Revista Maracajá - Fevereiro

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FORTALEZA

REDACÇÃO: ANTONIO GARRIDO, PAULO SARASATE E MARIO DE ANDRADE

ORA, escrever artigo de fundo !

Vocês estão louquinhos !

Artigo de fundo lá o quê...

Eu vou é contar uma história que aconteceu.

O Mário de Andrade foi dormir em Soure.

E sahiu no trem da R.V.C.

E porque é inverno e tudo está verde, elle foi com a cabeça de fóra da janella do vagão.

A chaminé da locomotiva fazia de chuveiro de São João: faiscas, faiscas, faiscas, no escuro da noite.

Veiu bater um carvão no olho arregalado do Mario.

E elle chegou em Soure de olho inchado.

E queria que todo mundo lhe tirasse o argueiro.

Eu varri com um capulho de algodão o olho do Mario – e nada...

Elle cerrava as palpebras e dizia, cearensemente:

– Tirou não...

Foi quando a Tetê se propoz a tirar o argueiro.

E pegou da palpebra do Mario, mandou que elle se assoasse tres vezes e rezou alto:

<< Corre, corre, cavalleiro

Pela porta de São Pedro Vae dizer a Santa l uzia Que me tire esse argueiro Com a pontinha de seu dêdo. >>

O Mario ficou radiante.

O argueiro sahiu.

Ficou na ponta do dedinho de Santa Luzia.

Ah ! Tetê !

Se Santa Luzia me tirasse uma brasa que está queimando meu coração...

A. G

Parece que estou vendo aquella gentinha, de pelle eriçada, grilando contra ella. Berrando. Zurrando. Cuspindo desaforos sobre <<Maracajá >>

Mas o diabo é que a revista não foi feita pra elles. Danemse. Mordam-se. Sapateiem. E estarão pregando no deserto... Uma coisa nós pretendemos. E havemos de conseguir: desprezar impiedosamente os remoques de vocês.

Todo mundo deve saber a quem me refiro. Porque eu não poderia arremetter contra os pequenos. Contra os humildes que não entendem o modernismo.

Eu me refiro é áquella outra casta. A’ casta sensaborona dos literatos.

Ah! os literatos... Como elles não vão enticar com a gente ! Que tremenda não vae ser a sua guerra ! Estou a adivinhar-lhes a birra, o enfezamento e a malcreação.

Os que se dizem passadistas, por exemplo, – e elles enchem a bocca com esse nome! –, vão pintar os canecos contra nós.

Somos uns malucos. Uns doidos.

E apontarão logo pra cima da gente com o dr. Odorico de Moraes. O director do Hospicio.

Mas que se ha-de fazer? Todo movimento libertario tem surgido assim. Entre pedradas. Entre assobios. Coberto de apodos.

Tal foi com o naturalismo e o parnasianismo, nas letras. Tal foi com as doutrinas de Ferri na criminologia.

Aliás, isso é uma lei muito antiga de sociologia.A história apenas se repete, como diria o sr. João Ribeiro. Porque já no tempo de Galileu era assim. E com um aggravante: em vez de assobio, fogo.

Fiquem, pois, certos os passadistas cá da terra: nós, os de <<Maracajá >>, não os enxergaremos.

E passem muito bem. Bôa noite!

Supplemento literario do O POVO. Sae aos domingos

*
* *
P AU l O S ARASATE
MODERNIS TA DO CEARÁ
E CIRCULOU
DIA 7 DE ABRIL DE 1929
Passem muito bem! FOLHA
ESTE E’O PRIMEIRO NUMERO
NO

Do Alpendre

O modernismo que eu entendo é esse que nós fazemos: modernismo nacional, saturado de tudo quanto é nosso, original, sugestivo, impressionante... Querem saber? Se eu continuasse a dizer o que penso do modernismo Não acabaria mais...

Demócrito Rocha

Jornal O POVO, 13 de junho de 1929

poeta e historiador Sânzio de Azevedo, maior pesquisador da literatura cearense, em O Modernismo na Poesia Cearense: primeiros tempos (EDR, 2ªed, 2012), afirma: “Se é verdade que o marco inaugural do modernismo cearense é O Canto Novo da Raça, de 1927, não é menos certo que a ebulição causada pelo advento da nova estética deveria muito à fundação, por Demócrito Rocha, do jornal O POVO, em 1928. [...] Filgueiras Lima por sinal já havia dado seu depoimento, quando disse que ‘Demócrito se tornou, em pouco, a coluna mestra do modernismo no Ceará.’ Percorrendo as páginas d’O POVO, de 1928 e 1929, veem-se desfilar os nomes dos mais destacados poetas do movimento da época: Mário de Andrade (do Norte), Filgueiras Lima, Edigar de Alencar, Heitor Marçal, Sidney Netto, Rachel de Queiroz, Antônio Garrido (que não é outro senão o próprio Demócrito Rocha, que não assinava seus versos com nome real), Mozart Firmeza (Pereira Júnior), Franklin Nascimento, Jáder de Carvalho, Martins D’Alvarez, Paschoal Carlos Magno, Silveira Filho e tantos outros vanguardistas de então. (...) Julgando talvez insuficiente a divulgação que O POVO fazia do movimento renovador no Ceará, Demócrito Rocha, Paulo Sarasate e Mário de Andrade resolveram criar um suplemento exclusivamente literário.”

E assim, nascia, há 90 anos, aos domingos, o suplemento literário Maracajá: folha modernista do Ceará, em referência ao felídeo encontrado com mais frequência na região Amazônica e cujo nome é originário da língua tupi. Na primeira página, a marca produzida a partir do clichê em madeira de umburana de juazeiro feito pelo artista R. Moreira (que reproduzimos aqui em recomposição tipográfica). A redação estava a cargo de Antônio Garrido (Demócrito), Paulo Sarasate e Mário de Andrade (do Norte).

Rachel de Queiroz, amiga de Demócrito Rocha antes mesmo da fundação de O POVO e colaboradora dele até o seu falecimento, participou ativamente do Maracajá e relatou, sobre a revista: “Destinava-se o Maracajá a pregar o modernismo pelas terras nordestinas, e nele todos nós desferimos voo [...] Sei que tivemos a glória insigne de nos ver lidos e comentados por alguns dos grandes do Rio e São Paulo, para nós, então, as duas metades inacessíveis do Paraíso.”

Agora, o Maracajá está de volta, como Demócrito Rocha, patrono desta Fundação, assim o queria: divulgando para o Brasil e para o mundo um pouco da literatura produzida no estado do Ceará. Dos antigos aos contemporâneos, a casa é do POVO: Confira, leia, divulgue e participe.

