Coletânea de Contos Infantis Sesc (2024)

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Catalogação na Fonte: Sesc Paraná - Gerência de Cultura

C694 Coletânea de Sesc de Contos Infantis / Ilustração de Paula Ariana Calory ; Curadoria de Ana Rapha Nunes. –Curitiba: Sesc PR, 2024.

96 p.: il., color.; XX cm

ISBN 978-65-86651-23-2

1. Contos infantis. 2. Literatura Infantojuvenil. I. Sesc PR. II. Calory, Paula Ariana. III. Nunes, Ana Rapha. IV. Título

Rosilda Rosowski dos Santos– CRB9/1238

CDD – 028.5

Oi, leitor! Oi, leitora!

Que bom encontrar você por aqui!

Todas as aventuras que você vai ler foram escritas para que possa se emocionar, se divertir e conhecer mais as tradições e costumes do estado do Paraná.

A literatura é realmente incrível e vai levar você para passeios em diferentes lugares por meio das palavras e das ilustrações deste livro especial.

Bem-vindo(a) à 9ª Coletânea Sesc de Contos Infantis! Boa viagem e boa leitura!

A arte de escrever para crianças

Entre os diversos gêneros literários existentes, tenho grande admiração pelos autores de literatura infantil. Seu ofício exige técnica, talento e sensibilidade.

A sensibilidade pode não ser inerente a outras modalidades de escrita, mas se revela essencial nos livros infantis. Crianças precisam ser cativadas pela história, para que um mundo novo se abra.

Não é por acaso que as histórias das Mil e Uma Noites fazem sucesso há séculos. Em suas páginas a fantasia corre solta, como, por exemplo, Sinbad – o Marujo, Ali Babá e os 40 Ladrões e tantos outros personagens cativantes.

Além disso, existe o fato de que histórias infantis são indutoras de leitura, tornando os pequenos leitores em possíveis leitores adultos para o restante de suas vidas.

Já há muito tempo o Sesc Paraná faz da promoção à literatura para crianças uma de suas prioridades. O programa insere-se naquelas atividades que só possuem vantagens, sem contraindicações.

Para materializar tudo isso, nossos leitores mirins têm em mãos esta maravilhosa coletânea.

Nada mais resta a dizer, além de desejar a todos uma Boa leitura!

Piana

Presidente do Sistema Fecomércio Sesc Senac Paraná

Viagem pela literatura

É com imensa alegria que celebramos a 9ª edição da Coletânea

Sesc de Contos Infantis com textos que refletem as paisagens deslumbrantes, a rica cultura, os sabores únicos e as tradições que compõem a identidade paranaense. Os textos presentes nesta edição carregam os sotaques, costumes e memórias que fazem do Paraná um lugar tão especial, permitindo que os pequenos leitores se conectem com as tradições e memórias do nosso estado.

A cada edição lançada da coletânea, o Sesc Paraná cria novos universos que se ampliam e ganham vida na imaginação dos leitores e leitoras. Este projeto é fruto de nosso compromisso contínuo com a formação no campo da leitura, além do incentivo à produção literária, compartilhando histórias de diversos lugares do estado.

Desejamos a todos uma experiência literária enriquecedora. Que cada página vire uma porta aberta para novas descobertas e aprendizados.

Aproveitem a viagem pelas histórias e deixem-se encantar pelas palavras que celebram a infância e a cultura paranaense.

Carlos Alberto de Sotti Lopes Diretor Regional do Sesc Paraná

Lais Dominique

Meu nome é Lais Dominique, nasci em Curitiba, onde passei boa parte da infância. Atualmente moro na Região Metropolitana, em Pinhais, cidade pela qual sou apaixonada.

Estudante de Pedagogia, percebo a infância como um magnífico campo de estudo. Tenho aprendido muito com as infâncias, tanto das crianças quanto a dos adultos.

Sou casada com um cara incrível, que me conquistou há mais de dez anos. Nós nos tornamos pais da saudosa Alana, preciosa e inesquecível, e do aventureiro André Felipe, nosso leãozinho curioso, piá esperto de cinco anos que virou minha vida de pernas para o ar e me fez enxergar o céu novamente.

O diagnóstico de autismo do meu pequeno grande herói me cercou de possibilidades desafiadoras, escrever é uma delas. Em meio aos duelos cotidianos, narrar nossa aprendizagem existencial me permite admirar cada vez mais a força e a coragem do meu filho. Tenho para mim que nossos caminhos se cruzaram com um propósito inestimável e que os melhores regalos que posso deixar para ele dessa vida finita são as histórias que escrevemos juntos.

Escute o conto

A bailarina do museu

André é um menino esperto, que adora passear. Em uma de suas aventuras por Curitiba, embarcou em um ônibus amarelinho com sua mamãe e seguiu

viagem cantarolando. Atento, observava a cidade pela janela.

De repente, algo na paisagem chamou sua atenção:

— Mamãe, um olho gigante! Um olho gigante. Repetia entusiasmado.

— Ali é um museu, o museu Oscar Niemeyer. — disse a mamãe. Podemos

fazer uma visita qualquer dia desses.

Qualquer dia desses era um daqueles dias que deixavam o pequeno aventureiro aflito. Qualquer dia desses poderia demorar para chegar. Qualquer

dia desses queria dizer que o dia não era “hoje”. O menino chorou.

— Sinto muito filho, hoje temos outra tarefa importante. Com um abraço quentinho, a mamãe completou:

não parava de pensar no que havia naquele lugar bonito que despertou seu interesse, precisava saber o que havia no Museu do Olho Gigante.

E não é que, passados alguns dias, um dia desses chegou? O sol brilhava no céu da capital do Paraná, quando finalmente o empolgado menino caminhou pelo estacionamento do museu. Tudo era muito diferente e bonito, havia muito espaço para explorar, os tios e tias que cuidavam do museu eram muito simpáticos. André apreciava o local como um gatinho curioso, até se deparar com uma figura encantada. O olhar sensível do nosso aventureiro já havia encontrado bailarinos antes, em teatros, no circo ou nas ruas eles sempre chamaram sua atenção. Mas a bailarina do museu era diferente, acima do espelho d’água sua figura saltava de forma tão magnífica que parecia ter saído do lago só para segurar o olho gigante com as próprias mãos. Na imaginação de André ela era forte como um super-herói e o convidava para saltar, nenhuma outra imagem se comparava à imagem dela.

— Está triste, pode chorar. Chorar é corajoso!

E assim, seguiram seu caminho. A paisagem era agradável, mas André

— Abre os olhos museu, veja a bailarina na parede amarela! — Dizia André, enquanto batia palmas, balançava os bracinhos e sorria.

Mamãe já tinha visto a bailarina do museu

inúmeras vezes, mas naquele dia foi especial. Outros visitantes pararam para observar o menino e o ilustre espetáculo que ele aplaudia, outras crianças também sentiram vontade de saltar com a bela bailarina e a magia tomou conta do saguão do museu.

Às vezes os adultos esquecem que a imaginação é um remedinho poderoso, as crianças é que precisam lembrá-los que heróis, bailarinas, olhos gigantes e passeios divertidos existem.

Antes de se despedirem do Museu do Olho, mamãe prometeu que voltariam mais vezes, e que também fariam outros passeios, visitariam as bruxas do bosque, uma família de capivaras no parque Barigüi, uma casinha de vidro no Jardim Botânico entre outros lugares especiais de sua infância.

No caminho de volta para casa algumas lágrimas caíram pelo rosto da mamãe e encontraram seu sorriso. Confuso, André perguntou:

— A mamãe está triste?

— Não filho, pelo contrário. Adultos também choram quando estão felizes.

Ainda sem entender muito bem, o pequeno André apenas afirmou seguro:

— Pode chorar mamãe, chorar é corajoso!

