ou estrangeiro um pacote apelativo a nível científico e cultural. Palavras chave: Museu Nacional de Arqueologia. Espaços. Museu.

Abstract: This article aims to analyze some aspects concerning the museum spaces, based on the National Museum of Archaeology. Reflect on their spaces, sectors and circuits, how they are organized to energize and provide to the public an appealing package at scientific and cultural level. Keywords: National Museum of Archaeology. Spaces. Museum. Introdução

Após a 2ª Grande Guerra, principalmente na Europa, reconstroem-se ou constroem-se de raiz um número considerável de novos museus. O que aconteceu também na América do Norte e no Japão. Grandes nomes da arquitetura são chamados, a partir da década de 50 para elaborar projetos de museus, tais como Le Corbusier que projetou o Museu de Arte Ocidental de Tóquio, Frank Lloyd Wright o Museu Guggenheim, em Nova Iorque, ou a equipa Gardella, Michelucci, Scarpa e Guido Morozzi na remodelação da Galeria dos Uffizi em Florença, entre outros. Todavia, as grandes modificações foram implementadas sobretudo pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o primeiro a adquirir obras de todas as tendências de arte contemporânea e fotografias, e a organizar de forma sistemática, exposições temporárias e itinerantes, conferências, debates com artistas, etc. A sua atividade permanente, servirá de exemplo a todo o mundo, surgindo assim um novo período para a vida dos museus. Criam-se condições para assistir a espetáculos, tomar uma refeição, consultar livros, revistas e publicações na biblioteca, ou adquirir na sua loja, não apenas reproduções, catálogos e livros, mas também objetos de bom design que servem também para incrementar as ações de merchandising da própria instituição.


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Em 1984 surge no âmbito da UNESCO, a denominada “Declaração de Quebec” na qual se reafirma a projeção social do Museu moderno em detrimento das funções tradicionais que costumava deter. A partir deste momento a museologia é encarada como uma ciência multidisciplinar, e que aspira a oferecer uma visão relativamente global, dos problemas de um ponto de vista científico, social, cultural e económico. O Museu é “Uma instituição ao serviço da sociedade, que adquire, conserva, comunica e apresenta para fins de estudo, de salvaguarda e de desenvolvimento do património, de educação e de cultura, os testemunhos representativos da natureza e do homem.” (George-Henri Riviére, 1989) Este museólogo deu a conhecer uma nova linguagem, entusiasmou-nos na introdução dos audiovisuais, atualmente tão em voga, e falou do interesse dos ecomuseus, que hoje têm uma expansão mundial. Este trabalho pretende refletir sobre os espaços dos museus, os seus setores e os circuitos, como se organizam para oferecer ao público nacional ou estrangeiro um pacote apelativo a nível científico e cultural. O Museu Nacional de Arqueologia

Este é um museu emblemático a nível nacional tanto para a Arqueologia como para a museologia. A 20 de Dezembro de 1893 por decreto régio de fundação proposto por João Franco e Benardino Machado, o museu surge como uma espécie de prolongamento do Museu de Antropologia instalado na Comissão dos Serviços Geológicos, sendo seu diretor o Dr. José Leite de Vasconcelos. Desde 1903 o museu situa-se na ala ocidental do Mosteiro dos Jerónimos, naquela que era a zona do antigo dormitório dos monges. Os Jerónimos são um testemunho monumental da riqueza dos Descobrimentos portugueses. Encomendado pelo rei D. Manuel I foi iniciada a sua construção em 1502 financiada sobretudo pelo lucro do comércio de especiarias. O seu nome deriva do facto de ter sido entregue à Ordem de São Jerónimo, que aí permaneceu até 1834. O Mosteiro sobreviveu ao sismo de 1755 mas foi reformado em estilo neomanuelino na segunda metade do século XIX, após as danificações das invasões francesas e elevado à categoria de Monumento Nacional em 1907 e Património Mundial pela Unesco em 1984.

Fig.1- Entrada do Museu (fotografia da autora Abril 2013) Fig. 2 - Lateral esquerda da entrada com remodelação de janelas (fotografia da autora Abril 2013)


As imagens referem-se à entrada principal do museu, tendo sido aberta uma segunda entrada na década de noventa, por iniciativa do então diretor Dr. Luís Raposo, junto à entrada para a nave central do Mosteiro e do Museu da Marinha, para incremento de ingressos ao museu. Em 24 de Abril de 2013, aquando do registo fotográfico para esta comunicação foi possível presenciar o desenvolvimento entusiástico com que toda a equipa está envolvida para dinamizar e rentabilizar este foco de cultura nacional e tradição que a todos orgulha e enriquece. O museu funciona como polo dinamizador e um dos principais intervenientes no quadro na arqueologia portuguesa, atualmente a celebrar os 120 anos de existência é uma instituição de referência com protocolos e correspondência regular com outros museus, universidades e centros de investigação em todo o mundo. Graças a um conjunto de importantes trabalhos teóricos e práticos e uma coerente parceria com diversos organismos públicos e privados tem desenvolvido uma abordagem eminentemente contemporânea daquilo que é o panorama da Arqueologia portuguesa. A evidente vitalidade dos estudos arqueológicos, integra-se de certa forma, num interesse pelas componentes intelectuais, cognitivas e simbólicas das sociedades do passado, tão valorizadas pela agenda pós-processual latu sensu (Hodder, 1992: 10-4). O que tem contribuído para que as diversas linhas de pesquiza, tanto no que se reporta à Arqueologia como à Museologia, tenham enriquecido substancialmente (alguns), dos seus vetores de estrutura político-social (Hodder, 1982a). É pois necessário capitalizar nessa abordagem o conceito da musealização deste espaço. Os espaços expositivos

O seu notável acervo é constituído pelas coleções do seu fundador Dr. José Leite de Vasconcelos e do arqueólogo Estácio da Veiga. A estas acrescem outras por integração a partir de departamentos do Estado (Tais como a coleção de arqueologia da antiga Casa Real Portuguesa, aqui incorporada após a implantação da República, ou a coleção de arqueologia do Antigo Museu de Belas Artes, quando se criou o Museu Nacional de Arte Antiga), ou por doação ou legado de colecionadores e grandes amigos do museu (tais são os casos de doações de Bustorff Silva, Luís Bramão, ou Samuel Levy, entre outros), finalmente aquelas que são fruto de atividade de trabalho de campo do próprio museu ou de outros arqueólogos, que ao abrigo da legislação aplicável, são incorporadas sempre que se considere o seu valor nacional de bens arqueológicos. Quanto às exposições permanentes são “Tesouros da Arqueologia Portuguesa” com um discurso museográfico típico dos anos oitenta e a “Antiguidades Egípcias” tendo sido recentemente intervencionada e consequentemente com um discurso museográfico mais contemporâneo e refinado. Para além das exposições permanentes, são frequentemente organizadas mostras temporárias sobre diversos temas subordinados à arqueologia e que trazem a este espaço os resultados de intervenções arqueológicas, que permitem no atual estado de conhecimentos, construir discursos narrativos e modelos interpretativos sobres as sociedades do passado do atual território português.


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No que diz respeito à exposição “Tesouros da Arqueologia Portuguesa” é uma coleção de ourivesaria arcaica que começou a ser reunida por José Leite de Vasconcelos e que foi sendo aumentada ao longo de várias décadas. É constituída por 1500 peças das quais cerca de 600 se encontram expostas e que foram fruto de aquisições e recolhas avulsas e, só nalguns casos, de escavações arqueológicas, o que explica por vezes a ausência de informações acerca das circunstâncias do seu achado e dos contextos arqueológicos. Da coleção de joalharia antiga destaca-se um conjunto de ourivesaria pré-romana — um dos mais importantes do seu tipo e cronologia em toda a Europa. Permite observar-se a evolução destas artes decorativas, através dos gostos e dos estilos artísticos, assim como das técnicas de fabrico e dos contactos comerciais das populações que então habitavam o atual território português. Segundo um percurso cronológico, onde podem ser observadas verdadeiras obras-primas da ourivesaria, de que se destacam os torques, que simbolizam o poder dos guerreiros e as arcadas de utilização feminina, bem como moedas de prata e ouro ou mesmo armas. A outra exposição permanente “Antiguidades Egípcias”, é constituída por mais de quinhentas peças, das quais cerca de trezentas se encontram expostas. É o maior acervo de peças egípcias em Portugal, tendo sido em grande parte reunido pelo Dr. Leite de Vasconcelos, quando visitou o Egipto em 1909, a que se adicionaram posteriormente as peças da coleção da rainha D. Amélia de Orleães, assim como importantes doações feitas por diversos colecionadores, com destaque para a família Palmela, Bustorff Silva e Barros e Sá. As peças em exibição encontram-se distribuídas de acordo com um critério temático-cronológico que vai desde a Pré-história (c. 6000-3000 a. C.) à época Copta (395-642 d.C.) e nela estão representados os grandes períodos da civilização egípcia. Cada uma das catorze unidades expositivas é acompanhada por um texto de apresentação. A figura 7 é referente à Pré-história, mostra-nos o Paleolítico e o Neolítico representados com os seus objetos líticos, os vasos de boca negra ou com decoração geométrica e as paletas para cosméticos. Seguindo-se os recipientes em pedra, sobretudo em alabastro, objetos do quotidiano, a epigrafia e lítica funerária (com estelas e altares de oferendas), estatuária e fragmentos diversos. Uma boa mostra de estatuetas funerárias conhecidas pela designação de chauabtis, de que as figuras 9 e 10 são ilustrativas, bem como amuletos, escaravelhos e um núcleo de estatuetas votivas e de servos estão aqui bem representadas. A unidade dedicada à mumificação inclui dois sarcófagos, uma múmia humana, máscaras funerárias, vasos de vísceras, barco votivo, entre outros objetos que se sustentaram na crença da mumificação como ponte para a eternidade. Rematando-se o circuito com os cones funerários, os bronzes e os tardios materiais do Egipto greco-romano e do Egipto copta. O Lisbon Mummy Project é uma parceria entre o MNA e o IMI-Art, sector de arte e arqueologia do IMI (Imagens Médicas Integradas) tendo-se iniciado em 2007 com a análise de sete múmias animais da coleção do Museu. Em 2010, devido ao apoio da Siemens foi possível iniciar o


presente estudo das múmias humanas do MNA. O catálogo da exposição, da autoria do comissário científico, Professor Luís Manuel Araújo que para além de apresentar um inventário sistemático das coleções, amplamente ilustrado, fornece também os indispensáveis elementos da sua integração cronológico-cultural. A exposição Religiões da Lusitânia. Loquuntur saxa que teve início a 27 de Junho de 2002, e cujo comissário científico foi o Dr. José Cardim Ribeiro, está desde essa data patente na galeria oriental. Hispania Aeterna e Roma Aeterna, duas tradições que se encontram e se sincretizam por força da Pax Romana. Há cerca de cento e dez anos o fundador, Dr. Leite de Vasconcelos, começava a trabalhar naquela que viria a ser a obra seminal da sua carreira “Religiões da Lusitânia”, a exposição presta homenagem a essa dedicação e persistência do seu trabalho que tanto enalteceu a arqueologia e a cultura nacional. A estrutura da exposição projetada para durar mais do que o usual, foi da responsabilidade da dupla de arquitetos Carlos Guimarães e Luís Soares. Das 313 peças que inicialmente integraram a exposição, cerca de 250 pertencem ao próprio acervo do MNA e já faziam parte dos estudos efetuados por Leite de Vasconcelos. As restantes foram cedidas por diversas instituições, do Minho ao Algarve, passando naturalmente por Mérida. Esta mostra está subdividida em pequeno núcleos, consagrados a fenómenos particulares ou conjuntos de divindades específicos. A figura 13 mostra um expositor integrando diversos artefactos, enquanto a figura 14, proveniente de Milreu, Faro com uma faixa cronológica do século I-II d.C. é um exemplo paradigmático da estatuaria romana. Tal como as imagens infra, que foram recuperadas na sequência de uma intervenção arqueológica, liderada pelo Dr. António Carvalho na quinta das Longas, em Elvas. Estes exemplares revelam uma clara influência grega e são bastante exemplificativas de um acervo que revisita o território de um império que se estendia do Cabo da Roca à Mesopotâmia. Os dois núcleos em que se divide, partem do pressuposto de sistematização desse corpus documental e fez-se de acordo com uma abordagem que permite enquadrar os aspetos religiosos num mais vasto tecido social, político e económico da romanização ou romanidade no período entre os séculos I e IV d.C. No primeiro dos núcleos, estão patentes deuses associados a montanhas ou bosques, exemplares do culto do Endovélico, uma das divindades indígenas mais populares, bem como inscrições em lusitano, que é demonstrativo do esquema tripartido de divindades, e que foi largamente utilizado pelos diversos povos indo-europeus. Nesta divisão existem três níveis distintos, onde se inserem os deuses principais, ou de primeira função, e nos quais se inscreve Reva, por exemplo, no segundo nível, os deuses guerreiros, os da força e da heroicidade, e finalmente os numina tutelares, divindades locais, com culto geralmente muito circunscrito (à exceção de Endovélico). No Núcleo “Roma Aeterna”, o acervo exposto passa pelo culto imperial, nas suas dimensões pessoal, sacerdotal e comunitária. Pela tríade capitolina, isto é Júpiter, Juno e Minerva, assim como os deuses marciais Marte e Vitória, por Vénus, dita antepassada de divino César, por Apolo e Esculápio, os deuses da saúde, por Fortuna, senhora do destino, ou por Ísis, Cibel e Mitra, divindades cultuadas no Egipto, Ásia Menor e Pérsia.


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Fig. 3 - Vista parcial do átrio da entrada

Fig. 4 - Zona de lavabos e snacks

principal (fotografia da autora Abril 2013)

com um menir nacional decorado (fotografia da autora Abril 2013)

Fig. 5 -“Tesouros da Arqueologia Portuguesa”

Fig. 6 - “Tesouros da Arqueologia Portuguesa”

com pilares expositivos (fotografia da autora

com vitrinas expositivas (fotografia da autora

Abril 2013)

Abril 2013)

Fig. 7 - Zona expositiva da Pré-história

Fig. 8 - Sarcófago de Pabasa (fotografia

do Egipto (fotografia da autora Abril 2013)

da autora Abril 2013)


O MNA é ainda o museu nacional que possui no seu acervo a maior quantidade de peças classificadas como “tesouros nacionais”. Existe pois sempre motivo de descoberta nas suas coleções e é esse aliás o motivo da evocação que se faz ao promover a peça do mês, que em Abril de 2013 é a Ara de Calpurnia Hegesistrate. Esta peça é proveniente de Avis, Portalegre, pertencente ao período romano, séc. II d. C. em destaque na Figura 17. Esta é uma exposição de grande dignidade a que os padrões ditos clássicos tão bem nos acostumaram. A exposição “QUINTA DO ROUXINOL. Uma olaria romana no estuário do Tejo” está patente ao público desde 19 de Março de 2008. Esta iniciativa partiu da organização conjunta do MNA e do Ecomuseu Municipal do Seixal. A exposição visa dar a conhecer uma olaria de Época Romana, identificada na Quinta do Rouxinol (Corroios, Seixal), contextualizando-a no sistema económico regional e imperial. Os dois fornos preservados e estudados funcionaram dos finais do séc. II às primeiras décadas do séc. V, produzindo loiça de cozinha e de mesa e ânforas destinadas ao envase e transporte de preparados de peixe e, provavelmente, de vinho, pontualmente, também terão produzido lucernas. Aí está representado uma réplica de um dos fornos da olaria, da quinta do Rouxinol, à escala natural, preenchido com reproduções fiéis de ânforas e cerâmica comum recolhida in situ, que elucidam de muitos dos aspetos socioeconómicos destas populações. Esta exposição tem uma componente textual muito forte, diversos audiovisuais que apoiam a informação e som de fundo de rouxinóis evoca um ambiente intimista e acolhedor. Um discurso museográfico contemporâneo que adequou a apresentação do sítio arqueológico, enquadrando-o devidamente nos mecanismos da economia local e imperial romana, de forma a explorar o seu potencial enquanto elemento mediador da transmissão de conhecimentos sobre a temática dos centros produtores de cerâmica. A exposição “Mudança Global. Símbolos e Tecnologias nas Origens do Agro-Pastoralismo no Alto Ribatejo” teve início a 21 de Fevereiro de 2013. Colaborando para a sua realização o Museu de Arte Pré-histórica de Mação, o MNA e o Instituto Politécnico de Tomar conjugaram esforços. Abordando uma das etapas da transição do Paleolítico para o Neolítico, no vale do Tejo. O comissário científico foi o Dr. Luiz Oosterbeek, a organização esteve a cabo do Dr. José Saldanha e do Dr. António Carvalho. A coordenação foi do Dr. Luiz Oosterbeek, Dr. Luís Raposo, Dra. Ana Isabel Santos, Dr. Nelson Almeida e Dr. Ivo Oosterbeek. A tratar da museografia esteve o Professor Mariano Piçarra, Dr. Joana Nascimento, Dr. Ivo Oosterbeek, Dra. Rita Albergaria, Dr. Nelson Almeida e o Dr. Mário Antas as réplicas estiveram a cargo do Dr. Jedson Cerezer e do Dr. Pedro Cura. São aqui mostrados os resultados das escavações realizadas ao longo das últimas três décadas em sítios arqueológicos que se situam nos atuais concelhos de Alcanena, Abrantes, Chamusca, Constância, Entroncamento, Ferreira do Zêzere, Golegã, Mação, Tomar, Torres Novas e Vila Nova da Barquinha, têm contribuído para a constituição de um repositório de enorme valor científico e patrimonial. Nem espaço relativamente


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Fig. 9 - Expositor com Chauabtis (fotografia

Fig. 10 - Pormenor com Chauabtis e legenda

da autora Abril 2013)

(fotografia da autora Abril 2013)

Fig. 11- Múmia estudada no Lisbon Mummy

Fig. 12 - Artefactos de época Copta (fotogra-

Project (fotografia da autora Abril 2013)

fia da autora Abril 2013)

Fig. 13 - Interior da exposição (fotografia da

Fig. 14 - Cabeça-retrato de uma jovem

autora Abril 2013)

mulher (fotografia da autora Abril 2013)


exíguo, que foi anteriormente um pequeno sítio de conferências, foi construído um discurso estético e simbólico verdadeiramente elegante e equilibrado. Desde os suportes expositivos, a iluminação, a distribuição e organização dos materiais, a seleção da informação e a sua localização estratégica, foram notoriamente tratados por uma equipa eficiente e conhecedora da museografia e museologia e de maximizar o impacto visual, mantendo um nível de elevado critério cientifico-cultural. Outros espaços do Museu

O museu possui no piso superior biblioteca, laboratório, gabinetes de investigação, serviços administrativos, serviços educativos e reservas. Outros serviços disponibilizados pela instituição são por exemplo a edição regular de publicações, de que sobressai a revista cientifica “O Arqueólogo Português”, editada desde 1895 e com uma rede de mais de 300 instituições correspondentes em todo mundo, conservação e restauro de bens arqueológicos, seminários, conferências e cursos da especialidade. A biblioteca é uma das mais importantes bibliotecas portuguesas especializadas em arqueologia, é constituída por um acervo documental com cerca de 22.000 monografias, 1800 títulos de publicações periódicas, cerca de 850 folhetos de literatura de cordel (já incluídos na base de dados) mapas, 5 incunábulos, coleção de manuscritos, de livros antigos, gravuras e arquivos pessoais de Leite de Vasconcelos, Manuel Heleno (manuscritos do autor, correspondência e fotografias), Fernando de Almeida (manuscritos), Estácio da Veiga (manuscritos do autor, fotografias e desenhos), Luís Chaves (manuscritos de etnografia) e doações de bibliotecas de Nuno Carvalho dos Santos, Hipólito Raposo e Gustavo Marques. O Dr. Leite de Vasconcelos, deixou em testamento ao MNA, parte do seu espólio científico e literário, que constitui o mais prestigioso legado existente no acervo documental da biblioteca. Este fundo bibliográfico é formado pela livraria pessoal de J.L.V., correspondência, apontamentos e documentação que utilizou na elaboração dos seus numerosos trabalhos científicos. A consulta desta documentação reservada é restrita a investigadores, mediante pedido por escrito dirigido ao Diretor. O laboratório do Museu Nacional de arqueologia tem como principal área de atuação a conservação e restauro de objetos metálicos, cerâmicos, pétreos e orgânicos provenientes de contextos arqueológicos, das coleções do museu e, pontualmente, objetos pertencentes a outros Museus e instituições. Um outro campo de ação e indissociável de todas as outras áreas é a conservação preventiva, essencial para garantir a preservação do espólio. A sua filosofia assenta no respeito pela perenidade e integridade do objeto regendo-se pelos princípios deontológicos da conservação e restauro. O Serviço Educativo e Sector de Extensão Cultural, com o apoio do Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arqueologia, desenvolve e promove no âmbito das exposições permanentes e temporárias, visitas guiadas, visitas guiadas com dramatização, jogos educativos e temáticos, assim como ateliers pedagógico-didáticos para públicos escolares e não escolares. Quando solicitado, o Serviço orienta estudantes, professores e educadores na preparação de visitas e outras atividades.


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Fig. 15 - Figura masculina anguípeda séc. III

Fig. 16 - Estatueta feminina séc. III d.C.

d.C. (fotografia Matriznet)

(fotografia Matriznet)

Fig. 17 - A peça do mês, com destaque

Fig. 18 - Ara ladeada por duas cabeça-retrato

(fotografia da autora Abril 2013)

(fotografia da autora Abril 2013)

Fig. 19 - Entrada da exposição (fotografia da

Fig. 20 - Réplicas de recipientes anfóricos

autora Abril 2013)

(fotografia da autora Abril 2013)


Fig. 21 - Texto, fotos e audiovisual (fotogra-

Fig. 22 - Texto, fotos e cartografia (fotografia

fia da autora Abril 2013)

da autora Abril 2013)

Fig. 23 - Entrada da exposição (fotografia da

Fig. 24 - Vista parcial (fotografia da autora

autora Abril 2013)

Abril 2013)

Fig. 25 - Vista lateral de um expositor (foto-

Fig. 26 - Detalhe de um expositor (fotografia

grafia da autora Abril 2013)

da autora Abril 2013)


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Fig. 27- Biblioteca (fotografia da autora Abril 2013)

Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 173-185.

Lopes, Cristina Maria Grilo (2013) “Os espaços do museu do século XXI. Museu Nacional de Arqueologia.”

Fig. 28 - Acesso aos gabinetes de investigação e laboratórios (fotografia da autora Abril 2013)

Conclusão

Foi ao longo deste artigo traçado um percurso possível de visitação daquele que é um caso de referência para a arqueologia portuguesa, que naturalmente está incompleto mas que na atual conjuntura político social, me pareceu um trajeto interessante para refletir e dar a conhecer alguns dos aspetos e problemáticas. É inevitável que a investigação contemporânea proceda ao seu inquérito baseando-se nos seus próprios conceitos, conceitos estes que são culturalmente específicos e historicamente circunstanciais (Renfrew, 1994: 47). Foi privilegiada nesta redação sobretudo uma síntese da museologia contemporânea e a análise dos espaços expositivos, sobretudo no que respeita ao enquadramento da práxis museográfica e da consistência teórica e metodológica das exposições. Os espaços expositivos pela sua dimensão, localização e caracter simbólico, estão na sua generalidade adequadamente ajustados à função. Encerro este artigo, deixando uma sugestão que me parece pertinente e pessoalmente apelativa enquanto proposta de investigação. O desenvolvimento de um programa científico de investigação no Museu Nacional de Arqueologia em coleções e planificação museológica. Esta proposta parte da crescente consciência de que a arqueologia além de estudo do passado é também ação no presente. Contactar a autora: clopes99@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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Netgrafia · Url:<http://www.mnarqueologia-ipmuseus.pt/?a=0&x=3 >. Acesso em 3 abr. 2013 · Url:<http://www.matriznet.imc-ip.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosListar.aspx?TipoPesq=2&NumPag=1 &RegPag=50&Modo=1&Criterio=quinta+das+longas > Acesso em 5 abr. 2013 · Url: <http://www.igespar.pt/pt/publications/category/49/assets/ > Acesso em 10 mar. 2013


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Visibilidade e Ambiência do Outeiro e Convento da Penha na Baía de Vitória: delimitação e normatização da área de entorno. Visibility and Ambience of the Hill and The Monastery of Penha site in Vitoria Bay: delimitation and regulation of the buffer zone.

Diva Maria Freire Figueiredo Ms. Desenvolvimento Urbano, UFPE, Bela. Arquitetura e Urbanismo, UFMG, Superintendente do IPHAN no Espírito Santo, Brasil

Caroline Maciel Lauar

Baía de Vitória: delimitação e normatização da área de entorno.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 186-204.

Figueiredo, Diva Maria Freire; Lauar, Caroline Maciel; Miceli, Aline Barroso (2013) “Visibilidade e Ambiência do Outeiro e Convento da Penha na

M.A. World Heritage Studies, BTU COTTBUS, Bela. Arquitetura e Urbanismo, UFMG, técnica do IPHAN no Espírito Santo.

Aline Barroso Miceli Bela. Arquitetura e Urbanismo, UFES, Chefe da Divisão Técnica do IPHAN no Espírito Santo.

Resumo: O artigo tem como objeto a proteção do complexo e diversificado contexto paisagístico do outeiro e convento da Penha na baía de Vitória, situado no estado do Espírito Santo- Brasil, numa perspectiva atual de integração dos valores materiais e imateriais do patrimônio cultural. Explora como estudo de caso a experiência do IPHAN, órgão brasileiro responsável pela proteção do patrimônio nacional, com a delimitação e normatização do entorno deste monumento. Palavras chave: Proteção. Ambiência. Conservação Integrada.

Abstract: The objective of the article is to present the protection of the complex and diverse landscape context of the hill and the Monastery of Nossa Senhora da Penha site, located in the Vitoria Bay, in the state of Espirito Santo, Brazil, through the current approach of integrating the values of tangible and intangible cultural heritage. The case study explores the experience of IPHAN, the Brazilian agency responsible for protecting the national heritage, in defining and regulating the limits of the buffer zone for this monument. Keywords: Protection. Ambience. Integrated Conservation. Introdução

O substantivo ‘entorno’ do subtítulo deste trabalho tem uso recente nos dicionários brasileiros. Na década de 70 do século XX, era um neologismo que começou a ser muito usado pelos técnicos do patrimônio no Brasil para a definição das áreas de proteção da vizinhança dos bens reconhecidos como patrimônio nacional pelo instituto do tombamento. Foi então incorporado aos dicionários e tornou-se um termo técnico para designar a área envoltória, vizinhança ou ambiência de bens tombados.


A atribuição de proteger o patrimônio cultural pelo Estado Brasileiro é exercida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN, regida principalmente pelo decreto-lei 25 de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. A proteção impõe limitação ao direito da propriedade em nome do interesse público a fim de garantir a permanência de valores expressos na estrutura física do bem tombado, assim como nas intervenções da sua vizinhança visando salvaguardar sua visibilidade e também sua ambiência, conforme interpretação jurídica atual da lei. Contudo, a delimitação e adoção de normativas de proteção do entorno não são simultâneas à sua inscrição nos livros do tombo, quando é concluído o processo de proteção. No cumprimento desta atribuição, se lança mão de outros instrumentos normativos complementares para regular a proteção prevista no artigo 18 do referido decreto, de acordo com as particularidades de cada bem protegido inserido em seu contexto: Caberá ao órgão competente estabelecer para cada tombamento os critérios pelos quais protegerá a visão do bem tombado, critérios estes que variam conforme a categoria, tamanho, espécie de bem. Muitas vezes, o órgão não regulamenta esses critérios, mas este fato não exclui a possibilidade de sua existência... Tão importante quanto a coerência de critérios técnicos para casos análogos é a explicação dos motivos que levaram a autoridade a adotar este ou aquele critério. (CASTRO, 2009: 123-125)

O presente artigo apresenta e discute a experiência prática da Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- IPHAN no Espírito Santo, quanto à realização dos estudos técnicos para explicitar a delimitação e a normatização do entorno do conjunto monumental do outeiro e convento de Nossa Senhora da Penha, tombados nacionalmente desde a década de 40 do século XX. Os estudos específicos de regulação do entorno do patrimônio cultural brasileiro pelo IPHAN, devido à complexidade que o alargamento do conceito foi adquirindo desde o inicio da política patrimonial, em 1937, até os dias atuais, pelo aporte teórico-conceitual de outras disciplinas, como a antropologia, a sociologia e a geografia, além da história, da arquitetura e urbanismo, tiveram diferentes abordagens e tratamentos dentro do próprio órgão. Até hoje persiste grande número de monumentos tombados que não foram contemplados com a regulação dos entornos a serem enfrentados pelo IPHAN, a exemplo dos doze bens do período colonial do estado do Espirito Santo, todos protegidos entre os anos 40 e 70 do século XX. A ausência de declaração das áreas de vizinhanças dos bens tombados e dos critérios objetivos de intervenção torna a análise de projetos extremamente vulnerável num contexto de alto dinamismo econômico das cidades brasileiras da atualidade, notadamente das capitais como Vitória. Portanto, torna-se premente na pauta dos órgãos oficiais de preservação do


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patrimônio a realização de estudos técnicos que possam subsidiar objetivamente as análises de intervenções nessas áreas. A primeira experiência do estado é a do monumento paisagístico franciscano do Outeiro e Convento de Nossa Senhora da Penha, que deve ser seguida por outros quatro importantes bens, obras dos jesuítas no Espírito Santo, cujos estudos estão em desenvolvimento. Na primeira parte deste trabalho, serão abordados os aspectos relativos à problemática da proteção dos entornos e a evolução conceitual do tema através das cartas patrimoniais, com o aporte teórico de novas disciplinas que passam a colaborar na sua definição e compreensão. Serão também apresentados os novos instrumentos legais recentemente incorporados à tutela federal do patrimônio, em resposta à evolução teórico-conceitual que hoje fundamenta este campo do conhecimento. Pela relação direta com este estudo evidenciam-se as noções de ‘patrimônio imaterial’ e ‘paisagem cultural brasileira’ e os instrumentos específicos de sua proteção dentro de uma perspectiva de ‘conservação integrada’. Na segunda parte, pela observação direta e o diálogo entre as fontes arquivísticas e bibliográficas serão feitas a leitura e a qualificação do conjunto tombado em seu contexto, analisando os valores pelos quais foi reconhecido como patrimônio nacional e evidenciando seus valores contemporâneos frente aos novos instrumentos de proteção. Em seguida, na terceira parte do trabalho, abordam-se as análises do IPHAN sobre os impactos de dois empreendimentos imobiliários projetados para a capital, Vitória, na vizinhança do outeiro e convento da Penha. O primeiro entre 2005 e 2006 e o outro em 2011, ambos impedidos de construção pelo órgão, por diferentes formas de atuação. Estas análises permitem explicitar as abordagens conceituais e metodológicas que evidenciaram os critérios de proteção do entorno do monumento em estudo. Na quarta, apresenta-se a proposta de delimitação e normatização do entorno do Outeiro e Convento de Nossa Senhora da Penha, fruto do caminho metodológico traçado pela revisão teórica e conceitual, leitura do território e as análises dos impactos destes dois empreendimentos, a partir de abordagens interdisciplinares. A metodologia, embora complexa pela conjugação de fundamentos para orientar a leitura e diagnóstico do contexto e consequente delimitação do perímetro de entorno, apontou para a adoção de critérios de proteção bastante simples, predominando o relativo à escala dos empreendimentos. Na conclusão, destaca-se da base teórica- conceitual e métodos, a necessidade de promover estudos visando evidenciar os valores dos aspectos imateriais e intangíveis deste patrimônio e obter seu reconhecimento nacional. E num futuro próximo a chancela de ‘paisagem cultural brasileira’, incorporando ao conjunto monumental da Penha as duas noções e respetivos instrumentos jurídicos mais recentes da política de patrimônio no Brasil.


1. A evolução da prática preservacionista do entorno

As questões relativas à preservação do patrimônio podem ser sintetizadas numa trajetória que parte do monumento isolado para o entorno; do entorno para sítio histórico; e, finalmente, do sítio histórico para o território; chegando à complexa noção de ‘paisagem cultural’. A esquematização desta linha evolutiva é uma simplificação das diversas teorias, por vezes contraditórias, que muitas vezes coexistiram na orientação das práticas preservacionistas. Sua disseminação pelos encontros internacionais e respectivas cartas patrimoniais tem como objetivo estabelecer princípios práticos para a aplicação dos fundamentos teóricos (Figueiredo, 2008:81). 1.1 Referências Internacionais

A prática de proteção envolvendo a visibilidade e ambiência dos bens tombados, iniciada no Brasil há 76 anos com a aplicação do Decreto Lei 25/1937, tinha desde então referências internacionais, através dos princípios operativos para tratamento dos entornos já introduzidos nas duas cartas de Atenas deste período. A de 1931 que resulta da Conferência do Escritório Nacional de Museus, da Sociedade das Nações, trata especificamente do patrimônio, enquanto a de 1933, do 4º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna- CIAM, não se considera orientadora neste campo. Mas, devido à participação dos arquitetos modernistas na idealização da política de patrimônio no país, através do arquiteto Lúcio Costa que era funcionário influente do órgão e, ao mesmo tempo, representante do CIAM no Brasil, teve influência nas práticas de proteção. A partir da Segunda Guerra Mundial, os encontros internacionais de entidades não governamentais e intergovernamentais intensificam sua influência nas políticas nacionais. Na primeira categoria prevalece o ICOMOS- Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, criado em 1964; na segunda têm influência a ONU- Organização das Nações Unidas — e UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura- e as continentais como OEA- Organização dos Estados Americanos e Conselho da Europa. São diversos os documentos internacionais que trazem referências ao entorno a partir da década de 60. Em ordem cronológica, cita-se a Carta de Veneza (1964), do ICOMOS, a Declaração de Amsterdã (1975), do Conselho da Europa; a Carta de Nairóbi (1976), da Unesco; a Carta de Burra (1980) e a Carta de Washington (1986), ambas do ICOMOS. Quanto às questões levantadas, destaca-se a Carta de Veneza pelo marco na ampliação da noção de monumento, ao redefinir sua relação com o entorno como “inseparável da história de que é testemunho e do meio em que se situa” (IPHAN, CV, 1964: art.7º) e recomendar tanto a valorização do contexto urbano das grandes criações arquitetônicas quanto das obras modestas que adquiriram significação cultural.


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Também a Declaração e o Manifesto de Amsterdã (IPHAN, PUB.: CP, 1975), inovam ao introduzir a noção de ‘conservação integrada’, definindo que o contexto do monumento ou sítio deve ser incorporado ao planejamento urbano, recomendando a conservação através da integração interinstitucional (dos níveis de governo), intersetorial (habitação, circulação, saúde, turismo, cultura, infraestrutura etc), multidisciplinar (participação dos diversos campos do saber pelos métodos, técnicas, aptidões), e responsabilidade partilhada (pública e privada). O segundo recomenda que a inserção da arquitetura contemporânea em áreas históricas e de entono respeite as características pré-existentes, como escala, volume e materiais tradicionais. Assim como a Carta de Veneza foi marcante para a noção de monumento, a Declaração de Xi’An de 2005 sobre a “conservação do entorno edificado, sítios e áreas do patrimônio cultural”, da XV Assembleia Geral do ICOMOS, é igualmente importante para a noção de entorno. Referendam-se nesta declaração outros documentos, pontuando sua importância na atribuição de valor ao patrimônio: Recomendação referente à Proteção da Beleza e o Caráter das Paisagens e dos Sítios (1962): Recomendação referente à Conservação dos Bens Culturais Ameaçados por Obras Públicas ou Privadas (1968), a Recomendação referente à Proteção e ao Papel Contemporâneo das Áreas Históricas (1976), a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Intangível (2003), a Convenção do Patrimônio Cultural (1972) e suas Diretrizes. Nestas duas últimas se destaca: [...] onde o entorno é visto como um atributo da autenticidade que demanda proteção mediante a delimitação de zonas de respeito, assim como a crescente oportunidade que o entorno oferece [...] para o desenvolvimento de temas como a autenticidade ou a conservação de paisagens urbanas históricas, como consta no Memorando de Viena [2005]; enfatizando a necessidade de responder de forma adequada à transformação rápida ou gradual das cidades, das paisagens e dos itinerários do patrimônio cultural, produzida pelas mudanças nos modos de vida, na agricultura, no desenvolvimento, no turismo ou às grandes calamidades naturais ou provocadas pelo homem, assim como a necessidade de reconhecer, proteger e manter adequadamente a presença significativa das edificações, dos sítios e das áreas dos bens culturais em seus respectivos entornos, para diminuir a ameaça que representam estes processos de transformação contra o patrimônio cultural em toda a riqueza de sua autenticidade, seu significado, seus valores, sua integridade e sua diversidade (MAUAR, 2011).

E, no final, declara a definição de entorno de uma edificação, um sítio ou uma área de patrimônio cultural como “... o meio característico seja de natureza reduzida ou extensa, que forma parte de — ou contribui para — seu significado e caráter peculiar”, prevendo ainda uma interação entre os aspectos físicos e visuais com as práticas sociais ou espirituais, costumes e conhecimentos tradicionais e o contexto cultural, social e econômico, atual e de caráter dinâmico.


A preocupação com a dimensão imaterial do patrimônio neste documento, como assinala Sant’Anna (2011), reflete a dimensão que a questão tomou nas discussões sobre autenticidade do patrimônio. A assimilação das práticas de preservação dos países orientais pelo ocidente e o reconhecimento das criações populares anônimas, por serem frutos de conhecimentos e práticas relacionadas ao cotidiano, expandiu o entendimento da noção de patrimônio em todo o mundo a partir dos anos 80. Pelo exposto, verifica-se que o conceito de área de entorno ou vizinhança acompanha a evolução do próprio conceito de patrimônio, sendo atualizado pelo debate mundial e, de forma direta ou indireta, está presente em diversos textos e cartas patrimoniais e convenções internacionais e nacionais, assim como os de visibilidade e ambiência. 1.2 Referências Nacionais

O dispositivo legal brasileiro relativo ao entorno, expresso pelo artigo 18 do Decreto-lei 25/37, faz restrições à vizinhança do bem tombado prevendo: não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-lhe neste caso multa de cinquenta por cento do valor do mesmo objeto. (Artigo 18 do Decreto Lei 25 de 1937)

De acordo com Castro (2009), o conceito de visibilidade atualmente ampliou-se para o de ambiência, significando, sem excluir a visibilidade literalmente dita, que o bem tombado deve estar integrado e em harmonia com sua vizinhança: A restrição que se impõe à vizinhança é decorrente da própria existência de um bem tombado, [...], no intuito de que ele seja visível e, consequentemente, admirado por todos. [...] Entende-se, hoje, que a finalidade do art. 18 do Decreto-lei 25/37 é a proteção da ambiência do bem tombado, que valorizará sua visão e sua compreensão no espaço urbano. Neste sentido, não só prédios reduzem a visibilidade da coisa, mas qualquer obra ou objeto que seja incompatível com uma convivência integrada com o bem tombado. O conceito de visibilidade, portanto, ampliou-se para o de ambiência, isto é, harmonia e integração do bem tombado à sua vizinhança, sem que exclua com isso a visibilidade literalmente dita. (CASTRO, 2009:122-123)

Visibilidade e ambiência encontram também amparo na jurisprudência, no caso judicial do Edifício Torrosêlo, de 1965, em área vizinha ao Outeiro da Glória no Rio de Janeiro, nos votos de dois ministros. O primeiro, expresso por Vitor Nunes Leal, relator do processo, conclui que está em causa a proteção de “uma igreja histórica integrada num conjunto paisagístico.” O segundo, de João José de Queirós, ao esclarecer o


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espírito do artigo 18 do Decreto-lei nº 25, desenvolve que o conceito de visibilidade não se limita à percepção ótica, pois determinada obra pode não limitar ou reduzir a visão física de um bem tombado, mas prejudicá-lo pela comparação entre as respectivas dimensões, assim como prejudicar o conjunto paisagístico que tradicionalmente o emoldura. Há uma expectativa de que a normatização dos entornos dos bens ou conjuntos tombados, com o objetivo de reduzir as ameaças geradas pelo processo de urbanização, colabore para uma leitura ampliada de suas ambiências e a eficácia da sua proteção. Mas para isto é necessário que haja uma compatibilização das legislações que recaiam sobre essas áreas e haja o esforço de interlocução das diversas esferas de poder, como forma de administrar o conflito de interesses sobre essas áreas urbanas, declaradas como entorno de bens patrimoniais. Esta integração interinstitucional é um dos pressupostos da Conservação Integrada, tratada particularmente pela Declaração e Manifesto de Armsterdã. A abordagem da Conservação Integrada reforça o papel do desenvolvimento sustentável sobre o planejamento urbano, sobretudo quanto às propostas de intervenção relacionadas ao ambiente e à cultura. A referência do processo de inovação é a forma histórica de produção da cultura material sobre o território, ou seja, tem como perspectiva de enfoque a conservação, numa relação dialética conservação/inovação (Zancheti, 2003). A noção ampliada de patrimônio cultural, que incorpora os aspectos imateriais ou intangíveis da cultura e reconhece como identidade brasileira a heterogeneidade da sua formação social, que produz inevitável ampliação também para os entornos do bem tombado, é contemplada pela constituição de 1988: Constituem o patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, a ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I- as formas de expressão; II- os modos de criar, fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (CB, 198: art. 216)

A prática ocidental da preservação, baseada na autenticidade do objeto, confrontada com a prática oriental da preservação do saber fazer, já havia evidenciado seu alcance limitado no trato com os aspectos imateriais ou processuais da cultura, incorporados à noção de patrimônio em todo o mundo. No Brasil, as expressões da cultura popular estiveram presentes nas ideias de intelectuais ligados ao IPHAN e vários trabalhos de registro e identificação das manifestações culturais foram realizados por instituições federais, mas somente em 2000 se adotou uma política de salvaguarda para a dimensão imaterial do patrimônio (Sant’Anna, 2011: 197). Este avanço foi conquistado pela edição do Decreto n.


3551/2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial-PNPI; e pela consolidação da metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais-INCR. O registro reconhece como patrimônio cultural brasileiro quatro categorias de bens com inscrições nos distintos livros: 1-Saberes, para conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; 2-Formas de expressão, para manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; 3-Celebrações, para rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; 4-Lugares, para mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas. (Decreto 3551, 2000: art. 1º) Mais recentemente, a interação entre a salvaguarda destes bens com a preservação dos suportes materiais do patrimônio evidenciou o caráter dinâmico da atribuição de valores e a necessidade de considerar a base social que lhe dá sustentação. Esta interação e todo o aparato legal anterior levou o IPHAN, através da Portaria 127, de 30 de Abril de 2009, a regulamentar o conceito de Paisagem Cultural Brasileira, definindo-a em seu Art. 1º: Art. 1º. Paisagem Cultural Brasileira é uma porção peculiar do território nacional, e representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores. Parágrafo único — A Paisagem Cultural Brasileira é declarada por chancela instituída pelo IPHAN, mediante procedimento específico. (DOU, 2009: 17)

2. Qualificação do conjunto tombado: a atribuição de valores

A maioria dos bens protegidos no Brasil está inserida em contextos urbanos dispersos em um país de dimensões continental. São contextos diversificados quanto aos aspectos físicos (natural e construído) e aos lugares de práticas sociais dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. A delimitação posterior ao tombamento das áreas de entorno destes bens enfrenta grandes desafios, que crescem ainda mais quando se trata do seu reconhecimento como ‘Paisagem Cultural Brasileira’, que pressupõe a celebração de um pacto social que lhe dê sustentação. Um dos principais desafios é o de lidar com interesses conflitantes, principalmente nas grandes cidades, onde o continuo crescimento do ambiente construído sobre o ambiente natural e o notável predomínio dos processos de inovação e renovação sobre o processo de conservação se impõem como concepção dominante. Na demarcação do universo de bens e práticas patrimoniais, a atribuição de valores considerando o desenvolvimento da sociedade contemporânea, envolve tanto os culturais (identidade, histórico, artístico, originalidade etc.) quanto os socioeconômicos (econômico, social, político, funcional, educativo etc.) cuja conjugação é um


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indicativo para o processo de avaliação de impactos, positivos ou negativos, que estes mesmos valores, particularmente os socioeconômicos, podem provocar sobre as dimensões material e imaterial do patrimônio (FEILDEN, JOKILEHTO, 1995:30-39). Estes valores são lidos nos seus aspectos físicos, visuais, no ambiente natural, e na sua interação com as práticas sociais passadas ou presentes e com o contexto atual e dinâmico, de natureza cultural, social e econômico, como recomenda a Declaração de Xi’ An, a mais recente referência internacional sobre o tema do entorno (Tompson, Motta, 2007: 18). A identificação e caracterização de um lugar também foram tratadas por Kevin Lynch (1997) em a Imagem da Cidade e, particularmente, quanto aos marcos, se adequa perfeitamente à percepção deste papel que o outeiro e convento da Penha exercem na paisagem da baía de Vitória: [...] a principal característica dessa classe [os marcos] é a singularidade, algum aspecto que seja único ou memorável no contexto. Os marcos se tornam mais fáceis de identificar e mais passíveis de ser escolhidos por sua importância quando possuem uma forma clara, isto é, se contrastam com seu plano de fundo e se existe alguma proeminência em termos de sua localização espacial. O contraste entre figura e pano de fundo parece ser o fator principal.. O pano de fundo contra o qual o elemento sobressai não precisa estar restrito aos seus arredores imediatos [...] são marcos únicos contra o pano de fundo da cidade toda. (MAUAR, 2011).

O conjunto arquitetônico franciscano foi erigido, a partir do século XVI, no topo de um penhasco, a 154 metros de altura, que desponta de um outeiro coberto por floresta tropical, caracterizada como Mata Atlântica, no município de Vila Velha, na baía Vitória. Localiza-se na boca do canal de mar partilhado pelo porto de Vitória e o terminal de navios Capuaba, em Vila Velha, cidades vizinhas da região metropolitana da capital do Espírito Santo, imersas em uma intensa dinâmica urbana e constante processo de crescimento e renovação (Figura 1).

Fig. 1 - Vista do Outeiro e Convento a partir do canal partilhado pelas cidades de Vitória e Vila Velha. Primeiro plano: sede do Exército Brasileiro, em Vila Velha. Autor: Diva Figueiredo; 2010; 6,01 x 15,61cm.

A motivação do tombamento federal do convento estabelece a unidade da sua obra com o outeiro e maciço de pedra sobre os quais foi construído, tornando-os inse-


paráveis na compreensão e fruição do monumento e como tal foi reconhecido como patrimônio cultural brasileiro, ainda na década de 40 do século passado. Do tombamento até nossos dias, muito se alterou na sua circunvizinhança, mesmo assim continua a ter influência enorme na estrutura urbana dos municípios de Vila Velha e Vitória. A posição de dominância na paisagem (natural e cultural) formada pelos territórios dos dois municípios, compostos de desenhos urbanos inseridos em uma orla sinuosa e repleta de elementos — ilhas, baías, canais, pedras, morros- que imprime à capital a semelhança a um presépio, de onde decorre sua identidade de cidade-presépio, enfatiza a riqueza dos atributos desta paisagem, bem como a premência e complexidade da tarefa de delimitar e explicitar os critérios de proteção da visibilidade e ambiência do entorno do outeiro/convento (Figura 9).

Fig. 2 - Em vermelho o trajeto da Romaria dos Homens. Autor: Prefeitura Municipal de Vila Velha, 2013; 10,89 x 9,66 cm.

Em Vila Velha, o importante eixo viário da Avenida Carlos Lindemberg se destaca física e simbolicamente no tecido urbano, como lugar de apreensão emblemática do monumento e percurso maior da histórica Romaria dos Homens, que ocorre anualmente durante as comemorações em honra à padroeira do Espírito Santo, Nossa Senhora da Penha. O trajeto de 14 km de extensão parte da Catedral de Vitória, no centro da capital, atravessa a ponte sobre o canal, entre Vitória e Vila Velha, e segue por toda a extensão desta avenida até encontrar o outeiro/convento da Penha (Figura2). A celebração religiosa de peregrinação da Festa da Penha começa na Segunda-Feira após o Domingo de Páscoa, no dia consagrado à devoção franciscana de Nossa Senhora das Alegrias, com duração de oito dias, conhecida como oitavário. A festa existe desde o século XVII, mas foi no século XIX que as comemorações passaram a ser celebradas ao ar livre e persiste até hoje (MAUAR, 2010: 60-61). No caso de Vitória, o conjunto franciscano, apesar de estar em outro município, é o principal marco da paisagem da cidade inserida na baia e, no final do século XIX,


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foi a principal referência no estabelecimento de politica de planejamento urbano. A situação geográfica do monumento privilegia a sua apreciação visual a partir do tecido urbano da capital, uma vez que sua expansão urbana, no início do século passado, através do projeto do Novo Arrabalde de 1896 (Figura 3), do sanitarista Saturnino de Brito, considerou estes elementos- morros e pedras- destacando-se entre eles o outeiro-convento, como pontos focais das vias de estruturação do bairro: Cidade-Presépio, houve de certa forma uma continuidade ao reconhecimento desta relação pois, no significativo plano do Novo Arrabalde — quando a cidade se estende em direção às praias — houve uma preocupação marcante em destacar naquele local os inú-

Baía de Vitória: delimitação e normatização da área de entorno.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 186-204.

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meros morros e pedras através da criação de avenidas que os destacasse. (...) o morro-convento é ‘trazido’ para dentro Vitória — cidade sobre à qual não está assentado mas com a qual encontra-se naturalmente relacionado — através de uma perspectiva traçada por Saturnino de Brito, que reafirmou um mesmo processo de identificação, evidenciando não apenas o morro perspectivado, mas aqueles que são tangenciados pela nova avenida. Assim, a reta da Penha — como popularmente é conhecida — permite o movimento contínuo de afirmação de uma identidade, tornando a imagem da cidade muito mais conhecida, e não por ser mais ‘visível’, mas por ter, nessa ‘visibilidade’, seu valor verdadeiramente assumido.” (MONTEIRO, 2005)

Fig. 3- Esboço da Planta da Ilha de Victoria. À direita, o desenho urbano do Novo Arrabalde mostra a ‘Reta da Penha’ entre morros apontando para o Convento da Penha, na parte inferior do desenho. Autor: Saturnino de Brito, 1896. UFES, Memoria Visual de Baia de Vitória. 9,7 x 10,66 cm.

Apesar dos planos mais recentes minimizarem a importância destes marcos visuais nas expansões subsequentes da estrutura urbana, que outrora balizaram o traçado da capital, as extensas áreas de aterro que tiveram sequência como estratégias de conquista de território, deram lugar também a extensas áreas de parque e praias que configuram a orla externa da baía de Vitória. Estas áreas são hoje, lugares públicos de relevância para a contemplação do monumento, tendo a superfície do mar como elemento de distanciamento e, ao mesmo tempo, de ligação física. Em decorrência desta qualificada visibilidade à distância do monumento, a altura excessiva das edificações, de massas significativas, que possam se interpor entre estes pontos e o outeiro/convento, provoca interferência negativa na linha do céu na


paisagem, criando concorrência visual com o monumento. Deduz-se que a relação de escala é a grande definidora da interferência no monumento e, por consequência, o gabarito ou altura máxima das edificações constitui-se no parâmetro urbanístico por excelência no controle da visibilidade e ambiência a fim de “não limitar ou reduzir a visão física de um bem tombado” ou “prejudicá-lo pela comparação entre as respectivas dimensões” como ensina o ministro João José de Queirós. Outros parâmetros urbanísticos, tais como parcelamento, volume, materiais, taxa de ocupação dos lotes, interferem muito pouco na apreciação à distância, podendo ser totalmente desconsiderados na proposta de regulamentação deste monumento, apontando para uma solução bastante simplificada, em contraste com a complexa análise e apreensão do contexto urbano do conjunto monumental. Da leitura da paisagem evidencia-se a heterogeneidade da morfologia da cidade na baía de Vitória impressa pelos elementos naturais, aos quais se somam os sucessivos aterros, e as tipologias edilícias de diversos tempos passados. Portanto, o desenvolvimento dos estudos exigiu um levantamento minucioso das tendências de verticalização dominantes e dos principais pontos de vista situados em áreas públicas dos dois municípios, a partir dos quais se demarcaram cones visuais focados no monumento em si e nas suas laterais, adotando-se como referência a cota 50, a fim de permitir a leitura de parte significativa da silhueta do outeiro/convento tombado. Também foram levantados os gabaritos das edificações praticados e previstos nas respectivas leis municipais, que se situam entre estes pontos e o monumento, cruzando-se estas informações para explicitar objetivamente a motivação dos critérios diferenciados das alturas máximas permitidas nestes locais. O aperfeiçoamento dos estudos dos pontos de vistas da orla da baia de Vitória, tomados desde a praia de Camburi até a Praça do Papa na Enseada do Suá, no município de Vitória, evidenciaram a importância de seis pontos apontados no mapa dos cones visuais da visibilidade e ambiência do conjunto outeiro/convento (Figura 4). Estes estudos, realizados desde 2005, vêm norteando a análise de empreendimentos na vizinhança do Convento pela Superintendência do IPHAN no Espírito Santo. A escolha das visadas teve como critérios eleger espaços públicos significativos de concentração de pessoas, tais como os acessos de entrada da cidade, áreas públicas de permanência e contemplação apropriadas pela população e a visada a partir do próprio Convento. (MICELI, 2011). 3. Análises dos impactos de empreendimentos imobiliários

A localização dos dois empreendimentos em terrenos do aterro da Enseada do Suá, assinalados em círculos vermelhos na Figura 4, bairro de importância fundamental para o controle da visibilidade e ambiência do monumento pela sua relação de maior proximidade, determinou os mesmos critérios de análise. O projeto do ‘Nova Cidade’, de 2005, com 13 torres de 17 pavimentos e o do ‘Fribasa Connection’, torre de 30 pavimentos, de cinco anos depois, em 2011, foram avaliados a partir de pontos


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estratégicos da orla de Vitória, eleitas visadas privilegiadas de fruição da paisagem do Outeiro e Convento da Penha.

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Fig. 4 - Mapa dos cones visuais. O círculo vermelho maior assinala a localização do projeto do ‘Nova Cidade;’ o menor o do ‘Fribasa Connection.’ Autor: Figueiredo et al. IPHAN-ES, 2012. 12,88x 8,41cm

As análises feitas pelo IPHAN (Abreu et al, 2006; Miceli, 07/2011; Lauar, 10/2011) consideraram o contraste, a concorrência relativa da inserção dos empreendimentos propostos no entorno do Outeiro e Convento da Penha, no pano de fundo do consagrado marco visual da paisagem. As imagens (Figuras 5, 6 e 7) mostram de forma mais contundente o impacto destes empreendimentos, a partir de simulações gráficas de escala sobre fotos e no Google Earth de pontos de observação qualificados pelos critérios mencionados e importantes para na fruição do monumento, impedindo a aprovação de seus projetos pelo IPHAN e, por consequência, suas construções.

Fig. 5 - Vista a partir do ponto 4 da paisagem da baía de Vitoria, com o outeiro e convento ao centro. Autor: Abreu et al, 2006. IPHAN-ES, 3,70 x 16,19 cm.

Fig. 6 - Simulação da inserção da proposta do ‘Nova Cidade’, vista a partir do ponto 4. Autor: Abreu et al, 2006. IPHAN-ES, 3,65 x 16,19cm.


Fig. 7- Simulação da inserção do ‘Fribasa Connection’ na paisagem, ao lado do outeiro e convento, vista a partir do ponto 3. Autor: Miceli, 2011. Google Earth. IPHAN-ES, 3,84 x 17,01cm.

A pressão imobiliária que trazia o risco de descaracterizar irreversivelmente a paisagem urbana do entorno do monumento, foi o principal agente de mobilização do poder público e de parte da comunidade de Vitória diretamente afetada, embora mais preocupada com sua qualidade de vida. O IPHAN desempenhou então papel decisivo, uma vez que o poder público local incorporou de forma limitada no seu plano diretor municipal, normativas de reconhecimento e valorização da paisagem da cidade e de sua identidade urbana e cultural. O plano diretor municipal não contempla a proteção da área mais afetada pelos dois empreendimentos em questão, ambos situados nas áreas planas de aterro do bairro Enseada do Suá, quase ao nível do mar, quanto ao impacto na visibilidade e ambiência do Conjunto da Penha e da paisagem urbana do seu entorno. A lei municipal protege apenas a perspectiva notável do outeiro/convento a partir do eixo da Reta da Penha. Contudo, os critérios de proteção desta avenida, que pretenderam reafirmar a inserção do monumento na dinâmica da cidade como o fez Saturnino de Brito ao traçá-la, criaram uma moldura excessiva ao monumento que, visto dali, perdeu sua característica de marco da paisagem urbana. 4. A delimitação do entorno e critérios de proteção

O tecido urbano de Vitória que fica dentro da área de entorno do monumento margeia a baia de Vitória e se dividi, de acordo com critérios de alturas máximas, nas seguintes zonas: Orla da Baia de Vitória, Ponta Formosa, Ilha do Frade e Ilha do Boi (bairros residenciais de alto padrão construtivo, caracterizada por baixos gabaritos) e Enseada do Suá. Esta última é constituída por grande aterro, no qual a municipalidade vem permitindo ao mesmo tempo adensamento e gabaritos muitos altos; adensamento e gabarito mais restritivos devido à sua correlação com áreas de parque e praia da orla da baia de Vitória; e outra parte marcada pela ausência de parâmetros urbanísticos prévios na lei de uso e ocupação, caso da “Zona de Ocupação Preferencial na Enseada do Suá”. Enfim, trata-se da maior e mais diversificada área urbana de Vitória próxima ao monumento. Em razão da proximidade e das normativas permissivas da municipalidade quanto à escala dos empreendimentos é esta a zona que exerce maior pressão para o rompimento do equilíbrio das relações de visibilidade entre o monumento e seu contexto. São grandes as possibilidades de interferir nos cones traçados a partir de cinco


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dos seis pontos identificados pelo IPHAN, excetuando apenas o ponto 6 (Figura 4), na Praça do Papa. Desta forma, a proposta de regulamentação evidencia o parâmetro da “altura máxima” e procura aproximá-lo ao que já vem sendo praticado e previsto pela municipalidade, subdividindo-a em 6 diferentes setores, cujas restrições de altura variam 8 à 60 metros, incluindo a área “não edificante” da Praça do Papa. Além destes seis setores da Enseada do Suá, a portaria incorpora a proteção do eixo da Avenida Nossa Senhora da Penha, conhecida “Reta da Penha” pela população local, prevista na legislação municipal desde 2006. A proposta estabelece rampas visuais a partir três pontos de seu eixo, complementando-a com a definição prévia das alturas máximas das rampas e explicitando os demais critérios de altura das edificações localizadas em seus limites. No tecido urbano de Vila Velha, que se inicia no sopé do outeiro, a ausência da superfície plana do mar como elemento de interligação e distanciamento, torna a apreciação do conjunto outeiro/convento bem mais restrita, a não ser por visadas ocasionais sem grande significação para serem consideradas. Contudo, a existência de outro bem tombado, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a marca mais antiga da chegada portuguesa à região, situada na Prainha, área central de Vila Velha limitada pelo outeiro, morro Jaburuna e o próprio canal de mar, recomenda a integração das áreas de entorno e dos elementos naturais protegidos, aumentando sua extensão (Figuras 8 e 9). Estas características condicionaram a proposta de delimitação do entorno à inclusão da vizinhança imediata- Zona do Exército e Zona da Prainha; das áreas de proteção ambiental dos morros limítrofes ao outeiro- Moreno e Jaburuna; e do eixo visual da Avenida Carlos Lindemberg, visando proteger a visibilidade do outeiro/convento a partir da trajetória da tradicional Romaria dos Homens, durante a festa anual de Nossa Senhora da Penha. Além disto, a inclusão da zona da Praia da Costa no perímetro do entorno em Vila Velha tem o objetivo de impedir que edificações excessivamente altas ultrapassem o perfil do outeiro, a partir da cota 50, interferindo na sua apreciação a partir do ponto de vista da Praça do Papa (ponto 6), situado do outro lado da baía, em Vitória. As limitações de altura das edificações desta zona são bastante elevadas, 60 m, e acompanham o que é praticado e previsto atualmente na lei municipal. (Figura 8 e 9)

Fig. 8 - Mapa de delimitação e zoneamento da área de entorno do Outeiro e Convento da Penha. Autor: Figueiredo et al, 2012. IPHAN-ES, 2012. 12,48 x 8,2 cm.