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Realização: Apoio: F I LGUEIRAS LIMA PAULOSARASATE MARIODE AN D R EDA MOZART FIRMEZA JÁDERDECARVALHO FRANKLIN NA S C I OTNEM D E M OTIRCÓ RO C H A RACHEL DE QUEIROZ RAULBOPP SIDNEY NETTO MÁRIODEANDRADE ( D O N O )ETR VOL. 1 | nº 1 Fevereiro de 2019 Suplemento Gratuito

ARTIGO Os Canibais Daqui

Thiago Nobre

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TIRAGOSTOS

Daniel Brandão

Lene Chaves

J.J. Marreiro

Artista da capa Carlus Campos

FLORES DE AÇUCENA A Ela Antônio de Castro

Um Soneto d’Amor

Raymundo Varão

05 18

08 14

GENTE ILUSTRADA

Raisa Christina

CRISTALEIRA

Aluízio Medeiros: o poeta dos injustiçados

Ednardo Honório de Lima

CHAPULETADAS

Bird Box: uma caixa sem surpresas Vicente Jr

Do Tamanho de Tolstói

Carlos Vazconcelos

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POR CIMA DA CARNE SECA

A Cartografia Poética de Mailson Furtado Viana Lílian Martins

09 21

RADIADORA

José Jackson Coelho Sampaio

Pedro Salgueiro

Ricardo Guilherme

Marília Lovatel

Alves de Aquino

Jesus Irajacy Costa

Dimas Carvalho

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

João Dummar Neto presidência

André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira

Raymundo Netto gestão de projetos

Emanuela Fernandes análise de projetos

MARACAJÁ

Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral

Emanuela Fernandes assistência editorial

Thiago Nobre, Vicente Jr., Carlos Vazconcelos, Daniel Brandão, Lene Chaves, J.J. Marreiro, Raisa Christina, Lílian Martins, Ednardo Honório de Lima colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”)

Carlus Campos ilustrações

Amaurício Cortez editor de design

Giselle Fernandes projeto gráfico e editoração eletrônica

Karlson Gracie tipografia Maracajá revistamaracaja@gmail.com contato

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores.

Este suplemento literário mensal é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, sob o nº 05/2018.

Todos os direitos desta edição reservados à:

Fundação Demócrito Rocha

Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora

Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará

Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 fdr.org.br | fundacao@fdr.org.br

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Artigo

Os Canibais Daqui

Poucas pessoas sabem que no Ceará tivemos o nosso próprio movimento modernista. Quando se fala em Modernismo, geralmente, faz-se menção à experiência paulista com a festejada e sempre lembrada Semana de 22, à leitura do poema coaxante de Manoel Bandeira em boca alheia, às vaias, alaridos e algazarras de uma plateia que, tendo o seu senso estético de classe média aburguesada conspurcada, não estava entendendo nada ou quase nada. E, por fim, a alguns de seus protagonistas: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Anita Malfaltti, Ronald de Carvalho e por aí vai.

O fato é que tivemos sim uma experiência modernista com características peculiares, diversas e específicas. Inclusive tivemos o nosso próprio Mário de Andrade, assinando como Mário de Andrade (do Norte) para que não houvesse confusão com o outro do Sul. Podemos citar outros mais: Demócrito Rocha (Antônio Garrido), Paulo Sarasate, Rachel de Queiroz,

Jáder de Carvalho, Franklin Nascimento, Mozart Firmeza, Sidney Netto etc. Nomes pouco ou nada conhecidos pelo grande público, o que demonstra o nosso longevo descuidado com a memória. Nada de novo no front Mas por que diferente? Sânzio de Azevedo nos deu uma pista interessante quando afirmou que o Modernismo daqui foi precedido por notas de surdina penumbrista, explodindo em canglores de telurismo. Tanto é que o autor que influenciou os jovens intelectuais que formariam as frentes de combate do Modernismo em Fortaleza foi Ribeiro Couto com Jardim das confidências (1921). Trazendo inovações nos temas e na forma que aludia aos fatos cotidianos de São Paulo, impressionando os jovens letrados que frequentavam e se amesendavam no Café Riché, após o almoço, para recitar e discutir os poemas do poeta paulista. Mesmo sem fazerem a mínima ideia de qual a diferença entre a garoa de lá e o chuvisco daqui. Foi de um jeito lá e de outro aqui, nem melhor ou pior, apenas diferente. O mais interessante é perceber tais peculiaridades e as trocas entre esses intelectuais.

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Em pé, da esquerda para a direita: Filgueiras Lima, Mário de Andrade (do Norte), não identificado e Martins D'Alvarez. Sentados, na mesma ordem: Paulo Sarasate, Suzana de Alencar Guimarães, Raul Bopp, Demócrito Rocha e Silveira Filho. (Arquivo Nirez)

Em 1922, em Fortaleza, nas comemorações cívicas do centenário da Independência do Brasil, dois livros importantíssimos para entender o processo formativo dessa geração foram publicados: A poesia cearense no Centenário e Os novos do Ceará no primeiro Centenário da Independência. O primeiro teve tom mais oficioso e apoio do governador Justiniano de Serpa, reunindo intelectuais consagrados no campo literário, como Antônio Sales, Rodolfo Teófilo, Juvenal Galeno etc. O segundo reuniu jovens estreantes que já estavam escrevendo, como Jáder de Carvalho, Edgar de Alencar, Aldo Prado etc. E trouxe, também, uma espécie de prefácio-manifesto cáustico e sem assinatura contra os intelectuais de igrejinha, os palhaços de feira, os semideuses, os medalhões e a turba ignara e fofa que vivia de elogios baratos e bajulações vergonhosas ao invés da pena e do livro. Segundo Otacílio de Colares, estava por trás desse texto irreverente e ácido a figura de Jáder de Carvalho, que, como sabemos, nunca fugia a uma boa briga.

Outros momentos importantes foram a criação do Ceará Ilustrado (1924), a visita de Guilherme de Almeida (1925) para proferir a sua conferência “A revelação do Brasil pela poesia moderna” no Theatro José de Alencar, a publicação do Canto novo da raça (1927), o surgimento do jornal O POVO (1928), bem como dos folhetos

Foi uma decepção: apesar de não ser vendida nas ruas, a edição foi esgotada nas agências.

modernistas Maracajá (1929) e Cipó de fogo (1931), bem como a criação da agremiação Tribu cearense de antropofagia (1929). Não podemos esquecer também do Tangapema, suplemento do O Ceará, surgido à época, no entanto ainda encerrado em algum acervo ou, para a tristeza nossa, para sempre perdido. Os modernistas, talvez achando insuficiente a sua campanha no jornal O POVO, publicaram um suplemento literário: Maracajá. A folha modernista teve duas edições que circularam, respectivamente, em 7 de abril e em 26 de maio de 1929, tendo à frente de sua redação Antônio Garrido (pseudônimo usado por Demócrito Rocha), Paulo Sarasate e Mário de Andrade (o nosso).

Podemos entender a empreitada como o clímax e a guinada antropofágica dessa experiência. No dia posterior ao lançamento, saiu em O POVO uma espécie de antipropaganda que tinha lá a sua eficácia:

“Maracajá - a melhor revista do mundo circulou ontem. Foi uma decepção: apesar de não ser vendida nas ruas, a edição foi esgotada nas agências. O povo não entendia nada, mas comprava e fingia que gostava, elogiava – o diabo! Não correspondeu à expectativa de seus redatores: eles desejavam que ninguém a comprasse e toda a gente comprou.” (grafia atualizada)

Mas o que nos interessa ressaltar, ademais o diminuto espaço, são dois textos publicados em Maracajá que ilustram bem a riqueza do movimento. O primeiro com o título de “Se eu fosse escrever o meu manifesto artístico”, de Rachel de Queiroz. Não querendo ser um manifesto, acabou por sê-lo propriamente. Resumiu as diretrizes gerais que mais ou menos se concordava, mas era mesmo a sua concepção pessoal. É evidente que, estudando o movimento à época, percebemos a profusão de concepções, propostas e discursos que convergiam ou até mesmo divergiam. Havia os cosmopolitas (universais), regionalistas, futuristas e nacionalistas.