Sempre gostei de ler, ouvir e escrever histórias. Nasci em Anápolis, no estado de Goiás, mas vim para Londrina ainda bem pequena, com apenas cinco anos. Sou formada em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina, local em que também trabalhei por 36 anos. Fiz Mestrado e Doutorado na área de Literatura. Já escrevi alguns livros infantis: “Poesia é Magia” (Editora Scortecci 2012); “De que cor será a Maria Helena de Moura Arias lua?” (Editora Scortecci-2015), “A viagem da lagarta” (Editora Scortecci-2016) e “Chove chuva chuá” (Editora Scortecci-2018). Também escrevi para adultos um livro de poesia chamado “Palavrio” (Editora Scortecci-2014). Tenho um texto publicado na coletânea “Elas são Palavras” da A.R.Publisher/Editora, de Maringá (2024).

Escute o conto

A flor do café

Suzana sempre acordava muito cedo para ir à escola. Sua casa ficava longe, mas ela chegava a tempo. Deixava suas coisas prontinhas. O uniforme ao lado da cama junto com a mochila.

Na hora do café, com sua avó e sua mãe, amava comer biscoitos de milho. Havia algum tempo que a avozinha de Suzana repetia que não tinha

coisa melhor que o cheirinho de café. Ela sempre dizia: “O cheiro de café me dá tanta alegria!”. Suzana sorria, beijava a avó, beijava a mãe e corria para encontrar seus amigos para irem à escola.

A casa de Suzana era simples. Sua família morava em uma cidade pequena, rodeada por cafezais. A terra era vermelha como fogo e tinha um rio muito grande chamado Tibagi. Quando não tinha aula, Suzana e seus amigos corriam pelos campos com os braços abertos imitando pássaros e aviões. Depois, sentavamse à sombra de uma árvore e inventavam histórias de todo tipo: engraçadas,

tristes, de assombração... Todos se divertiam muito, mas quando

voltavam, nunca passavam perto do cemitério. Tinham medo de fantasmas!

Assim eram os dias de Suzana, mas o que ela mais gostava era da hora de dormir. Por quê? Ora, o motivo de tanta empolgação eram as histórias que sua avó contava pra ela desde que era bem pequenininha. Dona Ana inventava muitas delas, outras ela se lembrava do tempo de sua infância. Mas Suzana começou a perceber que as histórias estavam ficando muito estranhas. Elas não eram mais como antes, com começo, meio e fim, do jeito que ela gostava, sempre com os finais felizes que a avó fazia questão de criar. Não! A vovó parecia perdida em seus personagens.

Mesmo as histórias mais simples, e muitas vezes repetidas a pedido de Suzana, agora pareciam complicadas para a avó, que se perdia nas próprias falas. Dona Ana parava de repente, ficava com o olhar imóvel e dizia: “Cheiro de café me dá tanta alegria!”. Aí ela saía do quarto de Suzana como se ali não tivesse mais ninguém: “Nem me beijou”, “não disse boa noite”, pensava Suzana muito triste.

No dia seguinte, a menina acordou bem mais cedo do que de costume e foi para a sala, onde encontrou sua avó sentada em uma poltrona com um livro fechado na mão. Quando Dona Ana viu Suzana, ela disse que todas as histórias estavam naquele livro. Todas as histórias escritas e inventadas!

“Agora pode ficar com ele”, disse para a neta. “Não me lembrava onde havia deixado, mas aqui está, tome!”. Suzana aproximou-se devagar, pegou o livro, que na verdade era um caderno de capa dura, e abraçou muito a avó.

Mais tarde, Suzana contou a sua mãe que a vovó não se lembrava mais das histórias e que ficava parada com o olhar perdido. A mãe também havia

percebido que Dona Ana às vezes se esquecia de desligar o fogão ou não

lembrava da receita do biscoito de milho e a levou ao médico. Ele pediu muitos

exames e disse que Dona Ana estava com uma doença que fazia as pessoas esquecerem algumas coisas de suas vidas

e até mesmo da própria família. Disse também que ela poderia sentir-se perdida e estranhar o ambiente, por isso recomendou, além dos remédios, muita paciência e amor.

casa. Apesar desses novos acontecimentos, Dona Ana ainda queria contar as histórias para a neta, mas nem tudo saía como antes. Assim, ela se irritava, dizia coisas para si mesma e ficava com o olhar fixo na parede. Suzana chorava sentida, não pela história em si, mas de tristeza ao ver sua avó tão

querida isolada naquele que parecia ser o seu mundinho agora.

Um dia, a menina teve uma ideia! Sentou-se no banquinho embaixo de uma árvore do quintal e começou a folhear o caderno que sua avó havia lhe dado. Ela ficou muito surpresa com o que viu. Acontece que a Dona Ana tinha escrito muitas palavras soltas, além dos começos das histórias que contava para a neta. Havia também muitas fotografias: da avó, de sua mãe e dela, até

mesmo de um piquenique que fizeram com alguns vizinhos na prainha do rio

Aquela era uma situação muito triste, mas que deveria

ser enfrentada, afinal, a vovó era muito amada naquela

Tibagi. Quando estava quase nas últimas páginas, sorriu ao ler a frase que sua avó sempre repetia: “O cheiro de café me dá tanta alegria!”, escrita ao lado de alguns rabiscos com uma história que sua avó estava inventando para contar para ela.

Um tempo depois, a mãe de Suzana disse que agora elas tinham de cuidar do jardim porque a vovó não se lembrava de regar as flores nem o pé

de café, que era a planta favorita dela e ficava bem lá nos fundos do quintal.

Elas, então, pegaram os regadores e foram fazer o trabalho. Suzana quis ver o pé de café, que, afinal, sua avó havia plantado com a ajuda dela quando era bem pequena. E lá estava ele, majestoso, com os galhos pesados de flores brancas. Era a primeira vez que floria assim. Suzana correu para avisar sua mãe e trouxe também a avó, que chorou ao ver aquelas flores tão perfeitas:

“Agora está tudo bem, vovó”. As três se abraçaram e riram muito.

E os dias foram passando naquela casa tranquila e cheia de flores. Tudo parecia igual, a não ser por uma coisa: algo havia mudado na rotina de Suzana.

Agora, na hora de dormir, ela levava a avó pela mão até o quarto e, quando

Dona Ana se deitava, a menina contava as histórias que tanto ouvira. Ela misturava um pouco de tudo. Contava o que havia lido nos livros da escola, contava o que tinha visto no caderno da avó e, principalmente, inventava muito! A história que a Dona Ana mais gostava era a do pé de café que deu flores brancas que se esparramaram pelo quintal, deixando a casa com um cheiro doce. Um cheiro tão intenso que só podia ser de muita alegria.

Leticia de Almeida Batista

Desde pequena sempre gostei de escrever histórias, transformando o dia a dia em algo fantástico. Assim que chegava da escola ia direto para o computador desenvolver uma ideia que tive aqui ou ali. Tenho centenas de rascunhos de histórias incompletas, umas com apenas duas linhas, outras com dois livros inteiros. Ainda pequena, não sabia que a escrita era algo em que eu era boa, só tinha certeza

que era algo prazeroso para mim. Até que, no sétimo ano, ganhei o primeiro lugar no concurso de redação da escola, com prêmio em dinheiro, livros e tudo que tinha direito; no oitavo, ganhei o concurso de crônicas da Rede Jesuíta pelo meu colégio; no nono, minha poesia foi selecionada na coletânea de poesias do colégio. E desde então nunca parei de escrever, mas agora com a universidade, cursando arquitetura e urbanismo, fica difícil arranjar tempo. Fico extremamente contente de ter meu conto selecionado para a coletânea de contos do Paraná. Nesses anos tenho escrito só para mim, porém a história só se torna completa quando o leitor lê e se deixa cativar pelas palavras de um escritor.

Escute o conto

A flor que me lembra ela

O garoto esfregava os olhos manhosos, sonolentos, estava tão ansioso para o passeio em família que quase não conseguiu dormir. O pai sempre parecia ocupado e sua mãe sempre estressada com o trabalho. Sua avó morava perto, mas quase nunca estava em casa, em um lugar que o garoto não sabia onde era.