Fig. 9 - Foto aérea da entrada Baía de Vitória e entorno. Em primeiro plano, o tecido urbano da região da Prainha, em Vila Velha, mostrando á direita o outeiro/convento. Em segundo plano, Vitória- Enseada do Suá, ilhas do Boi e do Frade, Ponta Formosa e Praia de Camburi. Ambos tecidos integram o entorno do monumento, delimitado no mapa ao lado. Autor: Flávio Lobos Martins, 1999. Fonte: Arquivo UFMG; 10,35x 7,54 cm.

Nos dois municípios, os critérios adotados divergem daqueles previstos nos respectivos planos diretores e leis específicas apenas onde os cones de visualização indicaram incompatibilidade dos critérios municipais com a proteção da visibilidade e ambiência do outeiro e Convento da Penha. Conclusões

O estabelecimento de regulação do entorno a posteriori tem recebido críticas por não possuir um caráter preventivo. Contudo, o caso específico do outeiro/convento da Penha, cujo alerta para agir foi reativa, desencadeada pela perspectiva de impactos significativos dos projetos dos dois empreendimentos analisados neste estudo, possui aspectos positivos. A possibilidade da sua construção desencadeou uma mobilização social, mesmo que parte dela interessada primeiramente na sua qualidade de vida, mas que acionou e referendou a atuação do IPHAN. Fizeram parte da mobilização, audiências públicas na câmara municipal de Vitória, provocadas por vereadores e pela própria municipalidade, notícias em jornais e debates disciplinares, a exemplo da gincana jurídica sobre caso semelhante feita por escola local, da qual participaram grupos de estudantes de direito de vários locais do país. Enfim, o caráter interinstitucional, intersetorial, e interdisciplinar da mobilização propiciada pela iminência de impactos de grandes proporções como os citados, materializando casos concretos, teve a vantagem de manter a questão na


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mídia por um grande período e explicitar antecipadamente as razões para uma proposta de delimitação e normatização da amplitude apresentada neste estudo. A prática do parâmetro único de controle, que resultou dos estudos técnicos, possui a característica de facilitar a análise e aprovação dos empreendimentos dentro do perímetro de proteção do entorno do monumento, bastando acordos de procedimentos a serem celebrados entre o IPHAN e as prefeituras municipais de Vitória e Vila Velha. A incorporação e compatibilização da normativa federal às legislações municipais dependem da interlocução interinstitucional entre o IPHAN e as prefeituras municipais de Vitória e Vila Velha, já iniciada com as atuais administrações que assumiram no início de 2013. O exemplo do município do Rio de Janeiro, que adotou normativas compartilhadas de proteção da ambiência de seus monumentos e apresenta características semelhantes à paisagem de Vitória, de forte interação entre ambiente natural e construído, viabilizou recentemente seu reconhecimento como a primeira paisagem cultural urbana pela UNESCO. O IPHAN no Espirito Santo trabalha com uma perspectiva de proteção semelhante da baía de Vitoria, com o conceito e o instrumento mais abrangente da ‘paisagem cultural brasileira’. O percurso, entretanto, deve antes reconhecer a dimensão imaterial das celebrações associadas ao monumento, com a realização do INRC da Festa da Penha e seus possíveis registros nos livros das Celebrações e/ ou de Lugar. Apesar dos contextos tipológicos e morfológicos heterogêneos das duas cidades, das suas dinâmicas de transformação, o conjunto outeiro/convento da Penha se mantém ainda hoje imponente na paisagem da baía de Vitória a partir de vários pontos estratégicos destas cidades, considerados tanto os aspectos visuais quanto os simbólicos das práticas sociais associadas ao próprio monumento e seu contexto (Figura 10). Portanto, espera-se promissora a perspectiva de interlocução entre o IPHAN e as prefeituras municipais nesse sentido. Conclui-se com a constatação de Nestor Goulart Reis: Com a escala crescente das intervenções urbanísticas, as políticas públicas para a área de planejamento urbano estão sendo relacionadas e condicionadas cada vez mais, às de preservação do patrimônio cultural, às de proteção do meio ambiente e às de regulação do mercado imobiliário.” (REIS, 2011).


Fig. 10 - Vista do Outeiro e Convento a partir da Enseada do Suá, em Vitória, com Vila Velha ao fundo. À esquerda ponte de ligação entre as duas cidades sobre o canal de mar que as delimita. Autor: Diva Figueiredo; 2011; 4.42 x 16.64 cm.

Contactar a autora: diva.figueiredo@iphan.gov.br Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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DISCURSOS E REFLEXIVIDADE: um estudo sobre a musealização da arte contemporânea DISCOURSES AND REFLEXIVITY: a study of musealization of the contemporary art.

Elisa Noronha Nascimento Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar de maneira sucinta e esquemática a metodologia empregada, os contextos e questões que animaram um estudo desenvolvido sobre o museu de arte contemporânea, mais especificamente sobre a musealização da arte contemporânea, abordando a musealização como um processo discursivo e reflexivo de (auto)afirmação e reinvenção do museu. Palavras-chave: Museu de Arte Contemporânea. Musealização. Identidade Museológica.

Abstract: This paper aims to present the methodology used, the contexts and issues that inspired a study of museums of contemporary art, more specifically a study of musealization of the contemporary art, approaching the musealization as a reflexive and discursive process of (self)affirmation and reinvention of the museum. Keywords: Museum of Contemporary Art. Musealization. Museums Identity.

Apresentando-se como um estudo sobre museus de arte contemporânea, mais especificamente sobre a musealização da arte contemporânea como um processo de atualização, adesão, rutura, afirmação, reorientação de discursos e práticas institucionais, a investigação desenvolvida no âmbito de meu doutoramento em Museologia, realizado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto teve como principal objetivo explorar de que modo os museus ao musealizarem a arte contemporânea realizam os paradigmas, as discussões, as funções que os justificam e os fundamentam; e quais são as transformações por eles sofridas ao longo deste processo. Essencialmente caracterizou-se como uma discussão que diz respeito à constituição da identidade dos museus e procurou compreender e refletir criticamente acerca das ideias atuais, do conceito implícito do que vem a ser um museu de arte contemporânea quando uma determinada instituição se manifesta como tal. A investigação não se configurou, portanto, como uma tentativa de definição normativa do museu de arte contemporânea e nem como uma análise categórica que permitisse valorar os processos de transformações institucionais. Pelo contrário, desenvolveu-se com o propósito de problematizar a identidade dos museus de arte contemporânea priorizando suas diversas possibilidades institucionais. O marco contextual dessa investigação foi a convergência de três fenómenos que assinalam as últimas cinco décadas do mundo dos museus — faz-se aqui uma aproximação ao conceito the artworld de Danto (1964), referindo-se assim à história


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do museu, ao pensamento ou teoria museológica e à importância de ambos para o estudo e compreensão do museu enquanto tal –: o que pode ser definido como a reinvenção do museu; o boom de museus de arte contemporânea; e a própria arte contemporânea. Ou seja, são as reflexões e problemáticas que surgem do encontro entre esses três contextos que constituíram o pano de fundo da investigação e a animaram. Nesse sentido, a década de 1960 foi considerada um divisor de águas no mundo dos museus. Não somente pelos desafios suscitados pelas novas realidades políticas, governamentais, sociais, artísticas e culturais que se consolidaram a partir de então como também por uma crescente atitude crítica do museu sobre si mesmo, e por um crescente (auto)questionamento sobre seus limites, papéis, públicos e objetos, o que contribuiu para gerar uma certa crise existencial. No início dos anos de 1970, o diagnóstico traçado por Cameron assinalava um cenário dramático: Nossos museus precisam desesperadamente de psicoterapia. Existe abundante evidência de uma crise de identidade em algumas das principais instituições, enquanto outras estão em estado avançado de esquizofrenia. Estas, evidentemente, são doenças de museus relativamente novos, [...] mas a crise no momento, colocado em termos mais simples possíveis, é que nossos museus e galerias de arte parecem não saber quem ou o que eles são. Nossas instituições são incapazes de resolverem seus problemas de definição de função (1971, p.11).

No entanto, a reinvenção do museu, i.e., as adaptações, as respostas, as soluções do museu frente às exigências de uma nova realidade política, social e cultural — processo este orientado pela reconceptualização da relação entre o museu e seu público, onde a reflexão sobre os modos de construção do conhecimento apresenta-se como um aspeto vital (HOOPER-GREENHILL 2001) — indica que tais instituições não são tão incapazes assim. E a crise existencial implícita a todo este processo vem produzindo efeitos positivos na medida em que instiga o desenvolvimento de identidades reflexivas, o que pressupõe ao mesmo tempo, atualizações e reafirmações de práticas acertadas. Dito de outra maneira, por mais pós-moderno — líquido, tardio ou radicalizado — que tenha se tornado, o museu continua a ser o fruto da democracia, da educação universal, da consciência histórica, da nostalgia, do luto, do imperialismo, da amnésia, da pedagogia (POLLOCK & ZEMANS, 2007). Porém, o que tem se tornado cada vez mais evidente é que os museus não se constituem como efeitos passivos de conjunturas externas nem como manifestações estáveis de essências e verdades internas (FYFE, 1996). Em vez disso, museus constituem-se como arenas de encontros, como lugares atravessados por ideias, desejos, saberes, objetivos e interesses múltiplos e muitas vezes conflituosos; como lugares de confronto, tensão e clivagem (ZOLBERG, 1981). Assim, sua identidade é construída pela práxis cotidiana de diferentes agentes — públicos, artistas, conservadores, curadores, seguranças, gestores, museólogos, governantes —, pelas trocas e negociações diárias, pelos posicionamentos, conhecimentos e significados resultantes de todo este processo de interação.


A crise existencial do museu seria, portanto, o sintoma de uma identidade multiplamente construída ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou serem antagónicos, de uma identidade constantemente em processo de mudança e transformação (Hall, 2008). Frente a tal cenário, as questões que se colocam são: numa época marcada pelo boom de museus de arte contemporânea, ou seja, pelo extraordinário crescimento do número de instituições dessa natureza, mas também pela presença de tais instituições em cidades de qualquer tamanho, deixando de serem privilégios apenas das grandes metrópoles (LORENTE, 2008), pelo um certo valor utilitarista que considera os museus de arte contemporânea “peças motoras” dos projetos urbanísticos de reabilitação de áreas históricas ou degradadas, atribuindo a tais instituições a capacidade de reestruturação do tecido urbano, socioeconómico e simbólico e que as torna por um lado excelentes instrumentos para a projeção de uma “imagem monumental e expressiva do poder das cidades e seus governantes” (LAYUNO ROSAS, 2008, p.09) e por outro, objetos de intenso escrutínio: académico, empresarial, governamental, jornalístico (PRIOR, 2002); e numa época marcada, consequentemente, por uma diversidade de subjetividades institucionais — prioridades, agentes, estratégias de envolvimento, problemas, contingências — como os museus de arte contemporânea se reinventam? Como contextualizam os discursos e práticas que os identificam e os particularizam? Que discursos e práticas são estes? Que novos discursos são criados, que novas maneiras de colecionar, de expor, de conservar, de comunicar são desenvolvidas? Que museus de arte contemporânea !? É importante salientar que o museu de arte contemporânea como uma tipologia de museu é uma invenção de quase duzentos anos — considerando que o primeiro museu de arte contemporânea do ocidente, oficialmente chamado de Musée des Artistes Vivants, abriu ao público em 24 de Abril de 1818, no Palais du Luxembourg em Paris (LORENTE 1998) — e, a princípio, poderia ser entendido como um género de museu caracterizado pela natureza de sua coleção, i.e, caracterizado por colecionar arte contemporânea mas, também, por conservá-la, categorizá-la, investigá-la, torná-la inteligível. Porém, quando a própria arte contemporânea, seja pelas características de seus materiais e processos, seja pela sua pluralidade de momentos e práticas, tensiona e problematiza funções e conceitos sistematicamente estabelecidos ao longo dos últimos dois séculos — arte, artista, público, originalidade, autoria, autenticidade, permanência, visualidade, etc. —, qualquer noção segura de como musealizá-la é também suspensa. Conforme observa Belting: Durante muito tempo, os museus de arte pareciam ter nascido com uma identidade segura, salvaguardada pela sua designação de exibir arte e até de provê-la com o ritual necessário de visibilidade. No entanto, agora, à medida que entramos na era global, parecem enfrentar um novo desafio. Resta saber se o museu de arte, enquanto instituição, com uma história de pelo menos duzentos anos no ocidente, está preparado para a era da globalização. Não existe uma noção comum da arte que necessariamente possa ser aplicada


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a todas sociedades no mundo inteiro. A Arte Contemporânea, [...], levanta questões novas e difíceis. Por um lado, a produção de arte enquanto prática contemporânea está se expandindo no mundo inteiro. Por outro, precisamente, esta recente explosão parece ameaçar a sobrevivência de qualquer noção segura de arte, se é que ainda existe alguma, mesmo no ocidente. Os novos museus de arte vêm se estabelecendo em muitas partes do mundo,

contemporânea.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 205-213.

Nascimento, Elisa Noronha (2013) “Discursos e Reflexividade: um estudo sobre a musealização da arte

porém, será que a instituição sobreviverá a esta expansão? (2007, p.16)

Novamente, frente a tal cenário a investigação desenvolvida assume a musealização como o meio de atuação e reinvenção do museu, assume que através das negociações, escolhas e decisões implícitas às interpretações e representações consequentes ao ato de colecionar, conservar, expor, comunicar e tornar acessíveis seus objetos o museu constrói, questiona e afirma sua identidade. A musealização é analisada, assim, como um processo discursivo (Foucault, 2000, 2005), o que envolve a reiteração de normas, de convenções, de práticas significativas historicamente e culturalmente localizadas, mas também com um processo reflexivo (Giddens, 1991, 2000), o que envolve agência e disrupção crítica no fluxo do pensamento e da ação. A partir desta perspetiva, para além de ser uma instituição que realiza a musealização — ao transformar objetos em testemunhos auténticos de uma determinada realidade — o museu é ele próprio realizado ou performado pela articulação dos diferentes elementos que constituem este processo: seus espaços físicos, objetos, práticas, agentes, conceitos, determinações, objetivos, valores. Neste sentido, a questão emergente é: como os museus de arte contemporânea são performados através do comprometimento que estabelecem com o seu próprio objeto, i.e., com a arte contemporânea? Contudo, apesar da investigação se centrar nos modos como os museus se afirmam e se reinventam ao musealizarem a arte contemporânea, não pressupõe que a identidade dos museus esteja apenas relacionada com os tipos de relações que estabelecem com os seus objetos — crítica, discursiva, reflexiva, ritualista — e nem que estas sejam as únicas relações estabelecidas. Pelo contrário, assume que a reinvenção dos museus situa-se, principalmente, na realização de uma política de conversação cultural entre muitos participantes e através da promoção de espaços para onde confluem uma série de dilemas, contradições e tensões em relação aos processos de seleção e produção de conhecimento (PADRÓ, 2003). O que o estudo propõe é que a musealização da arte contemporânea constitui-se como um destes espaços. Embora este estudo tenha dialogado com distintas áreas de conhecimento como os Estudos Artísticos e os Estudos Culturais, a sua realização se deu no campo discursivo da Museologia, assumindo o pensamento crítico museológico como perspetiva orientadora, como programa de entendimento da realidade museal. E de uma certa maneira, está identificado com os estudos que orbitam a museologia crítica (SHELTON, 2001, 2006), na medida em que se caracteriza como uma tentativa de abarcamento de tal realidade com o propósito de analisar e supervisionar todas aquelas aderências que, com o passar do tempo, impedem o seu crescimento e revitalização


(HERNANDEZ, 2006), desde uma postura interdisciplinar, circunstancial, política, reflexiva e emancipadora (PADRÓ, 2003). Assim sendo, procurou-se construir um entendimento sobre os museus de arte contemporânea centrando-se nos movimentos de recontextualização dos pressupostos, dos discursos, das práticas que os identificam e fundamentam. Para tanto, desenvolveu-se uma estratégia metodológica híbrida — “caracterizada pela utilização pragmática de princípios metodológicos e como forma de fugir à filiação restritiva a um discurso metodológico específico” (FLICK, 2009, p.33) —, assente na metodologia dos Estudos de Caso, implicitamente comparativos, e em diferentes métodos de recolha e análise de dados, com o intuito de compreender como os mesmos se organizam e se identificam enquanto museus desta natureza, problematizando, assim, as aderências e as ideias subjacentes do que vem a ser um museu de arte contemporânea quando uma determinada instituição se manifesta como tal. Seguindo critérios ao mesmo tempo teóricos, políticos, práticos e subjetivos, e orientando-se pelo princípio de semelhança — como uma pré-condição para uma abordagem comparativa —, foram selecionados para essa análise três museus: o Museu do Chiado — Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa (Portugal), o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto (Portugal), e o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em São Paulo (Brasil). Entre tais critérios estava a condição de que fossem museus designados enquanto museu de arte contemporânea — designação esta que define ou manifesta sua especialização institucional; e de que fossem museus ibero-americanos, especialmente, museus de Portugal e do Brasil, objetivando deslocar-se um pouco do eixo geográfico dominante dos estudos museológicos sobre os museus de arte contemporânea, possibilitando o confronto destes estudos com realidades que muito raramente são contempladas pelos mesmos, o que contribui para a construção de um pensamento mais crítico e reflexivo sobre tais instituições. Deveriam ser, ainda, museus cuja importância histórica, cultural e artística de suas coleções fossem reconhecidas nacionalmente; e que suscitassem o interesse ou a curiosidade em investigar e conhecer suas práticas e processos. Uma vez selecionados os museus, a investigação iniciou-se de maneira exploratória e heurística, visando desenvolver um quadro de discussão para a análise dos estudos de caso. Para tanto, através de uma revisão da literatura sobre museus de arte contemporânea, procuraram-se identificar discussões, paradigmas, questões, pressupostos que uma vez articulados pudessem fundamentar ou operar como uma abordagem ou entendimento de tais instituições. Sem a pretensão de identificar uma totalidade de discursos, definiram-se sistematicamente quatro problemáticas que estariam na base dos processos e estudos dos museus de arte contemporânea (quadro 1). Estas problemáticas orientaram o primeiro contato com cada um dos casos, funcionando como linhas ou domínios de investigação.


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Quadro 1: Problemáticas que estariam na base da prática e do estudo dos museus de arte contemporânea

211 1. O museu de arte contemporânea e a sua história: a origem histórico-objetiva do museu de arte contemporânea, apresentada como exemplo e resultado de um processo de consecutiva especialização e fragmentação que atingiram os museus a partir do século XIX, como consequente à subdivisão do museu de arte e complementar ao museu de arte antiga; a utilização do termo contemporâneo como maneira de definir a especialização de um museu; os valores e funções subjacentes à sua consolidação ao longo dos seus quase duzentos anos de existência; os modelos paradigmáticos; as novas perspetivas, papéis,

contemporânea.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 205-213.

Nascimento, Elisa Noronha (2013) “Discursos e Reflexividade: um estudo sobre a musealização da arte

agente e desafios que surgem a partir das últimas décadas do século XX. 2. O museu de arte contemporânea e sua dimensão espacial/arquitetónica: os modelos arquitetónicos referenciais; o museu de arte contemporânea como espaço de encenação espetacular; seu protagonismo nos projetos de reabilitação urbanística e na projeção do poder (económico, cultural, turístico) das cidades e dos seus governantes. 3. O museu de arte contemporânea e suas poéticas e políticas museológicas: as narrativas e os discursos expositivos; o dilema entre exposição permanente vs. exposições temporárias; a revisão histórica dos modos de expor a arte contemporânea; o museu como espaço de experimentação, interpretação, entretenimento e produção de conhecimento; o museu e seus agentes i.e, seus públicos, profissionais, parceiros, mecenas e patronos; as agendas curatoriais e de pesquisa; as políticas de gestão das coleções; os desafios e as estratégias de conservação da arte contemporânea. 4. O museu de arte contemporânea e o artista: a crítica institucional; o envolvimento dos artistas na criação de estruturas institucionais; os diálogos entre o artista, o museu e o público.

Este primeiro contato foi realizado através de uma revisão da bibliografia sobre os casos e de uma leitura exploratória dos seus registos de práticas e processos — atas, memorandos, textos de catálogos e exposições, vídeos, fotografias. O objetivo foi perceber quais das quatro problemáticas definidas eram compartilhadas e referidas pelos relatos e estudos sobre os processos de formação institucional do MNAC, do MAC-USP e do MACS, e, por conseguinte, definir quais seriam assumidas como contextos ou esferas de discussão na análise do processo de construção da identidade de cada museu ao musealizarem a arte contemporânea. A partir deste confronto foi possível redefinir o quadro de discussão para que o mesmo respeitasse a integridade e as particularidades de cada caso, e permitisse ao mesmo tempo estabelecer comparações possíveis entre eles. Tornando-o consentâneo com as questões e objetivos desta investigação, este quadro passou a ser constituído por três esferas de discussão (quadro 2) que orientaram a recolha e análise dos dados no segundo momento da investigação, i.e., durante o desenvolvimento dos estudos de caso.


Quadro 2: Três esferas de discussão para a análise dos estudos de caso

1. Museu de arte contemporânea: modelos paradigmáticos e casos inspiradores, i.e, a consolidação do museu de arte contemporânea através da reprodução ou emulação de paradigmas institucionais. 2. Museu de arte contemporânea em suspensão, i.e., o museu de arte contemporânea entendido como uma tipologia de museu que coleciona, conserva e expõe a arte contemporânea e que é tensionado e problematizado pelas características materiais e conceituais de seu próprio objeto. 3. Diálogos entre o museu e o artista, i.e., as estratégias de envolvimento crítico e reflexivo que surgem da relação entre o museu de arte contemporânea e o artista.

De uma maneira geral, a recolha dos dados durante o desenvolvimento dos estudos de caso foi realizada pela triângulação entre métodos (Denzin & Lincoln, 2005), combinando pesquisa bibliográfica — e aqui se refere à literatura científica, teórica e jornalística sobre os casos —, pesquisa documental — tendo como fonte os registos de práticas e processos institucionais de cada caso —, e entrevistas semiestruturadas, de estilo conversacional (Cohen, et al., 2007) com os responsáveis por diversas práticas ou setores dos museus investigados, i.e., entrevistas orientadas por um roteiro de perguntas previamente elaborado, mas com um certo grau de abertura no que diz respeito à sequência das perguntas e à admissão de questões emergentes durante a realização das mesmas. Partindo do paradigma sócio-construtivista e, portanto, assumindo uma ontologia relativista e uma epistemologia subjetiva e transacional (DENZIN & LINCOLN, 2005), a análise discursivo-interpretativa dos dados aconteceu concomitante a recolha dos mesmos. Desta forma, foi possível proceder através de questões de natureza analítica — suscitadas pelo quadro de análise e pelos próprios dados que se colhiam —, mais orientadas para processos e significados do que para causas ou efeitos; e planificar as sessões de recolhas de dados no sentido de responder as questões emergentes e as que permaneciam em aberto (BOGDAN & BILKEN, 1994). Este trabalho foi acompanhado pela produção informal e periódica de notas, comentários, relações entre dados como uma técnica de estímulo ao pensamento crítico sobre os casos, e de estímulo ao pensamento reflexivo sobre o próprio percurso investigativo. Em síntese, esta investigação foi delineando-se como essencialmente qualitativa, com uma estratégia metodológica flexível construída simultaneamente ao desenvolvimento dos estudos de caso, procurando responder à sua complexidade e multiplicidade de sentidos. Contactar a autora: elisa_nr@yahoo.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013


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Memórias das exposições temporárias do Museu Calouste Gulbenkian. Contributos para a divulgação do património cultural THE MEMORIES OF GULBENKIAN MUSEUM’S TEMPORARY EXHIBITIONS. Contributions to the cultural heritage awerness

Ochoa, Elisa (2013) “Memórias das exposições temporárias do Museu Calouste Gulbenkian. Contributos para

a divulgação do património cultural.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 214-222.

Elisa Ochoa Resumo: Neste artigo, apresenta-se um projeto que consistiu numa análise histórica das exposições temporárias da Fundação e do Museu Calouste Gulbenkian, com vista a traçar as linhas de força das suas políticas de exposições e concorrer para a divulgação futura do seu património cultural. Como proposta foi realizado um catálogo (“expografia”), publicado no novo sítio do museu, dando acesso às memórias e identidade das exposições temporárias do Museu, e ao conceito fundador das mesmas, enquanto motor de conhecimento e inclusão social de um património mais dinâmico e ativo. Palavras-chave: Exposições temporárias. Memórias. Património cultural. Divulgação

Abstract: This Project consisted of an historic analysis of the temporary exhibitions of Calouste Gulbenkian Foundation and Museum, aiming to map out the thrusts of its exhibitions policy and to lead to the future communication of its cultural heritage. As a proposal it was designed a catalogue (“expografia”), published in the new museum web site, giving access to the museum’s temporary exhibitions identity and memory and to a new concept, which is the driver of social knowledge and inclusion of a more active and dynamic heritage. Keywords: Temporary exhibitions. Memories. Cultural heritage. Communication. Introdução

Qual o papel das exposições temporárias nas memórias do património cultural, numa sociedade que se define pelos meios de informação? Como podem as exposições temporárias vivificar o património, num mundo em constante transformação e redefinição dos seus valores culturais? Como pode o museu dar acesso integral às memórias das suas exposições e patrimónios, de forma eficaz, permitindo a assimilação de conhecimentos mais rapidamente? Ao apresentar este projeto de investigação, desenvolvido no Museu Calouste Gulbenkian, entre os anos 2012/2013, pretendo dar especial enfoque à abordagem teórica e metodológica que me conduziu a uma série de conclusões válidas que dão contributo a uma nova relação do património com os públicos atuais. Primeiro, entender que não se pode projetar o futuro da nossa cultura sem per-


ceber as orientações passadas e presentes das entidades responsáveis, e em segundo lugar, que as exigências sociais face à assimilação do património são cada vez maiores e mais diversificadas, pelo que a gestão e divulgação culturais têm de acompanhar essas transformações, introduzindo-se na vida quotidiana, a partir de meios de comunicação mais uniformizados e sintetizados que fazem coabitar num mesmo “espaço” (página Web de exposição, acontecimentos, conferências, filme, experiência laboratorial), objetos, ideias, instalações, narrativas, performances, etc., trazendo para o presente uma herança recontada, apreciada e modificada. Tendo como ponto de partida estes pressupostos, é necessário clarificar que os conteúdos objectuais ou não (cultura material e imaterial) do património mantêm-se intactos; é a sua forma de apresentação e os meios de divulgação que são gradualmente transformados, indo ao encontro de um mundo mais informativo, mais interativo e ‘dis-traído’(Do Latim DISTRAHERE, “separar, puxar em diferentes direções”, formada por DIS-, mais TRAHERE, “puxar, arrastar”. Sinónimos da palavra: entretenimento, divertimento.), sedento de novos estímulos e aparatos de ‘dis-tração’, normalmente disponibilizados pela tecnologia. Mais à frente serão apresentadas as várias fases da intervenção museológica que culminaram num novo aporte comunicacional das exposições temporárias e, desse modo, num novo conceito de exposições que contribui para a vivificação do património. Política das exposições temporárias do Museu Calouste Gulbenkian — uma análise

A partir de uma análise da programação das exposições temporárias da Fundação Calouste Gulbenkian e do seu museu, foi possível traçar algumas ideias-chave que mostram como a divulgação cultural foi estruturada e foi, desde o seu início, centro de outras preocupações sociais. A cultura é útil, mas tem também utilidade fora da sua esfera; servindo outros propósitos. Com uma abordagem histórica, temática e estética de cada exposição, foi possível fazer uma leitura dos pressupostos da Fundação Calouste Gulbenkian, no que diz respeito à sua cultura material e ao que de social, político e económico pode oferecer. Desde 1960, com a autonomização do Serviço do Museu em relação ao das Belas-artes, a programação da Fundação tinha em vista, prioritariamente, a organização da coleção através de uma exposição permanente, e também de exposições temporárias, compreendendo que a planificação e seleção públicas do acervo necessitariam de um total empenho técnico, ao nível da qualidade e conservação dos objetos, ao nível dos contextos históricos do seu colecionador, dos discursos museológicos que pretendiam evidenciar e, igualmente do rigor científico, o tipo de exposições que se realizariam, tendo em conta a sua inquestionável ligação à coleção. (PERDIGÃO; 1961) Tendo a Gulbenkian consciência, desde o início, da gestão do seu património cultural, conseguiu mais tarde, com a programação do Museu, criar extensões culturais relevantes para a pedagogia (“Fábulas de La Fontaine”); para a inserção social (“As


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a divulgação do património cultural.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 214-222.

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Fig. 1 - “As pinturas da coleção da

Fig. 2 - “Exposição de artes plásticas”,

fundação”, MNAA 1961

SNBA, 1956

Fig. 3 - “A rainha D. Leonor”, Convento

Fig. 4 - “As artes plásticas francesas”,

Madre Deus, 1958

MNSR, 1964

Fig. 5 - “Turner - 1775 a 1851”, MCG, 1973

Fig. 6 - “O túmulo da rainha Nofretari”, MCG, 19791964Abril 2013)

Fig. 7 - “Fasciculus Temporum”, MCG, 1992


mãos vêem”); para o conhecimento mais vasto da história de arte, relacionando-a com temas de interesse público (“Art Déco 1925”); para as ligações diplomáticas com outros países, fazendo crescer o intercâmbio de obras de arte e, assim, a história dos objetos da coleção, quando colocados com outras coleções e espaços expositivos (“A arte do Retrato-quotidiano e circunstância”). As parcerias e empréstimos de outras coleções ou instituições, constantes no MCG, especialmente os consagrados à arte islâmica são diversas (“7000 anos de Arte Persa. Obras-primas do Museu Nacional do Irão”), podendo-se apontar algumas exposições que foram um importante foco de interligação de patrimónios de diferentes regiões, com origens idênticas e que, ao encontrarem-se nestas iniciativas, divulgam as várias geografias artísticas e fortalecem “uma compreensão recíproca e um diálogo entre culturas”. (VILAR, 2004: 13) Estes são alguns exemplos de exposições temporárias que ilustram a política e a missão culturais do Museu, e que, ao longo destes 57 anos, têm vindo a acompanhar as necessidades sociais, sem pôr em causa a sua ideologia museológica muito singular, diria única, dentro do panorama museológico português. Esta breve síntese descritiva das ações resultantes do perfil das exposições temporárias do Museu Gulbenkian, remete-nos para a questão essencial, a saber, que funções têm os museus, na preservação e divulgação do património, quando a concorrência informativa se torna uma ameaça para a existência e propósitos das instituições culturais? De que forma estas podem ser responsáveis pela assimilação cultural à grande escala? Chamamos ao longo percurso da Gulbenkian, paradigmático, pois o seu intenso serviço, prestado à atividade cultural, fez-se de várias maneiras: apoio museológico e museográfico (MNAA, Convento Madre Deus, Sociedade Nacional de Belas-Artes, MNSR), (Figs.1,2,3,4); Organização de programas de arte, divulgação da arte portuguesa para o estrangeiro (parcerias internacionais e especialistas estrangeiros que estudaram a coleção). (Figs.5,6,7); Intercâmbio e diálogo constantes com inúmeras instituições nacionais (Palácio Nacional de Mafra, Palácio Nacional da Ajuda, MNSR, Casa-Museu Anastácio Gonçalves) (Figs.8 e 9); A transversalidade de temas de interesse público com as exposições (Figs. 10,11,12);

Fig. 8 - “Pintores da escola do Porto”, MCG, 1983 Fig. 9 - “Pintura portuguesa na coleção A. G.”, MCG, 1979


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Ochoa, Elisa (2013) “Memórias das exposições temporárias do Museu Calouste Gulbenkian. Contributos para

a divulgação do património cultural.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 214-222.

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Fig. 10 - “Cartier (1899-1940)”, MCG, 2007 Fig. 11 - “A perspectiva das coisas II”, MCG, 2011 Fig. 12 - “As idades do mar”, MCG, 2012

Reflexão e debate estético de novas ideias, apresentação de obras de arte enquanto veículos de conhecimento, uma nova maneira de fazer história com a arte e, por conseguinte, um papel ativo na construção da história de arte. (Figs.13,14,15)

Fig. 13 - “A imagem do tempo”, MCG, 2000 Fig. 14 - “Conceber as artes decorativas”, MCG, 2005 Fig. 15 - “Tarefas infinitas – quando a arte e o livro se ilimitam”, MCG, 2012


O papel das exposições temporárias na construção de um património vivo — uma nova ferramenta “Expografia”

A formação das memórias estabelece uma importante função social, na medida em que reproduz informações (mesmo antes dos dados escritos) sobre um objeto, as suas características físicas, cores, afetos, imagens, que marcam o seu acontecimento. Assim, um espécime pode ter várias memórias consoante os contextos em que esteve e/ou está inserido. O conceito-museu contém em si mesmo esta noção de memória que pode ser estudada e divulgada de diferentes modos. A intenção, primeira e última, é que estas memórias e histórias presentifiquem o património e que o tornem, simultaneamente, num gerador de novas infra-estruturas, de novos meios de educar e alargar os horizontes cognitivos e emocionais, acompanhando, simultaneamente, o progresso informativo. Sendo a coleção de arte do Sr. Gulbenkian o berço deste projeto museológico, foi com ela que a necessidade de informar, educar e investigar surgiu, integrando a coleção no domínio público (social), através de exposições temporárias, mas também apoiando iniciativas culturais que eram importantes para o crescimento e mudança culturais do país. A Fundação interveio fortemente no cenário cultural nacional, possibilitando que a produção artística contemporânea começasse a ter uma voz própria. Apenas um ano depois da sua formalização legal (Julho de 1956), a Fundação Calouste Gulbenkian fez a primeira intervenção pública na vida cultural nacional, organizando uma exposição realizada nas instalações da Sociedade Nacional de Belas-Artes. Para os responsáveis da Fundação, esta exposição iria permitir-lhes traçar “uma visão panorâmica do estado actual das artes plásticas em Portugal” que, no final da década de 1950, revelava evidentes sinais de mudança (BARATA, 2011: 30)

Um outro aspeto da ação cultural da Fundação, foi o diálogo entre coleções (sua e de outras instituições ou colecionadores), abrindo o caminho da arte portuguesa pouco conhecida e, ao mesmo tempo, internacionalizá-la. Exemplo disso foi a exposição temporária de 1964, “Arts plastiques français — de Watteau à Renoir”, que teve lugar no Museu Nacional Soares dos Reis. Ao pôr em confronto as artes plásticas francesas (Gulbenkian) com as portuguesas (MNSR) — ainda que expostas em salas separadas – num período de afirmação cultural nacional, proporcionou uma releitura dos nossos mestres e alargou o seu conhecimento a outros públicos. A exposição temporária, sendo considerada um elemento estratégico de divulgação do museu, pretende também ser uma âncora do mesmo, na medida em que incentiva e estimula a vinda de novos públicos. Neste sentido, as exposições temporárias são uma forma de vivificar o património através da polissemia que carregam consigo quando contam histórias diferentes e contribuem para o conhecimento da história de arte.


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a divulgação do património cultural.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 214-222.

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A diversidade de exposições temporárias, bem como as suas características de perfil, permitem um olhar mais amplo sobre o património cultural do museu. Assim, fazendo uma leitura global da produção expositiva, nos últimos 60 anos, pode-se concluir que a mesma foi diversificada nos seus conteúdos: exposições de núcleos da coleção, incluindo as reservas; exposições temáticas; exposições comemorativas e evocativas; exposições realizadas fora do Museu Gulbenkian, exposições direcionadas a públicos específicos; parcerias; proveniências diversas e coleções emprestadas; museografia, exposições monográficas, entre outras. Ao verificar a riqueza patrimonial destas exposições e suas estratégias de dinamização cultural, criou-se uma tabela (Tabela 1) com as variáveis e as constantes expositivas onde se traçaram as linhas de força entre elas. Esta tabela não só, ajudou nas diferentes leituras da programação do museu, mas também, abriu o caminho para a “expografia” (Ochôa; 2013), uma ferramenta de trabalho que permite conhecer e analisar muitos aspetos fundamentais das exposições, bem como compreender as suas mutações históricas. Novas abordagens ao património são produzidas, no sentido de melhorar a sua divulgação e participação nas experiências do visitante/público.

Tabela 1 - vista parcial da tabela. A tabela completa será apresentada na comunicação. (©Elisa Ochôa, 2012)

“Expografia” – memórias das exposições temporárias e seus contributos

A “expografia”, elaborada para conter num só lugar o ‘bilhete de identidade’ de cada exposição temporária do Museu Calouste Gulbenkian, surgiu da necessidade prática de disponibilizar, para o futuro dos visitantes, um conhecimento imediato, visual ou mais académico da programação do museu. Com esta proposta pretendeu-se também estimular e transformar as abordagens e experiências pessoais que um indivíduo tem quando visita uma exposição, podendo participar autonomamente das


lógicas e motivações expositivas, ao ter a oportunidade de aceder muito facilmente a esta base de dados de variadas formas: pesquisa por palavra-chave, pesquisa por categoria dos objetos expostos, pesquisa cronológica, pesquisa narrativa e pesquisa visual (aspetos de sala). O percurso teórico deste projeto implementado, seguiu um estilo muito próprio: a investigação sobre as políticas culturais da Fundação e Museu Calouste Gulbenkian, com missões sociais muito claras, levou-me à natureza das suas exposições e, por conseguinte, ao seu papel fundamental na vivificação do património. Uma sistematização das suas memórias proporcionaria vários caminhos possíveis para um objetivo: fazer da combinação dos objetos e suas narrativas um veículo de aprendizagem, que pode ter várias aplicações: sistemas informativos (digitais), ateliês, programas pedagógicos, debates (como aquele que se propõe fazer neste simpósio), exposições, publicações, etc. Todos estes caminhos possíveis se abrem às comunidades culturais, através da “expografia”, pois esta estabelece redes de comunicação internas entre serviços, que disponibilizam para o exterior, (públicos potenciais e activos) informações de interesse público como: acesso virtual, e posteriormente físico, a catálogos, conferências (em formato vídeo), plantas, percursos virtuais de exposições, artigos relacionados, base de imagens, partilhadas por diferentes departamentos, outras instituições culturais que possam ter ligações com o Museu. Por último, este projeto pretende ser o começo de futuras e frutuosas propostas que lhe dêem seguimento e possam contribuir mais e melhor para um património vivo e presente na vida coletiva.

Tabela 2 - vista parcial da “expografia”. Uma versão digital será apresentada nesta comunicação. (© Elisa Ochôa, 2013)

Contactar a autora: elisaochoa74@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013


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Referências · BARATA, Ana. “As exposições de artes plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian (1957, 1961 e 1986)” In: Newsletter, n 120, Lisboa, 2011 · PERDIGÃO, J. Azeredo. Relaório do Presidente, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1961. · VILAR, R. Emílio (Apresentação), In Islamic Art in the Calouste Gulbenkian collection, Abu-Dhabi, MCG, Lisboa, 2004 Sites consultados · www.museu.gulbenkian.pt · www.wiktionary.org

Ochoa, Elisa (2013) “Memórias das exposições temporárias do Museu Calouste Gulbenkian. Contributos para

a divulgação do património cultural.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 214-222.

· www.origemdapalavra.com.br Todas as imagens pertencem ao arquivo do Museu Calouste Gulbenkian


Museus e Guerra: da Convenção de Haia (1954) aos “tesouros nacionais” (2006) Museums and War: from the Hague Convention (1954) to “national treasures” (2006)

Elsa Cristina Carvalho Gomes Garret Pinho Direção-Geral do Património Cultural, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa

Resumo: Em 7 de agosto de 1956, entrou em vigor a Convenção para a proteção dos bens culturais em caso de conflito armado (Convenção de Haia). Naquele contexto, Portugal equacionou pela primeira vez a necessidade de assegurar a salvaguarda do património artístico da Nação. Cinquenta anos mais tarde, após o furto das joias da Coroa, em Haia, seriam decretados os tesouros nacionais , mas o Plano Nacional de Emergência continua a ser uma miragem. Palavras chave: Convenção de Haia. Museus. Tesouros Nacionais. Plano de Emergência

Abstract: On August 7, 1956, the Convention for the protection of cultural property in armed conflict (the Hague Convention) entered into force. Subsequently and for the very first time, Portugal felt the need to take measures in order to protect the national heritage. Fifty years later, after the theft of the crown jewels in The Hague Museum, the “national treasures” were finally defined, but a National Emergency Plan still remains a mirage. Keywords: The Hague Convention / Museums / National Treasures / Emergency Plan A Cultura está sempre na primeira linha dos conflitos armados, usada deliberadamente para inflamar o ódio e evitar a reconciliação. (Ms. Irina Bokova, Diretora-Geral da UNESCO)

Em contexto de guerra, destruir, pilhar ou vandalizar bens culturais é ferir de morte o inimigo, atacando a sua essência histórica e a sua identidade coletiva. Mais prosaicamente, é também uma via fácil para obter moeda de troca destinada à compra de armamento. Finda a II Guerra Mundial, o mundo — e em particular a Europa, principal palco das hostilidades —, compreendeu que a par da incomensurável tragédia humana associada ao holocausto, grande parte da sua memória coletiva havia desaparecido para sempre, estilhaçada pelos bombardeamentos e vilipendiada por pilhagens infames, tendo como consequência imediata a alienação e a dispersão do património cultural. Os museus não ficariam alheios a este fenómeno, quer por necessidade de proteção das coleções, quer, mais recentemente, ao virem a incorporar nos seus acervos algumas das obras espoliadas pelos nazis. Confrontada com esta dura realidade e sabendo que no mundo haverá sempre


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cenários de guerra, a comunidade internacional promoveu uma Convenção com vista à Proteção da Propriedade Cultural em Caso de Conflito Armado, acordo que ficaria genericamente conhecido por Convenção de Haia, por ter sido celebrado naquela cidade holandesa, em 14 de maio de 1954. A Convenção, que estabelecia o património cultural como pertença da Humanidade, reconhecia que a proteção desse património em contexto de guerra só seria eficiente se tivesse sido preparada em tempo de paz. O texto da Convenção seria complementado com dois Protocolos, o 1º dos quais, também de 1954, visava impedir a exportação ilícita de bens culturais dos território ocupados, ficando as Altas Partes Contratantes obrigadas a sequestrar todos os bens procedentes de um território espoliado, para os devolverem no final do conflito. O Regulamento de execução da Convenção, pressupunha que os Estados Partes fizessem o “trabalho de casa”, definindo internamente as listas de bens culturais que beneficiariam de “proteção especial” e de imunidade, e envidando todos os esforços no sentido de procederem à avaliação dos riscos e ao levantamento das estruturas existentes — ou a criar, como refúgios improvisados – para salvaguarda dos respetivos tesouros nacionais em cenário de guerra. Com o Egito, a Hungria e a Polónia entre os primeiros países a ratificarem este acordo internacional no próprio ano da sua entrada em vigor (7 de agosto de 1956), desde 1953 que em Portugal o projeto da Convenção constituiu motivo de reflexão política e de apreciação técnica. Para tal foi criada, por Portaria publicada na 2ª série do Diário do Governo nº 170, de 22 de julho de 1953,1 a “Comissão encarregada de estudar as providências a adotar, em caso de guerra, para proteção dos bens culturais da Nação”, constituída pelo diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, Dr. João Couto, que presidia, e por cinco vogais em representação da Defesa Nacional (Capitão do Estado Maior Francisco Ferreira Valença)2, do Ministério do Interior (Tenente Raúl Leoni de Carvalho Branco), do Ministério dos Negócios Estrangeiros (Dr. Francisco Neto de Carvalho ou Dr. Francisco Mendes da Luz), do Ministério das Obras Públicas (Arquiteto Luís Benavente) e da Legião Portuguesa (Dr. João Ameal). Foram ainda nomeados o Professor Reynaldo dos Santos, o Dr. Mário Tavares Chicó e o Escultor Diogo Macedo, para a área dos museus, palácios e monumentos. A seleção do património bibliográfico e arquivístico ficaria a cargo do Diretor da Inspeção-Geral das Bibliotecas e dos Arquivos, Dr. Luís Silveira3, enquanto o Dr. Manuel Heleno apresentaria uma lista dos monumentos arqueológicos e o DiretorGeral dos Monumentos Nacionais ocupar-se-ia da revisão e atualização da lista dos monumentos nacionais a proteger. Em dezembro do mesmo ano, Portugal, porque membro da ONU, era convidado a estar presente na Conferência Intergovernamental a realizar em Haia, entre 21 de abril e 12 de maio de 1954, para discussão do projeto da Convenção. Ficaria decidido que, durante os dois anos subsequentes, competiria à Conferência Geral da UNESCO levar a cabo a revisão do texto do diploma, para só posteriormente passar essa atribuição para a reunião dos representantes das Partes Contratantes. Ora, sendo certo que as


alterações à Convenção só produziriam efeitos depois de aceites por todos os Estados Partes, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português desde cedo se demarcou dos seus pares ao afirmar que a Ata Final, a Convenção e o respetivo Protocolo apenas teriam real valor se fossem ratificados pelas grandes potências militares: a Federação Russa e os Estados Unidos da América. Até lá, reiterava a diplomacia portuguesa, o País deveria adiar a vinculação àqueles documentos, aguardando cautelosamente pela posição dos demais Estados soberanos. Esta postura imprimiu uma dinâmica diferente à missão portuguesa, levando o Estado a “encará-la com menos favor” e a protelar a ratificação da Convenção de Haia por mais quarenta e quatro anos4. Não obstante a decisão então tomada, a Comissão nomeada continuaria a desenvolver trabalho5 com o objetivo de cumprir a missão que lhe havia sido confiada, até porque, como reconhecia o Dr. João Couto, Portugal encontrava-se “no campo da defesa do património artístico, completamente desprevenido”6. E essa missão consistia em: 1 — Identificar os bens culturais merecedores de proteção em caso de conflito armado, agrupando-os em três escalões distintos em função do seu valor intrínseco dos objetos mas também da sua representatividade enquanto testemunhos da memória coletiva e da identidade nacional. 1.1. — Os bens integrados no 1º escalão (ou categoria A) seriam os merecedores de “proteção especial”, incluindo os móveis, os centros históricos e os imóveis considerados insubstituíveis “e cuja perda constituiria um empobrecimento sensível não só para a Nação interessada mas para a humanidade inteira”. 1.2 — Ao 2º escalão (categoria B) corresponderiam os bens a atribuir “proteção limitada” e compreenderia os bens “de muito grande importância”; 1.3 — Aos classificados no 3º escalão (categoria C) seria atribuída “proteção simples” e corresponderiam aos bens de “grande importância”. 2 — Proceder ao inventário nacional de todos os locais, naturais e construídos, suscetíveis de virem a ser utilizados como abrigo para os bens culturais deslocalizados em contexto de guerra. Da relação final dos abrigos constariam, obrigatoriamente, a respetiva localização, a qualidade dos acessos, o espaço disponível e as condições ambientais, bem como a espessura da camada de revestimento em função dos efeitos mecânicos de explosão ou de embate. Os abrigos destinados a “proteção especial”, secretos, teriam de responder, cumulativamente, a exigências de ordem técnica e a todas as outras especificadas no texto da Convenção. Já os abrigos reservados aos bens com “proteção limitada” teriam de reunir condições técnicas adequadas e permitir uma fácil e célere evacuação dos bens culturais dos seus locais de origem. 3 — Selecionar, com a colaboração direta das autoridades militares, de entre os abrigos identificados no território continental e nos arquipélagos da Madeira e dos Açores,


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aqueles para onde pudessem ser transferidos os bens culturais móveis a proteger. 4 — Elaborar um relatório final, com o objetivo de servir de base a um Plano de Emergência Nacional, em que a Comissão proporia medidas concretas de proteção do património cultural existente em Portugal, incluindo: preparação dos abrigos, definição dos materiais indispensáveis a qualquer operação de evacuação de emergência, planeamento do transporte dos bens culturais móveis, atribuição de responsabilidades às diferentes entidades envolvidas em operações de resgate e elaboração de processos técnicos para a eventual reconstituição dos bens culturais deteriorados ou extraviados. Por último, a identificação primária dos meios técnicos e dos recursos necessários à operacionalização do dito Plano de Emergência. A fim de cumprir a primeira etapa da sua missão, um mês depois de ser nomeada, a Comissão enviou a todas as entidades detentoras de bens culturais relevantes — museus, palácios, bibliotecas e arquivos nacionais — uma primeira circular em que solicitava a elaboração de um relatório circunstanciado sobre os bens culturais pelos quais eram responsáveis, classificando-os por níveis de valor. Para todos os bens culturais a proteger, as entidades inquiridas deveriam ainda facultar as respetivas caraterísticas específicas, designadamente as dimensões, peso, grau de fragilidade e possibilidade de transporte. Objetivamente, a referida circular de 11/08/1953 do Diretor do MNAA – reforçada por um 2º ofício datado de novembro do mesmo ano e por um 3º, de 20/04/1954, destinado às entidades em falta —, pretendia obter resposta às seguintes questões: 1 – Saber se haviam sido tomadas medidas especiais de proteção do imóvel e respetivo recheio por ocasião da Guerra de 1939-45, designadamente as emanadas da Direção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes: apetrechamento dos museus e palácios com pás, picaretas e baldes de areia e preparação de caixas de madeira, fortes, para acondicionamento imediato dos bens culturais a evacuar; 2 – Indagar se, na decorrência daquele conflito militar haviam sido elaborados planos de salvaguarda do património à guarda do Museu ou do Palácio; 3 – Identificar, dentro de cada acervo, as obras de arte prioritárias a evacuar, bem como recolher sugestões para as respetivas embalagens e transporte em situação de emergência, assim como instruções para proteção dos próprios imóveis. 4 – Apurar a capacidade de manutenção in situ dos objetos museológicos que, por serem considerados de menor valor cultural, não integravam as listas dos bens culturais a evacuar em contexto de confronto bélico ou estavam classificados no último escalão; 5 – Averiguar da possibilidade de os bens museológicos de maior relevância cultural virem a ser agrupados por lotes, dentro de diferentes escalões a definir em função de premência de evacuação, sendo que o estabelecimento da prioridade basear-se-ia “no valor histórico e artístico dos objectos e no interesse directo e fundamental que eles têm para a Nação.”7


Os bens que vieram a ser classificados no 1º escalão foram fotografados por Abreu Nunes8, destinando-se as imagens às fichas elaboradas para o efeito9 e que correspondiam ao “Inventário dos bens culturais da Nação – 1º escalão”, na seguinte proporção: Palácio Nacional da Ajuda, 77 fichas; MNAA, 101 fichas; Museu Nacional dos Coches, 10 fichas; Sé de Viseu, 12 fichas; Museu Regional de Aveiro, 23 fichas; Museu Regional do Abade de Baçal, 12 fichas; Museu Regional de Lamego, 11 fichas e Museu Regional de Alberto Sampaio, 9 fichas. Esta seria, aliás, a primeira mais-valia do trabalho da Comissão, ao dotar muitas destas instituições com os primeiros registos fotográficos das suas coleções10. A inventariação completa e inequívoca dos bens do 1º escalão era, aliás, condição sine qua non para que pudesse ser equacionado o eventual pedido de “proteção especial” prevista na Convenção. Sendo desejável que procedimento idêntico fosse aplicado aos bens do 2º e 3º escalões, admitia-se que, face à escassez de recursos, estes pudessem vir a ser identificados unicamente através de catálogos, inventários ou folhas de cadastro pré-existentes. Tais procedimentos não dispensavam, todavia, a ampliação do corpus técnico da Comissão e o reforço do respetivo orçamento, de modo a contemplar também a microfilmagem de espécimes documentais. Os primeiros relatórios elaborados pelos conservadores dos Palácios Nacionais relativos às medidas de defesa a adotar em caso de guerra seriam enviados à Comissão pela Direção-Geral da Fazenda Pública no dia 30 abril de 1954, embora as listagens de obras de excecional valor só mais tarde fossem entregues. O então conservador do Palácio Nacional da Ajuda, Manuel de Almeida Zagalo, consciente de que a seleção deveria ser parcimoniosa face ao número de coleções inquiridas a nível nacional, selecionaria os bens a incluir no 1º escalão em função do seu valor histórico, artístico e material, distinguindo, em setembro de 1955: as joias da Coroa (casa-forte); as pratas da baixela Germain; as tapeçarias francesas, flamengas e espanholas; os panos dos Távora e várias porcelanas. Já no interior do Palácio Nacional de Mafra não existiria, no entender de Armindo Ayres de Carvalho, “nenhum objecto de excepcional valor” digno de figurar no 1º escalão.”11. Nessa categoria de topo ficavam, sim, toda a estatuária, os retábulos, os carrilhões e as grades de ferro e bronzes da Basílica, pelo seu inegável valor artístico, sendo contudo desaconselhável a sua remoção do local pelas caraterísticas físicas dos próprios bens (peso, volume e fragilidade) “tendo melhores possibilidades de protecção no lugar onde se encontram, a exemplo do que se praticou com tantos monumentos equestres e outros, em Itália, a protecção com sacos de areia.” Pelo contrário, atendendo às características arquitetónicas do edifício, o complexo de Mafra garantia boas condições de segurança, com coberturas em abóbada, vários subterrâneos e caves que poderiam vir a acolher “todas as espécies consideradas com valor artístico e cultural da área de Lisboa”. O maior risco era, sem dúvida, a presença da Escola Prática de Infantaria, um alvo preferencial em contexto de conflito armado12.


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O conservador do Palácio Nacional de Sintra, Casimiro Gomes da Silva, ao mesmo tempo que recordava que as medidas tomadas durante a II Grande Guerra se haviam resumido à proteção dos vidros com tiras de pano, identificava a proximidade do Palácio à Granja do Marquês – terreno situado na freguesia de Montelavar, Sintra, onde se localizava a Base Aérea n.º 1 — como o principal risco para o património à sua guarda. Pela mesma razão, e tendo em conta o princípio de que a guerra “varre” tudo o que está junto a alvos militares, também não seriam indicados imóveis que, nas imediações do Palácio, pudessem acolher as obras evacuadas. Não obstante, para o efeito pretendido, chegaram a ser contactados a edilidade e o 10º Visconde de Asseca, então proprietário da Quinta de São Sebastião; a primeira, declinou a possível afetação de edifícios camarários à salvaguarda dos bens culturais do Palácio, em virtude de não dispor de dependências, fora dos Paços do Concelho, com as caraterísticas pretendidas. Já o Visconde se prontificou a estabelecer contactos com outros proprietários privados do concelho, uma vez que a sua propriedade não tinha espaços livres. A Quinta da Regaleira, inicialmente considerada uma hipótese pela administração do património, não só estava ocupada por crianças austríacas a cargo da Caritas como, por outro lado, era um edifício imponente e por isso um alvo fácil. A única solução seria, então, e à semelhança do que outros países que haviam feito no último conflito mundial, a construção de abrigos subterrâneos. As grutas naturais na Serra de Sintra, embora com diferentes amplitudes e muitas delas bastante exíguas, poderiam, in extremis, vir a ser encaradas como uma alternativa viável, muito embora as condições atmosféricas fossem adversas à conservação de bens culturais. No 1º escalão, o conservador do Palácio Nacional de Sintra incluiu as peças “de sumo valor histórico-artístico e, conforme o meu critério, também material” ou seja, peças que “se desaparecessem, ocasionariam, para o Património do Estado, perdas verdadeiramente irreparáveis”13. O Palácio Nacional da Pena seria descrito pelo seu responsável como um “caso especial” pela localização, o valor dos seus móveis e do próprio património edificado, destacando as zonas mais antigas e bem conservadas como o refeitório, o claustro, a torre e a igreja. Era precisamente neste último espaço que se encontravam as obras dignas de proteção especial: o retábulo escultórico de Nicolau Chanterenne, o vitral do coro feito a partir de desenho do Visconde de Menezes, os vitrais alemães oitocentistas e ainda duas esculturas francesas do séc. XV e um alabastro de Nottingham representando a Crucificação. Todos os restantes bens culturais, embora valiosos, poderiam ser facilmente evacuados para as sepulturas subterrâneas (devolutas, por determinação do Príncipe Consorte), a “prisão” ou mesmo as celas escavadas na rocha, cujo único impedimento eram as dimensões exíguas, ou mesmo as salas abobadadas do antigo mosteiro. A altitude e a localização geográfica privilegiadas eram, obviamente, os maiores perigos, deixando o Palácio vulnerável a possíveis bombardeamentos. Às dificuldades assinaladas pelos responsáveis dos Palácios Nacionais acresciam outras elencadas pelos Museus, nomeadamente por aqueles que tinham à sua


guarda coleções de excecional valor, de especial complexidade e cuja localização era de alto risco. No caso do Museu Nacional dos Coches, os três fatores coexistiam: as viaturas de aparato, únicas no mundo, com um peso unitário de toneladas e sem poderem rodar pelo próprios meios, exigiriam transporte especial e abrigo adequado, sendo que as de maiores dimensões teriam mesmo de ser desmontadas para saírem do antigo picadeiro real. Por outro lado, a inexistência de abrigos naturais nas imediações do Museu e a sua proximidade a várias instalações militares (quartéis da Calçada da Ajuda e depósitos de materiais de guerra) colocavam-no numa das zonas mais perigosas da cidade, em situação de conflito armado. O Museu Nacional de Arte Antiga, que terá sido o único a simular a evacuação de parte do acervo no decurso da II GG (1942 e 1943), para efeitos de resposta ao inquérito da Comissão, considerava não três mas quatro escalões de bens culturais: os absolutamente excecionais14, os bens integrados na exposição permanente, os conservados em reserva e que deveriam ser evacuados e, por último, os que deveriam permanecer no local, por força das suas dimensões, peso elevado ou menor relevância cultural, quiçá em abrigo a construir, aproveitando as diferentes cotas do terreno entre a Rua das Janelas Verdes e a Avenida 24 de julho. Já o Museu Nacional de Arte Contemporânea tentou ser parcimonioso na seleção dos bens museológicos, tendo classificado no 1º escalão de prioridades 19 pinturas e 4 esculturas de autores portugueses e 9 pinturas e 2 esculturas de autores estrangeiros. O Museu Etnológico do Dr. Leite de Vasconcelos, que por ocasião da II Grande Guerra havia definido um plano de retirada do acervo, mantinha as prioridades então assinaladas: a extensa coleção de ourivesaria arcaica, os núcleos de numismática e medalhística, a cerâmica pré-histórica, romana, islâmica e medieval, os vidros e os bronzes “dos tipos mais raros e bem conservados” e ainda os objetos arqueológicos e etnográficos em materiais orgânicos. Os arquivos da instituição, da maior relevância para a história da Arqueologia em Portugal, seriam incluídos no 1º escalão, devendo por isso ser evacuados em simultâneo com a ourivesaria15. O Museu Nacional de Machado de Castro, que nada fizera para proteger as coleções ou o edifício no decurso do conflito mundial de 1939-45, admitia que as galerias mais profundas do criptopórtico romano, uma vez desobstruídas, poderiam servir de abrigo não somente às peças do museu mas também a outros bens do Estado. Mais do que a construção de uma cisterna e a ligação da água à fonte central, haveria que repensar a segurança do museu, designadamente através do reforço do quadro de guardas e serventes, figuras indispensáveis em caso de evacuação do acervo16. Os museus de abrangência regional também foram ouvidos, tendo demonstrado, na maioria dos casos, uma visão lúcida sobre o valor das suas coleções, as potencialidades dos edifícios que as albergavam e os principais fatores de risco. O Museu de Évora, que alegava ter garantido a incombustibilidade dos espaços expositivos durante II GG, agrupava agora as peças mais importantes do acervo em seis lotes distintos, ressalvando o peso das coleções como uma das questões de mais difícil resolução17. A direção do Museu Regional de Arte e Arqueologia de Lamego


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remetia, numa primeira fase, para a própria Comissão, a organização dos escalões dentro do seu acervo museológico, em relação ao qual identificava alguns objetos de muito difícil deslocalização, como os altares e capelas, ao mesmo tempo que destacava a importância das tapeçarias, algumas pinturas especiais e a paramentaria. Enquanto isso, a questão das peças de valor em situação de depósito nos museus e a pertinácia da sua inclusão nas listas de bens a salvar em caso de guerra foi levantada pelo Dr. Alfredo Guimarães, do Museu de Alberto Sampaio (Guimarães), que admitia ter capacidade para assegurar a integridade física da totalidade do acervo dentro das próprias instalações, onde existia um espaço de 40 m2, com 8 metros de pé direito e paredes duplas, onde seria apenas necessário reforçar a pedra as duas portas de acesso, dissimulando-o no imóvel. O Museu Regional de Aveiro identificava no respetivo acervo onze obras pictóricas a classificar no 1º escalão, cobrindo um largo espectro cronológico balizado por dois retratos régios: o retrato de Santa Joana Princesa e a tela de Columbano representando D. Carlos I. Igualmente parcimonioso seria o Museu do Abade de Baçal (Bragança), que indicaria apenas oito peças: duas pinturas, dois móveis, uma escultura e três têxteis. Museus de outras tutelas mas com acervos relevantes, assim como os Cabidos das Sés, foram também auscultados pela Comissão: os Museus de Marinha, da Cidade de Lisboa, do Carmo, de Artes Decorativas da Fundação Ricardo Espírito Santo, da Misericórdia de Lisboa, Militar de Lisboa e dos Condes de Castro Guimarães, entre outros. Alguns dos museus inquiridos jamais responderiam, merecendo destaque a posição assumida pela Associação dos Arqueólogos Portugueses, responsável pelo Museu Arqueológico do Carmo, que hierarquizava o acervo a partir de critérios distintos dos adotados pelas demais instituições museológicas: para o 1º escalão remetia as “peças únicas que sirvam de base a classificação e as que originaram hipóteses ou teorias”, admitindo o abandono das remetidas para o 3º escalão, por ilustrarem tipologias comuns. Indo mesmo além das recomendações da UNESCO, a tutela do museu sugeria que nestes casos, assim como em relação a objetos que, pelas suas particularidades físicas não pudessem ser transferidos para abrigos (ex.: túmulos, lápides sepulcrais com brasões e figuras esculpidas), fossem escrupulosamente fotografados e documentados para memória futura. Enquanto se procedia a compilação das respostas, pela Comissão seria igualmente pedido à Direção-Geral de Minas e Serviços Geológicos um parecer circunstanciado sobre a questão de abrigos (naturais e em minas) passíveis de virem a ser utilizados para proteção de obras de arte de grande valor cultural em contexto de guerra. Concluir-se-ia ser incipiente o número de abrigos existentes em Portugal, para os fins pretendidos. Muitas das 300 grutas calcárias seriam excluídas ab initio pela proximidade ao mar, por apresentarem vestígios de emanações sulfurosas ou elevado grau de humidade, que as tornava impraticáveis, ou ainda por se encontrarem nas imediações de importantes instalações militares.