Aprendemos com Foucault que nas sociedades a produção de discurso é ao mesmo tempo controlada, organizada e redistribuída por procedimentos que têm por função excluir, interditar ou repetir. Assim, nos é legado uma imagem homogênea e sem vida da experiência humana, quando sabemos que ela, a vida, é diversa, variada e, muitas vezes, contraditória. Pois, toda experiência histórica, em certo sentido, é única e irrepetível, já nos alertara E. P. Thompson.

Para Rachel, ser universal era ser regional. O artista só poderia ser espontâneo e sincero se cantasse o meio em que estava integrado, a paisagem familiar, as práticas e os tipos sociais próximos. Tal qual o dístico de Tolstói: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. Afinal, o que era universalizar a arte? Torná-la uma colcha de retalhos cosmopolita ou construir uma expressão caracteristicamente brasileira? Por isso, Rachel preferiu cantar a sua terra, a alma da

sua gente, o sol ardente, amoroso e ruivo, o sertão, o Orós, as carnaúbas, a praça do Ferreira, o Cariri.

O segundo foi uma resposta de Heitor Marçal a uma carta de Raul Bopp. Ele, como os seus pares, sabia muito bem das relações de poder e das discrepâncias materiais entre a província e os centros econômico-sociais do país. Os que faziam literatura aqui eram tidos como meninos amarelos, comedores de broa. Porém, segundo Marçal, os antropófagos daqui eram bons de boca e a renovação ia se dar pelo cacete rijo. O nosso índio comeu o padre Pinto e só não deglutiu os portugueses por nojo ou fastio. O índio de Alencar foi uma ficção e todo mundo caiu no conto do filho do vigário. Como era possível um romance amoroso entre uma gazela e uma suçuarana? O verso no Brasil deveria ser nu, sem pontos, sem vírgulas, sem nada. Mais à frente se arranjariam sinais convencionais tirados dos motivos da cerâmica primitiva

O Modernismo no Ceará foi um grande banquete discursivo, quiçá um festim diabólico. E sabendo que toda tradição é uma invenção, tem sua historicidade e o seu contexto, apreciemos com calma os sabores, os nuances e os temperos dessa experiência banhada na própria banha.

Thiago Nobre é professor de História. Graduado em História com a monografia “Geração Moça desta Gleba”: Movimento Intelectual de Clã e a Consolidação do Campo Literário de Fortaleza na década de 40 (Universidade Estadual do Ceará), Especialista em História do Brasil (IDECC) e mestre em História com a dissertação “A Tribu de Antropofagia: Práticas Letradas, Cotidiano e Modernismo(s) em Fortaleza (1922 - 1931)” (Universidade Estadual do Ceará).

Artigo 7

Flores de Açucena

A Ela

Ela tem sempre no olhar Profunda Melancolia, Essa tristeza sombria Que lembra a luz do luar Em noite nevoenta e fria.

Tem a voz triste e magoada Como os queixumes do mar, Das ondas que vêm rolar, De manso, na esbranquiçada, Extensa praia, a chorar...

Vejo as sombras do pesar Anuvearem-lhe o rosto, Como as sombras do sol posto. Aos poucos vão-se espalhar Num céu sem nuvens de agosto.

Por ela sinto pulsar Meu coração, ai, coitado! Que, há muito, foi condenado A sofrer, sem descansar. Dentro do peito enjaulado.

Feliz de mim se algum dia Viesse seu brando olhar, Tão brando como o luar, A noite longa e sombria Da minha vida aclarar!

Antônio de Castro

O Pão da Padaria Espiritual nº 13 (1895)

Um Soneto d’Amor

Para Thompson Soares

Anjo, mulher, demônio a quem venero, Sombra que amaldiçoo e que bemdigo, Luz dos meus olhos, infernal perigo, Causa do meu eterno desespero,

Se procuro esquecer-te é que mais quero Dar-te em minh’alma sacrossanto abrigo, E concentrando as lágrimas comigo As minhas próprias carnes dilacero...

Do meu profundo amor, sempre a falar-te, Encontrarás o espectro solitário Disperso a soluçar por toda parte!

E se em teu peito a compaixão não medra Eu irei pela senda do Calvário Arrancando um soluço a cada pedra...

Raymundo Varão

Revista Phenix nº12 (1913)

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Chapuletadas

Bird Box uma caixa sem surpresas

iga-se logo o óbvio: o livro é melhor. O filme (2018) em si, produto razoável, bem vendido, com muita propaganda, é decididamente fraco e sustenta-se em um nome de peso: Sandra Bullock, impagável. Partindo deste princípio, discutirei aqui apenas o estranho, o terrificante, o imensurável, o fantástico, o terror apenas como uma possibilidade. O resto é mesmice. A repetição está nítida já no formato da própria narrativa, vide seus flashes sem muita função.

Vamos então ao que interessa: AS CRIATURAS. O filme nos surge espacialmente como um Walking dead, mas sem os zumbis. Talvez isso tenha feito ficar interessante. Confirmase, pois, como um texto apocalíptico, mas não pós-apocalíptico, já que o mundo ainda não acabou; o momento da narrativa é o da própria destruição ou “purificação”, como dizem algumas personagens. Observa-se, então, a primeira e mais plausível possibilidade de desvendamento das criaturas: são anjos, anjos destruidores normalmente mandados à Terra quando da necessidade de purificação do gênero humano.

Note-se que não se trata de uso de arma química ou biológica, não é um caso de gás venenoso ou mutante etc. O que

temos são seres, criaturas estranhas que se manifestam por meio de sussurros (costumam dizer o nome das pessoas) e pelo vento nas árvores, nos arbustos e ao redor. Ao mesmo tempo, estes seres são louvados como lindos, divinos etc.

Mal dirigida, ou seja, tomou-se o caminho mais fácil, a técnica do flashback realmente prejudicou o entendimento do leith motive do autor inclusive a empatia pelas personagens, excetuando-se claro a própria Malorie e o heroico Tom. O resto é puro cliché: um tarado, um escritor frustrado, um cético etc.

Essa ideia do fim pela mão de anjos ganha força quando, sem nenhuma referência a Saramago (em Ensaio sobre a cegueira), a visão das criaturas leva à morte. Aqui se desmonta toda essa conversa de ser este um filme sobre o “desespero da sociedade contemporânea vítima da depressão...que leva ao suicídio” e blá blá blá. O filme e o livro não são sobre isso. Não há um viés teológico no sentido de doutrinação ou religiosidade. Não. Mas é apocalipse mesmo.

O ser humano parece merecer por vários motivos seu extermínio. Isso é nítido no tema da maternidade não aceita por Malorie e até na sua indiferença quanto aos filhos (proposição edênica do mito de Adão e Eva), como o fato de terem nome ou não, sendo chamados apenas de boy e girl. É possível serem ETs? Sim, mas para isso é necessário transformar o filme em série (não

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seria má ideia) e inventar essa lógica a partir dos desenhos delirantes de um dos loucos.

Outro reforço à teoria de anjos x homens é a questão dos olhos. Em vários evangelhos é bastante recorrente a ideia de não contemplar Deus ou sua face ou mesmo seus mensageiros de luz. Existem anjos de vários tipos, mas destacam-se dois: os de misericórdia (o anjo que impede Abraão de sacrificar seu filho) e os de destruição (os anjos varões que aniquilam populações e cidades inteiras como Jerusalém, Sodoma e Gomorra).

Os olhos não são apenas as janelas da alma, mas os elementos incitadores ao erro (desejar, invejar, desobedecer, odiar etc.). Tê-los ou não é algo bastante simbólico em termos literários, filosóficos, psicanalíticos ou mesmo teológicos, como o que aconteceu com Saulo no caminho para Damasco, uma cegueira que posteriormente leva à morte simbólica e à purificação para o exercício de uma nova vida.

