FEC - Percurso para a Quaresma 2013

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Quaresma 2013

FOME DE MUDANÇA

@ UNAMID

Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (Mt 5, 6)

FEC


ENQUADRAMENTO


ENQUADRAMENTO Tempo de Transformações através de Olhares Cruzados

Quaresma significa caminho de transformação, preparando a Páscoa, que significa passagem da morte à vida, da escravidão à liberdade. Viver a Quaresma e celebrar a Páscoa pretende ser e deve ser uma experiência de transformação que implica os cristãos na construção do Reino. Nesta Quaresma, a FEC (Fundação Fé e Cooperação, ONGD da Conferência Episcopal Portuguesa) volta a propor que este percurso de fé, seja transposto para o Desenvolvimento. Porque na realidade, os dois percursos não devem ser distintos, devem estar entrelaçados e alimentarem-se mutuamente. O desenvolvimento é a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas (Encíclica Populorum Progressio).

Para além da sua ação na área da Cooperação para o Desenvolvimento, a FEC – Fundação Fé e Cooperação, deseja promover espaços de reflexão sobre o desenvolvimento humano integral e o desenvolvimento sustentável, com a promoção da justiça. Através da Rede Fé e Desenvolvimento, pretende promover este processo no seio da própria Igreja, repensando-se a si própria em diálogo com a sociedade. O jejum que me agrada é… (Is 58) O jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente, livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão.

Num tempo em que somos desafiados ao jejum, como atitude de conversão, quisemos ter em consideração com especial atenção a questão da fome que atinge tantas pessoas no mundo e no nosso país. Associamo-nos à campanha “Hungry for Change” da CAFOD (www.cafod.org), organização parceira da FEC na CIDSE – rede internacional de organizações católicas para o desenvolvimento. Lançamos por isso, como desafio para esta Quaresma, o tema Fome de Mudança. No Mundo, hoje, uma em cada 8 pessoas passa fome. No entanto, são produzidos alimentos suficientes para todos. “A falta de comida para os pobres é a situação mais não-eucarística que existe na terra” (Cardeal Rodriguez Maradiaga, Presidente da Caritas Internationalis). E no entanto Jesus deixa estas palavras na instituição da Eucaristia: tomai todos e comei. Que todos tomem parte… “Porque é que não é possível evitar que tantas pessoas sofram as consequências

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ENQUADRAMENTO extremas da fome?” (Bento XVI, Mensagem para o Dia Mundial da Alimentação 2007). ... “Não é apenas uma questão de “dar do supérfluo”’, mas de ajudar todos os povos que estão excluídos ou marginalizados, a entrarem na esfera do desenvolvimento económico e humano, o que requer sobretudo uma mudança de estilos de vida, modelos de produção e de consumo, e de estruturas consolidadas de poder que hoje regem as sociedades “ (Papa João Paulo II, Centesimus Annus, 58). O pão nosso de cada dia nos dai hoje…de que temos de ter fome para que isto seja uma realidade para cada um dos nossos irmãos? O que se propõe

Mais do que sugerir propostas de ação para esta Quaresma, quisemos catalisar um tempo de reflexão forte na vida de cada um e na vida em sociedade, neste momento difícil que atravessamos. As bases de partida para esta reflexão são as leituras próprias da liturgia de Quaresma e Páscoa, sobre as quais apresentamos diferentes meditações a partir de diferentes perspetivas – Olhares Cruzados diante da Cruz e da Ressurreição.

Trata-se de um percurso em oito etapas - 4ª feira de cinzas, seis domingos da Quaresma e domingo de Páscoa. Para cada etapa sugere-se uma dimensão do Desenvolvimento, fazendo reflexo da própria Encíclica Caridade na Verdade, em que o Papa Bento XVI aborda a Crise atual e o Desenvolvimento Humano Integral complementando estas diferentes perspetivas.

Cruzamos diversos olhares e experiências, de diferentes personalidades e origens, a partir de Portugal e de países em que a FEC trabalha.

ETAPA

PALAVRAS-CHAVE

13 Fevereiro 4ª Feira de Cinzas

DESENVOLVIMENTO QUE PROMOVE O BEM COMUM

17 Fevereiro I Domingo da Quaresma

RESPONSABILIDADE

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ENQUADRAMENTO 24 Fevereiro II Domingo da Quaresma

ABERTURA

3 Março III Domingo da Quaresma

TOMAR PARTE NA CRIAÇÃO

10 Março IV Domingo da Quaresma

RECONCILIAÇÃO

12 Março INÍCIO DO CONCLAVE

HUMILDADE

17 Março V Domingo da Quaresma

DISPONIBILIDADE

24 Março Domingo de Ramos

COERÊNCIA

29 Março SEXTA-FEIRA SANTA

ESPERANÇA

31 Março Domingo da Ressurreição

PASSAGEM

O desafio que se deixa é o de juntar a este conjunto de reflexões o nosso próprio exercício, a partir da nossa realidade, com as nossas inquietações, nesta procura de como ser sal da terra que nos toca viver, sal que transforma, que dá sabor e sentido. Porquê propor este percurso? Algumas razões principais: 1/ Contextualizar o momento que vivemos na História da Salvação: A vivência da Páscoa remete-nos para a História da Humanidade que nos precede, História de tantas lutas, crises, epopeias e apogeus, História de Revelação de Deus através da fragilidade humana, libertando o Seu povo a caminho da Terra Prometida. É importante enxertarmos o momento que atravessamos nesta História, percebendo que estamos neste Caminho de Salvação, em que a Crise não tem a última palavra. É importante não absolutizarmos a “nossa crise” tanto no Tempo, como no Espaço. Porque muitos

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ENQUADRAMENTO outros já a sofreram e muitos outros a sofrem desde sempre, noutros pontos do Planeta. Que este percurso possa ser uma ajuda para nos situarmos na História que nos cabe viver e salvar, como portadores de Esperança e Transformação. 2/ Rezar o Desenvolvimento Humano Integral: Em tempo de falências várias dos sistemas financeiros, sociais, ambientais, urge considerar o sentido pleno do Desenvolvimento Humano Integral – de todas as Pessoas e da Pessoa no seu todo. Pode vir-nos a tentação de pensarmos a realidade do nosso País, ou até da nossa família e amigos, de forma desligada da realidade Global. Jesus pergunta na parábola do Bom Samaritano: quem é o teu próximo? Que este percurso nos ajude a compreender que a nossa casa é o Mundo, e que o meu próximo é também o irmão caído longe. Ou, o que pode resultar igualmente difícil, o irmão caído que sou eu próprio(a), ou um outro da minha própria casa. 3/ Integrar Cristianismo e Cidadania: Muitas vezes pomos em gavetas separadas a nossa vida de fé e a nossa vida quotidiana de cidadãos, cada um com a sua marca própria de família, trabalho, amigos, interesses e responsabilidades. Mas ser Cristão é ser profundamente Cidadão, com um sentido forte de Missão na construção de sociedades justas e fraternas, em que todos tenham um lugar. Nos tempos difíceis que atravessamos, o tempo quaresmal pode ser ocasião de considerar com maior claridade a Paixão e Ressurreição de Cristo na nossa realidade, pessoal, local e global. Não como um filme a que assistimos, mas sim de forma profunda, com um olhar desde dentro, que nos implica. “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação dos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos e a proclamar o ano da graça do Senhor”. (Lc 4,18). Este é o caminho de desenvolvimento assumido e proposto por Jesus. Talvez a dificuldade dos dias que vivemos nos abram também a porta para experimentar pessoalmente esta passagem da Escritura. Como vivo eu este caminho? Quem são os pobres e cativos que me toca libertar? Que injustiças me cabem denunciar? Que injustiças me tocam viver e integrar? 4/ Alimentar uma acção cristã mais reflectida: Quaresma é tempo de jejum, penitência, oração. Passos que se podem rapidamente quantificar em ações concretas. É-nos mais fácil deixar de comer chocolates ou dar esmolas, do que aceitar fazer o processo de reflexão sobre os nossos estilos de vida e as causas estruturais da pobreza e de situações de injustiça. O que é o verdadeiro jejum? A verdadeira penitência? Estas propostas concretas só fazem sentido como processo de transformação interior e de conversão, que levem a relações mais ordenadas e justas de cada um consigo próprio, com Deus, com os outros, com os bens e recursos. Propostas que levem a um sentido profundo da Partilha, do Bem Comum, do valor e dignidade da Pessoa, seja qual for a sua realidade, do valor da Criação. Propostas que levem a processos de mudança de atitudes e comportamentos, em procuras inquietas da justiça.