Os difíceis acessos que caraterizavam as regiões mineiras excluíam também esta alternativa, acrescendo o facto de as minas abandonadas não garantirem a integridade física das obras de arte por terem escoramento de madeira, material que rapidamente se deteriorava após o fim da exploração. Por outro lado, a manutenção de condições ambientais favoráveis à conservação das obras de arte pressupunha o revestimento pétreo das galerias das minas, prática pouco comum em Portugal. Neste sentido, e contrariamente às diretivas da Comissão, os abrigos mineiros deveriam ser procurados apenas em minas em laboração mas com setores desativados18. Em agosto de 1954, estavam elencadas as grutas e enfornamentos junto a Lisboa que deveriam ser objetos de visitas conjuntas, entre as quais se contavam Pernes (Alviela), Barcarena, Liceia ou Rio Seco, enquanto a Circunscrição Mineira do Norte ultimava o levantamento para as regiões do Porto e da Serra da Estrela19. Quanto a pedreiras a céu aberto, que deveriam possuir túneis e uma cobertura de aterro razoável (mas necessariamente inferior aos 60m para a areia e 100m para a argila), foram identificadas algumas nas zonas das Amoreiras, Vale de Alcântara e Monsanto (Lisboa). Por outro lado, como os trabalhos do Metropolitano avançavam a bom ritmo na capital, a abertura de troços especificamente para o efeito pretendido, afigurava-se uma hipótese a ponderar, porque de execução rápida e quiçá menos onerosa do que as restantes soluções. O relatório final da Direção-Geral de Minas e Serviços Geológicos seria determinante na revisão das premissas inicialmente definidas, ao concluir que em Portugal dificilmente os abrigos naturais serviriam para acolher bens culturais evacuados em contexto de guerra. Mesmo que viesse a ser ponderada a construção de raiz de abrigos com as caraterísticas indispensáveis, permaneceria por solucionar o problema do transporte dos bens culturais para locais relativamente distantes, servidos por más vias de comunicação e com deficientes acessos, bem como a segurança das obras de arte e da manutenção das condições climáticas no interior dos abrigos provisórios. Face aos resultados apurados, em relatório de 23/11/1956, a Comissão aconselharia a construção de dois abrigos específicos, destinados unicamente às obras classificadas no 1º escalão, a erigir junto dos museus mais importantes de Lisboa e Porto (MNAA e MNSR), que ficariam responsáveis pela sua manutenção. Caso esta proposta não fosse técnica ou economicamente viável, em alternativa ponderar-se-ia a pronta adaptação de dois abrigos naturais tão próximos quanto possível das ditas entidades museais. A Comissão concluiria ainda pela necessidade de todos os novos museus incluírem obrigatoriamente nos seus projetos a construção de abrigos, admitindo, todavia, não estar na posse de dados suficientes para assegurar a implementação das medidas de salvaguarda do património museológico a nível nacional. Assim, e para cumprimento de uma obrigação estatutária, a Comissão comprometia-se a divulgar um “Guia prático para a proteção dos bens culturais”20 – que serviria de base a uma ação de formação especializada a ministrar junto dos Museus e Palácios nacionais. Mais de quatro anos volvidos sobre o início dos trabalhos, em março de 1959, o


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Dr. João Couto alegava que a plena concretização das atribuições da Comissão dependeria da sua integração nos organismos da Defesa Civil do Território, onde existiam os efetivos e os meios adequados, continuando aquela a atuar em todos os planos da sua estrita competência, ou seja, na elaboração de inventários das obras de arte e dos monumentos, bem como dos normativos atinentes à embalagem e transporte das primeiras e da proteção física dos segundos. Tendo em conta o disposto na Lei n.º 2084, de 16 de agosto de 1956 (DR I Série, n.º 172), diploma que” veio compendiar as novas bases da ‘Organização da Nação para a Guerra’, que haviam de reger praticamente as Forças Armadas até ao 25 de Abril de 1974.”21 e cuja Base IX delegava no Ministro da Defesa Nacional “os poderes de coordenação e de direcção referentes à preparação e à eficiência dos meios necessários à organização militar e à defesa civil”, o Ministro da Educação Nacional determinaria, por Portaria de 20/10/1959, a dissolução da Comissão. Os trabalhos iniciados ficariam para sempre suspensos, até porque os conflitos armados em que Portugal estaria envolvido nos anos seguintes, teriam por cenário o longínquo continente africano, onde o património cultural voltaria a ser, como sempre, mais uma vítima da guerra. Reconhecendo que as disposições da Convenção de Haia não foram aplicadas de forma sistemática, que a lei precisava de se adaptar aos novos cenários de guerra e, sobretudo, de ser percetível para as forças armadas, em 1999 foi aprovado um 2º Protocolo à Convenção, que Portugal ainda não ratificou. Três anos antes, quatro organizações não-governamentais22 haviam instituído o Comité Internacional do Escudo Azul com o propósito de proteger o património cultural durante os conflitos armados, identificando-o visualmente através do seu emblema. Finalmente, em 2000, Portugal ratificava a Convenção de 195423 e em 18/02/2005 aceitava formalmente o seu 1º Protocolo. Porém, o Plano de Emergência Nacional continuava por definir. Por ironia do destino, a cidade holandesa seria o placo do roubo de parte das joias da Coroa Portuguesa, saídas do acervo do Palácio Nacional da Ajuda para uma exposição temporária no Museu Municipal de Haia, de onde foram furtadas em dezembro de 2002. Uma das consequências diretas da perda de tão importante património foi a constituição, por decisão ministerial, de um Grupo de Trabalho dos “Tesouros Nacionais”, no seio do então Instituto Português de Museus. Deveria este grupo hierarquizar os acervos dos museus tutelados pelo Ministério da Cultura/ IPM a fim de identificar os bens museológicos que, independentemente de se encontrarem inventariados e integrados em coleções públicas, seriam classificados como bens de Interesse Nacional, também ditos “tesouros nacionais” nos termos da Lei nº 107/2001, de 8 de setembro (artigo 15º, nº 3). O objetivo imediato era o de interditar a saída do território português dos bens juridicamente classificados como “tesouros nacionais”, salvo se temporariamente exportados ou expedidos24 para fins culturais ou científicos, mediante despacho prévio do membro do Governo responsável pela área da cultura (artigo 65º, nºs 1 e 2).


O Grupo de Trabalho acabaria por identificar um lote de cerca de 1.640 bens museológicos25 a que o Decreto N.º 19/2006, de 18 de julho26 atribuiria o nível máximo de proteção legal, esperando-se que lhe fossem votadas especiais medidas de segurança e de conservação, de modo a garantir a sua integridade física em situações de especial perigo, como catástrofes naturais e conflitos armados. Mas não seria bem assim.... A leitura do referido diploma de 2006, acompanhada de uma análise apriorística da respetiva lista de “tesouros nacionais”, permite concluir que os critérios de classificação só parcialmente diferem dos critérios que nortearam os detentores de bens artísticos integrados no 1º escalão, na década de 1950, sendo certo que existem vastas zonas de sobreposição. Enquanto se aguarda por um estudo aturado que confronte criticamente estes dois momentos fulcrais na história da museologia em Portugal, identificaríamos como pontos de convergência: i) a perceção de que, em certos acervos, mais do que o exemplar isolado, existem conjuntos inteiros que importava preservar, sendo esse conceito plural a medida exata do respetivo valor patrimonial; ii) o reconhecimento, por parte das próprias instituições detentoras do património, que nem todos os acervos incorporam bens culturais tão excecionais que mereçam “proteção especial” ou possam ser considerados “tesouros nacionais”. Entre as divergências mais notórias, assinalaríamos o espírito parcimonioso que presidiu à seleção dos “tesouros nacionais”27 e a exclusão deliberada desta listagem de obras então ainda não caídas no domínio público, como é o caso das telas de José Malhoa (designadamente Festejando o São Martinho e Outono, do MNAC)28, nomeadas na década de 1950. É também no domínio da contemporaneidade que se intuem outras diferenças, designadamente a ausência da lista dos bens de 1º escalão elaborada pelo Museu Nacional de Arte Contemporânea de qualquer obra de Amadeo de Souza-Cardoso ou de Mário Eloy, entre outros, cuja explicação não passará por questões inerentes a direitos autorais, mas poderá ser explicada pela proximidade temporal entre avaliadores e obras avaliadas. Os Palácios Nacionais ficariam inicialmente excluídos do universo elegível para “tesouros nacionais” por estarem sob a dependência administrativa do IPPAR e não do IPM (ou seja, associados aos monumentos e não aos museus)29, assim como todos os outros museus de diferentes tutelas, públicas e privadas. Mas o ano de 2006 seria pródigo em iniciativas conducentes à efetiva a salvaguarda do património cultural e à tão desejada definição do Plano Nacional de Emergência. Por iniciativa do ainda Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR), seria dinamizada a Conferência sobre planos de prevenção e emergência, ao mesmo tempo que os museus da Rede Portuguesa de Museus recebiam formação especializada e preparavam os respetivos planos de segurança a que estavam obrigados por força da Lei- Quadro dos Museus Portugueses (Lei nº 47/2004, de 19 de agosto, secção VI, artigo 32º e ss.), de acordo com uma matriz divulgada pelo IPM. Simultaneamente, os representantes nacionais das entidades fundadoras do Blueshield, propuseram ao comité internacional a criação de um comité nacional do Escudo Azul, entidade que jamais passaria de uma intenção, por falta de registo notarial30, apesar de em finais


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de 2010 a proposta ser retomada no âmbito do Seminário “Avaliação de Risco em Património: Necessidade ou Luxo?” (Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto), mas uma vez mais sem consequências. Resta-nos, pois, esperar que a grave crise económico-financeira e política que tem marcado de modo indelével o facies nacional nos últimos anos, seja encarada pela comunidade museológica e pelos construtores das políticas culturais como uma oportunidade para, longe da ribalta mas de forma responsável, consistente e continuada, ultimar trabalho e conjugar esforços no sentido da elaboração efetiva de um Plano de Emergência Nacional para o património cultural móvel que é, a todos os níveis, uma riqueza frutuosa e inigualável. É que a Divina Providência poderá também começar a cobrar juros! Contactar a autora: elsapinho@dgpc.pt · elsapinho@yahoo.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Referências & Fontes Fontes · Arquivo Central da Direção-Geral do Património Cultural Projeto da convenção internacional para a proteção de bens culturais em caso de guerra (3 de fevereiro de 1953-1959) · Fundo: Ministério da Educação Nacional – Direção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes. Cota: Repartição do Ensino Superior e das Belas-Artes, 3ª Secção, Lº 5-C, Nº 72 · Convenção para a Protecção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, aprovada em Haia, em 14 de maio de 1954 · Lei nº 107/2001, de 8 de setembro (lei de bases do património cultural) · Lei nº 47/2004, de 19 de agosto (Lei-Quadro dos Museus Portugueses) · Decreto n.º 19/2006, de 18 de julho (classificação como “bens de interesse nacional” ou tesouros nacionais de um conjunto de bens integrados em 18 Museus sob tutela do Instituto Português de Museus; · Declaração de Rectificação n. 62/2006, de 11 de setembro, publicada em DR 1ª série, n.º 179, de 15/09/2006 (retifica o DL n.º 19/2006, de 18 de julho) Estudos · COMISSÃO DE ESTUDO DA PROTEÇÃO DOS BENS CULTURAIS DA NAÇÃO, Guia Prático para a Proteção dos Bens Culturais. Lisboa: Ed. Gráfica Portuguesa, 1957 · MAGALHÃES, Isabel Raposo de, “Um Escudo Azul para a salvaguarda do património cultural em perigo”, Conservar Património, n. 12, 2010, p. 51-56. · MEDEIROS FERREIRA, José, “Forças Armadas e o Regime Totalitário” — Intervenção proferida no âmbito do Colóquio “Forças Armadas em Regime Democrático”, Instituto da Defesa Nacional, Lisboa, fevereiro de 2000. Publicada in Nação e Defesa, Verão 2000 n.º 94 – 2.ª Série, p. 107-122. Disponível em: http:// comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/1431/1/NeD094_JoseMedeirosFerreira.pdf · NOBLECOURT. A., Les techniques de protection des biens culturels en cas de conflit armé. Paris: UNESCO, 1954, 44 p.


Notas · 1 Com aditamentos pelas Portarias de 23 e 30 de junho de 1954, 10 de março e 4 de abril de 1956, publicadas, respetivamente, em Diário do Governo, II Série, n.º 149, de 26/06/1954, n.º 155, de 03/07/1954, nº 65, de 16/03/1956 e n.º 86, de 10/04/1956. · 2 Por Portaria do Ministro da Educação de 13 de abril de 1957, o cargo passaria a ser ocupado pelo Tenente-Coronel Francisco da Costa Gomes, em substituição e por impedimento do primeiro nomeado. · 3 Neste contexto, foram inquiridos todos os arquivos e bibliotecas dependentes da Inspeção Superior das Bibliotecas e Arquivos, bem como os arquivos das instâncias militares. Admitindo-se a morosidade do processo pelo elevado número e caraterísticas dos espécimes documentais, determinar-se-ia que numa primeira fase apenas seriam considerados os bens de categoria A, sumariamente identificados e com as respetivas cotas, extraindo-se destas listas um verbete antroponomástico e um verbete didascálico abreviado, a enviar em triplicado à Comissão. Após revisão e validação, a Comissão atribuiria um nº de inventário definitivo a cada espécime, elaborando as listagens definitivas que seriam identificadas com etiquetas coloridas para não serem confundidas com as demais. · 4 De facto, a representação portuguesa na dita Conferência seria assegurada não por uma comitiva técnica mas pelo Ministro de Portugal na Haia, o que permitiu ao País manter o estatuto de Estado Parte sem assumir de imediato os compromissos implícitos na aceitação do acordo internacional. Recorde-se que a ratificação da Convenção de 1954 pressupunha que cada Parte Contratante estruturasse uma efetiva política de salvaguarda do seu património cultural em eventual contexto de conflito armado, sendo que a definição de uma tal política implicava, sobretudo para países com Portugal que não haviam participado diretamente na II Grande Guerra, a realização de estudos prévios com vista ao reconhecimento da realidade nacional, em função da qual seriam elaboradas e posteriormente implementadas medidas cautelares para proteção física dos bens culturais da Nação em todas as suas formas: imóveis, artístico-museológicos, arquivísticos e bibliográficos. · 5 A Comissão teve a sua primeira sessão oficial em março de 1955, agendada para que todos os Ministérios envolvidos pudessem opinar quanto à pertinácia da ratificação da Convenção de Haia por parte do Governo Português. · 6 Esta era a opinião do diretor do MNAA que, em ofício endereçado à tutela em 18 de maio de 1953, comentava um artigo publicado no jornal francês “Paris Match”, n.º 216, de 2 a 9 de maio do mesmo ano, segundo o qual em contexto de novo conflito armado, Portugal não voltaria a ser uma “reserva aliada” mas serviria de placa giratória, acolhendo no seu território as divisões da NATO. · 7 Conforme instruções contidas na 2ª Circular da Comissão, de 30 de novembro de 1953. · 8 Conjunto de 1932 negativos à guarda da Direção Geral do Património Cultural (DGPC). · 9 As fichas, de formato normalizado, foram impressas em papel azul para facilmente se distinguirem dos demais registos existentes nos museus. Atualmente encontram-se à guarda da DGPC/ Departamento de Museus, em armário próprio, outrora selado porque tido por sigiloso. Trata-se de material inédito. · 10 Por apurar ficavam os bens culturais dos Cabidos das Sés Portuguesas, com exceção para a de Viseu e do Museu Nacional Machado de Castro (Coimbra). · 11 Ofício endereçado ao Presidente da Comissão, em 27 de julho de 1955. · 12 Constava que o “paiol” estava localizado sob a Sala Elíptica, o que constituía um perigo real e permanente para todo o edifício. · 13 No 2º escalão encontravam-se os “móveis com tríplice valor menor” e no 3º, os “bens de reduzido mérito e, na maioria dos casos, desprovidos de significado artístico”.


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· 14 Sobretudo os chamados “Primitivos Portugueses” entre os quais, obviamente, os Painéis ditos de São Vicente. · 15 Os bens a evacuar deveriam ser acondicionados em caixas de madeiras com cintas metálicas e protegidos com algodão ou palha, consoante a respetivo grau de fragilidade, sendo que na ausência de abrigos adequados nas imediações do museu, sugeria a direção a eventual construção de abrigos na cerca da Casa Pia. · 16 Tal como os seus congéneres, também o MNMC considerava indispensável a elaboração de um plano de emergência, devidamente testado junto da equipa, bem como a construção de embalagens adequadas ao transporte dos bens (organizados em 3 escalões) e a colocação de martelos nas salas para a rápida abertura de vitrinas (sic). · 17 A lítica, com 15 toneladas, e os bens artísticos, com 4 toneladas no total, poderiam ficar parcialmente

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acomodados nas instalações subterrâneas do próprio museu pois, a serem deslocados, teriam de seguir num “carro de carga com cabine blindada e acolchoada”. · 18 A Comissão impunha como requisito obrigatório a proximidade física dos abrigos em relação aos museus do Estado e aos palácios nacionais, sugerindo que fossem indicados dez abrigos contidos no perímetro definido em relação a cada um dos três epicentros: 100 Km de raio para Lisboa, 60 Km de raio para a cidade do Porto e 30 Km de raio a partir da Serra da Estrela. · 19 As pedreiras subterrâneas de Valongo seriam consideradas as mais indicadas atendendo à sua grande profundidade, espessas coberturas e proximidade à cidade do Porto, da qual distavam apenas 12 km; contudo, o registo de ruturas ocasionais nas câmaras, o estado de abandono e o sistema de acesso por escadas eram fatores negativos a ponderar. Também as minas subterrâneas conhecidas na região do Porto excediam o perímetro traçado pela Comissão, e as da Serra da Estrela, mais numerosas, estavam maioritariamente sob o domínio da Junta de Energia Nuclear, um alvo primordial a abater, em situação beligerante. · 20 Tradução do manual compilado por H. Lavachery, conservador principal dos Museus Reais de Arte e História da Bélgica e professor da Universidade de Bruxelas, e de A. Noblecourt, engenheiro e consultor técnico para a segurança dos museus de França e presidente do Comité de Segurança do ICOM, Les techniques de protection des biens culturels en cas de conflit armé, Paris, UNESCO, 1954, 44 pp. · 21 MEDEIROS FERREIRA, José, “Forças Armadas e o Regime Totalitário” — Intervenção proferida no âmbito do Colóquio “Forças Armadas em Regime Democrático”, Instituto da Defesa Nacional, Lisboa, fevereiro de 2000. Publicada in Nação e Defesa, Verão 2000 n.º 94 – 2.ª Série, pp. 107-122. On-line, em:http://comum.rcaap.pt/bitstream/123456789/1431/1/NeD094_JoseMedeirosFerreira.pdf· 22 O International Council of Archives (ICA), o International Council of Museums (ICOM), o International Council on Monuments and Sites (ICOMOS), a International Federation of Associations of Librarians and Libraries (IFLA) e, a partir de 2005, também o Coordinating Council of Audiovisual Archives Associations (CCAAA). · 23 Ratificada por Decreto do Presidente da República Portuguesa N.º 13/2000. · 24 Entendendo-se por “expedição” a saída de Portugal para o espaço comunitário, e “exportação”, para países terceiros. · 25 Torna-se difícil definir o número extado de bens classificados de Interesse Nacional pelo facto de neles de integrarem vastos conjuntos, como é o caso da ourivesaria arcaica do Museu Nacional de Arqueologia, mas também por nem todos os números de inventário publicados corresponderem a espécimes autónomos e individualizados mas, em certos casos, apenas a partes de um todo. · 26 Publicado em Diário da República, 1.ª série, N.o 137, de 18 /07/ 2006. A lista publicada em Anexo ao dito Decreto nº 19/2006, que continha alguns erros na descrição e/ou identificação dos espécimes muse-


ológicos, seria posteriormente corrigida pela Declaração de Retificação n.º 62/2006, de 11 de Setembro, publicada em DR 1ª série, n.º 179, de 15/09/2006. · 27 A título exemplificativo recordamos que das 34 obras selecionadas na década de 1950 pelo MNAC, apenas 6 encontram correspondência na lista dos “tesouros nacionais” classificados em 2006 (9 pinturas e 3 esculturas, todas elas de produção nacional e de gosto clássico), ou o caso do Museu de Aveiro, que das 11 obras pictóricas escolhidas em meados do séc. XX, apenas o Retrato da Princesa Santa Joana seria classificado de Interesse Nacional. · 28 Ressalve-se que, nos termos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, as obras caem no domínio público setenta anos após a morte do respetivo autor. Ora, no caso do pintor Malhoa, falecido em 26 de outubro de 1933, a mudança de estatuto ocorreu no ano de 2003, data posterior à definição das listagens de bens a classificar como de Interesse Nacional pelo Grupo de Trabalho, embora bastante anterior à sua publicação em Diário da República. · 29 Com a extinção do IPM e a criação do Instituto dos Museus e da Conservação, IP (DL n.º 97/2007, de 29 de março), cinco Palácios Nacionais passaram a integrar a rede de museus nacionais, tendo então sido solicitado às respetivas direções que, partindo das premissas definidas para os acervos dos museus, fizessem uma seleção de bens museológicos que pudessem vir a ser classificados como “tesouros nacionais”. Essas listagens seriam elaboradas, permanecendo até hoje em apreciação pela tutela. · 30 Informação gentilmente cedida pela Dra. Isabel Raposo de Magalhães, principal responsável pela promoção das iniciativas relacionadas com esta matéria.


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“OS FEDERAIS”, A LITERATURA E A CASA DA CULTURA “OS FEDERAIS”, LITERATURE AND THE HOUSE OF CULTURE

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Érica Rodrigues Fontes

Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 238-246.

Fontes, Érica Rodrigues (2013) ““Os Federais”, a Literatura e a Casa da Cultura.”

Universidade Federal do Piauí

Resumo: Este artigo narra a experiência extensionista do grupo “Os Federais” de performance de literatura, que existe desde 2009, na Universidade Federal do Piauí (UFPI), analisando-a através da teoria do Teatro do Oprimido de Augusto Boal. Este trabalho examinará também como essa experiência poderá fomentar ainda mais a relação do grupo com a comunidade teresinense através da exibição de parte do seu repertório na Casa da Cultura (museu local). Palavras-chave: Literatura Brasileira. Teatro do Oprimido. Educação. Museus.

Abstract: This paper narrates the extensionist experience of the performance of literature group “Os Federais”, which has existed since 2009 at the Federal University of Piauí (UFPI) and analyzes it in the light of the theory of the Theater of the Oppressed by Augusto Boal. This paper will also examine how this experience will be able to foment the relationship between the group and the community from the city of Teresina even more, through the exhibition of part of its repertoire at Casa da Cultura (House of Culture) in Teresina. Keywords: Brazilian literature. Theater of the Oppressed. Education. Museums. Introdução

O presente artigo relata alguns resultados do projeto de extensão “Os Federais”, da Universidade Federal do Piauí, e apresenta um projeto que prevê o diálogo entre duas formas, teatro e museu, através da utilização de três das cinco salas públicas da Casa da Cultura para apresentação de parte do trabalho de “Os Federais”. Assim, pretende-se divulgar tanto o repertório de “Os Federais” quanto os espaços e acervo do museu. Primeiramente, falaremos do trabalho do grupo através da teoria do Teatro do Oprimido de Augusto Boal e da adaptação de quatro textos que lidam com a idéia de poder: “Um apólogo” e “A igreja do diabo”, ambos de Machado de Assis (do espetáculo “Delícias machadianas”), “Inclusão social” (de autoria coletiva do grupo) e “A armadilha”, de Murilo Rubião. Depois, detalharemos o esquema de apresentações no museu e falaremos de possíveis benefícios para o grupo, museu e comunidade através deste projeto. Desde a formação de “Os Federais”, em 2008, o grupo constituído em sua maioria por alunos oriundos dos cursos de letras propõe uma estética que objetiva a junção de teatro, performance de literatura e a utilização de música em espetáculos


cênicos para atender ao público acadêmico e não-acadêmico do estado do Piauí, Brasil e outras regiões no que tange à divulgação cênica da literatura. Talvez esse posicionamento tenha resultado da primeira apresentação pública do grupo, durante o I Festival Internacional de Teatro Lusófono, em agosto de 2008, na cidade de Teresina. Na ocasião o texto encenado unia as obras de vários autores lusófonos, funcionando assim como uma espécie de “colagem” e apresentando um trabalho pouco convencional. O primeiro espetáculo originou uma rotina de ensaios e posteriormente a estrutura do grupo, orquestrando os conhecimentos literários e teatrais de alunos e docentes de cursos de Humanas e Letras com a difusão da cultura regional, nacional e internacional junto à comunidade. Assim, o trabalho ficou marcado por tornar acessível tanto a literatura canônica como a literatura popular – e provavelmente desconhecida – notório através das apresentações no I Festival de Teatro Lusófono, II EnMel da UFPI (Encontro do Mestrado em Letras), I Sarau Literário Assis Brasil e Natal da UFPI (em 2008), Calourada da PRAEC, Projeto “Cenas Juvenis”, Calourada do DCE, Programa “Literatura em revista” do Centro Cultural Banco do Nordeste em Fortaleza, II Festival Internacional de Teatro Lusófono e Semana dos Educadores da Faculdade Evangélica do Piauí -- FAEPI . Posteriormente, com o acréscimo de novos componentes ao grupo, e considerando-se as distintas áreas de conhecimento representadas pelos mesmos, assim como o tipo de relação desenvolvida com as diferentes platéias, estabeleceu-se que a literatura e a educação permaneceriam ligadas no projeto. Muito mais do que apresentada, a literatura encenada seria refletida e discutida direta ou indiretamente, decisão que nos levou às técnicas teatrais de Augusto Boal, e mais precisamente do Teatro do Oprimido (objeto da minha pesquisa de doutorado), como inspiração teórica e prática. Em minha tese de doutorado, analiso como textos criados coletivamente por alguns grupos contemporâneos do Centro do Teatro do Oprimido no Rio possuem uma estrutura dramática facilitada para atender a todos os públicos que utilizam o teatro proposto por Boal para lutar por seus objetivos políticos e sociais. Ao adaptar o método para trabalhar com “Os Federais” pretendi divulgar uma visão educativa do teatro, fazendo com que os discentes pertencentes ao projeto utilizassem-no também como experiência profissional, já que todos são licenciandos. Da mesma forma houve a preocupação de que a literatura fosse desmistificada diante do público e, por isso, são tratados da mesma forma os textos canônicos e não-canônicos. Alguns fatores favorecem a utilização do método teatral de Boal no projeto “Os Federais”, pois o mesmo defende que qualquer pessoa pode se tornar ator, além de ser um tipo de teatro que tem como proposta final a discussão de problemas sociais (visível principalmente na técnica do Teatro Fórum) e que desenvolve exercícios que viabilizam a consciência do trabalho em grupo e a disciplina, dois assuntos primordiais para qualquer projeto de extensão universitário. Os dados descritos resultam do trabalho já realizado pelo grupo “Os Federais”, ao longo de mais de quatro anos de existência e, como já salientado, o tema do poder será privilegiado nos textos sob observação neste artigo, a saber: “Um apólogo”, “A igreja do diabo”, “A armadilha” e


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Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 238-246.

Fontes, Érica Rodrigues (2013) ““Os Federais”, a Literatura e a Casa da Cultura.”

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“Inclusão social”. Tanto a adaptação dos três primeiros textos para o teatro quanto o desenvolvimento de “Inclusão social” coletivamente e especialmente para o teatro basearam-se em idéias retiradas dos livros Teatro do Oprimido, Técnicas latino-americanas de teatro popular e Jogos para atores e não-atores de Boal. Os seus métodos teatrais, mais difundidos através da publicação do livro Teatro do Oprimido, ocorrida no início dos anos 70, ficaram conhecidos em todo o mundo e priorizam uma participação mais ativa do espectador, que vai além do modelo observador e consciente apresentado pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Walter Benjamin explica que no teatro épico de Brecht, priorizam-se a crítica social e a interrupção da ação dramática (os momentos narrativos são exemplo desta interrupção) para reflexão sobre a crítica encenada. O público, porém, não participa do espetáculo ativamente. No teatro de Boal, diferentemente, o público pode interferir diretamente na ação, encenando suas sugestões, ainda que sob a supervisão e orientação de um diretor, o Curinga. O Teatro Fórum, técnica mais difundida do Teatro do Oprimido, incentiva a discussão de problemas sociais e a participação da platéia é, portanto, notória. Neste modelo de teatro, a primeira parte do espetáculo tem a estrutura teatral tradicional, com a separação física entre público e atores, dura cerca de meia hora e apresenta pelo menos um erro ou problema em cada cena, o que é entendido como uma situação social opressora. O erro é cometido pelo opressor e permitido pelo oprimido, ao não lutar por seus direitos. Antes do início da apresentação da primeira parte da peça, o público é treinado para reagir à situação de opressão (reação que só será possível durante a segunda parte da peça), “ensaiando” para a justiça social concernente à questão representada cenicamente. O “ensaio” do público é feito da seguinte forma: o Curinga, espécie de diretor, indica para a platéia que as cenas poderão ser modificadas na segunda parte da peça através da substituição do oprimido por qualquer pessoa (da platéia) que se identifique com a situação de opressão apresentada. De acordo com a ideologia do Teatro do Oprimido, somente o oprimido pode ser substituído, o que muitas vezes é facilitado pelo fato de as peças serem apresentadas em edifícios públicos – escolas, hospitais e prisões, por exemplo – e que retratam os contextos socialmente carentes (ou oprimidos) do espectador. Exceções com relação à substituição acontecem somente no caso de o opressor tornar-se mais cruel. A ênfase na representação do oprimido é defendida pelo fato de que o Teatro do Oprimido é do oprimido, feito por ele e apresentado para ele, com protagonistas que pretendem transformar sua história de vida, lutando contra as injustiças praticadas por opressores sociais. Se, no entanto, o opressor for substituído, há por parte do público a tentativa de modificar uma postura sobre a qual de fato ele não tem poder. Prevê-se, portanto, que com a mudança de atitude do oprimido, o sistema mude a seu favor, ainda que lentamente. Nas experiências supracitadas, usei a idéia geral do Teatro do Oprimido, que divide a sociedade no binário oprimido-opressor (equivalentes ao protagonista e antagonista, respectivamente) para estudar as relações presentes nos textos e a partir de


então sugerir uma interpretação mais profunda dos mesmos por parte do grupo e, às vezes, do público. O processo de estruturação de peças sob o método do Teatro do Oprimido1 pode ser interpretado como o que Umberto Eco defende em sua teoria The Poetics of the Open Work, no livro The Role of the Reader. Eco afirma que sempre que um trabalho de arte é recebido por um leitor ou espectador, há, além da recepção do mesmo, uma re-performance deste. Nesta re-performance, uma nova percepção do trabalho acontece. Isto é notório em cada uma das encenações feitas pelo grupo e aqui descritas. Assim, devido à “abertura da obra”, a percepção com relação a quem oprime e quem é o opressor pode mudar dependendo de quem lê a obra ou assiste à encenação sobre a mesma. A re-performance torna-se útil para o envolvimento com uma obra principalmente se esta for visualizada. Por isso, quando o método do Teatro do Oprimido é utilizado, tal fato é quase uma exigência: após a divisão das relações de opressão do texto, é necessário que haja uma teatralização das mesmas, pois esse tipo de teatro privilegia a ação (embora também dê certo destaque à crítica e a reflexão, características do teatro épico, no qual se inspira). Isto significa dizer que aquilo que seria apenas discutido e criticado em alguns outros tipos de teatro é encenado pelo público no Teatro do Oprimido. Passemos então a um breve relato das experiências com os textos, o que esclarecerá como um conto ou outro tipo de texto literário pode ser mais facilmente adaptado para o teatro e entendido pelo público teatral através desse método. Comecemos com os textos de Machado de Assis. O Teatro do Oprimido e Machado de Assis

Em “Um apólogo” de Machado de Assis, a história de uma linha e uma agulha funciona alegoricamente para relatar a arrogância humana em pensar que sempre pode prescindir do próximo. A narrativa concentra-se na rivalidade de uma agulha e linha que convivem na casa de uma baronesa. Durante a confecção de um vestido de baile para a nobre, as duas personagens apresentam as suas mais distintas razões para se considerarem o objeto mais importante na confecção do mesmo. No entanto, no final do conto, a linha sai vitoriosa, pois é ela quem vai divertir-se no baile junto ao corpo da baronesa. O conto adverte ainda contra os aproveitadores: apesar de a agulha abrir caminho para a linha, a primeira não pode ir à festa ou dançar no baile. A esta só coube o trabalho árduo para que aquela pudesse aproveitar. Em “A igreja do diabo”, o poder é disputado pelos dois espíritos mais antigos do universo: Deus e o diabo. Ao solicitar uma conversa com Deus, o diabo advoga a sua causa: não possui muitos seguidores porque sua religião é clandestina. E advoga: se sua religião (a do diabo) for legalmente instituída, então ele também terá inúmeros seguidores. A previsão do diabo mostra-se correta durante algum tempo, mas assim


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que os seres humanos entendem as obrigações da nova religião, as antigas virtudes (agora infrações) passam a ser desejadas. Frustrado, o diabo procura Deus mais uma vez para indagar sobre o ocorrido, ao que Deus calmamente responde que a natureza humana é contraditória, expondo sua onisciência. A posição dos poderosos nos dois contos – a linha e Deus, respectivamente – é inabalável. Embora a linha aproveite-se da agulha para manter-se em uma posição social mais confortável e Deus tenha uma reputação positivamente inalterável, pois o diabo continua provocando adultérios, assassinatos e outros crimes, a dinâmica do poder é o foco de in-

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teresse deste trabalho.

Juntamente com a peça “Lição de botânica”, que critica o cientificismo, os dois textos acima descritos participam do espetáculo “Delícias machadianas”, já apresentado pelo grupo em dois eventos fora da universidade (“Literatura em revista” no CCBN e II Festival de Teatro Lusófono) e na Calourada do DCE, dentro da universidade. Nas duas apresentações fora da universidade, não houve discussão sobre as peças durante os espetáculos, pois a divulgação do texto era a prioridade. No entanto, durante a adaptação dos textos para o espaço cênico e prática dos exercícios preparatórios para o espetáculo, houve uma atenção especial para a dinâmica de opressão. Em primeiro lugar, a narração foi retirada e a divisão dos personagens em opressor e oprimido mostrou-nos que a opressão é sempre relativa, pois depende de quem se sente oprimido. Tal entendimento auxilia a nossa discussão e análise social. Ou ainda: a consciência de que todos os indivíduos podem oprimir ou ser oprimidos é a forma de se evitar o “erro social”. Na apresentação feita durante a Calourada do DCE, “Lição de botânica” não foi incluída e “Um apólogo” e “A igreja do diabo” funcionaram então como um intróito para um breve esquete sobre a relação de poder entre alunos e funcionários da Secretaria de Transportes Urbanos e Coletivos de Teresina SETUT. Diante da platéia formada em sua maioria por discentes da UFPI, os funcionários da SETUT apareceram como opressores na situação cênica original e durante a substituição (com a utilização do Teatro Fórum) os mesmos tornaram-se ainda mais opressores. A defesa verbal ficou caracterizada, em discussão posterior ao espetáculo, como o meio mais eficaz de requerer justiça na relação entre a companhia de transportes e os alunos. O Teatro do Oprimido e “Inclusão social”

Desenvolvida a partir da técnica Teatro Imagem de Boal, que propõe a apresentação de imagens (esculturas humanas) para o desenvolvimento do texto teatral, a peça “Inclusão social” foi feita exclusivamente para a Semana de Educação da FAEPI em Teresina. Como o propósito do evento era falar sobre a defesa da igualdade na prática educacional, após discussão inicial sobre o evento, o grupo se preocupou em representar “erros sociais”


comumente presentes na sala de aula. Assim, o Teatro Imagem auxiliou o grupo a retratar quais as situações atuais de opressão (o que foi apresentado somente para o grupo e pelo grupo em uma imagem) e como possivelmente essa situação caminharia para um sistema educacional menos excludente. O diálogo desenvolvido pretendeu estabelecer uma “ponte” entre a situação atual e sua possível alteração. Selecionaram-se a postura do educador, raça e histórico econômico como tópicos para encenação e posterior discussão com a platéia através do Teatro Fórum. Os breves diálogos do texto apontam para a necessidade de inclusão no ambiente educador e são travados entre uma professora que se comporta de forma ditatorial, um extraterrestre verde (símbolo de forasteiros e de pessoas de outras raças), uma bolsista filha de um porteiro e ainda alunos preconceituosos. Ao explicarmos o procedimento do Teatro Fórum e apresentarmos “Inclusão social” com seus vários momentos ofensivos, as substituições demonstraram uma preocupação principalmente com a educadora. Apesar de não ser incentivada pelo teatro de Boal, neste caso a preferência pela substituição do educador foi perfeitamente compreensível, pois a platéia era formada por educadores. No entanto, algumas destas substituições se mostraram pouco eficientes. Houve uma tendência à representação de um educador afetivo demais, algo que Boal chamaria de “mágica”, pois na vida prática isto seria pouco provável. Falamos sobre a necessidade de uma postura profissionalmente adequada – o que não era o caso da educadora de “Inclusão social” e nem dos educadores que a estavam substituindo no Teatro Fórum. Também indagamos sobre a postura dos alunos, indivíduos igualmente pertencentes ao contexto escolar e que, muitas vezes, apresentam-se como opressores. Concluímos enfatizando que tanto professores quanto alunos devem contribuir para um ambiente educacional mais igualitário, lutando contra os preconceitos, ao invés de reproduzi-los. O Teatro do Oprimido e “A armadilha” de Murilo Rubião

“A armadilha” (parte do espetáculo homônimo que inclui ainda outros textos) prioriza obras escritas durante a ditadura no Brasil. Alexandre Saldanha Ribeiro é o protagonista de “A armadilha”. O leitor pouco sabe a respeito deste personagem, a não ser que ele adentra um prédio sombrio, onde seu interlocutor, também desconhecido, já está. Ao se encontrarem, os dois participam de um acerto de contas cujo conteúdo também não é muito claro. Rubião escreve o conto durante os anos setenta, em plena ditadura militar no Brasil e embora a história pareça até um pouco fantástica, característica comum em obras deste autor e em outros textos deste período, a sensação é que a opressão do conto ou o ajuste de contas se deva a algo de natureza política ou militar. Após alguma tensão, nem Alexandre nem seu interlocutor resolvem a situação: eles permanecerão no interior do prédio que foi trancado até que alguém os ache lá, algo pouco provável, pois, de acordo com a descrição inicial, o prédio parece quase que totalmente abandonado.


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Para a montagem de um espetáculo baseado neste texto, procedeu-se também, como em alguns dos outros casos aqui já relatados, à retirada da narração e à concentração na ação das duas forças dramáticas antagônicas. Assim, Alexandre e seu oponente são retratados na versão de “Os Federais” quase como lutadores de artes marciais, sendo a dinâmica da relação verbal acentuada também fisicamente. Como em nenhum momento a situação entre os dois é esclarecida, a adaptação deste texto em peça é um instrumento de reflexão sobre a opressão em si, principalmente a natureza da opressão relatada em obras literárias do período. Ao utilizarmos a metodologia de Boal, os objetivos são claros: identificar a opressão e capacitar o oprimido a lutar contra ela. Os mesmos coincidem com os objetivos do projeto de “Os Federais. Nos exercícios preparatórios para a encenação de “Um apólogo”, “A igreja do diabo”, “Inclusão social” e “A armadilha” procurou-se, através da metodologia aqui explicitada, uma compreensão mais profunda das relações entre os personagens. Nas peças homônimas (os textos já adaptados para o teatro), o método de Boal contribuiu para uma divulgação mais acessível da literatura, pois os membros da platéia tendem a atentar mais para o que está acontecendo no palco se souberem que em breve eles poderão interferir na ação. Concluímos que apesar de sempre haver discordância em relação à origem opressora (na ação) de um texto, há também uma tendência de que a fonte mais forte de opressão seja notória após a montagem de uma cena – neste caso, um simples diálogo que precisa inicialmente indicar a situação-crise do oprimido, situação essa da qual ele quer sair -- e da participação do público que auxiliará na resolução da crise do protagonista. Muitas vezes a percepção da natureza da opressão muda após as primeiras substituições e encenações. A Casa da Cultura

A Casa da Cultura de Teresina foi inaugurada em 1994 e localiza-se em um prédio construído no final do século XX pelo Barão de Gurguéia (1809-1897) para residir com sua família. Hoje, a Casa da Cultura é tombada pelo Departamento do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural do Piauí e constitui um dos edifícios mais antigos da capital piauiense. A Casa da Cultura possui a seguinte proposta: preservação, promoção e divulgação da cultura do Piauí. Com este objetivo, há cinco espaços principais de exibição de obras artísticas ao público: o Museu da Casa da Cultura (que exibe arte sacra, numismática, fotos e acervo do fotógrafo José Medeiros, e uma coleção de fósseis e rochas provenientes da região de Pedro II, no Piauí), Galeria Lucílio de Albuquerque (espaço batizado com o nome do artista plástico piauiense e que é utilizado principalmente para aulas, oficinas e apresentações artísticas), Biblioteca Jornalista Carlos Castello Branco (com exibição do acervo pessoal do jornalista), Memorial Professor Wall Ferraz (com exibição do acervo pessoal deste piauiense) e Varanda Cultural (para exibições temporárias).


“Os Federais” e a Casa da Cultura

Nas apresentações de “Os Federais” já tivemos até 200 pessoas. Considerando-se que pretendemos proporcionar ao público a circulação nos vários ambientes do museu, nossa proposta é a utilização de três dos cinco espaços principais: o Museu Casa da Cultura, a Galeria Lucílio de Albuquerque e a Varanda Cultural. Os acervos contidos nesses três espaços serão adaptados às apresentações do grupo, de forma a constituírem o cenário das peças total ou parcialmente. Com isso, o público será convidado a contemplar o acervo e, se já o conhecer, a percebê-lo também de outra forma, quando em diálogo com o teatro. Isso fará com que o público experimente também as várias possibilidades interpretativas da arte. A proposta, já aprovada pela Casa da Cultura, e com planejamento para realização no segundo semestre de 2013, é a de exibição semanal do repertório supracitado do grupo (ou parte dele em cada dia), em formato de espetáculo itinerante. Assim, em um mesmo dia as várias cenas dos vários espetáculos serão apresentadas em locais diferentes da Casa da Cultura na hora do almoço (entre meio-dia e duas da tarde). Até mesmo se houver tempo para a realização do Teatro-Fórum, retornaremos aos espaços onde as cenas originais foram apresentadas para que elas possam ser refeitas e analisadas pelo grande público. Através dessas apresentações, que devem durar de 20 a 45 minutos, espera-se que o público inicie o hábito de ter no museu um espaço de reflexão, contemplação e refúgio. E acreditamos também que esse projeto possa ser o início de uma nossa visão da arte (em suas mais diversas formas) no Piauí como parte integrante e essencial para o bem-estar do indivíduo. Conclusão

O Teatro do Oprimido possibilita o tratamento de questões que, de outra maneira, jamais seriam observadas. Para Boal, o teatro só é do oprimido, se este participa do seu processo. Da mesma forma, pelas experiências vistas até a presente data, percebo que a literatura só se torna objeto de intensa discussão se os discentes que com ela trabalham e o público puderem “adentrar” o contexto da obra. Neste novo projeto apresentado por “Os Federais” pretendemos expandir a atuação do grupo, aumentando ainda mais o diálogo entre a comunidade e a(s) obra(s) de arte. Isso será feito através da utilização de um novo espaço cênico, da apresentação do repertório para outros segmentos da população piauiense, da motivação de diálogo entre duas formas artísticas distintas e do incentivo a novas percepções da arte. Se a discussão de uma obra literária adaptada para o teatro também é motivada pela transferência do contexto da obra para o contexto de vida do leitor ou espectador, aplicando uma realidade literária, posteriormente também dramática, a uma realidade social, essa discussão será ainda mais ampliada se abranger outros saberes e espaço artísticos. Somente baseado em um envolvimento profundo com a obra literária e a arte, o grupo “Os Federais” poderá cumprir o papel a que se propõe, conhecendo a literatura e tornando-a, de várias maneiras, conhecida.


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Contactar o autor: assuntosinternacionais@ufpi.edu.br Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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Referências · 1 ASSIS, Machado. “A igreja do diabo”, In: COUTINHO Afrânio (org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997. ______. “Um apólogo”, In: COUTINHO Afrânio (org.). Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997. · BENJAMIN, Walter. Versuche über Brecht. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1966.

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· BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. ·______. Técnicas latino-americanas de teatro popular: uma revolução copernicana ao contrário. 2. ed. São Paulo: HUCITEC, 1984. ·______. Entrevista pessoal. 16 de julho de 2003. · ECO, Umberto. The Role of the Reader: Explorations in the Semiotics of Texts. Bloomington: Indiana U P, 1979. · RUBIÃO, Murilo. A casa do girassol vermelho e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. · SCHUTZMAN, Mady (Org). Playing Boal: Theatre, Therapy, Activism. London: Routledge, 1994.


Sociedade Portuguesa e Arte Contemporânea. Análise socio-cultural do CAMJAP. Portuguese Society and Contemporary Art. Oficial and Cultural Analysis of Camjap.

Filippo De Tomasi Ana Dos Reis Furtado Resumo: Este trabalho concentra-se principalmente sobre a relação da sociedade portuguesa com a arte contemporânea, nomeadamente o Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP). A análise dos Jornais da época e dos catálogo do CAMJAP demonstrarão como mudou a consideração da arte contemporânea quer na sociedade portuguesa quer na conceção e na estrutura do museu e das exposições de arte contemporânea. Palavras-chave: Arte contemporânea. Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Sociedade portuguesa. Exhibition/Dialogue.

Abstract: This work is focused on the relation between the Portuguese society and contemporary art, especially with the Center of Modern Art José Azeredo Perdigão (CAMJAP). Through the analysis of several portuguese newspapers and catalogues of CAMJAP, we shall see how the role attributed to contemporary art in the Portuguese society, as well as the conception of museum and exhibition, has been changed in the last decades. Keywords: Contemporary art. Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Portuguese society. Exhibition/Dialogue. Introdução

O presente ensaio indaga a relação da sociedade portuguesa com a arte contemporânea, no caso específico do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP). Esta instituição cultural foi uma das primeiras e principais desta tipologia em Portugal; antes da sua criação, em 1983, o país, com efeito, ainda não tinha um espaço artístico dinâmico e inovador dedicado à cultura visual mais recente portuguesa e internacional. O CAMJAP torna-se, assim, o primeiro exemplo português de museu artístico contemporâneo e o seu efeito na sociedade foi imediato e ambivalente. De facto, a crítica especializada e os historiadores de arte viram a nova instituição como uma possibilidade de abertura e inovação no campo cultural do país; entretanto a opinião pública parecia mais ocupada com a oposição a esta estrutura, reconhecendo a importância apenas no momento da inauguração. A tal propósito, a primeira parte é focalizada principalmente nas críticas e nos problemas conexos com a sociedade portuguesa, nomeadamente à instituição


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do CAMJAP e a construção do seu edifício. A segunda metade investiga a inovação das apresentações de museologia e de montagem das obras de arte: especialmente nos primeiros anos de acividade do CAMJAP. Demonstrando como mudou a modalidade expositiva com a exibição Exhibition/Dialogue de 1985. Esta exposição, sujeita na altura a algumas críticas e perplexidades, pode ser retida como um primeiro fundamental experimento para uma evolução contemporânea da museologia em Portugal. Através de uma pesquisa nos jornais e revistas da década 1979-1985 e na consulta dos principais catálogos do CAMJAP, tenta-se de definir a relação da comunidade portuguesa com a arte contemporânea nacional e também o inovador aporto científico do CAMJAP à museologia portuguesa: elementos fundamentais para delineação da evolução da cultura contemporânea portuguesa. 1. Contexto

Depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, Portugal confrontou-se com muitos problemas e, pelo menos no início, a cultura não pareceu ocupar grande espaço no plano socioeconómico. De facto, a crise económica mundial dos anos 1973-1974 influenciou numerosas áreas e em Portugal, sobretudo, “era mais funda e tocava a própria ética da vida artística.”(FRANÇA, 1980: 65). Nesta altura de incertezas e de crises, a arte contemporânea vivia, então, um momento de profunda dificuldade. Como se pode observar, em 1974 houve apenas dois museus dedicados a arte moderna (Museu Nacional de Arte Contemporânea — Museu do Chiado de Lisboa e o Museu Nacional Soares dos Reis do Porto, ambos criados em 1911) no território português, mas ainda não existia uma instituição arte contemporânea dinâmica, reconhecida e estimada, contrariamente ao que já sucedia em outros países: na Nova Yorque o MoMA (Museum of Modern Art) foi criado em 1929 e em Paris o Musée d’arte moderne em 1961. Foi só em 1979 que se viu inaugurada uma nova e importante instituição: o Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão da Fundação Calouste Gulbenkian (CAMJAP). O Conselho de Administração da Fundação decidiu criar este museu para colmatar tal vazio na cultura e sociedade portuguesa: “chegava a ser um atentado contra a cultura manter essas obras encerradas em depósito, num país — como Portugal — que não possui ainda hoje qualquer museu de arte moderna” (Fundação Calouste Gulbenkian, 1981a). Depois sessenta e oito anos da constituição dos dois museus nacionais dedicados à arte contemporânea, aconteceu em Portugal uma mudança significativa com a criação do novo centro da Fundação Calouste Gulbenkian, ou seja o Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. 2. As polémicas do CAMJAP

O 20 de Julho de 1983 foi inaugurado o espaço físico do CAMJAP e logo nasceram as primeiras polémicas na opinião públicas. Todavia, os historiadores da arte concordam no reconhecer a importância cultural da nova instituição. O crítico José Augus-


to França (n.1922), por exemplo, intitula emblematicamente um seu artigo Enfim, o C.A.M. Veio. A falta desta tipologia de museu, é explicada por França, e também por outros estudos, reconhecendo o café lisboeta “A Brasileira” (FRANÇA, 1983b) como o único museu moderno português. Com a intenção de evidenciar como as estruturas já existentes no território nacional eram ainda pouco dinâmicas e acríticas. Notam-se aliás, já no ano de 1983, algumas incertezas a respeito das possibilidades do CAMJAP, o que se torna explícito num artigo da revista da Fundação Gulbenkian, “Colóquio/Artes”, com a seguinte afirmação: E aqui reside precisamente a dificuldade de enquadramento do Centro, já que ele logo a uma primeira leitura se apresenta algo contraditório e complexo, não de uma complexidade e contradição assumidas como motivo condutor de uma expressão linguística própria, na linha de um Venturi, mas de uma complexidade e contradição que paradoxalmente se revelam por um lado estruturais, na medida em que profundamente marcam o carácter da obra realizada, e por outro se mantêm numa área periférica, marginal à própria formulação da solução, e não como variáveis operatórias dessa mesma solução. (DE ALMEIDA, 1983: 6) Estas perplexidades, que se relacionam possivelmente com a arquitetura do novo edifício ultimado em 1983, refletem as dúvidas da opinião pública relativamente aos objetivos expressos pelo Conselho de Administração de valorizar a arte portuguesa e internacional contemporânea com um projeto inovador. Esta falta foi, portanto, colmatada com a criação do CAMJAP em 1979, decisão sujeita imediatamente a algumas contestações: umas de ordem conceptual e outras ambiental. 2.1 A contestação conceptual

A nível conceptual criticou-se a intenção de criar uma instituição cultural dedicada à arte mais recente sem que este propósito seja citado no testamento do fundador da Fundação, o colecionador Calouste Sarkis Gulbenkian (n. 1896 — m. 1955). Com efeito, a possibilidade de ampliar os interesses institucionais da Fundação Gulbenkian no âmbito da arte contemporânea, o que não era oficialmente previsto no testamento do colecionador. No mesmo texto, redigido antes do falecimento, não há menção à realização de um museu de arte moderna; todavia, José de Azeredo Perdigão (n.1896 -m.1993), diretor da Fundação e maior promotor do CAMJAP, explica como as vontades de Gulbenkian foram perfeitamente respeitadas. No testamento de 18 de Junho de 1953, além de não fazer a menor alusão “às suas obras de arte”, alarga o âmbito artístico da Instituição a todas as formas de arte, pois diz, sem qualquer limitação, que os fins da Fundação serão “de caridade, artístico, educativos e científico” e “autoriza especialmente os seus Executores Testamentários e “Trustees” a tomarem posse de todos os bens de herança, qualquer que seja o lugar onde se encontrem, com dispensa de caução e sem necessidade de inventário, e a disporem, livremente, de todos os mesmos bens, em ordem à plena execução das disposições do testamento. (Fundação Calouste Gulbenkian, 1981: 4)


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A mesma intenção de perpetuar tais vontades é explicada na Ata Oficial do Conselho Administrativo. Encontra-se, com efeito, na Ata n. 57/79 de 22 de Agosto de 1979 a seguinte definição dos significados e valores do novo museu: “construir, equipar e manter, com fins essencialmente pedagógicos e de animação cultural, um Centro de pesquisa e divulgação nos domínios da Arte Moderna.” (Fundação Calouste Gulbenkian, 1981: 5) Portanto, a contestação de utilizar da maneira errada a vontade do fundador da Fundação Gulbenkian parece, depois da justificação do diretor, uma mera objecão ao novo CAMJAP.

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2.2 A contestação ambiental

A crítica a uma alegada interpretação errónea das vontades do colecionador entrelaça-se com outra questão, ou seja: o problema da construção e localização do novo edifício que pudesse receber o emergente CAMJAP. A este propósito, França terá indicado como possível local o Parque Eduardo VII (FRANÇA, 1983), hipótese que não encontrou consenso e que foi rapidamente rejeitada. Além desta hipótese, outras duas alternativas foram lançadas: Praça de Espanha, onde hoje fica o Teatro Aberto, ou a zona interior do Jardim da Fundação Gulbenkian. A ideia de instituir o novo Centro na Praça de Espanha surgiu como uma realidade possível já a partir de 1966 mas, infelizmente, foi bloqueada pela dramática cheia de 1967. A escolha recaiu, inevitavelmente, para o Jardim da Fundação: isto comportou uma quantidade avultada de críticas e contestações. O projeto foi comissionado ao estúdio inglês de arquitetura coordenado por Leslie Martin que, em colaboração com uma equipa de profissionais portugueses, apresentou três diferentes soluções. Diferentes entre si pela utilização, ou não, de uma estrutura ortogonal em planta (Figura 1), os projetos procuraram uma integração pouco invasiva na área do Jardim, propondo uma interessante relação com o pre-existente edifício da Fundação e também com o ambiente natural, nomeadamente pela utilização de grandes aberturas e uma arquitetura em socalcos que permita à natureza crescer sobre o edifício. Apesar destas características, a opinião pública temia uma completa transformação da maravilhosa natureza presente no jardim da Fundação. Assim, a partir de 1979 e até cerca da inauguração do CAMJAP em 1983, surgiram na imprensa veementes artigos sobre o projeto aprovado. No Diário de Lisboa de 15 de Maio de 1980 encontra-se o artigo “Não se abatem árvores dos jardins do Gulbenkian nem mesmo para se construir um Centro de Arte...”.


