#3 Revista Taipa - Março 2018

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Revista da Diretoria do Patrimônio Cultural / FCC

ISSN 2238-5592

MARÇO 2018

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Capa – Região da Praça Garibaldi em março de 2018. Destacase o prédio da Sociedade Garibaldi, obra do engenheiro italiano Ernesto Guaita, a quem se atribui, em 1882, a abertura do primeiro escritório de arquitetura da cidade. Lançada a pedra fundamental em 1887, a conclusão do prédio ocorreria somente em 1904. Foto: Marcos Campos. Acervo: DPC / FCC

Fonte: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa


Revista da Diretoria do Patrimônio Cultural / FCC

MARÇO 2018


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TAIPA

SUMÁRIO


06. Aparecida Vaz da Silva Bahls

22. BIGORRILHO, NO ENTRELAÇAR DE TEMPORALIDADES E MEMÓRIAS Maria Luiza Gonçalves Baracho

40. SOBRE MEMÓRIA E CIDADES

16. ENTRE FLÂNEURS E CHANTEUSES a modernidade passa pelas palavras Elizabete Berberi

32. UM OLHAR SOBRE A CURITIBA DOS ANOS 1970, SEU CONTEXTO ARTÍSTICO E A CRIAÇÃO DO CCC Angela Maria de Medeiros Rodarte

Marcelo Saldanha Sutil

46.

50.

MUSEU DA GRAVURA CIDADE DE CURITIBA registros de uma história

GESTÃO CULTURAL, TRANSFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS E A MUDANÇA NO PERFIL DOS MUSEUS Carla Anete Berwig

Ana González

58. ARTHUR WISCHRAL, Acervo Marcelo Saldanha Sutil, Maria Luiza Gonçalves Baracho

REVISTA DA DIRETORIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL / FCC

SANEAR E AFORMOSEAR a urbanização das praças na Curitiba antiga

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EDITORIAL

O patrimônio é um tema multidisciplinar. Muitas também são as leituras e os entendimentos acerca de uma matéria ao mesmo tempo real e subjetiva. Arquitetos, historiadores, antropólogos, arqueólogos, restauradores, enfim, variadas também são as categorias profissionais que se debruçam sobre o assunto. Muito mais abrangente, ainda, é o público para quem se destina a preservação e o reconhecimento dos bens culturais. É preciso, antes de mais nada, conhecer, apropriar-se, identificar-se... ter o pertencimento. É necessário, primeiramente, saber como uma comunidade lida com todos esses sentimentos. É dessa matéria fluida que os técnicos do patrimônio retiram as razões, as indagações e constroem as memórias e os conceitos que fazem um patrimônio. Neste terceiro número, a Taipa, até então voltada para publicações de resultados de pesquisa dos editais do Fundo Municipal de Cultura,

É preciso, antes de mais nada, conhecer, apropriar-se, identificar-se... ter o pertencimento. É necessário, primeiramente, saber como uma comunidade lida com todos esses sentimentos. privilegia a produção dos técnicos e pesquisadores da Diretoria do Patrimônio Cultural/FCC. Também neste número, seções da revista são melhor delineadas: história, museus, patrimônio e acervo pontuam os textos. Dessa forma, olhares sobre a modernidade dos anos da belle époque curitibana perpassam por trabalhos que evocam processos de urbanização e a maneira como expressões e palavras estrangeiras, sobretudo francesas, então construíam a imagem de progresso almejada para a capital; a expansão urbana transformando uma área lamacenta, de barrocas, num dos bairros mais valorizados da cidade, assim como um panorama de movimentos artísticos na década de 1970, apresentam faces de uma Curitiba em diferentes épocas do século 20. Nesse sentido, uma rápida análise sobre memória e cidade nos leva a pensar nos motivos e nas razões que nos permitem construir memórias afim de justificar nossos patrimônios. Paralelamente às questões urbanas, a trajetória do Museu da Gravura da Cidade de Curitiba, seu acervo artístico e os desafios frente às gestões culturais na mudança de perfil dos museus completam este volume da Taipa, dimensionando, assim, a amplitude que a temática do Patrimônio abraça.

Marcelo Saldanha Sutil Diretoria do Patrimônio Cultural

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No antigo Boulevard 2 de Julho, hoje Avenida João Gualberto, destaca-se o Palacete Leão Júnior, de inspiração renascentista, projetado por Cândido de Abreu para Agostinho Ermelino de Leão Júnior e sua esposa Maria Clara de Abreu Leão, que ali passaram a residir em 1902. Em segundo plano, numa leitura normanda, outro marcante exemplar da arquitetura eclética de Curitiba, a Vila Odete, de 1928, projetada por Gastão Chaves para Agostinho Ermelino de Leão, filho de Leão Júnior. Março de 2018. Foto: Marcos Campos. Acervo: DPC / FCC

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REVISTA DA DIRETORIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL / FCC


Formada em História pela UFPR com Doutorado em História pela UFPR. Historiadora da DPC / FCC

APARECIDA VAZ DA SILVA BAHLS

SANEAR E AFORMOSEAR a urbanização das praças na Curitiba antiga Para um sagaz observador do cotidiano, Curitiba era um vasto campo de possibilidades naquele início dos anos de 1900. A cidade se transformava, sobretudo espacialmente com o antigo casario colonial cedendo lugar aos imponentes sobrados ecléticos que emolduravam vias e praças. É bem verdade que a capital carecia de diversos melhoramentos, como água potável, esgotos e pavimentação. Tais deficiências estruturais, no entanto, não impediam que um sentimento ufanista de prosperidade se desenvolvesse entre seus habitantes.

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A tônica da gestão pública era sanear e embelezar ou, nos dizeres da época, aformosear a urbe. Esse pensamento vinha de encontro aos ideais higienistas promulgados por teóricos europeus que buscavam impedir a disseminação de doenças por meio da eliminação de focos de miasmas e de lugares insalubres, dentre outros males urbanos que afligiam importantes cidades do mundo.

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Aliada às preocupações sanitaristas, estudiosos também demonstraram interesse na melhoria estética das cidades, buscando encontrá-la nas propostas dos modelos da cidade ideal. Dentre eles, destacamos o modelo proposto pelo arquiteto vienense Camillo Sitte. Defensor dos espaços livres, Sitte elaborou sua teoria da cidade ideal em 1889, e se preocupou em descrever a finalidade das praças e sua interligação com os outros elementos do quadro urbano: Não há dúvidas quanto à importância de tais interrupções na grande massa de edifícios de apartamentos através da manutenção de amplos espaços abertos, essenciais para a saúde, mas não menos importantes para o êxtase do espírito, que encontra repouso nestas paisagens naturais espalhadas em meio à cidade1.

As ideias do arquiteto contribuíram para a valorização das praças e parques pelo mundo. O verde até então preterido por fazer referência ao campo, ganhou notoriedade no espaço urbano, sobretudo num cenário de poluição e adensamento populacional que marcou as cidades do continente europeu no período da Revolução Industrial, no século 18, como Londres e Paris. Com o passar do tempo, os jardins urbanos se tornaram instrumentos eficazes para combater o congestionamento e a desordem das grandes cidades, enquanto embelezavam o ambiente e serviam de área de recreação para a população, além de suas funções sanitárias e higiênicas. No Brasil, ainda ao tempo da colônia, a preocupação com a natureza já pode ser percebida a partir do século 18 com a instalação de hortos botânicos. O objetivo de sua instalação, no entanto, visava o lucro:

Diferentemente dos hortos botânicos que pretendiam estudar a vegetação brasileira visando à comercialização, a criação dos passeios públicos esteve ligada à implantação das ideias salubristas, voltadas à eliminação dos focos de miasmas e ao lazer da população urbana. Baseado nesses preceitos foi construído o Passeio Público do Rio de Janeiro, entre 1779 e 1783, o primeiro do país e que, com o passar do tempo, foi sendo remodelado. A natureza continuou se destacando nas principais cidades brasileiras. No final do século 19, os largos existentes foram sendo substituídos por praças arborizadas e, paulatinamente passaram a atrair a população. Passear por suas aleias e apreciar as famosas retretas executadas pelas bandas de música nos coretos dos logradouros se tornou um hábito muito apreciado entre os moradores da urbe. 1

SITTE, Camillo. A construção das cidades: segundo seus princípios artísticos. 4. ed. São Paulo: Ática, 1992. p.167.

BAHLS, A. V. S. O verde na metrópole: a evolução das praças e jardins em Curitiba (1885 – 1916). Dissertação. Universidade Federal do Paraná. Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curitiba, 1998, p.4.

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O objetivo era aclimatar plantas exóticas, na colônia, provenientes da África ou da Ásia, bem como desenvolver a produção de um conhecimento científico sobre a flora brasileira. Com isso, Portugal esperava competir com as especiarias cultivadas no Oriente, além de encontrar novas espécies economicamente interessantes. O primeiro horto a ser implantado foi o de Belém, em 1798, seguido pelos de Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e São Paulo2.

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Assuntos ligados à higiene, embelezamento da cidade, saneamento, calçamento representavam algumas das questões que preocupavam as autoridades brasileiras. Em Curitiba não foi diferente. O avanço econômico, no entanto, vivenciado na capital com a comercialização da erva-mate contribuiu para que surgisse entre produtores e industriais um desejo de progresso, atribuindo um novo sentido à urbe. A construção do Passeio Público, inaugurado em 1886, e a urbanização das praças, nos anos posteriores, se inserem nesse afã de modernidade.

A remodelação das praças Podemos considerar a criação do Passeio Público como o impulso inicial para a afirmação da nova paisagem de Curitiba, a qual se estendeu às ruas e praças, que passaram a receber árvores e plantas ornamentais. A municipalidade deveria empenhar-se em “conservar o maior número possível de largos e praças como áreas de saneamento da população e futuros locais ajardinados e arborizados formando squares e pontos de recreio”.3 Ainda hoje é possível encontrarmos registros de memorialistas que vivenciaram esse período e que mais tarde se dedicaram a escrever sobre as transformações urbanísticas que ocorreram em Curitiba. A professora América da Costa Sabóia representa uma delas. Ao relatar sobre a Praça Osório, ela comenta:

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Passeio Público em 1906. Destaque para a vegetação exuberante. Acervo: DPC / FCC

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No começo do século [20], a Praça Osório era um extenso retângulo cortado ao meio pela linha de bondes que vinha da rua Comendador Araújo para a Avenida Luiz Xavier. O espaço restante era recoberto de seixos rolados, bem alvos e inteiramente arborizado de álamos, árvores frondosas e bonitas, mais tarde erradicadas totalmente, segundo se dizia, por se haver descoberto que carregavam na base de suas folhas germes prejudiciais à saúde.4

As praças também passaram a receber eventos variados. Enquanto eram apenas grandes descampados, em fins do século 19, era comum a instalação de companhias circenses nesses locais, vindas de outras partes do Brasil e do exterior, e até das companhias que promoviam inusitadas touradas. À medida que recebiam melhorias, os logradouros tiveram outras finalidades. Tanto que, no final de 1903, para comemorar os cinquenta anos da emancipação política do Paraná, foi realizada uma grande exposição de produtos paranaenses agrícolas e manufaturados, na Praça Eufrásio Correia.5

A exposição permaneceu até meados de 1904, quando foi inaugurado, na Tiradentes, o monumento em honra a Floriano Peixoto. Nesse período, Luiz Xavier então prefeito de Curitiba, realizou várias mudanças na Praça General Osório. Xavier autorizou a arborização da avenida que ligava a Rua 15 de Novembro à Estrada do Mato Grosso, atual Comendador Araújo, atravessando toda a praça. Vale ressaltar que muitas das árvores plantadas foram doadas por particulares. Os Srs. Fido Fontana e Fernando Hürlimann ofereceram trinta espécimes, cada um7. Além disso, em torno da praça foi feito calçamento, a terraplenagem e o revestimento da área com saibro e pedregulho, dentre outros serviços8. Em março de 1905, estava concluído o embelezamento da Osório.

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BOLETIM do Arquivo do Paraná. Curitiba: DAMI, v. 19, n. 15. p. 8, 1984.

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SABÓIA, América da Costa. Curitiba de minha saudade: 1904-1914. Curitiba: Lítero-Técnica, 1978. p. 19.

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A REPUBLICA. Curitiba, 19 dez. de 1903. p.4.

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1903 – Um relato sobre Curitiba. In: Boletim do Arquivo do Paraná. Curitiba, v. 11, n. 19, 1986. p. 33.

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A REPUBLICA. Curitiba,14 jun. 1904. p. 2.

ACTA da sessão ordinária em 22 de Setembro de 1904. In: Annaes da Camara Municipal de Curytiba – 1904/1908. Sessões de 21 de Setembro de 1904 a 11 de Julho de 1905. Curytiba : Typ. D`A Republica. p. 6.