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ENQUADRAMENTO 5/ Diferentes perspectivas sobre a realidade, diferentes olhares pascais sobre o Desenvolvimento: Vivemos tempos culturalmente individualistas e sectários, que potenciam a competição e o isolamento, mais do que a solidariedade e a abertura ao outro, a outras realidades. Por outro lado, a Cooperação e as Parcerias são temas muito caros ao Desenvolvimento, o qual só se realiza com a integração de diferentes dimensões, atores e sectores. De forma a ter diferentes perspetivas sobre a realidade que vivemos e também diferentes olhares de Esperança, de Páscoa, convidámos diversas pessoas de diferentes contextos a contribuir com a sua reflexão critica da realidade à luz das leituras que nos são propostas neste tempo litúrgico. Que o exercício que aceitaram fazer, cruzando a sua fé com a sua vida, inspire esse mesmo exercício em cada um de nós e das nossas comunidades.

A FEC agradece profundamente a todos os que aceitaram este desafio de partilhar o seu olhar sobre a realidade através de uma experiência cristã, procurando a Páscoa na sua Vida e no nosso tempo. Que esta “Parábola do Desenvolvimento”, a que todos somos chamados, ilumine esta Quaresma. 13 de Fevereiro de 2013

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FOME DE MUDANÇA 13 FEVEREIRO | QUARTA-FEIRA DE CINZAS


13 de Fevereiro | Quarta-feira de Cinzas

DESENVOLVIMENTO QUE PROMOVE O BEM COMUM REFERÊNCIAS •

LEITURA I - Joel 2, 12-18

SALMO RESPONSORIAL - Salmo 50 (51)

LEITURA II - 2 Cor 5, 20 - 6, 2

EVANGELHO - Mt 6, 1-6.16-18

REFLEXÃO PE. MANUEL MORUJÃO, sj Quem não anseia por uma vida melhor, desde o nível de condições materiais (casa e saúde, alimentação e trabalho) até ao nível mais profundamente humano e espiritual (amizade e alegria, aceitação e experiência de Deus amor)? Quem não deseja um mundo melhor, com mais justiça, paz e desenvolvimento, e uma Igreja mais ao jeito de Jesus, fraterna, unida e serviçal?

Todos trazemos no nosso coração uma profunda fome de mudança. Todas as ocasiões são boas para mudar para melhor, mas a quaresma é um tempo especialmente oportuno. «Este é o tempo favorável, é este o dia da salvação» (2 Cor 6,2). É o desafio da palavra de Deus, que nos é apresentado logo no átrio de entrada da quaresma, na quarta-feira de cinzas.

Como recorda um grande poeta português, «toda a vida é composta de mudança». O vírus do imobilismo, teimando em deixar tudo na mesma, como que nos faz viver conduzindo em marcha atrás. «A mudança é a lei da vida. E aqueles que apenas olham para o passado, ou para o presente, irão com certeza perder o futuro», assim afirmava o Presidente John Kennedy, apelando a trabalhar por um amanhã melhor. Sem mudança não há progresso. É preciso arriscar na mudança, pois o porto é o lugar mais seguro para um barco, mas o barco foi feito para navegar. Importa correr os riscos da navegação para o porto de uma vida melhor, mesmo que os ventos soprem em direção contrária. Mudar, verbo a conjugar começando por mim

É fácil apontar o dedo para o que está mal nos outros, na família, na Igreja, na sociedade, na política e na economia. Mas importa investir na mudança do mundo, começando por nós.

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13 de Fevereiro | Quarta-feira de Cinzas

DESENVOLVIMENTO QUE PROMOVE O BEM COMUM Não somos Secretários Gerais das Nações Unidas, nem Presidentes de nenhuma Nação ou Sumos Pontífices da Igreja. No entanto, cada um de nós é rei e senhor de si mesmo. O justo propósito de mudar o mundo deve começar pela mudança de cada um de nós, de mim. Recomendo esta oração que o Papa do Sorriso, João Paulo I, disse ser seu costume rezar: Senhor, que o mundo seja melhor tornando-me eu melhor. Que a Igreja seja mais santa convertendo-me eu a mais santo. Excelente estratégia para mudar o mundo para melhor.

Usando o título de um livro de Santa Teresa de Jesus, a vida é um «caminho de perfeição». Fazer de um caminho um parque de estacionamento é mau para todos. Nem nós cumprimos a nossa vocação de peregrinos do mais e do melhor, nem facilitamos a vida aos companheiros de viagem, estorvando o seu progresso.

Mudar mais do que um acontecimento passageiro, deve ser um estilo de vida, sacudindo rotinas e inércias, renunciando a comodismos e monotonias. Quem não progride, retrocede. «Quem deixa de ser melhor deixa de ser bom», afirma S. Bernardo, um contemporâneo e amigo no nosso primeiro rei D. Afonso Henriques. Um grande reformador da vida religiosa que foi S. João da Cruz assim nos recorda: «Na vida espiritual, não andar para a frente é recuar, não ganhar é perder». O clássico livro da Imitação de Cristo adverte sapiencialmente: «Sê apaixonado do progresso... Aproveita todas as ocasiões para avançar». O mundo melhor começa por mim. Os outros precisam do meu testemunho de mudança, sempre para mais e melhor. «Uma alma que se eleva, eleva o mundo», assim nos interpela Élizabeth Leseur, esposa de um ateu, uma grande cristã, que, depois da sua morte, converteu o marido viúvo com a leitura do seu diário. Ninguém nasce herói e santo. Mas todos podemos chegar a este patamar de vida de superior qualidade. Santo Agostinho é um claro exemplo de como é possível mudar de uma vida libertina, a nível moral e intelectual, para uma vida de grande exigência de amor altruísta e serviçal. Escreveu obras de grande profundidade de pensamento e é dos grandes génios da humanidade. Foi um Bispo de extremo zelo pastoral. Não desistir de mudar o mundo à nossa volta

Olhando para o que frequentemente nos apresentam os meios de comunicação social, pode parecer que o mal alastra sempre mais, como um gigante polvo com tentáculos omnipresentes. Será o mal mais forte que o bem? A mentira terá argumentos mais convincentes que a verdade?... A tentação de desânimo em lutar por um mundo melhor pode ser

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13 de Fevereiro | Quarta-feira de Cinzas

DESENVOLVIMENTO QUE PROMOVE O BEM COMUM muito forte. Mas é claro que só Deus é omnipotente e que a vitória final só a Ele pertence.