A mãe passava a mão por seus cabelos, ninando o garoto, mas ele queria ficar acordado, eram raros os momentos que via o pai e a mãe aproveitando a

companhia um do outro. Apenas cinco minutos de carro

e pararam na frente de uma velha casa amarela, cheia de pequenos vasos, alguns que eram tão cheios de vida, agora pareciam estar um pouco cinzentos.

para esticar as pernas cansadas.

— Bom dia, queridinho da vovó — ela falou entre um beijo molhado e outro.

— Mãe, coloque o cinto logo — pontuou o pai.

Ela virou e fez uma careta para o neto, não era só com o filho que ele era exigente, queria que tudo saísse de forma perfeita, aquele tipo de gente que se orgulha de acordar cedo e chegar sempre com antecedência em tudo.

Sua primeira parada foi pelo bosque do Papa, onde sentiram o cheiro inconfundível do orvalho da manhã. O garoto se agachou ao lado de um besouro de cores vibrantes, observando-o bem de perto.

— Como pode ser tão pequeno e tão corajoso? — a avó pergunta atrás do menino.

— Eu também não sei, vovó, mas ele até parece grande para um besouro.

A velha senhora já esperava em frente à porta, sentada em sua cadeira de fio. Os cabelos bem brancos, feito algodão doce. O pai se levantou e guiou sua mãe em passos lentos até o banco da frente, onde teria espaço

— O garoto se aproximou, queria tocar em sua casca lisa, porém tinha um pouco de medo daqueles chifres enormes.

— Estou falando de você, querido. — Ela riu, um riso quebrado e divertido.

— Mas eu não sou tão pequeno, e não sou tão corajoso.

— A vovó já viveu muito e sabe muito bem do que diz. Seu pai

deixava sempre uma luz ligada no quarto e toda semana era xixi na cama por conta de pesadelo.

— Mentira! — O garoto abafa a risada com as duas mãos sujas de terra, sua avó como cúmplice, a única vez que tinha molhado a cama seu pai ficou bravo com ele por duas semanas.

Perto da hora do almoço, foram ao Jardim

Botânico de Curitiba. Lá apreciaram as flores e a linda estufa enquanto sentavam no gramado embaixo das árvores, comendo sanduíches e quitutes que a mãe e o pai prepararam.

— Isso me traz lembranças — falou a avó, olhando para o sanduíche pela metade. — Quando eu era pequena esses jardins ainda não existiam, ele só foi existir alguns anos depois de seu pai ter nascido, ele brincava um monte por aqui.

— Era bem divertido — o pai concordou ainda de boca cheia, perdido em algumas lembranças. — O papai adorava.

com tanto carinho, mas quase pode senti-lo junto com eles bem ali.

— Logo depois que seu pai ficou mocinho, — diz a avó como se contasse

uma história de contos de fada para o neto — ele vinha aqui toda a semana para namorar com a sua mãe. Ah, se eu tivesse a idade dele também faria a mesma coisa, em todos os fins de semana um piquenique com um vestido florido diferente.

Os pais do menino se olham envergonhados, agora mal tinham tempo um para o outro, se perguntando quando todos aqueles compromissos de trabalho e da casa haviam passado na frente do amor que sentiam um pelo outro.

Acabado o piquenique, fizeram um passeio no centro, iam comprar algumas roupas para a avó, já que seu aniversário estava se aproximando.

Assim que saíram do carro, a mãe puxou o garoto no canto, entregandolhe alguns trocados. O garoto logo se animou pensando que seria para algum doce ou sorvete pós-almoço.

O garoto nunca chegou a conhecer o pai de seu pai, que todos falavam

— Escolha e compre uma flor para a sua avó — disse, apontando para o mercado das flores, que explodia em cores.

O garoto passou pelo corredor, os vidros no teto lhe fazendo lembrar da grande estufa que tinham acabado de visitar. Olhou ao redor, e escolheu a que

mais lhe chamou a atenção e que mais pareciam combinar com a sua avó, com pétalas brancas assim como seus cabelos.

— Ah, querido, muito obrigada — agradece a avó ao receber as flores, o garoto recebendo o mesmo beijo molhado do começo do dia. — Sabe que flores são essas? — O menino fez que não com a cabeça, não tinha ideia que as flores tinham seus próprios significados. — São camélias, representam admiração e saudade.

O garoto se alegrou e esboçou o orgulho de ter escolhido uma flor com um significado tão especial para sua avó.

A família passou em várias lojinhas, escolhendo um vestido florido que a avó havia comentado como presente.

— Ficou linda, vovó, as flores combinam muito com você.

— Obrigada, querido.

— Espero que possamos sair mais para que a senhora possa usá-lo mais vezes.

apertado, e apesar de já estar meio sonolento, iria lembrar-se daquele abraço para sempre.

O garoto viu sua avó poucas vezes depois, ela não podia sair assim com tanta frequência por uma questão de saúde, mas prometeram sair sempre que podiam.

O dia em que o garoto comprou flores para a avó pela última vez também comprou camélias brancas, mas sua avó nem conseguiu vê-las, já não estava mais ali com ele.

Passou a fazer visitas aos parques todos os fins de semana com seus pais, que haviam finalmente admitido que estavam sem tempo um para o outro

e que agora o fim de semana estava guardado para a família. Mesmo que a avó não conseguisse mais acompanhá-los, o garoto podia senti-la nas flores, no gramado e no céu, por todos os lugares que já haviam passado juntos antes.

Então para ele, ela sempre vai estar lá, sentada no gramado, com seu

— Também espero ter mais tempo de sair mais com você.

Depois de um bom sorvete, todos voltaram para o carro para deixar a avó em casa. Ela se despediu do neto, já cansado do passeio, com um abraço

vestido florido aproveitando a paisagem e a companhia da família.

Sou Alessandro Aparecido Salgado, umuaramense, professor concursado na Rede Municipal de Educação de Umuarama, atualmente cedido na Fundação Cultural de Umuarama, como Chefe de Divisão de Ação Cultural. Formado em História, Filosofia, Artes Visuais, Língua Portuguesa e Pedagogia. Especialista em Comunicação e Oratória. Um entusiasta da literatura. Ama escrever contos, poesia e crônicas.

Alessandro Aparecido Salgado
Escute o conto

A lenda do Lago Tucuruvi

A lua era nova. Aproximadamente à meia-noite, no Lago Tucuruvi, ouviram-se gritos desesperados. Toda aldeia Xetá acordou. Um lobo-guará

morto, um cachimbo aceso e uma caixa de madeira fechada foi o que os indígenas encontraram no chão.

O cacique Botocudo, respeitado na aldeia por sua liderança e coragem, abaixou-se e começou a abrir a misteriosa caixa, quando foi interrompido por mais gritos, oriundos da oka-auatxu (aldeia grande). O pajé Kuein, considerado autoridade xamanística, estava em pé e nas mãos segurava um bebê ensanguentado, que acabara de nascer. A recém-nascida é Potiguá. Sua mãe Aré não resistiu ao parto e faleceu. Botocudo, confuso, ora agradeceu ao nascimento, ora lamentou a morte de Aré, ora se ocupou em abrir a caixa. O pajé, com o bebê em mãos, se aproximou dos demais indígenas que estavam envoltos da misteriosa caixa, quando Botocudo a desmontou e, para surpresa de todos, um bebê, pele branca, cabelos pretos, enrolado num tecido marrom,

mãozinhas cerradas em sono profundo, fora deixado na aldeia.

A partir daquele dia, se chamaria Yvaparé. Um grande mistério na terra do Xetá pairou sobre sua história. O que motivaria alguém a abandonar um bebê numa caixa no Lago Tucuruvi? Quem fizera?

O tempo passou. Na aldeia, Potiguá e Yvaparé foram criados juntos.