Fig. 1 - Os três projetos apresentados pelo estúdio de arquitectura de Leslie Martin. O projeto definitivo foi o terceiro. Referência: Fundação Calouste Gulbenkian (1981a) Antevisão do Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. C. 7 cm; 300 dpi.

O título já define o sentimento da opinião pública sobre o novo CAMJAP, indicando a possibilidade de construí–lo, mas guardando o parque das especulações. Pode-se ver também um outro texto polémico intitulado “Museu de Arte Moderna vai para a frente e não destruirá o belo Parque Gulbenkian”, presente no jornal O Dia de 29 de Maio de 1980; neste artigo se resume as contestações admitindo que eles vão “desde acusação de nepotismo ao presidente do município, eng. Nuno Abecassis — e que primam, pelo menos neste caso por completa idiotia — até à afirmação de que será destruído aquele que é muito justamente considerado um dos mais belos parques de Lisboa.” (PATO, 1980: 8) Obviamente, o destino desta nova entidade cultural foi recebida de modo distinto por outros críticos e jornalistas entre os quais José Manuel Fernandes (n.1957) que demonstra, num breve artigo, a utilidade do Centro e o seu valor como arquitetura, e afirma a necessidade de compreender que, “desde que com conhecimento e cuidado, é possível alterar um espaço sem o destruir, antes o enriquecendo e abrindo à cidade.” (FERNANDES, 1982: 58-59) A estrutura do projeto arquitetónico realizado pelo estúdio inglês revelou-se, pois, profundamente inovadora ao refletir sobre determinados conceitos expositivos e possibilitando um diálogo entre a cultura artística e a comunidade. Todas estas críticas parecem desaparecer no entusiasmo da inauguração do CAMJAP em Julho de 1983. Pode-se, com efeito, encontrar ainda nos jornais da época alguns títulos significativos: no Diário Popular de 21 de Julho de 1983 aparece o título “A criação do Centro de Arte Moderna não destruiu o parque da Gulbenkian”; no Diário de Lisboa no artigo “Eanes inaugurou Centro de Arte Moderna” reporta-se, com clara intenção de referência aos antecedentes artigos de contestação, parte do discurso de Azeredo Perdigão: “Muitas e árduas foram as lutas que para tanto, tivemos de sustentar contra os que defendiam a tese segundo a qual construir o Centro dentro do Parque seria destruí-lo, tese que para nós e para entidades particularmente responsáveis não procedia, como veio, aliás, a demonstrar-se de modo inequívoco.” (Diário de Lisboa, 1983: 9)


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3. A ideia de espaço funcional do CAMJAP

O CAMJAP nasceu da necessidade de dedicar um maior espaço à cultura artística contemporânea portuguesa e, também, internacional. A sua estrutura arquitetónica parece, de facto, seguir esta finalidade. Após várias opiniões, concluiu-se que não se deveria edificar um Museu tradicional mas sim um Centro que fosse um instrumento de trabalho que permitisse a difusão da arte do nosso século, apoiada numa informação actualizada e sistemática: O Museu onde serão apresentadas as colecções de arte moderna da Fundação Calouste Gulbenkain; O Centro de Documentação e de Criação Artística composto pelos seguintes sectores: Centro de Documentação, Atelieres experimentais e de apoio ao Museu e Centro de Documentação, Sala de Exposições Temporárias e Sala Polivalente. (Fundação Calouste Gulbenkian, 1981) Estas breves frases, extraídas do texto que descreve o novo Centro, demonstram as intenções dos seus promotores: criar um ambiente dinâmico, em contínua mutação, para permitir um constante diálogo entre a arte contemporânea e a sociedade portuguesa, e um centro dedicado à documentação das exibições e atividades promovidas. O dinamismo do CAMJAP desenvolveu-se, sobretudo, na conceção e nos conceitos das salas expositivas: “muito embora se tenha tido em conta esta necessidade de criar uma maior capacidade expositiva, a única forma de cumprir este objectivo é através de uma estratégia permanente de alterações.” (Fundação Calouste Gulbenkian, 2002: 3) A finalidade desta perspetiva é de dar a ocasião ao público de interagir com a maioria da coleção; muita das obras expostas, de facto, “irão sendo mudadas, por sistema, ao longo do tempo.”(Fundação Calouste Gulbenkian, 2002: 3) O estúdio de Leslie Martin não concebeu um museu como mero contentor de obras de arte, mas tentou realizar um projeto de respiração mais ampla. Através de áreas específicas, procuraram criar um ambiente interativo e em contínua transformação onde, como menciona Pedro Vieira de Almeida (n. 1933-m. 2011), “escalas diferentes, graduadas de forma particularmente vigorosa” implicavam um “acréscimo de complexidade na organização futura de actividades” e continham “aspectos sugestivos e motivadores para uma sua utilização imaginativa”; estas características arquitetónicas constituam pois, como refere ainda Vieira de Almeida, “uma estrutura que, opondo uma certa resistência a soluções e facilidade imediata” poderia funcionar como um “elemento despoletador da criatividade e capacidade de invenção, (...) um desafio permanente e salutar.” (VIEIRA DE ALMEIDA, 1983: 6) Uma análise da planta do edifício permite compreender de modo mais claro esta divisão de funções (Figura 2). O espaço expositivo está, assim, dividido em grandes salas: a “Nave” (Nível 0) apresenta-se como um espaço livre que, por intermédio de painéis desmontáveis, pode organizar-se em diferentes áreas de acordo com as exigências das obras a exibir; a sala adjacente é dividida em duas galerias (Nível 01 e Nível 1), onde o método de exposição é mais tradicional, com paredes brancas e um único percurso. Tais características permitem usar as salas para exibir simultaneamente, quer


obras como vídeo e instalações, quer obras de pintura. Além destas grandes salas, outros espaços foram pensados para exposição: duas pequenas salas perto da grande “Nave”; uma Sala de Exposições Temporárias, no primeiro piso; uma Sala Polivalente, para conferências e outras atividades; e Atelieres experimentais, pensados para registar os principais acontecimentos da vida cultural e artística portuguesa. Obviamente foram pensadas algumas áreas do Museu para outros fins, como os Serviços Administrativos, as reservas (divididas em três zonas: reservas visitáveis; reservas de pintura, escultura e objetos; armazéns) uma cafetaria e, mais recentemente, uma livraria. Existe no projeto outro espaço importante: o Centro de Documentação e de Criação Artística que tem como objetivo recolher toda a documentação dos eventos artísticos a partir de 1911. Durante estes últimos trinta anos foram realizados muitos melhoramentos nesta estrutura que, no ano 2000, foi anexada à Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.

Fig. 2 - Planta do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão da Fundação Calouste Gulbenkian. C. 10 cm; 300 dpi.

3.1 Exhibition/Dialogue

Apesar das possibilidades de articulação do percurso expositivo e dos seus múltiplos recursos, encontra-se ainda nos catálogos iniciais (da primeira metade dos anos oitenta) uma descrição tradicional da utilização dos espaços. Assim, por exemplo, no texto Centro de Arte Moderna de 1981 nota-se uma típica partição expositiva: no piso principal fica a coleção de Arte Moderna portuguesa, pintura e escultura; no piso superior aquela estrangeira; por seu turno, no piso inferior encontram-se os desenhos, as gravuras, os livros e demais múltiplos. Esta incapacidade de aproveitar o caráter experimental do CAMJAP será gradualmente abandonada, até atingir um momento de rutura com a exibição Exhibition-Dialogue de 1985. Esta exibição, promovida pelo Conselho de Europa e curada pelo francês René Berger, tinha uma importância enorme para o CAMJAP. Foi, de facto, esta ocasião de participar de uma exibição internacional que evidenciou o valor nacional e internacional do CAMJAP. Foi sempre nesta exibição que as obras de arte contemporânea apresentadas foram montadas em todos os espaços do Centro sem a divisão entre arte portuguesa e internacional, ou tipologias de obras. Duzentas obras de oitenta artistas invadiram o espaço da instituição e da fundação permitindo ao público entrar em contacto com as pesquisas e as


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formas da arte mais contemporânea e jovem. O CAMJAP tornou-se assim centro vital de experimentação e divulgação artística contemporânea, reconhecida, imagine-se, também pelos maiores jornais e quotidianos portugueses. Assim, pode-se encontrar o entusiasmo por tal iniciativa artística no Diário de Lisboa com o artigo “Lisboa é a capital da arte contemporânea europeia” em 29 de Março de 1985 ou “Arte Contemporânea veio ‘dialogar’ a Lisboa” no Correio de Manhã do mesmo dia.

do CAMJAP.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 247-255.

Tomasi, Filippo de; Furtado, Ana Dos Reis (2013) “Sociedade Portuguesa e Arte Contemporânea. Análise socio-cultural

Conclusão

A intenção deste trabalho foi analisar a atividade do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão em relação à sociedade portuguesa e as ideias expositivas dos museus. Os elementos que constituem o CAMJAP e que aqui foram mencionados atestam a sua importância para a cultura portuguesa. Na primeira parte insistiu-se no aspecto conexo com a sociedade portuguesa e as críticas pelo CAMJAP. Nota-se que as polémicas conceptuais e ambientais no primeiro momento pareciam um obstáculo à realização do nova instituição. O facto de ter sido considerado pela crítica como o primeiro museu dedicado à arte contemporânea em Portugal é demonstrativo do caráter inovador deste projeto. Apesar da inicial perplexidade expressa pela opinião pública, o CAMJAP apresentou-se “como desafio na vida cultural portuguesa” (De Almeida, 1983:11) e conseguiu criar um importante diálogo entre a cultura artística contemporânea e a comunidade portuguesa Tais contestação, todavia, desapareciam quando também a opinião pública compreendia a importância cultural e social desta nova entidade artística. Na segunda parte indagou-se a estrutura física do CAMJAP através de uma descrição dos espaços expositivos e da sua estrutura inovadora, a instituição foi usada, primariamente, com uma ideia expositiva clássica, de subdivisão por tipologia dos objetos artísticos. Somente com Exhibition/Dialogue se começou aproveitar dos espaços para desenvolver uma tipologia de montagem mais conforme às possibilidades do CAMJAP. Tal texto pode-se expandir numa mais atenta documentação da época a fim de compreender quais foram as relações da sociedade com a arte contemporânea, numa visão geral que tenha em consideração também a experiência do CAMJAP. Contactar o autor: detomasi.filippo@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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Escultura renascentista em Abrantes: reconstituição hipotética de um retábulo narrativo a partir dos seus fragmentos.

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Renaissance sculpture in Abrantes: hypothetical reconstruction of a narrative retable from its fragments

Francisco Henriques

a partir dos seus fragmentos.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 256-271.

Henriques, Francisco (2013) “Escultura renascentista em Abrantes:reconstituição hipotética de um retábulo narrativo

Faculdade de Belas-artes da Universidade de Lisboa

Resumo: Parte-se de uma série de fragmentos arqueológicos encontrados na década de 1920, enterrados sob o adro da igreja de São João Baptista, em Abrantes. Desenvolveu-se um estudo hipotético de reconstituição de um retábulo pétreo e de um arco triunfal pertencentes à desaparecida capela lateral do Santíssimo Sacramento da Igreja. Palavras-chave: Escultura. Geometria. Retábulo. Reconstituição. Renascimento.

Abstract: It starts with a series of archaeological fragments found in 1920, buried in the churchyard of St John the Baptist in Abrantes. Developed a hypothetical study of reconstitution of a stone retable and a triumphal arch belonging to the missing side chapel of the Blessed Sacrament from that church. Keywords: Sculpture. Geometry. Retable. Reconstruction. Renaissance. Introdução

Em meados do século XX, aquando da regularização do adro da igreja de S. João, em Abrantes, foram identificados cerca de 20 fragmentos de pedra calcária, com decoração quinhentista. Esses fragmentos foram recolhidos, naquela altura, por Diogo Oleiro e por ele levados para o Museu Lopo de Almeida. Numa primeira caracterização, vê-se que os motivos decorativos desses fragmentos são bastante variados. Vários deles parecem ter pertencido a episódios narrativos de um retábulo pétreo de uma capela. Não se conhece a origem dos fragmentos expostos, mas é bastante provável que pertençam a um retábulo que se encontrava no interior da igreja de S. João. De acordo com o Dicionário Geográfico do Padre Luís Cardoso, escrito em meados do século XVIII, havia no interior da igreja de S. João, do lado do Evangelho, uma capela dedicada ao Santíssimo Sacramento, encontrando-se aí um retábulo de pedra (cujo paradeiro era desconhecido até à recolha dos fragmentos em meados do século XX) representado os Passos da Paixão de Cristo. Pelo menos alguns dos fragmentos de pedra parecem corresponder a essa descrição, pelo que se pode aceitar que vários destes fragmentos pertenceram a esse retábulo “dos Passos da Paixão de Cristo” ou “do Calvário”, ou, também, como veremos, ao arco triunfal da capela, ou ainda a outras


estruturas de tipo arquitectónico que eventualmente a integravam, os quais foram removidos da igreja por se encontrarem danificados, sendo então os mesmos enterrados no adro do templo. Também se não conhece o autor do retábulo a que terão pertencido os fragmentos, mas as suas características estilísticas sugerem as oficinas activas em Coimbra e os meados do século XVI. Numa visita feita à igreja de S. João reconhecemos, quer no exterior, quer no interior, a existência da Capela «do Santíssimo Sacramento» como a única subsistente que sobressai do paralelepípedo constituído pelas naves, precisamente do lado do Evangelho, junto à saída para a Sacristia. A capela terá sido muito danificada no Terramoto de 1755, o que ditou a sua profunda transformação num mero altar à face da parede da nave, tal como os restantes. No entanto, por detrás desse altar, subsiste o espaço da capela, sendo visível, no exterior e no interior, a cúpula que a encimava. A investigação realizada, que a seguir se expõe, ilustrada por desenhos de reconstituição que incorporam os fragmentos, procurou esclarecer a integração desses mesmos fragmentos, quer no arco triunfal da capela, quer na estrutura narrativa e compositiva do retábulo, bem como a mais correcta datação e atribuição de autoria para esses vestígios, tendo em conta os patronos conhecidos da igreja de S. João, assim como a presença em Abrantes e no Sardoal de importantes escultores que estavam ocupados nas obras do Convento de Cristo, em Tomar, em meados de quinhentos. 1.1 Os fragmentos descobertos pertencentes ao retábulo dos Passos da Paixão de Cristo da primitiva Capela do Santíssimo Sacramento da Igreja de S. João

No mais interessante de todos vê-se uma cena da Via-sacra, com Cristo levando a cruz às costas e Santa Verónica beijando a túnica do Redentor, ao mesmo tempo que ostenta um pano com a Vera Efígie do Salvador (Figura 1). Parece discernir-se, num segundo registo da mesma cena, um soldado a agarrar outra figura. Um outro fragmento mostra os restos de uma figura que parece sustentar os restos de uma cruz, que se harmoniza com o fragmento anterior, o que leva a pensar num sector lateral da mesma cena, a decorrer por detrás de Jesus transportando a cruz, que identificaria talvez a figura de Simão Cireneu (Figura 2). Se estamos, de facto, perante o passo da Paixão em que Jesus, já auxiliado por Simão Cireneu, encontra a Verónica, temos um interessante paralelo iconográfico, pouco anterior, no painel pictórico Cristo a caminho do Calvário do Retábulo do Convento de Jesus de Setúbal (cerca de 1520-1530). O outro fragmento de cena narrativa mostra Maria e João juntos, olhando para o alto, o que indicia estarem a presenciar a crucificação. Faria parte, porventura, da principal cena narrativa do retábulo, o Calvário (Figura 3). Há mais fragmentos com restos de figuras de possíveis cenas narrativas mas de momento impossíveis de identificar. Alguns dos fragmentos apresentam conchas de coroamento de nichos ou de frontões, enquanto outros apresentam diversas figuras


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humanas de difícil identificação mas que fazem parte dos modelos habituais de decoração renascentista. De destacar, nesse conjunto, um fragmento com um centauro, outro com um templete e ainda um outro com quatro cascos de um animal que seria um cavalo, mula ou burro. No entanto, é possível que alguns destes fragmentos não pertencessem ao retábulo. Um deles parece ser uma goteira, portanto um elemento exterior, enquanto noutro é visível o arranque de uma curvatura lateral, sendo possível que fizesse parte do arco de um portal, talvez o acesso à capela do Santíssimo Sacramento, ou mesmo de um possível arco de enquadramento do próprio retábulo.

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1.2 O processo de reconstituição 1.2.1 O Arco Triunfal da Capela

Depois de analisados os vários fragmentos, foi-nos possível identificar um baldaquino/lanternim concheado, destacando-se projectante do restante bloco. No topo da peça, por cima e detrás do lanternim em alto-relevo, nasce um conjunto de molduras concêntricas descrevendo um arco, conjunto esse que acompanha o perfil idêntico de um excerto da própria peça. No intradorso desse excerto de arco encontram-se esculpidos relevos decorativos com enrolamentos de carácter fito e zoomórfico de notável qualidade escultórica, quer ao nível do desenho como do cinzelado (Figura 4). Dadas as suas características formais, considerámo-lo parte integrante de um arco – talvez o arco triunfal de acesso à referida capela «do Santíssimo Sacramento» – e identificámo-lo com a imposta do pé-direito esquerdo do mesmo. Tomando como ponto de partida o perfil deste bloco – e considerando o conjunto das várias molduras concêntricas lavradas (entre as quais a moldura que delimita externamente uma arquivolta), e também uma série de linhas horizontais e verticais presentes no baldaquino e no lanternim que indicam a verticalidade da peça – foi-nos possível aferir o diâmetro do intradorso com uma medida aproximada de 290 cm. Na visita à igreja de S. João Baptista, por ocasião desta investigação, efectuámos aí um levantamento de medidas do arco que actualmente ocupa o mesmo lugar. Assim, estimámos que o vão actual – medido no intradorso dos pedestais dos pés direitos – é de cerca de 293 cm. Esta medida tão aproximada entre ambos leva-nos a admitir que o actual arco terá vindo ocupar – com os necessários ajustamentos – a original estruturação tectónica. Sem outros dados que nos pudessem indicar a hipotética organização compositiva da restante estrutura do referido arco, optámos por idealizá-la seguindo uma tipologia generalizada, baseada nos modelos mais comummente empregues no período da renascença, a que o mesmo indubitavelmente pertence. Assim, e ainda que sem o estrito cumprimento das normas tratadísticas (que, de uma forma generalizada, não temos observado integralmente normalizada e respeitada [sobretudo ao nível da implementação das respectivas proporções] num largo acervo de idênticas obras pertencente ao mesmo período em território nacional), organizámos esta estrutura empregando os seguintes elementos:


- O emolduramento: organizado como numa sobreposição de ordens – com pilastras almofadadas sobrepostas, as inferiores assentes sobre pedestais e as do segundo registo (já ladeando o arco) com um balaústre frontalmente adossado auxiliando a sustentação do entablamento ligeiramente projectante. - O entablamento: constituído por cornija de três molduras, friso almofadado, e arquitrave de três bandas. - O arco obtido e respectivos pés-direitos. - Sem possuirmos qualquer dado adicional que nos fornecesse mais indicações e/ou soluções compositivas, optámos por empregar o entablamento horizontal [sem frontão], igualmente muito utilizado neste período.

Tendo sido encontrado o vão e arquivolta do arco com linhas por nós delineadas sobre a imagem da peça original, copiámos e invertemos horizontalmente o elemento de partida (com uma coloração azul na imagem), colocando-o no extremo oposto, à direita do arco – reproduzindo simetricamente a peça complementar da estrutura (Figura 5). Prosseguimos, então, com a delineação da restante estrutura, importando referir que para encontrar a largura e altura total do arco – considerando os seus extremos – tomámos como ponto de partida a medida do vão e da flecha, e seguindo uma das metodologias e tipologias mais comummente empregues por artistas deste período em território nacional, recorremos a um dos possíveis sistemas geométricos de proporção e simetria subjacentes ao traçado e organização compositiva da obra. Assim, na continuidade vertical do intradorso, tomando a base da cúpula semiesférica do baldaquino/lanternim que delimitaria superiormente um nicho, e a marca externa do bordo esquerdo do mesmo bloco, prolongámos para baixo a altura dos pés direitos, terminando-os assentes sobre os já referidos pedestais. Seguidamente, adicionámos exteriormente as duas pilastras do emolduramento, mantendo, como habitualmente, a altura dos pedestais dos pés-direitos, e terminando-as, no topo, à altura das impostas do arco, observando ainda a inclusão de um capitel, e do entablamento que aí também toma lugar. No segundo registo, ladeando o arco, empregaram-se duas pilastras não capitelizadas de igual secção, frente às quais se adossam dois balaústres. Este conjunto suporta, então, o referido entablamento que apresenta duas projecturas sobre estes elementos de suporte. Afigurou-se-nos interessante verificar que a estrutura assim ideada, tomando apenas o vão do arco como medida, quando transposto e composto sobre uma fotografia do arco actual, se lhe adequa com enorme proximidade (Figura 6). Desta forma, no desenho assim proposto, a altura do vão resultante terá, aproximadamente, 585 cm; a altura do arco 690 cm; e a sua largura total 500 cm (estas últimas tomadas no topo e nos extremos laterais da cornija). Embora não haja dados concretos neste sentido, colocámos um escudo de armas dos Almeidas no fecho do arco, como também habitualmente aconteceria (utilizando, para tal, uma peça do museu que sabemos não pertencer ao arco, mas que serve aqui o propósito figurativo, também colorido a azul na imagem). Da mesma forma,


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Fig. 1 - Fragmento do Caminho do Calvário, com Cristo, Santa Verónica e verdugos. Autor: M.I.A.A.

Fig. 2 - Fragmento com figura trajando túnica e botas. Autor: M.I.A.A. Fig. 3 - Fragmento da Crucificação, com S. João amparando a Virgem e Madalena ajoelhada. Autor: M.I.A.A.

Fig. 5 - Reconstituição hipotética do arco da capela. Autor: Francisco Henriques Fig. 4 - Fotografia a três quartos do baldaquino/Lanternim pertencente à imposta do arco. Autor: Francisco Henriques


os dois tondi que colocámos nas cantoneiras servem também o propósito de nos aproximarmos da tipologia mais comummente utilizada na época. Sendo que o baldaquino remataria superiormente um nicho (para o qual, no conjunto de peças encontradas, em nenhuma identificámos o fragmento de uma mísula), utilizámos uma imagem de S. Pedro em vulto perfeito, relativamente integral, pertencente à colecção do museu e datada do mesmo período (colorida a vermelho na imagem). Tendo a peça cerca de 90 cm, hipoteticamente adequar-se-ia à altura e largura do nicho em questão no lugar que canonicamente lhe é reservado, servindo o propósito de conferir maior completude a esta estrutura ideada. Importa acrescentar, neste sentido, que nos coibimos de incluir qualquer desenho de ornamentação, cingindo-nos apenas aos almofadados do friso, das pilastras e respectivos pedestais – mesmo considerando a existência dos habituais enrolamentos e elementos decorativos, ou dos balaústres relevados que simulariam o “sustentáculo” das mísulas projectantes para suporte das figuras de devoção. Uma outra peça captou igualmente a nossa atenção: falamos de um fragmento de uma pilastra no qual é possível identificar um outro baldaquino/lanternim, também concheado, destacando-se de uma de duas faces lavradas (Figura 7). Na outra face, contígua e em ângulo recto para a direita da anterior, o fragmento evidencia uma série de relevos, dos quais se destaca um medalhão com um busto masculino de um frade (?) de idade avançada e longas barbas, que já foi tomado como uma representação do Condestável Nuno Álvares Pereira. O medalhão insere-se entre fustes de finos balaústres, dos quais brotam enrolamentos simétricos de motivos fito e zoomórficos de gosto renascimental. Dadas a estruturação do fragmento e a articulação entre elementos (um baldaquino de um nicho relevando-se frontalmente, com uma face ornamentada no intradorso; e, sobretudo, a adequação das medidas de ambas as faces em questão) levou-nos a considerar a sua conjugação e adequação a esta mesma estrutura hipotética. Assim, objectivamente, a sua colocação será abaixo do primeiro nicho, considerando uma altura aproximada de 90 cm da imagem de S. Pedro, a inclusão da mísula de suporte, e ainda um possível balaústre em relevo, simulando uma estrutura que partiria da base do fuste da pilastra (no almofadado), funcionando como suporte deste nicho inferior, e que continuaria como suporte da mísula do nicho superior. Sem que conheçamos as tipologias, medidas, e decoração de todos estes elementos, coibimo-nos de os incluir. Para melhor identificação no desenho obtido, mantivemos lado a lado a face do intradorso da pilastra. No sentido de estabelecer a habitual composição simétrica do arco, também esta peça foi copiada e invertida segundo o seu eixo vertical, ocupando o mesmo lugar no pé-direito oposto (também colorido a azul). A silhueta da figura humana serve de escala de referência nestas reconstituições, medindo os habituais 175 cm.


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1.2.2 O retábulo “Do Calvário” ou “Dos Passos da Paixão de Cristo”

Como foi anteriormente referido, em dois dos fragmentos encontrados podem ser identificadas figuras alusivas a dois passos da Paixão de Cristo, e dos quais partimos para uma hipotética reconstrução do retábulo que naquela capela se encontrava. Nem sempre a análise detalhada dos restantes fragmentos nos permitiu óbvias indicações, embora tenha sido possível verificar a existência de excertos de outros baldaquinos (Figura 8); de fragmentos de conchas – alguns de grandes dimensões (Figuras 9); de excertos de pilastras com baixos-relevos de balaústres (Figura 10); ou ainda de enrolamentos de volutas. Noutros casos, foi-nos possível verificar a existência de outras personagens – umas mais óbvias e conclusivas do que outras: - Num primeiro caso é possível identificar um centauro a galope com uma aljava às costas, com o tronco voltado sobre a garupa, apontando e estirando o arco com uma flecha (Figura 11). Na mesma peça é visível, também, à direita do relevo anterior e num espelho ligeiramente reentrante, um grande mascarão. Neste caso, pensamos que se tratará, talvez, de um fragmento de uma predela – local em que, em alguns casos, verificámos a existência de elementos de carácter mitológico. - Um outro fragmento exibe duas personagens em baixo-relevo, lado a lado, voltadas para a direita, envergando túnicas e sem que se possa dizer tratar-se de figuras masculinas ou femininas, nem verdadeiramente afirmar o contexto em que se poderiam inserir (Figura.12). - Um pequeno fragmento com um anjo (Figura 13) – talvez de mãos postas em adoração; talvez segurando um turíbulo, hoje inexistente; talvez segurando um instrumento musical também desaparecido. - Num outro fragmento vê-se uma figura masculina barbada, sentada e trajando uma toga assertoada – a seus pés, à esquerda, pode ainda ser identificado um pequeno anjo com as mãos ligeiramente erguidas (Figura 14). Tal conjugação orienta-nos para a identificação de S. Mateus, com o anjo – o seu atributo – segurando o tinteiro no qual o evangelista molha a sua pena. Com frequência os evangelistas surgiam figurados na predela. - Por fim, voltamos a referir o bloco onde se pode ver a metade inferior de uma figura masculina, envergando uma túnica e calçada com botas, frente à qual resta uma secção paralelepipédica fragmentada (Figura 2). Dadas as suas características, e existindo uma grande proximidade com a orientação do fragmento paralelepipédico, pensamos poder tratar-se de uma das figuras do Caminho do Calvário, talvez Simão Cireneu auxiliando Cristo a transportar o madeiro, como atrás também se referiu. Tomando em consideração as indicações do Padre Luís Cardoso no seu já citado Dicionário Geográfico, uma vez que a capela era dedicada ao Santíssimo Sacramento, o retábulo deveria ter uma clara dimensão eucarística, ou seja, na sua organização incluiria um sacrário.


Reunindo todos estes dados, procedemos a uma tentativa de reconstituição hipotética do retábulo ali existente. Começámos, então, por efectuar um escalamento proporcional das fotografias frontais de todas as peças encontradas tendo em conta as suas medidas reais, reunindo-as, depois, num mesmo documento de uma aplicação de tratamento e composição de imagem em suporte digital. Com os fragmentos analisados e medidos in loco, tornou-se possível o seu arranjo harmónico e proporcional e, desta forma, mais objectivamente discernir, comparar e articular alguns aspectos de carácter compositivo: Em primeiro lugar, por óbvios motivos de carácter teológico e devocional, sabemos que num ciclo da Paixão o episódio que habitualmente recebe maior destaque e assume uma posição central será sempre o da Crucificação. Do mesmo modo, observável de forma transversal noutras organizações retabulares coevas, ladeando a cena central temos sempre um episódio precedente e outro sequente, à esquerda e à direita respectivamente. Verificámos que os fragmentos nos quais são identificáveis personagens [o excerto no qual é possível reconhecer parte do Caminho do Calvário, com Cristo carregando a cruz, a Verónica ajoelhada, e um ou dois verdugos (Figura 1); o excerto que identificámos com pertencente à Crucificação, com S. João amparando Maria, e Madalena ajoelhada (Figura 3); e, por fim, o excerto com a metade inferior da figura masculina frente à qual se destacaria um paralelepípedo (Figura 2) as figuras evidenciam uma notável proximidade de escala. Mais ainda, após efectuarmos o prolongamento das linhas que formam os braços da cruz no Caminho do Calvário, constatámos que o excerto fragmentado de secção paralelepipédica frente às pernas da figura que hipoteticamente passamos a denominar Cireneu, particularmente se lhe adequa, quer nas dimensões, quer na inclinação. Este último facto levou-nos a considerá-las parte integrante do mesmo episódio narrativo (Figura 15). Embora esteja muito incompleto o relevo da Crucificação, apenas se distinguindo o conjunto de personagens já citado, será óbvia a existência de Cristo Crucificado com uma altura elevada da cruz relativamente às outras personagens. Faltando a figura crucial deste episódio narrativo, procurámos uma crucificação com características idênticas entre o vasto conjunto de retábulos pétreos em território nacional do mesmo período, tendo encontrado no retábulo do Calvário da capela dos Vales, em Tomar, uma organização que se lhe podia adequar. Recortámos a referida imagem pelos seus contornos, e compusemo-la proporcionalmente, colorindo-a de azul para uma acautelada diferenciação, localizando-a de acordo com os eixos da direcção do olhar de Cristo sobre o grupo, e o de João para Jesus. Verificámos ainda que alguns dos fragmentos de baldaquinos encontrados assumem dimensões demasiado grandes para que pudessem pertencer a quaisquer nichos dos elementos de suporte da estrutura retabular (i.e. as pilastras), ou mesmo ao sacrário, e que alguns dos fragmentos continuavam a não sugerir qualquer identificação na proximidade do conjunto que se começava a organizar. Dadas a qualidade plástica e a dimensão das figuras nestes fragmentos encontrados, pensamos tratar-se de uma obra maior, ideada por um escultor idóneo e de


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Fig. 6 - Montagem do arco hipotético sobre fotografia da capela na actualidade. Autor: Francisco Henriques

Fig. 7 - Excerto de pilastra a três quartos, com baldaquino frontal projectante e decoração de medalhão no intradorso. Autor: Francisco Henriques

Fig. 8 - Fragmento de grande baldaquino com pequenas figurinhas assomando às janelas do lanternim. Autor: M.I.A.A.

Fig. 10 - Fragmento de pilastra com baixos-relevos de balaústres. Autor: M.I.A.A.

Fig. 9 - Fragmento com conheados. Autor: M.I.A.A.


apurada erudição artística. Como tal, pensamos ser indicado estabelecer um sistema compositivo adequado ao estatuto do hipotético escultor, e organizá-lo segundo as normas e preceitos da tratadística relativos à harmonia e simetria preconizados para a tessitura do conjunto e dos diferentes elementos estruturais. Sem que existissem outros dados conclusivos relativamente à máquina retabular que estabelece a ordenação dos diferentes episódios narrativos e imagens icónicas, e baseando-nos nas supracitadas medidas do arco da capela do Santíssimo, calculamos que a largura interior desta rondasse os 400 cm, e que o retábulo – que se adequaria à sua parede fundeira – teria uma medida ligeiramente inferior, com cerca de 350 cm. Relativamente aos retábulos pétreos deste período, nomeadamente nos eucarísticos, não é possível estabelecer uma tipologia uniforme, sabendo, no entanto, que em muito maior número são trípticos, quase sempre com dois registos (ou de registo único sobre uma predela). Embora a grande maioria inclua uma predela, algumas vezes apenas assentam sobre uma base, sendo a generalidade coroada por um frontão também de tipologia muito diversificada: triangulares, semicirculares, etc.; sendo mais raros os retábulos de entablamento horizontal, ou seja, desprovidos de frontão. Quanto à tipologia do sacrário, salvo muito raras excepções, ela é particularmente uniforme, apresentando apenas pequenas diferenças. Habitualmente são concebidos como micro-arquitecturas (mais ou menos cumprindo a tratadística e, deste modo, revelando a erudição do imaginário), emulando um templo de planta centralizada – hexagonal na sua grande maioria (em alguns casos, circular) – com uma cúpula semiesférica e lanternins de um, dois, ou mais tambores sobrepostos (também estes quase sempre cupulados), e estes rasgados de pequenas janelas. Por norma, concebido num bloco único, este conjunto destaca-se volumetricamente da restante estrutura apenas na sua metade frontal, criando admiráveis jogos formais de luz e sombra. Em todos os casos, o sacrário beneficia de uma posição central na máquina retabular, embora variando a sua proporcionalidade face à restante estrutura: pode ocupar apenas um lugar na base ou na predela cingindo-se à sua altura; ou aí se iniciar (por vezes elevado sobre uma mísula para o primeiro registo), mas quase sempre ocupando a totalidade da dimensão vertical do primeiro registo [e quase sempre a totalidade da dimensão horizontal do corpo central]; muitas vezes elevando-se ao segundo registo; e até, por vezes, atingindo o entablamento. Baseando-nos nestes pressupostos optámos, então, por uma estruturação em três corpos, com um registo único, uma predela e a base, assentando a máquina retabular sobre um embasamento frente ao qual se situaria o altar. Desta divisão resultam, assim, seis espaços de representação: os três superiores destinados aos episódios narrativos; dois inferiores, laterais, que subdivididos se destinariam a quatro representações icónicas; e um ultimo, central, reservado ao sacrário. Assim, estruturámos o conjunto de modo a que, sobre a base, assentem quatro pilastras não capitelizadas organizando os três corpos com igual largura e assegurando o suporte do entablamento que marca a altura da predela e a divisão para o primeiro registo.


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Neste primeiro registo, à imagem de outros que frequentemente temos encontrado, também a ordenação dos espaços de representação é formada por quatro pilastras capitelizadas, mas estas com balaústres frontalmente adossados. Os três passos da Paixão de Cristo tomariam, então, aqui lugar. Por fim, assente sobre as pilastras reforçadas pelos balaústres, o entablamento remataria a estrutura retabular coroada com um frontão para o qual ainda não se antevia definição. Quanto ao sacrário, perante a inexistência de qualquer fragmento que se lhe adequasse, optámos pela utilização de um modelo generalista e hipotético, cumprindo os requisitos supra-identificados, e ocupando, em altura, todo o primeiro registo. Um primeiro problema se colocava então: o relevo da Crucificação, dada a altura da cruz, necessitava de assumir uma maior dimensão relativamente aos episódios narrativos laterais (o que é frequente em muitos outros exemplares coevos). Tal condicionante levou-nos a reformular a estrutura retabular e voltar a elevar o entablamento superior – e, por isso, a sugerir a existência de um segundo registo apenas acima dos corpos laterais. Desta forma, adequa-se, na edícula à esquerda, o fragmento do Caminho do Calvário, com Simão Cireneu mais atrás auxiliando Cristo a suportar o peso da cruz, tomando a figura de Cristo uma posição central relativamente ao espaço de representação. Na edícula central – com a figura de Cristo Crucificado assumindo a posição central na edícula – o fragmento com João, Maria e Madalena deverá encostar-se à pilastra à esquerda, uma vez que por trás de João é ainda visível um excerto da mesma. Por suposição, à direita da cruz, deveria estar o habitual grupo de soldados e, ao fundo, em baixo relevo, talvez, uma representação de Jerusalém. Na edícula à direita supomos que se deveria encontrar um relevo com uma Descida da Cruz, um episódio sequente e com igual carácter devocional, suscitando e concorrendo para os mais profundos e pungentes sentimentos de piedade. Sem que seja objectiva a colocação do fragmento com as duas figuras togadas voltadas para a direita (Figura 12), pensámos oportuno inclui-lo nesta edícula supondo que este baixo-relevo poderá representar quaisquer personagens que se diferenciem do grupo central – em alto-relevo – mais afastadas e num plano recuado. Nas duas edículas sobrepujando os episódios laterais, era comum estarem representados anjos em oração, de mãos postas, pairando ou ajoelhados ladeando a figura do Crucificado. Desta forma, adequando-se ao referido espaço de representação, optámos por aí colocar o pequeno fragmento com o anjo (Figura 13), clonando e colorindo o seu simétrico na edícula oposta). A presença dos quatro Evangelistas era comum em quase todas as máquinas retabulares deste período, sendo-lhes habitualmente reservado os espaços da predela. Neste sentido, adequando-se-lhe o fragmento com S. Mateus, também aí o colocámos. Punha-se, ainda, a questão do coroamento da estrutura retabular, sabendo-se não existir uma tipologia regular para os frontões então empregues. Foram comuns as tipologias já referidas, mas muitas outras estiveram também em vigor, dentre elas,


Fig. 11- Fragmento de predela com centauro e mascarão. Autor: M.I.A.A.

Fig. 12 - Fragmento com figura trajando túnicas. Autor: M.I.A.A.

Fig. 13 - Fragmento com anjo. Autor: M.I.A.A.

Fig. 14 - Fragmento com S. Mateus, com o anjo, em baixo, à esquerda. Autor: M.I.A.A.

Fig. 15 - Reconstituição hipotética do retábulo. Autor: Francisco Henriques

Fig. 16 - Reconstituição hipotética do arco e retábulo compostos. Autor: Francisco Henriques


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também, a utilização de um coroamento sob a forma de um templete de planimetria circular, com uma cúpula semiesférica suportada por colunas ou balaústres – ele mesmo constituindo um baldaquino – com uma cortina aberta ao centro (atada aos balaústres ou, por vezes, apartada por anjos), revelando o cálice e a hóstia sagrada. Acontecia, também, que lateralmente a este templete, dois arcos nascendo a partir de acrotérios sobre os extremos do entablamento se fechassem sobre aquele, conferindo uma tipologia semicircular ao conjunto. Por vezes, esses campos assim criados eram concheados ou preenchidos com outros relevos. Assim, o grande bloco com um baldaquino concheado, cupulado e encimado por um lanternim de tambor com pequenas janelas e pequenas figurinhas debruçando-se para o exterior, sendo de maiores dimensões que os restantes fragmentos, pareceu-nos adaptar-se a esta função. Da mesma maneira, também a grande metade de vieira (Figura 9) se podia adaptar ao campo sob o arco formado entre o templete e o acrotério. O cálice e a hóstia sagrada, como evocação da celebração da Eucaristia enquanto memorial da Última Ceia estabelece, assim, uma directa ligação simbólica com o sacrário na predela, fazendo referência ao mistério Pascal de Cristo (entre ambos e ao centro da composição retabular) que por Seu sacrifício redime a humanidade (figura 15). 1.3 Idoneidade artística e esmero escultórico

Tal como anteriormente referimos, algumas características plásticas destes fragmentos nos levam a considerá-los como obras de muita qualidade escultórica, importando agora realçá-los: No fragmento que permitiu a reconstrução do arco – o excerto de um baldaquino concheado, encimado por uma cúpula com um lanternim – desde logo assinalámos as características notáveis de desenho e de cinzelado dos relevos finamente lavrados no intradorso do arco, abundantes em pequenos pormenores. Não de menor importância, acresce referir, também, o esmerado modelado da cúpula do lanternim coberta por pequenas telhas, ou o preciosismo e detalhe com que são tratados os elementos estruturais de suporte das janelas – pés direitos, e arcos de volta perfeita – primorosamente trabalhados. Também o grande baldaquino/lanternim, por nós empregue como coroamento da hipotética reconstituição do retábulo, exibe idêntico esmero nos mesmos elementos das janelas em arco de volta perfeita rasgadas em volta do lanternim, mas incluindo, ainda, pequenas figurinhas que se debruçam, conversando e assistindo ao desenrolar dos acontecimentos. Embora de carácter miniatural – e agora bastante mutiladas – figurariam como que comentando o desenrolar da narrativa exposta, conferindo um notável carácter de encenação a toda a representação, simultaneamente referenciando e circunstanciando o quotidiano e, dessa forma, invocando a presença do espectador. No fragmento do Caminho do Calvário, é notável a posição esforçada de Cristo


sob o peso da cruz, bem como a modelação das pernas sob a túnica caindo em suaves e naturais pregueados. No conjunto, importa ainda realçar o fino tratamento da sobrevivente mão de um dos verdugos e o tratamento global das suas vestes reproduzidas com rigor. Notável ainda é o rosto condoído da Verónica, ou o fino tratamento com que vemos suavemente esculpido o rosto de Cristo no seu lenço, o pregueado da sua saia, ou a vegetação que cobre o terreno. No fragmento da Crucificação, podemos fazer as mesmas observações referentes ao modelado dos corpos e dos panejamentos, mas o que mais nos chama a atenção é a sobreposição de João a uma pilastra decorada (atrás de si), percebendo-se todo o grupo avançando para além do espaço de representação, sobrepondo-se mesmo aos elementos estruturais da máquina retabular. Nada nos indica poder existir aqui um contiunuum espacial, mas esta característica, por si só, evidencia já a maniera que só em poucos escultores a trabalhar neste período em Portugal se observa (Figura 16). 1.4 A importância da figura mecenática por detrás da obra

Por tudo que se disse cremos estar em presença de uma obra escultórica de vulto maior, certamente encomendada a um escultor idóneo e cuja qualidade artística havia já sido comprovada – seguramente acompanhado por uma equipa de artífices que vinham laborando na região – mas, certamente, por encomenda de um nome de vulto na sociedade de então. D. Jorge de Almeida. Só uma figura desta envergadura poderá encarnar o comitente que procuramos, estabelecendo as pontes que permitirão clarificar algumas das lacunas referentes à existência deste obra. Embora seja bem conhecida e já muito referenciada a sua figura mecenática, será importante realçar alguns aspectos de interesse maior (BAPTISTA PEREIRA, 2009; CRAVEIRO, 2002; SOUSA COSTA, 1999): D. Jorge é filho de D. Lopo de Almeida, o primeiro conde de Abrantes, que foi vedor da fazenda de D. Afonso V, alcaide-mor das vilas de Abrantes, Punhete e Torres Vedras, senhor de Abrantes, Sardoal, Mação e Almendra, a que acresce ainda referir ter sido o terceiro neto de D. Pedro I e D. Inês de Castro. D. Lopo foi uma figura maior do seu tempo, tendo visitado importantes focos da cultura humanística de antanho (Nápoles, Siena, Florença e Roma), e conhecidos figuras mecenáticas de relevo do Renascimento; integrou diversas missões diplomáticas de incontornável relevo, entre as quais a do casamento da infanta D. Leonor de Portugal – irmã de Afonso V – com o imperador Frederico III, ou a do casamento da infanta D. Joana com o rei francês, Luís XI. A mãe de D. Jorge de Almeida foi D. Beatriz da Silva, parente dos Silvas de S. Marcos, dama da rainha D. Leonor de Aragão – a esposa de D. Duarte – e camareira-mor da rainha D. Isabel, a primeira mulher de D. Afonso V. D. Jorge era irmão de D. João de Almeida, segundo senhor de Abrantes, guarda-mor e vedor da Fazenda de D. João II; irmão, também, de D. Diogo Fernandes de Almeida, o sexto prior do Crato, monteiro-mor de D. João II, e alcaide de Torres Novas; também de D. Pedro da Silva, comendador-mor da Ordem de Avis, diplomata


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de D. João II em Roma junto do papa Alexandre VI (em 1492), e homem próximo de D. Manuel a quem acompanhou nas viagens a Castela e Aragão (1498); também de D. Fernando de Almeida, bispo de Ceuta, núncio de Alexandre VI e com estreitas relações com os Bórgias, junto dos quais viria a morrer em finais do Séc. XV; e ainda do primeiro vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida. D. Jorge tinha como sobrinhos nomes de relevo, tais como D. Garcia de Almeida, primeiro reitor da Universidade de Coimbra, ou D. Leonor de Vasconcelos, abadessa do mosteiro de Celas. Entre abundantes dados documentais destaca-se o que, logo a 8 de Novembro de 1469, com apenas com 10 anos de idade, o refere como “clérico Egitaniensis diocesis”; ou, nos anos sequentes, a correspondência referente a promoções, atribuições e prebendas pela pena do próprio papa; ou ainda a posterior vasta correspondência com Lourenço de Medici. É pela mesma documentação que temos a notícia que, com a idade de 15 anos, à época frequentando estudos de Direito na Universidade de Perugia, lhe foi conferida a igreja paroquial de S. João de Abrantes, a mesma de que era padroeiro seu pai, D. Lopo de Almeida (SOUSA COSTA, 1999: 759). Tendo tomado posse do Bispado de Coimbra em 23 de Junho de 1483, D. Jorge manteve-se no cargo até à data do seu falecimento em 25 de Julho de 1543, tendo sido, também, Inquisidor do Reino entre 1536 e 1541. Por entre variadíssima e abundante encomenda de valorização da sua Sé, e sob sua orientação, foi criada uma plataforma artificial que anulava o declive do terreno em volta da catedral, obra que cerca de trinta anos mais tarde lhe permitiria conferir maior sumptuosidade e magnificência, com a edificação da Porta Especiosa – obra maior cuja autoria não se encontra comprovada documentalmente, mas que tem colhido unânime opinião no que toca à participação de dois nomes maiores da produção escultórica de então: Nicolau Chanterene e João de Ruão. É de sua encomenda o retábulo do altar-mor, da autoria dos flamengos Olivier de Gand e Jean dÝpres, que o executaram a partir de 1498; ou ainda o retábulo pétreo da vida e martírio de S. Pedro, encomendado por volta de 1530, atribuído a Nicolau Chanterene, destinado à capela na qual o bispo se fará sepultar. No entanto, não é apenas na Sé ou no paço episcopal que se vê por demais evidente a marcada presença do brasão do bispo (apenas no retábulo do altar-mor ele surge nada menos que três vezes), mas também na alargada área da diocese como, por exemplo, na igreja de Santa Maria da Alcáçova, em Montemor-o-Velho, com um retábulo do Santíssimo Sacramento na colateral da epístola; ou, para além da sua encomenda directa, todas as autorizações dependentes da entidade episcopal, como seja o caso das concessões e licenças necessárias à execução das obras, como nas igrejas de S. João de Figueiró dos Vinhos ou de S. Miguel de Penela, também com arcos e retábulos de pedra, na segunda dos quais participa Gaspar Torres, pedreiro de Évora. Pertencente a uma influente e bem relacionada família da nobreza orbitando na esfera da maior proximidade da família real; com uma tão próxima ligação a Abrantes e à própria igreja de S. João Baptista; figura de inequívoca acção mecenática de evidente pendor humanista e contactando directamente com os mais reconhecidos nomes do panorama artístico de então, talvez investigações futuras e novas


pesquisas documentais poderão corroborar a nossa opinião relativamente à relação directa de D. Jorge de Almeida com as obras às quais estes fragmentos pertenciam. Contactar o autor: fxhenriques@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Referências · AA. VV. Catálogos das Exposições de Antevisão do MIAA. Abrantes, CMA, 2009, 2010, 2011 e 2012. · BAPTISTA PEREIRA, Fernando António «O gosto artístico dos Almeidas» In Actas do Colóquio comemorativo dos 500 Anos do Estado Português da Índia, Abrantes, CMA, 2009. · CARDOSO, Padre Luís. Dicionário Geográfico, Tomo I, Lisboa: Regia Officina Sylviana e Academia Real, 1747-1751. · CRAVEIRO, Maria de Lurdes. O Renascimento em Coimbra – Modelos e Programas Arquitectónicos, Coimbra, Tese de Doutoramento apresentada à FLUC, 2002 · HENRIQUES, Francisco. O Retábulo da Pena de Nicolau Chanterene – Geometria e Significação. Lisboa, Tese de Mestrado apresentada à FBAUL, 2007. · OLEIRO, Diogo. Livro de Inventário. Manuscrito, Câmara Municipal de Abrantes, s.d. · PEREIRA, José Fernandes Pereira (coord.) Dicionário de Escultura Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2005, (artigos sobre escultores da Idade Média e do Renascimento assinados por FABP). · SOUSA COSTA, António Domingues de. Portugueses no Colégio de S. Clemente e Universidade de Bolonha durante o Século XV, vol. II, Bolonia, Publ. del Real Colegio de España, 1990.


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As vozes tipográficas do museu. Legibilidade e leiturabilidade do texto no design expográfico The typographic voices of the museum – legibility and readability of text on museographic design

Jorge dos Reis

expográfico.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 272-284.

Reis, Jorge dos (2013) “As vozes tipográficas do museu. Legibilidade e leiturabilidade do texto no design

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: A questão da legibilidade do texto no espaço museológico tem o seu epicentro na opção do uso de caracteres com ou sem patilha/serifa nos dois suportes complementares do museu. Convocamos teorias que comprovam que as letras com patilha/serifa são mais legíveis no caso dos catálogos de exposições e as letras sem patilha/serifa são mais legíveis no caso dos suportes expográficos de painéis e informação museológica de grande escala. Palavras-chave: Tipografia. Museografia. Legibilidade. Leiturabilidade

Absract: The issue of readability of text in the museum space has its epicenter in the option of using serif or sans-serif type on the two complementary reading surfaces of the museum. We call theories that prove that serif type is easier to read in case of exhibition catalogs and sans-serif type is more readable in the case of panels containing museum information on a large-scale. Keywords: typography, museography, legibility, readability Introdução

As opções tipográficas podem criar dificuldades de interpretação da mensagem escrita no contexto museológico. Situações desta índole surgem quando não se descodifica a direcção a seguir dentro de um museu, galeria, mostra ou quando não se consegue ler confortavelmente um catálogo de uma exposição devido ao facto de o grafismo estruturante e a tipografia para a leitura ser displicente. Estes dois exemplos resumem duas possibilidades antagónicas: text type & display type. Representam simultaneamente a situação de relacionamento com a informação escrita em grande dimensão e o confronto com o detalhe do objecto impresso em suporte papel. No último caso, o suporte impresso dita algumas regras tidas como incontornáveis no que toca à leitura. O uso de caracteres com patilha/serifa é um pressuposto imprescindível, contrário ao uso de caracteres sem patilha ou sem serifa no caso de informação na parede. Geoffrey Dowding oferece lenha para a chama do pensamento e reflexão tipográfica: Os tipos de letra old face, como por exemplo, (…) Garamond ou Caslon e alguns tipos do século vinte como sejam Perpetua e Times, permitem maior latitude no arranjo apro-


priado de proporções do que os desenhos tipográficos de estilo modern. Em letras deste estilo moderno (Bodoni, Walbaum, etc.), o extremo contraste entre traços finos e grossos e a finura do seu traços e patilhas/serifas tendem a confundir e cansar o olho (DOWDING, 1996: 12).

Os tipos old face apresentam uma modulação e uniformidade de traçado mais confortável para o olho. O extremo contraste que os caracteres bodonianos apresentam na sua estrutura tendem a criar uma leitura mais stacato, mais italiana, menos universal e fracamente menos legível. A base desta diferença está também na patilha/serifa. Os old face, como seja o Times, caracterizam-se por uma patilha/serifa curva, modulada, e quase triangular. Por seu lado, os modern face demarcam-se com a sua patilha/serifa unifilar constituída por uma linha ou fio de cabelo. Na corroboração deste postulado socorri-me atrás do investigador e praticante da tipografia Dowding, ao confirmar que nem os modern face nem os caracteres sem patilha/serifa são realmente ideais para a leitura contínua, os últimos por causa da falta da patilha/serifa e da monotonia da (aparente) parecença dos traços (Quadro 1). Mesmo tratando-se de um pequeno texto neste tipos de letra, deve dedicar-se algum tempo à composição, deve ser-se generoso no corpo de letra e na entrelinha.