Perante as dificuldades da vida, como na tempestade no mar de Tiberíades, Cristo nos interpela: «Porque temeis, homens de pouca fé?» (Mt 8, 26). Se temos fé, devemos acreditar que o mundo melhor é possível na nossa família, no nosso grupo de trabalho, nas relações sociais, no campo da justiça e da paz no mundo.

A Madre Teresa de Calcutá que o Papa João Paulo II beatificou, poucos anos a seguir à sua morte, gostava de repetir: «Mais do que protestar contra as trevas, importa acender um simples fósforo». É claro que o gesto é bem pequeno, mas é o princípio de iluminação, ao passo que os protestos não trazem luz nenhuma e dificultam encontrar qualquer ideia luminosa.

São estes gestos simples de luz, nas trevas das dificuldades, que somos chamados a realizar cada dia. Assim seremos promotores de mudança para melhor. Conversão: nome cristão de mudança

Cristo, também hoje, nos repete como aos contremporâneos da sua encarnação: «O Reino de Deus está próximo de vós: convertei vos e acreditai na minha boa nova» (Mc 1, 15). Conversão significa exatamente mudança de orientação da vida: do egoísmo ao amor altruísta; da mediocridade de quem se contenta com não ser mau ao progresso na virtude; da desistência desanimada de mais e de melhor a um grande ideal de vida; do esquecimento de Deus ao fomento de uma relação profunda de amizade, pela prática da oração e por gestos de caridade solidária.

Ser cristão é viver em caminhada de conversão: «Um cristão é sempre um pagão em vias de conversão», recorda um grande teólogo jesuíta, Jean Daniélou.

Há que acreditar que vale a pena recomeçar de novo, tentar uma vez mais fazer as devidas mudanças. Deus o quer, os outros precisam e só assim viverei feliz. Manuel Morujão, sj

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RESPONSABILIDADE 17 FEVEREIRO | I DOMINGO DA QUARESMA


17 de Fevereiro | I Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO PELA RESPONSABILIDADE REFERÊNCIAS •

LEITURA I - Deut. 26, 4-10

SALMO RESPONSORIAL - Salmo 90 (91)

LEITURA II - Rom 10, 8-13

EVANGELHO - Lc 4, 1-13

REFLEXÃO PE. MIGUEL RIBEIRO, CSSp A palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração, adverte-nos com firmeza o apóstolo. E acrescenta: com o coração se acredita para obter a justiça. Esta palavra que se apresenta tão perto de cada um de nós tem em si o poder da palavra criadora. É também a palavra que alimentou os profetas da Antiga Aliança no seu clamor incansável contra a injustiça. É ainda a palavra que se fez carne e que agora aparece mais penetrante que uma espada de dois gumes. E por isso, chega ao coração e pede ao ser humano uma resposta livre e decidida; pede responsabilidade!

Quando a palavra divina se encontra com a responsabilidade humana, o resultado é uma intensa fome de mudança. Foi assim com os profetas daquele tempo e assim permanece com os do nosso. E assim nasce uma geração de bemaventurados: aqueles que vivem famintos e sedentos de justiça.

E nisto de bem-aventuranças, apetecia-me acrescentar uma outra: uma bem-aventurança que proclamasse felizes todos aqueles que não se deitam descansados e acordam sem terem dormido, porque se ‘inconformam’ com o grito do pobre, e porque ouviram a voz do “Deus que é”, e que viu a miséria, o sofrimento e a opressão que dominava sobre o Seu povo. Diante da “sarça” que arde no alto do monte, a “fome” pro-voca, superando o conformismo, qual “gaguez” a querer obstaculizar a mudança. Porque a palavra, que é alimento, foi digerida no coração, essa “terra” boa capaz de multiplicar trinta, sessenta ou cem por um.

A responsabilidade humana é essa capacidade de digerir de todo o coração a palavra-acontecimento na nossa existência cristã profética. É saber procurar nos “desertos” da vida de muita gente a palavra divina do desassossego, transportando em si os apelos que os “povos da fome” dirigem aos “povos da opulência”. É acreditar que cada injustiça não vem de um

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17 de Fevereiro | I Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO PELA RESPONSABILIDADE sujeito estrutural e impessoal, mas de pessoas livres, onde se incluem quem escreve e quem lê este texto. É reconhecer que “o desenvolvimento é vocação” e que esta supõe a “liberdade responsável da pessoa e dos povos”, não havendo lugar para qualquer estrutura que prescinda e se sobreponha à responsabilidade humana (cf. Caritas in veritate, 16-17).

Qualquer palavra – sabemo-lo –, encontra no silêncio o lugar ideal para ser escutada. A “mesa” em que a palavra divina pede para ser servida em alimento é o “deserto” em que superamos a tentação da fuga à nossa verdade. Ali nos encontramos com a nobre missão que o Pai nos confiou: amar a Verdade e responder-lhe em liberdade. E termino recorrendo às sábias palavras de Santo Agostinho especialista neste género de “refeições”: Ora, uma vez que viestes para receber este manjar, comei-o bem. Mas quando fordes embora, digeri-o bem. Com efeito, come-o bem e digere-o mal, aquele que ouve a palavra de Deus e não a põe em prática (cf. Mt 7, 26). Na verdade, a esse não lhe aproveita o suco proveitoso do alimento, mas com a indigestão acaba por vomitar o alimento cru e enjoativo. (Sermão 28, sobre o Salmo 104, pregado durante o jejum quaresmal. Trad.: Fr. Isidro Lamelas). Miguel Ribeiro, CSSp

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ABERTURA 24 FEVEREIRO | II DOMINGO DA QUARESMA


24 de Fevereiro | II Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO ABERTURA REFERÊNCIAS •

LEITURA I - Gén 15, 5-12.17-18

SALMO RESPONSORIAL - Salmo 26 (27)

LEITURA II - Filip 3, 17 – 4,1

EVANGELHO - Lc 9, 28b-36

REFLEXÃO CHRIS BAIN Presidente da CIDSE Sinais dos Tempos Acredito que verei a bondade do Senhor na terra dos vivos (Salmo 27,13)

Vivemos tempos paradoxais e de mudança. Este é simultaneamente um tempo de enorme esperança em que se celebra o progresso humano e a oportunidade e um tempo de indignação perante a contínua desigualdade e injustiça. Podemos ter esperança, porque milhões de pessoas em todo o mundo estão a conseguir sair da pobreza. Nos últimos 10 anos, mais de 50 milhões de crianças começaram a ir à escola na África Subsariana, enquanto as mortes por sarampo, essa doença fatal, diminuíram quase 75 por cento. Estamos a dar os primeiros passos na estrada que nos levará ao fim da pobreza extrema para todos. Mas estamos numa encruzilhada. Mantermo-nos como estamos vai continuar a significar que há mil milhões de pessoas que não veem satisfeitas as necessidades básicas da vida, que não têm dignidade humana básica. Como cristãos, somos chamados a seguir o caminho que garanta que cada mulher, criança e homem prospera e tem uma oportunidade justa na vida.

Se seguirmos por este novo caminho, temos de abordar um dos maiores escândalos do nosso tempo – a fome.