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O evento atraiu jornalistas de todo o país, que assinalaram suas impressões sobre a cidade. Segundo o carioca Tobias Monteiro, havia muitas ruas calçadas, algumas com paralelepípedos e a praça da catedral era ajardinada. A iluminação se estendia ao centro e arredores. Mas o jornalista também evidenciou a precariedade dos serviços públicos: “As ruas são largas, muito bem delineadas; mas as lâmpadas de iluminação são fracas e, colocadas de um só lado, deixam o outro na penumbra”.6

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Praça Osório em 1905, após as reformas realizadas por Luiz Xavier. Ao fundo, as torres da Catedral. Coleção Júlia Wanderley. Acervo: DPC / FCC

Também estavam previstas, nesse período, diversas obras para a Praça Carlos Gomes. Sabemos por estes poucos dias vão ser encetados os melhoramentos na Praça Carlos Gomes. Para este fim já se estão organizando os respectivos orçamentos e plantas. Sabemos mais que presidirá ao embelezamento desta praça, um estilo inteiramente diverso dos que têm sido adotados nas demais praças ultimamente beneficiadas pela municipalidade. O primeiro serviço será a canalização do rio Ivo que, como se vê, diariamente está desbarrancado, seguindo-se a construção de um belíssimo jardim, com plantação de flores, etc.9

A remodelação do espaço começou em abril de 1906, com a canalização do rio Ivo. Na ocasião, os moradores da Rua Marechal Deodoro, entre as ruas Dr. Murici e Marechal Floriano, solicitaram a abertura de uma rua que, acompanhando o rio Ivo, ligasse a Rua Dr. Murici à Praça Carlos Gomes10. O pedido dos requerentes foi aceito e, inclusive, segundo foi anunciado pela imprensa, seria mantido o grande carvalho que havia na “embocadura da nova via pública, na parte referente à Praça Carlos Gomes...”11, evidenciando o zelo pela natureza já existente naquela época. Para a Praça Municipal, mais tarde denominada Generoso Marques, o poder público resolveu investir nas reformas do Mercado que ali existia desde 1874 e se tornara pequeno para conter os seus comerciantes e consumidores, além de suas péssimas condições estruturais. A nova construção aproveitou parte do Mercado já existente, e procurou seguir as normas de higiene e estética.

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A REPUBLICA. Curitiba, 4 fev. 1905. p. 2.

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A REPUBLICA. Curitiba, 26 abr. 1906. p. 1.

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A REPUBLICA. Curitiba, 25 ago. 1906. p. 2.


A reforma, concluída no final de 1906, deu novo aspecto à construção. Em seu interior, foram instalados diversos appartments para conter o comércio, além de sanitários públicos. A fachada do prédio recebeu novo frontão.12 A Praça Tiradentes, por ser a mais central, recebeu atenção da municipalidade em diversas ocasiões. Em 1912, o prefeito Joaquim Pereira de Macedo comentou que fazia muito tempo que o logradouro necessitava de reformas13. A demora em remodelar a Tiradentes foi justificada pela falta de uma fiscalização adequada contra os malfeitores. Por causa disso, foi criada a Guarda Civil. Também foi contratado um jardineiro para embelezar a praça. Em 15 de abril daquele mesmo ano, em mensagem à Câmara, o prefeito comunicou o término das obras de ajardinamento e o início do ensaibramento dos passeios. Além disso, estava quase pronto um dos dois chafarizes que serviriam para ornamentar o logradouro e, ainda em projeto, a construção de um coreto. Vale ressaltar a polêmica que ocorreu em virtude da retirada de diversas árvores da Tiradentes para a sua remodelação. A imprensa reagiu indignada e organizou um abaixo-assinado em protesto: Exmo. Sr. Prefeito municipal da capital. Os abaixo-assinados, representantes da imprensa da capital, foram surpreendidos hoje com a noticia e depois com a verificação de que estão sendo barbaramente sacrificadas árvores plantadas para decoração da Praça Tiradentes, gozo e higiene pública.14

Em 1913, teve início a segunda gestão do engenheiro Cândido de Abreu à frente da Prefeitura de Curitiba, um período em que as praças receberam significativas reformas e quando foram instaladas inúmeras peças decorativas em seu interior. A Tiradentes recebeu a instalação de um coreto e dois chafarizes. Para a Praça Osório foi elaborada a planta de um novo jardim por um arquiteto de nome Michel. De acordo com a planta, a Rua 15 se prolongaria até a Avenida Vicente Machado, de forma retilínea.16

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A REPUBLICA. Curitiba, 28 dez. 1906. p. 2.

ACTA DA SESSÃO em 15 de Janeiro de 1912. In: Annaes da Camara Municipal de Curytiba – Sessões de 21 de Outubro de 1911 a 30 de Julho de 1912. Curytiba : Typ. do Diario Official, 1912. p. 29-30.

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A REPUBLICA. Curitiba, 4 nov. 1911. p. 1.

MENSAGEM de 21 de Setembro de 1912. In: Administração Municipal de Coritiba no quatriennio 1908–1912 – Prefeito Joaquim Pereira de Macedo. Coritiba : Livraria Economica, 1912. p. 10.

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A REPUBLICA. Curitiba, 4 mar. 1913. p. 2.

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Os jornais também destacaram o tempo que o arvoredo levou para crescer e sua utilidade de proteção para a população, nos dias quentes. Joaquim Macedo, por sua vez, não se abalou e argumentou que agiu em nome da estética e do ordenamento urbanos, tendo transformado a praça num dos “logradouros mais aprazíveis da capital”.15

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Cândido de Abreu também participou do lançamento da pedra fundamental da Universidade do Paraná na Praça Santos Andrade em 31 de agosto de 1913, e, no ano seguinte, autorizou o início da construção da primeira sede própria da Prefeitura de Curitiba, na atual Praça Generoso Marques, concluída três anos mais tarde. Na Praça Carlos Gomes, foi construído um lago com uma cascata artificial e um abrigo para na forma de um pequeno castelo. Ali seriam colocados casais de cisnes brancos e pretos”.17 Em julho de 1914, os canteiros da Praça Osório estavam delineados e a base para a instalação de uma fonte ornamental, já concluída. Também estava em construção uma coluna de granito para a colocação de um relógio, além de ter sido encomendado um coreto. Na Praça Eufrásio Correia, o prefeito pretendia instalar uma fonte, adquirida na Europa. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) prejudicou o andamento das obras. Alguns elementos decorativos encomendados no exterior, como um grupo de estátuas de bronze para a Praça Osório não puderam ser embarcados para o Brasil, dificultando o término das remodelações dos logradouros públicos, que só aconteceu em 1916.18 17

A REPUBLICA. Curitiba, 26 maio 1914. p. 1.

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BAHLS, op. cit., p.178.

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Praça Tiradentes, década de 1920. Destaque para a arborização do logradouro. Ao fundo, a Catedral. Foto: Arthur Wischral. Coleção Reinaldo Garmatter. Acervo: DPC / FCC

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Praça Eufrásio Correia, 1920. Ao fundo, imóveis localizados na Rua Barão do Rio Branco. Foto: Arthur Wischral. Coleção Reinaldo Garmatter. Acervo: DPC / FCC

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Praça Carlos Gomes, década de 1920. Note-se no lago, o castelinho construído para servir de abrigo para os cisnes. Foto: Alexandre Linzmeyer. Acervo: DPC / FCC

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De campos desnivelados, abandonados e insalubres que serviam de pasto para os animais, os logradouros públicos evoluíram e se tornaram importantes elementos da trama urbanística das cidades. A população percebeu tais mudanças e aos poucos se apropriou desses espaços, fosse para apreciar as bandas executarem seus concertos nos coretos, para passear por entre suas aleias, ou para dedicar-se ao deleite e contemplação da natureza. Um convite inestimável para o observador da Curitiba antiga.

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Reinauguração da Praça Santos Andrade, em 7 de setembro de 1922, nas comemorações do centenário da independência do Brasil. Ao fundo, prédio da Universidade do Paraná com a fachada original. Foto: Linzmeyer, L. & Rezler. Coleção Lysímaco Ferreira da Costa. Acervo: DPC / FCC

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Referências ACTA DA SESSÃO em 15 de Janeiro de 1912. In: Annaes da Camara Municipal de Curytiba – Sessões de 21 de Outubro de 1911 a 30 de Julho de 1912. Curytiba : Typ. do Diario Official, 1912. BAHLS, A. V. S. O verde na metrópole: a evolução das praças e jardins em Curitiba (1885 – 1916). 225p. Dissertação. Universidade Federal do Paraná. Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curitiba. 1998. BOLETIM do Arquivo do Paraná. Curitiba: DAMI, v.19, n.15. 1994. MENSAGEM de 21 de Setembro de 1912. In: Administração Municipal de Coritiba no quatriennio 1908–1912 – Prefeito Joaquim Pereira de Macedo. Coritiba: Livraria Economica, 1912. A REPUBLICA. Curitiba, 19 dez. de 1903. A REPUBLICA. Curitiba, 14 jun. 1904. A REPUBLICA. Curitiba, 4 fev. 1905. SABÓIA, América da Costa. Curitiba de minha saudade: 19041914. Curitiba: Lítero-Técnica, 1978. SITTE, Camillo. A construção das cidades: segundo seus princípios artísticos. 4.ed. São Paulo: Ática, 1992.

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1903 – Um relato sobre Curitiba. In: Boletim do Arquivo do Paraná. Curitiba, v. 11, n.19, 1986.

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Formada em História e Letras, Língua e Literatura Italiana pela UFPR; mestre em História Social pela UFPR.

ELIZABETE BERBERI

ENTRE FLÂNEURS E CHANTEUSES a modernidade passa pelas palavras O período compreendido entre o final do século XIX e início do século XX constitui um momento de inovações, de mudanças em vários níveis da sociedade, de crescimento, de disseminação de novas ideias, intenções e práticas, e que tem seu grande símbolo na belle époque. Viver então em uma cidade como Curitiba — capital da antiga província, e agora, do estado — implicava em tomar contato com novas experiências e com expectativas de um grau de civilização desejado que se projetavam. Vivia-se em meio a algumas modificações elaboradas por seus dirigentes e sonhadas por seus intelectuais, no intuito de colocar a cidade à altura de uma capital moderna.

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Já na década de 1910, o número de periódicos que circulavam em Curitiba era bastante grande, levando em conta o tamanho da cidade que apesar de ser a capital do Paraná, era ainda uma cidade pequena, que pouco a pouco se desenvolvia e via aumentar o número de seus habitantes. Mas o movimento

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intelectual no período foi muito intenso, e os escritores, jornalistas e literatos de modo geral mantinham contato direto com o que acontecia nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, e acompanhavam o que se passava fora do país, principalmente em Paris. Assim, os movimentos culturais, as novas tendências na literatura e na imprensa chegavam por aqui e inspiravam muitos dos escritores locais, num momento em que quase todos desejavam que a cidade crescesse e acompanhasse as modificações e modernizações que estavam em voga. As revistas literárias, humorísticas, satíricas e anticlericais se multiplicavam, e na sua maioria, fosse qual fosse a sua proposta, apresentavam uma seção destinada à literatura. Tais textos, principalmente as crônicas do início do século XX, foram meu objeto de estudo no mestrado. Durante a pesquisa, um aspecto que chamou bastante a atenção foi o uso de termos em língua estrangeira associados a determinadas situações e descrições.

Um texto coerente é aquele que, em última análise, faz sentido para quem o lê, desperta no leitor uma rede de conhecimentos anteriores, adquiridos ao longo de sua experiência e dos quais ele se vale para compreender o texto, para reconhecê-lo, enquadrá-lo, enfim, para recebê-lo. O escritor, por sua vez, também parte de seus conhecimentos, sua experiência e formação para produzir o seu texto, e, desta maneira seu conhecimento se reflete em sua produção e mais do que isso, sua interpretação de mundo. O que parece ser fundamental para a análise de texto é a noção de conhecimento prévio, ou conhecimento partilhado, pois sem que isso se verifique, não é possível que o texto atinja o leitor, que comunique alguma coisa, que faça, enfim, sentido para quem o lê. Assim, temos o conhecimento linguístico, o conhecimento de mundo e o contexto como elementos fundamentais para a compreensão do texto. O próprio escritor baseia-se neste conhecimento e pressupõe que o seu leitor poderá compreendê-lo, estará apto a fazer inferências a partir do texto, ou seja, o escritor poderá comunicar o que deseja. Ele acaba projetando, ou melhor, estabelecendo um tipo determinado de leitor: o leitor para o qual escreve. As crônicas de revistas com as quais trabalhei circularam em Curitiba no início do século XX, precisamente de 1907 a 1913. Trata-se de revistas humorísticas ou literárias, que, além de buscar divertir o público leitor, faziam uma crítica ao que estava acontecendo no momento.

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Essa escolha dos autores pode revelar suas intenções, construções de imagens a serem veiculadas, concepções de texto e de mundo, assim como o tipo de leitor que tinham em mente. Como esses textos, ou seja, as crônicas, foram produzidas em contextos específicos, é necessário levar em conta a modalidade e o estilo que apresentam. Um de seus aspectos importantes diz respeito às várias referências a obras ou personagens da literatura, o que destaca a visão e importância dada à educação formal e à literatura como partes fundamentais da formação dos jovens naquele período.