Quadro 1

1. Para uma possível classificação funcional da tipografia museológica

O primeiro esforço para uma classificação tipográfica foi feita pelo francês Francis Thibaudeau (1860-1925) que em 1921 se baseou no desenho da patilha/serifa como critério de classificação e organização dos caracteres. A patilha/serifa, sendo um detalhe ínfimo da letra, desde sempre obteve dos estudiosos da tipografia um especial carinho. Nascida em Roma, na coluna de Trajano, no século I; a patilha/serifa estava plasmada na nova letra, a Capitalis Monumentalis que apresentava um pormenor acutilante e vivo na terminação dos traços. A terminologia com que designamos este detalhe tipográfico não é acompanhada por um paralelismo internacional. Os anglo-saxónicos referem-se a este aspecto através do substantivo serif para designarem as letras com patilha/serifa e sans-serif para as lineares sem patilha/serifa. Da documentação técnica francesa chega-nos o termo empattement e da Alemanha Serifen. Já os italianos usam o termo terminazioni numa alusão ao termo terminação, tal como em Espanha: trazo terminal. O termo patilha/serifa, nasce no meio de um novelo de códigos linguísticos dos tipógrafos,


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incorporado numa identidade e cultura de classe operária. Esta designação, algo caricata, insere-se num processo de humorização do trabalho. O mesmo processo se estabelecia para as fontes tipográficas, quando o nome técnico de origem dos tipos é complicado, uma vez que o uso dos nomes se quer quotidiano e de fácil identificação, alguns tipógrafos tomam a liberdade de os rebaptizar com nomes do seu universo socioprofissional. Por alguns definido como apoio ou pé, o vocábulo patilha (Portugal) e serifa (Brasil) são por nós escolhidos e claramente preferíveis, dada não só a sua dimensão operativa mas também simbólica. A patilha/serifa das Capitais Romanas haveria de marcar em definitivo o desenho das letras. A sua clara presença na visibilidade da letra surgiria com os primeiros caracteres móveis do Renascimento Italiano. Desde essa altura, a patilha/serifa goza de uma credibilidade e de um sucesso nas letras só beliscada no século XIX com o surgimento dos primeiros caracteres grotescos, sem patilha/serifa. A classificação estilística de Thibaudeau, apesar de simplista e incompleta, demarca bem os três universos em que a patilha/serifa é o astro central. Para este estudioso francês da tipografia, os caracteres serifados dividem-se em Elzevires, Didones e Egípcios. Se bem que a sua classificação não é a mais completa, podemos partir do seu trabalho para nos referirmos à patilha/serifa. Com o renascimento e a descoberta das formas clássicas, recorre-se ao desenho das lapidares romanas e estabelece-se definitivamente a patilha/serifa em curva. Tratados como o da divina proporção de Pacioli constituem exemplos divinos deste ofício do desenho da letra. São as letras antigas ou old face que desde o século quinze até à primeira metade do século dezoito mostram esta particularidade. A curva que no seu estilo inicial era opaca e quase um triângulo, vai-se tornando quase só uma linha, indo de encontro ao estilo de transição bem patente no trabalho tipográfico de John Baskerville no inicio do século dezoito. O caractere Baskerville, apesar de ter tido má aceitação em Inglaterra, viria a impor-se pela enorme qualidade de impressão e pela inovadora subtileza. Retornando às capitulares clássicas de Fra Luca de Pacioli, espelho do classicismo, há a registar um notável humanismo e geometrismo bem patente no trabalho de investigação de Stanley Morison. Só no século vinte, Herbert Bayer (professor da Bauhaus), Paul Renner (autor do tipo Futura) e Jan Tschichold fariam do racionalismo uma pedra de toque no seu trabalho projectual tipográfico. A segunda metade do século dezoito daria à luz um derrubar das fronteiras do desenho tipográfico. Graças ao melhoramento dos prelos de impressão, das tintas tipográficas, dos papeis manufacturados, da qualidade e resistência das ligas metálicas que constituíam o tipo de chumbo, foi possível criar um desenho tipográfico de linhas finas e delicadas. Esta finura contrastava com outras zonas da letra muito grossas obrigando a tinta, graças aos óleos da sua constituição, a imprimir de forma compacta nas zonas de cheio e de forma muito delicada nas zonas finíssimas. A patilha/serifa em linha, a que nos referimos agora, exigia um esforço de impressão que Gianbattista Bodoni soube incrementar nos seus tipos, feitos de genialidade e grande amor. Começou por se interessar pelo trabalho de Baskerville, mas seria este estilo


revolucionário criado por François Ambroise Didot que ele seguiria e aperfeiçoaria em profundidade. Didot foi quem, primeiro, destruiu a tradição do desenho tipográfico vigente, inventando esta patilha/serifa linear e um desenho global caracterizado por um contraste fortíssimo entre os traços da letra. Bodoni por seu lado, levou a fundo esta nova tradição, tendo escrito um manual tipográfico onde tece considerações sobre assuntos vários como sejam: a legibilidade, expressão e bom gosto. Um exemplar original do seu manual de tipografia pode ser visionado na Biblioteca Nacional, em Lisboa. Maximilien Vox, na sua classificação estilística não hesitaria em caracterizar este período com o termo por si inventado: Didones. Juntou os nomes destes dois importantes autores: Didot e Bodoni. Um novo desenho de patilha/serifa surgia no século XIX onde a tipografia cumpre outras necessidades e se amplia a sua dimensão instrumental. Os painéis exteriores de estabelecimentos comerciais ou cartazes necessitavam de um género tipográfico mais visível e com uma presença gráfica superior. Não era a delicadeza da sua anatomia que interessava, era sim o seu peso e o seu poder de caçar o olhar do transeunte. As letras são mais negras, mais pesadas, com patilhas/serifas bem marcadas. Estas, em muitos casos, apresentavam a mesma espessura de toda a letra. Esta nova patilha/serifa rectangular caracteriza um género tipográfico denominado egípcio. Nesta época era grande o fascínio da sociedade pelo exotismo do mundo do Egipto, ao qual há a acrescentar também a campanha de Napoleão Bonaparte por essas terras do Norte de África. O tipo Clarendon é um desenho tipográfico exemplar para ilustrar a aplicação desta nova patilha/serifa. O original Haas Clarendon foi desenhado por Hermann Heidenbenz em 1951, baseado no desenho tipográfico do primeiro tipo Clarendon da autoria de Benjamin Fox, concebido em 1845 para a fundição Robert Besley de Londres. O seu nome de baptismo chegou a ser aplicado para todas as letras com esta expressão gráfica e peso visual. O século vinte viria definitivamente a dessacralizar a patilha/serifa. Estabelecese uma ruptura com os valores antes emancipados e os caracteres sem patilha/serifa ou sem serifa passam também a existir em textos. Com o inforgrafismo contemporâneo dá-se uma ruptura com a intocabilidade da letra e democratiza-se o seu desenho. Os tipos grotescos deram azo uma catarata de tipos lineares que levaram ao nascimento de uma amalgama de caracteres francamente ilegíveis, diria perigosos, em mãos desconhecedoras e irresponsáveis. 2. A tipografia na museologia – investigação em legibilidade pelas ciências cognitivas

A questão da legibilidade tipográfica nas paredes dos museus e nos textos dos catálogos museológicos tem o seu epicentro na opção do uso de caracteres com ou sem patilha/serifa. Para alguns esta questão continua em aberto, quanto a mim e para muitos outros este problema esta irreversivelmente resolvido concluindo no facto


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de que as letras com patilha/serifa são categoricamente mais legíveis. Para provar este facto, três investigadores propuseram uma teoria que comprovasse que as letras com patilha/serifa são mais legíveis do que as sem patilha/serifa. Para atingir este fim usaram uma metodologia no âmbito das ciências cognitivas ao empregarem um modelo computacional que funcionaria como metáfora do funcionamento do sistema visual humano. Em 1971, era publicado no jornal Visible Language um artigo denominado: Why Serifs are Important: The percepcion of Small Print. Os autores desta investigação foram David Robinson, Michael Abbamonte e Selby H. Evans. Se bem que esta questão tenha sido explorada de várias formas e em diferentes ocasiões em estudos como o de Herbert Spencer, a investigação em causa revelar-se-ia definitiva para alguns, não para todos como veremos a jusante. Os autores provaram a suprema legibilidade dos caracteres romanos sobre os sem patilha/serifa e constituíram uma teoria na demonstração deste facto. Traçaram a consideração de que a possível razão para as pessoas preferirem as letras com patilha/serifa por razões estéticas é simplesmente falso; da mesma forma, esta preferência não se realiza pelo hábito ou habituação a este género tipográfico. Eliminam a possibilidade de que as patilhas/serifas ajudam o movimento horizontal dos olhos ao longo das linhas de texto, pois os adultos fazem um número reduzido de fixações oculares na leitura de cada linha ou fragmento textual. Eliminam ainda a possibilidade das letras com patilhas/serifas transportarem mais informação devido à sua estrutura mais complexa (ROBINSON et al, 1971). Os autores seguem por outro caminho e sugerem que a “estrutura neurológica do sistema visual humano beneficia com as patilhas/serifas na preservação das principais características das letras durante o processo neurológico” (Robinson et al, 1971: 353). A sua teoria está assente na estrutura psicológica do sistema visual humano plasmada no computador que estabelece um modelo que simula a percepção visual humana. A estrutura metodológica e científica de Robinson, Abbamonte e Evans está assente, num primeiro momento, na representação em formato reduzido de quatro letras, em diferentes tamanhos. As letras são: E, T, f, e h, retiradas de um desenho tipográfico de uma máquina de escrever IBM Selectric; cada uma das quatro com uma dupla representação, com e sem patilha/serifa. Depois de introduzidas no computador, representadas por pontos, Esses grafismos são detectados e processados pelo modelo computacional que os investigadores construíram, consistindo num conjunto de detectores verticais e horizontais sensíveis, respectivamente às linhas verticais e horizontais. Este processo imita, os detectores que estão nos nervos do córtex cerebral do sistema visual humano. O resultado final dos padrões pontilhisticos das letras revelaram que as letras em tamanho de texto (catálogo de museu ou exposição) ganham em termos da preservação da sua imagem. A segunda parte do teste relacionou-se com a percepção de caracteres e texto em grandes dimensões como seja a parede de uma exposição ou


mostra museológica. Aqui as patilhas/serifas deixam de ter o papel que vinham ocupando até aqui. Para grandes letras as patilhas/serifas não são de grande utilidade. Estas letras são precedidas por diferentes detectores de características tipográficas, não detectando preferencialmente as linhas mas sim os cantos. Neste caso, os autores resguardam-se na probabilidade e não na certeza. Reafirmam os autores que quando vemos as letras à distância, por exemplo, em painéis de um museu, as letras são precedidas por detectores de linha (ROBINSON et al, 1971: 353). O modelo computacional constitui uma imitação do sistema visual humano, revelando que as patilhas/serifas são fundamentais no que toca à “preservação da imagem das letras pequenas, quando representadas na estrutura neurológica do nosso sistema visual” (ROBINSON et al, 1971: 359). Desde a apresentação deste teste, alguns investigadores da legibilidade e da psicologia cognitiva têm referido este estudo de forma acrítica. Um deles, Rolf Rehe, que escreve o artigo Typography: How to Make it More Legible, refere-as ao estudo de forma extremamente positiva. Se à primeira vista parece consensual o resultado obtido por Robinson, Abbamonte, e Hevans, não deixa de ser importante reflectir sobre a credibilidade de alguns factores incluídos na espinha dorsal do processo por estes conceptualizado, para obter os resultados, de certa forma desejados. Na revista Typographic Papers da Universidade de Reading, Ole Lund, um investigador Norueguês de Gjøvik, traça uma desacreditação ao teste publicado na revista Visible Language ao referir o “perigo de inferências invalidas vindas de modelos computacionais que, só parcialmente, ou muito dificilmente, correspondem ao fenómeno natural que querem modelar” (LUND, 1997: 95). Este autor refere a teoria dos detectores de características em modelos computacionais de David Hubel e Torsten Wiesel. Dois investigadores que nos anos cinquenta e sessenta se debruçaram sobre uma descrição visual do percurso no cérebro, entre a retina e o cortex visual, tendo sido galardoados com o prémio Nobel em 1981. Estes investigadores implantaram micro eléctrodos em células do córtex de alguns gatos anestesiados. Tiveram os seus olhos imobilizados e receberam respiração artificial. Registaram depois a actividade produzida ao longo da focagem e da estimulação da retina. Cada um destes momentos de registo teve a duração de um segundo. “Hubel e Wiesel mostraram que muitas ou a maioria das células do córtex reagem a características geométricas específicas iluminando-se” (Lund, 1997: 96), correspondendo este efeito às zonas ou campos de recepção visual. “Isto aplicado especificamente a finas e longas tiras rectangulares com orientações especificas: na vertical, horizontal e todas as obliquas possíveis. Hubel e Wiesel não encontraram nenhuma orientação predominante” (LUND, 1997: 96). A orientação vertical e horizontal aplicada por Robinson e seus colegas só aparentemente se parece basear nas descobertas de Hubel e Wiesel, resultando numa “ambiguidade nos detectores de características”, pois a resposta das células do córtex “é muito mais variada” (LUND, 1997: 97). Somos levados a concluir com Lund na constatação do mistério, da razão que terá levado os três investigadores a incluir só linhas operativas verticais e horizontais, pondo de parte as oblíquas e diferentes orientações. Onde é que estão os detectores


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de orientação oblíqua? Esta aplicação de linhas operativas só em duas orientações ameaça a validade ecológica desta investigação. Na análise e dissecação deste trabalho publicado na conceituada revista Visible Language, há uma séria motivação para pensarmos que a construção do modelo computacional leva tendencialmente aos resultados, diríamos, pretendidos. Vejamos: As linhas detectoras e as patilhas/serifas adaptam-se especialmente. Desta forma, o resultado de imagens neurológicas no cérebro acusam uma degradação, também nas letras com patilha/serifa pois estas parecem ter desaparecido. Mas as letras patilhadas/serifadas serão sempre menos degradadas do que as sem patilha/serifa onde o traço principal é corroído, como seja a barra central da letra /E/. Os três autores explicam que a degradação das letras lineares não têm no entanto um efeito desastroso na legibilidade devido à influência do contexto. Daríamos um exemplo baseado nesta investigação: se apagarmos algumas letras numa frase ela continuará a ser lida: Fa*ta* le*ra* ne*te *ex*o. A este propósito, Lund afirma que esta explicação não deixa de ser “fantástica”, dado que a degradação se dá devido “à discrepância entre a zona dos foto-receptores da retina e o nervo óptico. (…) Os detalhes de percepção na ligação entre a retina e o nervo óptico, variam de acordo com a distância à fóvia” (LUND, 1997: 98). Esta corresponde ao centro da retina, quando observamos frontalmente um objecto mesmo à nossa frente, realizando assim um registo na retina ideal. À medida que realizamos uma visão do mundo cada vez mais na periferia da fóvia, a percepção é menos detalhada e pormenorizada. O modelo de Robinson e seus colegas é problemático. Não só é “crua a representação de uma matriz de pontos como material de estímulo visual” (Lund, 1997: 99), como a decisão de representar letras com patilha/serifa com uma letra monolítica de máquina de escrever, sem expressão ou modulação e com patilhas/serifas exageradas. Lund refere também o facto de não se ter uma razão específica para que as letras T, E, f e h representem os 52 caracteres do alfabeto da caixa alta e caixa baixa (LUND, 1997: 99). Em certos casos, Lund vai mais longe do que os três investigadores, particularmente perante o facto de a letras de grande formato serem prejudicadas com as patilhas/serifas. Se julgarmos pelos resultados destes investigadores então “temos que concluir que as patilhas/serifas não só são inúteis como ferem a própria letra” (LUND, 1997: 99). Robinson e seus colegas assumem a ideia de que as letras com patilha/serifa são preferidas às letras lineares. As letras com patilha/serifa possuem assim uma qualidade intrínseca, mais facilmente adaptável ao funcionamento do sistema visual humano. Facto este considerado absurdo por Lund pois os autores anunciam que as preferências dos leitores pelas letras seriffed suportam a sua teoria. Logo “a simulação do computador mostra que as letras com patilha/serifa são úteis, ainda mais porque a popularidade das letras com patilha/serifa suporta a teoria” (LUND, 1997: 99). Lund afirma não perceber como tantos autores ao longo de três décadas, receberam com tanta aceitação e de forma tão acrítica este estudo. Dado que “a explicação


dos autores está assente em acepções teóricas e falsamente relacionadas com factos fisiológicos” bem como “num modelo pobre” e uma “dúbia interpretação dos resultados. Muito parece estar errado”, afirma. Este paper “demonstra falta de validade ecológica e não é convincente” (Lund, 1997: 100). É justo referir o contributo construtivo de Lund na medida em que, de forma singular arrebata um dado tido por muitos como irrecusável. Pretendo com este recurso a Lund, não só ressaltar a importância e a complexidade que a legibilidade tipográfica exige, mas também sublinhar, de forma paradoxal que este género de constatações se podem alcançar através do recurso a áreas de saber diferentes das até aqui enunciadas, como sejam as ciências sociais e humanas, a etnografia, a antropologia, a sociologia, sem com isto subestimar o recurso a modelos computacionais que metamorfoseiem o nosso corpo humano, na sua complexidade e heterogeneidade. O contributo de Robinson, Abbamonte e Evans, juntamente com a revisão critica de Lund, constituem momentos de grande importância no contributo que oferecem ao estudo da (i)literacia tipográfica. 3. Certeza de decifração tipográfica

A consideração mais importante ao escolher uma fonte tipográfica para um texto de um catálogo de museu ou exposição é a sua legibilidade. Um axioma tradicional no design, frequentemente usado pelo arquitecto Mies Van der Rohe, caçado a um certo savoir faire francês, Le Bon Dieu est dans le dátail, aplica-se naturalmente à legibilidade tipográfica. Os próprios britânicos com frequência referem God is in the details, a propósito da letra e seu desenho, a fonte tipográfica e seu retoque no texto. Podemos de forma simples definir legibilidade, enquanto facilidade com que as letras se podem discernir e ler comodamente, a uma velocidade normal de leitura. No entanto, a complexidade desta disciplina mostra que uma definição absoluta não se queda por aqui. A legibilidade é uma palavra perigosa. Perigosa porque é usada num sentido definitivo e absoluto, o qual definitivamente não tem. Se dizemos que algo é legível apenas queremos dizer que o podemos ler num sentido pessoal que varia de pessoa para pessoa. A ilegibilidade é pior ainda pois fica-se por uma emotividade pessoal que exprime incómodo e não constitui um facto em si. No design tipográfico a legibilidade é uma palavra usada para definir um desejo de qualidade no que toca ao tipo de letra. Ruari Mc Lean concorre numa definição de legibilidade: Ao dizermos que algo é legível, queremos dizer, na nossa opinião ou experiência, que a pessoa que queremos que leia algo pode lê-lo segundo as condições em que nós pensamos que este será visível. No entanto, para o tipógrafo, quando fala do seu trabalho e em particular, páginas de livros, a palavra legível significa: de fácil leitura (MCLEAN, 1992, 42)

Na instância da produção, alguns factores será necessário ter em conta na construção do objecto impresso, seja ele qual for. Teremos que concretizar um conjunto de perguntas para que o resultado final seja adequado à sua finalidade: O que terá que


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ser lido? Porque razão tem que ser lido? Quem o lerá? Quando será lido? Onde será lido? Algumas das perguntas efectuadas exigem uma análise minuciosa do objecto gráfico. Os seus destinatários constituem uma importante questão na medida em que para diferentes idades será diferente o confronto com o material de leitura. O onde, particularmente, inclui a qualidade da luz, pois ler é impossível sem uma fonte luminosa. Este problema nem sempre de solução fácil engloba a iluminação natural e artificial. Neste ponto é importante pensar nos espaços das galerias dos museus bem como nos catálogos das exposições. A legibilidade é obtida de diferentes formas e em diferentes suportes: quando escrevemos a giz branco num quadro de ardósia negra ou a preto numa página branca; num sinal estradístico ou numa placa toponímica. A legibilidade de uma letra depende em primeiro lugar das suas qualidades intrínsecas e em segundo lugar na forma como vai ser usada. Uma boa letra mal usada pode nessas condições ser menos legível do que uma letra pobre, mas bem usada. Para reflectirmos sobre a legibilidade de qualquer coisa temos que conhecer o seu propósito. Uma letra para uso numa parede de um museu ou num título de uma exposição tem uma total diferença em termos de proposta: os que a usarem podem querer que ela seja mais pronunciada e virtuosa do que legível, que cace o olhar, que se fixe no nosso pensamento. Num texto de catálogo de uma exposição, pelo contrário, pretende-se uma leitura evidente e clara, onde a certeza de decifração e diferenciação entre caracteres de uma mesma fonte tipográfica seja absoluta. Desta forma, no que diz respeito à clareza e identidade dos caracteres, a letra com patilha/serifa é mais adequada à leitura porque obrigam as letras a ficarem a uma certa distância uma das outras, ligam as letras umas às outras para formarem palavras, o que ajuda a leitura e garantem a diferenciação da fisionomia das letras individualmente. McLean coloca-nos novamente perante uma prova irrefutável da categoria das letras serif em relação às sanserif. Este autor, na sua obra Manual of Typography demonstra esta situação com um exemplo, que diríamos paradigmático. Sendo que é pela a metade de cima que nós reconhecemos as palavras, ao contrário da metade de baixo, então podemos provar isto por nós mesmos usando uma pequena tira de papel ou uma régua e colocando-a sobre a metade de cima de uma palavra tentando depois lê-la pela metade de baixo. “Podendo ou não podendo, encontraremos menores dificuldades na leitura se taparmos a metade de baixo, vendo apenas a metade superior. As letras que oferecem mais dificuldade na leitura da sua metade superior são as sanserif” (McLean, 1992: 43). Isto faz-nos pensar mais uma vez na definição de legibilidade e numa definição particularmente incondicional, concretizada pelo poeta Robert Bridges, também referenciado por McLean: “A verdadeira legibilidade consiste na certeza de decifração; isso depende não do que o leitor está acostumado, tão pouco das formas habituais das letras, mas sim na consistente e correcta formação gráfica das letras” (MCLEAN, 1992: 43). A legibilidade prende-se com a decifração e a diferenciação das letras entre si. Bridges reflectiu principalmente sobre a escrita manual, mas as suas palavras e a


sua terminologia é tão clara que para muitos autores o seu contributo continua presente desde os anos vinte. Desta forma “a certeza da decifração é um elemento importante na verdadeira legibilidade; na sua relação com a tipografia conduz a mensagem de que a legibilidade ou a facilidade de leitura são incre­men­­­­­tadas por letras que são facilmente diferenciáveis umas das outras e dificultadas por letras que se parecem demais umas com as outras” (MCLEAN, 1992: 44). 4. Legibilidade e leiturabilidade no contexto da museologia e da museografia

Vimos a montante, que o significado de um texto considerado legível indica que pode ser lido. A sua leitura, claro está, é seu principal objectivo funcional. Vamos desta forma ao encontro de duas acepções que convém destrinçar: legibilidade e leiturabilidade. O primeiro termo concorre de forma pragmática para a eficácia da fonte tipográfica. Os dois conceitos juntos podem ajudar a descrever a função de um género tipográfico de forma mais correcta, do que só usando os critérios da legibilidade. A certeza de decifração e o reconhecimento tipográfico são chaves mestras na construção do objecto impresso. Podemos colocar-nos perante duas letras que podem gerar uma dúbia decifração: “A letra /h/ num tamanho pequeno, caixa baixa em itálico /h/, não é legível dado que se parece com o caractere /b/. A figura numérica /3/ quando em itálico /3/, não tem uma legibilidade perfeita pois é muito parecida com o caractere /8/” (TRACY, 1986: 31). Podemos assim concluir que a legibilidade diz respeito à evidência e claridade de letra observada isoladamente. Este aspecto deve ser tido em conta de forma categórica quando se desenha um livro ou uma lista telefónica, pois a letra aí vai existir em pequeno formato. Walter Tracy, um designer britânico da Fundição tipográfica Linotype, revela como uma letra, com claras alusões ao estilo old face, pode ser perfeita para letra de jornal. Com a Telegraph Modern (1969) concebida para o The Daily Telegraph, viria a traçar mais uma pequena revolução no mundo dos jornais. A Telegraph Modern recupera o estilo moderno ou Bodoniano exilado dos jornais. Traz novamente à luz do dia, em papel jornal, a letra de Firmin Didot, da segunda metade do século dezoito, condensando-a para o seu uso exigente. O estudioso da tipografia Sebastian Carter, na obra Twentieth Century Type Designers, diz-nos que só em 1972 a experiência de Tracy é “reconhecida, quando lhe foi encomendado pelo jornal The Times um novo tipo que substituísse o Times New Roman de Stanley Morison. O Times Europa, uma letra prática e revivalista de considerável sofisticação, que foi abandonada pela tecnologia quando os jornais finalmente mudaram da composição de chumbo para os computadores e o offset” (CARTER, 1995: 95). Tracy considera que a leiturabilidade é uma coisa diferente da legibilidade: “O dicionário pode dizer que também significa fácil de ler. Em tipografia podemos dar à palavra um significado localizado, logo: se as colunas de um jornal ou revista, ou as páginas de um livro podem ser lidas por muitos minutos sem dificuldade, então


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podemos dizer que a letra é de boa leiturabilidade. O termo descreve a qualidade do conforto visual – um requerimento importante na compreensão de longas linhas de texto de catálogo de museu, mas paradoxalmente, não tão importante em suportes como sejam as tabelas de uma exposição de pintura ou indicações de circulação no espaço de um museu, onde o leitor não lê de forma contínua mas procurando um item particular de informação” (TRACY, 1986: 31). Neste contexto é evidente a presença da literacia enquanto conceito em paralelismo constante à leiturabilidade. Os níveis de iliteracia subirão tanto quanto maior for a dificuldade de leiturabilidade. Quanto à legibilidade esta refere-se à percepção, a sua medição é feita pela velocidade com que um caractere é reconhecido. Podemos então afirmar que, se o leitor denota dificuldades no discernimento das letras, então a fonte tipográfica é pobre. Há uma dimensão de compreensão pois “a medição é feita através da quantidade de tempo que o leitor leva para ler uma linha texto sem paragens” (TRACY, 1986: 31). Surge nesta constatação a eficácia das letras com patilha/serifa, para texto. Podemos usar uma fonte tipográfica perfeitamente legível em si própria, mas no que toca à leiturabilidade esta pode realiza-se de forma mais lenta. Podemos assim constatar que a leiturabilidade e a legibilidade de um texto são coisas diferentes. A literacia tipográfica reúne as duas no que toca à consistente interpretação da fonte tipográfica no texto (legibilidade) e animosidade com que os nossos olhos caminham sobre o texto (leiturabilidade). São aspectos funcionais que o intérprete da mediação gráfica não pode esquecer quando trabalha entre a equipa executiva de um museu e do seu próprio público. Para finalizar este momento de reflexão em torno do factor leiturabilidade, vale a pena referir alguns suportes museológicos; os dois mais paradigmáticos no que toca à escolha da fonte tipográfica para textos longos são os catálogos das exposições onde a má opção tipográfica funciona como arma de arremesso sobre a literacia. Tipos de letra como a Times New Roman de Stanley Morison ou Bembo de Alfred Fairbank, são construídas para vencer a rugosidade da impressão em papel jornal e a velocidade de reprodução, com naturais percas de legibilidade. A fineza de recorte gráfico e a anatomia tipográfica exigida para um texto de livro são incompatíveis com a estrutura visual dos tipos de imprensa; a subtileza e o pormenor de recorte pode encontrar-se em tipos como Sabon de Jan Tschichold ou Garamond de Claude Garamond. Perito em construção de tipos de letra para jornais, como seja a Olympian, ou Times Europa, Tracy, corrobora esta ideia. O seu texto afirma contundentemente que nos jornais preferimos os “texto e os headlines compostos numa letra despojada”, uma “plain matter-of-fact” type (TRACY, 1986: 32). Nos livros apreciamos a fineza de recorte, com certeza. Assim, ao compormos “um livro numa letra de jornal, o efeito será tão pouco convidativo que o sucesso do trabalho será duvidoso e arriscado. Compondo um jornal em letra de livro ninguém nos levará a sério” (TRACY, 1986: 32) . O mesmo autor, tão elogiado por Sebastian Carter, dá um exemplo deveras pragmático: “Houve um jornal composto em Caledonia, essa excelente letra para texto ajudou o jornal a ganhar prémios de design, mas ironicamente contribuiu para extinção do jornal” (TRACY, 1986: 32).


A leitura, seu tipo de letra e seu suporte, são três factores incontornáveis na construção do objecto impresso, alicerçados que estão em factores estéticos e funcionais da fonte tipográfica. No balanço destes elementos concretizamos as directrizes principais no que toca ao combate às chamas de um fogo bem aceso, que dá pelo nome de iliteracia tipográfica provocada. Aprofundemos a questão do livro e perguntemos: que letra, para que livro? Jost Hochuli e Robin Kinross no seu livro Designing Books, Practice and Theory referem que “cada letra interpreta o texto, mas a letra em si não faz nada. As letras manifestam-se elas próprias enquanto formas” (Hochuli et al, 1996: 46). Ao tipógrafo, ou a quem faz o livro, pede-se que seja um leitor sensível do manuscrito. Recorro agora a Eric Gill, quando na sua autobiografia publicada em 1992 com uma introdução de Fiona McCarthy, refere de forma adequada a propósito das letras que: “a forma das letras não derivam na sua beleza de nenhum tipo de reminiscência sentimental ou sensual. Ninguém pode dizer que o redondo da letra /O/ nos cativa só porque é parecida com uma maçã, com o peito de uma mulher, com a lua cheia. As letras são coisas, não são imagens de coisas” (GILL, 1992: 187). A dimensão instrumental da letra dilui por completo certas divagações apologéticas de alguns tipófilos que na letra impressa parece encontrarem outras nuances, mais dentro de uma dimensão simbólica. Neste sentido, não foge à dimensão instrumental da letra o conceito de textura quanto às letras no livro. Vejamos mais de perto a questão, no sentido de que a letra e o suporte em causa exigem uma mediação feita de bom senso e tacto. Nos gabinetes dos conservadores dos museus ou das suas equipas de produção e museografia, por exemplo, têm que ser lidos centenas de relatórios. A forma como estes documentos são apresentados poderão fazer uma grande diferença para quem os lê. Alguns relatórios têm que ser lidos com muito cuidado e compreensão. O corpo da letra e sua entrelinha são elementos importantíssimos. Outros géneros de publicações dos museus devem ser analisados, observando se os assuntos do seu conteúdo podem ser compostos com linhas mais pequenas e grande espaço de entrelinha, possivelmente com tópicos a negro ou em versaletes. A instância de mediação deve sempre perguntar: o quê? porquê? quem? quando? e onde? mais ainda, que situações de leitura nos podem surgir? a que ora do dia? leitores cansados? bem alimentados? com fome? mal dispostos? tudo isto afecta a legibilidade e a leiturabilidade de forma categórica. Conclusão

Se a leiturabilidade e a legibilidade são palavras de grande importância para a museologia, deve ser dito que a produção tipográfica (catálogos e livros) e de design (projectos expográficos) nos nossos museus está cada vez mais fundada nos tiques dos softwares. É um facto que em Portugal são raros os mediadores gráficos ligados à museografia que tenham tido uma experiência em tipografia de caracteres móveis anterior à entrada na profissão. Mediação e adequação são as palavras-chave desta conclusão. O texto de leitura no livro/catálogo tem uma determinada voz. O texto


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no painel expográfico tem também uma voz específica. Aqui se deixaram directrizes diferenciadoras, determinadas e sistemáticas. Pragmatismo de natureza funcional para os museus e para a museologia actual. Estes dados permitirão partir para um trabalho extensivo no contexto dos museus portugueses e brasileiros no sentido de estudar e verificar a mediação do design e a adequação tipográfica que resolva os problemas detectados. Contactar o autor: the.jorge.dos.reis.studio@clix.pt Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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O Direito à Imagem: As Elites nos Museus das Misericórdias de São Paulo e Santos, Brasil The Right to the Image: The Elites in São Paulo and Santos Misericórdias/Brasil

Maria Beatriz Bianchini Bilac Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa do Pesquisador Colaborador, Departamento de História

Resumo: Apresenta-se neste artigo um estudo das relações entre as Misericórdias brasileiras e a história das elites locais, particularmente a elite paulista, com base nos retratos de seus beneméritos, agregados em suas galerias de honra. Os retratos são vistos como documentos que carregam valor histórico e como uma fonte que oferece o significado de sua presença nas Misericórdias de São Paulo e Santos, e que permitem registrar o perfil de parcela representativa da elite paulista e de seu caráter diversificado entre o final do século XIX e início do século XX. Palavras-chave: Elites. Elites locais. Retrato. Santa Casa de Misericórdia. Brasil.

Abstract: This article presents a study of the relationships between the Brazilian Misericórdias and the history of local elites, particularly of the São Paulo elite. The enquiry is based on the portraits of Misericórdia benefactors aggregated in their galleries of honour. The portraits are regarded as documents that bear historical value, and comprise a source of information which provides meaning for their presence in the Misericórdias of São Paulo and Santos. They allow for recording the profile of a significant portion of the Paulista elite and its diversified character between the end of the 19th and the beginning of the 20th Century. Keywords: Elites. Local elites. Portraits. Santas Casas de Misericórdia. Brazil. O Direito à Imagem: as galerias de retratos das Misericórdias

Ao estudarmos a composição das elites tradicionais brasileiras há que se salientar o grande número dos elementos desse grupo − desde os mais altos escalões, como Ministros do Império até ocupantes de cargos do poder local − que fizeram parte dos quadros das Misericórdias. Os estudos sobre as elites brasileiras mostram a importância do pertencimento desse grupo nas instituições conferidoras de poder e status. No Brasil, no decorrer dos tempos, dentre as estratégias de manutenção do poder local das famílias proprietárias ou de elites destacam-se a grande propriedade de terras, casamentos endogâmicos e prole numerosa, ao lado da ocupação dos cargos chaves nas administrações municipais, regionais e, muitas vezes, nacionais. Esse conjunto de fatores possibilitou a construção de toda uma rede de poder local (BILAC, 2001:42). Desta forma, torna-se importante investigar a questão das elites na Misericórdia,


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e Santos, Brasil.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 285-297.

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entendendo que o estudo dos retratos deste grupo é uma fonte valiosa para a compreensão desta temática, já que o gênero da retratística na sociedade ocidental teve o papel de destacar indivíduos e distinguir alguns ou procurar chamar a atenção para os dotes pessoais de outros. De um modo geral, não faltam razões para estudar as elites locais, sua emergência e particularmente a sua ligação ao exercício do poder, seja qual for o período histórico e contexto geográfico. Consideremos, dentre tantas variáveis, que a estrutura do Estado deixa particularmente a esses grupos a gestão de seus territórios, ao mesmo tempo em que lhes propicia um poder associado de mediador entre as populações locais e esse mesmo Estado. As elites locais, portanto, tornam-se um dos mais privilegiados atores político-administradores na estrutura social e política de uma determinada conjuntura histórica. Apesar dos estudos já existentes sobre as elites locais no Brasil, pouco se prestou atenção à importância das posições desse exercício de poder no que tange à definição da estratificação social local, regional e até mesmo nacional, possibilitado pela inserção desses grupos nas mais variadas instâncias institucionais, a exemplo das Santas Casas de Misericórdia. Como apontado no resumo acima, procuramos no presente estudo investigar algumas facetas da participação de diferentes grupos sociais em Misericórdias brasileiras, analisando o papel dos retratos na formação da memória histórica de uma elite, particularmente a elite paulista, abarcando as galerias de retratos das Misericórdias das cidades de São Paulo e Santos. A análise foi estruturada em torno de duas ideias centrais. A primeira é analisar a irmandade como parte de um processo de organização e reorganização da sociedade no que tange à formação das elites locais, particularmente a sua ligação ao exercício do poder, na medida em que esse grupo se revela como um dos mais privilegiados atores político-administrativos na estrutura social e política de um dado contexto histórico. Procuramos enfocar a importância das posições do exercício de poder no tocante à estratificação social local, regional e até mesmo nacional, possibilitadas pela inserção desses grupos nas mais variadas instâncias institucionais, especificamente as Misericórdias. A segunda ideia é compreender a questão posta a partir da produção dos retratos dos beneméritos das Santas Casas, considerando o conjunto destes nas Misericórdias das cidades de São Paulo e Santos. Os acervos foram escolhidos pelo prestígio que estas confrarias desfrutaram em determinados momentos da história brasileira. A análise visou avaliar de que maneira estes acervos revelam, por um lado, importantes dados sobre a metamorfose/ continuidade da composição social da cidade e de suas estruturas políticas e, por outro, como dão a conhecer, através das imagens de benfeitores, uma sociedade que se aventurou no investimento artístico-visual de sua elite, apesar do fato de que as irmandades de caridade estivessem voltadas aos que não tinham condições de ascensão social. Se por um lado ao longo da história a destinação política do retrato propiciou a manutenção do prestígio de poderosos e governantes, por outro esteve ligada a aspectos dos usos e costumes de particulares períodos históricos. Podemos considerar que, de forma geral, no século XIX, momento em que a


retratística se afirma de forma significativa no Brasil, as irmandades leigas destacam-se como grandes consumidoras de retratos, homenageando assim seus fundadores, provedores, grandes beneméritos e outros indivíduos ou grupos de alta consideração em suas sedes. Destas irmandades, as Misericórdias eram sem dúvida as mais poderosas. Os ricos senhores a elas associados destinavam vultosas doações, fato que lhes granjeava o respeito da população local. Por sua vez, também as instituições de caráter público tinham o hábito de homenagear governantes, colocando suas imagens nas paredes de seus salões. As possíveis conclusões apresentadas pelo atual estudo têm um caráter exploratório. As dificuldades de acesso aos dados limitam, de certa maneira, a compreensão de alguns aspectos da investigação. De qualquer modo, essas são limitações nas quais esbarram os pesquisadores de nossa história e memória, pois é sobejamente conhecida a falta de conservação que existe no Brasil com a documentação, tanto a passada quanto a contemporânea. No caso da pesquisa ora apresentada, enfrentamos dificuldades diversas tanto em relação à organização dos acervos e identificação dos retratos como à falta de registro das perdas das obras no decorrer do tempo. Entretanto, o conjunto de informações obtidas sobre os acervos e a abordagem utilizada permite levantar considerações sobre a pertinência desta exploração. O patrimônio simbólico dos acervos de museus e instituições das cidades brasileiras apresenta relevantes conjuntos desses objetos carregados de significações e representam importantes fontes documentais. Como bem assinala Micelli (1996:24), se por um lado os retratos permitem uma compreensão mais nítida das redes informais de poder das elites brasileiras, por outro oferecem um registro e uma representação da autoimagem desse grupo dirigente em fases de afirmação social. As Misericórdias brasileiras seguiram um padrão organizativo derivado de sua matriz portuguesa. Em Portugal, pintar um retrato ou esculpir a imagem de benfeitores das Ordens Religiosas ou das Irmandades foi uma prática comum como reconhecimento dos indivíduos que se distinguiram pelos serviços a elas prestados, e também uma forma de expressar distinção àqueles que prestavam obras de caridade. No Brasil, não foi diferente. Podemos destacar, nas Misericórdias brasileiras, a par dos retratos, a existência de estátuas tanto em Salvador como no Rio de Janeiro. No primeiro caso, a homenagem ao provedor Conde de Pereira Marinho e, no segundo, ao provedor José Clemente Pereira. Os retratos quase sempre eram expostos tanto em galerias especiais, como em distintas repartições das Santas Casas, e esse patrimônio representa aspectos significativos da história destas instituições, bem como dos grupos e indivíduos que delas fizeram parte. Em Portugal, vale ressaltar a Santa Casa de Misericórdia do Porto. Para os séculos XVIII e XIX há aproximadamente trezentos e sessenta e cinco retratos atribuídos a cerca de cinquenta e um artistas, distribuídos em uma galeria no edifício da irmandade e em várias de suas dependências internas e externas. O retrato mais antigo


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data de 1649, atribuído a Antonio André, artista de formação lisboense (ativo entre 1612 e 1652). O retratado é Manuel Fernando de Calvos, considerado um dos grandes benfeitores da irmandade. O mais recente é de 1949. Nesta coleção, do total de cerca de trezentos quadros, sobressai o número superior de retratos masculinos em relação aos femininos: estes cerca de sessenta (SAMAGAIO; AZEVEDO; SANTOS, 2001). Os retratos femininos são feitos a partir do final do século XIX, bem posteriores ao início da produção dos masculinos, o que demonstra o caráter masculino que persistiu por muito tempo nessa irmandade. No Brasil, essa situação se repete nas galerias de retratos das Misericórdias de São Paulo e de Santos. Dos treze retratos pintados no século XIX, no caso de São Paulo, há dois femininos. Em Santos, há somente um retrato feminino, do final do século XIX ou início do XX. Outras personagens femininas aparecem somente após a década de 1940. No Porto, os retratos de meio corpo ou 2/3 de corpo inteiro são a maioria e destinam-se quase sempre à classe eclesiástica e à burguesia. Em menor escala aparece a nobreza. Os de corpo inteiro, que aparecem em pequeno número, são das figuras régias e dos benfeitores que mais legados financeiros deixaram para a irmandade. Os retratos constituem-se como uma das formas de garantia de visibilidade social. Para ter sua imagem na galeria, o elegido era sempre alguém que fazia uma doação ou outro préstimo caritativo relevante e passava, assim, a usufruir do respeito da diretoria e da comunidade local. Também um membro, quando ascendia a um cargo diretivo, recebia a honra de ser retratado. Uma sua imagem seria seu retrato oficial, símbolo de sua imortalidade e garantia de autoafirmação frente à sociedade local. Isso se revela verdadeiro para outros tipos de confrarias ou instituições religiosas ou laicas. No Brasil, como em Portugal, podemos mencionar outras associações que homenageavam as elites locais em suas galerias de retratos. No caso brasileiro temos, como exemplo, as Sociedades Portuguesas de Beneficência do Rio Grande do Sul (CHAVES, 2008). A Sociedade Portuguesa de Beneficência, instituição hospitalar, tem sua origem em Portugal a partir dos anos 50 do século XIX. No Brasil foi criada por imigrantes portugueses, como instituição privada. Nelas persistem elementos do modelo das Misericórdias Portuguesas, no que diz respeito ao trabalho caritativo. Em território brasileiro, a mais antiga Beneficência é a do Rio de Janeiro (1840). Santos teve a sua fundada em 1859. A de Porto Alegre data de 1854. Essas associações têm em comum, entre outras características, a premiação dos sócios por suas boas ações através da concessão de retratos na sala principal de reuniões. Em Santos, constam seis retratos pintados por Benedito Calixto, sendo a maioria deles imagens dos presidentes da entidade. Nas Sociedades de Beneficência de Porto Alegre, Pelotas, Bagé e Rio Grande, com algumas poucas diferenças na composição social de suas diretorias, os presidentes eram portugueses (como previam os estatutos), vindos de Portugal já com situação financeira favorável. Os membros da diretoria tinham projeção social: comendadores, desembargadores, barões, proprietários de terra. O continuísmo dos membros na


diretoria e a alta rotatividade dos cargos foi um fator comum entre elas. Como de regra, os salões de honra agregavam os retratos de seus mais eminentes associados. Em Porto Alegre, o retrato real foi colocado na sede recém-inaugurada em 1870, sendo esse evento registrado na solenidade que marcou o início da nova fase na Instituição. Também, em Portugal e no Brasil, procurava-se exaltar a monarquia portuguesa através da exposição de seus retratos nessas instituições. Nas Sociedades de Beneficência, encomendava-se a pintura de um retrato real oficial, que seria colocado no saguão do edifício-sede. A imagem fortaleceria os laços dessas associações com a nobreza em Portugal e funcionaria como um substituto do poder real. O rei aceitava o protetorado da Sociedade e, por sua vez, esta administraria, na sua esfera específica, a reciprocidade à realeza, a sublimação do rei e a perpetuação de sua soberania nas colônias. Para abordar a questão do direito à imagem, reportamo-nos a Édouard Pommier (2003). Ao analisar as relações entre retrato e poder considera ele que estes são dois termos com estreita relação em toda a história da arte moderna. Quando se fala em retrato do poder, fala-se do poder, ou seja, daqueles que devem administrar a sociedade − papa, imperador, rei − e que têm direitos prioritários, entre eles, o direito à imagem. A imagem é, então, privilégio de quem tem direito à história e por consequência à fama, e aquele que conquista um posto na história adquire o direito de ser recordado através de sua efígie: o retrato torna-se o principal veículo de manifestação do poder ganho. O direito à fama está ligado à ideia do justo e só estes merecem a imortalidade recorrendo a um retrato, que evoca características elogiáveis. O retrato tem um poder exemplar, ou seja, ele não é só a pessoa, mas também sua vida gloriosa, uma vida a ser imitada. Assim, o retrato é carregado de exemplo moral e político. E, importante notar, ultrapassa o culto familiar ou de exaltação do sentimento patriótico, dizendo respeito também à transmissão da cultura. Em suma, para o autor, o direito à fama está ligado à ideia do justo e só os justos merecem a imortalidade recorrendo a um retrato. O retrato, portanto, torna-se um constituidor de identidade social. Nesta direção, Shearer West (2004) aponta que os retratos auxiliam a compreender como níveis específicos da sociedade são percebidos em diferentes momentos sociais, através das indicações que eles apresentam em sua composição. Ou seja, através da vestimenta, dos gestos, das propriedades e outros aspectos, os retratos dão sinais das características dos indivíduos que eles representam − se são ricos ou pobres, poderosos ou não − e de elementos indicativos da profissão, classe social ou de grupos, clubes ou instituições e associações a que eles pertencem. Estes indicativos de poder e status, por um lado salientam o valor funcional do retrato e, por outro, influem nas decisões sobre sua compra, disposição e exibição. Tanto Pommier como West ressaltam que os retratos podem também afirmar ou desafiar hierarquias sociais, na medida em que estes se tornam meio para a consolidação do poder de quem já o detém e para a ascensão de quem o está conquistando. Outrossim, a tendência de se considerar o retrato como algo mais que uma obra de arte está reforçada por sua associação com instituições as mais variadas, tais como coleções de retratos de presidentes de companhias, membros destacados de


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universidades, membros de famílias reais ou nobres etc. Desta forma, tão logo retratos sejam colocados como um grupo de imagens, o espectador é chamado para vê-los como uma coleção de indivíduos, muito mais que uma exibição de obras de arte. No que diz respeito à história da retratística, é importante também destacar as finalidades do gênero, ou seja, os propósitos aos quais os retratos pretendem servir e como eles respondem a esses propósitos em termos de gestos, vestimentas, expressão facial, cenários, estilo, formas e espaços de exposição. West contempla, ainda, que retratos de membros de uma família foram um elemento importante das coleções de arte da antiguidade e que algumas das mais antigas galerias de arte eram galerias de retrato. O mesmo fenômeno acontece na Itália e Europa do norte a partir do século XV, quando se torna comum a exibição de retratos de homens ilustres nas bibliotecas ou estúdios dos príncipes e duques da Renascença, como objetos de emulação e exemplo. Nos dois séculos seguintes, coleções de retratos dinásticos são bastante difundidas entre a nobreza e a aristocracia europeia. No século XVIII, essa característica dinástica das coleções vai sendo abandonada, dando lugar para os retratos familiares e de ancestrais. Já a partir do final deste século e no início do XIX, vai se afirmando outro tipo de retrato enfatizando mais o caráter dos interesses nacionais que os da esfera familiar, tendência que se sobressai na América do Norte. Há que se lembrar também de que no final do século XVI, a retratística começa a se expandir a outros setores sociais. O retrato burguês passa a ser alvo de uma produção cada vez mais crescente, demonstrando que esse gênero torna-se meio para a consolidação do poder de quem já o detêm e para a ascensão de quem o está conquistando. Para a nossa análise, no caso brasileiro, podemos apontar, numa perspectiva voltada às galerias de retrato, o estudo de Alberto Cipiniuk, no qual, ao pesquisar o retrato, seu autor e o retratado na pintura fluminense do final do século XVIII ao início do século XIX, destaca as Santas Casas de Misericórdia, ao lado de outras instituições leigas no Brasil, como repositórios privilegiados deste gênero de arte, na medida em que, antes de 1830 [...] não houve no Brasil nenhuma preocupação com a criação de espaços de exibição artísticos, e também nunca houve intenção da criação de um espaço específico para gente ilustre, um museu ou galeria aberta à visitação pública de retratos (...). Precisamos salientar que os primeiros retratos realizados no Brasil pertenceram inicialmente aos espaços públicos das confrarias e irmandades, assim como dos passos municipais (...). Tal como o museu da arte, a ideia da ‘galeria de retratos’ se associa às criações culturais do século XIX e testemunha um desenrolar tridimensional da história. O novo espaço de ambientação dos retratos, os espaços públicos com representações de personalidades cívicas, situa-se nos consistórios das ambiciosas irmandades (CIPINIUK,2003:33-35).


As irmandades financiavam a produção de retratos comemorativos, seguindo a tradição da pintura luso-brasileira do final do século XVIII e de todo o século XIX, período em que o retrato burguês se afirma. Segundo Migliaccio (2000), esta retratística tem um caráter público e documental e volta-se a exaltar o caráter cívico do cristão na construção da cidade, que é sinônimo de civilização. É no século XIX que o retrato passa a ocupar um lugar de destaque no âmbito das artes no Brasil, quando se verifica uma presença maior da pintura erudita ou acadêmica no país. O prestígio social do retrato tanto no âmbito privado como no público tornou-se uma importante fonte de sobrevivência para os artistas. Cresciam as encomendas para a execução de retratos das camadas altas das elites da sociedade e pintores, nem sempre retratistas por excelência, dedicavam-se cada vez mais a esse mister. Pedro Alexandrino (1864-1942), mormente um pintor de natureza-morta, aceitava frequentemente encomendas do gênero, como também faziam Almeida Jr., Oscar Pereira da Silva e muitos outros. As gerações posteriores de artistas, a exemplo de Paulo do Valle Jr. (1889-1958) , não abandonaram a prática de fazer retratos. De modo geral, à época, a viabilização de uma carreira artística no Brasil, no âmbito da pintura, dava-se dentro dos marcos institucionais dominantes, ou seja, aqueles veiculados pela Escola Nacional de Belas-Artes e também pela participação regular nos Salões anuais. Prêmios de viagem ao país e ao exterior eram componentes para o reconhecimento de uma carreira bem sucedida. Podemos destacar, neste sentido − dentre os artistas que atuaram nas Misericórdias de São Paulo e de Santos − as trajetórias de José Ferraz de Almeida Jr. e Oscar Pereira da Silva. Almeida Jr. (1850-1899) ingressa na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1869, onde fica por quatro anos, aí obtendo sete medalhas. Em 1875 é convidado pelo Imperador dom Pedro II para estudar na Europa sob suas expensas. Em 1878 matricula-se na École des Beaux-Arts de Paris. Em 1896 estuda em Paris com bolsa do governo de São Paulo. Participa de várias exposições internacionais e nacionais. Dentre elas: Salões de Paris; Rio de Janeiro, Exposições Gerais de Belas Artes, Escola Nacional de Belas Artes; Chicago, Estados Unidos — Exposição Internacional Colombiana –onde recebe medalha de ouro. Oscar Pereira da Silva (1867-1939) estudou na Academia Imperial de Belas Artes (RJ) entre 1882 e 1887. Obteve o prêmio de viagem à Europa, estabelecendo-se em Paris de 1889 a 1896. De volta ao Brasil, fixa-se em São Paulo onde, em 1897, funda o Núcleo Artístico, origem da Escola de Belas Artes em 1897, no qual viria a lecionar. Também se tornou professor do Liceu de Artes e Ofícios. Participa de várias Exposições Gerais de Belas Artes (RJ) e dos Salões Paulista de Belas Artes, onde obteve em 1933 a grande medalha de ouro. Na Santa Casa de São Paulo, particularmente, muitos pintores que produziram os retratos dos beneméritos enquadram-se na qualidade de retratistas, a exemplo de Almeida Jr., Ernst Papf, Tony Koegl, Carlo de Servi, Oscar Pereira da Silva, Paulo do Valle Jr. No início do século XX, pintores estrangeiros, sobretudo italianos radicados no


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Brasil, dedicaram-se à pintura de paisagem e produziram uma obra retratística de grande qualidade, como Carlo de Servi e Pietro Spina, ambos presentes na Misericórdia de São Paulo. Artistas franceses, como Gabriel Biessy, também recebiam considerável encomenda de retratos no Brasil. Na Santa Casa de São Paulo, todos os retratos produzidos no século XIX são do tipo 2/3. Estas imagens afirmam o caráter da identidade grupal de uma elite, através de sinais que ligam os representados a seu status social, projetando uma imagem sóbria, com gestos e poses que evidenciam características de seriedade, inteligência, sabedoria, virtudes desejáveis a um grupo dirigente e que podem servir de modelo cívico. São imagens que se distinguem, por exemplo, dos retratos coloniais norte-americanos, os quais se destinam à exaltação das virtudes sociais num contexto familiar e privado. Diferenciam-se também dos retratos produzidos na América do Norte no início do XIX quando emerge, como vimos anteriormente, outro tipo de retrato mais direcionado ao caráter dos interesses nacionais. No Rio de Janeiro, no século XIX, a produção de retratos volta-se também de uma forma moderada para o âmbito social, encomendados por figuras de vulto na hierarquia da corte e grandes fazendeiros do Rio de Janeiro e Vale do Paraíba para ostentar nos salões de suas casas Em São Paulo, os barões do café passam a encomendar seus retratos para serem colocados na sala de visitas de suas residências, imagens que lhes dariam a visibilidade de sua posição social conquistada. No início do século XX, retratos femininos, com as personagens pintadas em trajes elegantes, são também exibidos nas residências particulares, como é o caso da imagem da Condessa Annie Álvares Penteado, em destaque na sala de sua mansão em São Paulo, da autoria de Jean Denis Maillart. O retrato masculino, por sua vez, começa a assumir um papel mais significativo como registro de personalidades políticas, voltado para repartições, instituições e escritórios. Ao longo do tempo, praticamente todas as casas burguesas ostentavam pinturas: um retrato na sala de visitas, uma natureza-morta na sala de almoço. Muda a função social do retrato e o mercado de arte se alarga, tanto para os artistas brasileiros e estrangeiros, principalmente italianos, que visitam ou se radicam no Brasil. Estes artistas tiveram uma presença marcante no cenário das artes no estado de São Paulo, sobretudo na capital paulista. Realizavam frequentes exposições, recebiam encomendas da elite local, circulavam em suas festas e salões, lograram incluir seus trabalhos nos acervos locais, privados e públicos. E são esses mesmos pintores que também viriam a atuar nas Misericórdias, a exemplo de Karl Ernst Papf, Carlo de Servi, Giuseppe Amisani. Nas Misericórdias de São Paulo e Santos, há obras nas quais se observa a figura do representado sobreposta a um fundo simples ou com representação de ambientes, onde aparecem cortinas, tapetes, mesas, livros, cartas, documentos, em evocação à cultura da personagem, como também objetos de prestígio indicando a profissão ou prestígio social do indivíduo, como medalhas e comendas. Muitas vezes há indicações do empenho do retratado na construção de edifícios ou benfeitorias nas instalações da Santa Casa, a exemplo de cartas de doações e outros símbolos.


Os retratos expostos nas Santas Casas de São Paulo e de Santos nos autorizam a esboçar os contornos de uma parcela representativa da elite paulista e o caráter diversificado dos diferentes segmentos desse grupo. No caso de Santos verifica-se que, do total dos retratados, para o período da pesquisa, acham-se, por ordem numérica, os políticos, seguidos de fazendeiros, médicos e empreendedores ligados às atividades do café. Em São Paulo a elite retratada é composta pela aristocracia rural, particularmente grandes fazendeiros de café, grande parte destes exercendo cargos públicos e políticos. Militares, advogados e médicos também fazem parte desse grupo retratado. Poucas mudanças são verificadas neste perfil ao longo do tempo em foco neste trabalho. O Brasil está em um tempo de reconfiguração de poderes, levando a um momento de afirmação de uma elite e de construção de sua autoimagem frente às outras elites que emergem. Lembremos que o período que abarca a metade do século XIX e as primeiras décadas do XX foi um período incontestavelmente caracterizado pelo predomínio e exclusiva representação das elites agrárias. A cena política era uma esfera caracterizada pela participação e competição bastante limitadas. Entretanto, no início do século XX, o país passa por mudanças na economia, aprofundadas pelos processos de industrialização e de urbanização. Novos setores sociais emergem e iniciam um movimento de entrada nas cenas sociais e políticas. É um período de desafio às elites econômicas e políticas que vinham dominando o cenário nacional. A partir de 1930, nos centros urbanos há uma multiplicação dos profissionais liberais, oriundos das famílias de classes médias e da própria burguesia, mas não integram de maneira decisiva os quadros políticos locais e nem mesmo as mesas diretivas da Misericórdia (BILAC,1999). Os princípios hierarquizantes operativos na Misericórdia retratam os valores determinantes nas cidades. Viviam em São Paulo e Santos homens de negócios ricos. Mas não foram admitidos no topo hierárquico da instituição. A sucessão de provedores e beneméritos demonstra que os diferentes grupos que procuravam dominar as cidades ocupam as chefias das Misericórdias locais. Sucedem-se ou coabitam-se as elites agrárias, políticos, advogados etc. È um mundo não monolítico, mas sendo que seus provedores são homens frequentemente com títulos de nobreza e trânsito nas mais diversas esferas do poder. Os provedores foram, também, participantes ativos nos diversos acontecimentos e processos políticos de sua época. Conclusão

Pesquisadores portugueses e brasileiros, em obra publicada em Araújo (2009), destacam a importância do estudo sobre as Santas Casas de Misericórdia das duas margens do Atlântico e enfatizam que embora no Brasil a temática tenha sido menos trabalhada que em Portugal, o assunto vem despertando crescente interesse no país. Daí a pertinência de se aprofundar e alargar o sentido e o papel dessas irmandades nas duas sociedades.


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A investigação que ora apresentamos surge do interesse em reunir um conjunto de elementos que, embora ainda dispersos, permitam compreender algumas facetas das relações entre as Misericórdias brasileiras e a história das elites locais. A análise orienta-se a partir de duas ideias centrais. Por um lado, analisar a irmandade como parte de um processo de organização e reorganização da sociedade no em respeito à formação das elites locais, particularmente no que tange à sua ligação ao exercício do poder. Por outro lado, procuramos compreender a questão posta a partir da produção dos retratos dos beneméritos das Santas Casas, considerando o conjunto destes nas Misericórdias das cidades de São Paulo e Santos. Para tanto, buscamos entender como estes acervos podem revelar alguns aspectos críticos sobre a metamorfose/continuidade da composição social da cidade e de suas estruturas políticas e também como possibilitam conhecer, através das imagens de benfeitores, uma sociedade que se aventurou no investimento artístico-visual de sua elite. No século XIX, momento em que a retratística se afirma de forma significativa no Brasil, as irmandades leigas destacam-se como grandes consumidoras de retratos, honrando seus fundadores, provedores, grandes beneméritos e outros indivíduos ou grupos de alta consideração em suas sedes. As Misericórdias, dentre todas elas, eram sem dúvida as mais poderosas. Os ricos senhores a elas associados destinavam vultosas doações, fato que lhes granjeava o respeito da população local. Por sua vez, também as instituições de caráter público tinham o hábito de homenagear governantes, colocando suas imagens nas paredes de seus salões. Desta forma, para estabelecer as ligações entre as Misericórdias brasileiras e a história das elites locais, tendo como base a produção de retratos de seus beneméritos, procuramos articular um conjunto de fatores. De um lado, particularizar as Misericórdias como componente de um processo mais complexo de organização e reorganização da sociedade no que diz respeito à formação das elites. Por outro, apresentar possibilidades e perspectivas de análise sobre o poder da imagem e investigar nexos entre retrato, poder e direito à imagem como um constituidor de identidade e elemento de visibilidade de determinados grupos em um específico sistema de hierarquia social. As Misericórdias foram essenciais para o estabelecimento de oligarquias relativamente estáveis em um dado território. Constituíram-se também como demarcadoras de fronteiras sociais, de gênero, classe ou grupos étnicos. Elas estão intimamente ligadas à evolução da vila colonial, bem como da cidade imperial e da memória republicana. A fundação destas confrarias nas colônias do Império português foi parte decisiva da política de ocupação de terras exercida pela Coroa real e foram sendo estabelecidas concomitantemente ou logo após o surgimento de um núcleo urbano. De acordo com a literatura sobre o assunto, a exemplo de Sá (1997; 2001) podemos considerar que estas irmandades constituíram-se em espaços críticos para as lutas pelo poder local, favorecendo as chances de status, prestígio, distinção e afirmação social. Em geral, como confrarias de elite, abrigavam em seus quadros, principalmente aqueles das mesas administrativas, indivíduos com capacidade econômica e prestígio social reconhecido.


As Misericórdias brasileiras seguiram um padrão organizativo derivado da matriz portuguesa. Em Portugal foi uma prática comum pintar retratos ou esculpir imagens de benfeitores das Ordens Religiosas ou das Irmandades, como reconhecimento dos indivíduos que se destacaram pelos serviços a elas prestados ou pelas obras de caridade. Esta prática também se reproduziu no Brasil. Na coleção de retratos da Santa Casa do Porto/Portugal, no total de cerca de 300 obras – datados de 1649 a 1949 – destaca-se o maior número de retratados masculinos. Os femininos chegam ao redor de 60 e são produzidos somente a partir do final do século XIX, demonstrando o caráter masculino que persistiu por muito tempo nessa irmandade. No Brasil, esta situação pode ser constatada no conjunto dos retratos nas Misericórdias de São Paulo e Santos. Na primeira, dentre os 13 retratados no século XIX, há dois femininos. Em Santos, há somente um feminino, da passagem do século XIX para o XX. Outras personagens femininas, em ambos os casos, aparecem apenas a partir da década de 1940. Nos acervos de retratos das Misericórdias, de forma praticamente exclusiva, os retratados pertenciam a seletos grupos das elites e constituem um espaço de reconhecimento e valorização da memória visual de indivíduos que contribuíram para o desenvolvimento e manutenção desta irmandade. Além disso, os provedores, em sua grande maioria, e outros beneméritos que ocuparam os cargos de maior importância nestas irmandades foram também figuras ativas de processos políticos e variados acontecimentos importantes de sua época, possibilitando-lhes trânsito entre os diferentes poderes locais, regionais e até mesmo nacional. Assim que o retrato torna-se um constituidor de identidade social. Os símbolos nele evidenciados dão mostras das características e qualidades dos indivíduos nele representados. As imagens afirmam o caráter da identidade grupal das elites locais e delineiam o perfil do tipo exemplar de uma época. O retrato tem, pois, um poder exemplar, ou seja, ele não é só a pessoa, mas também sua vida gloriosa, uma vida a ser imitada: o retrato é carregado de exemplo moral e político. O conjunto de quadros em questão neste estudo projeta uma imagem sóbria dos retratados, com posturas indicando características de seriedade, sabedoria, inteligência, virtudes desejáveis a um grupo dirigente e que podem servir de modelo cívico. Os princípios hierarquizantes operativos das Misericórdias retratam os valores determinantes nos locais onde elas se estabeleciam. Há que se notar que nem todos os beneméritos que praticaram o ato de caridade tinham seus retratos produzidos. A par dos provedores, somente os grandes doadores recebiam esse mérito, uma vez que o valor da doação estava ligado diretamente à honraria mais que à própria caridade. Destaque-se que, a par das elites tradicionais, o ingresso na confraria não era monolítico. Tornava-se também muito atraente para os grupos ou indivíduos em processo de ascensão porque lhes oferecia o revestimento da consagração social. Entretanto, os cargos mais importantes das mesas administrativas eram majoritariamente preenchidos pelos indivíduos socialmente mais categorizados de cada localidade


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que, na maioria das vezes, acumulavam com o exercício de outros poderes. Note-se, por exemplo, que viviam em São Paulo e Santos, à época estudada, homens de negócios ricos, mas que não foram admitidos no topo hierárquico dessas irmandades. No caso das diferentes confrarias de origem lusa, como as Misericórdias e as Sociedades Portuguesas de Beneficência, as relações de poder e as ações de caridade estão intrinsecamente interligadas. Estas instituições mantêm ligações com as Câmaras Legislativas, Intendências, partidos políticos, instaurando uma rede de estratégias políticas de alternância do poder, criando também relações de dependência, de concessão e retribuição de favores. Dentre esse conjunto de fatores que possibilitou a construção de toda uma rede de poder local, destaca-se a importância do pertencimento das elites nas instituições conferidoras de poder e status. E indubitavelmente podemos considerar como predominante o papel das Misericórdias enquanto locus privilegiado das estratégias de manutenção do poder das elites locais. No que diz respeito à produção dos retratos, verifica-se que além dos provedores – estes com direito “natural” à imagem – são homenageados, em sua esmagadora maioria, aqueles que prestavam significativas ações filantrópicas e, acima de tudo, eram grandes doadores financeiros. Há que se observar, portanto, as relações entre a assistência e as relações de poder, considerando que a caridade efetuada por estas instituições afirma e reafirma estratégias de poder. Os retratos são, neste caso, documentos privilegiados para demonstrar, entre outros diversos elementos, espaços de emergência e consolidação de grupos sociais em determinados momentos de uma sociedade Agem, assim, como indicativo do status dos indivíduos que eles representam. E, como indica Shearer West, embora seja importante não ver retratos como mera reflexão das hierarquias sociais, eles podem auxiliar a entender como específicos níveis da sociedade foram percebidos em diferentes períodos da história. A partir dos resultados desta fase da pesquisa – em que investigamos duas Misericórdias entre as mais antigas e importantes do Estado de São Paulo, estendemos o trabalho a outras destas instituições, no caso, a do Rio de Janeiro e a de Salvador/ Bahia. O intuito é realizar posterior estudo comparativo deste conjunto de Santas Casas, para compreender as diferenças entre os contextos sociais nos quais estas se inserem e o reflexo destas diferenças na formação das elites locais, a partir da produção de retratos de seus beneméritos. Contactar a autora: biabiabilac@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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Os Leques da Coleção Ferreira das Neves The Fans of the Collection Ferreira das Neves

Maria Cristina Volpi Nacif Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 298-310.