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24 de Fevereiro | II Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO ABERTURA Todas as noites, uma em cada oito mulheres, homens e crianças no mundo vão deitar-se com fome. Cada ano, 2,3 milhões de crianças morrem de malnutrição.

Contudo, há alimentos suficientes no mundo para alimentar todos.

Há alimentos suficientes para cada um, mas as pessoas não têm condições de os comprar. Os preços dos alimentos alcançaram recentemente os valores mais elevados em décadas e são preços cada vez mais voláteis. E nos países em desenvolvimento, os pobres gastam cerca de três quartos do seu rendimento em comida.

Os líderes mundiais reuniram-se em 2000 e definiram os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Prometeram que até 2015 reduziríamos a fome para metade, mas há muito poucas perspetivas de se manter essa promessa. Isto significa que estamos a faltar ao prometido com as gerações futuras: até 2025, quase mil milhões de jovens vão ser pobres por causa dos danos que lhes foram causados enquanto crianças pela fome e pela malnutrição.

Mesmo em Portugal e no Reino Unido, muitas pessoas que trabalham imenso lutam para conseguirem o dinheiro necessário para alimentarem as suas famílias, com os preços elevados dos alimentos a aumentarem ainda mais os efeitos da crise económica. E o clima está a mudar, o que torna o nosso futuro global cada vez mais incerto.

No verão passado, visitei a Margaret, uma camponesa local em Kitui, no centro do Quénia. Ela disse que tinham tido oito anos de seca, que as suas culturas não tinham vingado e que todos os seus animais tinham morrido. Os filhos tinham-se mudado para as cidades e a restante família dependia de alimentos dados pela diocese local e pelo governo para sobreviver. Nestes mesmos oito anos, o preço dos alimentos tinha duplicado! O escândalo é que ninguém precisa de passar fome ou estar malnutrido. O problema é inteiramente causado pelo ser humano. O sistema global através do qual os alimentos são produzidos, distribuídos e consumidos não está a conseguir ir ao encontro das necessidades da população mundial. Nos países ricos, quase metade dos alimentos produzidos são desperdiçados e deitados fora! Pequenos camponeses como a Margaret podem receber ajuda técnica e direitos sobre a terra, e pode ser-lhes estabelecido um preço justo para os seus produtos. As grandes empresas podem ser regulamentadas para que paguem a sua quota-parte de impostos e sejam honestas em relação às suas finanças.

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24 de Fevereiro | II Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO ABERTURA Uma resposta cristã

Vários temas emergem das leituras deste domingo, sobretudo do Evangelho, e eles podem-nos ajudar a compreender o que é uma resposta cristã à crise de alimentos e de fome. Para mim, os temas mais fortes têm a ver com a transformação, ou a mudança radical, e a importância da oração – em especial como precursora da ação. Transformação baseada no amor “Enquanto Ele orava, mudou-se a aparência do seu rosto, e a sua roupa tornou-se branca e resplandecente.” (Lc 9,29)

O relato da Transfiguração dá início à caminhada quaresmal no Evangelho de S. Lucas – uma caminhada de paradoxo e mudança. Pedro acabou de proclamar Jesus como o Messias e ambos estão a realizar as longas viagens em direção a Jerusalém.

Alguns comentadores acreditam que a transfiguração tinha a ver com Jesus obter a bênção final do Seu Pai. Outros acreditam que se tratou de permitir que os discípulos escolhidos tivessem um vislumbre da glória de Deus, e da Ressurreição que estava para vir, para que a compreendessem melhor.

Contudo, vejo o monte como uma linha que divide águas, uma encruzilhada. É um momento fundamental que liga o ministério inicial de Jesus ao seu destino em Jerusalém.

O percurso doloroso escolhido significará que daí a poucos meses o mundo dos discípulos será virado do avesso. Nada mais será o mesmo. A sua tarefa será transformarem o mundo orientados pelo Espírito, o que irá originar a mudança mais profunda que o mundo alguma vez viu.

O poder de concretizar esta mudança, esta transformação, não se baseia na riqueza ou no privilégio, mas sim no amor. Será centrado nesse último gesto de amor: dar a própria vida para que os outros possam viver. O amor que era Jesus perdoou aos pecadores, disse que deveríamos dar a outra face, queria que os ricos abdicassem da sua riqueza, disse que éramos todos iguais, falou de modo familiar às mulheres e deu poder aos pobres. Disse que o que fizéssemos ao menor dos seus irmãos era a Ele que o fazíamos.

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24 de Fevereiro | II Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO ABERTURA Este amor é desconfortável, inaceitável, irrealista, ingénuo. É demasiado dispendioso, quebra com todas as normas criadas pelos homens. Este amor está no centro da missão da Igreja: temos a responsabilidade de trabalhar em prol de um mundo que espera um Reino de Deus com paz e justiça aqui na terra e no qual cada pessoa possa prosperar Por isso, embora a ajuda e a caridade sejam necessárias para ajudar as pessoas que têm fome, também é importante trabalhar para transformar o sistema alimentar falhado que mantém as pessoas a passarem fome. A oração como precursor da ação para a justiça “Jesus tomou Pedro, Tiago e João e subiu a um monte para orar.” (Lc 9,28)

O Evangelho de S. Lucas coloca a oração no centro do ministério de Jesus. Gosto de pensar que este é o Jesus humano que se mantém em contacto com o Seu Pai – no momento do seu batismo, antes de selecionar os apóstolos, antes da crucificação e noutros momentos chave quando estavam para ser tomadas decisões fundamentais.

A minha organização, a CAFOD, acredita muito que a oração é uma parte essencial da nossa missão. Muitos dos que apoiam o nosso trabalho em prol da justiça social são como eu – impacientes, ativistas, por vezes zangados e acusadores. Por vezes, sentimos que tudo vai mudar através das nossas ações. Que arrogância da nossa parte! É um pouco como Pedro no cimo do monte precipitando-se a construir tendas e a pensar que era isso o que Deus queria, que essa era a única mudança necessária.

A oração requer espaço para reflexão e discernimento. Isto permite-nos reconhecer o dom da graça: que nada pode acontecer sem Deus e que tudo é possível com Ele. Chris Bain Presidente da CIDSE (Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e a Solidariedade) e líder da CAFOD, agência correspondente à FEC em Inglaterra e no País de Gales, mandatada pelos Bispos para lutar contra a pobreza e a injustiça em nome da comunidade católica.