Nessa perspectiva de enxergar ou não, compreende-se que é exatamente por isso que há dois grupos de imunes: os cegos de nascença e os loucos. Aqueles por não poderem ver a ira de Deus materializada em suas criaturas divinas; estes por possuírem um tipo de cegueira pessoal que é a (des)razão. Exatamente por isso os loucos são partidários da “limpeza”, pois embora possam enxergar, só conseguem absorver a ideologia da purificação, ou seja, instrumentalizam-se, cegam para a torpeza, para o crime porque assim já é o seu natural no mundo e sua (in)existência enquanto loucos.

Em resumo, com a mesma pegada de terror psicológico do filme Os pássaros (1963), do mestre Alfred Hitchcock, a maior influência na verdade para Bird Box é o filme Legião (2010), de Scott Stewart, também apocalíptico, em que mais uma vez o Criador, decepcionado, manda anjos exterminarem a raça humana. Estamos tratando, então, mesmo com criaturas não nominadas, e talvez seja este o grande mérito do autor, de um dos temas mais antigos na Literatura e no Cinema. Por isso defendemos que o livro Bird Box, de Josh Malerman (2014) deve mesmo ser lido.

Em última análise, é possível fazer relações pertinentes entre o filme dirigido por Susanne Bier e outros tantos temas da atualidade: o protagonismo feminino, o tema da maternidade, a

questão humana, pouco mística e inclusiva dos cegos, e, muito distante uma simbologia em relação às vendas que constituem um mecanismo de cegueira necessária, ou proposital, segundo a vontade de cada um como já fazemos.

Fechamos os olhos para o outro, para sua dor, para a sua fome, para a suas necessidades, para as crianças e suas urgências, para os cegos, para os surdos (por que não?), para os pobres, para a corrupção e para tudo que se configura como ruim para nós etc. Essa indiferença reside na protagonista e se espalha por outras personagens, o que faz ser um grande choque qualquer postura sacrificial em relação ao outro. Frases intrigantes como a de Shannon: “Se você não aceita uma coisa ela some” ou mesmo de Malorie ao dizer: “Focar nas coisas erradas me acalma” são emblemáticas quanto ao desmerecimento do outro, a sua anulação e à fuga dos nossos problemas.

No mais, palmas para o departamento de marketing da Netflix em promover um filme tão simples ao status de megaprodução. Mas não são assim as coisas na internet, nos Estados Unidos ou um pouco abaixo da linha do Equador? Alguém que é apenas louco, ou nada, pode, contra cães e pássaros, chegar ao estrelato ou mesmo à presidência de um país. Basta que as pessoas continuem com a venda bem firme, amarrada sobre os olhos.

O perigo existe, mas ignorá-lo também ajuda. A vida que é uma caixa de surpresas! Os pássaros somos nós...

Vicente Jr, é dramaturgo, poeta, ficcionista e crítico. Professor adjunto da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e do Colégio Ari de Sá Cavalcante.

Serviço

Direção: Susanne Bier

Elenco: Sandra Bullock, Trevante Rhodes, John Malkovich, Sarah Paulson etc.

Gênero: Terror, Suspense

Nacionalidade: EUA

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de Tolstói

epois da leitura da trilogia Tempo dos Mortos, de José Alcides Pinto, nossos abismos mentais jamais serão os mesmos. A narrativa flui como um rio, mansamente, mas desemboca dentro do leitor com estrondo. Mas não é romance de explosão, vai implodindo aos poucos. Não provoca crateras ou rombos, vai desintegrando a matéria. É um misto de contenção e densidade.

Em Estação da morte, primeiro livro da trilogia, José Alcides Pinto está do tamanho de Tolstói. Basta lembrar o clássico A morte de Ivan Ilitch, desse escritor russo. Compare-se. Radiografia das misérias e grandezas que habitam os vãos da alma. O ser coagido à beira do despenhadeiro final, a dúvida aterradora, o medo cruel do desconhecido. José Alcides Pinto sabe manejar suas goivas, formões e macetes para entalhar, com a precisão e a leveza estilística de um mestre, o drama seco e pungente de suas atormentadas criaturas.

A “estação da morte” é o hospital, monstro esfomeado que devora seus inquilinos. Abocanha inclusive o engenheiro que o projetou com amor e dedicação. A criatura devora o criador, como em outra conhecida parábola: “Nenhum outro monstro possuiria a obesidade de seu ventre.”

O enfermo vai se despindo da máscara do mundo, porque já a rasgou da alma e agora só lhe resta uma espera. Os médicos estão acima do bem e do mal. “São fantasmas que dão ordens”. O padre, instrumento do milagre da salvação, move-se atônito em seu labirinto. Os familiares são medíocres, os amigos, levianos. Acima de todas as futilidades paira o Regulamento, ditador poderoso, onipresente, feito o Grande Irmão, de George Orwell.

Os signos da morte rondam o cenário e surgem no mostrador gigante do relógio da Central (marcando o angustiante tempo dos mortos), nos agentes do Dops (que buscam

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ainda vestígios de vida inteligente), no vento que uiva nos vãos (canto fúnebre, nênia) e até na imagem-lembrança do galo, que canta monotonamente no inconsciente do moribundo.

No interior do monstro, glóbulos brancos e vermelhos, células sãs e cancerosas, a vida e imperiosamente a morte, Tânatos e Eros, a sombra de Minerva e a intrujice de Afrodite. No escuro dos quartos, fantasmas de branco (médicos e enfermeiros) antecedem o fantasma definitivo, sempre o último a deixar o recinto.

No ventre da coisa agonizam sonhos. O monstro insaciável devora, rumina, cospe, torna a engolir. Ai de quem cruzar suas colunas hirtas, seu esôfago de concreto. “Instituição-total”, no dizer de Goffman. Lá, o ser é uniforme, é número, perde a autonomia, vira autômato. “O sujeito não é mais nada depois de internado.”

Nossas emoções são marionetes sob o comando desse talentoso escritor. Profana para purificar, manipula o leitor, suga-o para dentro do livro antes mesmo de que ele tome consciência disso.

Em O enigma, segundo livro da trilogia, permanece a atmosfera labiríntica. Os meandros do cérebro continuam permeados por vultos e murmúrios, por segredos irreveláveis e criaturas indecifráveis. Nesse clima kafkiano, prevalece o desejo de se duelar com a morte e descobre-se que o adversário mais cruel é antes de tudo a demência, nascida nos longínquos do sangue como mal secreto de origem. O Despenseiro vive em situação-limite, assim como Gregor Samsa ou Raskólhnikov. “O segredo no centro da mão fechada, os dedos perros como ferrolhos.”

E prevalecem os devaneios, a letargia, o onírico. Em O sonho, que finaliza a trilogia, a indefinição do tangível. Onde começa e termina a realidade? Fio tênue, abstração. Em Estação da morte, José Alcides Pinto está do tamanho de Tolstói. Em O sonho e O enigma, ombreia-se a Kafka e Dostoiévski. E se alguém achar que é exagero, está perdoado. Sugestão: abstrair os comparativos e mergulhar no que é nosso. Nestes setentriões literários ainda há muita joia fossilizada pelo não uso.