Aprenderam os mesmos rituais, costumes e brincadeiras. Potiguá era destemida; Yvaparé, observador. Os dois tinham em comum a empatia e a resiliência. O lago Tucuruvi sempre foi o lugar no qual as duas crianças, agora com oito

anos, passavam os dias. Certa manhã, enquanto brincavam no lago, Potyguá

e Yvaparé foram surpreendidos com a chegada de um senhor barbudo, pele parda; vestimentas rasgadas. Segurava um cajado e os convocava, com uma voz muito grave, para irem embora: “É chegada a hora de a profecia se cumprir. Haverá muita chuva e com ela perigos e maldições”. O ancião

barbudo advertiu sobre a profecia de que, nas terras Xetá, haveria derramamento de sangue. A mata seria destruída, os animais morreriam com o fogo ardente. “A aldeia

desaparecerá e nada poderá ser feito, exceto se encontrarem

o portal da amizade, que se abrirá à meia-noite, no lago Tucuruvi, no primeiro dia da lua nova. Precisam atravessar, pegar a Ká ary mbya (estrela dalva) de cinco

pontas na aldeia ancestral Serra dos Dourados, lugar sagrado que o grande Tupã habita. Antes que o portal no lago Tucuruvi se feche, é preciso enterrar a estrela

Dalva no coração da tribo. Dessa forma, a chuva cessará,

o Karuguá (arco-íris) surgirá e protegerá o povo Xetá

das ameaças dos colonizadores armados que galopam nos cavalos enfeitiçados”, finalizou o idoso barbudo.

Yvaparé e Potyguá se olharam assustados.

Sentaram-se no chão e ao levantarem a cabeça o ancião tinha desaparecido, como fumaça ao vento e, no chão, apareceu um anel. Começou a chover torrencialmente.

Correram para aldeia e disseram ao pajé Kuein o que lhes ocorrera. Kuein confirmou a profecia e, com o anel deixado pelo ancião, conseguiriam abrir o portal. O pajé

os encorajou a cumprirem a jornada e os lembrou de que,

se o portal da amizade fechasse e não o atravessassem, nunca mais poderiam retornar. Ficariam presos na aldeia ancestral, Serra dos Dourados, para sempre.

Yvaparé e Potyguá voltaram para lago Tucuruvi. Quando chegaram às margens do riacho, o garoto colocou a mão no bolso, apertou fortemente a

joia e a jogou para cima. O portal se abriu como um clarão tão radiante que os puxou para a cidade ancestral.

Yvaparé e Potyguá, caídos embaixo de uma grande árvore, levantaram-

se e observaram quão belo era aquele lugar. Olharam para cima e avistaram a seringueira, imponente por sua grandeza. Subiram na seringueira, foram escalando entre um galho e outro. Avistaram a grande estrela, presa nos galhos. Brilhava como ouro. Estenderam os bracinhos e, quando tocaram na estrela flamejante, sentiram um forte empurrão.

Um relâmpago surgiu nos céus nesse instante, ao som dos trovões, caíram aos pés da seringueira. Foram derrubados por homens armados e com intenções diferentes dos indígenas. Eram colonizadores armados que estavam em Serra dos Dourados, escondidos na mata, e tinham conhecimento da profecia. Potiguá e Yvaparé caíram no chão, bateram a cabeça e adormeceram por muito tempo aos pés da grande seringueira.

O portal se fechou.

A chuva permaneceu por muitos dias na tribo Xetá.

Os colonizadores, montados em seus cavalos enfeitiçados, devastaram a floresta nativa. A oka-auatxu foi destruída e os indígenas Xetá, como os cavalos, também foram ludibriados por promessas de uma vida melhor que nunca chegou. A tribo Xetá findou-se.

Ainda hoje existe o lago Tucuruvi, e quem passa por Umuarama, visita-o.

Dizem que quando toca nas águas do lago, o portal da amizade se abre, mas ninguém tem coragem de entrar.

Yvaparé e Potyguá nunca mais foram vistos. As duas crianças tentaram cumprir a jornada, mas a ganância dos colonizadores por terras foi maior e os coibiu de finalizar a promessa de salvar os povos originários Xetá.

Serra dos Dourados é um distrito de Umuarama que guarda muitos mistérios da verdadeira história dos Xetá.

seringueira precisa olhar para cima, enfrentar o clarão e fazer pedidos, que é atendido. Alguns duvidam do fato, no entanto, outros juram por suas vidas que não é uma lenda, é um fato.

Quem disse? O ancião de roupas rasgadas.

Ele ainda vive em Serra dos Dourados.

Escreve histórias, como essa.

A grande seringueira foi preservada e tornou-se um ponto turístico de encontro. Muitos moradores contam que sempre à meia-noite, nos dias de lua nova, surge um clarão entre as folhagens da grande árvore que permite ser avistado de longe. A lenda diz que quem estiver à meia-noite embaixo da

Cris Casagrande

Eu me chamo Cris Casagrande. Nasci em 1999 e vivi toda a minha vida no Paraná. Sou estudante de Letras e escritora, contando com três livros lançados: “Querida Alice”, “Carolina” e “Para Cada Nome, Uma História”. Além disso, também tenho músicas autorais disponíveis em todas as plataformas digitais.

Escute o conto

Azul

— Não precisa do casaco azul, mamãe. — Foi o que Otto disse.

— Precisa sim, meu amor, está muito frio lá fora.

Eu vi pela janela enquanto sua mãe colocava o casaco nele, o maior de todos, por cima de uma camiseta e duas blusas de lã. Era por isso que Otto, no auge de seus seis anos, não era muito fã de inverno, pois sua mamãe o enchia de casacos, e ele mal conseguia se mexer. Mas eram meados de julho, então o menino precisava estar bem agasalhado.

Parecendo um boneco inflável, Otto foi praticamente quicando entre uma

perna e outra, até o carro de sua mãe e aí os dois partiram. Acompanhei o carro em seu trajeto, sempre de olho no pequeno.

Ele estava animado, pois ia buscar um amigo e, juntos, iriam passar o dia

na fazenda de sua madrinha, cheia de araucárias lotadas de pinhões, e também com os cachorrinhos que ela tinha adotado.

Otto Becker, com o nome alemão assim como o bosque, chegou em frente ao prédio onde morava seu melhor amigo, Lucas Yammada, cuja família era do Japão, assim como a praça.

A mãe de Lucas o colocou no carro, deu um beijo no menino e ele e Otto se cumprimentaram animados.

— Solta o som, tia Dani! — Lucas pediu à mãe de Otto.

Logo estavam os três cantando: “quando o relógio bate às oito, todas as caveiras comem biscoito”.

Ao fim da música, a mãe de Otto cantou, no mesmo ritmo que estiveram ouvindo até então: “Depois de brincarem de montão, o Otto e o Lucas comem pinhão”.

Os dois meninos deram risada e, em pouco mais de quarenta minutos, chegaram à fazenda.

— Oi, meninos! — Clara, a madrinha de Otto, os cumprimentou, feliz.

Ela tinha um cachecol grosso ao redor do pescoço, para se proteger do vento,

e foi seguida por Londrina, Ampere e Maringá, seus cachorrinhos, que foram batizados com nomes de cidades nas quais Clara já tinha morado.

Londrina era marrom e magrinha, Ampere, preto e branco, grande e forte, e Maringá era baixinha, de pelos alaranjados e longos.

Os dois meninos abraçaram a madrinha de Otto e fizeram carinho nos cachorros, então foram para dentro da casa buscar saquinhos plásticos para encher nos campos de araucárias.

— Estão prontos? — Clara perguntou.

Os dois assentiram com suas pequenas cabeças e aí o grupo de quatro pessoas foi, acompanhado dos três cachorros, perder-se entre vários troncos retos e sólidos de araucárias.

— Vocês sabiam que tem araucárias meninas e araucárias meninos? — Clara perguntou aos meninos.

— É sério? — Lucas pareceu chocado.

— E é só um deles que dá pinhão.