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24 de Fevereiro | II Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO ABERTURA REFLEXÃO pe. Felix Lopes, sj Mudança interior que possibilita a prática da Justiça

Desde o princípio até os fins dos tempos, a História da Salvação, foi e sempre será o estabelecimento de uma aliança entre Deus e os homens. Uma aliança, que é fruto da gratuidade de Deus para com a humanidade. Mas há momentos em que esquecemos o significado dessa união. Neste segundo domingo da Quaresma daremos mais um passo para a subida à Festa da Páscoa, a qual nos faz renovar não só o nosso compromisso com o Deus da vida, mas a continuarmos a dar novo sentido a essa História de Salvação. A primeira leitura, do livro do Génesis, apresenta-nos a figura de Abraão o qual recebe a promessa de Deus (não só de uma numerosa descendência, mas de terras para sua descendência) e assim é considerado o justo por excelência. A minha experiência de missionário, e em especial a minha experiência em Moçambique, no meio de uma realidade sofrida, dura, marcada pela desigualdade social, miséria, precariedade, trouxe-me um questionamento: pelo que observamos nos dias de hoje, de fato a promessa concretizou-se? Abraão é o modelo do patriarca, lembrado por inúmeras gerações, que pela fé se entregou totalmente à Palavra de Deus. Mediante a promessa de Deus, também somos herdeiros dessa Aliança, mas as nossas práticas de egoísmo, o nosso medo do diferente, a nossa postura comodista, afastanos dessa herança de fé. Porém, assim como Abraão devemos, também, pela fé entregar-nos totalmente à Palavra de Deus. Palavra que nos leva a uma atitude de conversão. Quero salientar que essa atitude de conversão deve ser um sair de si para encontro do outro, um sinal de confiança, uma entrega, um sinal de abertura para o novo. Pois assim fez Abraão, saiu da sua pátria, correu o risco pela fé, todavia confiou inteiramente em Deus sem se opor à sua vontade. Hoje somos convidados a fazer a vontade do Pai, a deixar-nos confrontar com outras realidades, compartilhar não simplesmente o que temos, mas o que somos. Pois a promessa de Deus ainda não se consolidou por completo.

O Evangelho de São Lucas traz-nos a narrativa da Transfiguração como anúncio da Ressurreição, onde Jesus Ressuscitado se faz centro da Nova Aliança. Quero aqui trazer três aspetos que me chamam a atenção neste texto. O primeiro aspeto é que Lucas diz-nos que “Enquanto orava, o aspeto de seu rosto alterou-se...”, muitas das vezes somos tentados a olhar para essa alteração (Transfiguração) como algo físico e material, ou simplesmente por práticas assistencialistas achando que podem trazer verdadeiras mudanças. Devemos sim, entender essa Transfiguração como uma experiência de oração vivida na fé e na

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24 de Fevereiro | II Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO ABERTURA confiança num Deus que tem como seu filho, Jesus Cristo, com modelo de entrega total à vontade de Seu Pai. Desta forma, devemos ter uma experiência de fé fundada na oração que nos faça transfigurar do interior para a ação transformadora da nossa realidade, ou melhor, de realidade que precisam ser reconstruídas de forma justa. Em África/Moçambique, inúmeras foram as comunidades que visitei e onde presenciei o analfabetismo total, falta de saneamento básico, fome, a morte por causa de simples doenças. Perante tudo isto, poderíamos até dizer: é em função da pobreza e miséria que gera a ignorância... Não só, mas também pelo simples fato que faltam pessoas que possam ajudar estes a saírem da ignorância, que possam ir ao encontro desse povo num gesto de disponibilidade e compreensão. O segundo aspeto vem da afirmação de Pedro: ”Mestre, como é bom estarmos aqui...”, devemos ter o cuidado com a prática do comodismo, pois assim como Pedro podemos cair no erro de que Projeto da Nova Aliança se realizaria sem passar pele martírio. Ao exemplo de Abraão, Jesus, pela fé faz a vontade de Deus, porém não oferece sacrifícios para selar a Nova Aliança, mas tornase o próprio sacrifício. E nós de que forma nos encontramos hoje? À maneira de Pedro que se acomoda diante da realidade cómoda vivendo no mundo irreal, ou à maneira de Jesus que busca fazer a vontade de Deus, através de ação transformadora, que muda a sociedade. O terceiro aspeto é o da voz que vem nuvem: “Este é meu filho, o meu eleito: escutai-O.”, aqui não devemos ter dúvidas, é a voz do próprio Deus. O Deus que falou a Abraão, a Jesus, aos discípulos e fala agora conosco. Somos convidados a escutar Jesus Cristo, somos convidados a descer da montanha para seguirmos os Seus passos sem medo e sem medida. Essa atitude de escuta, a qual Deus pede a cada um de nós, leva-nos a uma liberdade interior, que nos possibilita a uma abertura exterior, que nos faz compreender a necessidade do outro e assim possamos Transfigurar-nos interiormente. Conviver e compartilhar a minha experiência de fé noutra Cultura, com outros Credos, noutro Continente (África), deu-me possibilidade de entender e aprender que a confiança em Deus é fundamental para uma vida de conversão.

São Paulo, na Carta aos Filipenses, mostra-nos que todos somos filhos de Deus, como constatamos na leitura do Génesis, somos pela fé da descendência de Abraão e o destino de todos é a glória de Deus. Paulo salienta que para chegarmos a essa glória devemos fazer a nossa caminhada de fé no amor e na fraternidade. Devemos ter em conta que fazer a vontade de Deus está muito para além de fazer algo por fazer, mas sim fazer valer a Justiça. Só com a prática da Justiça, a promessa feita à Abraão, a Nova Aliança feita com Jesus e a Transfiguração interior podem realizar-se por completo. Felix Lopes, sj

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TOMAR PARTE NA CRIAÇÃO 3 MARÇO | III DOMINGO DA QUARESMA


3 de Março | III Domingo da Quaresma

TOMAR PARTE NA CRIAÇÃO REFERÊNCIAS •

LEITURA I - Ex 3, 1-8a. 13-15

SALMO RESPONSORIAL - Salmo 102 (103)

LEITURA II - 1 Cor 10, 1-6. 10-12

EVANGELHO - Lc 13, 1-9

REFLEXÃO IRMÃ REGINA MATEUS, snsf Diretora do centro de formação de educadores de infância, bissau O Senhor me cria e me quer hoje. E porquê? Porque é que Deus teima em chamar Moisés, na sarça ardente? Porque é que Paulo era tão exigente com os Coríntios do seu tempo, insistindo que os seus antepassados tinham bebido todos de um rochedo espiritual, que era Cristo, mas que não agradaram a Deus? Porque é que Jesus, a revelação fiel de Deusamor, lança aquelas palavras duríssimas aos que lhe trouxeram a notícia de que uns galileus tinham sido degolados por Herodes, e as repete depois de recordar o episódio trágico da torre de Siloé que matou 18 pessoas, “Se não vos arrependerdes, morrereis todos da mesma maneira!

Porquê e para quê esta insistência da Palavra divina que procura encontrar-me e deixar-se encontrar? Que mistério insondável envolve o nosso ser, o mistério da vida?

E a vida vive-se de modo muito simples. É lá, onde se cruza o olhar de Deus e o nosso que ela acontece. Ele hoje quer recriar-me e quer que eu seja “criador” com Ele.

Portugal sofre, mas escandalizei-me com a crise em Portugal. Vi gente que se queixava, procurando afastar a esperança do seu coração e do coração dos outros, mas tinha adquirido hábitos caros, dos quais não prescindia. Estive uns meses em Portugal com uma furunculose generalizada, mas é verdade que fui excelentemente recebida pelas minhas irmãs, e bem atendida em todos os serviços de saúde, e nada me faltou. Pela graça de Deus curei-me. Também é verdade que nas minhas muitas idas e vindas, quase sem pensar, levava água e alguma coisa para comer e nada me faltava. A

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3 de Março | III Domingo da Quaresma

TOMAR PARTE NA CRIAÇÃO sobriedade acaba por ser consequência da vida ao lado dos pobres. Será que a nossa sociedade portuguesa está atenta ao chamamento de Deus? Ele que descer, porque ouve os gritos do seu povo, mas conta comigo como contou com Moisés. Queres ser com Jesus, novo Moisés que dá alento ao seu povo, e arrisca o comodismo da sua vida para “quebrar cadeias injustas”, dar liberdade aos cativos, e vista aos cegos?”