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Os assuntos que surgem nessas crônicas são sempre ligados à cidade, a seus personagens, desenvolvimento ou atraso, políticos, epidemias, educação, enfim, temas do cotidiano, até porque a crônica, como gênero em si, tem como característica básica tratar dos temas cotidianos, é a “conversa-fiada do dia a dia”, a conversa entre o escritor e o leitor. Esta intenção fica evidente porque o cronista conta o que vê: ele vaga pela cidade como um detetive, ou um flâneur, anotando, percebendo, investigando, e comenta tudo com o seu leitor. Parte do princípio que seu leitor sabe mais ou menos do que ele está falando, afinal, habitam a mesma cidade, conhecem os tipos, as ruas, as lojas, as igrejas, os hábitos. E o que o leitor ainda não conhece, o cronista lhe apresenta, em forma de conversa entre amigos. Os cronistas, em sua grande maioria, eram intelectuais que tinham uma formação em direito, engenharia, medicina, ou ainda outra área, mas que escreviam porque era como se fosse parte de uma missão e também para criar certo perfil de intelectual. Vários eram professores no Ginásio Paranaense, ensinavam matemática, geografia, línguas ou história, mas estavam certos de que, através da literatura é que a sociedade cresceria e se desenvolveria. Escrever fazia parte do momento. A influência das correntes literárias francesas, dos movimentos mais modernos que colocavam o artista como centro difusor de ideias, estava bem presente na pacata Curitiba do início do XX. O literato era o revolucionário, o moderno, o que se guiava pela história, mas também a construía; era o jornalista-detetive que retratava a cidade a partir de seus passeios e suas reflexões sobre o que via.

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Um dos elementos que chama a atenção nessas crônicas, como citado, é o uso de expressões em inglês e francês, além de referências a personagens de romances e seus autores, na maioria franceses igualmente. Pode-se pensar que o emprego dessas expressões fazia com que o escritor conferisse ao seu texto uma roupagem mais moderna, de acordo com as expectativas de novidade e desenvolvimento intelectual e material que se desejava naquele momento. A França era um centro cultural (podese dizer, o principal) ao qual todos se remetiam; era entendido como o local por excelência das novas tendências e movimentos artísticos. Movimentos esses que, no início do século XX, se interessavam pela realidade das ruas, dos cassinos, dos prostíbulos, da boemia em geral. Se voltavam para a massa humana nos grandes centros urbanos, já presente nos registros de autores ingleses que

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conviviam a mais tempo com a presença das multidões desde a Revolução Industrial. Mas além da maneira como o cronista trabalhava o seu texto, as palavras que usava por gosto próprio ou ideologia, ele pretendia que o seu leitor compreendesse e participasse de sua “conversa” (como dissemos, uma das características da crônica é esta, a de ser quase uma conversa com o leitor), logo este leitor deveria ser capaz de dominar pelo menos alguns destes códigos, destes elementos. Para além dos temas que os cronistas trabalhavam em seus textos, pretendiam que suas escolhas semânticas fossem compreendidas pelo leitor; logo, para participar dessa “conversa”, o leitor deveria ser capaz de dominar alguns códigos linguísticos. No material analisado, percebe-se que, de 71 crônicas, mais da metade delas apresenta pelo menos um termo em inglês ou em francês, algumas mais. Há algumas palavras, expressões e nomes que chamam a atenção por sua recorrência:

A quantidade de palavras em francês é grande, utilizadas para se referir a encontros, vida noturna e seus elementos. Sabe-se que neste período, além do latim, era o francês que se ensinava nas escolas. O inglês ainda não tinha o mesmo alcance, mas começava a se firmar como símbolo do moderno e do dinâmico. As palavras em italiano mostram não só o conhecimento de alguns autores, mas também a presença desse imigrante na sociedade local.

Procuramos manter a grafia das palavras como se encontram nas crônicas.

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chanteuse (para se referirem às cantoras dos cafés ou bordéis, que se passavam sempre por francesas); habitué (os frequentadores destes locais); silhouettes; chic; rende-vouz; vis-à-vis; amant du coeur; cocotte; boudoir; bohème dorée; boulevard; conteur; charivari, château, au grand jour; Poe; Conan Doyle; Valgean; nibellungen; cold-cream; smart; smartismo; Houbigant; skine; vecchia zimarra; nazo; salão smoking; smokers; si non è vero è bene trovato; musichalls; skill; policemen; struggle for life; our smart city; flirt*.

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Os cronistas escreviam para um pequeno número de leitores, afinal, nem todos na cidade eram alfabetizados. Mas além disso, exigiam do leitor mais do que a simples alfabetização. Mesmo que tivesse noções de francês, deveria ter conhecimento de um pouco de inglês e de literatura, uma vez que personagens e autores aparecem citados e sem nenhuma explicação aparente, como se o leitor soubesse exatamente do que se tratava. Por exemplo: Valjean é personagem de Os miseráveis, de Vitor Hugo; Poe é o escritor Edgar Allan Poe, que também tratou do tema da multidão; salão smoking era, literalmente, “o salão de fumar”, e smokers, os casacos curtos que os homens vestiam para ali fumar charutos; smart e smartismo definiam o que era moderno, na moda, atual; château (castelo) era como os cronistas se referiam ironicamente aos seus quartos; cold cream indicava um cosmético, utilizado sobretudo por atrizes; cocotte era a prostituta; charivari, a grande confusão; rendez-vous, literalmente “encontro”, assumiu nas crônicas o sentido de encontro com prostitutas; boudoir se referia ao “toucador” O cronista escrevia para um leitor que ele supunha ter o mesmo grau de formação que ele tinha, ao menos, parecido. Um leitor que acompanhasse o que acontecia pelo mundo, que se interessasse pelas novidades no campo da cultura, pela literatura, enfim, um leitor que compartilhasse referências. Mas escrevia também para quem não tinha exatamente as mesmas referências, e era para ele também que se dirigiam as descrições dos lugares, pessoas, moda. O número de crônicas que foi observado pode parecer grande num primeiro momento, mas é necessário um número ainda maior para que as conclusões sejam mais precisas. Contudo, a hipótese de que tanto escritor quanto leitor compartilhavam de ideias sobre o que era moderno e sobre a cidade que se transformava, que se imaginava ou que se queria construir, parece ser uma hipótese plausível. E ser moderno era também atestado pelas expressões e palavras em outra língua, notadamente o francês e o inglês. No geral, as expressões em francês denominavam/nomeavam o mundo da boemia, do amor, do frívolo, e também do que era elegante. Quando se queria falar de movimento, modernização ou rapidez, utilizavam-se os termos em inglês. Estas são questões, entre tantas outras, de um material extremamente rico a ser estudado, tanto no campo da História quanto das Letras. Trazê-las à luz, aproximá-las dos leitores de hoje é sempre um grande prazer e realiza o desejo de que sejam cada vez mais lidas, estudadas e principalmente, apreciadas.

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As revistas O Olho da Rua, A Bomba e A Rolha podem ser encontradas na Biblioteca Pública do Paraná, no setor de Documentação Paranaense, ou no site www.chronicadarua.com. Há também exemplares originais de outros periódicos, disponíveis igualmente na Biblioteca Pública do Paraná, que podem ser consultados excepcionalmente, ou mais facilmente, acessados em microfilmes. Fica o convite para que hoje se continue a leitura destas crônicas.

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Fontes MONUMENTA. Crônicas de revistas do início do século em Curitiba, 1907-1914. Curitiba: Aos Quatro Ventos. Vol. 1, n. 2. Outono 1998. Este volume contém crônicas das seguintes revistas e anos: O Olho da Rua. 1907, 1908, 1909, 1911 A Rolha. 1908 Palladium. 1909 O Paraná. 1910, 1911 A Bomba. 1913 O Miko. 1914

Referências BENTES, Ana Christina. Lingüística textual. In: Mussalin & Bentes (org). Introdução à lingüística. São Paulo: Cortez, 3 ed., 2003. BERBERI, Elizabete. Impressões; a modernidade através das crônicas no início do século XX em Curitiba. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998. BERBERI, Elizabete & RODRIGUES, Marília Mezzomo. A “urbs” viciosa; a crônica está além da notícia. Curitiba: 1992. Monografia, Bacharelado em História, Universidade Federal do Paraná. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar; a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. CANDIDO, Antonio [et al.]. A Crônica; o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ed. Ática, 7 ed., 2002. PEREIRA, Luis Fernando Lopes. A modernidade na mira do poeta. História: Questões e Debates, Curitiba, 11(20-21): 163-173, jun.-dez. 1990.

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SUTIL, Marcelo Saldanha. O espelho e a miragem: Moradia e modernidade na Curitiba do começo do século 20. Curitiba: Travessa dos Editores, 2009. (A Capital).

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Graduação, mestrado e doutorado em História pela UFPR. Historiadora da DPC / FCC

MARIA LUIZA GONÇALVES BARACHO

BIGORRILHO, NO ENTRELAÇAR DE TEMPORALIDADES E MEMÓRIAS Uma cidade não é somente o conjunto de suas edificações, ruas, avenidas, largos, praças, monumentos e paisagens naturais. Muito além disso tudo, ela se mostra nos fazeres cotidianos de sua população, em manifestações culturais e políticas, na história comum construída através de gerações e na produção permanente de memórias. Desse modo, nos diferentes tempos da cidade estão também os de tantas vidas, de histórias pessoais repletas de realizações e dramas, nos quais memórias individuais, de algum modo, se inserem e dão vida e visibilidade à memória coletiva.

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Assim, à medida que todos são protagonistas do seu próprio tempo, vestígios de incontáveis épocas vão pontuando a paisagem urbana. Na cidade do presente, sob olhares atentos, muitos são, portanto, os sinais dos diferentes passados que insistem em ser lembrados. Eles estão estampados em antigas fachadas, no traçado de ruas e vielas, nas calçadas de pedra e desenhos únicos, em praças e monumentos, e nos estilos arquitetônicos que personalizam bairros inteiros. São indícios também revelados no som dos sinos que ainda dobram, na evocação de acontecimentos que tantos lugares sugerem, na música, na culinária, nos diferentes lazeres, nos saberes, festas e celebrações que vêm de um passado comum.

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Vestígios de diferentes temporalidades marcam, pois, a urbe de hoje e a vida de seus habitantes enquanto outros, novos, se constituem no passar do tempo, projetando-se no futuro. E assim, num processo sem fim, a vida segue seu curso na cidade sempre em mutação, entre erros, acertos e soluções possíveis. Partindo, então, da ideia de cidade como artefato sempre em construção1, moldado e identificado por sua forma e espaço, apreendido no todo mas também em seus segmentos, particularidades e temporalidades, é possível pensar sobre as origens de Curitiba e seus bairros e, dentre eles, o Bigorrilho. Como se sabe, os primeiros registros sobre as terras paranaenses de serra acima, na região de Curitiba, datam do século 17: são as concessões de sesmarias e o pedido de criação da Vila de Nossa Senhora da Luz e Bom Jesus dos Pinhais de Curitiba, de 1693. Os Provimentos do Dr. Pardinho, que disciplinariam social e espacialmente a recém-criada Vila, são de 1721. Dessa época em diante, sesmarias, sítios e demais propriedades rurais circundariam o pequeno núcleo urbano, que passou a ter alguma importância política com a criação da Província do Paraná em 1853. Com o gradual crescimento da população, com a vinda de imigrantes, principalmente a partir dos anos de 1870, e a necessidade de melhorias urbanas, Curitiba precisou expandir seus limites.

Ata de sessão da Câmara de Curitiba de 26 de abril de 1862, em que foi deferido o pedido de Gregório Mann de terrenos no Bigorrilho. Acervo: Câmara Municipal de Curitiba

Esta ideia da cidade como artefato, elaborada pelo arquiteto italiano, é recorrente em seus textos. Ver: ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Nesse contexto, das áreas ao redor da capital, a do Bigorrilho e regiões próximas é exemplar, uma vez que sua ocupação remonta aos primeiros sesmeiros e suas famílias, luso-brasileiros estabelecidos junto ao rio Barigui. Ali nenhuma colônia oficial de imigrantes foi criada, como ocorreu em outros locais, originando conhecidos bairros. No entanto, na segunda metade do século 19, muitos foram os pedidos de terrenos à Câmara Municipal, referindo-se, com o nome Bigurrilho, sempre à mesma região.

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Planta de casa em madeira, de Antônio Sbalcheiro, para construção no Alto Bigorrilho, aprovada pela Prefeitura em 24 de outubro de 1913. Acervo: DPC / FCC

Com a expansão da área urbana para além da região central, no final do século 19 antigos caminhos começaram a ter seu traçado original corrigido e ruas foram abertas. Muitas delas tinham previsão de prolongamento, como as que, nas décadas seguintes, ligariam o Centro ao chamado Alto Bigorrilho, um dos altos de Curitiba, situado no fim da Rua Saldanha Marinho. Sem dúvida, colaborou para a ocupação desse espaço intermediário, o processo de divisão de antigas chácaras familiares e o loteamento da grande propriedade de Albino Schmmelpfeng - o mato do Albino. Vendido por herdeiros, em 1922, à firma Irmãos Paciornik, originou a Planta Schmmelpfeng, dividida em 586 lotes postos à venda para um público que demandava espaço para a construção de moradias. Intensificava-se a ocupação espontânea da região, considerada, na década de 1930, muito distante do Centro. Mesmo assim, à diminuta população tradicional, instalada havia décadas, somaram-se novos habitantes com suas casas, comércios, botequins, olarias, ferrarias e selarias, pontilhando os percursos.

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Oficialmente como bairro, o Bigorrilho apareceria em plantas e mapas somente a partir da década de 1930. Como muitos outros, ele chegou à década de 1940 sem a necessária infraestrutura para o seu desenvolvimento.