Carlos Vazconcelos

Professor, escritor e produtor cultural. Publicou Mundo dos Vivos (contos) e Os Dias Roubados (romance).

carlosvazconcelos@hotmail.com

Para Conhecer o Autor

José Alcides Pinto (Santana do Acaraú, 1923 – Fortaleza, 2008). Escreveu poesia, romance, novela, conto, crônica, teatro, memória, crítica literária.

Algumas obras de destaque:

Romance: Trilogia da Maldição (O Dragão; Os Verdes Abutres da Colina, João Pinto de Maria: biografia de um louco); Poesia: Relicário Pornô e Cantos de Lúcifer; Crítica Literária: Política da Arte.

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Profana para purificar, manipula o leitor, suga-o para dentro do livro antes mesmo de que ele tome consciência disso.

Tiragostos

artista da capa

Carlus Campos

Russas - Ceará | Brasil - 1963

Carlus Campos é artista visual. Começou a carreira em 1987 no jornal O POVO, do Ceará, como ilustrador. A partir dos anos de 1990 passou a dividir a sua atividade na imprensa com a produção de ilustrações para importantes revistas de circulação nacional e livros infantis. Na sua produção utiliza diversas linguagens como: pintura, desenho, aquarela e gravura. A partir de 2011 a gravura ocupa considerável espaço nas suas experimentações. Desde 2016 integra o coletivo In-Grafika, importante reunião de artistas gravadores. Em 2017, participou, juntamente com o coletivo, da residência artística Oficina Guaianases de Gravura na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). No ano de 2018, teve obra selecionada no Salão de Abril, em Fortaleza.

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Daniel Brandão J.J. Marreiro Lene Chaves

Gente Ilustrada

Raisa Christina  é artista visual e escritora, nascida em Quixadá (Ceará). Em sua trajetória acadêmica, pesquisou a juventude presente no cinema de Gus Van Sant e a poética de mapas desenhados com jovens skatistas na cidade de Fortaleza. É autora dos livros Mensagens enviadas enquanto você estava desconectado (Editora Substânsia, 2014) e de Danza, em coautoria com Nahuel Souto Martínez (nadifúndio, 2018). Integra a Antologia de Contos Literatura Br (Editora Moinhos, 2016), a revista Para mamíferos n° 4, 2017, e a coletânea As cidades e os desejos (Selo Editorial Aliás, 2018). Participou do Projeto UrbanoArte BR em 2017/2018. Trabalha com ilustração e arte urbana. Mantém a página: corposonoro.tumblr.com

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A Cartografia Poética de Mailson Furtado Viana

encedor de dois Prêmios Jabuti, em 2018, o cearense Mailson Furtado Viana, com apenas 27 anos, saltou da condição de jovem autor independente para ilustre escritor nacional em novembro passado. Por seu À Cidade, livro independente e custeado pelo próprio autor, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) o laureou com os prêmios de “Melhor Livro de Poesia” e “Livro do Ano”, sendo este último considerado a maior honraria literária do país e nunca, em 60 anos de premiação, concedido a uma obra independente. Esta também é a primeira vez que um cearense vence nesta categoria.

Dentista por formação e artista por vocação, Mailson é, além de poeta, membro-fundador do Grupo Literário Pescaria, ator e diretor da companhia teatral Criando Arte, a única de sua terra natal, o município de Varjota, a cerca de 300 km de Fortaleza. A cidade, que nem sequer possui uma livraria, foi motivo de inspiração para a obra que, como uma

espécie de epopeia do povo cearense, constrói um poema-livro a misturar a vida do autor e suas gerações à vida construída por um povo migrante há mais de três séculos.

Por entre as páginas dessa arquitetura poética de uma cidade-sertão viva e sentida a partir da memória e dos afetos edificados, sem dúvida, encontramos também no posfácio do poeta e historiador Dércio Braúna um ponto basilar desta obra. Além dele, participa da publicação o poeta, folclorista e teatrólogo Oswald Barroso, que é quem assina a orelha do livro em um convite à descoberta da poesia e do próprio autor.

Seja pelo ineditismo de sua conquista ou mesmo pela qualidade de sua poesia, que coloca o Ceará no centro das atenções da literatura brasileira, Mailson merece muito mais que nossa congratulação, merece também nossa leitura e, quem sabe, um lugar especial na sua estante.

Em entrevista para Maracajá, o escritor revela não só os detalhes de À Cidade, como também explica o seu fazer-literário, suas influências estéticas e a necessidade de reinvenção dos campos que trabalham com a literatura.

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Maracajá: Falando da sua Varjota, Mailson, você escreveu um poema-livro que se apresenta como sendo uma espécie de epopeia do povo cearense, em especial, dos ribeirinhos do Rio Acaraú e do açude Araras. O que há de poético na paisagem cearense que lhe faz brotar o poema, a palavra escrita?

Mailson Furtado Viana: Eu sou um sertanejo, um apaixonado por este lugar. Ao caminhar e desvendar os quatro cantos deste estado entre praias, serras e o sertão – do Cariri ao Litoral Oeste; da Ibiapaba ao Apodi; toda essa paixão formatou-se e entranhou-se mais ainda carne adentro, e pude conhecer mais afundo o que esta terra de fato é. A história, o povo, o saber, a religiosidade, o ser aguerrido, a natureza, o jeito de ser motivam-me ao entender o que é o SER cearense (desse, que sou um bocado) e, a partir disso, por vezes escrevo e já não sei mais se falo de outros ou se somente de mim, afinal é o meu viver esboçado. O Ceará (no seu mais amplo sentido) já é um poema.

Maracajá: À Cidade traz diferentes marcas estilísticas. Há presença do concretismo, neoconcretismo, da experiência com a linguagem regionalista e com a linguagem chula. Este excesso caracteriza o esforço de um exercício linguístico ou uma tentativa de encontrar o seu próprio eu lírico?

MFV: O livro À Cidade foi construído (em sua fase de criação) de forma orgânica. Não me preocupava a época se possuía estilo tal ou qualquer outro. O poema foi acontecendo e arquitetou-se meio que osmoticamente. Trouxe neste período (de gênese) todas as influências que possuía e possuo nos ombros, e daí vieram as marcas neoconcretas, o linguajar popularesco, o apresentar imagético advindo de movimentos visuais e do próprio teatro, e toda a gama de visões que até hoje nem eu mesmo consegui encontrar todas. Sou um homem de experimentar as mais distintas possibilidades, que as faço por início, lendo. Leio de tudo o que o posso ou o que sinto que pode me acumular para produzir. Pesquiso. O meu ato de escrever em grande parte é inconsciente, mas alicerçado nessa busca incessante do que se escreve e não se escreve.

ao

Maracajá: Em À Cidade reconhecemos ilustres habitantes, como José Alcides Pinto, Vinicius de Moraes, Antônio Girão Barroso, Ferreira Gullar. Mas na sua cartografia de leituras, quem possui um território especial?

MFV: Sou um leitor bem mais de versos. Dos poetas, sem dúvidas, João Cabral de Mello Neto é o que o possui o espaço mais especial. É o poeta que me alicerça. Outros vem no À Cidade, e acho importantes citá-los, como Ferreira Gullar, Gerardo de Mello Mourão, José Alcides Pinto, poetas da poesia marginal e a literatura de cordel.

Maracajá: O seu novo livro Cinco Inscrições da Mortalidade, obra em parceria com mais quatro poetas cearenses da sua geração, traz um escritor muito diferente d’À Cidade, desta vez, que flerta com o minimalismo em razão da grande quantidade de micropoemas. O que você poderia nos dizer sobre essa coletânea.