Um dia destes falei com um empregado da CARITAS aqui da Guiné, e ele dizia que há muito tempo não comia carne. Ontem observei um transeunte que se esforçava por comprar uma galinha, mas o preço era elevado e não conseguiu… E se falarmos dos medicamentos e do sistema de saúde? Venho de Angola (onde estive 12 anos), e cheguei à Guiné no início deste ano. A mesma dor, o mesmo sofrimento! Hoje apanhei boleia do Pe Jaquité que corria para Boor à procura de medicamento para a hipertensão. Deixou a doente a repousar no seminário; é que ela soluçava agitada, porque não podia comprar o remédio. Este seria de uns 3000 Fcfa, muito caro para as suas posses, mas nas farmácias de Bissau quadriplicava. É a fragilidade de um sistema que derruba os pobres… Então o Padre ia a um centro médico da Igreja católica, distante, à procura de medicamento, e do conselho do médico. Deus o ajude a salvar esta vida.

Por estes dias houve um grande acidente, a caminho de Antula, e já são uns 12 mortos! As débeis condições de vida fazem com que a morte esteja sempre muito perto. Todos os dias há alguém que falta ao emprego ou às aulas para ir ao funeral, ao “tchoro” de um mais velho, da mãe que falece ao dar à luz, ou de alguma criança inocente. São diferentes os olhares sobre a morte. Às vezes, na reunião familiar que se segue, vencem os ódios e domina o mal, então “identificarão” os culpados pela morte, e surgirão mais vítimas. Tantas prisões! Oxalá nestas viagens, que guineenses (ou angolanos…), fazem, normalmente para o interior do país, para enterrar os seus queridos e chorar por eles, levem paz, “se arrependam” e nos arrependamos,” para que não morramos todos da mesma maneira”. Quando Deus não está, reina a morte. E esta não precisa de grandes desculpas. Sem Deus somos prisioneiros do medo, e tudo nos ameaça. Senhor, dá-nos o dom da fé. Cria em nosso coração o mundo feito de esperança e paz, e faz de nós criadores de um mundo que seja acolhimento e confiança para os outros, vivido sob o olhar de Deus.

Faz-me Senhor, “tomar parte ativa na criação”! Aquela que cresce no meu íntimo e de que só o Espírito é capaz; O Senhor nos dê a coragem, a luz, abertura e a confiança para nos expormos à ação do seu Espírito.

Ensina-me a descalçar-me, porque a terra da vida é sagrada, e os mais pobres, os mais desprotegidos precisam que me aproxime deles sem os magoar, levando a palavra que realiza o que significa como presença concreta do Deus que desce até nós.

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3 de Março | III Domingo da Quaresma

TOMAR PARTE NA CRIAÇÃO O Senhor vê o sofrimento e envia-me. Hoje sou eu que preciso de libertar. Quero tomar parte na nova criação; a criação de um mundo que não endeusa o supérfluo, mas dá precedência à pessoa. Um mundo que denuncia sistemas de corrupção; que vê hoje o povo de Deus oprimido, e não teme prescindir de mordomias, quando descobre, como Moisés, que o seu modo de viver faz cair outros.

Não serei eu opressor dos meus irmãos/ãs?

Não invento contas de desvio ao fisco?

Não exijo subsídios de desemprego, sem que lute pelo trabalho?

Não pretendo condições excelentes, á custa de tudo e de todos?

Como recrio o meu interior e o dos outros? Senhor, aumenta em mim a fé, faz-me viver do rochedo espiritual que é Cristo, acolhendo os cuidados, que o mesmo Jesus, o vinhateiro me quer oferecer, a fim de que venha a dar fruto. Ir. Regina Mateus, snsf, Guiné-Bissau

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RECONCILIAÇÃO 10 MARÇO | IV DOMINGO DA QUARESMA


10 de Março | IV Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL REFERÊNCIAS •

LEITURA I - Jos 5, 9a.10-12

SALMO RESPONSORIAL - Salmo 33 (34)

LEITURA II - 2 Cor 5, 17-21

EVANGELHO - Lc 15, 1-3.11-32

REFLEXÃO IRMÃ MARIA LUÍS P. BARÃO, MISSIONÁRIA DOMINICANA DO ROSÁRIO O IV Domingo da Quaresma propõe à nossa consideração e reflexão, a Misericórdia de Deus, em contrapartida da atitude de dois irmãos que não se compreendiam; conversão e reconciliação, como condição indispensável para o itinerário quaresmal.

A meditação das três leituras deste domingo, deverá ajudar-nos a fazer um enquadramento mais sério e completo do viver cristão que ultrapassa toda a expetativa de um simples formalismo de cumpridores de umas normas já estabelecidas, para ir mais além, na nossa vivência quotidiana, da Boa Nova de Jesus Cristo que deve transformar os nossos corações, a fim de que haja lugar para a festa, na comunidade dos crentes, festa da partilha dos bens da terra, da partilha do amor 1 | COM JOSUÉ, COMO ENCARAR O TEMPO DE MUDANÇA? Nesta primeira leitura, mais um passo nos é apresentado, para a nossa caminhada quaresmal. É a saída do Egipto para a terra da promessa. No tempo de deserto, tempo de provação… Deus que cuidou do seu povo, através de Moisés, agora, com Josué, mostra-se provedor das necessidades básicas do seu povo, com o maná caído do céu! Mostra-se um Deus providente, atento às necessidades do povo sofredor, enquanto peregrino no deserto, para a terra da promessa. Uma vez na Terra Prometida, terminou a viagem; o povo estabelece-se na planície de Jericó e celebra a festa da chegada, a festa da Páscoa com os frutos da terra, porque já pode cultivar! Festa que também marca o início de uma nova etapa na vida do povo (libertação). O maná cede à criatividade e ao engenho humano. Todos ao trabalho, a fim de comer dos frutos da terra. Não será essa uma forma de restaurar a dignidade de um povo? Ao invés de viver sempre de

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10 de Março | IV Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL “mãos estendidas”, para pedir ou para dar (…)? Em circunstâncias normais, as pessoas devem providenciar o seu alimento, através do trabalho a fim de comer os frutos que a mãe terra nos dá (Gn2,15). Um caminho de desenvolvimento humano integral. 2 | O MANÁ DEIXOU DE CAIR

Agora que o maná deixou de cair, como encarar a situação? Que terá feito Josué, chefe do povo, perante tal mudança? Como responderia a esse desafio? Uma reflexão se impõe e se pode aplicar a esta nossa realidade (angolana), em que durante décadas fomos obrigados a viver de “mãos estendidas” para mendigar um “grão de milho”, … porque a guerra se impôs a todos o níveis e ninguém por mais que quisesse cultivar a terra, podia fazê-lo porque a situação era de contínua “emergência”, e o momento era de “vida” ou “morte”!... Naquele tempo então não se vivia; “sobrevivia-se”! Éramos um povo que deambulava, correndo de Norte a Sul, de Leste a Oeste, …sem Pão, nem Paz, sem Harmonia, mas com a firme certeza de ter Deus Pai de todos os povos! “Se Deus acompanhou o povo de Israel, no deserto, durante 40 anos, também nos acompanhará a nós, e um dia o maná cessará e dará lugar à mandioca, à batata-doce (tubérculos da terra) …” (palavras de uma mãe de família, cansada de sofrer; porém, mulher de muita fé)! A Palavra de Deus escutada e meditada, sempre alentou a nossa fé e deu firmeza às nossas mãos e pés “vacilantes”! Quaresma é um tempo que nos é dado para fortalecer o nosso itinerário cristão. Um peregrinar no deserto da vida, a fim de chegarmos à Páscoa com os “pães ázimos“ da graça que se nos oferece através: da escuta e meditação da Palavra de Deus, da maior frequência sacramental, da prática da caridade, da partilha, etc. 3 | O NOSSO DEUS É MISERICORDIOSO: NÃO GUARDA RESSENTIMENTO