— A menina.

Os dois menininhos mostraram a língua e saíram em disparada, rindo.

Vi Dani olhar para cima e a ouvi dizer:

— Que bom que o céu hoje está bem azul, eu já estava cansada de dias cinza.

— Mamãe, eu achei aqui! — Otto gritou.

Depois de juntarem muitos pinhões, todos

voltaram para a casa, onde Clara cozinhou parte

deles, pois a outra parte os meninos levariam para casa.

— Vai ter estrogonofe de pinhão hoje? —

Otto perguntou, cheio de expectativas em seus olhos azuis.

— Qual? — Dani se mostrou interessada.

— É o menino, né? — Otto perguntou.

Clara negou com a cabeça e respondeu:

— Vai sim! — Clara respondeu, ao que os meninos comemoraram. — Vai ter estrogonofe e depois vou fazer paçoca de pinhão pra gente.

Lucas passou a mão na barriga, contente com a ideia.

Depois de almoçarem, os meninos foram brincar do lado de fora com os cachorros e uma bola, e pude vê-los mais de perto. Como era linda a sua alegria!

Cansados, voltaram para dentro de casa tomar água, e Otto perguntou:

— Dinda, como está o Azul?

— Azul? — Dani perguntou, sem entender.

— O passarinho que salvamos da outra vez que viemos aqui. Eu achei ele

com a asa quebrada, aí pegamos ele e trouxemos pra dentro de casa. A dinda

falou que ia cuidar dele até melhorar.

— Mas por que Azul? — A mãe do Otto voltou a perguntar.

— Porque era uma gralha-azul. E melhorou, saiu voando por entre as araucárias já faz vários dias.

Entre um gole e outro de água, Otto ficou pensativo e indagou:

— Será que ele está bem?

Clara sorriu sem mostrar os dentes e deu de ombros. Ela não tinha como ter certeza.

— Mas sim, Otto, eu estou bem.

Meu nome é João Brigido Batista Junior, tenho 26 anos, mais conhecido como J. Nakamura em minhas obras. Nasci e cresci na cidade de Ponta-Grossa/PR.

Desde muito cedo, sempre fui apaixonado pela literatura, pela leitura e pelo universo das artes. Elaborei um livro de fantasia chamado “Renoviatum — A Maldição da Juventude”, que foi publicado pela editora Flyve de Minas

Gerais, além de outros trabalhos publicados em antologias.

A jornada com a escrita não foi fácil. Posso dizer que ela começou a partir do ensino médio, com o estímulo de professores, além da bibliotecária que sempre me indicava livros ótimos!

De tempos em tempos, sempre escrevo e crio histórias, mais voltadas para o público infantil e juvenil, sendo o universo da fantasia e suspense meus preferidos.

João Brigido Batista Junior
Escute o conto

Detetive Luna e um segredo saboroso

Quando acordei fui olhar o céu. O dia estava tão azul que parecia ter sido pintado com tinta guache. As nuvens tão fofas como algodão, além daquele friozinho do vento de Curitiba.

Meu nome? Luna. Filha da lua. Sim, sou eu, a menina dos olhinhos puxadinhos. Papai Ryu era de origem japonesa e mamãe Paula era de terras brasileiras, e estávamos morando no Paraná depois de termos passado alguns meses visitando o Japão.

Meus pais recebiam muitas visitas. Mamãe fazia questão de falar nos jantares: “Sabiam que Luna nasceu em noite de lua cheia?”. Visitas que, depois de me conhecer, costumavam puxar as minhas bochechas até as orelhas, principalmente minha avó. Vovó Maria. Por que as senhoras têm o costume de achar fofo e apertar as bochechas das crianças? Eu nunca entendi.

várias árvores espalhadas pelo quintal. Eu adorava correr com Pitoco, o nosso cachorrinho. Brincávamos até escurecer, e depois de um longo banho quente, a gente se juntava na sala para ver as fotos e as receitas da vovó. Receitas que valiam ouro. Receitas especiais. Era o que mamãe dizia sempre quando eu ia bisbilhotar a cozinha.

Que mistério tinham aquelas receitas? Seriam poções mágicas? Vovó seria uma bruxa? Nunca experimentei nenhuma receita da vovó Maria. Talvez hoje fosse o dia?

Visitei a vovó Maria só uma vez. A casa dela era tão aconchegante, com

Mamãe Paula estava na cozinha para não deixar o bolo queimar. Hoje era um dia importante. Vovó Maria estava vindo nos visitar e a única coisa em que eu pensava era: “Eaí, bochechas? Estão preparadas?”

— Você precisa tomar um banho e se arrumar, Luna. Sua avó está quase

chegando — disse mamãe.

Ela vestia um avental colorido e tentava limpar as mãos nele para tirar o trigo dos dedos. O rosto dela estava cheio de farinha e chocolate nas bochechas. Novamente, as bochechas… bochechas… bochechas, por que as bochechas eram tão importantes?

— Estou indo — disse.

Eu sabia exatamente o que vestir. Geralmente eu usava vestidos coloridos

e mamãe fazia tranças em meu cabelo, mas o que eu queria mesmo era me vestir igual a um detetive. Hoje descobriria o que tinha naquelas receitas secretas de vovó Maria.

Depois do banho, corri atrás de um casaco grande e um chapéu. Era assim que os detetives se vestiam? Por sorte papai tinha um chapéu do trabalho e mamãe tinha um casaco de inverno. Não era do meu tamanho, mas que problema teria de ser um detetive diferente?

Paula disse que as minhas roupas não eram apropriadas, mas me deixou ficar

com elas, depois que contei sobre a importância dos detetives.

— Está bem, Luna, mas se comporte. Vovó Maria irá fazer uma receita especial para nós hoje. Trate de comer tudinho — disse mamãe.

— Vou sim — disse eu.

A campainha tocou. Vovó Maria entrou em nossa casa com um livro de receitas embaixo do braço. Estava usando um vestido cheio de flores, com os óculos sobre o nariz. Aqueles dedos vieram direto em minhas bochechas.

— Quem é a menininha mais lindinha da vovó? — disse ela.

Desculpa, bochechas... É inevitável.

— Oi, vovó — disse eu. — Que bom que a senhora veio!

— Como você cresceu, Luna! O que você é hoje? Um detetive?

Fui até a cozinha. O bolo estava com um cheiro delicioso em cima da mesa para recepcionar a vovó. Sentei-me em uma das cadeiras e esperei. Mamãe

— Isso mesmo! A vovó sabe como são os detetives.

— Claro que sei! — disse vovó. —

Sempre curiosos.

Ela pegou um pedaço do bolo e tomou uma xícara de café.

— O bolo está uma delícia, Paula — disse vovó para mamãe. — Mas agora vão se sentar, deixa que eu comando a cozinha. Quero preparar algo especial para o jantar, como prometi.

Várias horas se passaram e o cheiro estava maravilhoso. O que ela estava preparando? Escutei o barulho das panelas, vindo de longe, até que vovó falou que o jantar estava pronto. Estava chegando a hora. Finalmente eu iria experimentar alguma daquelas receitas secretas.

Corri para a cozinha. Uma panela estava sobre a mesa. Soltava fumacinhas brancas e um cheiro delicioso.

— O que você preparou, vovó? Qual é o segredo? — perguntei.

— Vamos comer Barreado! — disse ela.

Arregalei os olhos. Será que tinha escutado bem? As receitas secretas de vovó eram feitas com barro? Era esse o mistério? Eu já tinha feito bolinhos de barro, mas não eram de se comer.

— Barreado, Luna, é só o nome do prato. — disse mamãe Paula.

Mamãe Paula e vovó Maria se serviram. Eu fiquei encarando meu prato cheio com aquela mistura curiosa. Parecia carne.

— Pode comer, Luna — disse vovó Maria. — Não tem nada de errado. É

só o nome da receita. Você não é uma detetive corajosa?