Nacif, Maria Cristina Volpi (2013) “Os Leques da Coleção Ferreira das Neves.” Revista

Resumo: Este artigo apresenta a investigação dos sete leques do século XIX que fazem parte da Coleção Ferreira das Neves do Museu D. João VI da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com a fundamentação teórica dos estudos de cultura material aplicados à história cultural, mostra como os leques transitavam entre a obra de arte decorativa e as estratégias de publicidade do consumo de luxo, testemunhando hábitos mundanos e cosmopolitas. Palavras-chave: Leques. Objetos de adorno do Século XIX/XX. Museu D. João VI.

Abstract: This article presents the research on seven 19th-century fans that are part of the Collection Ferreira das Neves of the Dom João VI Museum at the Escola de Belas Artes (School of Fine Arts) of Universidade Federal do Rio de Janeiro (Federal University of Rio de Janeiro). With the theoretical framework of the material culture studies applied to cultural history, it shows how fans moved back and forth between the work of decorative art and the advertising strategies of luxury consumption, witnessing mundane and cosmopolitan habits. Keywords : Fans. The 19th- and 20th-century adornment objects. Dom João VI Museum. Introdução

Criado em 1979, nos últimos cinco anos o Museu D. João VI da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro ganhou um novo projeto museográfico fundamentado na organização do acervo em coleções tipológicas e sua exibição nas salas e corredores como uma grande reserva técnica. Seu perfil de museu didático foi desse modo destacado, atraindo cada vez mais o interesse de alunos e pesquisadores. A coleção sobre a qual nos debruçamos foi doada à Escola Nacional de Belas Artes em 1947 por Eugênia Barbosa de Carvalho Neves, que atendia a um desejo de seu marido Jeronymo Ferreira das Neves (JFN), já falecido. Formada por um conjunto bastante eclético com mais de trezentos itens entre esculturas, pinturas, porcelanas além de peças de indumentária eclesiástica, leques, joias, relógios, bordados, fragmentos de ornamentos de trajes e de acessórios, faz parte do acervo museológico do Museu D. João VI. Visando ao aprofundamento da investigação, o acervo foi agrupado em conjuntos coerentes com a tipologia e uso. Em seu testamento, Eugenia enumerou os objetos nos seguintes termos: “(...) as faianças e esmaltes, as miniaturas antigas, os quatro preciosos vitrais suíços antigos, os leques antigos, o riquíssimo peso de papel de ouro e esmalte (...)” (MALTA, 2011). Os


itens de numero 165 a 170 listam os leques e o numero 202, o abano de ‘arminho’ (sic) e penas brancas com cabo de madrepérola. Na realidade, existem seis leques e uma ventarola (Quadro 1), portanto um dos leques da coleção não consta no testamento, por descuido? Dois deles são datados de 1889, o leque comemorativo da Exposição Universal realizada em Paris e o leque de propaganda ‘Bombom Siraudin,’ além disso, as dimensões, formatos, materiais e técnicas empregados nos demais permite supor que a coleção data das duas últimas décadas do século XIX. Teriam pertencido a Eugenia? Tecido pintado / Madeira Leque Comemorativo

com detalhes pintados

da Exposição

Trabalho francês,

Universal.

1889

e relevos ornamentais

63,5 x 67,0 cm

Inscrição em português ‘Pavilhão do Brasil’ e ‘Exposição de Paris 1889’

Leque publicitário

Trabalho francês,

Bombom Siraudin

1889

Litografia. Papel, tecido e madeira

35,0 x 56,0 cm

Assinado: Barbier Leque verde água Leque de renda preta

C.1893/1898

Tecido pintado, madeira

35,0 x 67,0 cm

Tecido pintado, renda e

58,0 x 66,0 cm

madeira Leque bordô

Trabalho austríaco

Couro, cetim e madeira

29,2 x 49,0 cm

Leque baralho

Trabalho suíço

Madeira vazada e pintada

22,5 x 43,0 cm

Ventarola

Trabalho brasileiro

Plumas (papo de cisne?) cabo em madrepérola

32,5 x 22,5 cm

trabalhada Caixa da ventarola

Trabalho brasileiro

Cartão forrado de papel verde

Quadro 1. Relação dos leques da coleção Ferreira das Neves

Com a fundamentação teórica dos estudos de cultura material aplicados à história cultural, segundo os quais os objetos encarnam padrões de crenças e comportamentos (Prown: 1982), as questões que emergem da experiência com a ‘coisa real’ são “... um esforço constante para fazer falar as coisas mudas, para fazê-las dizer o


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que elas por si próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as produziram (...)” (LUCIEN FEBVRE 1949, ed. 1953, p.428 Apud FUTEMMA, 2006, p. 24). O comportamento social aceito pelas camadas dominantes cariocas (Needell, 1993) e reproduzido num sem número de prescrições, em manuais de etiqueta ou em colunas mundanas dos principais jornais da cidade, refletia as contradições da nova classe dominante formada por antigos cortesãos e novas fortunas, que entrava em cena nos países industrializados, especialmente França e Inglaterra. É ainda a prática das regras sociais que revela a posição dos agentes na hierarquia social, [...] o que predispõe os gostos a funcionarem como os marcadores privilegiados de ‘classe’.

Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 298-310.

Nacif, Maria Cristina Volpi (2013) “Os Leques da Coleção Ferreira das Neves.” Revista

As maneiras de adquiri-lo sobrevivem na maneira de utilizar os conhecimentos adquiridos: a atenção dada às maneiras se explica quando se vê que é nesses imponderáveis da prática que se reconhecem os diferentes modos de aquisição, hierarquizados, da cultura, precoce ou tardia, familiar ou escolar, e as classes de indivíduos que elas caracterizam (como os ‘pedantes’ ou os ‘mundanos’). A nobreza cultural tem também seus títulos, que outorga a escola, e seus costados, que permitem medir a antiguidade de acesso à nobreza. (BOURDIEU, 1979: II)

Como qualquer pessoa com dinheiro poderia obter os objetos de luxo produzidos pelas indústrias europeias, as distinções sociais se davam pelo gosto, ou seja, pela “faculdade de julgar valores estéticos de modo imediato e intuitivo,” (Bourdieu, 1979:109) o que, associado a um determinado estilo de vida representado pelo conjunto de consumos materiais e culturais, distinguia as frações de classe nos principais centros urbanos, tanto na Europa como no Rio de Janeiro, capital do Brasil naquela época (NOVAES, 1997). Partindo de uma breve explanação sobre as origens, a circulação e emprego do leque como objeto do consumo ostentatório feminino, a análise é desenvolvida segundo a metodologia proposta por Prown (1982:7-12) incluindo as três etapas, não necessariamente nesta ordem: a descrição (análise substancial, conteúdo e análise formal), a dedução (experiência sensorial, experiência intelectual e resposta emocional) e a especulação (formulação de hipóteses, programa de pesquisa), associadas à investigação das evidencias externas (analises quantitativa, estilística e iconológica), tendo como parâmetro estudos publicados sobre a coleção de leques do Victoria & Albert Museum, Londres, do Royal Collection, Castelo de Windsor ambas do Reino Unido, e da Coleção do Palais Galliera/Musée de la Mode et du Costume, Paris, França. A datação e classificação dos abanos constantes nesta pequena coleção visa compreender qual seria o lugar dos leques no conjunto da Coleção JFN, como se davam a produção, circulação e ressignificação desses objetos de adorno no Rio de Janeiro e como as elites urbanas cariocas interagiam com os códigos de civilidade europeia.


1. Sobre o leque

Abano que serve para refrescar, espantar moscas e avivar o fogo, o leque tem uma dupla origem americana e oriental. Usado em todas as grandes civilizações antigas, sua origem remonta ao III milênio a. C. Como atributo sagrado e politico, servia para manter acesso o fogo dos altares, identificar a hierarquia e o status, ou insígnia mundana de refinamento e conforto. Existem dois tipos básicos a partir dos quais todas as suas manifestações derivam, um rígido – o mais antigo — que pode apresentar formatos geométricos ou de folhas ou frutos, e outro dobrável, circular ou semicircular, ambos com variados tamanhos (BLONDEL, 1875: 1-69). O uso do abano rígido já existia na Europa nos séculos XII e XIII. A partir do Renascimento são aí introduzidos através de Portugal leques chineses e japoneses. O termo português – leque – que designa os abanos dobráveis e não rígidos ou de penas como aqueles conhecidos pelos europeus, vem da expressão ‘abanos léquios,’ das ilhas Ryu-Kyu, (ou Leu-kiu em chinês, ilhas Léquias em português antigo). Três tipos de leque eram muito empregados, a ventarola, um leque rígido ou plissado, semicírculo ou circulo montado sobre um cabo (modelo conhecido em vários continentes desde a Antiguidade), o leque-baralho, cuja folha é formada por hastes largas, ligadas por uma fita, originários da China e o leque plissado, formado por hastes rígidas cobertas por uma folha de papel ou pele muito fina e decorada, originário do Japão. Esses dois últimos tipos são constituídos pelas seguintes partes: haste, penacho, ponta, folha, eixo e cabeça. Os materiais utilizados nas hastes podem ser madeira, marfim, chifre, madrepérola e tartaruga e na folha pena, papel, seda, renda, velino combinados ou não. Hastes e folhas podem ser decoradas com aplicações, entalhes, ilustrações e caligrafia, sendo empregadas técnicas como tempera guache, aquarela, ou bordadas com lantejoulas ou seda. Do Japão à Europa, o leque deixa de ser signo masculino de poder, prestigio e agressividade (muitos tinham punhais mecânicos embutidos e eram usados como arma branca), para transformar-se em adorno essencialmente feminino, símbolo de status, elegância e recato. A mulher aristocrática do século XVI exerceu um importante e pouco conhecido papel nessas transformações culturais (Pinto, 1996: 22), resinificando e difundindo o uso dos leques. Nessa época nasceu em Lisboa e em seguida se disseminou para a Europa, a ‘linguagem dos leques’, um código meio secreto que permitia às mulheres a comunicação galante: “Quando está aberto e exposto, esconde o rosto; quando fechado, o desvela. Oculta, mostrando-se; revela, se fechando. Dizendo, vela; calando, se revela” (Machado, 2001: 172). Metáfora do comportamento feminino socialmente aceito naquela época, o emprego mundano do leque nas sociedades cortesã e burguesa evidencia uma aura romântica atribuída à mulher e um sofisticado manejo das regras sociais envolvendo o amor cortes, o flerte e a relação entre os gêneros. Para desvendar esse código galante foram publicados diversos manuais dentre os quais um escrito pelo brasileiro Pedro Quaresma. Reproduzimos a seguir o significado da posição do leque:


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Fechado, sobre a mão direita: procuro um noivo. Fechado, sobre a mão esquerda: sou comprometida. Acariciando de leve rosto e cabelos: não me esqueças. Agitado com moderação: não há nada a fazer. De cabeça para baixo: você me aborrece. Sobre o coração: amo-te, e sofro por isso. Dedo deslizando sobre as varetas: preciso falar-te. Entrar num salão fechando o leque: hoje não sairei.

Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 298-310.

Nacif, Maria Cristina Volpi (2013) “Os Leques da Coleção Ferreira das Neves.” Revista

Sair do salão abanando-se: partirei logo.” (QUARESMA, apud TEIXEIRA, 1995)

A evolução da moda no vestuário contribuiu para fomentar o desenvolvimento de importantes manufaturas e o uso dos leques como objetos de adorno e coqueteria femininos atingiria seu auge na sociedade cortesã do rococó e durante o romantismo, período em que se afirmou a liderança da França em termos de hábitos de vestir e cujo centro irradiador era Paris. A fascinação que exerceram esses objetos efêmeros sobre colecionadores e não colecionadores devem-se ao valor ornamental desses ‘pequenos móveis,’ (Delpierre, 1985) à qualidade dos materiais empregados e a pericia técnica e artística dos artesãos estando seu desenvolvimento vinculado às artes decorativas. Em geral, as coleções não tem uma tipologia única, sendo as escolhas bastante pessoais. Alguns colecionam leques de um determinado período ou de um determinado estilo. Outros se interessam por leques que retratam eventos históricos, políticos ou sociais (HART, 1998: 6-7). Ou ainda esquecidos no fundo de um móvel, são simples lembranças de uma época que já passou. Objetos de adorno, os leques foram até os primeiros anos do século XX, acessórios de moda essencial no guarda-roupa feminino de luxo. A introdução no mercado europeu dos modelos retráteis e facilmente manipuláveis conhecidos no extremo Oriente, se deu no final do Renascimento, quanto se intensifica a circulação de mercadorias através do comércio marítimo. 2. Novidades exóticas

Durante os séculos XVII e XVIII as Companhias das Índias Holandesa e Inglesa fizeram a importação maciça de artigos manufaturados para Europa vindos da Índia e da China, incluindo móveis, cerâmicas, têxteis e leques (HART, 1998: 39). Familiarizados com os modelos orientais os europeus empreenderam a fabricação de leques, introduzindo ao longo do século XVIII na produção artesanal, diversas técnicas e mecanizações. Em torno de 1770 já existia um molde para plissagem da folha, favorecendo montagens cada vez mais rápidas, e leques que incorporavam pequenos mecanismos, como binóculos, tesourinhas, caixinhas de costura ou maquiagem.


Desde a concepção global do leque, que é geralmente obra do fabricante de leques, de seu desenhista ou de um dos primeiros artistas da manufatura, a fabricação envolve uma serie de ações e competências, incluindo a realização da armação, da folha e da montagem de todo conjunto de peças que o compõe. Isso pode representar entre vinte e vinte e cinco operações especificas, segundo a complexidade do objeto, especialmente quando se trata de um leque realizado por artesãos com resultados que revelam grande domínio técnico e artístico. Temas recorrentes nas ilustrações dos leques introduzidos durante o barroco, como os mitos clássicos podiam ser cópias de pinturas de Nicolas Poussin (15941667) ou Charles le Brun (1619-1690). Além desses temas havia as ‘chinoiseries,’ (Hart, 1998:39) estilo que evoluiu durante o século XVII e XVIII e que se caracteriza por uma mistura de vários temas orientais ao gosto europeu, representando paisagens ao mesmo tempo alegres e fantásticas com perspectivas improváveis e arquiteturas flutuantes, incluindo figurinhas com trajes vagamente chineses. Ao longo do século XVIII, a popularidade crescente dos leques contribuiu para a banalização de imagens idílicas do rococó com um numero infinito de cupidos, altares, passarinhos e arco-íris. Até mesmo em coleções muito antigas e bem datadas (Roberts, 2005) poucos leques são assinados, às vezes apenas pelo pintor da folha e não pelo artesão que fez as hastes. Embora se saiba muito pouco sobre os pintores das folhas, as principais influências foram as pinturas de Antoine Watteau (1684-1721), François Boucher (1703-70) e Jean Honoré Fragonard (1732-1806) (HART, 1998: 20-38). Durante o século XIX o leque se tornou cada vez mais popular, o seu uso se expandiu e os estilos se misturaram, surgindo leques pastiche dos séculos anteriores. É nesta época também que aparecem os primeiros leques publicitários e comemorativos fabricados em larga escala, mais simples e mais baratos, formados por uma armação de madeira e uma folha cromo litografada ou impressa. As mudanças mais aceleradas na forma da moda feminina ao longo do século XIX vão contribuir para que os leques do período sejam mais facilmente datados. Na segunda metade do século XIX o advento das exposições universais contribuiu para o aperfeiçoamento e divulgação de novas técnicas e novos designers. Leques de alta qualidade eram exibidos e premiados, enquanto outros eram confeccionados em grande escala para fazer a publicidade desses grandes acontecimentos que atraiam milhares de visitantes. Os leques também serviam para assinalar a vida mundana. O movimento efervescente em torno dos teatros, cafés-consertos, cabarés, cafés e restaurantes, eram registrados na imprensa, em cartazes e nos leques publicitários. Entre 1890 a 1893, o leque mais comum era grande e de forma geométrica, com armação de linhas retas e abertura atingindo o meio circulo completo ou de ‘pleno voo’. A armação era quase sempre de madeira, esculpida ou gravada com motivos parecidos com os que decoravam a folha. Feita de granadina, uma gaze de seda preta ou clara, a folha do leque era decorada com pinturas e arrematada com uma renda curta na borda.


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Os temas da decoração da folha eram quase sempre a fauna e a flora, paisagens ou pássaros e flores representados ao natural, formando composições ou semeados por toda a superfície. 3. Da China à Paris Meu pai eu quero seda Quero um chale de Tonquim Quero um anel de brilhante

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Quero um leque de marfim.” (TEIXEIRA LEITE, 1995)

Até meados do século XIX, o Brasil recebia regularmente essas mercadorias do Oriente como atestam as propagandas nos principais jornais. No processo de europeização apontado por Gilberto Freyre (2003), a moda europeia passou a ser copiada por modistas e alfaiates de diversas categorias, sendo que os mais famosos indicavam em seus anúncios que atendiam à família Imperial. Desde a década de 1820, eram importados artigos de luxo por lojas do centro do Rio, a maioria situada na área limitada pelas ruas do Ouvidor, Uruguaiana, São José, do Rosário e dos Ourives. No comercio do Rio de Janeiro eram encontrados tanto o leque pronto como armações e cabos trabalhados. Era um hábito comum senhoras ou parentes talentosos pintarem as folhas como, como por exemplo, o leque baralho de madeira de faia pintado pela Princesa Isabel e oferecido à Condessa de Lages em 1870, que faz parte do acervo do Museu Imperial em Petrópolis, Rio de Janeiro. De Cantão, Nanquim ou Macau vinham os leques comemorativos da vida politica e dos casamentos do Império no Brasil, temas muito em voga na Europa desde o século XVIII. Os leques que assinalavam os casamentos reais ou acontecimentos importantes da vida politica eram finamente decorados tanto nas folhas quanto nas hastes, que podiam ser esculpidas, engastadas com pedras, pintadas ou douradas. Num levantamento preliminar foram encontrados vários desses leques nos acervos do Museu Imperial em Petrópolis, no Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro ou no Museu de Arte da Bahia em Salvador. Com o decréscimo das importações orientais e o aumento de mercadorias manufaturadas na Europa, a partir de 1840, o mercado brasileiro passou a comercializar leques espanhóis, italianos e, principalmente franceses (Teixeira Leite, 1994:194). Desrousseaux, Finot ou Natté eram comerciantes franceses estabelecidos na Rua do Ouvidor onde vendiam as ultimas modas parisienses. Os modelos europeus em termos de vestuário eram importados ou abertamente copiados, como fazia questão de ressaltar Nicolao Dehoul, que tinha comércio na Rua do Hospicio: Esta fabrica se distingue, sobretudo pela fineza dos artigos que confecciona, o bom gosto e as ultimas modas, visto receber por todos os vapores as modas as mais recentes de Paris,


tanto em grinaldas como em flôres, que trata de immediatamente imitar. (ALMANACK LAEMMERT, 1856:645)

Na Coleção JFN existe um leque comemorativo da Exposição Universal de Paris 1889 (Figura 1), em granadina amarela clara e acabamento de passamanaria, no centro está pintado em tempera o Pavilhão do Brasil. As hastes são de madeira dourada trabalhada com flores, escudo e um baixo relevo representando a Torre Eiffel, a argola é de metal arrematada por uma borla de seda amarela.

Fig. 1- Leque comemorativo da Exposição Universal de Paris, 1889. Foto Paula Bahiana.

O leque Bombom Siraudim é outro exemplo de leque de propaganda que faz parte da mesma coleção. Feito de papel litografado, a ilustração da folha representa uma cena de rua em Paris, com passantes envergando seus trajes de passeio e detalhes da arquitetura da cidade incluindo a loja Siraudim, uma casa de chá parisiense que existia em 1889 e estava localizada próximo ao local da Exposição Universal. O verso do leque é em tecido laranja e as hastes, de madeira lisa e argola de metal. Muito semelhante ao leque da Exposição Universal, tanto no tecido da folha quanto no acabamento em passamanaria com as varetas no mesmo formato, o leque de granadina verde água, pintado a tempera colorida é um exemplo de ‘chinoiserie’ tardia. A composição central é formada por uma paisagem onde num lago, dois pássaros pousam sobre um barco, à esquerda há uma cerca de madeira sobre a qual está pousado outro pássaro, à direita da composição existem mais dois sobre os ramos floridos e estilizados e ao fundo um caminho e uma torre com telhado cônico e duas janelas. As hastes são de madeira trabalhada com sulcos coloridos com decoração combinando com o tema da folha, argola de metal e borla de seda amarela. O leque, que possui uma caixa sem nenhuma marca é provavelmente francês e do mesmo período do anterior. Entre 1893 e 1898 acompanhando as mudanças no traje feminino o leque fica maior, o uso de renda aplicada sobre o tecido se torna mais comum, sendo o centro da folha decorado com pinturas representando pássaros ou figuras. Um exemplo desse período é o leque de granadina preta com aplicações de renda Chantilly da mesma cor, hastes de madeira trabalhada com entalhes coloridos e argola de metal. O tema central, pintado em tempera, representa pássaros e flores em arranjo assimétrico, exemplo da banalização dos temas rococós.


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O crescimento das camadas médias urbanas europeias, dispostas a consumir produtos de moda e usufruir de outras práticas de consumo antes restritas às camadas dominantes, contribuiu para o desenvolvimento da produção de peças de vestuário e acessórios, para a produção em série e mecanizada de bens de consumo. A produção de leques em larga escala na Europa contribuiu para o aperfeiçoamento nas máquinas de bordar e cortar as hastes, o que leva a um declino na qualidade da produção artesanal. É o caso do leque bordô, um trabalho vienense desse período, feito de madeira recoberta de couro, em cetim colado sobre papel com desenho contornando a forma das hastes de madeira forrada de couro, com penacho e argola de metal. Não existe nenhuma marca de fabricante e o leque foi identificado por comparação com outros exemplares encontrados no Palais Galliera em Paris, França e na Royal Collection do Castelo de Windsor, Reino Unido. Outro exemplo da produção em série é o leque baralho suíço composto por vinte e duas laminas de madeira vazada e pintadas a tempera. Cada uma das laminas representa uma figura feminina usando um traje típico, o escudo e o nome dos cantões suíços. De qualidade inferior tanto no acabamento quanto na ornamentação, esses exemplares eram feitos para agradar ao gosto e ao bolso de um publico maior (HART, 1998:101). O passeio para fins recreativos foi um hábito que se originou no meio aristocrático europeu do século XVIII, apenas praticado por uma elite na segunda metade do século XIX. Com o tempo, coube aos pequenos proprietários, habitantes de cidades médias ou moradores da capital empreender seu passeio ao campo no verão. Os que não possuíam propriedades rurais poderiam hospedar-se nos hotéis de cidades balneárias ou estações de águas, quando já havia a noção de ‘férias’ como uma mudança necessária ao estilo de vida urbano e industrial. Leques eram objetos de suvenir muito procurados nessas viagens, cujo destino mais comum era a Itália. O Brasil por sua vez, era o destino de muitos europeus mais aventureiros ou com vocação cientifica. Através do relato desses viajantes temos noticias dos hábitos de consumo e das praticas sociais, muitas vezes percebidas com extravagantes ou deslocadas, com relação ao padrão europeu. Em meados do século, o francês Ferdinand Denis relatou que na Bahia, no convento de Soledade, havia uma indústria de flores em ramos e guirlandas, feitas de penas de aves (tucanos, araras, periquitos, garças), desconhecida das modistas francesas (Silva: 1993:234). No Rio de Janeiro, entre 1844 e 1880 mais de meia centena de lojas ou fábricas situadas na Rua do Ouvidor ou em seu entorno fabricavam, comercializavam e exportavam flores de penas. A produção de flores de penas de Mlle. M. & E. Natté com loja na Rua do Ouvidor, 46, foi premiada em diversas Exposições Universais de Viena em 1873, Santiago em 1875, Filadélfia em 1976 e Rio de Janeiro em 1876. Rivalizando com o comerciante Barthel que oferecia “grande e variado sortimento de ramos e flôres de pennas, passarinhos empalhados, insectos encastoados em ouro e objectos de historia natural.” (ALMANACK LAEMMERT, 1879:909) Por essa época, a produção artesanal brasileira já era bem conhecida, como relata o escritor alemão de aventuras Friedrich Gerstäcker:


A principal Rua do Rio, pelo menos a que mostra as lojas mais brilhantes, a rua do Ouvidor, foi quase exclusivamente tomada por franceses, e, como consolo, pode-se ir a qualquer loja e falar o seu idioma... Nesta rua estão também as grandes lojas do Rio nas quais são preparadas e vendidas, no mais das vezes por jovens francesas, aquelas encantadoras flores de penas do Brasil. (SCHINDLER, 2001: 1094)

A moda do uso de penas como ornamento de penteados viveu seu apogeu durante o período rococó. Junto de fitas e flores artificiais, as penas foram um material apreciado ainda durante o século XIX, para acabamento de chapéus e toucados. O uso de animais mortos ou partes deles como ornamento tanto no traje, cabelo, chapéu quanto na decoração de interiores teve um grande desenvolvimento durante as ultimas três décadas do século XIX, e em muitos lugares, como a Nova Guiné, América Central ou América do Sul, houve uma intensificação da caça às aves para prover ao mercado europeu (Schindler, 2000:1090). Um vendedor londrino declarou nessa época ter recebido numa única carga 32.000 beija-flores, além de outros pássaros e partes deles (JOHNSTON, 2009:108). Embora houvesse vozes protestando contra a matança indiscriminada desses animais, a partir de 1880 a moda se intensificou. O comercio desse artesanato encantava aos europeus, satisfazendo seu gosto pelo exótico, com seu colorido e arranjos originais, despertando o interesse tanto da Imperatriz do Brasil, Amélia de Leuchtenberg (1812-73) quanto da princesa Tereza de Wittelsbach (1850-1925) que esteve no Brasil numa viagem de estudos em 1888, cujos acervos repletos de ventarolas, flores e fitas furta-cores de penas brasileiras, encontram-se no Museu de Etnologia de Munique (SCHINDLER, 2001: 1089-1108). A ventarola é formada de um lado por um arranjo de plumas brancas (provavelmente de garça) e marabus, no centro um beija-flor vermelho furta-cor (Chrysolampis mosquitus) e oito besouros vermelhos furta-cores, e de outro lado, um arranjo formado por uma rosa de penas sobre marabus (Figura 2). O cabo de madrepérola lavrado é finamente decorado, exemplo de artesanato de luxo carioca feito para exportação.

Fig. 2 - Ventarola de pena com rosa de penas de um lado e beija-flor e besouros empalhados do outro. Foto Paula Bahiana


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A caixa (Figura 3) perfeitamente preservada tem a assinatura do fabricante, em cartão forrado de papel verde com etiqueta onde se lê ‘Ao Beija-Flor’ Rua d’ Ouvidor, 89, Rio de Janeiro, estabelecimento comercial fundado em 1850 por Mme. Clemence, que passou às mãos de Domingos Ferreira Braga a partir de 1887. A direita está impresso “Flores finas das melhores casas de Paris” e à esquerda “Feathers, flowers, birds, insectes and Bresilian’s curiosites.” No centro escrito a caneta num pedaço de papel colado: “D. J. Ferrª Braga” e assinado pelo proprietário, Domingos José Ferreira Braga.

Fig. 3 - Detalhe da caixa da ventarola. Foto Paula Bahiana.

As caixas originais conservadas permitiram a identificação dos exemplares encontrados em acervos em todo o mundo (ROBERTS, 2005: 194 e JOHNSTON, 2009: 108-109), sendo comercializadas ainda hoje em feiras de antiguidades. As ventarolas brasileiras feitas de plumas ou pássaros empalhados, modelos largamente produzidos no Brasil e em especial no Rio de Janeiro entre 1850 e 1890, empregavam penas de pássaros nativos, mas também insetos ou cabos importados de outras regiões como a América Central ou mesmo o Oriente. Como anotou em seu diário de viagem a princesa Teresa de Wittelsbach, essa manufatura de penas oitocentista feita por não índios “deve remontar à indústria nacionalizada pelos índios brasileiros há séculos,” ou ainda, num sentido inverso, ter influenciado as composições da arte plumária nativa (Schinder, 2001: 1094). Conclusão

Comprados, talvez, por Eugenia aos 29 anos, durante uma viagem memorável à Europa, os leques da coleção JFN testemunham um turismo insipiente, a procedência de cada um deles servindo para traçarmos um percurso imaginário aos países visitados num passeio que se estendeu da França à Áustria e a Suíça. São como cartões postais ou fotografias, nos permite compor o quadro das práticas mundanas exemplificadas pela visita à Exposição Universal e à Casa de Chá ‘Siraudim’, em Paris. Essas peças evidenciam tanto práticas de consumo quanto o lugar que ocupavam, no Brasil, as frações mais altas das camadas médias urbanas, por homologia — no sentido empregado por Bourdieu (1979:134-135) – ao da pequena burguesia europeia consumidora de artigos manufaturados de baixa qualidade.


Único exemplar fabricado no Brasil, a ventarola, como todo ornamento de penas de pássaros tropicais, com seu delicado trabalho de artesanato, o colorido cambiante das plumagens e dos insetos semelhantes a rubis, evocava as terras distantes, maravilhosas, exóticas que povoavam o imaginário europeu (Davi-Weil, 1998). Acessível às mulheres cariocas de classe média, facilmente encontrada nas requintadas lojas da Rua do Ouvidor e seu entorno, ao ser exibida na capital francesa, a ventarola carioca se tornava signo do consumo ostentatório, ou seja, empregado para dar nas vistas, marcar posição, destacar-se (Veblen, 1979), pois notável exemplo de uma expertise reconhecida internacionalmente, um artesanato aparentemente pouco estudado. Deslocada do seu contexto nativo, seu uso representava também essa estilização da vida, ou seja, “o primado conferido à forma sobre a função, à maneira sobre a matéria” (BOURDIEU, 1979: VII), perpetrada por agentes sociais das camadas mais altas e aplicada como uma estratégia de distinção tende a conferir às escolhas mais elementares da vida comum um aspecto estético (seja em matéria de comida, de vestuário ou de decoração). Incluídos entre os itens da rica coleção, os leques antigos, guardados, quem sabe, pela recordação que suscitavam, transitam entre as estratégias de publicidade e de consumo e as obras de arte decorativa. Mudos testemunhos de práticas artesanais, redes de comercio ultramarinas e hábitos mundanos e cosmopolitas dos oitocentos, leques que se tornaram peças de museu, museu universitário, ambiente mais que propicio para que possam contribuir singelamente, uma vez desvendados, para uma escrita da história da indumentária no Brasil. Contacto com autora Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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Convento de Nossa Senhora dos Remédios – Reutilização Museológica de um Património Conventual Convent of Our Lady of Remedies – Reuse of a Heritage Conventual Museology

Maria Filomena Mourato Monteiro Câmara Municipal de Évora – Divisão do Centro Histórico, Património, Cultura e Turismo.

Maria do Céu Simões Tereno Universidade de Évora – Departamento de Arquitetura.

Resumo: Pretende-se, neste artigo, fazer a abordagem de um conjunto conventual que passou por vicissitudes várias desde a sua desocupação pelos frades carmelitas, exigida pela extinção das ordens religiosas e a sua reutilização atual que contribui para que este património continue vivo e em condições de ser transmitido às gerações vindouras, nas melhores condições. Palavras-chave: Convento dos Remédios. Musealização. Reutilização Espacial.

Abstract: The purpose of this article is to reflect on the context of the transformation of disabled Textile Company Bernardo Mascarenhas, Juiz de Fora, in a Cultural Space. We intent to observe this trajectory through the artists from Bracher’s family and intellectuals of the city in the movement “Mascarenhas my love” for the preservation of this architectural complex, whose space today, hosts several artistic and cultural manifestations from the city and region. Keywords: Convent of Our Lady of Remedies. Musealization. Spatial reuse. Introdução

Os carmelitas descalços instalaram-se no séc. XVI em Évora1, em virtude da remodelação da Ordem do Carmo2, fora da cerca amuralhada fernandina, em local fronteiro à torre de menagem3 junto às Portas de Alconchel4. O antigo convento de Nossa Senhora dos Remédios, local atualmente designado por Convento dos Remédios, foi casa religiosa fundada por iniciativa do então bispo de Évora, D. Teotónio de Bragança, convento masculino da Ordem dos Irmãos Descalços de Nossa Senhora do Monte do Carmo (Carmelitas) - Província de São Filipe. A sagração da igreja cenobita remonta ao ano de 1614, data essa aliás inscrita no florão existente na nave central desse templo5. Este novo complexo cenobita, integrando a então já reformada Ordem dos Carmelitas, regia-se por regra austera que obrigava a pobreza e despojamento rigorosos. O carisma contemplativo e apostólico das comunidades de Carmelitas Descalços inspirava-se na ação de Jesus “ora orando isolado no deserto, ora em piedosa intervenção quando no meio da multidão”. Note-se que o isolamento e a fraternidade inerentes a este modo de vida requeriam necessariamente comunidades


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compostas por um número reduzido de frades, vivendo com algum isolamento, mas também na proximidade de meio urbano. Durante a vida religiosa, esta casa eborense, chegou contudo a albergar comunidades compostas por um número elevado de frades e conversos os quais, considerando a génese da Ordem a que estavam sujeitos, exerceram inúmeras vezes uma influência benéfica e direta sobre a comunidade civil local6. A nível de evangelização de novos territórios a ação dos frades deste convento foi igualmente marcante sendo exemplo incontornável a fundação, em Salvador da Bahia no Brasil, do cenóbio de Santa Teresinha, construção muito idêntica à eborense, local da casa-mãe dos seus fundadores7. 1. Localização

Situando-se no exterior da muralha medieva, em área imediatamente anexa à porta de Alconchel, à época principal ligação da cidade com o exterior, era local privilegiado de circulação de pessoas e bens (Figs. 1 e 2). A abundância de água e os férteis terrenos que caracterizavam a zona garantiam uma eficaz higienização dos espaços habitados pelos frades8 assim como um abastecimento com víveres da comunidade religiosa (Fig. 3). Sem condicionamentos topográficos ou hidrográficos, o convento foi projetado e construído de raiz segundo as normas inerentes ao desenrolar da vida “regular” numa casa religiosa masculina. No entanto já assumiria contudo o novo conjunto edificado um paralelismo de implantação relativamente à torre defensiva da porta medieva de Alconchel situada muito próxima9. 2. Projeto

A igreja apresenta orientação Sudeste/Noroeste desenvolvendo-se o claustro para Sudoeste, rodeando-se este com os compartimentos necessários à vida da comunidade religiosa aí residente. A Sudeste do claustro localizava-se a ala dos frades, onde se situava a sala do Capítulo, refeitório e escada “regular” de acesso ao dormitório, este subdividido em celas10. A ala Sudoeste do claustro integrava o indispensável calefatório11, anexo à sala dos frades, refeitório e cozinha. A Noroeste, a ala da leitura, correspondente à galeria claustral que ligava diretamente com a igreja. A ala dos “moços”, situada a Noroeste do claustro, onde se localizava portaria, sala de “aula”, hospedaria, enfermaria, refeitório, escada de acesso ao dormitório e dependências para armazenamento de víveres, como por exemplo certamente os cereais, vinho e azeite. No tardoz do altar-mor da igreja, e no prolongamento da ala claustral dos frades, situa-se a sacristia assim como capela mortuária de um dos benfeitores da casa, compartimento este ainda conservado na íntegra. A cerca conventual envolvia o conjunto edificado pelos lados Sudoeste e Sueste possuindo as ligações com o espaço público, voltadas a Noroeste, local por onde passava o principal eixo de acesso à cidade amuralhada. Entre


1614 e 1833 este conjunto cenobita desempenhou ininterruptamente a sua função de casa religiosa masculina. Durante estes mais de dois séculos o edifício sofreu alterações de vulto de acordo com as necessidades da comunidade que à data aí se albergava, contudo a austeridade inerente aos ideais da Ordem está patente na linearidade e rigor de formas assim como simplicidade de materiais. Uma das diversas alterações que foram realizadas durante esse período, e resultante da necessidade de dar resposta a novos programas ocupacionais, encontra-se documentada através de planta referente ao piso superior do complexo edificado, então existente. A elaboração de tal projeto teve como objetivo a construção de um novo dormitório no referido piso, deduzindo-se daí ter passado a existir um maior número de frades nesta comunidade (Fig. 3)12. A planta integra legendagens, por ela dispersas, permitindo uma mais fácil atual correspondência e identificação dos espaços13 (Fig. 4): Vão da Igreja; vão do saguão do alpendre; oratório sobre a portaria; vão do pátio dos moços; vão da hospedaria; vão do claustro, cazas para as fructas; caza da Aula; telhado do dormitório detraz da capela-mor e da Livraria.

2. Remodelação

Atualmente, transcorridos 179 anos sobre a sua desocupação pelos frades carmelitas, e após profundas obras de remodelação promovidas pela Câmara Municipal de Évora durante as últimas três décadas, as mais significativas da autoria do arquiteto Vítor Figueiredo (Fig. 5), o espaço da igreja é utilizado regularmente para a realização de recitais e aulas diversas de música clássica e canto (Figs. 6 e 7), na antiga ala dos frades a capela mortuária é ocupada por gabinete, a sacristia é local de aulas regulares de música, a sala do capítulo foi transformada em oficina de conservação e restauro mantendo o refeitório as anteriores funções agora com diferentes utentes14. As alas Sudoeste e dos “moços” estão totalmente reestruturadas sendo hoje ampla galeria de exposições. Das anteriores funcionalidades restam a portaria, que se mantém, e parte do antigo pátio dos “moços”, hoje mais conhecido por pátio das romãzeiras (Fig. 8 e 9). O andar superior antigamente ocupado essencialmente pelas celas e áreas afins, foi totalmente remodelado aí existindo hoje amplas naves destinadas a exposições e actividades complementares, como teatro, cinema, palestras e espaços de desenho e leitura (Figs. 10 e 11). Quanto à primitiva sala da “aula” do convento permaneceu em parte, tanto a A ampla cerca, também cedida pela Fazenda Pública à Câmara Municipal de Évora em 1839, foi no ano seguinte reutilizada como cemitério, tendo sido progressivamente ampliada com terrenos circundantes. Quanto aos serviços necessários à sua manutenção encontram-se igualmente instalados no atual conjunto edificado. Todo o conjunto, embora subdividido funcional e institucionalmente, continua contudo a constituir-se como um conjunto coeso (Figs. 15 e 16).


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Considerações Finais

Considerando que, sempre que possível, as características de um espaço deverão ser preservadas, independentemente dos programas demasiadas vezes incompatíveis com as situações à data existentes, tornam-se essenciais estudos primordiais para a elaboração de programas sensatos e respeitadores do património que ainda subsiste e que é imprescindível preservar adequadamente. No que respeita à utilização dos espaços estes estão organizados numa zona ocupada por dois centros interpretativos “Centro interpretativo sobre o Megalitismo” e “Centro interpretativo sobre Évora Romana” que assumem um carácter permanente e um espaço de maiores dimensões no piso superior do complexo conventual onde se realizam exposições de carácter temporário. Neste espaço ocorreram algumas exposições de que se salientam: “ Évora desaparecida”, “À descoberta da sombra”, “Vinha das Caliças, uma necrópole da Idade do Ferro”, Michel Giacometti – 80 anos 80 imagens”, “Máscaras”, “Aquedutos de Portugal” (Figs. 17 e 18), “Afetos” (Figs. 19 e 20) e “Convento de Nossa Senhora dos Remédios-Évora 2012-2013”(Figs. 21 e 22). No âmbito destas exposições têm sido organizados Ciclos de conferências “Água e Património”, “Religião e Património” e “Convento de Nossa Senhora dos Remédios e a Ordem do Carmo em Portugal e no Brasil”15. Integrando ainda estes eventos foram realizados concursos de fotografias cujo público-alvo eram estudantes e conferencistas inscritos neste ciclo (Fig. 23, 24 e 25). Criaram-se também sites respeitantes a cada exposição, ciclo de conferências e concursos de fotografias.16Relacionado com este convento foi criada em simultâneo com a Torre de Alconchel foi organizada A Rota das Torres que visa dar a conhecer algumas das torres de génese civil, religiosa e militar da cidade de Évora17. Como área de apoio têm sido organizadas na cafetaria do convento, exposições temporárias de fotografia, pintura e escultura. Este espaço tem um importante contributo pela utilização de alguns dos espaços do convento serem ocupados pela “Eborae Musica” – associação particular sem fins lucrativos visa o estudo e divulgação da música da Sé de Évora. Igualmente o Conservatório Regional de Música de Évora se situa nestes espaços, dinamizando um significativo número de estudantes. A utilização deste espaço com finalidades relacionadas com as artes, nas suas vertentes relacionadas com a música a pintura, escultura a organização de exposições e eventos a elas associados tais como ciclos de conferências visitas guiadas e concursos de fotografias, contribuem de modo relevante para a boa utilização destes espaços, concorrendo para a sua manutenção continua permitindo a transmissão deste conjunto patrimonial às gerações vindouras em boas condições de conservação18.


Siglas

A.F. – Arquivo Fotográfico. C.M.E. – Câmara Municipal de Évora. N.D. – Núcleo de Documentação. SPPC – Sociedade para a Preservação do Património Construído UE – Universidade de Évora Contactar a autora: fmonteiro@cm-evora.pt Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

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Notas · 1 A instalação da Ordem em Évora deve-se a Frei Balthazar Limpo, em 1531. Padre Francisco da Fonseca, Évora Gloriosa, Oficina Komarekiana, Roma, 1728, p. 378 · 2 Padre Francisco da Fonseca, Évora Gloriosa, Oficina Komarekiana, Roma, 1728, p. 379. Refere este Padre que o Arcebispo D. Teotónio de Bragança conheceu pessoalmente S. Teresa de Ávila com quem manteve correspondência, viu confirmada pela Sé apostólica a Reforma da religião carmelita, em 1562, ofereceu ao Arcebispo a possibilidade da fundação de dois conventos na cidade de Évora, um feminino e outro masculino. No entanto, após a concessão deste pedido em 1579, o arcebispo entendeu utilizar os meios disponíveis na fábrica da Cartuxa. Apenas em 1594 os religiosos entraram na posse da Ermida de Nossa Senhora dos Remédios, localizada na Rua do Raimundo. Ver ainda Barata, António Francisco, Évora Antiga – N otícias recolhidas com afanosa dilligencia em favor dos asylos de Infância desvalida e Ramalho- Barahona, Minerva Comercial, 1909, p. 40. · 3 Padre Francisco da Fonseca descreve-o em Évora Gloriosa como estando inserido num local aprazível e alegre, e a igreja magnífica, e o edifício:” tão devoto, como asseado causando singular devoção, o silêncio, e a modéstia, que se vive no recinto destes claustros”. P. 378 · 4 Espanca, Túlio, Évora – Arte e História, Câmara Municipal de Évora, 1987, p. 75.


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· 5 Tal fundação não foi contudo pacífica por parte da comunidade eborense de Carmelitas que habitara até então pequeno e humilde conjunto edificado situado ao fundo da Rua do Raimundo, em Évora. O novo local, bem próximo do primitivo, tinha a desvantagem da notoriedade do promotor da construção e de se situar no exterior do núcleo urbano amuralhado. O facto de, à época, o trono de Portugal estar ocupado por monarca espanhol representava certamente uma instabilidade que poderia ter, embora em parte, contribuído para as várias recusas dessa comunidade de religiosos, em se mudar para o novo local. A sua instalação no referido espaço exterior às muralhas foi conturbada, e só concretizada através de fortes pressões, quer da Igreja, quer da respectiva Ordem a que pertenciam. No ano de 1606, contudo a comunidade habitava já as novas dependências, que lhe eram destinadas, e que se haviam concluído. Quanto à igreja do convento foi sagrada oito anos após esta forçada mudança dos frades. Cento e treze

de um Património Conventual.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 311-317.

Monteiro, Maria Filomena Mourato (2013) “Convento de Nossa Senhora dos Remédios – Reutilização Museológica

anos após a instalação desses religiosos é projetada, e aprovada pela Ordem, a planta que serviu de base ao presente estudo. · 6 O grande número de fragmentos de “ossos de santos” integrados em conjuntos de relicários de dimensões assinaláveis, garantia uma devoção ao local e uma afluência regular ao convento por parte da população civil. A prática da caridade, por parte dos frades, cativava por sua vez mais eficazmente as camadas mais desfavorecidas da população. Contudo constituem ainda hoje peças singulares os conjuntos de relicários situados nos altares de duas das capelas laterais da igreja, assim como na magnífica sacristia. · 7 Aí o complexo cenobita localizou-se sobranceiro ao mar, e fora do núcleo urbano amuralhado, embora muito próximo deste. As semelhanças entre as fachadas das igrejas e dos claustros destes dois conventos masculinos são notórias, embora em locais tão distanciados entre si. · 8 A cozinha, lavabo e latrina eram zonas abastecidas por água proveniente da cisterna, atualmente ainda existente no claustro, assim como de nascente situada próxima, e cuja água era canalizada até ao convento sobre arcaria. Atualmente a área continua a ser bastante abundante em água, a nível do subsolo. · 9 Nesta data já era permitido a igrejas e ermidas possuírem orientação diferenciada da Nascente/Poente sempre que tal fosse mais favorável à implantação e desenvolvimento posterior do conjunto a edificar, ou devido ao condicionamento urbano à época já acentuado no interior dos núcleos urbanos. · 10 As celas eram divididas por frágeis paredes em tabique, quase em ruínas quando da elaboração do projecto de remodelação de 1978. · 11 Os Invernos rigorosos, embora secos, assim como a idade avançada de alguns dos frades tornavam tal compartimento essencial, não só para um maior conforto da comunidade cenobita, mas também, para uma melhor saúde desta. Não esqueçamos contudo também que à época o aquecimento, assim como a confeção de alimentos se faziam através do fogo que, para uma maior segurança, era limitada a sua utilização a compartimentos específicos: calefatório e cozinha. No projecto de 1719, para a cela maior então já existente, foi proposta a construção uma chaminé (designada a cela com a letra E) garantindo assim um conforto elevado ao espaço. · 12 A legendagem que acompanha a referida planta é explícita relativamente, quer aos compartimentos já existentes quer aos propostos para esse piso. O teor do texto é o seguinte, agora transcrito em caligrafia atualizada: “Planta alta para o dormitório que se determina fazer no Convento de Carmelitas Descalços de Nossa Senhora dos Remédios de Évora Cidade, a qual planta mostra todo o Convento que caminha ao nível da caza que já está feita e serve há muitos anos. – Fr. Pedro da Conceição Carmelita Descalço.” “Letra A – Arco que se há de fazer à porta dos moços, junto da Hospedaria que por cima dela vai à escada que sobe ao quarto.


Letra B – Entrada da escada da hospedaria que já está feita. Letra C – Patim donde está a porta da hospedaria e começo da escada nova que vai por cima do arco nomeado. Letra D – Porta do cimo da escada que entra na primeira cela. Letra E – Cela maior que as outras, e nela se fará uma chaminé. Letra F – Telhado da varanda. Letra G – Escada regral que desce ao quarto debaixo. Letra H – Escada da Aula que já está feita. Letra I – Escada da Tribuna. Letra L – Escada que desce ao De Profundis do Coro, que se fará por uma cazinha que hoje está no dito De Profundis. Letra M – Telhado De Profundis do Coro, e também riscado vai o telhado do claustro; porém ainda fica por baixo das janelas do quarto de baixo que já está feito. Tudo o mais se nomeia em seu lugar. O Número 2 corresponde às celas; O Número 3 é a porta de serventia para o telhado da capela-mor.” · 13 O deferimento do proposto na planta em questão consta igualmente na peça, assim como o nome do responsável por tal ato decisório: “Aprovada com consentimento dos quatros padres ministros. Carnide, 9 de Fevereiro de 1719. Fr. António de Santo Eliseu, Comissário geral.” · 14 Todo o pessoal que trabalha neste antigo espaço conventual, hoje na íntegra propriedade do município dispõe deste compartimento para refeições. Concursos de fotografias com os temas Água e Património, Religião e Património e Santos e Pecadores. · 15 Ciclo de conferências Água e Património, Religião e Património e Convento de Nossa Senhora dos Remédios e a Ordem do Carmo em Portugal e no Brasil. · 16 Concursos de fotografias com os temas Água e Património, Religião e Património e Santos e Pecadores. Os endereços dos sites referidos são: http://www2.cm-evora.pt/conventoremedios/; http://www2.cm-evora.pt/AquedutosdePortugal/; http://www2.cm-evora.pt/religiaoepatrimonio/ · 17 http://www.localvisao.tv/index.php/alentejo/997-rota-das-torres · 18 De referir que este conjunto de iniciativas recebeu o prémio da Associação Portuguesa de Museologia (APOM) 2012 – Distinguiu o Convento dos Remédios da C:M:E: na categoria de melhor trabalho de Museologia com uma menção honrosa.


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As Exposições Universais e seu impacto museológico: o caso da Exposição do Centenário Farroupilha, Brasil

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The Universal Exhibitions and its museological impact: the case of the Exposição do Centenário Farroupilha, Brazil

Marlise Maria Giovanaz FLUP/Universidade do Porto

Farroupilha, Brasil.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 318-329.

Giovanaz, Marlise Maria (2013) “As Exposições Universais e seu impacto museológico: o caso da Exposição do Centenário

DCI/FABICO/ Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo: O texto aqui apresentado reflete sobre as Exposições Universais e os Museus, apresentando um debate teórico que possa sustentar esta discussão. Relaciona a História Cultural e a Museologia. Enfoca a Exposição do Centenário Farroupilha como um momento produtor de representações e de imaginários sociais no Rio Grande do Sul, Brasil, no decorrer da década de 30 do século XX. Palavras-chave: Museologia. Exposições universais. Memória social.

Abstract: The text presented here reflects on the Universal Exhibitions and Museums, presenting a theoretical debate that can sustain this discussion. Relates Cultural History and Museology. Focuses on the Exposition of Centenário Farroupilha as a period that produced representations and social imaginaries in Rio Grande do Sul, Brazil, during the 30’s of the twentieth century Keywords: Museology. Universal exhibitions. Social memory. Introdução

O texto que se apresenta é parte do projeto em desenvolvimento junto ao Doutoramento em Museologia da Universidade do Porto no qual é proposta a observação de dois eventos expositivos de caráter internacional, a Exposição do Centenário Farroupilha em Porto Alegre, Brasil (1935) e a Exposição do Mundo Português ocorrida em 1940, na cidade de Lisboa, a partir das imagens e representações criadas a respeito delas e também elaboradas e apropriadas pelos grupos que habitavam estes espaços urbanos. Os dois casos representaram exposições de caráter internacional que tinham claramente a intenção de dar a ver, aos visitantes locais e estrangeiros, a pujança e o desenvolvimento vivido e prometido por governos autoritários em voga nos dois casos, e que procuravam estabelecer narrativas sobre o passado, o presente e o futuro, que estivessem de acordo com suas políticas. Fenômeno típico do século XIX, as Exposições Universais tornaram-se modelo quanto à forma de apresentar a modernidade, o desenvolvimento e o progresso do mundo capitalista, sendo um momento muito fértil na abordagem dos imaginários sociais. Essas exposições, ocorridas em geral na Europa e Estados Unidos da América


se constituíam em encontros de caráter universal, onde eram expostos os progressos da ciência e da técnica, ao lado de locais de diversão, de novidades e de trocas comerciais. A Exposição do Centenário Farroupilha, ocorrida em Porto Alegre, Brasil procura apresentar o estado mais meridional da nação a partir de novos parâmetros. Para o caso do Rio Grande do Sul, a década de 30 do século XX significou um novo e importante momento histórico. O país buscava o desenvolvimento industrial e tecnológico e o Rio Grande do Sul fazia todos os esforços para participar dessa frente. O ano de 1935 marcava para o Estado, o Centenário da Revolução Farroupilha, principal fato político e militar regional, que era a celebração de sua maior epopeia. Com a duração de cinco meses, a Exposição do Centenário Farroupilha foi pensada e construída de forma a construir uma nova imagem do estado, procurando forjar uma nova noção de património e de herança cultural. A questão física da exposição foi também idealizada de forma a criar um ambiente moderno, iluminado, voltado também ao futuro e a monumentalidade. Este trabalho é um estudo exploratório, que procura identificar no evento da Exposição do Centenário Farroupilha um momento especial na produção de sentido sobre o passado e sobre o presente do Estado Rio Grande do Sul e da cidade de Porto Alegre no ano de 1935. A coleta de dados inclui pesquisas bibliográfica, iconográfica e documental, através da análise e comparação da produção bibliográfica já produzidos a respeito do tema das exposições universais, além da abordagem museológica do fenómeno da exposição como produtora de representações sobre o presente e sobre o passado. Além disso, será realizada a análise e interpretação da documentação oficial, disponível nas instituições de memória de Porto Alegre e de fontes jornalísticas utilizando a metodologia da análise de conteúdo. 1. O Imaginário e a Representação nos Museus e Exposições Universais

Todas as sociedades elaboram para si sistemas de representação coletiva, formados por imagens ou ideias, que são referências para a vida e para a compreensão de mundo. O Imaginário Social legitima a ordem vigente, orienta comportamentos, avaliza valores culturais e sociais, estabelece metas e funda mitos. Durante o desenrolar do século XX duas representações coletivas marcaram o ideário urbano ocidental, a busca da modernidade e o modelo industrial. As Exposições Universais foram os grandes momentos de celebração destas duas representações de presente e de futuro, ao apresentar às sociedades ocidentais o modelo económico capitalista e ao apregoar o desenvolvimento e o progresso. Tanto a representação da modernidade como a de desenvolvimento industrial tem foco fundamental no espaço urbano, são pois as cidades o palco onde se opera o desenvolvimento. O uso do termo imaginário como norteador da concetualização é feito segundo pensamento desenvolvido por Baczko (1991), que o designa como uma faculdade produtora de ilusões, sonhos e símbolos, que compõe o capital pensado


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de um grupo. A reflexão deste autor nos possibilita pensar o imaginário social como um sistema ou conjunto de símbolos de representação coletiva que se ancora em imagens, ideias, discursos, relações, e que têm ressonância e significado dentro do grupo onde se estruturou. Desde o final do século XVIII as cidades ocidentais têm realizado esforços para construir valores culturais, com o objetivo de construir uma identidade visual e cultural própria e atrair visitantes (DICKS, 2003). Estabelecer uma identidade visual, segundo Dicks, permite tornar a cidade legível ao visitante, transformando-as em espaços de exibição da cultura. Ao contrário, as cidades onde a identidade visual não é evidente, confundem o visitante e pode-se mesmo dizer, repelem-no, já que não serão percebidas como um lugar para ir. Esta forma de apresentar-se das cidades desde a modernidade acabou por marcar e caracterizar a forma de exposição nos Museus, que deixaram de ser meros expositores de objetos, e passaram também a preocupar-se em construir identidade visual e cultural para si mesmos, passando a expor narrativas e formas de vida e não somente objetos. Os objetos, artefactos, coleções serão apresentados então contemporaneamente a partir de sua relação com os seres humanos. As exposições modernas procuraram trazer o passado ao presente, ao instaurar uma nova noção de espaço e de tempo, ao encurtar distâncias culturais e construir novas representações sobre presente e passado, cultura e natureza, identidade e alteridade, urbano e rural. Assim como as cidades que possuem uma identidade cultural facilmente legível, os museus atrairão visitantes na medida em que alcançarem o objetivo de transmitir de forma rápida e eficiente sua mensagem. A ideia de representação, utilizada neste trabalho segue os estudos de Chartier (1991), como um universo simbólico, de textos, imagens, bem como das diferentes formas de apresentar a cidade e seus eventos, que aspiram à universalidade e o consenso. Porém são sempre determinadas por grupos que as oficializam como gerais e procuram impor sua forma de interpretar os objetos e o tempo. A relação estabelecida entre a representação (proposta por Chartier como a relação entre uma imagem presente e um objeto ausente) projetada da cidade e a prática quotidiana da vida nesse mesmo lugar, permite identificar e classificar pensamentos construídos sobre a vida na urbe e também sobre as narrativas exibidas em museus e exposições em geral. Ao construir ou projetar um evento que procura reconduzir o passado e o presente da cidade, os técnicos especialistas expõem e objetivam um pensamento sobre a realidade do contexto, classificando o ambiente urbano em zonas mais ou menos valorizadas que outras, espaços para embelezar e qualificar e espaços para desaparecer ou reconstruir. Ao realizar uma exposição os museólogos ou especialistas também apresentam uma narrativa que acaba por se impor ao fato apresentado. Se refletirmos sobre a dimensão do poder de convencimento que as imagens alcançaram nos séculos XIX e XX, será preciso repensar o papel que os museus e as exposições ocuparam neste período, já que ao apresentar narrativas associadas a objetos, estas passaram a ter um poder de representação multiplicado. O pensamento e a ação revelam-se então como dois passos que podemos relacionar com o conceito de representação. A imagem desenhada e projetada de uma


cidade sob o controle do pensamento racional, ou seja, o discurso, o projeto, o desenho, a exposição, são as pistas iniciais a serem buscadas para mapear essa imagem construída sobre a cidade. O segundo passo, ou seja, a obra em si, pode ser percebida como a representação objetivada de um pensamento que se transforma em prática, em experiência. Essa relação entre representação e prática demonstra-nos o pensamento técnico sobre a cidade e seus eventos em toda a sua complexidade, indica-nos o projeto de desenvolvimento defendido e realizado pelo grupo e pelos políticos que os apoiaram, pois permite a análise das obras que preparam a metrópole futura que está por surgir. Por outro lado denunciam obras que destroem imensos espaços já construídos, demonstrando então representações sobre o passado e sobre a história, o que poderia ser um registo do passado passa a ser qualificado como algo que mereça permanecer ou então é simplesmente destruído. A ideia da exposição da cultura não é uma ideia nova, foi no século XIX que ela se consolidou. Antes disso as exposições não se caracterizavam por atrair grandes públicos, ao contrário, eram produzidas para um pequeno grupo de elite, que possuía os instrumentos culturais para consumir arte e cultura. Foi no século XIX, no contexto do imperialismo europeu, do fortalecimento da economia capitalista, do desenvolvimento da modernidade como cultura, do surgimento das grandes cidades, da efetivação da técnica através do trem, da fotografia e da energia motriz, que surgiram as grandes exposições. Conforme Dicks (2003:5), a emergência do conceito de cidadania ocorrido no período foi fundamental para estabelecer a noção de património e de herança cultural, pois o estabelecimento do Estado Nação moderno, exigiu que as monarquias construíssem um discurso inclusivo, onde a população se sentisse participante da cultura, da história e da identidade desde novo estado instaurado. As grandes exposições do século XIX serviram então como um instrumento de mobilização de massas, de construção de identidade e de gosto, de propaganda do nacionalismo e da cultura. Estas exposições interferiram também no traçado urbano das cidades onde foram realizadas, resultando em um reordenamento que apresentava a cidade como um espaço de ordem cultural e política. A distinção e o benefício inicial das exposições eram para a História Natural, uma ciência tipicamente moderna, vinculada ao conhecimento e à ciência, e finalmente ampliando a função de salvaguarda dos espaços museológicos (gabinetes de curiosidades) e dilatando a ideia de exposição da cultura. Possivelmente esta instituição tenha sido a primeira a expor e distinguir objetos que aparentavam ainda ser novos e desconhecidos para a maioria dos espetadores. Ao viver o ápice iluminista onde os ideais de razão e de progresso ocupavam postos estruturais na nova ordem a ser estabelecida, a ciência ocupava um lugar estratégico, Funari e Carvalho (2009:13), chegam a afirmar que as ciências e tecnologias foram transformadas em heroínas da contemporaneidade. As Exposições Universais também podem ser vistas segundo esta mesma perspetiva, elas inserem-se em uma tentativa de redimensionar e redesenhar as cidades, não somente nas suas ruas e construções, mas também na forma como eram vistas pelos seus moradores e visitantes. Esses eventos apresentaram-se como armas e argumentos