MFV: Cinco inscrições da Mortalidade é uma antologia composta por poemas de 5 poetas cearenses contemporâneos (Bruno Paulino, Dércio Braúna, Renato Pessoa, Alan Mendonça e eu), com obras a lançadas a partir da última década. Para minha alegria, sou um deles. É um trabalho com 5 vozes próprias, que divergem e convergem nelas mesmas, e trazem um pouco do retrato da poética e estética da poesia cearense dos últimos anos. Trouxe pra minha seção uma experiência de registrar uma antologia do meu trilhar poético ao longo do tempo, assim republiquei (ou revisitei) alguns poemas presentes em obras anteriores e tentei apresentar “de cara limpa” o que foi (ou é) a poesia do Mailson até aqui.

Maracajá: Passada a euforia das premiações, qual tem sido o real espólio do Jabuti para a sua carreira literária? É possível já fazer essa avaliação?

MFV: Tudo está sendo um aprendizado. Cada momento, cada evento, cada crítica está sendo uma oportunidade, e tento a cada instante policiar-me para entender o que de fato é tudo

isso. Neste atual momento, falando de uma forma mais burocrática, estou a analisar o que é o poema-livro À Cidade e minha poesia para esses dias, a partir de análises mais profundas que pude acompanhar em canais especializados, visto que meu labutar poético é baseado inicialmente numa construção um tanto inconsciente, e por isso não sei direito o que ele pode de fato ser. Essa visão externa é muito reveladora para mim, não que eu a busque, mas quando ela vem, me permite novos olhares antes pra mim encobertos. Gosto muito disso.

Maracajá: E qual o seu prognóstico para a Literatura Nacional neste 2019 que se inicia com menos livrarias e mais farmácias nas ruas?

MFV: Vejo que estamos em um momento de grande NECESSIDADE de reinvenção dos campos que trabalham com literatura, e aponto algo fundamental desse processo, que no meu entender passa diretamente por ações e atividades voltadas para a formação de leitores. O mercado, os espaços educacionais, e nós, enquanto produtores literários e culturais, além de formadores de opinião, precisamos de discussões mais aprofundadas sobre. Como todo e qualquer processo de mudança, atritos aparecerão, mas vejo como um trilhar sem volta. Assim pequenas editoras, pequenas livrarias e autores independentes ganham maior espaço e locais alternativos tornam-se mais fortalecidos para a difusão da literatura. Vejo 2019 como um ano de muita discussão (espero que produtiva) para entender o que será o mercado editorial daqui por diante, que lógico, não mudará da água para o vinho, mas passa pela fundamental análise crítica para o caminhar. E espero que seja uma construção mútua e que todos cresçamos juntos.

Por Cima da Carne Seca

Cristaleira

Aluízio Medeiros o poeta dos injustiçados

O Poeta veio da noite da profundidade sem termo da noite escura e quis apontar entre os múltiplos caminhos da vida o caminho a seguir Mas, ó amigos, a confiança do mundo era tão grande Os gritos de dor que subiam eram tão dilacerantes Os horizontes dispersos eram tão espessos as nuvens que já vinham eram tão negras que o Poeta não pôde falar que o Poeta não pôde apontar o caminho luminoso a seguir.

poeta Aluízio Medeiros foi um literato de grande presença na cena literária Fortalezense dos anos de 1940 e 1950. O poema acima, “O poeta não pôde”, é uma amostra de sua criação poética, publicado no seu primeiro livro, Trágico Amanhecer (1941), custeado pelo próprio autor, com tiragem de somente 300 exemplares, aceitável para realidade editorial local de então, com versos sublimes a transmitir sentimento de incerteza, além das dúvidas existenciais e da luta contra opressão em todos os níveis.

Lembramos que neste findo 2018, o centenário de seu nascimento, infelizmente, passou despercebido, sem uma nota sequer. Nascido em Fortaleza em 16 de novembro de 1918, Aluízio Caldas Medeiros era filho do casal Alfredo Medeiros e Senhorinha Caldas Medeiros.

Aluízio inicia sua caminhada poética ainda nos bancos escolares. Foi aluno do Colégio Castelo Branco, situado no então bulevar Dom Luís – hoje, avenida Dom Manuel. Começou apresentar seus poemas seguindo a estética do Modernismo na revista Terra da Luz, periódico do Grêmio Literário Odorico Castelo Branco, com sede nesta escola. E é por meio da Terra da Luz que inicia a popularização de seus versos, cuja lira é pungente.

Mais tarde, cursaria o ensino secundário no Liceu do Ceará e, concluindo, graduaria-se como bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará, turma do ano de 1944.

Aluízio Medeiros, ainda quando acadêmico de Direito e ao lado de outros amigos, também poetas inconformados com o cenário da literatura cearense, se uniram e corajosamente, em 1942, realizaram um ousado Congresso de Poesia. Entre seus amigos, os poetas Antônio Girão Barroso (1914-1990),“o professor de Poesia”, e Otacílio Colares (1918-1988). Isso, quando o mundo assistia à Segunda Grande Guerra Mundial e o

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Brasil encontrava-se sob a Ditadura do Estado Novo, no Ceará representado pela figura do Interventor Menezes Pimentel.

Mesmo assim, naquele segundo dia do mês de agosto de 1942, eles fizeram a abertura do Congresso de Poesia no Teatro José de Alencar. E só não fizeram o seu encerramento, pois em 18 de agosto daquele ano, a cidade de Fortaleza presenciou o “Quebra-Quebra”, a realidade da Guerra que invadiu o país.

Aluízio Medeiros passou a integrar um grupo de jovens literatos e dele nasceu uma nova ação: o I Congresso Cearense de Escritores, desta vez em 1946. Depois dele, nasceria o Clube de Literatura e Arte, ou simplesmente Grupo CLÂ, uma editora homônima e a longeva revista Clã, que durou 40 anos (de 1946 a 1988).

Concluído o curso de Direito, Aluízio teve uma rápida passagem pelo serviço público do governo do estado no, então, Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP), e colaborou na imprensa cearense atuando como crítico literário nos suplementos dedicados à literatura. Entre eles: Correio do Ceará, Unitário e O Estado.

O poeta era adepto da Ideologia Marxista. Foi ativista politico e filiado do Partido Comunista no Ceará, o que o levou também a escrever artigos no jornal O Democrata, porta-voz do Marxismo no estado.

A sua poesia sempre buscou revelar as mazelas do sistema capitalista, sendo vate a defender os injustiçados fosse aqui no Ceará ou em qualquer lugar do mundo.

Casou-se com Iracema Sales Freire, a dona Iracema Medeiros, e deste casamento nasceram os filhos: Essenine, Frederico, Cláudio e Isabela.

Em 1956, Aluízio Medeiros deixou o Ceará e fixou residência na cidade do Rio de Janeiro, onde trabalhou na revista

A Cigarra dos Diários Associados e depois na Confederação Nacional da Indústria (CNI), vindo a falecer lá mesmo, em 3 de setembro de 1971, com apenas 52 anos, deixando-nos como legado poético: Trágico Amanhecer (1941), Mundo Evanescente (1944), Os Hóspedes (1946) – em parceira com Antônio Girão Barroso, Otacílio Colares e Artur Eduardo Benevides –, Os Objetos (1948) e Latifúndio Devorante (1949). Na crítica literária: Crítica, 1ª série (1947) e Crítica, 2ª série (1956).