Confiei em vovó. Peguei um garfo e experimentei. Tinha gosto de carne e estava suculento.

— É gostoso! — disse eu.

— Viu só? — disse vovó Maria, orgulhosa. — Barreado é o nome do prato, Luna. Não tem barro nenhum.

— Tem outras receitas de nomes diferentes? — perguntei depois de experimentar.

— Vovó, não podemos comer isso! — eu disse, espantada.

— Por que não, minha querida?

Vovó Maria e mamãe Paula soltaram uma gargalhada.

— Tem sim — disse vovó Maria. — Tem o Barreado, Pão no Bafo, Pierogi, Carne de Onça e muitos outros. São só alguns nomes de receitas que tenho aqui comigo. Quando eu visitar vocês de novo, você pode experimentar todos eles. O que acha?

Eu tinha descoberto o segredo. As receitas de vovó Maria eram deliciosas, mas com nomes curiosos.

— Vou adorar! — disse eu.

— Maravilha! — disse vovó.

Aquele segredo tinha sido resolvido. Eu só pensava em que gosto teria aquelas outras receitas. Mas independente do prato que vovó Maria fizesse, a visita e o abraço dela já eram algo para saborear: Eram doces e aconchegantes.

Bom trabalho, detetive Luna!

Marcio Aurélio Nerone

Empresário e professor. Natural de Guarapuava/PR. Formado em Ciências Contábeis e em Administração pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (antiga Fafig). Especialista em Administração: Planejamento e Gestão de Negócios pela FAE.

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Fuja, lá vem o Boitatá

“Vamos pra casa da vó Nana?”

Que alegria ouvir essa frase! Era a voz do meu pai, chegando do trabalho.

Ele era telegrafista, funcionário dos Correios e Telégrafos. Uma profissão importante à época, mas que se extinguiu. Os telegramas eram esperados com ansiedade. Traziam notícias, resolviam negócios e movimentavam a comunicação. Na escola se aprendia como redigir um telegrama: poucas palavras, só as necessárias, transmitidas em Código Morse.

Aquele convite: “Vamos para casa da vó Nana?” Foi respondido em coro, em meio a um alvoroço geral. Todo mundo corria aprontar os bengos e dentro de uma hora estávamos embarcando num jipe verde rumo a Marmeleiro dos Ingleses, meio rural do município de Rebouças, mais ou menos uns 115 km de Guarapuava/PR, onde morávamos.

Era um aperto dentro do jipe, mas tudo em clima de alegria. Pegávamos um pouco de estrada de chão e às vezes até encalhávamos, mas não importava,

pois fazer aquele passeio tão esperado compensava.

No sítio, próximo à casa da vó Nana e do vô João, morava tio Zezo. Uma porteira servia de entrada para o sítio, onde éramos recepcionados pelas crianças, que vinham abrir a porteira, dando as boas-vindas. Essa recepção era retribuída por nós com doces: uma “chuva de balas” chamada “aleluia”.

Na casa da avó encontrávamos com os primos e, o melhor de tudo, era ouvir os causos de lobisomem, boitatá, mula sem cabeça... um repertório do folclore paranaense sempre presente naquele mundo criança, ao redor do fogo de chão e chegando sempre mais um que acrescentava mais um causo e afirmava que já tinha visto o bicho de perto.

Enquanto isso o chimarrão corria de mão e mão. A noite iluminada pelo lampião e o sótão da casa de madeira aumentavam o medo e a emoção, exercendo um encantamento acrescido pelas histórias maravilhosas da minha vó, que se sentava ao pé da cama para contar desde histórias de fadas, do Pedro Malasartes, dos 12 Pares de França e de Carlos Magno. Isto se repetia algumas vezes durante o ano e nas férias. Era um ritual.

Brincar no riozinho de pedras onde funciona o monjolo, usado para produzir a farinha de milho artesanal... um cenário quase que encantado,

rodeado de pés de pitangueiras, amoras e pêssegos.

Muitas aventuras durante o dia, mas

numa noite, quando já estávamos todos na

área da casa da vó Nana, alguém olhou para o lado da casa do tio Zezo e disse sussurrando:

“Vocês estão vendo o que eu estou vendo?”

Todos começaram a espiar uma

pequena luz vermelha, como um fogo, que misteriosamente aumentava e diminuía de

tamanho. A coisa foi vindo. Aproximando- se

cada vez mais, rapidamente. O medo foi se instalando… o cachorro deu uns latidos e se

ouviu ao longe pios de pássaros noturnos.

Todos foram ficando arrepiados e de repente alguém gritou: “Fuja, lá vem o boitatá!!!

Ele tá vindo pra cá!!!”

Sebo nas canelas. A criançada correndo

entrou sala adentro e, curiosos, ficaram só espiando pela fresta da porta.

Os adultos já estavam se aprumando pra correr também, quando ouviram

o ranger do portão se abrindo: NHÉÉÉÉÉ.

A bola de fogo passou pelo portão, atravessou-o e, para a surpresa,

ouviu-se uma voz:

—Tudo bem, pessoal?

O coração parecia que ia sair pela boca. Eu estava suando frio.

— UFA! Que susto!

Era meu tio Zezo fumando um palheiro: ele foi confundido com o boitatá.

— HAHAHA...

Foi um riso geral.

Maria Eunice Silva de Lacerda

Eu, Maria Eunice Silva de Lacerda, nasci em Brejo Santo – CE em 1956. Filha de José João da Silva e Maria Ribeiro da Silva. Casada com Maurício Lacerda. Mãe de Acássia, Gabriela e Maurício Filho. Avó de Eduardo e Laísa. Cheguei a Toledo em 1980, onde atuei no Magistério por 25 anos. Aposentada pela Secretaria Municipal da Educação.

Sou escritora multipremiada em concursos literários,

UBTrovadores, Grêmio Haicai Sakura, com participação em diversas Antologias Literárias. Escrevo poemas, contos, trovas e pensamentos. Fundadora da cadeira

34 da Academia de Letras de Toledo e Membro do Clube da Poesia de Toledo. Meu

lema: Participar é preciso. Vencer, se possível.

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Gra, a gralha-azul

Mário é um menino de nove anos que mora com seus pais em Toledo, interior do Paraná, numa vasta propriedade agrícola. Ali, desenvolvem o cultivo do pinheiro araucária e, com a produção do pinhão, abastecem vários supermercados e também produzem mudas para o reflorestamento.

Em época de colheita, após chegar da escola e realizar suas tarefas, segue ao pinheiral para ajudar na coleta das pinhas.

Certa vez estava ali coletando os frutos, quando ouviu piados fortes, vindos do chão. Procurava e não conseguia encontrar. Até que entre as folhas secas, viu um filhote de passarinho tão frágil com o bico aberto. Decerto com muita fome e sede. Recolheu-o e com cuidado, limpou a terra e os ciscos de seu corpinho. Somente algumas penas começavam a nascer. Ele havia despencado do ninho, do alto de um pinheiro. Os pais voavam ao redor tentando salvá-lo. Era filhote de gralha-azul.

Mário gotejou água em seu biquinho e o levou para casa.  Acomodou-o

numa caixa de sapatos e foi providenciar comida.

Mas o que um filhote poderia comer? Pensou.

Foi em busca de minhocas.  E oferecia pequenas porções, enquanto esse faminto engolia às pressas.

O tempo foi passando e o filhote crescia com liberdade e beleza. Cada dia mais azul. Foi batizado de Gra, por ser uma gralha-azul.

Gra estava sempre ao lado de Mário. Todos gostavam dela.

Na verdade, era um bichinho de estimação. Andava livremente e já ensaiava pequenos voos.

Subia nos galhos baixos do pé de amora do quintal, comia as alfaces, couve... da horta.

Gostava de bicar os pinhões coletados. Fazia muita arte.

Mas o lindo pássaro azul descobriu que sabia voar e foi ao encontro das outras gralhas-azuis na copa das araucárias.