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No entanto, obras públicas e algumas melhorias começaram a modificar a região; dentre elas, a criação de uma linha regular de ônibus até a atual Praça da Ucrânia, facilitando o deslocamento para o centro da cidade. A partir da década de 1960, quando, ao crescimento da população somouse o desenvolvimento de várias atividades econômicas, água encanada e luz elétrica estenderam-se para as áreas mais populosas, acompanhando o ensaibramento dos principais acessos e o arruamento aos poucos implantado, vencido o relevo irregular, palco de tantas histórias. Cruzando o bairro, um dos primeiros ônibus de linha da região, conhecido pelos moradores como Passarinho. Década de 1940. Coleção Araci Gaspari. Acervo: DPC / FCC

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Praça Alfredo Andersen em 1949. Em meados da década de 1950 passou a se denominar Praça da Espanha. Foto e coleção: Arthur Wischral. Acervo: DPC / FCC

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Obras na Alameda Princesa Isabel em março de 1956. Foto: Arthur Wischral. Coleção: Ney Aminthas de Barros Braga. Acervo: DPC / FCC

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Vista da região do bairro Bigorrilho, destacando-se o prédio do Hospital Evangélico, inaugurado em 5 de setembro de 1959, em sua conformação original. Acervo: DPC /FCC.

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Ensaibramento da Rua Martim Afonso, antiga Avenida Perimetral 3. 1963. Foto: Arthur Wischral. Acervo: DPC / FCC

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Vista da Rua Martim Afonso, cortada pela Rua Euclides da Cunha. 1963. Foto e coleção: Arthur Wischral. Acervo: DPC / FCC

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No decorrer do tempo, muitas gerações compartilharam, além dos espaços, experiências, construindo e tecendo vivas memórias. Para os mais antigos foram marcantes as lembranças da paisagem, de onde vêm histórias de infância e juventude, entremeadas por narrativas de um tempo mais remoto, o dos antepassados, delimitado pelo curso da memória individual. É evocada uma região de chácaras e de infindas lides, pomares, criações e animais silvestres; também de imensas barrocas formando vales, percorridas e desbravadas pela criançada aventureira; e de riachos, onde trabalhavam as lavadeiras. Completando a paisagem, campos, matos, caminhos, e ruas de terra, cujo pó levado pelo vento tomava conta de tudo, transformadas em lodaçal nos dias de chuva – pó e barro que marcaram o cotidiano de muitos. A essas recordações somaram-se outras, das casas coloridas em madeira, com seus quintais, criações e hortas, e dos vizinhos que se conheciam pelo nome e se divertiam nas sociedades, em bailes animados pelos músicos locais. Recordações das brincadeiras de rua, das missas, dos times de futebol, dos circos, do Campo do Poty, do Mato dos Enforcados e do Colégio Júlia Wanderley. Recorrentes, no ato de lembrar, aparecem os espaços situados para além do bairro: o rio Barigui de águas límpidas, o armazém Darif, a antiga Escola São Nicolau, o Campo da Galícia e o Juvenato Champagnat. Alguns personagens são lembrados, como o festeiro Capitão João Burda, o tenor Valentim que, altas horas, cantava pelas esquinas, Seu Candinho do armazém – o Cândido Hartmann –, homenageado com nome de rua, e André Haag que, por solidariedade, trazia a correspondência do bairro. Sem falar na rutena Bigorrilha, de quem não se tem nenhum registro mas que, segundo narrativa passada de uma geração a outra, possuía um bordel próximo à antiga estrada que conduzia ao Bigorrilho, o que, para muitos, explicaria a origem do nome. Histórias fantásticas, de lobisomem e boitatá, que aguçavam a imaginação, perderam, por sua vez, o encantamento quando a malha urbana encampou os lugares onde eles eram vistos. Lembranças recorrentes como essas, confirmam que, embora sejam as pessoas que realizam a ação de lembrar, são os grupos sociais a que elas pertencem que constroem memórias, ao determinarem o quê e como será lembrado. Assim, a memória coletiva pode ser compreendida como construção social, reconstrução de um passado apropriado segundo as representações culturais dos indivíduos2. São, portanto, reminiscências perpassadas pela noção de um passado comum e de um lugar sempre em construção que acabam por definir também o Bigorrilho a ser rememorado. Todavia, quando mudanças significativas se impõem não somente ao espaço ocupado - como a implantação das extensas avenidas cortando o bairro - , mas à vida dos habitantes, alterando o dia a dia e as referências pessoais e coletivas, ocorre uma reflexão sobre esse passado, a memória a ser construída e o que será rememorado. Nesse processo percebe-se, mais claramente, que a memória não é um espaço de harmonia e uniformidade, como alerta o antropólogo Maurice Halbwachs em seus escritos, pois ela pode tanto consagrar determinados fatos da vida social, como impor ou

Estamos diante da “estrutura social da memória”, como definiu o sociólogo e antropólogo francês Maurice Halbwachs, nos anos 1920.

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condenar outros ao esquecimento3. Assim, é perceptível que o Bigorrilho da década de 1980, ao passar por grandes transformações em sua configuração espacial, vivenciou, simultaneamente, profundas alterações em sua vida cotidiana. Em tais realidades, afirma a professora Lucrecia D’Alessio Ferrara “a memória da cidade parece entrar em conflito com a sua transformação”.4 Este deve ter sido o sentimento que aflorou entre muitos dos que, até então, mantinham seguros laços afetivos com a região e que, de alguma forma, procurariam resistir aos novos tempos. Sem dúvida, aquele Bigorrilho idílico, tão bonito, preservado na memória e nas narrativas dos mais antigos, passava por sua maior e irreversível transformação.

Vista do Bigorrilho na década de 1980. Poucos prédios pontuam a paisagem do bairro. Acervo: DPHAC/FCC

Ver também: BOLETIM CASA ROMÁRIO MARTINS. Bigorrilho, a construção de um espaço urbano. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, v. 31, n. 135, ago. 2007, p. 4.

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FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Os significados Urbanos. São Paulo: Universidade de São Paulo: Fapesp, 2000. p. 145.

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Iniciava-se um processo de verticalização ao longo do recém-criado sistema trinário de pistas, formado pelas ruas Martim Afonso, Padre Agostinho e Padre Anchieta, adaptada para canaleta de transporte coletivo. Desaparecia, rapidamente, muito da antiga paisagem das casas de madeira junto a ruas de terra que findavam próximo às barrocas. Com eixos como a Estrutural Oeste, se pretendia facilitar os deslocamentos diretos entre bairro, centro e bairro, conduzindo para mais longe a expansão urbana. Incentivava-se, também, o adensamento populacional e a concentração de comércios e serviços. Entre as vias principais, um setor especial para abrigar imóveis de alto padrão. Completando o projeto, o irregular relevo do Bigorrilho finalmente seria conquistado: construíram-se viadutos, aplainaram-se ladeiras, e rios e nascentes, tão presentes na memória, foram canalizados; muitas casas, terrenos e chácaras, desapropriados, cederam lugar ao novo e famílias se viram na contingência de procurar outros locais para viver.

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Vista do Bigorrilho, destacando-se os prédios construídos ao longo das ruas Martim Afonso, Padre Anchieta e Padre Agostinho. Acervo: SMCS/PMC

Enquanto a construção civil erguia dezenas de prédios residenciais e comerciais, grande leva de novos proprietários e inquilinos, sem vínculos afetivos ou culturais com a história local, se estabelecia na região que, irremediavelmente, mergulhava em nova temporalidade. Essa população recém-chegada identificava-se, então, com o nome Champagnat 5, atribuído ao bairro pelo marketing imobiliário, cujos anúncios invadiram as páginas dos principais jornais da capital – denominação de pronto rejeitada pelos habitantes tradicionais, muitos dos quais, ressentidos com a situação por eles vivida, reagiam à invasão das áreas que por décadas, de fato ou por direito, a eles pertencia, e de cuja história e memória sentiam-se detentores e senhores. Entretanto, com certa elitização proporcionada pelo zoneamento urbano, veio um novo jeito de viver nos condomínios sem quintais, cujas crianças já não podiam andar livremente pela região, agora percorridas pelos imensos ônibus biarticulados e por centenas de automóveis. Ao mesmo tempo, negócios vindos na esteira dos anos 1980, em conjunturas econômicas, políticas e sociais comuns às grandes cidades brasileiras de então,

No início dos anos 1960, uma área que pertencera ao Juvenato Champagnat, dos Irmãos Maristas, originou o loteamento Jardim Champagnat, no bairro Bigorrilho. No entanto, foi o Juvenato, em funcionamento desde 1927, e oficializado como instituição de ensino em 1940, que marcou a vida dos moradores, embora pertencente ao bairro Mercês. Ver: BOLETIM CASA ROMÁRIO MARTINS... n. 135, op. cit. p. 83-87.

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ofereceram novas oportunidades de trabalho e disponibilizaram serviços, construindo um percurso que, passadas várias décadas, já lhes assegurou importância na memória afetiva dos moradores. O aumento da população, por sua vez, trouxe novos consumidores que movimentaram os negócios estabelecidos havia tempo, os quais souberam se adaptar às exigências de cada época, tirando proveito de novidades e oportunidades. Se, por um lado, chegava ao bairro um novo ritmo de vida, marcado mais fortemente pelo tempo recente do trabalho, e por formas de lazer diferentes das que existiam antigamente, por outro, atividades tradicionais e culturalmente significativas têm persistido, como as dos corais de igreja e de sociedades recreativas, que congregam várias gerações e encantam com sua música. E assim, ano após ano, na convivência diária nos diferentes espaços de sociabilidade, criaram-se novas relações sociais, travaram-se amizades e resistências foram sendo vencidas. Forjava-se, passo a passo, uma nova realidade, que ganhou contornos próprios à medida que outras memórias foram construídas e compartilhadas.

No entanto, apesar de todas as mudanças consolidadas, o Bigorrilho ainda guarda, nas ruas de traçados que parecem fugir à simetria estabelecida, e nas áreas de casario baixo e quintais, certo espírito do que foi no passado, ao mesmo tempo em que ainda considera, como partes de seu território afetivo, as regiões que lhes são vizinhas. Sem dúvida, um grande contraste com a monumentalidade das edificações que ladeiam suas grandes avenidas e que surgem em destaque quando vistas do alto. E, agora como antes, as grandes construtoras estão atentas aos espaços ainda passíveis de ocupação intensiva. Trata-se, portanto, da cidade em sua contínua e permanente reconstrução, no entrelaçar ininterrupto de temporalidades e memórias, percebida e apreendida de modo diferenciado pelas sucessivas gerações, guiadas pela memória individual e coletiva.

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Decorridas algumas décadas, é inegável, agora, que muitos dos que se instalaram no Bigorrilho nos anos 1980, lá construíram sua vida, exerceram atividades profissionais, constituíram família e, talvez, contem para seus netos acontecimentos e experiências que vinculam a história pessoal à da região. Eles já tiveram, portanto, tempo suficiente para tecer um conjunto de memórias que lhes assegura um sentimento de pertencimento ao bairro e à história do lugar. Por outro lado, é possível, hoje, que moradores recémchegados ao Bigorrilho, desprovidos de laços com a região, sejam, por eles, vistos com a mesma reserva com que eles próprios foram recebidos, pela população tradicional, quando se instalaram nos primeiros grandes edifícios dos anos 80 e 90.

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Eu vou voltar aos velhos tempos de mim, Vestir de novo meu casaco marrom Formada em história pela UFPR com especialização em História do Pensamento Contemporâneo. Historiadora da DPC / FCC

ANGELA MARIA DE MEDEIROS RODARTE

UM OLHAR SOBRE A CURITIBA DOS ANOS 1970, SEU CONTEXTO ARTÍSTICO E A CRIAÇÃO DO CCC

Tomar a mão da alegria e sair Bye,bye Cecy “nous allons”

Golden Boys


Ao revisitar a Curitiba dos anos 1970 através dos relatos de alguns de seus habitantes e de publicações da época, é perceptível a presença de uma cidade ainda muito provinciana, apesar dos rompantes de alguns jovens moradores por apresentá-la aos movimentos mais “radicais” advindos com os ventos de protestos e rupturas da geração peace and love.

Mas quem seriam os audaciosos a promover rupturas numa cidade onde Calçamento da Rua XV de Novembro, em 1972, e a neve na esquina da Rua da XV com a Avenida Luiz Xavier, em 1975. Acervo: DPC / FCC “Moça não podia ficar passeando muito, ficava mal vista”, onde após o calçamento da Rua XV e seu fechamento ao tráfego de veículos “o prefeito chegou a pedir pelo amor de Deus que colocassem cadeiras e mesas na calçada”3 e onde, conforme relatou um antigo morador, o simples beijar na boca diante de um balcão de lanchonete suscitava a reprimenda por parte do proprietário. Seguindo as tendências históricas, coube a avant-garde, normalmente representada por intelectuais e principalmente artistas, a proeza de alinhar a cidade às novas direções conjunturais.

Vencedora do primeiro Miss Paraná e segundo lugar no primeiro concurso Miss Brasil realizado no RJ em 1928, sob protestos enfáticos de uma multidão que a achava merecedora do primeiro lugar.

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Ainda sob influência do figurativo objetivo realista de Alfredo Andersen e seus discípulos.