Trágico Amanhecer

– um grito em forma de verso livre –

Aluízio Medeiros, como foi mencionado, publicou 10 títulos entre poesia e critica literária, mas destacamos, entre seus livros de poesia, o de estreia: Trágico Amanhecer, de 1941, publicado pela editora Fortaleza com tiragem de somente 300 exemplares.

Aqui, uma curiosidade: o contato do jovem poeta com o veterano paulista, escritor e poeta Mário de Andrade (1893-1945).

Aluízio Medeiros enviou a Mário um exemplar para sua apreciação. A partir de então, manteve forte correspondência com poeta da Paulicéia Desvairada que, em primeira carta, lhe respondeu que Trágico Amanhecer era forma pura da intensidade poética no meio de um mundo confuso.

De fato, a obra traz vinte poemas inseridos na estética Modernista, mas afundado num pessimismo nutrido pelas notícias da Segunda Guerra Mundial, compreendendo que naquele ano, 1941, as ditas nações do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), especialmente a Alemanha Nazista, vinham conquistando, com poderoso maquinário de guerra, o Continente Europeu e o Norte da África, enquanto o Japão dominava Ásia. Naquele momento, o Nazi-fascismo parecia invencível.

Aluízio Medeiros percebia esse clima tenebroso, o futuro incerto. E amostra disto é o poema Caminhos - poema nª 2:

Já trilhei todos os caminhos do mundo./ Fui aos mares e não vi peixes. Só vi sangue./ Fui aos campos e não vi flores. Só vi ossos./ Fui aos espaços e não vi aves. Só vi pássaros metálicos./ Fui a outras terras conheci outros homens/ outras mulheres outras crianças e não vi sorrisos/ Só vi lágrimas. Só ouvi choro./ Percorri todos os caminhos do mundo/ e voltei com os ouvidos cheios do grito único uníssono/ se avolumando se avolumando pelo tempo adentro.

E assim no chega o grito em forma de verso livre do poeta Aluízio Medeiros.

Cristaleira 19

Apostasia

O negro trabalha nos extensos algodoais que ele ama. Lincharam um negro nos algodoais de Alabama.

O operário caminha para assistir a um comício. Em Alagoas assassinaram um operário. É o início.

Um camponês tomba na terra que ele adora. Morre de fome um camponês na China heroica.

Nos despenhadeiros dos confins da Mongólia, Nas tortuosas ruas dos arrabaldes de Nova York, no mais fundo das minas de carvão da Inglaterra, em todas as fábricas e em todas as aldeias, em todos os recantos do mundo estão os meus irmãos de hoje, estão sofrendo os meus irmãos, estão morrendo os meus irmãos, estão lutando os meus irmãos.

Contigo estou sofrendo, contigo estou morrendo, contigo estou lutando, por isso estou contigo trabalhador, por isso estou contigo classe operária.

Aluízio Medeiros, para Os Objetos (1948).

Canto do Século

Nunca mais ouvirei violinos em surdina nem planos em surdina nem cantos litúrgicos suavíssimos nem músicas de sinos e de órgãos nunca mais.

O espirito mecânico do século esmagou as doces melodias

Nunca mais riscos de fogo de esferas vermelhas nem a cabeleira azul de Olga flutuando no espaço nem alvas gaivotas revoando revoando nunca mais.

O céu está plúmbeo o céu está plúmbeo. Nunca mais veleiros singrando serenamente os mares nem canções de águas claras nunca mais.

O navio de aço levou a namorada para a distância para a bruma silenciosa da distância. Os mares estão revoltos os mares estão revoltos.

O barulho do mundo sólido desabou com estrondo. Universo que desfalece que desfalece.

Ai mim! Estou esmagado estou cego. Ai de mim! Um anjo metálico com asas de hélices me arrebatará para cima das nuvens.

Aluízio Medeiros, para Trágico Amanhecer (1941).

Para conhecer Aluízio Medeiros: Medeiros, Aluízio. POESIA COMPLETA.

Fortaleza: Casa José de Alencar

– Coleção Alagadiço Novo- Imprensa Universitária da UFC, 1996.

Cristaleira 20

Radiadora

Piódão de Açor

Às Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino

Quem chega pela manhã cedo ou ao entardecer não a percebe, pela névoa opaca que faz confundir a encosta da montanha e seu casario. Também não a percebe quem chega ao meio-dia, pela luz branca e inclemente que incide sobre rochas, paredes e telhados feitos do mesmo minério escuro das montanhas, e que, refletindo a luz em faíscas, deixam estupefatas as retinas do viajante.

De 9 às 11h e de 14 às 17h a cidade se oferece: a névoa não a envolve, a faca de sol não cega quem lhe quer ver. Piódão, da Serra do Açor, Portugal, em forma de anfiteatro, poderia chamar-se Epidauro. As corredeiras de um rio veloz saem de uma curva, perdem-se em outra e deixam-se saltar por pontes arqueadas que convergem para um ovalado palco onde os carros estacionam em frente ao museu paleontológico.

Talvez uns 200 imóveis, casas, capelas, escola, posto de saúde, supermercado, museu enfileiram-se concentricamente, e quanto mais alta, mais longa a fileira. Entre estes imóveis, tão sólidos quanto a serra, emergem escadarias e veredas serpeantes. O xisto da montanha se torna parede e telhado. Na moldura de portas e janelas, azul, verde, vermelho, um raio de cor, além da cal claríssima nos degraus das portas principais.

Sai fumo das chaminés e alarido da escola. Da estrada que a evita e a circunda desce rumor de automóveis. Nessas unhas de pedra há laranjais – globos rubros na névoa –, um rio ruge na escuridão e o frio anestesia pele e alma; um rio ruge nas entranhas da terra e o povo montou em xisto uma vila de escadas e telhados negros. Naquelas pedras por onde desponta o pomo rubro das laranjas, em meio à sonolenta luz baça da manhã, entrevê-se um estranho éden. No céu vazio um avião a jato rasga cicatriz de tênues nuvens brancas.

De volta à estrada, na hora em que estudantes iniciam as aulas da tarde, Piódão fica para trás. A tarde a reluzirá antes que mais uma noite a devore, como outras tantas fincadas no presente da memória e no passado dos atos: eu era outro, a cidade era outra, a água sob estas pontes não é a mesma de ontem. Tudo fica perdido na dependência gratuita da imaginação e vira palavra e espanto.

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O Peso do Morto

É possível acreditar nas vozes do morto. Elas devem estar em tudo.

Moreira Campos

O medo e o remorso não vinham em tempestades e trovoadas, mas em conta-gotas e reticências... Há muito não atendia porta à noite ou de dia, e o coração tinha esconderijos que o guardavam de assombros e pesadelos.

Carregava atado a seu pescoço um morto, e como pesava. Peso sentido por gerações a fio; dizem que seu neto também carregava um mortinho atado à cintura e, vez por outra, também sentia calafrios ao urinar na calçada.

Vezes por ano, estranhos cavaleiros madrugavam em sela e em cilhas, a batucar na porta.

– Cadê fulano?

– Saiu, foi pra capital!

– Quando volta, sinhá?

– ...?!?!

Sentia suas presenças sorrateiras pelo amarelado das folhas do jacarandá e as confirmava à boca da noite, com o barulho ensurdecedor das rasga-mortalhas. Nessas noites ninguém dormia... a rememorar visitas mais frequentes e audazes, no tempo em que o morto ainda perambulava pelas es

quinas do mercado e desaparecia na escadaria da farmácia em que fora esfaqueado.

Na sala, o balançar de uma cadeira antiga, uma voz materna a lembrar-se do dia anterior e daquela noite que teimava em não acabar.