A parábola que nos é narrada hoje, muitos de nós a conhece como a “A Parábola do Filho”. A parábola não fala só de um filho, mas sim de dois. É verdade que o filho mais novo parece tomar o protagonismo ao dizer: “Pai, dá-me a parte da herança que me toca.” Terá sido um filho ousado? Libertino? Insubmisso? Que Bom pai que não refuta sequer a atitude do filho! Então o pai não devia inquirir, indagar o filho sobre a tomada dessa decisão, se ele tinha tudo em casa? Atitude desconcertante! Deus atende os seus filhos e filhas, até mesmo na sua rebeldia! Devemos perguntar-nos sobre o porquê dessa atitude do pai. Será em detrimento da liberdade que nos deu? Sim, pela liberdade que Deus nos deu ao virmos a este mundo, Ele jamais nos forçará a fazer algo contra a nossa vontade; antes pelo contrário, dar-nos-á tempo suficiente para amadurecermos e cairmos na conta dos nossos erros e expetativas, para nos levantarmos e corrermos à procura do Bem.

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10 de Março | IV Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL Jesus Cristo ensina-nos hoje, quão grande é o amor de Deus que nãos nos condena pelos nossos pecados e crimes, antes pelo contrário, fica à nossa espera, até que nos decidamos a pôr cobro às nossas atitudes infantis e a Ele aderirmos. O Deus de Jesus Cristo é um Deus clemente e cheio de compaixão! O evangelista S. João diz-nos que Deus é Amor. O amor só quer ser correspondido com amor. O Deus que enche de beijos quem esteve perdido e voltou a encontrar-se; o Deus que convida para a festa do regresso e começo de uma vida nova. O Deus paciente, porque sabe esperar… 4 | ”HÁ TANTOS ANOS QUE EU TE SIRVO…”

A meio da festa, chega o irmão mais velho. Pergunta sobre o que se passa no bairro e informam-no do “regresso” do seu irmão que “estava morto” e “voltou à vida…”(v 32). Vejamos como pode a inveja deturpar as nossas relações na comunidade cristã! O pai ordena que a festa comece, para celebrar a vida, a libertação, o regresso à casa, o início de novas relações. O filho mais velho não quer entrar nessa dinâmica da alegria e festa, antes pelo contrário, reclama por aquilo que não lhe foi atribuído, sendo o bom e melhor dos filhos que nunca “transgrediu” nem se quer, uma das Suas ordens. Isto é inveja! Quem é invejoso, na linguagem de S. Paulo, ainda vive segundo a carne e não segundo o Espírito, sob o controle dos nossos desejos (1Cor3,3), (Gál5,26). Sim, a inveja, esse sentimento de possuir aquilo que o outro possui; o desgosto pelo bem que o outro possui, como corrigi-lo e bani-lo do nosso meio, neste tempo de quaresma? Que invejam hoje as pessoas? A inteligência dos outros, os campos, casas, carros, casa de praia, a vida da graça? A impressão que se tem é de que as pessoas facilmente choram com quem chora e dificilmente se alegram com quem está alegre, por causa da inveja. Jesus Cristo, quer hoje ensinar-nos que o Pai nos quer pessoas felizes com a felicidade das outras pessoas; alegres na alegria das outras pessoas. Que participemos da festa da comunidade; que participemos sem ser meros expetadores. Que nos abramos à sua ação salvadora e libertadora. Assim sendo, participaremos ativamente nesta Parábola do Desenvolvimento, com o coração renovado. 5 | A RECONCILIAÇÃO DOM E TAREFA

Na 2ª leitura deste IV Domingo da Quaresma, S. Paulo fala-nos da reconciliação. A reconciliação, diz S. Paulo, não é realizada de forma milagrosa por Deus. Ele tem os Seus canais: os Arautos do Evangelho, os pregadores/as, os catequistas, que ao pregar a Palavra preparam o ambiente do nascimento do homem novo, da mulher nova. Quem os escuta? Já no AT, Deus revela-se como um Deus de ternura e piedade (Ex34,6). Ele não guarda ressentimento, antes pelo contrário, Ele dá sempre o primeiro passo. Quantas vezes o povo rompeu com a aliança feita no Sinai. Porém, Deus não se resigna;

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10 de Março | IV Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL Ele tomará a iniciativa duma nova aliança. (Ez36,24-30). A nova criação implica um novo estilo de vida, novas relações. A reconciliação tem a ver com a restauração e a reparação de relações deterioradas, rompidas quer seja com Deus, quer com os irmãos e com as irmãs ou com qualquer outra pessoa. Deus é a fonte da reconciliação, por Cristo. Retomando a nossa reflexão acerca dos dois irmãos, Deus, o Misericordioso permitiria que o mais velho dos irmãos continuasse na sua inveja e “amuado” pelo bem que se fez ao mais novo que voltou à vida? Deixar-se-ia vencer pela atitude do filho mais velho, sem que os dois se reconciliassem? O Pai- Deus não é entendido pelos Seus filhos; mas Ele os entende e nos entende, nas nossas atitudes farisaicas e mesquinhas. A 2ª leitura é um convite a aceitar a reconciliação connosco mesmos, com Deus, com os irmãos, com as irmãs. Perante a crise de valores, Jesus convida-nos a encontrar nesta parábola, remédio para os nossos males, Amando e deixando-nos Amar. Aqui em Angola, este Domingo é reservado como dia de oração e sacrifício pela reconciliação nacional. “Mudar os nossos corações e fazer-nos triunfar sobre o poder do pecado e da divisão. O Evangelho ensina-nos que a reconciliação - uma verdadeira reconciliação - só pode ser fruto de uma conversão, de uma mudança do coração de um novo modo de pensar. Ensina-nos que só a força do amor de Deus pode” (Papa Bento XVI, aquando da sua visita a Angola, em Março de 2009). Quando estávamos” mortos pelos nossos pecados” (Ef2,5), o seu amor e a sua misericórdia deram-nos a reconciliação e a vida nova em Cristo A reconciliação é caminho para a participação na festa que Deus nos preparou desde a criação do mundo. A Bíblia dá-nos muitos exemplos disso e na nossa realidade também os há e exemplos gratificantes de pessoas que durante anos viveram separadas, mas que hoje gozam da felicidade de serem pessoas reconciliadas, porque tomaram consciência de que só o perdão, a reconciliação, na comunidade, na família e na sociedade tornam as pessoas novas e renovadas, para um melhor enquadramento das suas vidas, nessa dinâmica de caminhada quaresmal, rumo à Páscoa da Ressurreição. Pessoas, comunidades e sociedades desavindas jamais poderão construir algo novo, porque desperdiçam energias por aquilo que não edifica. Ir. Maria Luís P. Barão, Missionária Dominicana do Rosário Boa Entrada, Província do Kwanza-Sul, Angola

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HUMILDADE 12 MARÇO | INÍCIO DO CONCLAVE


12 de Março | Início do Conclave

DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM REFERÊNCIA •

Lc 5, 1-11

REFLEXÃO IRMÃ RITA CORTEZ, ACI HUMILDADE: a forma divina de amar Em que estou a pensar quando digo ou me refiro que aquela pessoa é humilde?