Mário, pela vidraça da sala, gritava entre lágrimas: “Gra! Gra!” Enquanto via seu lindo pássaro azul bater asas e partir.

Mário colocava os petiscos preferidos de Gra (banana, pinhão, castanha, minhoca...) mas ela não aparecia. O tempo passou e outra colheita surgiu. E como sempre Mário ajudando na coleta do pinhão.

Certo dia, estava no pinheiral e ouviu pios do seu lado. Gra! Gra!  Gritou.

Ela agora acompanhada de outras gralhas-azuis. Era a sua família. Pousou no seu ombro e como costumava fazer, beliscou carinhosamente sua orelha, enquanto ele coçava sua cabeça. EIe entendeu que Gra estava feliz e ficou feliz também.

Gra alçou voo junto ao seu bando, deixando o céu mais azul. Certamente a terra é mais verde, pois a gralha-azul colabora com o reflorestamento do pinheiro araucária.

Como gratidão, sempre volta à casa onde viveu um dia.

Nasci em Curitiba em 1997, cidade em que cresci e onde moro. Apaixonado por livros desde criança, comecei a escrever histórias na escola. Ganhei meu primeiro concurso literário aos 13 anos e, como nunca soube fazer outra coisa da vida além de ler e escrever — e nem queria! —, me formei em Letras na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Vendo a paixão pela palavra tomar conta da minha vida, adivinha só onde eu decidi

trabalhar: numa biblioteca, é claro! Lá, eu podia incentivar a leitura e indicar livros incríveis para crianças, jovens, adultos e idosos. Também trabalho com mediação literária, revisão textual e projetos culturais. Meus textos já foram agraciados com os concursos literários Luci Collin (2019 e 2020) e o Novas Leituras Curitibanas (2021). Este é o meu primeiro conto para o público infantil.

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Ler os sinais

Demorou até encontrar escola onde ela cabia. A mãe sempre dizia: você

é muito grande pra esse lugar. Mesmo ela sendo tão pequenininha. A mãe dizia: filha, você nasceu em Curitiba. Vai ter que andar sempre preparada pra quatro estações num só dia. A mãe dizia tanta coisa! Gostava mesmo era quando ela emudecia. Ou quando falava com as mãos, desenhando palavras e símbolos no ar. Ainda não era muito boa de rosto e corpo nessa

nova língua, mas com as mãos podia falar capivara, hipopótamo e até pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico — e não doía.

Japona na mochila, o sol luzia lá fora. Bermudinha e chapéu, o céu rugia trovões que feriam lá dentro. Carol não entendia por que é que as coisas mudavam tanto e o tempo todo! E hoje era o dia fatídico: compras. Tinha

horror a supermercado: como podia ser daquele jeito um lugar que deveria ser todo organizado?

Rodinha de carrinho uma voz de criança de adulto duas vozes três quatro

cinco vinte a senhora do caixa gritando quer dizer talvez falando baixo falando normal PRÓXIMO minha mãe me pega pela mão coloco a outra a livre num dos ouvidos feito concha a outra mão a presa se liberta pulsa treme quer fazer concha quer ajudar também antes que antes que seja tarde as mãos alcançam os ouvidos. Escuto o som das ondas. Minha mãe me abraça, esquece que às vezes carinho parece soco. Eu me solto, saio correndo sem saber para onde ir nem o porquê, meu corpo gira gira gira tentando voltar aos eixos, mas vi numa aula de Ciências que quem manda no corpo da gente é o cérebro, e fiquei sabendo que o meu é diferente das outras pessoas, aí o médico disse que eu não precisava ficar chateada porque não tinha nada de errado comigo. Então eu giro eu corro eu sento eu me escondo no vão debaixo da escada rolante, meu corpo balança pra frente pra trás pra frente pra trás, o barulho cessa, a escuridão me abraça. Minha mãe chega esbaforida, faz sinal

de dor no coração. Tira da mochila meus cartões salva-vidas. Ela entende que às vezes a palavra falada cansa e machuca. Falar e ouvir. Ouvir e falar. Por isso ela aprendeu LIBRAS, e agora vai substituir aos pouquinhos os cartões por um tablet, e aí eu vou ter outra voz, tão bonita quanto a do Stephen Hawking. Já em casa, minha mãe me coloca na cama, fecha as cortinas e apaga a luz. O gato

Sebastião é o único que tem autorização pra ficar comigo nessas horas que o cérebro não aguenta e o corpo falha.

As mãos da mãe esboçaram palavra: posso falar?

Carol se virou, largou o brinquedo na cama. O gato não. O gato nunca.

Sebastião continuou no colo, ronronando: o único som do quarto. Um dos poucos do mundo que não doía.

A menina olhou logo para as mãos da mãe: tudo e nada. Pousavam soltas, sem linguagem, cada uma de um lado do corpo. Carol sabia ler os sinais em LIBRAS, mas também unhas roídas, dedos carcomidos e movimentos repetitivos.

Carol assentiu com a cabeça.

Vez e outra via a mãe descabelada pela casa, dias usando roupão, olho preto feito urso panda. Nessa época, a avó Claudete veio lá de Foz de Iguaçu passar um tempo na cidade, trazendo uma mala gigante cheia de surpresas de um lugar chamado Paraguai.

Descobriu que a morte existia quando ouviu a mãe e a avó aos cochichos na cozinha. Sabia que era feio bisbilhotar, olhar dentro do buraco da fechadura, esticar os tímpanos. A mãe em prantos, as mãos na cabeça, inconsolável: e quando eu morrer? Quem vai cuidar dela?

E a avó: Cláudia, minha filha, tinha que ter política pública pra essas coisas, você sabe. Mas o governo não quer saber nem de gente velha, quem dirá dos outros.

A mãe também tinha nome. Às vezes se esquecia. Mãe não era nome?

E a Cláudia, a mãe: e se a senhora adoece, cai um tombo, quebra o fêmur: quem é que vai cuidar da senhora? E a Claudete, a avó: eu me cuido, minha filha. É o que tem pra hoje. A questão é: quem é que cuida de você? Com esses olhos de guaxinim?

Filha, lembra quando a mãe pegou férias ano passado?

Carol lembrava.

O silêncio também tinha som. A água da fonte do gato borbulhando, o ar ofegante da mãe, a lágrima rasgando a pele, o abraço molhado e sem jeito de

duas mulheres sozinhas mas não tão solitárias assim.

Antes de dormir, a avó sentou na beira da cama. Tua mãe saiu de férias, tá bom? Fazia tempo que não tirava uns dias pra se cuidar e descansar, aí ficou doente. Os médicos vão dar um trato nela.

Só que a avó não entendia nada de falar com as mãos, nem de cartão salva-vidas, nem de celular, imagina de tablet! Volta e meia Claudete pedia pra ela arrumar o zap, mandar um beijo pro primo Miguel lá de Medianeira, baixar música sertaneja e fotos de bom dia, boa tarde e boa noite cheias de piscapisca e cores.

Dois dias de falatório e peripécias da avó, Carol colapsou. O cérebro desligou. O corpo adormeceu. A avó pegou o manual de emergência, escrito e organizado por Cláudia, com sumário e tudo.

escrevendo pequenos bilhetes. Depois, decidiu escrever histórias sobre certo gato Joaquim que viajava com o dono, Damião, para todos os lugares do mundo. Dedo

calejado, sorriso no rosto, dona Claudete via Carol gargalhar com as aventuras. A caneta preenchendo o vazio da saudade.

As mãos da mãe esboçaram palavra: posso falar?

Carol assentiu com a cabeça.

Filha, lembra quando a mãe pegou férias ano passado?

Carol lembrava.

Leu tintim por tintim. A comida favorita de Carol: nuggets de frango. Tem que ser da marca X. A paixão de sempre: gatos. A paixão do momento, que já era um momentão, dois anos: mapas.