– Nesta casa não tem homem. Se meu velho fosse vivo, o nosso nome não estaria na rua a se lambuzar em boca de cachaceiro. Ah, se nesta casa tivesse um homem!...

A noite parecia ter neblinado esperma de enforcado, tal era a quantidade das mandrágoras que cercavam e invadiam a casa pela manhã, quando teve que tocar trombeta para sua mulher arrancá-las sem ficar louca. Mandou sua filha mais nova buscar água no córrego, com seu rosto pálido; obrigou seu filho poeta a buscar flores no campo, com suas mãos tímidas; e, à mais velha, incumbiu a tarefa de desenganchar as bruxas, que durante a noite caíam como besouros pelos galhos do oitizeiro e rolavam para o telhado a se desmanchar em gargalhadas.

Ainda hoje sente o peso da rede do morto, escambichada em varas de cerca, a passar vagarosamente nos rumos do cemitério. E se sabe que ele não se deixou enterrar, continua tresvariando por aí, descansando à sombra de um baobá. Também se sabe que ele jogou pedras na rede de rendas de sua mãe culpada e vive a esperar pelo seu cortejo, para se emparelhar rede a rede, quem sabe se jogar dentro da sua... pra que sinta a envergadura e o peso de um morto.

Radiadora 22

Pa Pou Ba Bum

Uma menina. A seu lado, os restos mortais da mãe e dos irmãos. Por sobre seu corpo, sobretudo no rosto amarrotado, coágulos de sangue e narinas encharcadas de chorosssssssssssssssssssssssssssss.

Snif snif snif snif snif snif snif snif

Na lembrança dos ouvidos, o ressoar, dentre outras, de mais uma bombaaaaaaaaaaaaaaa.

Bommm, bam pá bum ximmmm zimmmm zummm tum tchum prrrr trrrr trrrr.

Mas não desponta na masmorra de sua garganta um grito. Gasta, então, em silêncio todo o seu sopro de vida. Apenas desentende e respiraaaaahhhhhhhhhhhhhhhhh.

Hã, heim Ahn?

Não diz palavra. Nem há o quê e a quem dizer. Está nas sobras de onde foi a cidade: ruas desmoronadas, um labirinto de paredes sem teto, telhas no chão, portas e janelas que acessam o nada. Diante de si, escombros, vestígios, estilhaços-s-s-s-s-s-ss-s-s-s-s-s-s-s. Ssssschuuuu, ploft, platf, pleft, catapluft cataplam.

Acima, um céu de fim de tarde que derrama o vermelho sobre a sua cabeça. Cadáveres nascidos dos bombardeios restam feitos manequins e por toda parte chamuscados se evidenciam. Alguns já sem entranhasssssssssssssssssssssssssssssssss.

Snif snif snif snif snif snif snif.

A órfã está só e não sabe estar só. Há de haver outras solidões por aí, em des-vielas e ex-becos, nos ermos a esmoooooohhhhhhhhhhhhhhhhh. Ohh oooh humm ah ai ai aaai.

Surgem ventos súbitos, golpes de ar que a empurram, mas mesmo indefesa a sobrevivente resiste a rajadas de poeiras e inclusive ao fogo que ainda, aqui e ali, ao redor também sobrevive. Tem medo. Teme que o medo em metástase se alastre e venha a varar insone a noite onde presságios possam paulatinamente contaminar a imaginação. E se nas trevas, apenas sob a luz mortiça da lua, tivesse de em vigília velar o sono dos mortos dali tão próximos e tangíveis? Estão aliiiiiiiiihhhhhhhh.

Ih uh ui ui Ih uh ui ui Ih uh ui ui.

Decide a alarmada então caminhar, ainda que trêmula, e parece procurar no emaranhado das ruínas algo para saciar a sede ou a fome. Por várias vezes curva a espinha dorsal. E em seguida alça a fronte e enxuga na fronte o suor. Estende a mão e mais uma vez se agachaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhh.

Aahhhh ufff ufffahhhh ufff ufff.

Por sobre os monturos, com passadas e movimentos trôpegos, mas pacientes, continua a vasculhar em uma busca obsessivamente milimétrica. Reconhece entre os destroços o quarto em que toda vida dormira e nele o espaldar da cama. Arquejante, cai de joelhos sobre pedras e pedaços de alvenaria, sob a ânsia inadiável de quem finalmente esbarra no que quer que venha à tona. E vem das profundezas da exumação uma menina de pano que, no entanto, o impacto das explosões não esgarçoooouuuuuuuuuuuuuuuuu. Ooou oou oou oou oou oou oou.

Restava também em orfandade. Porém, agora o resgate lhe restitui o vínculo, a relação de amálgama. Com rota roupa de domingo volta, enfim, a filha aos braços inarredáveis da menina-mãe. Olham-se. Na criança da criança, uma feição de beleza anacrônica onde ressaltam os olhos inviolavelmente abertos, como se para sempre atentos. Precisam, pelo menos por enquanto, da misericórdia de não ver os danos ao derredor. Para preservá-los, protegê-los, a mão da mãe, de dedos fechados, veda nas pálpebras de trapos a visão. Canta, então, um acalantooooooooooooooooooooo.

Ôôôô óóóó hum hum hum hum hum.

Há durante o canto, mas somente durante o canto, um tempo de pazzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.

Logo depoissssssssssssssssssssssss chuuuu, ploft, platf, pleft, catapluft cataplam baaa bommm bam pá bum ximmmm zimmmm zummm tum tchum prrrr trrrr trrrr etc etc etc etc etc etc etc etc etc.

Radiadora 23

Mãos e Asas

Todo livro tem duas capas – Como se sabe bem –E os pássaros têm duas asas Que os levam além

As duas capas de um livro, Entretanto, porém, Não fazem o livro voar Fazem voar os que leem

São como duas mãos mágicas Que em muitas ou poucas páginas – E isso não importa nada –Podem guardar de tudo

Acreditem no que eu digo

As capas de um livro São asas emprestadas São mãos de juntar o mundo

Marília Lovatel marilia.lovatel@fariasbrito.com.br

Neminem

Ele que nascera sem posses tinha de seu a propriedade de um nome (logo porém convertido em diminutivo)

Ele que crescera sem passaporte tinha de seu a portabilidade de um apelido (mas idêntico ao de tantos divíduos)

Ele que vivera sem pose sem scotch tinha de seu a personulidade dos anônimos (vindos do e devolvidos ao olvido)

Ele que morrera por sorte tem de seu a hospitalidade da gaveta 9 (onde aguarda finalmente ser reconhecido)

Lembre-se irmão mesmo o joão-ninguém antes de ser ninguém é joão

Alves de Aquino deaquinoalves@gmail.com

[também dito “O Poeta de Meia-Tigela”. Membro-fundador da Academia dos Ausentes, na qual desocupa a cadeira número 0, cujo patrono é O Homem Invisível.]

Poema na Praia

Por vezes escrevo com os pés descalços à beira da praia o sol queimando os ombros o corpo entregando-se às ondas a sola da alma pisando em água-viva.

Jesus Irajacy Costa irajacy@yahoo.com.br

Contabilidade

a vida vamos pagando em suaves prestações: anos e anos levando a hipotecar ilusões

as promissórias vencidas a juros acumulam juro de quantas vidas precisas para saldar o futuro?

e, embora seja credor da esperança não cumprida, da boca jamais beijada

serei sempre devedor: - da morte, que paga a vida, - da vida, que me deu nada

Radiadora 24

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