MALUCELLI, Maria José. Depoimento. In: INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE CURITIBAIPPUC. Memória da Curitiba Urbana. Curitiba: IPPUC, v.7, 1991.

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Numa analogia ao fashion monde, pode-se dizer que a Curitiba daquela época, ainda que salpicada de arranha-céus e alvo de grandes fluxos migratórios chegados das mais diversas partes do país e do próprio estado, tinha em seu shape muito da mentalidade dos anos 50 e até mesmo dos anos 20 quando Didi Caillet, nossa primeira musa e celebridade1, reinava soberana entre peles, pinheirais e poesias recitadas com a graça e o recato próprios de uma autêntica paranista, defensora dos valores e da força da gente do Paraná. A visão idílica do território paranaense, contida nas ideias e escritos de Romário Martins, continuava viva na retórica dos formadores das normalistas do Instituto de Educação do Paraná, nos traços e cores de muitos artistas acadêmicos2 e na propaganda do governo. Contudo, as capas de revistas expostas nas bancas de teto acrílico roxo em formato de domo, estampavam para os mais sintonizados que o visual 70 se compunha de roupas coloridas, casacos com franjas ousadas, calças boca de sino e sapatos de salto plataforma.

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De fato, há que se destacar que já no final dos anos 40, Dalton Trevisan com sua revista O Joaquim, Poty Lazzarotto com seu traço moderno e Guido Viaro com sua corrente subjetivo-expressionista, criaram uma via de rompimento com o provincianismo nas expressões artístico-culturais, sintonizando a produção artística local às ideias da corrente intitulada modernista. “Nós moços já fizemos a escolha, só nos servem não os mortos, mas a nós vivos, que criam a arte nova, dos tempos novos”. (ARAÚJO, 2006, v.1, p.83). No final dos anos 50 esse grupo tinha na Galeria de Arte Cocaco fundada por Ênnio Marques e Alberto Nunes de Mattos - “Cocaco nasceu para iniciar os moços e não para glorificar os velhos” - e no Círculo de Artes do Paraná seus locais de encontro, criação e divulgação dos trabalhos visuais dentro da tendência modernista como contraponto ao regionalismo ingênuo predominante na produção artística curitibana até então. Em 1959 a Cocaco muda de proprietário e o centro de reunião dos artistas de vanguarda transfere-se para a galeria “A toca”, inaugurada em 1966. Seguindo os estigmas dos movimentos inovadores, o Modernismo no Paraná não passou ileso às críticas de uma sociedade acostumada às paisagens, naturezasmortas e retratos familiares.4 De maneira geral, o Modernismo tinha na sociedade tecnológica/ industrial sua motivação de ruptura - como no caso do Expressionismo e do Dadaísmo - ou de empatia e aceitação - como no caso do Concretismo Paulista. Tal movimento se desdobrou na chamada arte contemporânea que adotou diversos suportes para a expressão de suas ideias, entre eles, performances, instalações, interferências urbanas e videoarte. Na Curitiba do final dos anos 60 e início dos anos 70, os chamados Encontros de Arte Moderna da Escola de Música e Belas Artes do Paraná5 tiveram grande importância na formação de um grupo de artistas das artes visuais ecoando também no meio cultural em geral. “Os Encontros de Arte Moderna marcam a entrada do Paraná na contemporaneidade, com experiências como: Arte Conceitual, Instalações, Earth Art e Body Art”. (ARAÚJO, 2006. v.1, p. 79). As primeiras edições desses encontros contaram com a presença de importantes artistas e críticos da vanguarda das artes visuais no Brasil como Frederico Morais, Roberto Pontual e Mário Barata que instigaram os artistas locais a buscarem novas formas de expressão, sobretudo através de experimentos e ações do corpo no espaço. Em 1971, no que era então o canteiro de obras da construção do atual prédio da rodoviária, nomes hoje reconhecidos, como Key Imaguire, Fernando Calderari, Ivens Fontoura, Ana González, entre outros, lançaramse a experimentar formas de expressão interagindo com o ambiente em construção. Essas experiências criadoras se tornaram periódicas e conhecidas

Segundo o artista plástico Fernando Velloso, no final dos anos 40 não havia sequer reproduções impressionistas em Curitiba. Poucos sabiam dos movimentos mais modernos como o cubismo e o abstrato, considerados ultrapassados na Europa e USA nos anos 50. Os raros impressos sobre o assunto quando apareciam na cidade, eram muito disputados.

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Idealizados pela crítica e professora de arte, Adalice Araújo, sob coordenação do artista Ivens Fontoura e organização do Centro Acadêmico Guido Viaro da EMBAP, com edições anuais de 1969 a 1974.

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Encontro de Arte Moderna da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Sábado de Criação. Canteiro de obras da rodoferroviária de Curitiba. 1971. Foto Key Imaguire. Acervo: Ana González

Em 1971 Frederico Morais organizou na área externa do MAM do Rio de Janeiro os Domingos de Criação, eventos descontraídos que atraíam grande número de público interessado em exercitar livremente a criatividade.

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REIS, Paulo. O corpo na cidade: performance em Curitiba. Curitiba: Ideorama, 2010.

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como sábado de criação6, sendo a liberdade e a disposição experimental advindas das reflexões dentro do espírito da arte contemporânea, visível nos registros fotográficos desses momentos7. Tais ações se engajavam com o que acontecia no cenário nacional no qual a efervescência das ideias experimentais, além de estranheza, por vezes, provocou escândalos. Cabem aqui parênteses para descrever um pouco do que acontecia no Brasil, principalmente no eixo Rio- SP, onde já no início dos anos 70, alguns artistas de destaque se juntaram a novos artistas e passaram a radicalizar suas propostas. Os trabalhos inovadores surgidos dessa junção colaboraram para o conceito do que chamaram de antiarte. Hélio Oiticica, que ao longo dos anos 60 causou polêmica por seu trabalho provocativo e iconoclasta, permaneceu polêmico através de novos conceitos como a arte ambiental, o crerlazer e subterrânea. Já Lygia Clark apresentou desdobramentos surpreendentes a partir das teorias neoconcretas. Em sua obra, o corpo e o sensorial passaram a ocupar um espaço central, resultando, entre outros, nos trabalhos O corpo é a casa e Baba Antropofágica. Em meio a essa conjuntura alguns novos artistas como Antonio Manuel, Artur Barrio e Cildo Meireles aportaram ideias e ações mais extremadas que demarcaram o espaço da arte experimental e definiram as bases para propostas que ecoam até os dias atuais. Antonio Manuel com seu Corpobra, apresentou no Salão de Arte Moderna do MAMRJ seu próprio corpo nu como obra, causando escândalo à crítica e ao público. Cildo Meireles foi o autor de uma das obras mais subversivas do período, a Inserção em Circuitos Ideológicos. Neste trabalho, garrafas de Coca-Cola e notas de cruzeiro com frases e alterações sutis feitas pelo artista foram postas em circulação. Já Artur Barrio realizou de forma clandestina a obra Trouxas Ensanguentadas, na qual trouxas de pano branco contendo carne, sangue e ossos foram jogadas em pontos estratégicos ao longo do Ribeirão do Arruda, em Belo Horizonte, causando comoção popular e a presença da polícia na tentativa de

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identificar os corpos ensanguentados. Essas, entre outras manifestações, tiraram a arte do domínio absoluto da imagem, transferindo para o corpo e para outros contextos a experiência estética de cada trabalho, subvertendo assim, os valores tradicionais das artes. Nessa conjuntura, a capital paranaense não passou por demonstrações tão extremas. Entretanto, valiosas foram as iniciativas e ações dos artistas locais na busca por sintonia com o pensamento da vanguarda brasileira da época, bem como os efeitos dessas ações geradoras de contraventos na recatada Curitiba dos anos 1970. Num desses sopros, inflado pelas inovadoras alterações urbanas, surgiu a ideia de adaptação da imensa área de concreto existente no parque São Lourenço, onde havia funcionado a fábrica de cola Boutin, num local propício para intercâmbios e experimentações artísticas. O ajuste da configuração do espaço ficou a cargo do arquiteto Roberto Gandolfi. Formado pela Universidade Mackenzie e integrante do corpo docente do curso de Arquitetura da UFPR, aberto em 1961.8 Para o Centro de Criatividade de Curitiba, Roberto Gandolfi, imbuído do conceito de revitalização dos espaços, em contraponto ao de destruição, lançou-se ao desafio de alterar o mínimo possível a configuração característica do chamado ambiente de tipologia arquitetônica fabril9, adaptando-o para uma prática completamente distinta das ações até então ali usuais. As obras se realizaram entre 1972 e 1973. Segundo depoimento da arquiteta Maria José Malucelli a preocupação dos arquitetos envolvidos não se restringiu apenas à composição do espaço uma vez que “ninguém tinha ideia do que seria um Centro de Criatividade. Procuramos abrir espaços os mais diversificados possíveis, para dar chance para qualquer atividade que se viesse a desenvolver ali”.10 Assim, as intervenções foram realizadas mantendo-se a configuração interior do estabelecimento, onde se vislumbram grandes caldeiras que serviam ao fabrico da cola. Essas foram pintadas com cores vivas. Os espaços ou ateliês foram organizados em meio a esses elementos, acrescidos de escadas circulares, janelas e portões internos, configurando uma intrigante sobreposição de tempos e funções. Nas janelas externas reforçou-se o contorno em meia lua (arco pleno) conferindo certo aspecto lúdico, propício às novas finalidades do ambiente. Marco da antiga atividade fabril e de visualização à grande distância, a gigantesca chaminé de tijolos manteve seu posto altivo próximo à entrada principal do parque.11

Em Curitiba, Roberto Gandolfi formou parceria com Luiz Forte Neto e José Maria Gandolfi, também formados pela Mackenzie. Integrou a equipe que formulou o projeto vencedor do concurso nacional para a nova sede da Petrobras no Rio de Janeiro, em 1968. Foi indicado para representar o Brasil na Bienal de Paris de 1969.

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A antiga fábrica Boutin, a exemplo de outros espaços fabris da cidade, mantinha em sua configuração elementos característico das edificações do início da industrialização brasileira, como a grande chaminé, os telhados de planos recortados e com aberturas para entrada de luz, e a amplitude dos espaços pensados na otimização, flexibilidade e funcionalidade.

9

MALUCELLI, Maria José. Depoimento. In: INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE CURITIBAIPPUC. Memória da Curitiba urbana. Curitiba: IPPUC, v.7, 1991, p. 261-262.

10

Mais tarde (1977), a arquiteta Lina Bo Bardi realizou trabalho semelhante ao transformar uma antiga fábrica de tambores localizada no bairro Pompeia em SP no “badalado” complexo do SESC Pompeia. Tais práticas marcaram os debates sobre a revitalização de espaços no Brasil. A opção valorativa da revitalização dos edifícios e o pensamento sobre as formas de intervenção se tornou tema oportuno, sobretudo, nos trabalhos finais de Graduação em Arquitetura. A Fundação Cultural de Curitiba também revitalizou as instalações de antigo moinho de farinha de trigo, situado no bairro do Rebouças, transformando-o em 2006 na sua principal sede administrativa.

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Centro de Criatividade de Curitiba na década de 1970. Acervo: DPC / FCC

Em paralelo às obras aconteciam as discussões sobre as ações que ali teriam lugar. O nome Centro de Criatividade surgiu então como resposta à intenção de um espaço voltado ao desenvolvimento da criatividade e da autoexpressão em todas as suas formas, num contexto onde se relacionariam produção e exposição.

Imbuído de caráter inovador e revelador da importância dada à cultura numa cidade “sem atrações turísticas onde o lazer de seu povo é justamente a atração mais típica”13, o Centro de Criatividade já na sua inauguração, ao final de 1973, causou polêmica com o grande painel em madeira, de autoria do artista Jair Mendes. Criado para ser instalado no interior do pavilhão principal, esta obra trazia, em meio às imagens ilustrativas da evolução da humanidade desde a pré-história à idade moderna, a representação do Criador inteiramente nu, expondo seu sexo masculino como um mortal. Tal “licenciosidade” rendeu matérias na imprensa demandando ao autor uma explicação ao então Arcebispo de Curitiba. Pouco tempo depois o encerramento do Curso de Arte e Criatividade com o inglês Tom Hudson14, culminou na performance de algumas jovens que chocaram a plateia presente ao massacrar um pintinho vivo com uma marretada.

12

EM CURITIBA o maior centro de criatividade da América Latina. Diário do Paraná. Curitiba. 1973.

13

FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA. Relatório anual. 1974.

14

Proveniente da Universidade de Cardiff e considerado à época autoridade internacional em criatividade.