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da modernidade e do sistema capitalista ao demonstrar, como vitrinas, as benfeitorias que o capitalismo ofereceria em um futuro bem próximo. Como afirma Carre (1989:7), as Exposições Universais não significavam somente a apresentação de novas técnicas ou laboratórios de inovação; elas são fundamentalmente representação. Além do fato de mostrar, importa a tais contextos históricos demonstrar e ensinar. Podemos pensar então que esses eventos assumem um caráter fetichista, ao apresentarem mercadorias e construírem desejos de consumo, mas também um caráter didático/pedagógico, ao transmitirem os valores da sociedade capitalista burguesa. Segundo Barbuy, os museus e as exposições universais procuraram, no decorrer do século XIX, ‘romantizar o passado, mas também preocuparam-se em celebrar o tempo presente’ (BARBUY, 1999:57). Estes eventos podem ser interpretados portanto como momentos produtores de representação e de imaginário, reinterpretando e apresentando novas versões paras as narrativas sobre o passado, o presente e o futuro. Os Museus, durante o século XIX irão dar conta de um evento contemporâneo, ou seja, típico da modernidade instalada na Europa Ocidental, eles serão também palco para a representação dos valores modernos, como o novo, o urbano, a diversão, o consumo e o exótico. As Exposições Universais construirão esta ponte, entre o Museu e o público, sendo os primeiros eventos relacionados a este tipo de exposição foram as mostras nacionais de indústria, sendo que a primeira foi a Exposição Nacional da Indústria francesa, ocorrida em 1798, que tinha para Benjamin (2007:35) o objetivo de “divertir as classes trabalhadoras, tornando-se uma festa de emancipação para elas”. A ciência, a modernidade e a história são apresentadas nas exposições como narrativas totais, possivelmente pela primeira vez na história ocidental. A função museológica da comunicação mostra-se nas Exposições Universais do século XIX, em seus objetivos de informar, explicar, inventariar informações sobre o passado, o presente e o futuro da sociedade capitalista. Apresentam uma visão enciclopédica de mundo, procurando catalogar segundo critérios científicos e positivistas, todo o conhecimento humano. O visitante usufruiria de um verdadeiro catálogo do conhecimento humano, através das informações apresentadas sobre os objetos expostos. Segundo Pesavento (1997:50) as Exposições Universais construíram-se como espaços de lazer, e ao expor mercadorias e objetos referenciais das sociedades, arrastaram multidões a lugares artificialmente criados, representando eventos de curta duração, mas de largo brilho. Grandes construções — e neste caso é difícil fugir ao exemplo da Torre Eiffel em Paris — feitas para não durar, para servir a um espetáculo, onde o visitante contemplava as maravilhas da indústria e da civilização. Estes eventos, mesmo não sendo promovidos por Museus, acabaram por influenciar a prática museológica, fundamentalmente na forma destes apresentarem suas coleções. A definição do conceito de exposição como um meio de comunicação foi resultado de um processo evolutivo e interativo entre os dois personagens fundamentais desse processo: os objetos e o público (BLANCO, 1999). Porém a exposição é algo maior do que a mostra de objetos, é o lugar onde os objetos recebem valores específicos que os categorizam a serem expostos, onde uma intencionalidade é construída a


partir deles. A interpretação do valor dos objetos é contextual, sempre relativa a uma sociedade que se representa a partir desses mesmos bens culturais. Originalmente os conceitos de exposição e de museu estão imbricados, porém o conceito de ambos atualmente é muito diverso de sua significação original. A exposição dos novos tempos é caracteristicamente um espaço público, um espaço de comunicação com a sociedade. Por essa sua feição, as exposições, e também os museus, têm recentemente agregado a função de participar do processo de construção simbólico e da identidade das sociedades (GONÇALVES, 2004). Os objetos são apresentados para serem reconhecidos como um universo dotado de sentido para o público, ao valorizarem objetos, atribuir-lhes um sentido patrimonial, dotá-los de sentido e de consenso. Enfim, elas dão visibilidade aos objetos e também aos sujeitos que os observam. Foi somente no século XIX, e claramente as exposições universais desempenharam papel importante nesta transição, que os museus passaram a se dedicar a difusão cultural, científica e nacionalista. O museu se transformou no lugar onde é possível realizar uma experiência estética ao observar o objeto real. Segundo Hooper-Greenhill (2001:2) na modernidade os museus adotaram uma política especial, voltada ao visitante, já se aproximando de suas funções educativas, ao objetivar transmitir informações sobre a história da arte ou sobre o passado. Segundo a autora isto acaba por não deixar de lado a característica conservadora dos museus, já que aquele que ao visitante continua sendo designada uma função passiva, de espetador, e a instituição mantém todo o poder e a autoridade da fala e da representação. Assim como Huyssen (2002) identifica ao final do século XX a emergência da memória como um fenómeno cultural, podemos situar nesta mesma discussão a explosão de museus ocorrida simultaneamente. Após um período em que foram bombardeados de críticas pelo seu conservadorismo e hermetismo, fundamentalmente nos anos 60 e 70, o campo da Museologia passa por um processo de reinvenção de seu papel junto à sociedade. Como afirma Semedo (2010:293), esta é ainda uma reconstrução em curso, resultado não somente dos processos internos das instituições museológicas, mas também das pressões externas, da sociedade que espera dos museus muito mais do que a guarda das coleções e exposições, espera também que os museus sejam instituições atuantes e participativas, que ofereçam diferentes serviços e atividades aos seus públicos. Obviamente isto sem desobrigar os museus de suas atividades correntes, ao contrário, podemos dizer ocorreu uma explosão de museus seguida de uma grande ampliação de suas atividades e possibilidades. 1.1 A Exposição do Centenário Farroupilha

O evento que marcou a história regional do Rio Grande do Sul já mereceu diversos estudos relevantes, trabalhos académicos já foram realizados tendo como objeto este evento, porém consideramos que ainda há muito a explorar quanto ao enfoque e ao uso da documentação que se encontra disponível para analisar este fato. A pretensão deste trabalho é observar a Exposição do Centenário Farroupilha sob o enfoque teó-


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rico da Museologia em um cruzamento com a História Cultural. Através de pesquisa bibliográfica, iconográfica e documental, tem-se procurado identificar os sujeitos políticos e intelectuais envolvidos no evento e interpretar esse fato histórico e museológico como uma atividade fundadora de práticas de conservação e de exposição do passado no Estado do Rio Grande do Sul. Algumas perguntas norteiam esta reflexão: quais as intencionalidades políticas e culturais podem ser lidas ao analisar-se esse evento? Que os sujeitos intelectuais e políticos estiveram envolvidos na produção da exposição e de que forma podem ser interpretados seus discursos e ações? Vejamos em que medida é possível respondê-las. A cidade de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, Brasil, foi percebida consensualmente por seus pensadores no transcorrer do século XX como uma cidade do futuro. O seu passado foi, na maior parte das vezes, classificado como de pouca extensão e implicitamente de pouca representação. Somente depois da metade do século XX, nas décadas de 60 e 70 mais explicitamente, a cidade se conformou como uma das grandes metrópoles nacionais. A Exposição do Centenário Farroupilha, no ano de 1935, pode ser percebida como um dos momentos de rutura neste processo, a cidade se apresenta ao Estado do Rio Grande do Sul (do qual é a capital desde 1776) e ao Brasil como uma cidade moderna e pujante. No Brasil, o principal evento desse tipo foi a Exposição do Centenário da Independência (1922), ocorrida no Rio de Janeiro, que marcou uma nova trajetória no desenvolvimento dessa cidade, através de uma série de obras de urbanização. Como consequência, redundou num processo de reinterpretação da então capital brasileira, fomentando o surgimento inclusive do Museu Histórico Nacional. Porto Alegre preparou-se para comemorar o Centenário da Revolução Farroupilha em grande, com uma feira que atraísse para o Estado os olhares do resto do Brasil e do mundo. Com o patrocínio do governo estadual foi projetada, sob os cuidados da elite intelectual e política local, um Exposição que marcasse época. No período da ebulição da Revolução Farroupilha (1835-45), o estado do Rio Grande do Sul era um estado que se dedicava maioritariamente a pecuária de larga extensão, realizada em grandes propriedades voltadas ao mercado escravista brasileiro. Com o aumento da taxação de impostos sobre o charque, principal produto da região, os proprietários revoltaram-se contra o Império brasileiro. Também não era do agrado da elite local o centralismo do império, que sufocava as lideranças políticas regionais. Foi a partir disto então que organizou-se um grupo de estancieiros, charqueadores, militares e políticos, que buscavam maior autonomia do Estado perante o governo central, articulam e organizam uma revolta e, no dia 20 de setembro de 1835, invadem a Capital da Província, Porto Alegre, dando início a mais longa revolta da história do Brasil. Muitas foram as representações construídas a respeito deste fato no decorrer do primeiro século de seu acontecimento, como podemos observar na Figura 1, que mostra uma representação dos combatentes e que foi utilizada como cartão postal da Exposição. Porém, parece-nos que a década de 30 do século XX foi o período mais fértil na produção de um imaginário e representações positivos e gloriosos em relação a Revolução.


Fig.1- Cartão Postal da Exposição, acervo AHMMV.

Para o caso do Rio Grande do Sul, a década de 30 do século XX significou um novo e importante momento histórico. Getúlio Vargas, saído dos mais altos quadros políticos daquele Estado, assume a presidência do Brasil. O país buscava o desenvolvimento industrial e tecnológico e o Rio Grande do Sul fazia todos os esforços para participar dessa frente. O ano de 1935 marcava para o Estado o Centenário da Revolução Farroupilha, principal fato político e militar regional, que era a celebração de sua principal epopeia histórica. A Revolução Farroupilha enquadrou-se no ciclo de revoltas contra o poder centralizador do Império brasileiro no século XIX, e apresentou um caráter federalista e segundo algumas interpretações até mesmo separatista. Foi complexa a elaboração desse evento na História do estado do Rio Grande do Sul, já que as interpretações construídas até a comemoração do centenário apresentavam o evento marcadamente pelo seu caráter de enfrentamento em relação à nação brasileira. A identidade regional também experimentava um momento de transformação, quando o gentílico gaúcho estava sendo reelaborado. Gaúcho é o gentílico dos nascidos no Estado do Rio Grande do Sul, província mais ao sul do Brasil, mas também é um gentílico geográfico, pois se refere aos habitantes do pampa (incluindo aí argentinos e uruguaios). Até a década de 30 do século XX a palavra não era utilizada de forma corrente, sendo riograndense o tratamento mais comum. A partir deste processo de reconstrução da identidade regional, o termo gaúcho foi construído positivamente no imaginário local, durante do decorrer do século XX. O debate historiográfico que marcava aquele momento era sobre a origem histórica do estado, que passou a incorporar o território brasileiro-português a partir da assinatura do Tratado de Madrid (1750), antes disso estava localizado entre as terras espanholas. O debate procurava determinar a origem platina ou lusitana da região, e o início da década de 30 foi o período em que os chamados lusitanistas alcançam apoio junto ao poder político (Gutfreind, 1992: 115). Em artigo publicado na imprensa local, o diretor da Secção Cultural da Exposição Walter Spalding procura definir a questão, afirmando que ‘a Revolução Farroupilha foi a mais brasileiras das revoluções brasileiras’ (Revista do Globo, 28/09/1935, p. 67), procurando dar voz final ao debate sobre a visão separatista que tinha sido até então defendida por parte da elite cultural local. A Exposição do Centenário Farroupilha foi portanto uma alavanca de divulgação desta versão historiográfica que se afirmava como vitoriosa naquele momento, transformando-se em um palco de produção de imaginário (Baczko, 1991).


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Fig. 2 - Imagem aérea da Exposição do Centenário. (autor desconhecido. Imagem disponível no site www.aredencao.com.br/his-exposicao-geral.jpg). Fig. 3 - Imagem da inauguração do evento, com Getúlio Vargas à frente.

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Giovanaz, Marlise Maria (2013) “As Exposições Universais e seu impacto museológico: o caso da Exposição do Centenário

Acervo PROPAR UFRGS (20/09/1935, autor desconhecido).

Aproveitando o momento de fortalecimento político do Estado no cenário nacional e o apaziguamento dos focos revolucionários do início do século XX, o governo do Rio Grande do Sul, aliado ao poder executivo da cidade de Porto Alegre, se propôs a comemorar o centenário de sua revolução em grande estilo, uma exposição internacional que mostrasse o estado ao mundo e que trouxesse o mundo a ele. A forma como foi resgatada a Revolução Farroupilha naquele evento é a mais aplicável aos objetivos contextuais do Estado. Segundo a leitura do momento do centenário, a Revolução Farroupilha não foi separatista e sim republicana e federalista, já que buscava tão somente alguma autonomia regional como fuga do poder centralizador do Império. Pois bem, este foi um dos momentos em que o povo gaúcho consolidava suas raízes brasileiras e momentaneamente abandonava suas tradições regionais e raízes platinas. O momento foi de referendar algumas lideranças regionais, principalmente a figura do Presidente do Estado, General Flores da Cunha, como também do presidente brasileiro Getúlio Vargas (Figura 3) e do herói positivista Júlio de Castilhos. Júlio de Castilhos foi Presidente do Estado do Rio Grande do Sul por duas vezes e um dos grandes disseminadores do ideário positivista no Brasil, além de exercer influência relevante sobre a política gaúcha. Foi o fundador do Partido Republicano Rio-Grandense e foi também fundador do jornal A Federação (1884). A constituição estadual de 1891, elaborada por ele, inspirava-se muito fortemente no positivismo do filósofo francês Auguste Comte e garantia ao governante os meios legais de realizar uma política de inspiração positivista autoritária. Essa foi a primeira constituição estadual da república a ser concluída, e acabou servindo de base a diversas outras no país, disseminando assim seus ideais. O grupo político que ocupava o poder em 1935 ainda pagava seus tributos políticos aos representantes do Partido Republicano Riograndense, que ocupou o poder por mais de 30 anos no estado. A Exposição foi projetada como um evento de grandeza, e tinha como objetivo construir uma nova imagem do Rio Grande do Sul e de suas potencialidades para o Brasil e o mundo, oportunizar a realização de negócios, seduzir empreendedores principalmente da área industrial e propiciar o mais requintado lazer aos cidadãos participantes. O convite público à Exposição, veiculado na Revista do Globo em 28 de


setembro de 1935, chamava para “o maior evento do tipo na América do Sul, orgulho máximo do Rio Grande e com descontos de 50% nos transportes”. O local eleito para sediar o evento foi o Campo da Redenção, lugar alagadiço e ainda não ocupado nas proximidades do centro da cidade, local utilizado desde o século XIX como acampamento de carroças e espaço para espera de gado a ser abatido, um terreno desvalorizado e devoluto, que com a Exposição recebeu valorização e destaque (figura 2). Para isso, foi necessário retomar um plano já existente, realizado pelo arquiteto francês Alfred Agache, que havia sido encomendado pelo município em 1930, mas que ainda não havia sido realizado. Como sublinha Dicks (2003), as cidades tem procurado após o século XVIII construir uma identidade visual, esta identidade passa pelo processo de controlo da forma como a cidade deve ser ocupada. No caso de Porto Alegre o Campo da Redenção, um lugar próximo ao centro da cidade, mas ainda sem controlo urbanístico. Como acontece em vários outros eventos deste tipo, a Exposição acaba por modificar o espaço urbano, deixando marcas que vão muito além de sua duração, mas principalmente construindo monumentos que passam a atribuir novas identidade visual a cidade. O pórtico de entrada da Exposição wfoi construído próximo ao atual Teatro da Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ladeando o eixo da avenida central do parque ergueram-se os pavilhões, em estuque, para os estados participantes, e para o único país que aceitou o convite, o Uruguai. Em frente ao pórtico de entrada foi apresentado ao público um monumento a um dos principais líderes da Revolução Farroupilha, Bento Gonçalves. O monumento foi erigido pelo escultor Antonio Caringi, em seu atelier na Alemanha, especialmente para o evento, como cita a Revista do Globo (28/09/1935: p. 22) foi apresentado da seguinte forma: ‘é um bronze soberbo, de grandes dimensões, que vai encimar artístico pedestal, perpetuando de um modo concreto o civismo e a coragem riograndenses na pessoa do legendário general dos farrapos’. O Instituto de Educação Flores da Cunha, prédio construído para a Exposição, com características arquitetônicas ecléticas, ainda inacabado, sediou o Pavilhão Cultural, quem sabe o foco mais fértil para este trabalho na produção de representações sobre o passado e o presente da cidade, que foi coordenado por um dos mais ilustres representantes do Instituto Histórico e Geográfico regional e figura fundamental na elaboração da identidade gaúcha no período, Walter Spalding, cronista, crítico literário e historiógrafo, diretor do Arquivo e Biblioteca Municipal de Porto Alegre e autor de inúmeras obras sobre a história local e regional. Dois casinos foram instalados no parque, e todos os outros em funcionamento na cidade foram fechados. Foi então que o Campo da Redenção, área central, mas que ainda não era ocupada pela cidade, tornou-se por decreto municipal o Parque Farroupilha, em homenagem ao centenário da Revolução, e atualmente o principal parque da cidade. O Parque se tornou desde 20 de setembro de 1935 até janeiro de 1936 a ilha da fantasia dos porto-alegrenses, capaz de fazer crer a quaisquer cidadãos em uma modernidade próxima e alcançável. Porto Alegre contava então com 250 mil habitantes e cerca de um milhão de pessoas visitaram a Exposição. A sedução maior


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era no período da noite, pois o parque contava então com uma iluminação seis vezes maior do que a habitual em toda cidade (Figura 4).

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Farroupilha, Brasil.” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 318-329.

Giovanaz, Marlise Maria (2013) “As Exposições Universais e seu impacto museológico: o caso da Exposição do Centenário

Fig. 4 - Pórtico de entrada da exposição à noite. Acervo PROPAR UFRGS, (autor e data desconhecidos).

As obras de urbanização do parque iniciaram-se objetivando a construção dos pavilhões que abrigariam a Exposição e suas necessidades de mobilidade interna, ficando incompleta a implantação do Plano Agache. Foi somente na década de 40 do século XX que o parque assume as feições atuais, seguindo o plano do arquiteto Arnaldo Gladosh, que realizou também outros trabalhos em edifícios da cidade de Porto Alegre. O Pavilhão Cultural da Exposição, coordenado por Walter Spalding, foi o lugar onde a perspetiva museológica da exposição se impôs mais claramente, composto por cinco secções, sendo 1- História Geografia e correlatos; 2- História Natural; 3Instrução Pública e Particular; 4- Sciencias, Letras e Artes e 5- Livro riograndense, concentrava o discurso proposto pelo evento em suas abordagens. A exposição de pintura foi marcada pela temática da Revolução Farroupilha, com obras criadas na década de 30 e que dessem conta da versão lusitana da História do Rio Grande do Sul e pela versão federalista da Revolução Farrapa (Morates, 2012). A Secção Histórica conseguiu reunir objetos relevantes que permitissem construir uma narrativa sobre os cem anos que estavam em comemoração. Segundo a Revista do Globo (23/11/1935, p. 33), este era dos lugares que mais atraía visitantes, “montra admirável, o Pavilhão Cultural expõe Pintura, Escultura, Fotografia, Desenho, Imprensa, etc., numa síntese expressiva de cem anos de conquistas intelectuais”. Parte desta coleção de objetos históricos faz parte atualmente do acervo do Museu Júlio de Castilhos, mais importante instituição museológica na produção narrativa da história regional, assim como parte da coleção de pinturas foi transferida ao Museu de Artes do Rio Grande do Sul (MARGS). Estes são alguns dos exemplos que mostram o esforço do grupo organizador da Exposição do Centenário Farroupilha na elaboração de representações sobre o passado e o presente dos riograndenses, o que demonstra que aquele momento foi produtor e mesmo, inventor, de representações sobre a história do Rio Grande do Sul. Contactar a autora: mgiovanaz@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013


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AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE E DO CARPIR (Alto Longá, Piauí, Brasil 1981-2011)

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THE REPRESENTATIONS OF DEATH AND WEEPING (Alto Longá, Piauí, Brazil 1981-2011)

Marluce Lima de Morais

Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 330-339.

Morais, Marluce Lima de (2013) “As representações da morte e do carpir.” Revista

Instituto Federal de Educação, Piauí, Brasil

Resumo: Essa comunicação busca analisar as representações da morte e do carpir, atitudes que na contemporaneidade passam um processo de atualizações e ressignificações diante das necessidades de cada sociedade. O tempo presente informa um momento histórico carregado de ágoras, como avalia François Hartog, dificultando a permanência de alguns ritos e manifestações frente à morte. Desta forma analisaremos o papel das Carpideiras, mulheres que desempenham o ritual das Incelências, como esses elementos permanecem e/ou atualizam as formas de bem morrem em Alto Longá, Piauí, Brasil. Palavras-chave: Morte. Incelências. Piauí.

Abstract: In this essay it is analysed the representations of death and weeping, the atitudes facing death in a long term process, characterized by updates and atributions if they are daily felt. The present time informs the historic moment loaded of presente facts, as François Hartog evaluates, making difficult the endurance of some rituals and manifestations facing death. This way, it is analysed the role of weepers, women who performed the ritual of “Incelências”, it is questioned about the endurance and updates, about the ways of well dying. Keywords: Oral Heritage. Death. “Incelências”. Piauí. Brazil. No nordeste brasileiro, encontramos um campo rico de manifestações e expressões religiosas: Reisados, Procissões, Peregrinações, São Gonçalo, Rezas para curar males do corpo e da mente, rezas para “encomendar” a alma dos mortos. No Piauí, há comunidades que mantém o acompanhamento dos moribundos e dos defuntos com os lamentos das Incelências, orações e rezas para encomendar os mortos realizadas geralmente por mulheres conhecidas como Carpideiras ou Cantadeiras de excelências. O carpir significa o lamento que pesa em cada incelências. A tradição de carpir remonta ao Piauí da época da colonização portuguesa (PINHEIRO, 2009), religiosidade definidora das tradições do estado, conhecido como o mais católico do Brasil. Ao falarmos de carpideiras nos referimos a mulheres que têm tradição cultural ligada à forma de “preparar” o corpo do moribundo, acompanhado-o com rezas ao longo da sentinela ou velório, manifestação de piedade popular presente no imaginário coletivo dos piauienses. O cuidado diante da morte e depois dela é expresso


tanto por homens quanto por mulheres, que cantam as incelências e os homens entoam os benditos; funções conhecidas desde os tempos coloniais por capelão, aquele que realiza as orações, que “puxa as rezas”. Segundo Alceu Maynard Araújo: É o dirigente de uma reza de roça. Há muitos capelães. São homens que se especializam em dirigir rezas, quer ofícios fúnebres ou em rezas de dias festivos. É conhecedor de um grande número de orações e, geralmente, é curandeiro, o benzedor. Suas rezas curam certas doenças, quebranto, mau-olhado, dor de dente, erisipela, picada de cobre, cachumba, etc... quando uma senhora se especializa em dirigir rezas e curar, chama-se BENZEDEIRA. A benzendeira além de curas que pratica com suas rezas é a PRÁTICA, isto é, a parteira. Assiste todas as parturientes da região e faz a família observar todas as proibições e tabus por ela conhecidos. Tanto capelão como benzedeira são os que têm o maior número de compadres que tem no bairro onde residem (ARAUJO,1949)

Embora as carpideiras sejam as mais conhecidas no imaginário coletivo, os homens também fazem o papel de acompanhar o defunto durante o velório. Em Alto Longá, é conhecido o Senhor “Antônio Pequeno” que desempenha o papel de rezador, aquele que exalta a alma do defunto na hora da morte. Por conhecer um grande número de incelências, benditos, rezas de cura, ofícios, pagamento de promessas, como “tirar” Reisado e São Gonçalo1, podemos referenciá-lo como capelão, utilizando-nos da percepção do folclorista Alceu Maynard Araújo. Benzer, rezar, chorar e lamentar constituem os elementos que são aprendidos por homens e mulheres no Brasil como um todo, evidenciando uma prática marcante de uma religiosidade popular associada à experiência e às tradições. Nesse sentido, avaliamos que o ato de rezar não limita a participação de homens ou mulheres, ambos participam, o que define a participação como “puxadores” ou guias da assistência fúnebre é o conhecimento que a pessoa tem das rezas e sua representatividade dentro da comunidade. A voz que ecoa nos velórios nos sugere pensar sobre quem entoa as canções, nesse sentido, analisamos algumas representações dos “puxadores de reza” expressas em filmes, peças de teatro, dentre outros produtos culturais. Vestidas de branco, cabelos cobertos e fitas vermelhas, sinal de uma devoção popular, sentadas em frente de uma casa simples, feita com tijolo à vista – estamos no meio do sertão do Piauí. Assim, figuram-se as carpideiras retratadas no filme Cipriano de Douglas Machado2; terços nas mãos e rostos marcados pelo tempo, vozes arrastadas e lamentosas; é esse cenário que tomamos como partida para analisar o carpir e as imagens das carpideiras ao longo do tempo. Os presentes à sentinela cantam, mas nem todos conhecem o ofício, como e quando começam e terminam as rezas. É preciso que alguém “puxe”, conduza, inicie a reza. Conhecidas por carpideiras, cantadeiras de excelências ou como exaltadores, se destacam no ofício pela experiência saber-fazer, pelo cantar arrastado e lamentoso, as


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incelências são marcadas por “[...] aquela lengalenga, aquelas voizinhas de biata, sabe fininha [...] era bonita as palavras, mas triste era o tom”3 Durante a sentinela ou velório, o carpir constitui função significativa as mulheres também assumem a função de preparar o corpo (lavar e velar os defuntos). Diversas são as imagens constituídas ao longo do tempo sobre o papel e função dessas mulheres, representadas, algumas vezes, como profissionais sem sentimentos, pagas para rezar em favor dos defuntos. Segundo João José Reis “a morte era anunciada por carpideiras, com frequência especialistas contratadas para a ocasião” (REIS, 1997:109), a ideia de contrato, de pagamento e de profissionais estão relacionadas à figura das carpideiras desde o Brasil colônia, como evidência João Reis tratar da carta de um leitor do jornal da Bahia que mencionava a existência dessas mulheres e as críticas às suas atividades “como viveriam as carpideiras sem defuntos que fossem pranteados? O pranto é de outros, delas só é o ganho” (REIS, 1997:109). Prática remunerada na Europa, da qual falam João Reis e Câmara Cascudo indica sua transposição para o Brasil; as carpideiras não teriam instituído a prática de cobrança, ao menos, não como um costume generalizado. “O Brasil não conhece a carpideira profissional, já Portugal conheceu as antigas carpideiras, que cantavam choram o defunto alheio/por uma quarta de centeio” (CASCUDO, 2001:117) Ao analisar alguns jornais, João José Reis percebe a presença da religiosidade marcada pelo cotidiano: a prática das carpideiras ou a choradeira feminina, que se fazia comum nos velórios. Em 1832, o padre pernambucano, Lopes Gama, teria avaliado o costume como indesejado, e sem relevância aos mortos (REIS, 1997). Percebemos que a presença das carpideiras não é aprovada entre os clérigos, a choradeira e a lamúria parecem cercadas por um imaginário de interesses por parte das carpideiras. Essa perspectiva percorreu o tempo e informa as imagens dessas mulheres no presente. A prática do carpir, embora questionada, tem resistido ao tempo, talvez por encontrar, como avalia João Reis, lugar e significado na religiosidade popular; prática cotidiana presente nos momentos de rezas, orações e rituais domésticos, um campo de sociabilidade no qual são alimentadas as relações sociais em pequenas comunidades como Alto Longá. O desenvolvimento das práticas estaria ligado à falta de padres, como no período colonial, quando a presença dos clérigos era rara no Brasil, fato que explica “a maior desenvoltura e veemência das carpideiras” (REIS,1997:110), fatores que auxiliariam na transmissão do ofício e da tradição em acompanhar e velar os mortos com muito choro, lamento e reza. Manuel Mendes, ao escrever sobre “As Carpideiras”, No jornal Folha da Manhã, em 1933, avaliou que essa prática possui resquícios ou trata-se de uma herança do período colonial, assim como outras manifestações religiosas: Nosso ‘Pai’, ‘Encomendação das almas’, ‘bandeira do divino’ reagem, solenes e litúrgicas contra a evolução premanente de tudo, amparadas pela crendice ingênua dos sertanejos. E, uma vez que elas existem, têm a sua história, como tudo o que foi glorioso e que hoje subsiste ainda (MENDES,1993)


O autor se posiciona sobre a continuidade da prática das carpideiras, por vezes de forma pejorativa, no entanto, compreendemos o texto como uma evidência de um tempo onde a prática foi notificada, assim como o autor também escolhe tomar nota e relatar a presença das atitudes, naquele momento histórico, diante da morte. Como um relato descritivo, o texto do jornal evidência as características da prática das mulheres Quando não se vendem, ou não se entregam ao vício da embriaguez, assumem encargo mais honroso – o de cantoras de côro pelas igrejas, onde não há vigário, capelas distantes em léguas sertanjas de calor moscardento, e onde a fé é expressa por um instinto vago e inconsciente; ou, então, o de carpideiras, deplorando em nênias desalmadas o trespasse de alguém. Nos dois casos, porém são as rezadeiras do lenço amarrado. Apesar da vida multiforme e duvidosa, não as dispensam as famílias do sertão (MENDES,1993)

Mendes nos informa imagens das carpideiras: a de mulheres que cobram para realização da prática; outra, que seria de pessoas que assistem os indivíduos frente aos ritos religiosos católicos diante da morte. Ressaltamos que por mais duvidosa que possa parecer a imagem das mulheres, o carpir, na concepção de famílias do sertão deve ser compreendido como um costume, cultural e historicamente elaborado e transmitido por tradição oral, uma tradição secular de exaltação dos mortos, presente na contemporaneidade. A peregrinação, indicada por Mendes, evidência que as mulheres são conhecidas e reconhecidas como agentes em questões religiosas, pelo fato de não existirem padres em muitas capelas no interior do Brasil, realidade que não se restringe à colônia, motivo pelo qual muitas das mulheres assumiram as funções próprias do ministro católico, fazendo, assim, “às vezes de padre”4. Mendes relata ainda a postura das carpideiras durante o velório: [...] embriagada, uma delas encostando o lenço dobrado em três à boca, experimentou a voz de soluços, guiados. E um choro em arranques, abafado, quase de criança, numa inconsciente dor, parecia ante pôr em ridículo o sombrio silênco da morte do que, realmente, lamentar, no exaspero que só causa o irremediável. Depois, descido o lenço num gesto teatral, ar grave, convita do aparato triste das solenidades lúgubres, pediu pinga, bebendo três tragos ansiosos e sedentos (MENDES,1993)

O autor apresenta uma espécie de “encenação” de uma carpideira, a presença de choro e da pinga [cachaça] evidencia elementos importantes do ritual. O choro é provocado e encenado pela carpideira que leva o lenço à boca, talvez como um sinal de tristeza ou para auxiliar no tom de voz necessário ou desejado, tom que torna o ambiente com aspecto fúnebre e sombrio. A pinga ou cachaça se faz presente devido a crença de “beber o morto”5, ou muitas vezes para esquentar durante o frio da noite.


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Conhecida, reconhecida e significada como uma prática tradicional e por vezes tida em desuso ou insistente, o ofício de cantar e lamentar em velórios informa a presença de uma morte “vivida”, passos acompanhados pela família e pelos familiares e amigos de uma comunidade. A prática informa uma aproximação dos desejos de uma boa morte tanto para quem é velado, quanto para quem vive o momento, desejos dos mortos e principalmente dos vivos. Embora tida como desgastada pelo tempo ou resignificada, encontramos muitas notas sobre as mulheres e sobre o ritual, particularmente em fontes ligadas às comissões ou associações de folclore, como informa Karol Lenko, pesquisadora da Comissão Paulista de Folclore, no jornal A gazeta de São Paulo, em 5 de Janeiro de 1963. Houve carpideiras em S. Paulo? Assim, questiona a autora em um jornal repleto de notas sobre folclore. Ao dialogar com os relatos de Manoel Mendes, Lenko avalia que a existência das mulheres “carpideiras ou choradeiras” pagas ou não, são registradas em povos antigos e na época moderna fazendo referência à existência desse tipo de prática no Egito, em Roma e em Portugal. Avalia ainda que o desaparecimento do ofício “foi promovido pelas proibições da Igreja Católica e dos órgãos administrativos” (LENKO, 1963). Lenko busca ainda apresentar as reminiscências das carpideiras em São Paulo, apresenta referências aos estudos de Manuel Mendes, e relata acontecimentos no interior de Anjacehy “com o advento das estradas de rodagem, as carpideiras desapareceram, depois de 1927, dos sertões de Anjacehy” (LENKO, 1963): Embora com poucas referências, o costume e ofício, desempenhado pelas mulheres e homens do interior, encontraram mecanismos para sua transmissão. Talvez por caminharem por diversos espaços dentro da comunidade, as mulheres encontraram formas de transmitir o conhecimento, “vivem em comum nos arranjos domésticos, sendo aproveitadas ora como cozinheiras, ora como lavadeiras, e até mesmo como madrinhas de batismo e amas de leite” (LENKO, 1963). Conhecidas nas comunidades e desempenhando várias funções além de carpideiras, o autor informa que o ofício não necessariamente limita o conhecimento e sua a feitura, eram “aproveitados” para outros afazeres. Ainda, informa que as eram mulheres conhecidas na comunidade, informa de suas aproximações no dia-a-dia dos demais membros de comunidades, evidenciando que quaisquer lavadeiras, amas de leite, cozinheiras poderiam ser uma carpideira em potencial. Guilherme Santos Neves6, em artigo para A gazeta, de Vitória, Espírito Santo [ES], em Agosto de 1958, nota, a partir das descrições de Theo Brandão, que: Nas localidades do interior, nos vilarejos, arruados, engenhos de açúcar ou fazendas de criação de gado, sítios de coqueiros ou propriedades de lavoura, há sempre indivíduos que se especializam no piedoso e meritório mister de ajudar a morrer o próximo. Chama-se ‘exortadores’, parece, pois a função que lhes cabe é exortar os moribundos nos terríveis momentos da passagem para a outra vida, e porque exatamente assim é que são chamados em outras regiões do Brasil


Presente em várias localidades do Brasil, a tradição foi estudada, principalmente, pelos folcloristas, que oferecem notas de atitudes diante da morte, realizada pelas comunidades, aproximando-se da concepção de morte vivida. Mudam-se as denominações daqueles que auxiliam os moribundos no momento da morte: carpideiras, cantadeiras de excelência, choradeiras, exortadores, personagem que fazem parte do cenário cotidiano das comunidades, das sensibilidades comunitárias. Segundo o folclorista, “sempre” há um indivíduo que se especializa em ajudar a morrer, prática que remete à ideia de uma morte acompanhada e piedosa, evidenciando que o moribundo, sentindo que é chegada a sua hora, o momento da passagem, continua a ser assistido pela comunidade, que se faz presente, solidária. As referências às carpideiras ou aos exortadores também marcam o imaginário do tempo presente das comunidades no interior do Brasil e no Piauí, em particular; nas entrevistas que realizamos podemos observar que esses personagens são conhecidos. Observamos ainda a presença do ofício em artigos divulgados em jornais; em manifestações culturais como teatro e televisão, são expressões e representações recorrentes em um passado recente, que se mantém na atualidade. “As centenárias”, peça teatral protagonizada pelos atores Marieta Severo, Andréa Beltrão e Sávio Moll, retrata a vida de duas amigas carpideiras no interior do Nordeste brasileiro. Em meio ao fantástico mundo dos causos, assistimos ao percurso de duas carpideiras em um velório encontram-se com outra carpideira, se entusiasmam e sonham seguir. Segundo Marieta Severo “são personagens que enfrentam uma vida hostil, cheia de revezes, mas ainda assim seguem em frente com humor, imaginação e crença no fantástico”7 As sensibilidades do Nordeste do Brasil são permeadas por ritos e manifestações religiosas, um cenário marcado por práticas e estórias contadas e vividas cotidianamente, lendas e causos sobre a vida de pessoas simples do interior.

Imagem 1 - Cena do enterramento do Coronel Januário, personagem da novela Cordel Encantado, exibida na TV Globo, Brasil, 2011.

Outra referência ao Nordeste mágico e fantástico foi apresentado na novela Cordel Encantado8; as carpideiras aparecem compondo a cena do velório de um coronel da região. A cena revela que poucos choravam na ocasião e que o ritual era marcado pela presença do padre e das carpideiras, e somente elas, lamentavam a morte do coronel. A cena se refere ao velório, a chegada dos conhecidos à casa do defunto; retrata um velório típico do interior, o caixão posicionado ao centro da sala principal da


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casa [bastante ampla], a presença dos parentes e conhecidos a volta do caixão; elementos do antigo ritual de velar se mesclam às recorrências presentes na contemporaneidade; os castiçais de metal e a coroa de flores usadas atualmente estão presentes no mesmo espaço em que estão as carpideiras, que cantam, choram, lamentam. Segue-se o velório, com os diálogos dos personagens da novela, que comentam a postura dos filhos do defunto e dos demais presentes, enquanto as senhoras continuam a lamentar, com pouco choro e mais rezas. É possível analisar os vários diálogos de marcam a cena do velório, há aqueles que rezam e os que, por vezes, se revezam com outras pessoas, que preparam alimentos, sorriem e conversam. Percebemos que o velório é também um momento de encontro de parentes, que se reúnem para velar um conhecido, bem como uma oportunidade de reunir uma expressiva parcela da família. As carpideiras são representadas na cena por cinco senhoras, todas vestidas de preto com um véu de renda preta na cabeça; estão aos pés do morto e cantam com um terço na mão. Esse cenário dialoga com as observações de Câmara Cascudo, que afirma que as incelências são cantadas aos pés e os benditos à cabeça do defunto. Na cena, as senhoras cantam Uma Incelência chegou no paraíso/adeus irmãos adeus/até o dia do juízo, e seguem cantando até serem interrompidas pelo filho do defunto que, com uma expressão impaciente, pede para cantarem mais baixo ou diminuírem o tom da reza, que se expressem apenas com as mãos. Na sequência da cena, apresenta-se o enterramento do coronel no interior de sua propriedade; o caixão é levado pelos conhecidos, os pés do defunto estão do lado de para fora do caixão. Segundo Alceu Maynard Araujo “os pés do defunto estão voltados para frente, ‘os que saíram de casa devem também entrar no cemitério’ é uma praxe que fazem questão de observar” (ARAUJO,1949). A procissão é seguida pelo padre, que faz a encomendação e os últimos ritos de bênção e, também, pelas carpideiras, que continuam a cantar ao longo do percurso: uma incelência chegou ao paraíso/adeus irmãos adeus/até o dia do juízo, na sequência rezam o Pai Nosso. O cenário tem a intenção de apresentar as carpideiras no velório de uma pessoa de posses no sertão, evidência uma das tradições e manifestações culturais tradicionais e ainda presentes no sertão. A presença das mulheres carpideiras no velório com um padre evidência uma manifestação do catolicismo tradicional em diálogo com os rituais formais da Igreja Católica. Outra personagem que, por vezes é representada, quando acontece a morte de alguém importante é Itha Rocha, uma carpideira conhecida no Brasil. Em entrevista ao portal de notícias on line Terra, contou sobre o interesse em estar presente no velório do apresentador e deputado Clodovil Hernades (PR-SP). Segundo a senhora, a sua presença se justifica por simpatizar com o apresentador, personagem ilustre; ali estava por vontade própria “resolvi vir desde que eu soube da morte dele, ele fez muita entrevista comigo em que eu contei um pouco sobre minha profissão”9. Relata que nesse caso foi pelo dinheiro, mas também para ajudar o trespasse da pessoa. Avalia ainda que “as carpideiras são assim, não interessa se é de família, amigo, parente. O que interessa é o gesto humano, demonstrar laços como


se fossemos parentes, irmãos”10. Ao reconhecer o seu ofício como profissão e cobrar para chorar nos velórios, a carpideira relata que sua função é ajudar na passagem e compreende que o choro se faz necessário no ritual. Itha Rocha, 57 anos, é aceita como atriz11, mas se apresenta e se reconhece como carpideira, de uma família de exortadores, “para nós, a morte é uma passagem. E para que essa passagem seja feita de forma tranquila e bonita, é necessário alguém chorar”12. Para a carpideira, o choro é necessário para uma boa morte, assim como a lamúria. Segundo os entrevistadores, a carpideira Itha Rocha começou a chorar por dinheiro, o valor que cobra varia de acordo com a família, relata que nem sempre cobra pelo ofício “não me prendo a valores, às vezes, vou de cortesia” 13 A presença da carpideira no velório do apresentador informa que a prática ainda é recorrente, as carpideiras são procuradas pelas pessoas, independente do lugar ser um grande centro como São Paulo ou pequenas cidades e até mesmo bairros como a Flor do Dia, onde mora o Senhor “Antônio Pequeno” em Alto Longá, no Piauí. A presença dos rezadores nos informa sobre a permanência da crença em uma comunidade ou grupo de pessoas, que significam o ritual e o consideram indispensável no momento da morte; reconhecem a função social da carpideira ou exortador, agentes das canções, rezas e lamentos, figuras importantes no ritual de passagem. O Sr. “Antonio Pequeno” é agente, aquele que realiza o ritual, que presta uma última homenagem à pessoa [seja amigo, parente ou conhecido], que ajuda a morrer e se dedica ao ofício. O ritual ultrapassa o sentido de pagamento “monetário”, a ajuda, a presença e a atenção dedicada ao moribundo perpassa a crença, tanto do moribundo quanto do exortador. Contactar a autora: moraismarluce@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Referências & Fontes · ARAUJO, Alceu Maynard. Ritos de morte. Correio Paulistano, São Paulo, 17 de abril de 1949. · ARAUJO, Pedrina Nunes. Senhoras da fé: história de vida das rezadeiras do norte do Piauí [1950-2010] 2011. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2011 · BENJAMIM, Walter. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e historia da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994 · BOSI, Ecleia. Tempo de lembrar. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994 · BRAET, Herman; VERBEKE, Werner. A morte na Idade Média. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. · CASCUDO, Luis Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. São Paulo: Global, 2001. · ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001 · MORAIS, Marluce Lima de. Em cada conta um lamento: incelências, benditos e rezas [Alto Longá, Piauí 19802011] 2013. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2013


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· MORAIS, Marluce Lima de. Emoção, Lamentos e fé: a religiosidade popular através das incelências. Monografia apresentada ao curso de História. Universidade Federal do Piauí: Teresina, 2010 · REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: NOVAIS, Fernando A (org). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: companhia das Letras, 1997 Fontes · Entrevista de Erlene Maria de Oliveira concedida à Marluce Lima de Morais em novembro de 2009. · Entrevista Itha Rocha <www.eduexplica.com/2009/07/profissao-de-carpideira.html > Acesso em: 08 mar. de 2012 · Entrevistas em Nossa Dica. Disponível em: www.nossadica.com/as_centenarias.php. Acesso em: 12 jan. 2012. LENKO, Karol. Houve carpideiras em S. Paulo. A gazeta, São Paulo 5 de janeiro de 1963, pagina 8.

Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 330-339.

Morais, Marluce Lima de (2013) “As representações da morte e do carpir.” Revista

· MAGALHÃES, Vagner. Carpideira vai a velório e lamenta morte de Clodovil. Terra. Disponível em: <httpnoticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI3642404-EI7896,00-carpideira+vai+a+velório+e+lamente+mor te+de+Clodovil.html> Acesso em: 08 mar. 2012 · MENDES, Manuel. As Carpideiras. Folha da Manhã, 2 de julho de 1933. disponível em: <HTTP://almanaque.folha.uol.com.br/ilustrador02jul1933.htm > acessado em: 08 de março de 2012 · NEVES, Guilherme Santos. Incelência para uma boa morte. A Gazeta, Vitória-ES, 15 de Agosto de 1958 · Sem identificação de autoria. “Guilherme Santos Neves, 70 anos de amor e cultura capixaba”. A Gazeta. Vitória, 12 de Setembro de 1976. Disponível em: www.jangadabrasil.com.br/temas/abril2011/te14604f. asp. Acesso em: 12 jan. 2012. NOTAS · 1 Essas duas práticas particularmente foram presenciadas durante a pesquisa por convite do rezador “Antônio Pequeno”. O Reisado, segundo Luis Câmara Cascudo é uma denominação erudita para os grupos que cantam e dançam na véspera e Dia de Reis, composto de um grupo de músicos, cantores e dançarinos que percorrem as ruas das cidades e até propriedades rurais, de porta em porta, anunciando a chegada do Messias, pedindo prendas e fazendo louvações aos donos das casas por onde passam. CASCUDO, Luis Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10 ed. São Paulo: Global, 2001. O Reisado realizado pela família de “Antônio Pequeno” constitui-se um pagamento de uma promessa feita por sua esposa Marina. Diferente dos reisados que cantam ou se apresentam publicamente em folguedos. A prática da família constitui-se de nove noites cantando, dançando e pedindo esmola ao santo reis, terminando no dia de Reis [06 de janeiro] com uma ladainha e muita comida para todos os presentes. O ano de 2012 foi o último do pagamento da promessa, que deveria ser comprida em 3 [três] anos. Já a Dança de São Gonçalo segundo dados do Tesauro de Folclore e Cultura Popular, constitui de uma dança de origem portuguesa, em louvor a São Gonçalo do Amarante, organizada geralmente em pagamento de promessa ou voto de devoção em frente ao altar com imagem do santo, formam-se duas fileiras composta por homens e mulheres, é dividida em jornadas. Também presenciamos uma dança de São Gonçalo com 7 [sete] jornadas de danças mediante o pagamento de uma promessa, “Antônio Pequeno” participou como um dos contra-guias, ou seja, auxiliando e ajudando no pagamento da promessa. Dança de São Gonçalo Disponível em: www. cnfcp.com.br/tesauro/00000094.htm . Acesso em: 03 ago. 2012. · 2 O filme Cipriano tem direção, roteiro e produção de Douglas Machado, produção executiva de Cássia Moura e Gardênia Cury, é o primeiro longa-metragem do estado do Piauí. Sinopse: Um homem velho, de nome Cipriano, está prestes a morrer. Ele passou a vida inteira atormentado por sonhos e agora vaga so-


litário em um deles. Seus filhos Bigail e Vicente buscam um cemitério de frente ao mar, onde ele deve ser enterrado. Vida e Morte. Contos, sonhos e religiões. Uma viagem no imaginário latino-americano através de uma longa peregrinação pelos sertões piauienses. O filme Cipriano compreende essencialmente, uma abordagem de dois temas universais: a morte e os sonhos —, tendo como eixo a cultura nordestina. · 3 A Senhora Erlene Oliveira foi uma das entrevistadas para a pesquisa Incelências e os rituais de morte no Piauí que resultou na dissertação intitulada Em cada conta um lamento: incelências, benditos e rezas [Alto Longá, Piauí, Brasil 1980-2011] de autoria de Marluce Lima de Morais. Entrevista de Erlene Maria de Oliveira, concedido à Marluce Lima de Morais, em Novembro de 2009. · 4 Expressão usada pelo Senhor “Antônio Pequeno” para designar a prática de batizados de anjinhos, à prática dos sacerdotes. Entrevista de Sr. “Antônio Pequeno”, concedida à Marluce Lima de Morais e Maria do Amparo Moura, Julho de 2010, em Alto Longá · 5 Expressão utilizada por Erlene Oliveira. Em Entrevista de Erlene Maria de Oliveira concedida à Marluce Lima de Morais em novembro de 2009. · 6 Guilherme Santos Neves é professor, pesquisador da cultura popular; nasceu em 14 de Setembro de 1906 em Porto Final, município de Baixo Guandu –ES. Ativo e entusiasta da cultura, publicou dezenas de títulos, monografias, ensaios, separatas, conferências, artigos desde 1948 até 1976. Cf.: Sem identificação de autoria. “Guilherme Santos Neves, 70 anos de amor e cultura capixaba”. A Gazeta. Vitória, 12 de Setembro de 1976. Disponível em: www.jangadabrasil.com.br/temas/abril2011/te14604f.asp. Acesso em: 12 jan. 2012. · 7 EntrevistasemNossaDica. Disponível em: www.nossadica.com/as_centenarias.php.Acesso em:12jan.2012. · 8 O universo ficcional da novela Cordel Encantado foi construído por Duca Rachid e Thelma Guedes, a novela foi ao ar em 2011 na emissora de Televisão Rede Globo, Brasil. · 9 MAGALHÃES, Vagner. Carpideira vai a velório e lamenta morte de Clodovil. Terra. Disponível em: <httpnoticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI3642404-EI7896,00-carpideira+vai+a+velório+e+lamente +morte+de+Clodovil.html> Acesso em: 08 mar. 2012 · 10 Ibidem · 11 Característica usada para adjetivar a entrevistada pelo blog eduexplica. Disponível em: <www.eduexplica.com/2009/07/profissao-de-carpideira.html > Acesso em: 08 mar. de 2012 · 12 Ibidem · 13 ibidem


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Diálogo entre o Restauro no Contemporâneo e o Artista

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Dialogue between the Restoration in Contemporary and the Artist

Marta Frade

Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 340-351.

Frade, Marta (2013) “Diálogo entre o Restauro no Contemporâneo e o Artista.” Revista

Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Resumo: A conservação e restauro em duas esculturas em gesso do escultor João Charters de Almeida foi realizada por uma equipa multidisciplinar, entre teóricos, conservadores-restauradores, químicos, físicos, estudantes e o diálogo com o artista para a concretização desta intervenção. Palavras-chave: Charters de Almeida. Conservação e Restauro. Escultura em gesso

Abstract: The conservation and restoration of two plaster sculptures from the sculptor João Charters de Almeida was performed by a multidisciplinary team, including theoretical, conservators, chemists, physicists, students and dialogue with the artist to achieve this intervention. Keywords: Charters de Almeida. Conservation and restoration. Plaster sculptures Introdução

Tendo como objetivo final a Exposição Retrospetiva “ Símbolos, Utopias, Vertigens”, enquadrada no Doutoramento Honoris Causa do escultor João Charters de Almeida, foram alvo de intervenção de Conservação e Restauro dois estudos da cabeça de Cristo, em gesso, para o “O mistério de Cristo”, na Sala do Capitulo no Mosteiro de Singeverga (Santo Tirso, Portugal). A escolha destas duas esculturas recaiu sobre o facto de todo o processo de intervenção nas peças, desde o primeiro contacto com o escultor e a definição dos objetivos, passando pela realização de análises e da própria intervenção, até à sua exposição pública, se ter mostrado um exercício de extremo interesse científico, pedagógico e multidisciplinar, no âmbito do Mestrado em Ciências da Conservação, Restauro e Produção de Arte Contemporânea da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Charters de Almeida nasceu em Lisboa em 1935. Desde muito cedo revelou a sua aptidão para as artes. Tirou o Curso Superior de Escultura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto (ESBAP), onde teve como mestre Salvador Barata Feyo, concluindo-o curso em 1962, com média final de 20 valores. Nesse mesmo ano obteve o Prémio de Escultura Mestre Manuel Pereira do SNI.


Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e do Instituto de Alta Cultura. Trabalhou com o escultor Michael Challenger, em Londres. Em 1966 ganhou o Prémio Teixeira Lopes e o Prémio Imprensa. Em 1971 concorreu para o cargo de professor na ESBAP, tendo sido nomeado professor titular abandonando essas funções um ano mais tarde para se dedicar exclusivamente ao trabalho de atelier. Tendo explorado, numa primeira fase, essencialmente o barro, mais tarde sentiu necessidade de explorar as potencialidades do metal, mais tarde, da pedra e por último, do betão. Com obras de grande escala, em ferro, pintadas a vermelho, como as Cidades Imaginárias, intervenções que chegam a atingir os 40 metros de altura e que podem ser apreciadas em parques e jardins de vários países, ocupa e redefine o espaço urbano como por exemplo à entrada da Cidade Universitária, as “Portas do Entendimento” concebidas para Macau, ou ainda o conjunto escultórico instalado nas Ardenas, na Bélgica. Numa entrevista afirma “Procuro dizer o mais que posso com o menos possível de elementos.” (Portal das Nações). Em pesquisa em enciclopédias na web, como o exemplo da wikipédia pode ler-se: Do ponto de vista estilístico, inicialmente, o escultor desenvolveu uma linguagem plástica de diluída figuração e tendência expressionista, por vezes informal e dramática. As suas obras prefiguram uma modelação abstrata, de pendor inteiramente não-figurativo e de grande rigor geométrico. Contudo, há sinais de um certo biomorfismo herdado dos seus primeiros trabalhos.

1. Narrativa da arte

Os dois estudos da cabeça de Cristo pertencem a uma fase inicial denominada “período dos bronzes”, por ser esse o material final das esculturas, entre os anos sessenta e setenta. Datam do ano 1962 e 1963, onde predomina a fluidez das formas e dos contornos, com superfícies orgânicas. Nesta fase Charters de Almeida, e segundo Fernando António Baptista Pereira, durante a apresentação do escultor no Doutoramento Honoris Causa, […] procurava uma certa dissolução do motivo […] mediante uma muito própria vibratilidade das superfícies, aliada a uma acentuada deformação/redefinição figurativas que se não esgotavam num formalismo esteticista ou numa mera projeção gestual, antes traduziam uma vasta gama de temas e problemas.” (PEREIRA, 2013)


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Fig. 1 - Cristo da Sala do Capítulo do Mosteiro de Singeverga (fotog. de Maria João Ruiz e Tiago Noutel-Fontes)

Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 340-351.

Frade, Marta (2013) “Diálogo entre o Restauro no Contemporâneo e o Artista.” Revista

Segundo a reflexão de António Matos sobre a transfiguração do Cristo em Singeverga, este período do escultor deve ser caracterizado forma: Desde muito cedo é confrontado com o apetite do absoluto para representar a invisibilidade do Bem – a exigência da espiritualidade —, através do gesto que salva […] de simplicidade profunda e inesquecível, juventude sem fim, carne imortal, onde o sonho da humanidade toma corpo, pela criação […] pelo caracter formador e transformador do homem em vida. Neste sentido encontra o essencial da figura, amassando ascensionalmente o barro em busca do ritmo expressivo e livre. A virtude catártica de Cristo e a sua capacidade infinita de sofrimento destroem todas as ações convencionais, atuando, enquanto imagem carregada de conteúdo trágico, na dissolução formal, aspirando […] à transformação e à simbolização exterior de intangível subjetividade; […] procura as raízes mesmas da imagem, definindo a veracidade da sua existência interior. Vive, então, um drama indizível, na perplexidade de sentir estiolar-se sobre a pressão das mãos, pequenas figuras, de grande escala, alongadas nas quais levanta infindáveis rugosidades encrespadas. (MATOS, 2013)

2. Questões de Conservação e Restauro

Em Portugal, a área de Conservação e Restauro do Património, em geral, tem apresentado uma progressiva consciencialização. Para além dos teóricos responsáveis pela teoria de conservação e restauro em geral, outro dos contributos para essa sensibilização foi a de Fernando M. A. Henriques (HENRIQUES, 1991). Estas memórias, embora sejam direcionadas à conservação e restauro de património edificado, evocam a Teoria da Conservação, as noções essenciais à obra: tempo de vida, autenticidade e ética da conservação, assim como, entre outras, a terminologia da Conservação e Restauro. Embora muita da bibliografia, seja maioritariamente dedicada ou dirigida ao património edificado, no caso de Maria José Martínez Justicia faz-se uma evolução da história e da teoria da conservação e restauro de arte ao longo dos tempos, enquadrando-a em todas as áreas existentes, nomeadamente, a que nos revela mais interesse, a Escultura (Justicia, 2001). Estudo, preservação, conservação e restauro: não são somente as ferramentas do


técnico de conservação e restauro, o estudo prévio que este último faz antes de uma intervenção contribui também para o conhecimento da obra. A intervenção em si e o contacto estreito entre a obra e o técnico revelam dados únicos. Formatados e habituados a intervir em arte com mais distância temporal, sem acesso ao autor, neste caso em particular, a intervenção contou não só com o contacto entre a obra e o técnico, mas também com um diálogo com o escultor. A principal questão a levantar foi qual a metodologia a adotar. Tendo em conta que se poderia optar, numa das esculturas, pela não reintegração das lacunas volumétricas, como é o caso das esculturas clássicas porque não temos a oportunidade de estar em contacto com o escultor e desconhecemos a volumetria original. Neste caso particular adotou-se a solução de devolver toda a sua volumetria de forma a não se perder mensagem, adequam-se assim ao objetivo deste trabalho, a exposição. Devolver a volumetria numa peça moderna, orgânica, sem a ajuda do seu autor seria impossível. Por isso, a decisão final foi tomada com o escultor, e vários foram os diálogos onde se transmitiram as principais diretrizes para devolver todas as linhas ou a denominadas “cristas” do rosto sem que nunca se perdesse a autenticidade e sem acrescentar um cunho pessoal. Numa ação de conservação e restauro no contemporâneo, o técnico e o artista caminham lado a lado. Este trabalho consiste também na apresentação do passo a passo da aplicação das teorias da Conservação e Restauro com base nas ideologias atuais e problemáticas gerais que a disciplina acarreta e de uma metodologia adequada. 3. O registo do estado de conservação e restauro

As decisões e escolhas equacionadas durante a intervenção tiveram sempre a perspetiva de fruição futura e o enquadramento das duas esculturas na exposição. Para a metodologia aplicada tiveram-se em conta os princípios de Ética e Teoria da Conservação e Restauro seguidos atualmente. Por essa razão teve-se o cuidado de se realizarem reintegrações discerníveis, permitindo a fruição da sua plenitude estética. Num primeiro contacto com as obras e o escultor, foi transmitido que a película cromática e algumas das reconstituições volumétrica tinham sido uma intervenção do fundidor aquando da passagem do gesso a bronze. A metodologia adotada foi a seguinte: registo fotográfico antes, durante e depois da intervenção. Para evitar quaisquer perdas de informação, o registo fotográfico começou com a entrada das obras em laboratório, registando o estado de conservação que apresentavam, apontando-se as patologias e anomalias; continuou durante a intervenção, com o registo de todos os procedimentos, desde os materiais escolhidos às decisões tomadas, para que de futuro, possa ser consultado; e terminou ao captar o resultado final, o qual comparado com o primeiro registo, será o meio para conseguirmos voltar visualmente ao estado inicial da obra, que a partir do primeiro momento de intervenção é anulado da nossa memória (fotografia 2 e 3).