Então a avó, que não pegava caneta há

um tempão, começou a se comunicar com a neta

Cláudia sentenciou: filha, a gente é igual carro: precisa de manutenção periódica. E aí mamãe foi pro conserto e descobriu o que estava acontecendo.

Carol não entendeu. A mãe tinha dessas poesias na fala.

Com as mãos, o corpo, o rosto, em voz alta, a mãe disse: a mãe descobriu que é diferente. Diferente igual você.

Nasci em Curitiba em 1962, e somente em 1987, na Faculdade de Letras da UFPR, arrisquei os primeiros versos, sendo rapidamente premiado em alguns concursos, até que em 1991, porém, passei por uma crise criativa que perdurou por 23 anos!

Felizmente, em 2014, com o incentivo do falecido agitador cultural Geraldo Cardoso Magela e do poeta Marcio Davie Claudino, voltei a escrever.

Aproveito para agradecer à minha querida falecida sogra, Lourdes Zequinão de Almeida, por ter me contado a incrível história de Mello Maluco e a Ponte Preta, como se tivesse sido verdade, aliás, como sempre fazia; ela era a personificação do folclore!

Graças à sua contribuição, acabei produzindo este conto em que a Ponte Preta foi personificada, de modo que ela fez a um só tempo o papel de narrador, cenário e personagem, de uma história que só poderia ter ocorrido em Curitiba e em nenhum outro lugar no mundo!

Agradeço ainda à minha “exposa” Marister pelas sugestões ao texto final e a Marcelo Almeida, pelas sessões de fotos, ambos filhos da nossa querida “Dona Lurde”.

Escute o conto

Meu dia de glória

e distraídos pelo cansaço, que, não lendo a placa de aviso: ALTURA MÁXIMA

3,60m, ficam entalados debaixo de mim:

— Ui, ui, ui!

Sou forte; muito forte.

Fui feita para durar dezenas e dezenas de anos, mas, numa bela manhã, com apenas trinta anos de trabalho, os trens da linha CuritibaParanaguá pararam de passar pelas minhas costas; senti-me apunhalada com

Sou forte, mas

tenho meus pontos fracos:

meu coração, embora seja de aço, foi profundamente ferido; outro ponto fraco é minha barriga, com cicatrizes dos caminhões que, por causa de seus motoristas de primeira viagem em Curitiba

Só assim as pessoas e os jornais lembram-se de mim; só assim

minha existência é percebida.

As paredes junto às belas pilastras que me sustentam têm ouvidos,

e então escuto as reclamações:

— Onde já se viu? Deveriam demolir essa porcaria de ponte, que há

50 anos não serve para mais nada!

— Volta e meia isso acontece! E dá-lhe atrapalhar o tráfego!

O som de buzinas é ensurdecedor, e o ambiente fica horrível. Sinto-

me envergonhada por todo esse transtorno, querendo pedir desculpas por existir.

Mas ninguém me ouve; tenho ouvidos, mas não tenho boca.

Entretanto, eu tive um dia de glória; fui palco de um acontecimento que marcou a cidade.

Isso foi nos idos de 1940 ou 50, não me lembro mais.

Dizem que o Mello Maluco, um aviador famoso por sua habilidade

nas acrobacias aéreas, queria chamar a atenção de uma linda moça, pela qual estava malucamente apaixonado.

O fato é que, numa bela manhã, com céu de brigadeiro, me aparece, vindo de lá do Aeroporto do Bacacheri, um monomotor T-6, que começa a fazer círculos sobre mim.

E fica lá em cima um tempão:

— Por que isso? O que está acontecendo?

— É um T-meia... Só pode ser o Mello Maluco!

— Ele deve estar querendo chamar a atenção de alguém...

— Isso mesmo! Só pode estar apaixonado!

A Rua João Negrão e a Sete de Setembro foram se enchendo de gente; a polícia, prevendo a maluquice que o Mello poderia aprontar, isoloume da população por uns 50 metros.

De repente o Mello começou perigosamente a vir em minha direção, passou perto de mim e voltou a subir. A população aplaudiu e queria ver mais:

vez passando bem pertinho, tirando uma fina nas minhas costas, fazendo um ventinho que me deu um delicioso arrepio: — Ui...

Novamente subiu, e desta vez subiu, subiu, subiu, até quase perder-se de vista, até não se ouvir mais nada.

Não pela distância; o silêncio se deu porque ele desligara o motor!

Alguns instantes depois, vinha ele em nossa direção, meu Deus, que loucura, o Mello vai morrer!

Para espanto de todos, o motor é religado e o T-meia aponta novamente para mim; ele parece vir fazer outra fina, mas desta vez... meu

— Ooohh!...

Os círculos continuaram; de repente, o Mello voltou a descer, e desta

Deus, que loucura, eu não acredito que ele vai fazer isso, só pode ser o Mello Maluco, não posso ver isso... a cosquinha foi... ui! na minha barriga!

A plateia aplaudiu novamente:

— Ooohh!...

— Bravo! Bravo! Bravíssimo!

Terminado o espetáculo, o Mello retornou em triunfo ao Bacacheri, fazendo algumas piruetas de felicidade.

Se sua amada gostou, não sei ao certo; desde então ouvi muitos burburinhos, até que a história ficou na boca apenas dos mais antigos.

Há quem diga que isso é lenda, nunca aconteceu.

Eu lhe asseguro que é verdade, a não ser que eu esteja mentindo para você, apenas para obter a sua atenção.

Do que somos capazes para não nos sentirmos tão sós?

Essa não! Outro caminhão!

— Ui, ui, ui!

Curadora

As histórias marcaram a minha infância. Em casa, na biblioteca ou na escola, eu sempre procurava por elas. A paixão pelas palavras me fez cursar Letras. Por muitos anos, estive em sala de aula como professora. Até que, em fins de 2015, publiquei o meu primeiro livro. Pouco tempo depois, passei a me dedicar exclusivamente à Literatura e ao universo da formação do leitor. Hoje tenho mais de 25

obras publicadas. Algumas delas ganharam ou foram finalistas de prêmios como o

Jabuti, AEILIJ, Outras Palavras e Image of the book. Criei, em parceria com o escritor e sociólogo Walmir Faria, o Prosa Literária, projeto que já percorreu mais de 300 escolas pelas veredas do Brasil.

Pac Calory

Ilustradora

Eu me chamo Paula Ariana Calory, mas sou mais conhecida pelo meu nome artístico Pac Calory e sou uma artista visual residente em Curitiba-PR. Iniciei a construção da minha própria linguagem pelo grafite a partir de 2011, desenvolvendo técnicas com base nas experiências que tive nas pinturas das ruas feitas em spray e tinta acrílica. Sempre busquei construir minha linha visual me

diferenciando de outros artistas e produções locais e encontrei na construção de paisagens abstratas e gráficas o caminho que gostaria de explorar.

Com o tempo esse caminho ganhou forma e consistência de uma linguagem autoral que hoje é facilmente reconhecível e passei a desdobrá-lo para outros tipos de suportes e contextos, como o da ilustração digital.

Atualmente realizo pinturas em telas e em murais, crio ilustrações digitais e também atuo como integrante de um coletivo de arte contemporânea de cinco mulheres chamado Brutas. Além disso, também atuo como designer gráfica e produtora cultural.

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO

ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DO PARANÁ

Darci Piana

Presidente do Sistema Fecomércio Sesc Senac Paraná

Carlos Alberto de Sotti Lopes

Diretor Regional do Sesc Paraná

Lidiane Cristine Galvan

Diretora de Educação, Cultura e Ação Social

Mariah Fank

Gerente de Cultura

Mayara Elisa de Lima Cirico

Analista de Cultura

César Luiz Gonçalves

Coordenador Geral do Núcleo de Comunicação e Marketing

Rosane Aparecida Ferreira Guarise

Assessora de Comunicação e Marketing

Julianna Schreiner Largura

Analista de Comunicação e Marketing

Leandro Rodrigues

Gerente Executivo

Isabel Cristina Bizerra da Silva

Analista Pleno

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