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Conforme o artista Jair Mendes, primeiro coordenador do Centro de Criatividade, “de início não se tinha ideia do que seria hoje. Pensou-se em fazer uma Escolinha de Arte gigantesca. Posteriormente a ideia se desenvolveu, amadureceu e se transformou no que é: um Centro de Atividade Criadora”.12

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Oficina com Tom Hudson, abril de 1974. Acervo: DPC / FCC

Polêmicas à parte, o Centro de Criatividade se consolidou como espaço de criação e de ensino. Por ali passaram renomados artistas que contribuíram para a formação de várias pessoas na arte da gravura, da cerâmica, da pintura e da escultura. Entre esses instrutores estavam Fernando Calderari, Antônio Arney dos Santos, Ivens Fontoura, Domicio Pedroso, João Osório Brzezinski, Estela Sandrini, Ana González, Alice Yamamura, Joana e Rita Kalinowski, Ligia Borba, Carmem Slompo, Marilia Dias, Maria Helena Saparolli, Marli Wille, Paulo Oberick e Elvo Benito Damo. Esse último, fiel ao princípio primeiro dos ateliês de criação agregadores de artistas e aprendizes, com sua presença ativa manteve, em meio aos altos e baixos do Centro de Criatividade, um trabalho contínuo de produção e de orientação voltado a artistas e estudantes, que se estende aos dias atuais. Considera-se que grande parte da formação dos escultores em Curitiba venha deste ateliê, com forte referência para o ensino das técnicas alusivas à produção tridimensional. Além das artes plásticas, no Centro de Criatividade, as artes cênicas, a fotografia, o artesanato e a música também encontraram espaço, tornando-se a antiga fábrica de cola, um ponto irradiador de múltiplas atividades artísticas voltadas para um público diversificado.

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Dos anos setenta aos dias atuais, a ideia inicial de um espaço arquitetônico original e gerador dos meios e ferramentas necessários para estimular a criação consolidou-se num importante centro de pesquisas e de desenvolvimento da criatividade, ações essas pautadas pela presença de pessoas dispostas a inovar, a experimentar, a ensinar e algumas vezes, a escandalizar.

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Atelier de escultura do CCC. Acervo DPC / FCC

Referências ARAÚJO, Adalice Maria de. Dicionário das artes plásticas do Paraná. Curitiba: Edição do Autor, 2006. BOUTIN, Ivo. Boutin origem e história da família. Curitiba: Edição do autor,[20--], 123 p.

NAVOLAR, Jeferson Dantas. A arquitetura resultante da preservação do patrimônio edificado em Curitiba. Curitiba: Factum Editora, 2011. OLIVEIRA, Dennison. A Política do Planejamento Urbano: o caso de Curitiba. 198 p. Tese apresentada ao Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Curitiba, 1995. REIS, Paulo. O corpo na cidade : performance em Curitiba. Curitiba: Ideorama, 2010. SANTOS, Michelle. A moderna Curitiba dos anos 1960: jovens arquitetos, concurseiros, planejadores. 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas “Entre Territórios” – 20 a 25 set. 2010 – Cachoeira – Bahia – Brasil.

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MANZIG, Paulo César; PEREIRA, Juliana. Arqueologia industrial na paisagem urbana de Curitiba. Curitiba: Edição do autor, 2013.

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Mestre e Doutor em História/UFPR e Diretor do Patrimônio Cultural/FCC

MARCELO SALDANHA SUTIL

SOBRE MEMÓRIA E CIDADES

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Largo da Ordem, março de 2018. Foto: Marcos Campos. Acervo: DPC / FCC

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Vista da atual Praça Garibaldi em direção ao Largo da Ordem, no início do século 20. À esquerda, a antiga Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito. À direita destaca-se o Palacete Wolf. Mais adiante, a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco das Chagas. Coleção Júlia Wanderley. Acervo: DPC / FCC

A modernização da vida urbana raramente ocorre de forma integrada e harmoniosa nos lugares consolidados na memória afetiva dos habitantes. Por esta razão, permitir a entrada do novo e ao mesmo tempo garantir a preservação de bens é um dilema que acompanha os profissionais da área de patrimônio cultural – e aí uma questão se faz fundamental, embora nem sempre facilmente resolvida: como harmonizar as necessidades do mundo contemporâneo, cada dia mais ágil, mais técnico e impessoal com a preservação de bens e de valores simples e humanos? Esta é uma via de mão dupla, pois se traduz na memória afetiva e na cidade da memória em contraponto à modernidade dos dias atuais. Por isso, é comum nos referirmos ao passado das cidades com nostalgia. O passado é complacente, é filtrado e geralmente fortalece qualidades que o fazem parecer melhor que o presente. Melhor por ser construído no sorriso de quem olha o infinito tecendo memórias. Assim como histórias e dramas familiares, à medida que o tempo e as gerações se sucedem, viram casos leves e engraçados, o mesmo ocorre com as cidades quando examinamos antigos postais e fotografias amareladas pela ação dos anos. A cidade de ontem é normalmente mais agradável, mais civilizada e mais simpática ao nosso olhar, pois, ao recordá-la, criamos um discurso que negligencia dificuldades e problemas. De certa forma, é uma cidade melhor por não mais existir.

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No entanto, cidades são produtos inacabados, constantemente reinventados para se adequar aos homens e às transformações da sociedade. Nessa permanente reinvenção urbana integrar o antigo ao novo e determinar o passível de ser mantido, transformado ou talvez demolido, reveste-se da delicada problemática que instiga poucos – mas afeta a todos. As marcas do passado, embora nem sempre percebidas, pontuam o presente e muitas se configuram como permanências para o futuro. São os testemunhos encontrados nas ruas

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e construções, nos documentos, nos objetos e nas manifestações culturais passadas ao longo dos anos que correm o risco diário de desaparecer, pois a vida nos grandes centros já não comporta o ciclo quase orgânico e nem a mesma relação que os habitantes de outrora tinham com a vizinhança. Sob esse aspecto, há de se compreender o permanente embate e os conflitos entre a preservação e o ordenamento urbano. De um lado o progresso que, a cada geração, praticamente constrói uma nova cidade sobre a anterior; em outra via, os teóricos e os técnicos imbuídos de identificar os bens culturais e promover a sua preservação e sustentabilidade. Nas cidades essas questões afloram com mais premência, justamente por ser esse um espaço em permanente transformação e, por isso mesmo, propício a perder suas referências. Como o meio urbano está em constante mudança e numa evolução temporal cada vez mais rápida, seu espaço é privilegiado para que se manifestem permanências, rupturas e relações do antigo com o novo. Trilhando por esse caminho compreendemos a importância da memória e do significado que cada habitante confere à imagem de sua cidade, principalmente ao conteúdo histórico atribuído ao local onde vive. Sabemos que ao longo dos anos a mudança contínua do meio urbano ressalta a fragilidade dos mecanismos de preservação, caracterizando as cidades, cada vez mais, como produtos construídos e organizados conforme as conveniências do momento e com todos os programas próprios de cada época. Contraditoriamente, é na origem desse processo e com a consciência

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Casario do Largo da Ordem no século 19. Em primeiro plano, à direita, parte da antiga fonte de água, muito utilizada pela população. Mais ao fundo, a Casa Hoffmann, de arquitetura eclética, e algumas casas baixas, coloniais. Coleção Júlia Wanderley. Acervo: DPC / FCC

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do urbano em transformação que se reflete sobre a importância de legar uma cidade às gerações vindouras. O que mudou sugere a lembrança de uma identidade que talvez não se recupere, e é nesse ponto que percebemos a necessidade de conservar para o futuro – e de construirmos não apenas uma memória transmissível, mas ainda as razões que a fazem existir. É justamente no calor da transformação urbana que muitos patrimônios são gerados e memórias concebidas, pois são justamente esses contrastes entre o ontem e o hoje que configuram um espaço digno. Por ser o meio urbano o cenário onde as questões mais cotidianas do patrimônio se apresentam, compreende-se também o motivo de a maioria dos bens garantidos pelas leis de preservação, ainda nos dias de hoje, estar vinculada ao edificado e às paisagens urbanas. É a cidade, pois, que se configura como o lugar por excelência para comparar o que foi com o momento vivido e para estabelecer relações de tempo e espaço, identificando mudanças e permanências. Identificando também contradições, pois a cidade atual é uma cidade que abriga culturas, classes, religiões diversas e costumes variados dentro de um mesmo espaço, de uma mesma forma, com camadas temporais sobrepostas, o que as transforma, em certo sentido, em cidades diversificadas. E é justamente esse aspecto que as tornam tão convidativas não apenas para vivenciá-las, mas também como objetos de estudos. Se a mudança origina memórias, ela também propicia leituras e análises. Assim, os temas urbanos, muitas vezes acrescidos de um incômodo adjetivo “problema”, deram vazão e continuam fornecendo material às dezenas de pesquisas que vão do crescimento desordenado ao sanitarismo, da marginalidade ao controle da violência, passando por transportes, moradias, costumes e por toda uma infinidade de etecéteras que poderiam vir no rastro desses primeiros temas. Problemas gerados não pelo urbano em si, mas pelas relações estabelecidas entre os que habitam esta parcela de espaço. Como já afirmou o professor Ulpiano Bezerra de Meneses, é no interior dessas relações que se processa a vida nas cidades1. Vidas que gravitam ao redor de tensões diárias, sejam elas políticas, econômicas, sociais ou culturais. Todas, entretanto, plenas de sentido e de representações sociais, carregadas de imagens, de símbolos e de contextos historicamente construídos no imaginário urbano e/ ou oriundos das próprias tensões diárias. É como se fossem fragmentos de histórias, de memórias e de imaginários lançados sobre o território das cidades no passar dos anos. Contrapostos ao novo, estes fragmentos nos dão a dimensão do passado a ser historicamente construído, colaborando para delinear o discurso do bem a ser preservado. Eis a matéria-prima dos técnicos e dos teóricos do patrimônio. Nesse ponto, cabe ressaltar as permanências urbanas, os sinais físicos facilmente identificáveis ou experimentados como praças, monumentos, edifícios ou mesmo eixos de desenvolvimento, o mais significante de todos. Na correlação entre o tempo e o espaço, próprio do ato de construir memórias, a mudança é apreendida na comparação ou confronto entre MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cidade como bem cultural – áreas envoltórias e outros dilemas, equívoco e alcance da preservação do patrimônio cultural urbano. In: MORI, Victor Hugo. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: IPHAN, 2006. p. 35.

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Na Curitiba do presente, à partir da Praça Garibaldi em direção ao Largo da Ordem, diferentes temporalidades: mais antigos, o Palacete Wolf, à direita, e o Solar do Rosário, vizinho à Igreja do Rosário, destacando-se, no plano de fundo, a cidade verticalizada. Março de 2018. Foto: Marcos Campos. Acervo: DPC / FCC.

Por isso, ao olharmos para o passado valorizamos a cidade pretérita e a construção de memórias muitas vezes não vividas. Palmilhamos vielas e becos não mais existentes, reconhecemos a assimetria num terreno já aplainado, sentimos os odores de uma cidade bem amanhecida nas confeitarias das ruas centrais e ouvimos os sons de fábricas há muito desativadas. Sons e cheiros de um tempo em que as cidades eram mais próximas da escala humana e o urbano não ia além de uns poucos quarteirões, dimensionando-o na horizontalidade que o olhar permitia. Um tempo, no entanto, ainda presente entre arranha-céus e trânsito caótico, em praças que viraram apenas locais de passagem e em lembranças amareladas, pois, como escreveu o arquiteto Aldo Rossi, a forma de uma cidade é sempre a forma de um tempo da cidade, e existem muitos tempos na forma da cidade.3

2

FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. Os significados urbanos. São Paulo: USP, 2000. p. 147.

3

ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 52.

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presente e passado, permitindo “... descobrir no passado as dívidas, influências ou mudanças em relação ao presente”.2

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Artista. Dirigiu o Museu da Gravura Cidade de Curitiba de 2010 a 2015. Graduação em Pintura e Pós Graduação em História da Arte do Século XX pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná.

ANA GONZÁLEZ TAIPA

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MUSEU DA GRAVURA CIDADE DE CURITIBA registros de uma história

O Museu da Gravura Cidade de Curitiba, criado em 1989, dedica-se especialmente à gravura e conjuga experimentação, conhecimento, memória e iniciativas de apoio às artes visuais. Foto Newton Goto. Acervo Ana González.


Em determinados momentos da história de uma localidade ou país, é premente a necessidade de reconferir a natureza e função dos museus que estão sob a responsabilidade de instituições governamentais. Visando contribuir com uma pequena parcela de informação, organizou-se a exposição MUSEU DA GRAVURA CIDADE DE CURITIBA: REGISTROS DE UMA HISTÓRIA, tendo o Museu da Gravura como musa. O Museu pertence à Fundação Cultural de Curitiba e a exposição aconteceu no período de de 5 de junho a 11 de agosto de 2013 na Sala do Lustre, espaço nobre do Museu, organizada por Ana González, artista e responsável pelo Museu naquele momento. O texto que segue é o de apresentação da exposição.