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Fig. 2 - Estudo de cabeça de Cristo - 1962, antes da intervenção

Na primeira fase, foi também realizado um registo fotográfico com luz ultravioleta (fotografia 4), de modo a revelar materiais estranhos à peça ou, até mesmo, distinguir o material original do escultor do gesso adicionado pelo fundidor, e ainda efetuadas análises às duas peças através da fluorescência de raio X (fotografia 5). Assim, como registo de anomalias, foram identificadas: sujidades inorgânicas, falta de adesão da película cromática à superfície (gesso), falta de coesão do gesso e lacunas volumétricas (fotografias 6, 7, 8 e 9). Os passos foram os seguintes: a limpeza mecânica e a consolidação da película cromática, a limpeza química, a reconstituição volumétrica e a reintegração cromática que se explica em seguida. 4. A intervenção

A limpeza mecânica, ou por via seca, teve como intuito remover as sujidades inorgânicas com o auxílio de um aspirador e de trinchas de cerdas macias e/ou escova de dentes. Por um lado, a escolha das trinchas de cerdas macias deve-se ao facto da ação deste equipamento não ser prejudicial à superfície das peças, por outro a aspiração para evitar que as sujidades venham a depositar-se novamente na superfície. Para a sujidade mais resistente utilizou-se uma borracha branca (fotografia 10 e 11). Ao mesmo tempo que se realizou a limpeza mecânica numa das peças, na outra efetuou-se a consolidação da película cromática através de papel japonês e um adesivo à base de metilcelulose. Pretende-se sempre que todas as intervenções sejam de caráter removível, mas no caso da consolidação isso não pode acontecer pois esta implica a penetração do adesivo na matéria. A escolha deste adesivo deve-se ao facto de ser natural, diluído em água, evitando a aplicação de químicos à peça, como o polímero acrílico. Para evitar a perda da película cromática aplicou-se diretamente o adesivo com um pincel. O papel japonês funcionou como proteção no processo de aplicação do mesmo e, simultaneamente, como controlo da quantidade e do tempo de secagem (fotografia 12). A limpeza química, ou por via húmida, realizou-se através de um cotonete embebido em água e álcool, utilizados controladamente, pois algumas zonas apresen-


tavam-se mais frágeis. Para além de se remover alguma da sujidade resistente à limpeza mecânica, limparam-se também as zonas esbranquiçadas, resultado da aplicação de gesso das reconstituições volumétrica por parte do fundidor (fotografia 13). De seguida consolidou-se o gesso através de uma injeção com gesso cola, de modo a unificar aquele que se apresentava com falta de coesão (Cf.: fotografia 14). Na fase de intervenção que suscitou mais ponderação – a reconstituição volumétrica —, optou-se por seguir o método histórico através da busca da veracidade do restauro assente nos dados observáveis, numa fonte fotográfica documental e na transmissão oral realizada pelo escultor. Nesse contacto foi transmitida a técnica para a realização da reconstituição volumétrica. Segundo Charters de Almeida, era essencial nestas peças o realce da “linguagem entre o espaço e o volume que resultou no tempo”. Assim, a volumetria e o movimento, questões tão importantes na conceção original, foram restabelecidos através da utilização de materiais compatíveis com os originais, devolvendo-se a leitura às peças. Numa segunda visita ao laboratório, o escultor exemplificou como o movimento das mãos, com a plasticidade da matéria, permitia percorrer a orgânica das linhas existentes chegando ao volume, atingindo assim a espacialidade da forma (fotografia 15 e 16). A reconstituição volumétrica final foi avaliada e aceite pelo escultor. A reintegração cromática foi realizada através de aguarela, num tom sobre tom ficando sempre um tom abaixo do original, para ficarem discerníveis. A escolha de aguarela deve-se ao facto de o gesso ser um material higroscópico e de ter a necessidade de fazer trocas gasosas do interior para o exterior e vice-versa. Quando se executa uma reintegração com um material que cria uma película plástica, os poros ficam tapados não permitindo a saída de água quando necessário. Este tipo de aplicação pode não provocar danos a curto prazo, mas fá-lo-á a longo prazo (fotografia 17). 5. Métodos de exame e análise

Com a preocupação da leitura restabelecida das esculturas e a não diferenciação de materiais, durante a intervenção, os produtos adicionados foram analisados, de modo a ajudar a diferenciar aqueles adicionados durante a intervenção do original (a película cromática do fundidor e a aguarela adicionada para a reintegração) e a conhecer a parte da sua composição, a fim de, no futuro, contribuir para o estudo de alterações que possam vir a sofrer ao longo do tempo. A realização destas análises, também procurou responder a uma outra importante questão que surgiu no decorrer da intervenção se os materiais que adicionamos no restauro são analisados no presente momento, tentando fazer um registo da composição dos mesmos no momento da sua aplicação. Partindo do princípio que temos em dossier as folhas de cada produto e a sua composição, esta questão mostrou-se pertinente a partir do momento em que se colocou a hipótese dos mesmos se terem alterado durante o seu armazenamento. Desta forma, foi revelado que a reintegração é discernível devido à diferença


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morfológica dos materiais. Para uma melhor compreensão dos materiais presentes e das intervenções realizadas anteriormente, recorreu-se à realização de alguns exames. A observação sob luz ultravioleta possibilitou a visualização de diferentes fluorescências produzidas pelos materiais presentes, bem como a observação de fibras vegetais e a existência de uma goma na camada inferior da película cromática. A análise da composição elementar, através de fluorescência de raios X, realizada in situ por Marta Manso do Centro de Física Atómica, permitiu diferenciar a composição química entre os gessos utilizados na produção das duas peças. Aproveitando esta oportunidade, foram também executados testes comparativos entre a película cromática original e a reintegração de lacunas agora realizada, ficando comprovada a sua diferença que poderá ser facilmente identificada em caso de dúvidas futuras (fotografias 20 e 21). 6. Conservação preventiva – Acondicionamento e exposição

Dentro da área de conservação preventiva, para este caso, foi realizado o acondicionamento com plástico de bolha de ar, quimicamente denominado de plástico polietileno, um dos aconselhados pelo Plano de Conservação Preventiva – bases orientadoras, normas e procedimentos do Instituto dos Museus e da Conservação. O plástico de bolha de ar é um material de embalagem, constituído por bolhas de ar encapsuladas, durante a selagem, entre duas películas de polietileno. Este processo permite que o ar encapsulado forme uma almofada que protege o produto acondicionado contra eventuais choques. (Dismodin®)

Este material é leve e flexível, indicado contra choques e amortecimento de quedas, proporcionando um ótimo acondicionamento, podendo ser facilmente cortado para acondicionar produtos de qualquer forma ou tamanho. Foram aplicadas diversas camadas, de forma a assegurar proteção global das esculturas, incluindo cantos e extremidades. Foram também realizadas caixas feitas à medida para cada escultura. Na exposição, que teve como objetivo a apresentação das peças já restauradas, conciliou-se o modo expositivo tendo em conta as práticas de conservação. As esculturas, em plintos separados foram protegidas por campânulas de acrílico sólidas, de modo a não existirem oscilações, visto as esculturas serem de um material frágil e evitando que o público manuseasse as peças expostas. O sistema de iluminação que havia foi desviado das vitrinas para não provocar aquecimentos e condensações dentro das campânulas.


Fig. 4 - Fotografia com luz ultravioleta

Fig. 3 - Estudo de cabeça de Cristo 1963, antes da intervenção

Fig. 6 - Sujidades inorgânicas - poeiras

Fig. 5 - Diferenciação entre película cromática original e a reintegração de lacunas,

Fig. 8 - Falta de coesão do gesso

através de fluorescência de raio X

Fig. 7 - Falta de adesão da pelicula cromática ao gesso

Fig. 9 - Lacunas volumétricas


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Frade, Marta (2013) “Diálogo entre o Restauro no Contemporâneo e o Artista.” Revista

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Fig. 10 - Limpeza mecânica - trincha e aspirador

Fig. 11 - Janela de limpeza mecânica

Fig.12 - Consolidação através de papel japonês

Fig. 13 - Limpeza química

e adesivoatravés de fluorescência de raio X

Fig. 14 - Consolidação do gesso

Fig. 15 - Demostração, por parte do escultor, da técnica para reconstituição volumétrica


Fig. 16 - Reconstituição volumétrica

Fig. 17 - Reintegração cromática

das lacunas existentes

Fig. 18 - Estudo de cabeça de Cristo - 1962, depois

Fig. 19 - Estudo de cabeça de Cristo - 1963,

da intervenção

depois da intervenção

Fig. 20 - Observação sob luz ultravioleta através do

Fig. 21 - Composição elementar através

aparelho Micro Light

de fluorescência raio X


Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 340-351.

Frade, Marta (2013) “Diálogo entre o Restauro no Contemporâneo e o Artista.” Revista

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Fig. 22 - Acondicionamento das peças

Fig. 23 - Exposição das esculturas


Conclusão

Com a intervenção nas duas esculturas do escultor Charters de Almeida houve a oportunidade de se aplicar os conhecimentos adquiridos, contribuindo não só para reflexões futuras como também despertando algumas questões para futuras investigações. A pluridisciplinaridade entre as áreas despertou a atenção para a necessidade de registar os materiais existentes e os adicionados durante a intervenção, contribuindo para a complementaridade de bases de dados já existentes, podendo-se assim concluir que áreas tão distintas se complementam. A oportunidade de acompanhar todo o processo nas duas peças, desde o primeiro contacto com o autor e a definição dos objetivos finais até à sua exposição pública, passando pela realização de análises e a própria intervenção, mostrou-se um exercício de extremo interesse científico e pedagógico. Contactar a autora: martacostafrade@gmail.com Artigo submetido a 30 de Abril e aprovado a 15 de Maio de 2013

Referências · Brochura do Doutoramento Honoris Causa João Charters de Almeida, Universidade de Lisboa. Dismodin, Lda. Disponivel em <URL: http://www.dismodin.pt> · HENRIQUES, Fernando A. A. “A Conservação do Património Histórico edificado”. Lisboa, LNEC, 1991 · JUSTICIA, Maria Jose Martinez. “HISTORIA Y Teoría de la Conservación y Restauración artística”, Ciências Sociais e Humanas, Tecnos (editorial), 2001. · Instituto dos Museus e da Conservação. Temas de Museologia. Plano de Conservação Preventiva – Bases Orientadoras, normas e Procedimentos, Ministério da Cultura · Portal da Nações. Disponível em <URL: http://www.portaldasnacoes.pt> · Wikipédia, A enciclopédia livre. Disponível em < URL:http://pt.wikipedia.pt >


Resenha


PINHEIRO, Áurea da Paz; GONÇALVES, Luís Jorge; CALADO, Manuel. Patrimônio Arqueológico e Cultura Indígena. Lisboa, Portutal: FBAUL; Teresina, Brasil: EDUFPI, 2011.

Miridan Britto Falci Doutora em História Social, USP, Pós-Doutora em Demografia Histórica, Paris, França. Professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e Sócia Titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

O livro objeto desta resenha, organizado por Áurea da Paz Pinheiro, Luís Jorge Gonçalves e Manuel Calado, recebe a chancela da Universidade Federal do Piauí (Brasil) e da Universidade de Lisboa (Portual); integra as atividades acadêmico–científicas-culturais do Grupo de Pesquisa/CNQp “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”, Programa de Pós-Graduação em História, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, UFPI, e CIEBA, Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes, Faculdade de Belas-Artes, Universidade de Lisboa. Os organizadores convidaram pesquisadores brasileiros, portugueses e espanhóis, reuniram contribuições que revelam o caráter multidisciplinar das investigações e das ações no campo do patrimônio e da cultura. A proposta da obra é apresentar as correlações de estudos e ações de arqueólogos, historiadores, sociólogos e museólogos, apresentar cada estudo e intervenção em lócus especial de um contexto temporal e espacial, selecionado por cada um dos autores. Dir-se-ia que é um trabalho de formato novo, articulado, interpenetrado, comportando estudos de um tempo longo, médio e curto, fugindo, então, das camisas de força teóricas de um método especificamente histórico. Chega-se à conclusão que, articulado como está, passa-nos as conexões do fazer, do ofício das ciências históricas, sociais, da arte e do patrimônio. Na primeira parte do livro, “Patrimônio e Arqueologia”, Áurea Pinheiro, Cassia Moura e Fátima Alves, no texto “Museus comunitários, Museus Sans Murs”, refletem sobre um projeto em construção, qual seja: a proposição de estudos para futura criação de um Ecomuseu na Ilha das Canárias, no Delta do Parnaíba (Piauí, Brasil). Partem as autoras da concepção de museus de Hugues de Varine. A proposta explicitada no projeto será a construção de um inventário multidisciplinar de bens culturais da Ilha das Canárias. O projeto comportará uma pesquisa interdisciplinar e multidimensional no campo da antropologia, arqueologia, sociologia, história, artes, arquitetura, geografia, meio ambiente, patrimônio e museologia; conhecimentos e documentação produzidos que subsidiarão proposições de ações de conservação e salvaguarda do patrimônio e paisagem cultural do lugar. As autoras pretendem “[...] apresentar uma revisão de literatura sobre a Museologia Social, e algumas notas do trabalho de pesquisa documental e de campo, no contexto do Projeto “Patrimônio Cultural e Museus no Nordeste brasileiro”. Localizam as suas reflexões no campo de estudos interculturais, das Ciências da Informação, das Artes e do Patrimônio, notadamente da História e do Patrimônio Público e da Museologia Social.


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No capítulo, “Patrimonio y Nuevas Tecnologías: El Observatorio del Patrimonio Histórico Español [OPHE]”, Juan Manuel Martín García e José Castillo Ruiz nos apresentam o Observatorio del Patrimonio Histórico Español, que surge como uma iniciativa no contexto do projeto de investigação de excelência, “Estudio comparado de las políticas de protección del Patrimonio Histórico en España. Creación del Observatorio sobre el Patrimonio Histórico Español [OPHE]”, concebido em março de 2006, para um períogo de 2006 a 2009, “[…] por la Consejería de Innovación, Ciencia y Empresa de la Junta de Andalucía [España] a un grupo de profesores de la Universidad de Granada, fundamentalmente del Departamento de Historia del Arte y Música”. O projeto consiste na análise de diferentes políticas de proteção na Espanha, por diferentes administrações estatais e autônomas, bem como por instituições privadas relevantes, com competências em matéria de Patrimonio Histórico, para, “[…] a partir de dicho análisis, evaluar, comparar y difundir dichas políticas desde los referentes científicos que definen la protección del Patrimonio Histórico a nivel internacional. Especial interés ha revestido para el proyecto la defensa de la diversidad cultural española entendida tanto en lo referente a la pluralidad o diferenciación local, regional o nacional como en lo relativo a los valores y bienes de interés para el conjunto de la sociedad española, sin olvidar tampoco la dimensión universal de dicho legado cultural”. Luís Jorge Gonçalves escreve sobre o “Patrimonio Histórico e Arqueológico: exemplos de intervenção em Évora, Sesimbra e Idanha-a-Nova”; discute o conceito de patrimônio e suas transformações históricas, nos instiga a conhecer três experiências de atividades museológicas, destacando exemplares de arte. O autor trabalha com saberes e interpretações diversas, mostra-nos o conhecimento dos valores encontrados em Évora, Sesimbra e em Idanha-a-Nova; regiões portuguesas, únicas, que contribuem com os estudos de preservação e documentação, conexões com propostas brasileiras. Em Idanha-a-Velha, situado no interior de Portugal, limitado a leste pela fronteira com Espanha e ao Sul pelo Tejo, cuja história remonta à época romana e à Idade Média, os templários construíram uma rede de castelos, integrando, hoje, o concelho de Idanha-a-Nova. Em 2009, se concretizou uma exposição liderada pela Câmara Municipal sobre os Castelos Templários nos seguintes temas: “Origens dos Templários e a sua presença em Portugal”, “Rituais Templários” e “Castelos Templários de Idanha”. Segundo Luis Jorge, a memória histórica é muito curta, abismo que se aprofunda para épocas recuadas, o público quando visita os monumentos e museus têm, na generalidade, uma atitude contemplativa; é por isso que novos processos metodologicos procuram dar enquadramentos contextuais ao patrimônio. São as visitas guiadas, os catálogos, os guias, os áudio-guias (agora com versões mais económicas como os “iPod” e “iPad”), das exposições retrospectivas, etc. Nesse caso, tanto os meios tradicionais, como as novas tecnologias são recursos para os enquadramentos históricos do património. Para Luis Jorge, podemos considerar que hoje ultrapassamos os modelos de J.J. Winkelmann, por valorizarmos o contexto em desfavor das obras-primas, não significando isto que vamos “deitar fora essas obras”. O enquadramento geral sobre o (s) momento (s) histórico (s) sobre o qual incidimos, como era a


vida quotidiana, como viviam as pessoas, o que comiam, o que pensavam, qual a sua visão do mundo, o que significava (m) aquele (s) elemento (s) do património cultural sobre o qual incidimos o nosso discurso para as pessoas que investiram muito do seu esforço quotidiano, sendo ainda necessária uma comparação com outras áreas geográficas, a chamada história comparada. Os ingredientes principais são um bom suporte científico com as exposições temporárias e permanentes, a musealização dos sítios, ou seja, a criação de suportes informativos, as visitas guiadas, as publicações para os diferentes públicos, a imagem em movimento. Nos projetos desenvolvidos em de Évora, Sesimbra e Idanha-a-Nova existem sempre um suporte patrimonial. O autor ainda assinala que os vestígios arqueológicos e patrimoniais são um fator importante para compreendermos a vida hoje e que correspondeu ao resultado da vida de pessoas, que, como nós, dormiam, comiam, trabalhavam, tinham as suas crenças, festas e tradições. Cabe-nos desenvolver um discurso acessível para aproximar os públicos, de modo a sentirem que o patrimônio faz parte deles; e principalmente descobrir o patrimônio a “partir do nosso interior, das nossas vivências e da nossa Paixão por compreendermos o mundo que vivemos”. No artigo Pensar local....agir local. O museu de arte Pre-histórica de Mação, memória, intuição e expectativa, Luis Osterbeek, Sara Cura e Rossano Lopes Bastos nos remetem às percepções da proposta do livro. Os autores indagam e se posicionam sobre a preservação, o papel de arqueólogos e da arqueologia através de uma releitura sobre as propostas do que é ser arqueólogo num mundo em transformação. Mostrando a criação do Museu de arte pré-histórica de Mação e as parcerias de um projeto desenvolvido em vários estados do Brasil, incluindo o Piauí; os autores revelam as preocupações de um grupo que entende o valor e a importância do patrimônio de um povo. Lembram que “[...] a prioridade da acção arqueológica permanece, naturalmente, na investigação [sem a qual não há reconhecimento da natureza arqueológica de certas evidências] e na conservação [sem a qual não ocorre a perenização supra-geracional das evidências, que é essencial para a sua assimilação social]”; destacam a importância do território e da população local e regional, operando nessa inserção local uma didática da diferença cultural. Finalizando, dizem os autores: “A arqueologia deve promover a exigência de qualidade acreditada e permanentemente avaliada, deixando-se escrutinar pelo juízo crítico de terceiros, fugindo das torres de marfim, e assumindo dessa forma uma eficiente intervenção social, cujo fito social é o de contribuir para a construção de novo conhecimento e sua sucessiva socialização”. Manuel Calado, no texto Arqueologia Pública em Portugal, evidencia o conceito de Arqueologia Pública, considera “[...] um lugar comum, na América Latina e, em particular, no Brasil; isto, apesar das vidas paralelas que as diferentes perspectivas lhes podem atribuir e, de fato, atribuem”. Destaca que “Um dos indicadores mais evidentes do desenvolvimento da Arqueologia Publica brasileira prende-se, desde logo, com a prática corrente, exigida pela tutela, de programas de Educação Patrimonial associados a intervenções arqueológicas de resgate.” Para o autor, essa obrigatoriedade


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na maioreia das vezes não se concretiza “[...] no terreno, em acções consistentes e frutuosas”, o que segundo ele cria “[...] um corpus de experiências que, feito o balanço provisório, muito têm contribuído para a criação de uma nova imagem da investigação arqueológica, junto das comunidades e dos poderes públicos”. Em sua análise, a arqueologia e o património, em sua gênese, revelam um potencial conservador e elitista “[...] muito enraizado que, em certos aspectos, parece contraditório com um mundo dinâmico, empenhado na criação de sociedades mais justas, mais participativas e, em suma, mais democráticas”; contradição que considera ultrapassada. Em “Arqueologia dos Desaparecidos: identidades vulneráveis memórias partidas. O Registro arqueológico como instrumento de memória social”, Rossano Lopes Bastos trata do registro arqueológico e de sua delimitação legal em diversas normas. “Nas preocupações da UNESCO, nas Recomendações de Nova de Deli (1954) e mais recentemente na Carta de Laussane (1990). As principais definições são quanto a sua amplitude e proteção”. Destaca que no Brasil, “[...] o registro arqueológico tem sua primeira aparição enquanto bem a ser protegido no decreto-lei 25 de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico nacional no Brasil. Entretanto, o patrimônio arqueológico, para ser protegido, deveria, a despeito de como é formulado com todos os outros bens, ser objeto do procedimento de Tombamento, conforme apregoa o decreto-lei 25 de 1937. Com a edição da lei federal 3924/61, ‘que dispõe sobre os momunentos arqueológicos e pré-históricos’, que ampliou de forma significativa e definitiva a proteção dos sítios arqueológicos em todo território nacional. Destaca-se que a primeira lei de proteção específica do patrimônio arqueológico foi editada no Estado de São Paulo em 1955”. Na Segunda Parte da obra, Patrimônio e Cultura Indígena, quatro outros capítulos nos remetem às reflexões sobre o que seria o Patrimônio Humano, Cultural deixado pelos antigos habitantes do Nordeste do Brasil: os indígenas. No texto, “A farsa do extermínio: reflexões para uma nova História dos Índios no Piauí”, João Paulo Peixoto Costa nos faz pensar sobre o problema epistemológico e metodológico que acompanha o estudo dos indígenas no Ceará, revelando as atuais preocupações com a urgência da revisão dos conceitos e da política indígena no Brasil. Qual a significação do conceito de extermínio? Como tem sido usada pelos historiadores? O que nos diz a documentação pesquisada e analisada atualmente? No capítulo, “Os Senhores das Dunas e os Adventícios d´além mar: a autonomia indígena e o escambo na costa norte brasileira”, Jóina Freitas Borges destaca os conceitos de extermínio e de história negada, mostrando, com base em extenso levantamento historiográfico, a presença indígena no litoral do Nordeste brasileiro; índios enclausurados nas dunas. Esses “senhores” das dunas, como chama a autora, foram responsáveis por um largo comércio com os franceses, de âmbar gris, pau-violeta e ainda foram seguidamente escravizados e vendidos para as Antilhas . Segundo Jóina, se desenvolveu neles, graças a esses contatos com os franceses, uma autonomia única na História dos indígenas brasileiros. Utiliza o conceito de fronteira, desenvolvido por Boccara. O resultado dessa facção isolada e não dominada por mais de um século


foi o processo de etnogênese dos tapuias/tremembés. No capítulo, “Um viés da liberdade: a deserção dos janduís e os conflitos no Maranhão e Piauí”, Juliana Lopes Aragão nos revela histórias desconhecidas da capacidade de certas tribos se organizarem e reelaborarem os conflitos com o grupo colonizador e opressor que chegou no Brasil. Após uma extensa pesquisa de documentação encontrada no Arquivo Histórico Ultramarino, nos revela como os janduís, com seus contatos com os holandeses do Nordeste desenvolveram uma capacidade que chama de “um viés de liberdade”, se organizando em assembléias e exigindo melhores condições de tratamento. No apresenta a questão dos “terços” dos bandeirantes e o “descimento” dos indígenas para o trabalho doméstico ou nas fazendas. “Menina Moça: cultura material e simbologia do ritua indígena Guajajara, Maranhão, Brasil”, Síria Borges nos apresenta um conjunto de artefatos ligados à dança, música, gastronomia, adornos corporais e afazeres cotidianos do ritual indígena de passagem conhecido como “Menina Moça ou Festa do Moqueado”, comum a vários grupos indígenas brasileiros. A autora destaca que o ritual fortalece “[...] os saberes tradicionais e justificando as relações sociais e de gênero, o ritual de puberdade feminina do povo Guajajara – Maranhão, expõe um conjunto de artefatos e técnicas que dentro do cortejo ritualístico assumem significados específicos dos quais serão analisados neste texto”. Esta obra é reveladora da importância e da multiplicidade de objetos, temas e abordagens que marcam os estudos e as investigações no campo do patrimônio cultural, notadamente no Brasil, Portugal e Espanha.



Desenhar uma voz, uma voz visível, uma voz humana Jorge dos Reis Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa A tua voz é tão privada e vulnerável como o teu indefeso corpo nu Jonathan Rée Quanto mais de perto se olha para uma palavra mais distante ela parece Walter Benjamin

1. Caminhar em círculo

À minha casa na Serra da Estrela chegam continuamente sons diversos: o vento raspando nas fragas, os chocalhos das ovelhas tilintando no crepúsculo, já noite o ladrar dos cães pastores, gritos e vozes de guardas florestais nas trevas do maciço central. Sons variavelmente repercutidos, de significados diversos, elevados pela neblina e pelo despertar do dia, aclarados pelo sol. São sinais de vida das aldeias envolventes, da cadeia montanhosa. Convites ao trabalho e à meditação, uma anatomia da nostalgia, uma vida que continua, um momento sonoro fixo na paisagem que marca a necessidade do equilíbrio interior profundo, vibrações nas cordas de um violoncelo, ressonâncias de uma voz humana, da esfera interior. Todo esse contexto de sons é foneticamente paralelo às palavras que surgem mentalmente e desaparecem de forma intuitiva. É o próprio tempo que provoca esse desaparecimento: tempus edax rerum – o tempo é o destruidor de todas as coisas. Na esfera dessas palavras existem os caracteres. São formas abstractas com a sua devida atracção peculiar e mítica. A letra no contexto da palavra, pela sua carga poética, poder de comunicação e ao mesmo tempo com a possibilidade de confundir e enganar sempre foram, para mim, uma fonte de paixão e puro fascínio. Procuro uma proposta estética, plástica e de grafismo que desejo coesa e estruturada, uma aquosa linha harmónica constituída por círculos de propagação da voz, vocalizando emoções vitais de apelo sensível e extremo, arcos de extraordinária simplicidade. A letra é em si um decifrar de códigos que perpassam a linguagem. Um alfabeto é uma exaltação harmónica plena, um estudo de execução transcendente. Saber ver o desenho de uma letra e de um alfabeto passa por saber ouvi-lo. As letras são sons e não pequenos sinais negros. A voz é de tal forma crucial que Jacques Derridá nos chama à atenção quando refere que “escrever é perigoso dado que se representa o sinal da própria coisa. Há uma necessidade fatal inscrita no funcionalismo premente do sinal, essa substituição faz com que se esqueça a sua função e a plenitude da voz tome o seu lugar, voz que é imperfeita e enferma, só suplementar (DERRIDÁ, 1997: 144).


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Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 359-361.

Reis, Jorge dos (2013) “Desenhar uma voz, uma voz visível, uma voz humana.” Revista

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2. Desenhar o círculo da voz

O desenho da palavra ‘vox’ partiu de uma Ortografia obstinada, nas palavras de Douglas Kahn, de um “som constituído por um canto e uma fórmula” (2001: 41). Essa fórmula é marcada por circunferências que representam a propagação da voz de forma sequencial. Essa estrutura sonora é inserida no corpo das três letras que formam esta palavra e desse modo evocam um conjunto de música de câmara ou um coro de três vozes, eventualmente uma soprano, um contralto e um barítono, este último ao centro, propagando uma voz mais escura e mais poderosa em contraponto com a delicadeza das duas vozes femininas. Este artefacto visual evoca o som de uma nova museologia, onde o museu tem uma voz que alastra pela comunidade. O museu é espaço de saber, de comunicação, de leitura, de compras, de gastronomia, de vivência – uma nova voz. Tenho para mim aquelas que foram as duas mais fortes referências para este trabalho: The Great Court de Norman Foster para o British Museum e a recuperação da Bankside Power Station pelos Herzon & de Meuron para a Tate Modern; ambos em Londres. Na verdade são espaços museológicos que habitei depois de 2003, altura em que vivia em Londres, em West Kensington, quando estudava no Royal College of Art. Nesses museus, fiz compras, almocei e jantei, assisti a concertos, namorei, claro está que também acudi a exposições. Contudo, é a vivência plena desses lugares que marcam a sua presença na sociedade, criando uma voz que é constituída por todas essas actividades que fazem hoje o museu contemporâneo. Nesse sentido o projecto de identidade ‘vox’ é transversal, tal como se querem hoje os museus. A designação ‘vox’ dará voz a uma diversidade de actividades e de objectos que partem de museologia, da arte, do património, acoplando territórios e fazendo a ponte com áreas muito diversas numa constante cross-fertilization. É uma voz plural que embrulha e absorve como uma esponja e que liberta ao produzir conteúdos que se querem originais e não convencionais. 3. A voz da epigrafia romana

Outro aspecto importante desta assinatura gráfica diz respeito ao tipo de letra desenvolvido para a palavra ‘Musei’ e para a designação complementar ‘arte e património’, inspirada na relação existente entre o alfabeto romano e o alfabeto grego tendo em conta que o alfabeto romano e os seus caracteres derivam do grego. Os gregos aprenderam a escrever com os fenícios, provavelmente no século XVII ou XVIII a.C. (os dois povos eram marinheiros e mercadores tendo tido contacto mútuo na Cecília e na Ásia menor). Os gregos desenvolveram o alfabeto consideravelmente e alteraram o sistema fenício em dois aspectos: introduziram caracteres representando vogais e modificaram-nos do ponto de vista gráfico. Refira-se a esse propósito as inscrições de Atenas construídas geometricamente e que inspiraram este projecto.


Desde o início, a evolução da escrita reflectiu o carácter do povo que a concebia; esse aspecto está naquela época também presente pois a cultura grega viria a dominar o mundo romano, permeável às alterações da escrita de Atenas. Apesar daquele desenvolvimento e da forte influência que a Grécia exercia sobre Itália, Roma acabaria por desenvolver de forma mais grandiosa e autónoma o seu desenho da escrita, levando mais longe o apuro das formas e o equilíbrio gráfico dos traçados de cada letra que neste projecto foram sintetizados. O período romano dos primeiros três séculos depois de Cristo constitui uma época fundamental para a consolidação do desenho da escrita tendo em conta que o arquétipo da letra romana é por essa altura retirado da coluna de Trajano em Roma, construída no ano 144 d.C. Inclui a maior parte das letras que formam o alfabeto excepto o ‘K’,’H’,’Y’,’Z’ ou as mais tardias ‘J’,’U’,’W’. Por último, refira-se a relação existente entre o carácter volátil e sonoro do ‘vox’ e a natureza epigráfica e fixa do ‘musei’ realizando um contraponto feito de antagonismos que neste sentido englobam toda a filosofia do ‘vox musei’. Gera-se, assim, um quadro conceptual que liga duas dimensões diferentes, mas, neste caso, complementares, estabelecendo uma fértil relação entre a vanguarda e a nostalgia, o lúdico e o científico, o conceptual e o assertivo, o músical e o histórico, o futuro e o passado, o leve e o pesado. É nesse contraste que se procura e encontra o equilíbrio do ‘vox musei’. Referências · ·BENJAMIN, Walter. The Work of Art in the Age of Its Technological Reproducibility, and Other Writings on Media. Cambridge: Harvard University Press, 2008. · RÉE, Jonathan. I See a Voice, A Philosophical History. London: Flamingo Harper Collins, 1999. · DERRIDA, Jacques. Of Grammatology. London: John Hopkins University press. · KAHN, Douglas. Noise Water Meat, A History of Sound in the Arts. Cambridge: The MIT Press, 1997.



Convidamos para a seção entrevistas do periódico VOX MUSEI a Profa Dra Áurea da Paz Pinheiro, historiadora e especialista em patrimônio e museologia, uma das idealizadoras do VOX MUSEI arte e patrimônio; membro do Centro de Investigação e de Estudos (CIEBA), da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Professora da Unviersidade Federal do Piauí e da FBAUL. A entrevista foi realizada em maio de 2013, na FBAUL, localizada no antigo Convento de São Francisco, centro da Cidade, Baixa do Chiado.

Entrevista, notas, transcrição e fotografia: Cássia Moura

Cássia Moura — Professora fale-nos do VOX MUSEI arte e patrimônio Áurea da Paz Pinheiro — Atualmente, é perceptível e se reconhece o papel fundamental que exercem a arte, o patrimônio e os museus como instrumentos de pesquisa, educação, salvaguarda e divulgação do patrimônio cultural e natural; a título de exemplo, citem-se os desafios impostos aos Estados Membros da ONU às comunidades e às instituições governamentais e não-governamentais no que tange às investigações, reflexões e intervenções nos territórios; é emblemático o caso dos inventários do patrimônio cultural imaterial, da divulgação e estudos da diversidade de metodologias e de propostas teóricas, de suportes textuais, orais e audiovisuais para aproximar e se compreender as normas orientadoras propostas pela Convenção de 2003 [Unesco]; portanto, indiscutível as potencialidades dos patrimônios, dos museus, das artes, do turismo, dos saberes e fazeres presentes nos territórios e nas comunidades, para estudos, investigações, sensibilizações e visibilidade da diversidade cultural brasileira e portuguesa. Cássia, é nesse contexto, limiar do século XXI, que concebemos o Coletivo Cultural VOX MUSEI arte e patrimônio, vinculado institucionalmente ao CIEBA / Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Portugal, e ao Grupo de Pesquisa / CNPq Memória, Ensino e Patrimônio Cultural / Capes / Plano Nacional de Pós-Doutorado, PNPD, Pró-Reitoria de Ensino de Pós-Graduação da Universidade Federal do Piauí, Brasil. Acreditamos que o VOX MUSEI é um espaço privilegiado para divulgação e discussão de resultados de pesquisas no campo da arte, do patrimônio e dos museus em uma perspectiva transdisciplinar. As atividades e ações que já realizamos proporcionaram contatos entre docentes, alunos de graduação e pós-graduação, instituições de cultura, patrimônio e museus, ensino, pesquisa e comunidade em geral. Os diálogos já iniciados entre pesquisadores do CIEBA e do Grupo de Pesquisa / CNPq Memória, Ensino e


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Patrimônio Cultural revelam esses campos de estudos ocupam espaços privilegiados nas investigações e intervenções de pesquisadores em um debate intenso e complexo em nível nacional e internacional, logo, foram esses diálogos que motivaram a criação deste Coletivo Cultural, que permitirá ampliar intervenções sociais, repensar categorias conceituais e metodológicas nos campos de saber-fazer que privilegiamos.

ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 363-370.

ENTREVISTA, RevistaVox Musei arte e património.

Cássia Moura — Quando falas de ações e intervenções sociais, ao que se refere? Áurea da Paz Pinheiro — É preciso dizer que o VOX MUSEI é uma marca, branding, um coletivo de pessoas e ideias, um nome, logo, slogan com uma identidade visual que representa a essência rizomática do Coletivo Cultural e de suas ações e intervenções, materializadas em produtos e serviços, que serão administrados pelas pessoas e instituições com a colaboração comunitária. O trabalho que nos propomos realizar é colaborativo, comunitário, em construção permanente, olhar sempre voltado para as demandas sociais, ligado preferencialmente à formação em arte, patrimônio e museus, formação dialógica, imersa em um território ao mesmo tempo natural e cultural. Portanto, o VOX MUSEI tem o desafio de oferecer produtos, práticas e técnicas, que possam responder às demandas da comunidade acadêmica e da comunidade de pessoas onde atuará. Desejamos, enquanto Coletivo Cultural, estabelecrer um constante e profícuo diálogo entre as Universidades e as Comunidades em sentido lato, cultivar um público diverso, quais sejam: as comunidades tradicionais, seus saberes, modos de ser e estar no mundo, as comunidades educacionais e de cultura. Pretendemos realizar ações que permitam firmar a identidade do Coletivo. O que pretendemos é ampliar discussões, congregar pesquisadores das ciências da arte, do patrimônio e dos museus, que trabalham com a produção histórico-cultural dos lugares, saberes, fazeres; que indagam como as categorias arte, patrimônio, museus, memória, sociedade, identidade, cultura, públicos e sustentabilidade se relacionam e nos permitem pensar e elaborar investigações, materiais e metodologias para a pesquisa da cultura material e imaterial, dos museus e da arte para a sensibilização comunitária.

Cássia Moura — O VOX MUSEI surge de uma tradição do grupo de pesquisa CNPq Memória, Ensino e Patrimônio Cultural. Como podemos fazer uma interface entre esse grupo, o CIEBA e, agora, o Coletivo Cultural?

O grupo de pesquisa foi constituído em 2007; ao longo desses anos nossos estudos centraram-se no campo do patrimônio cultural; em um conjunto de atividades: organização dos livros “Cidade, História e Memória”; “Cultura, Sociedade e Cidades”; “Paisagens Educativas: saberes, experiências e práticas”; “Tempo, Memória e Patrimônio Cultural [2010]; “Turismo e Patrimônio” [2010] e Patrimônio Arqueológico e Cultura Indígena [2011]; “Senhores de seu ofício: a arte santeira do Piauí” [2010] e “Celebrações/Celebrations” [2009], esta última publicação reconhecida pelo Iphan, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Áurea da Paz Pinheiro —


Nacional, Brasil, com o “Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade”; realização dos documentários etnográficos “Congos: ritmo e devoção” [2009], Programa Monumenta, UNESCO, BIRD; “Passos de Oeiras” [2008] e As Escravas da Mãe de Deus [2010] contemplados no edital de apoio à produção de documentários etnográficos sobre patrimônio cultural imaterial brasileiro, ETNODOC, Petrobras, em parceria com Associação Cultural de Amigos do Museu de Folclore Edison Carneiro [ACAMUFEC]; Ministério da Cultura [MinC]; Secretaria de Políticas Culturais [SPC] e Secretaria do Audiovisual [SAV]. Coordenamos os Projetos: “História e Patrimônio Cultural”, que tem como resultados a realização do “Congresso Internacional de História e Patrimônio Cultural” [edições 2008, 2010 e 2012]; “Memória, Cultura, Identidades e Patrimônio Cultural”, financiado pelo Programa Pró-Cultura da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Capes, em parceria com o Ministério da Cultura, que envolve instituições de Ensino Superior IES e demais instituições com projetos de implantação de redes de cooperação académica no País e Patrimônio Cultural no Nordeste do Brasil, PNPD, Capes.

Cássia Moura — Portanto, o Congresso Internacional Arte, Patrimônio e Museus é resultado de uma longa tradição iniciada em 2007, no Brasil, que, agora, se internacionalisa com a parceria com a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

Perfeito! O Congresso Internacional Arte, Patrimônio e Museus, que concebemos e coordenamos, se insere na tradição desse grupo de pesquisa, que já realizou outros eventos desta natureza em parceria com Programas de Pós-Graduação, Associação Nacional de História, ANPUH/Brasil, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan, Superintendência Regional do Piauí, Universidade Estadual do Piauí, Governo do Estado do Piauí e Prefeitura Municipal de Teresina e de Parnaíba e Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Há uma ação rizomática do grupo, que, agora, alarga-se com o VOX MUSEI, em nível nacional e internacional. Gostaria de destacar que no XXVI Simpósio Nacional de História, realizado na USP, Universidade de São Paulo, em Julho 2011, o grupo conseguiu mobilizar pesquisadores de várias instituições e áreas de conhecimento interessados nos estudos de Patrimônio, criou no âmbito da ANPUH Nacional, Brasil o grupo de trabalho “Patrimônio Cultural”, do qual fazem parte Instituições as mais diversas interessadas nos estudos do patrimônio. Foram publicadas Atas referentes aos eventos anteriores; as parcerias firmadas permitiram edições de obras coletivas “Tempo, Memória e Patrimônio Cultural” [2010, Universidade Federal do Piauí e Universidade Estadual de Maringá] e “Patrimônio Arqueológico e Cultura Indígena [2011, Universidade de Lisboa e Universidade Federal do Piauí], que traduzem parte significativa de nossas análises e reflexões sobre a temática que envolve Arte, Patrimônio e Museus. O VOX MUSEI nasce, portanto, da tradição desse grupo de pesquisa, que conseguiu ao longo desses anos firmar parcerias institucionais de fundamental importância para a formação continuada de professores, graduandos, pós-graduandos e comunidade

Áurea da Paz Pinheiro —


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em geral. A Universidade Federal do Piauí e a Universidade de Lisboa firmaram em 2011 um protocolo de cooperação acadêmica, científica e cultural, sendo que dentre muitas das ações a serem realizadas está o Congresso Internacional Arte, Patrimônio e Museus, que decorrerá em junho de 2013 na Faculdade de Belas-Artes em Lisboa.

Cássia Moura — O VOX MUSEI, ao reunir pesquisadores de várias universidades, instituições de educação e cultura, pretende que as instituições encontrem e promovam diálogos entre comunidades

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e academias? Áurea da Paz Pinheiro — Sim, a importância dos diálogos e pesquisas já realizados não diz respeito apenas ao envolvimento e participação de profissionais e pesquisadores das universidades e outras instituições de educação e cultural, mas também da sociedade em sentido lato, já que as reflexões que propomos possibilitam o desenvolvimento de uma consciência histórico-cultural, elemento fundamental na formação da cidadania. Os eventos, as publicações, os cursos de formação de professores e as intervenções sociais tornam-se para o Coletivo Cultural VOX MUSEI espaços privilegiados de intercâmbio de saberes, experiências e práticas no campo da produção acadêmica, científica, ofício e modos de fazer de educadores e formadores de opinião, o que possibilita discussões em níveis e tendências diversas, vez que congrega vários agentes sociais e instituições, engajados na defesa das fontes e manifestações culturais de interesse público. Ao longo desses anos, foram recorrentes as conferências, mesas temáticas, comunicações, cursos de formação de professores, orientações – projetos de Iniciação Científica, em nível de graduação e licenciatura, em nível de Mestrado e Doutorado, etc. Participaram dessas atividades, promovidas pelo grupo, que, agora, oferece a tradição ao VOX MUSEI, que soma-se às experiências e tradição do CIEBA, continuará a formar profissionais, jovens pesquisadores e dialogar com as comunidades, além fomentar conferências, palestras, diálogos, debates, encontros com agentes diversos.

Cássia Moura — Que produtos, conceitos e metodologias serão elaborados pelo Coletivo Cultural VOX MUSEI? Áurea da Paz Pinheiro — Além dessas atividades já enlencadas, o grupo de pesquisa

traz a sua tradição para o VOX MUSEI; cito ainda o INRC - Inventário Nacional de Referências Culturais da Arte Santeira do Piauí, projeto realizado por meio de convénio com o Iphan, Piauí [2007-2008]. O grupo concluiu pesquisas sobre celebrações em Oeiras, cidade do sertão do Piauí; realizou uma série de lançamentos do documentário etnográfico “Congos: ritmo e devoção” e do livro “Celebrações/Celebration”. Em setembro de 2009, realizou, em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Piauí, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Piauí e Centro Nacional de Folclores e Cultrua Popular o “ETNODOC no Piauí”, mostra de filmes etnográficos, que tem a 2a edição agendada na Universidade Federal do Piauí e na Universidade de Lisboa, Portugal, no segundo semestre de 2013.


Em julho de 2011, em São José dos Campos, São Paulo, como parte das atividades do XV Congresso Brasileiro de Folclore, o grupo coordenou dois simpósios temáticos sobre Patrimônio Cultural. No XV Congresso Brasileiro de Folclore e na 2ª edição do Congresso Internacional de História e Patrimônio Cultural, realizou a curadoria da Exposição Fotográfica “Senhores de seu ofício: a arte santeira do Piauí”, de sua autoria Cássia, que tem se revelado ao longo desses anos uma fotógrafa e documentarista de primeira linha. Você, Cássia Moura, como membro do grupo de pesquisa e, agora do VOX MUSEI, realizou, o longo de dois anos [2007 e 2009], em um trabalho de natureza histórico-etnográfica, percorrendo o Piauí e capturando o cotidiano do ofício e modos de fazer de artesãos santeiros. O seu olhar nos informa que arte santeira emerge em diferentes pontos do meio rural e urbano do Nordeste do Brasil, nomeadamente o Piauí. A sua pesquisa nos informa sobre o ofício e modos de fazer, dos saberes desses artesãos, a confecção de ex-votos, o aprimoramento de técnicas, o manejo das ferramentas e a sensibilidade com a madeira. O aprendizado da arte, que ocorre de forma espontânea ou incentivada. O ensino nas oficinas se define como prática privilegiada de transmissão e manutenção do ofício e modos de fazer, não tanto por preservar suas formas incólumes e cristalizadas, mas por confrontar esses saberes com o tempo, ressaltando a pertinência da continuidade da arte santeira como referência cultural para os artesãos que dela sobrevivem e para aqueles que recebem, apreciam e consomem os artefatos produzidos, partilham ou recriam seus significados.

Cássia Moura — Professora, quais seriam as linhas de pesquisa e de intervenção do VOX MUSEI? Áurea da Paz Pinheiro — Podemos destacar três linhas:

Arte, Patrimônio e Museologia - pretendemos estimular trabalhos que estabeleçam diálogos nesses campos de saber-fazer, de forma a relacionar universos de referências culturais, trabalhos artísticos e processos estéticos atuais: os patrimônios, os acervos, as tradições, as culturas e os territórios ricos em memórias e história. Pretende-se incentivar a leitura visual e teórica das artes, dos patrimônios, dos museus, o que inclui: programação, gestão, tratamento e apresentação de coleções; a diversidade de temas desde as artes, à museologia, os patrimônios, desde o estudo de coleções, gestão, programação de museus e exposições, design, artes plásticas e novas tecnologias aplicados ao universo das artes, museus e patrimônios; abordagens clássica e a experimental de novos caminhos para essas áreas de conhecimento, valorizando o espírito criativo; forjar uma ambiência de leitura sensível, visual do espaço, formação teórica e técnica de gestão e programação de museus e exposições e de estudo científico e tratamento das coleções, reforçando a valorização da programação voltada para o design expográfico, uma valência que reforce novas abordagens do design da apresentação (comunicação, equipamento), elaboração de produtos analógicos e digitais, na exposição, na divulgação, no markting e nos serviços educativos; trata-se, portanto, de uma linha singular, vez que discutiremos a formação acrescida e vocacionada para as áreas do design, da arquitetura e das artes plásticas nos museus, bem como para as áreas tradicionais sociais e humanísticas.


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Patrimônio e Educação Museal, reforçaremos a visão do ICOM ‐ International Council of Museums (l974), de que o museu deve expressar sua relação com seus públicos, tendo em vista que “[…] é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e exibe, para fins de estudos, educação e lazer, evidência material das pessoas e de seu meio ambientes”. Portanto, abrem-se vários caminhos de investigação, estudos e intervenção: a função social dos museus, as ações educativas, a diversidade cultural, a participação comunitária, o acesso da sociedade às manifestações culturais e ao patrimônio material e imaterial; destacam-se a missão da área educacional, dos serviços educativos dos museus a partir de uma missão institucional e vocacional dessas instituições; ação educacional entendida como de fundamental importância para o cumprimento da missão dos museus, bem como para o desenvolvimento do processo museológico; os acervos institucionais e operacionais como referênciais importantes para o desenvolvimento das ações educacionais dos museus, levando em consideração a missão das instituições e os anseios dos atores sociais com os quais os projetos venham a estar sendo desenvolvidos; as teorias educacionais e as correntes pedagógicas que melhor refletem sobre as ações dos museus; as concepções de Patrimônios, Museus e Museologia no contexto de ações educacionais, os métodos e técnicas, levando em consideração as especificidades de cada museu e patrimônios, bem como o perfil e os anseios de seus usuários, públicos; a importância da elaboração do Projeto Político-Pedagógico para orientar o planejamento, a execução e a avaliação das ações educacionais oferecidas pelos museus e pela escola; as ações educativas, sua documentação, identidade, vocação e memória. Patrimônio, Turismo e Sustentabilidade, pretende-se estimular trabalhos que contemplem as discussões em torno dos patrimônios, turismo e meio ambiente, aspectos relacionados à gestão e à sustentabilidade, campos de negociação sobre a qualidade de vida do planeta e da sustentabilidade dos recursos naturais e culturais; produção de conhecimentos e técnicas mais específicos nessas áreas; estudos que contemplem as práticas turísticas, do meio ambiente e dos patrimônios em uma perspectiva transdisciplinar; colaborar com o crescimento e incremento do ensino, pesquisa e extensão na produção intelectual e de cunho científico e técnico nessas áreas; desenvolver estudos teórico-práticos em projetos investigativos na transversalidade dos estudos do turismo, patrimônios, meio ambiente e áreas afins; promover estudos e pesquisas que contemplem a transdisciplinaridade no turismo, patrimônios e meio ambiente; realizar estudos intercomplementares voltados para essas áreas que se retroalimentem pela inserção social e se valham da interconexão nas relações humanas, sociais e culturais no âmbito da gestão pública e da sociedade civil organizada; estudos que visem estabelecer parcerias e convênios com entidades públicas e privadas para promover a pesquisa e o desenvolvimento do turismo, dos patrimônios e meio ambiente, estudos de serviços de consultorias e troca de recursos humanos; pesquisas e conhecimentos sobre as atividades turísticas, nas políticas públicas que permitam a sustentabilidade do turismo; estudos como aqueles vinculados à Gestão Turística Sustentável e Meio Ambiente e Patrimônios, que considerem a importância da localização geográfica - uma das regiões mais estratégicas,


que pretendemos interferir inicialmente localiza-se no estado do Piauí, trata-se da região Meio Norte do Brasil, onde se pretende oferecer à sociedade estudos capazes de formar profissionais de qualidade para enfrentar problemas e propor soluções. Consideraremos estudos para uma região, Parnaíba, que tem uma economia voltada principalmente para o comércio e o turismo, somados a esses, estudos que considerem atividades extrativistas do babaçu, carnaúba, pesca artesanal, comercial, artesanato, práticas agrícolas, fruticultura, dentre outras. Na região, existem profissionais, dos mais diversos campos do conhecimento, que trabalham nos arranjos produtivos locais (além de instituições privadas temos presentes o ICMBio, o Iphan, a FUNASA, o INCRA, dentre outras). Portanto, desejamos apontar outros estudos, mas considerar as demandas da população à respeito de temas voltados para a Questão Ambiental, Turística e dos Patrimônios. Destaco ainda a importância dos patrimônios para o turismo, para a investigação, coordenação e gestão de projetos relacionados com a valorização turística do patrimônio e do meio ambiente em rede com outros campos locais de desenvolvimento, devidamente enquadrados em termos legais e com consciência ética científica e profissional, abordagens que permitam aos alunos competências para a resolução de problemas em contextos alargados e mais próximos da realidade; pesquisas relacionadas ao Delta do Parnaíba, considerado um dos ecossistemas atrativos para a prática do turismo sustentável.

Cássia Moura — Quais os produtos que o Coletivo Cultural VOX MUSEI lançará em junho de 2013, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, que marca o primeiro encontro com a sociedade? Áurea da Paz Pinheiro — Além do Congresso Internacional Arte, Patrimônio e Museus, que decorre entre os dias 20 a 22 de Junho em Lisboa, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, destaco a Revista VOX MUSEI arte e patrimônio, versão impressa e digital, disponível em www.voxmusei.ufpi.br. No periódico pretendemos fomentar debates, reflexões e interlocuções entre investigadores; o nosso desafio é apresentar trabalhos que permitam análises sobre o papel da arte, do patrimônio e dos museus, nomeadamente neste século, marcado pela dinâmica informativa e comunicacional, pela diversidade de culturas, perspectivas e olhares sobre o mundo. Lançaremos, ainda, no Congresso, a Coleção VOX MUSEI arte e patrimônio, livros, em suporte impresso e digital, e-book. O primeiro livro “Em cada conta um lamento. Incelências, benditos e rezas” é de autoria de Marluce Lima de Morais, uma jovem pesquisadora, que revela-se, nesta obra, uma historiadora competente e dedicada ao ofício tão bem descrito por Marc Bloch, historiador francês das mentalidades, que em suas memórias enfatizou a necessidade dos profissionais da História buscarem uma diversidade de testemunhos, para ele quase infinita. A Coleção VOX MUSEI pretende mostrar que o valor do patrimônio não está impresso em si mesmo, mas nas relações estabelecidas em um tempo e espaço dados, que é preciso considerar os indivíduos que ocupavam o solo, as formas de utilização dos recursos naturais, as formas de produção elaboradas ao longo do tem-


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po por culturas ancestrais, as relações com o patrimônio cultural, com a paisagem cultural - uma porção peculiar do território, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, em que a vida e a ciência humana imprimem marcas e atribuem valores. O selo VOX MUSEI adensa os espaços de debates, de reflexões e de interlocução de investigadores em uma perspectiva transdisciplinar; o desafio que se propõe aos pesquisadores é apresentarem trabalhos que permitam análises sobre o papel da arte, do patrimônio e dos museus. O selo VOX MUSEI selecionará e publicará livros que sejam resultados de pesquisas acuradas, árduas e criteriosas. Estudos que dialoguem com conceitos e métodos da História, da Antropologia, da Etnologia, que usem a Etnografia e da História Oral, dentre outros conceitos e metodologias possíveis.



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Notas de Dissertações e Teses Dissertação

POR ENTRE REZAS E PROCISSÕES. As celebrações em louvor ao Senhor Bom Jesus dos Passos. Oeiras, Piauí, Brasil (1859/2012) Defesa Pública: Março de 2013, por videoconferência. Autora: Ariane dos Santos Lima

Oeiras, Piauí, Brasil (1859/2012).” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 372-373.

Lima, Ariane dos Santos (2013) “Por entre rezas e procissões. As celebrações em louvor ao Senhor Bom Jesus dos Passos.

Orientação: Áurea da Paz Pinheiro Instituição: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Piauí Instituição Avaliação Externa: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Examinadores: Luís Jorge R. Gonçalves e Solimar Oliveira Lima

Resumo: No Brasil, são recorrentes as celebrações aos santos de devoção católica, que continuam a atrair multidões de fiéis em diversas comunidades. Os espaços religiosos das cidades guardam memórias de grupos e marcam experiências e identidades religiosas ancestrais. As celebrações mantém vivas tradições seculares e permitem a resignificação do patrimônio cultural brasileiro. Anualmente, em Oeiras, primeira capital do Piauí, na semana que antecede a Semana Santa, celebrase a memória do Senhor Bom Jesus dos Passos. São reatualizados elementos do catolicismo português, remanescentes do século XVI, transferidos para o Brasil ao longo da colonização; a celebração e ritualística têm caráter emotivo e penitencial. Nos dois dias, nos quais a Celebração acontece, os últimos momentos de Jesus Cristo rumo ao calvário são treatralizados em uma via sacra em estilo português. A imagem do Senhor Bom Jesus dos Passos segue em procissão pelas ruas estreitas da velha Oeiras, atraindo penitentes, devotos, pessoas em romaria de várias localidades. Esta pesquisa analisa a cultura e a experiência religiosa da Celebração, marcada pela presença de homens, mulheres, idosos e crianças - devotos, que ao longo dos séculos honram a Paixão de Cristo. Elegemos, nesta investigação, o diálogo entre a cultura religiosa e a experiência ritualística da Celebração, tomamos como referência dois marcos temporais para análise: a celebração oitocentista, organizada pela Confraria do Senhor Bom Jesus dos Passos e a Celebração na contemporaneidade do século XXI. O objetivo é analisar os ritos, as motivações e as manifestações dos devotos. Utilizamos a escrita histórico-etnográfica e um corpus documental variado, deste documentação de arquivo tradicional, fontes orais, etnográficas e audiovisuais. Palavras-Chave: Patrimônio Cultural. Religiosidade. Irmandades Católicas. Celebração. Piauí


Abstract: In Brazil, the celebrations to the Catholic saints are very recurrent, which keep attracting crowds of devout people in different communities. The religious spaces in cities keep memories of groups and signalize ancestral religious experiences and identities. The celebrations keep centenary traditions alive and enable the resignification of the Brazilian cultural patrimony. Every year, it is celebrated the memory of “Senhor Bom Jesus dos Passos” in the week before Easter in Oeiras, the first capital city of Piauí. Some remaining elements of Portuguese Catholicism from the XVI century that were transferred to Brazil during the process of colonization are updated; the celebration and Catholic rituals have an emotional and penitential nature. Nowadays, in which the Celebration happens, the last moments of Christ towards Calvary mount are acted in a Portuguese-like via sacra. The image of “Senhor Bom Jesus dos Passos” follows on a procession through the narrow streets of Oeiras atracting penitents and pilgrims from various locations. This paper analyses the culture and religious experience of the Celebration, which is marked by the presence of men, women, old people and children – devout people who have honored the Passion of Christ for centuries. We have chosen the dialogue between the religious culture and the ritualistic experience of the Celebration for this investigation, and we have taken two moments as references for our analysis: the celebration that used to happen in the XVIII century, organized by the confraternity of “Senhor Bom Jesus dos Passos”, and the one that happens in contemporaneity. Our objective is to analyze the rituals, motivations and manifestations of the believers. We have used the historic-ethnographical writing and a varied documental corpus, since documents from traditional archives to oral, ethnographical and audiovisual sources. Keywords: Cultural patrimony. Religiosity. Catholic confraternities. Celebration. Piauí

Dissertação EM CADA CONTA UM LAMENTO. Incelências, benditos e rezas [Alto Longá, Piauí 1980-2011] Defesa Pública: Março de 2013, por videoconferência. Autora: Marluce Lima de Morais Orientação: Áurea da Paz Pinheiro Instituição: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Piauí Instituição Avaliação Externa: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Examinadores: Fernando António Baptista Pereira e Marta Rosa Borin

Resumo: Apresentamos nesta dissertação os resultados de uma pesquisa de natureza histórico-etnográfica sobre as atitudes diante da morte e dos mortos, rituais praticados por senhores e senhoras rezantes no Nordeste do Brasil; elegemos a cidade


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de Alto Longá, no sertão do Piauí, como espaço de investigação. A partir de aportes teórico-metodológicos da História e da Antropologia, procuramos comprender e interpretar, nas histórias de vida e de devoção, os sentidos e significados de gestos, orações, palavras e emoções, que marcam as canções e os lamentos diante da morte – as Incelências. Privilegiamos a metodologia da História Oral e Etnografia, conceitos de história de vida, memória, tradição, religiosidade e devoção. Buscamos compreender de que maneira os rituais de morte significam e se tornam parte das vivências de uma comunidade diante às interferências de um tempo carregado de agoras.

Piauí 1980-2011].” Revista Vox Musei arte e património. ISSN 2182-9489. Vol. 1 (1): pp. 373-374.

Morais, Marluce Lima de (2013) “Em cada conta um lamento. Incelências, benditos e rezas [Alto Longá,

Palavras chaves: Rituais fúnebres. Incêlencias. Piauí. Memória. História.

Abstract: We present the results of a historical-ethnographic research about the attitudes towards death and the ones who are dead, about the funeral rituals practiced by praying ladies and old men in Piauí; we have chosen the city of Alto Longá, in the “sertão” of Piauí, as the place in which to run the investigations. Departing from the theory and methodology of History and Anthropology, we intend to understand and interpret the meanings and significations of gestures, prayers, words and emotions which are remarkable in the songs and mourning – Incelências (wailing songs) – in their lives and devotion. We privileged the methodology of Oral History and concepts such as life history, memory, tradition, religiosity and devotion. We tried to understand in which way the funeral rituals acquire meaning and become part of the life experiences of a community in front of the interferences of a period full of ‘nows’. Keywords: Funeral rituals, Incelências, Piauí, Memory, History.




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