Esta pequena mostra é uma espécie de levantamento das origens do Museu da Gravura Cidade de Curitiba, o MGCC, uma origem que pode ter vários pontos de partida. No ponto zero, na confluência dos diversos fatores que levaram à sua criação, artistas de Curitiba e de outros estados brasileiros idealizaram um museu dedicado à gravura, e uma instituição governamental de caráter público, dedicada à cultura, reconhecendo a legitimidade do projeto, viabilizou a criação desse museu. Ainda nesse ponto zero, as obras daqueles artistas que compartilhavam grande interesse pelo universo da gravura desempenhavam importante papel no contexto das artes visuais no país. Naquele momento, pessoas formadoras de opinião aliaramse a artistas e personagens que ocupavam cargos de decisão dentro da instituição pública e, treze anos após a idealização do Museu, publicou-se o seu decreto de criação. No intervalo entre 1978 quando, durante o primeiro Seminário de Gravura, foi firmada a intenção de criar um museu dedicado à gravura e reuniramse as primeiras doações de obras para seu futuro acervo, e 1991, ano em que foi lançado o seu decreto, o MGCC foi oficialmente inaugurado, sediou várias Mostras da Gravura (eventos de caráter nacional e internacional), ampliou o seu acervo, equipou e abriu seus ateliês ao público e a artistas

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“A exposição assemelha-se a uma mesa coberta de livros, imagens, documentos e papéis que costumamos reunir ao iniciar uma pesquisa espera-se que a reunião desses elementos possa contribuir para identificar o conhecimento que se quer alcançar. A exposição não pretende se apresentar como única versão de uma história concluída, mas como um estímulo à realização de pesquisa mais ampla e abrangente sobre o Museu da Gravura Cidade de Curitiba, e talvez sobre os museus de arte da cidade, visando descobrir novos e melhores instrumentos para apreciar e usufruir o que pertence a todos como cidadãos de Curitiba e do mundo – sua memória e seu acervo. Para este primeiro passo foram reunidos documentos do acervo da Casa da Memória, da Fundação Cultural de Curitiba, e do Centro de Documentação e Pesquisa Guido Viaro, do Museu da Gravura. O corpo da exposição também compreende obras do acervo, pinçadas a partir de uma pesquisa sobre as obras incorporadas por ocasião das Mostras da Gravura de Curitiba, além de uma pedra litográfica pertencente ao acervo litográfico do Museu, e algumas peças diversas, pertencentes a acervos particulares. Espera-se que este passo funcione como ponto de partida, e que os próximos possam ser dados pela comunidade na qual o Museu está inscrito.

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de todo o Brasil de outros países, organizou seu Centro de Documentação e Pesquisa e passou por diferentes experiências administrativas. Também teve a felicidade de expandir seus conceitos sobre gravura e oferecer ao público um acesso efetivo a grande diversidade de obras e de pensamento de inúmeros artistas e teóricos de procedências variadas. Com essa estruturação, que possibilitou largo acesso à apreciação, à reflexão e à disseminação de manifestações artísticas, o Museu da Gravura contribuiu para a formação de público, de artistas e demais profissionais da área de artes visuais, tornando-se importante instrumento de exercício de cidadania. Com exceção da Mostras da Gravura, a última em 1999, o Museu continua a existir com essa estrutura até o presente.

O que leva uma sociedade a criar e manter um museu de arte? Que forte vontade leva à convergência de esforços entre diversos segmentos da sociedade, dentre estes artistas, sociedade civil e instituições públicas, em torno a um mesmo objetivo? Existe vasta literatura focada no papel que desempenham as manifestações de arte em meio às diversas culturas, reconhecendo na arte uma das mais potentes, profundas e genuínas contribuições para a formação de identidades culturais. Organismos dinâmicos, estas mantêm-se em movimento contínuo, o que explica a existência de mecanismos dedicados à conservação de sua memória, à constante incorporação e atualização de suas variantes e à afirmação de suas identidades. Os museus são dispositivos de memória, acesso e difusão e, com perfis diferenciados, desempenham suas funções numa cultura. O Museu da Gravura não é diferente - sediado no Solar do Barão, um complexo eclético de edifícios históricos onde inicialmente viveu o Barão do Serro Azul, o Museu é importante ponto de confluência de artistas, teóricos e público interessado em artes visuais. Dedica-se especialmente à gravura e conjuga experimentação, conhecimento, memória e iniciativas de apoio às artes visuais. Seu acervo conta com cerca de 2.900 obras, a maior parte gravuras, acondicionadas em reserva técnica específica, onde contam com a atenção de equipe de conservação. Dentre os destaques de sua coleção estão obras dos artistas Andy Wahrol, Helio Oiticica, Oswaldo Goeldi, Louise Bourgeois, Goya, Cildo Meirelles, Livio Abramo, Waltercio Caldas, Kiki Smith, Amilcar de Castro, Anna Bella Geiger, Rubem Grilo, Claudio Mubarac e muitos outros artistas brasileiros e estrangeiros. A programação do Museu é composta por exposições contínuas de acervo, mostras temporárias de arte contemporânea, exposições advindas de projetos dos editais das leis de incentivo locais e nacionais e também exposições e eventos resultantes de parcerias com instituições públicas e privadas.

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Cumprindo seu papel de núcleo de experimentação no campo das artes visuais e, como tal, sendo uma dilatação do marco zero da origem do Museu - pois o MGCC foi gestado nos ateliês de gravura do Centro de Criatividade de Curitiba, onde se realizaram as tres primeiras Mostras da Gravura -, seus amplos e bem equipados ateliês oferecem práticas de litografia, calcogravura,

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serigrafia e xilogravura, e estão acessíveis a artistas, estudantes e público interessado. Por serem tão antigas, essas técnicas necessitam espaços, maquinários, equipamentos e materiais especiais para a produção de obras gráficas. Sem os ateliês públicos, em Curitiba haveria poucas possibilidades de acesso a esse conhecimento e ao desenvolvimento de trabalhos de arte envolvendo esses meios. Cabe aqui um fato curioso - a maior parte dos dirigentes do MGCC foi de artistas que desenvolveram parte de sua obra nos ateliês do Museu. O Centro de Documentação e Pesquisa Guido Viaro reúne extensa documentação sobre as atividades do Museu, documentos e informações sobre aproximadamente doze mil artistas visuais, teóricos e instituições dedicadas às artes visuais, além de um acervo de aproximadamente treze mil publicações, entre livros, catálogos e revistas especializadas. Ele foi idealizado desde o primeiro momento como um museu dedicado à gravura, assim como aos seus ateliês e à Loja. A Loja da Gravura foi projetada para dar vazão à produção advinda dos ateliês do Museu e da produção brasileira, e hoje sua programação está pontuada por pequenas exposições, lançamentos de edições de gravuras e publicações. O Museu também possui um auditório - a sala Scabi, cuja programação compartilhada recebe eventos de artes visuais e de grande variedade de iniciativas da Fundação Cultural de Curitiba.

Com toda essa estrutura, implantada e ativada ao longo de 35 anos decorridos desde sua idealização - ou dos 30 anos desde sua primeira inauguração, feita por puro desejo de ver o Museu concretizado, ou dos 24 anos desde a criação do seu decreto - o que vem mantendo vivo esse museu? Sabemos que o panorama político e econômico mundial, o das artes visuais e o das instituições públicas de hoje diverge do de ontem, o da época em que o Museu foi idealizado e concretizado. Sua história, oscilante de conquistas e derrotas, bastaria para nos tranquilizar quanto à sua existência e seu futuro? Como é o Museu da Gravura hoje? O que significa para Curitiba e o País? O que faz com que um museu realmente exista? Algumas dessas questões podem ser aferidas através do exame da atuação do Museu na comunidade e da proporção direta entre as participações do poder público e da sociedade civil na cota de realizações do Museu. Essas e outras questões podem ser discutidas em pesquisas e ações de um futuro próximo, seja por iniciativa governamental e ou da comunidade.”

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O que faz com que uma comunidade deseje manter um museu de arte?

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CARLA ANETE BERWIG

Graduada em Letras Português/Inglês (UTP), especializações em Literatura Infantojuvenil (PUCPR), Literatura Brasileira (UFPR), Ensino de Língua Estrangeira (UFPR), Gestão e Políticas Culturais (Universidade de Girona, Espanha, e Itaú Cultural). Mestrado e doutorado em Letras, área de concentração: Estudos Linguísticos.

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GESTÃO CULTURAL E DESAFIOS FRENTE ÀS TRANSFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS a mudança no perfil dos museus

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O surgimento das novas tecnologias, como se sabe, provocou uma mudança muito grande em todos os setores da vida humana. Esses impactos foram sentidos na medicina, na educação, nos esportes, nos processos de produção industrial, na vida social e familiar, na comunicação e também na cultura. Assim, o setor cultural não pode ficar à margem dessa revolução digital que tem afetado diretamente o uso/ consumo dos produtos culturais, o acesso à arte e à cultura. Ao analisarmos o nosso entorno, o que fica claro é que está em curso uma significativa mudança de comportamento do público da arte e da cultura, em grande medida provocada e possibilitada pela tecnologia. As pessoas desejam compartilhar experiências, interagir, ser ouvidas, participar ativamente da experiência cultural. Prova disso é que o perfil do público dos museus tem se modificado, exigindo novas práticas dessas instituições. Na contemporaneidade as exposições não ficam restritas apenas a mostrar objetos artísticos, mas sediam também manifestações artísticas.

A partir da compreensão dessa nova mentalidade, algumas instituições ao redor do mundo entenderam que deveriam se aproximar de seu público, que as pessoas desejam experimentações coletivas e que o museu deve sair de sua posição de autoridade para uma posição de compartilhamento. Nesse sentido, é fundamental ouvir o público, perceber o que é valioso para ele e a tecnologia pode ser uma importante aliada nessa tarefa. Diferentemente de outros setores da área cultual, como, por exemplo, a indústria editorial e a música, que tiveram seu modelo de negócios tradicional afetado, a digitalização permitiu aos museus novas oportunidades, ampliando os pontos de contato das instituições com os usuários, oferecendo possibilidades de inter-relação tanto para os criadores como para as instituições. Dessa forma, a explosão da Internet, no início dos anos 2000, fez com que os museus começassem a criar suas páginas na Web, com informações sobre horários, valores cobrados para a entrada e localização. Uma década mais tarde, surgiram as redes sociais, as páginas com recursos multimídia e os primeiros aplicativos. Na atualidade, os museus investem na internet das coisas e na conectividade, com aparatos de todos os tipos, tecnologias “usáveis”, telas tácteis, robôs, aplicativos de reconhecimento facial, beacons (dispositivos que emitem ondas curtas), para conhecer a geolocalização

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Para Botallo (2007), a mudança radical de mentalidade em relação aos museus, consiste no fato de que atualmente o museu não é mais questionado em sua permanência orgânica, mas passa a ser questionado em sua forma/estrutura, e esse raciocínio funciona como elemento que estimula a aproximação com outras mídias e com outros setores da indústria cultural. O que reforça esse novo pensamento, na opinião da autora, é que existe um claro desejo de transpor as fronteiras disciplinares, em direção a uma proposta inserida no contexto de uma cultura envolvida com as mídias de massa. Assim, as mídias de massa deixam de ser vistas como inimigas do museu, que, por sua vez, amplia seu alcance de ação e permite diferentes apropriações e múltiplas visões.

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dos visitantes e suas preferências em relação a obras e objetos expostos, sensores inteligentes e até sistemas de recomendação para satisfazer as necessidades dos visitantes. De acordo com o Anuário AC/E 2015 de Cultura Digital, elaborado pela Acción Cultural Española, que analisa o uso das novas tecnologias no setor cultural, os museus foram o setor que melhor soube tirar proveito das ferramentas digitais para inovar em suas exposições e enriquecer as visitas na Espanha. Para confirmar essa afirmação, os dados apurados pelo relatório revelam que 83,3% desses espaços, em sua maioria, públicos, estão presentes na Internet, têm imagens digitalizadas de seus acervos e contam com aplicativos educativos. Dessa forma, acabam incorporando ao mundo cultural também as empresas que desenvolvem essas tecnologias. Para realizar esse estudo, foram pesquisadas 226 instituições em diversos países. A pesquisa revelou que o Museu de Arte Moderna de Nova York, MoMA, e a Tate Galery, de Londres, são os que estão à frente no uso de tecnologias. O primeiro colocado, o MoMA, criou blogs e canais multimídia com tutoriais para suas obras no site, e tem aplicativos para todos os sistemas operacionais de celular. Possui também nove páginas nas diferentes Redes Sociais. No entanto, em relação a esse último aspecto, foi o Louvre que mais tirou proveito do Facebook, com 1,6 milhão de fãs, enquanto que no Twitter é o Metropolitan Museum de Nova York que tem o domínio, muito atento à interatividade com seus seguidores. Especificamente no contexto da Espanha, dados coletados pelos pesquisadores do Anuário AC/E de Cultura Digital 2015 mostraram que o desenvolvimento do país com relação a esses recursos é bastante positivo, apesar de estar atrás de outros países no uso de certos aplicativos. Dessa forma, em 2012, 42% dos museus desse país já contavam com códigos QR para uma análise alternativa das obras. Destaca-se o exemplo do Museu do Romantismo, em Madri, que faz uso de todas as redes sociais e, além disso, criou listas de músicas no aplicativo spotify para aqueles que desejarem se sentir imersos no clima do início do século 19. No que diz respeito à digitalização das obras, também há avanços registrados nos últimos dois anos. Em destaque estão o Museu do Prado, que já tem um arquivo com mais de 8.000 imagens, e o Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia - MNCARS, de Barcelona, com 9.000. São vários os problemas enfrentados nesse sentido, que devem ter solução mais à frente. O principal deles está relacionado ao Direito de Autor. No entanto, muitas instituições já têm abordado esses problemas e conseguido compartilhar seus conteúdos com a comunidade, permitindo o livre acesso a imagens de alta resolução e a documentos, por meio de licenças livres como o Creative Commons, fazendo do museu um lugar mais social e participativo também no ambiente virtual.

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Cada instituição deve procurar criar sua política de difusão cultural levando em conta o entorno digital, com previsão de licenciamento para todos os casos. É importante ressaltar, que essas ações requerem uma mudança de paradigma dos museus em relação ao seu papel, que além de guardar, conservar e difundir o conhecimento, devem também passar a compartilhá-

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lo e criá-lo juntamente com a sociedade. Apesar do orçamento elevado de que dispõem essas instituições em diversos lugares do mundo, em comparação com outros segmentos da área cultural, segundo conclusão da pesquisa, nos últimos anos, as contas vêm exigindo uma maior presença de investidores privados. Nesse sentido, a maior dificuldade relatada pelo Anuário diz justamente respeito ao financiamento de projetos digitais. O Museu de Arte Contemporânea de Castilla e León, por exemplo, investiu nas redes sociais e desenvolveu softwares livres para que os cidadãos possam se envolver mais com o museu. No entanto, dispõe de apenas dois funcionários para conduzir a tarefa da digitalização do acervo da instituição. Vistos todos esses exemplos de como os museus vêm incluindo as ferramentas digitais em seu funcionamento, nas exposições e como estratégia de comunicação com seu público, não resta dúvida de que a tecnologia é benéfica para a área cultural, desde que seja usada adequadamente. Nesse sentido, o físico espanhol Jorge Wagensberg (2013), que criou o Museu de Ciência de Barcelona e transformou a museologia em ciência, em entrevista ao Jornal O Globo, faz um alerta de que a tecnologia fica obsoleta rapidamente, e o que deve prevalecer na concepção de um museu são as boas ideias para contar histórias com criatividade e beleza.

Como pudemos perceber os museus ao redor do mundo se encontram em um período de mudanças e transformações no modo de apresentar suas exposições e coleções. É visível e cada vez mais frequente o uso de novas técnicas e tecnologias como parte de estratégias para melhor atender os visitantes, facilitando o acesso ao conhecimento, tornando a visita mais rica e interativa. A combinação da digitalização com a virtualização tem modificado a museologia no mundo e também no Brasil. E a incorporação da tecnologia aos museus tem exigido novos olhares, novas formas e novos fazeres. No nosso País, são muitos os problemas que os museus enfrentam: baixos orçamentos, falta de estrutura e de profissionais capacitados, grandes distâncias, isolamento, alta concentração em algumas regiões, como Sul e Sudeste. Mas apesar de todos esses fatores, segundo Gouveia e Dodebei (2007), quase a totalidade dos museus brasileiros já se habituou a ter um novo espaço para sua divulgação, exposições e para suas atividades educativas. Nesse sentido é muito importante a criação do Instituto Brasileiro de Museus – Ibram, em 2009, órgão responsável pela Política Nacional de Museus (PNM) e pelo aperfeiçoamento dos serviços do setor – aumento de visitação e arrecadação dos museus, incentivo de políticas de aquisição e preservação de acervos e criação de ações integradas entre os museus

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No entanto, o uso inteligente desses recursos, de acordo com a conclusão do estudo publicado no Anuario AC/E de Cultura Digital 2015, tem servido para ampliar o público dos museus e colaborado para que as pessoas se aprofundem mais nas obras, com um rendimento comunicacional e educativo mais abrangente e os museus, por meio dos dados colhidos, passam a conhecer mais e melhor seus visitantes.

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brasileiros, incentivando assim a aproximação entre as ações de promoção do patrimônio em nível federal, estadual e municipal. Em relação à democratização do acesso aos acervos dos museus, o Ibram, por meio de seu programa Acervo em Rede, propõe-se a enfrentar o desafio de promover, por meio da internet, o acesso dos cidadãos aos bens culturais preservados nos museus de todo território nacional, já que apenas 10% das instituições, em um universo de 3 mil museus brasileiros, possuem informações de seus acervos em meio digital, de acordo com dados constantes no site do Ibram. Para atingir este objetivo, a instituição tem planejado e desenvolvido ações tais como, estudo e análise de normas e padrões nacionais e internacionais para a definição de metadados referente aos acervos museológico, arquivístico e bibliográfico que integram o Inventário Nacional dos Bens Culturais Musealizados, estudo de normas, padrões e protocolos internacionais para sistemas informatizados de gestão do patrimônio museológico, criação de um portal online para integrar os diversos museus no território nacional e unificar o patrimônio museológico, possibilitando assim o intercâmbio de informações entre as instituições. Para finalizar, vale ressaltar que promover essas mudanças no funcionamento dos museus não diz respeito apenas à simples incorporação de recursos digitais. Trata-se de identificar quais as competências necessárias para que os gestores e profissionais da cultura desempenhem com êxito as novas tarefas, em um cenário incerto e em permanente mudança. Todos são afetados em maior ou menor grau, desde os artistas e criadores, os gerentes e administradores, até as equipes técnicas mais tradicionais. E a maioria desses profissionais não está preparada para dar respostas a essas novas funções requeridas, requerendo assim adaptação à nova realidade, reciclagem e mudança de mentalidade. É necessária, portanto, a adoção de uma visão digital, por meio do desenvolvimento de competências, com foco em uma nova maneira de pensar que transforme a cultura organizacional, os processos de funcionamento, as relações entre os diferentes setores e áreas, e o diálogo e relação com os usuários, enfim, algo mais complexo do que a simples incorporação de recursos tecnológicos. Acreditamos que para atingir tal fim, as organizações culturais, nesse caso específico os museus, precisam escolher e implantar um modelo de competências e gestão mais apropriado às suas finalidades, para difundi-lo e impulsioná-lo da melhor forma, buscando parcerias para viabilizá-lo sob o ponto de vista econômico.

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*Este artigo apresenta parte do texto publicado nos Anais do VI Seminário Internacional de Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, maio de 2016.

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Referências ANUARIO AC/E DE CULTURA DIGITAL 2015. Modelos de negocios culturales en Internet. Focus: Museos y nuevas tecnologias. Acción Cultural Española. Disponível em: <http://www.dosdoce.com/ upload/ficheros/noticias/201503/anuario_ace_de_cultura_digital_2015.pdf.> Acesso em: 25/07/2015 BOTALLO, M. Poder, cultura e tecnologia: O museu de arte e a sociedade de comunicação. Novos Olhares - Revista de Estudos Sobre Práticas de Recepção. Publicação semestral online do Programa de Pós Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA) da ECA/USP, 2000, p. 5-17. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/novosolhares/article/view/51435> Acesso em: 15/07/2015 DODEBEI, V; GOUVEIA, I. Memórias de pessoas, de coisas e de computadores: museus e seus acervos no ciberespaço. MUSAS – Revista Brasileira de Museus e Museologia, n. 3, 2007. Rio de Janeiro: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Departamento de Museus e Centros Culturais, 2004, p. 93-97. Disponível em: <https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2011/01/Musas3. pdf> Acesso em: 20/07/2015. EL DIARIO. Disponível em: <http://www.eldiario.es/cultura/politicas_culturales/Museos-adaptarsetecnologia_0_370963719> Acesso em: 25/07/ 2015. HENRIQUES, R. Memória, museologia e virtualidade: um estudo sobre o Museu da Pessoa. Dissertação de Mestrado em Museologia Social. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, 2004. Instituto Brasileiro de Museus – Ibram. Disponível em: http://www.museus.gov.br/ Acesso em: 5/6/2016 MINISTÉRIO DA CULTURA. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br> Acesso em: 3/08/2015 O GLOBO. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/museu-20-arte-de-ouvir-publico-6836646> Acesso em: 15/07/2015.

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O GLOBO. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/futuro-dos-museus-esta-na-criatividadenao-na-tecnologia-dizem-especialistas-reunidos-no-rio-9455603> Acesso em: 20/07/2015

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MARCELO SALDANHA SUTIL MARIA LUIZA GONÇALVES BARACHO

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ARTHUR WISCHRAL, Acervo

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Dono de um olhar sensível e apurado senso estético, aliados à uma técnica perfeita e a um espírito curioso e investigativo de quem tomou a si a responsabilidade de registrar os acontecimentos e mudanças de sua época, Wischral soube produzir belas imagens onde o registro documental, por vezes jornalístico, está sempre impregnado da presença e da dimensão humana. Parte significativa dessa produção originou a Coleção Arthur Wischral, com mais de seis mil chapas de vidro, integrada ao patrimônio cultural do Município em 1996, ao ser adquirida dos herdeiros do fotógrafo pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba / IPPUC. Hoje todo este acervo encontra-se sob a guarda da Casa da Memória, que integra a Diretoria do Patrimônio Cultural da FCC. Assim como outras importantes coleções iconográficas, documentais e bibliográficas, o acervo Wischral, devidamente trabalhado e reproduzido, está disponibilizado ao público em geral para consulta e pesquisa. Em muitas fotos, ao se colocar junto a seus retratados, ou ao se deixar fotografar nas muitas obras e empreitadas que acompanhou, o fotógrafo se preocupou em perenizar a própria imagem, quase sempre no exercício do ofício que era a grande motivação de sua vida. Filho de imigrantes alemães, Arthur nasceu em Curitiba em 1894. Adolescente, aprendeu na prática a arte da fotografia, orientado por um fotógrafo profissional, Germano

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Fotos e Coleção Arthur Wischral. Acervo: DPC / FCC

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Fleury. Logo se tornou repórter fotográfico da revista A Bomba e do jornal A República. Após breve temporada na Alemanha, durante a Primeira Guerra, onde aprendeu novas técnicas de trabalho, voltou a Curitiba, onde passou a documentar o cotidiano da cidade e sua expansão. Na década de 1920, contratado pelo governo do Paraná, produziu memoráveis imagens oficiais num trabalho que exigia o olhar do repórter fotográfico. Retratou, assim, as obras da ferrovia Curitiba-Paranaguá e as da Rede Paraná–Santa Catarina, indo muito além do simples registro: sua lente captou um cotidiano de trabalhadores e máquinas desafiando as alturas e a força da natureza. Como temas recorrentes, a terra e o homem do litoral e do planalto, os campos, as serras e as cidades interioranas. Pelo prazer de fotografar, gerava poéticas imagens, perenizadas em chapas de vidro. Atento, acompanhou as mudanças urbanísticas da capital. Em registros para a Prefeitura, a partir de 1940 apreendeu a gradual ocupação dos arredores da cidade, as antigas casas sendo substituídas por grandes edifícios e a abertura e o alargamento de muitas ruas. Sempre na busca da melhor foto, jamais saía de casa sem sua câmera. Ao falecer, em setembro de 1982, deixou como legado significativas imagens da cidade que conhecera profundamente, para onde, como fotógrafo inquieto e viajante que era, sempre retornava. Foi uma vida inteira dedicada à fotografia. Apresentamos aqui algumas fotos deste magnífico e importante acervo.

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Fotos e Coleção Arthur Wischral. Acervo: DPC / FCC

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O fotógrafo jovem retratado, provavelmente, na segunda metade da década de 1910. Coleção Arthur Wischral. Acervo: DPC / FCC

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Fotos e Coleção Arthur Wischral. Acervo: DPC / FCC

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EXPEDIENTE

PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA RAFAEL GRECA DE MACEDO Prefeito de Curitiba

FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA (FCC) ANA CRISTINA DE CASTRO Presidente JOSÉ ROBERTO LANÇA Diretor de Ação Cultural CRISTIANO AUGUSTO SOLIS DE FIGUEIREDO MORRISSY Diretor Administrativo e Financeiro LOISMARY ÂNGELA PACHE Diretora de Incentivo à Cultura MARCELO SUTIL Diretor do Patrimônio Cultural THAÍSA MARQUES TEIXEIRA SADE Diretora de Comunicação

REVISTA TAIPA MARCELO SALDANHA SUTIL MARIA LUIZA GONÇALVES BARACHO Organização REVISÃO FINAL Maria Luiza Gonçalves Baracho FOTOGRAFO Marcos Campos APOIO TÉCNICO Carla Anete Berwig Elizabeth Wielewski Palhares Filomena Nercy Hammerschmidt Roberson Maurício Caldeira Nunes Rui Marcelo Suttil De Oliveira PROJETO GRÁFICO Clarice Midori Umezaki Iwashita DIAGRAMAÇÃO Júlia Ghun Hohmann

Publicação periódica da Diretoria do Patrimônio Cultural / FCC ISSN 2238-5592


DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

Taipa. – v.3, n.3. (março 2018) -. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2018. Periodicidade irregular ISSN 2238-5592 1. Bigorrilho – Bairro - Curitiba. 2. Centro de Criatividade de Curitiba – Década 1970 – Contexto Artístico, 3. Cidades – Memória. 4. Fotografia – Acervo Wischral. 5. Gestão Cultural - Museu. 6. Museu da Gravura Cidade de Curitiba. 7. Praças - Urbanização – Curitiba. I. Fundação Cultural de Curitiba. CDD: 363.69 Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Filomena N. Hammerschmidt – CRB9/850


Fundação Cultural de Curitiba • Rua Engenheiros Rebouças, 1732 • Curitiba-PR • (41) 3213-7500 Museu da Cidade de Curitiba • Rua Claudino dos Santos, 79 • Curitiba-PR • (41) 3321-3313 / 3321-3223 www.fundacaoculturaldecuritiba.com.br


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