Será que penso em alguém mais ou menos calado, que roça a timidez, pouco comunicativo, reservado, que foge de protagonismos, chamando, paradoxalmente, à atenção por passar desapercebido… ?

Será que penso num caminho ou grau de perfeição da vida espiritual que deveria atingir ou propor-me até mesmo nesta caminhada quaresmal?

Será que….

Proponho aqui uma reflexão que nos situa num ponto de partida diferente. A humildade como terra de possibilidade para construção cristã – desde Cristo – da minha própria história, do que vou sendo e do que estou chamada a ser. Dito de outra forma a humildade como “terra boa” para crescer em Cristo e ir ajustando pacífica e consoladoramente o mundo dos meus interesses, afetos e desejos ao projeto do Reino do Pai. Ajustar o meu mundo ao mundo e desejos de Deus.

A humildade como o “faro” que me orienta e dinamiza a não querer mais que seguir o Espírito do Senhor Jesus sobre a história, sobre a vida, sobre o mundo num reconhecimento e afirmação permanentes, com a vida, da referência à Alteridade; de saber-me recebida de Outro e perceber o mundo como recebido.

Trata-se, estou com-vencida, não de atingir um grau de perfeição mas de atração à Pessoa de Jesus de tal forma que

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12 de Março | Início do Conclave

DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM configurando-me com Ele vou assumindo a minha condição de ser criatura, de crer, pouco a pouco, que não sou deus nem princípio e fundamento de nada, e que nada, absolutamente nada, por importante e forte que seja ou pareça tem por si só consistência, se não for referido na sua origem e razão ao Eterno Senhor de Todas as Coisas. “Caminha humildemente com o teu Deus”, diz o profeta. Lado a lado, vendo o que Ele vê e como Ele vê. Um modo diferente de ver a vida em que sou chamada, a cada instante, a descentrar-me de mim mesma para pôr-me em atitude de serviço e entrega, “soltando amarras” e abrir-me ao “domínio” de Deus sobre mim, de tal forma que o que me mova e arraste não são “as outras coisas criadas”1 mas o desejo de identificar-me com Jesus para que “seguindo-O na pena, também O siga na glória”2. humildade crucificada

Como os discípulos, também nós demoramos a compreender as últimas consequências e implicações que tem seguir o Mestre. Não estaremos, muitas vezes, como os discípulos, pouco dispostos a entrar no caminho da cruz? A nossa falta de lucidez – primeiro estádio para a humildade – mantêm-nos longe do Mestre e do que “move” o Seu coração. Quantas vezes, nos empenhamos ridiculamente, como Tiago e João, em ser os primeiros e pedir que nos instale um à direita e outro à esquerda?3 Quantas vezes, e sob aparência de bem4 e numa tremenda atitude de falsa humildade, não procuramos e construímos “lugares privilegiados” que só alimentam o nosso desejo de protagonismo, sem nos darmos conta da ausência radical do Mestre de tais contextos de honra e de prestígio?

Precisamos como Igreja, como comunidades cristãs e enquanto seguidores de Cristo de gerar espaços de autenticidade cristã, espaços de conversão por adesão de coração ao Senhor Jesus, deixando-nos impregnar e afetar pela sua humildade, libertando-nos do que em nós é soberba e desejos de poder. Precisamos, com urgência, correndo o risco de ser tarde, de ser com a vida, exemplo de Cristo pobre e humilde. Precisamos que Jesus Crucificado emerja no mundo dos nossos afetos e desejos e nos recorde o seu modo de proceder.

Processar a nossa sensibilidade diante de Jesus Crucificado é um indicador da qualidade dos nossos afetos, da capacidade que tenho de me descentrar e viver para o outro e de purificar as intenções e motivações que me movem a amar e entregar a vida.

EE[23] EE [95] 3 Cfr. Mc 10, 35-37 4 EE [331-332] 1 2

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12 de Março | Início do Conclave

DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM Processar a nossa sensibilidade diante de Jesus Crucificado poe à prova a autenticidade do meu seguimento. “Prova-nos” no Seguimento e no Amor. Quando sigo, a quem sigo? Quando amo, a quem amo? TRÊS ícones

1. A SENSIBILIDADE DOS QUE PASSAVAM POR ALI

“Os que passavam injuriavam-no, meneando a cabeça e dizendo: «Tu, que destruías o templo e o reedificavas em três dias, salva-te a ti mesmo! Se és Filho de Deus, desce da cruz!» Os sumos sacerdotes com os doutores da Lei e os anciãos também zombavam dele…” Mt 27, 35 A sensibilidade dos que passavam… Os que passamos por ali, sempre que na nossa vida a cruz não é motivo de escândalo e passamos ao largo, ficando tudo e todos na mesma. Pode, por vezes, assomar-se à minha “pele” um ligeiro sopro de pena que um simples desvio do olhar rapidamente faz desaparecer. Na realidade, a minha vida em nada se altera porque a minha sensibilidade não está afetada pelos sentimentos que movem o coração de Cristo: defender a dignidade dos mais pobres, acolher os que ninguém quer e abraçar e proteger os mais frágeis e indefesos, colocando-os no centro da minha vida. No fundo, eu passo por ali mas sem mudar de rumo, seguindo o meu caminho. A minha vida. Os sumos sacerdotes com os doutores da lei…Somos nós quando cumpridores mas não seguidores. A fé que professamos traduz-se, na nossa vida, não mais do que um conjunto de práticas piedosas que tentamos, com escrúpulo, cumprir. Somos fiéis cumpridores, não seguidores apaixonados que se desvivem para tornar viva a Boa Nova do Mestre. Revela que, em boa verdade, entre mim e Jesus pouco existe. As palavras que digo e as obras que faço vinculam-me apenas comigo mesmo. Quando sigo, a quem sigo? Quando amo, a quem amo?

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12 de Março | Início do Conclave

DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM

2. A SENSIBILIDADE DE PEDRO

“Tomando-o de parte, Pedro começou a repreendê-lo, dizendo: «Deus te livre, Senhor! Isso nunca te há-de acontecer!» Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: «Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um estorvo, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens!»5 Isso nunca Te irá acontecer… revela a presença em nós, como em Pedro, de um desejo bondoso mas desorientado porque quer amar a Deus ainda desde si próprio. Um desejo que nos leva a querer manipular a forma como Deus ama. Pedro revela-nos, por um lado, um coração apaixonado por Cristo, mas, por outro, ainda pouco capaz de uma adesão total. Revela a nossa cobardia que se resiste a seguir a um fracassado; a falta de coragem para uma entrega radical. Quando sigo, a quem sigo? Quando amo, a quem amo?

3. A SENSIBILIDADE DA MULHER

“Enquanto estava à mesa, aproximou-se dele uma mulher, que trazia um frasco de alabastro com um perfume de alto preço e derramou-lho sobre a cabeça. Ao verem isto, os discípulos ficaram indignados e disseram: «Para quê este desperdício?”6 Um perfume de alto preço… revela a atitude de quem perante a dificuldade, a dor, o desprezo, a solidão é capaz de dar e entregar o melhor de si mesmo… de se esquecer de si e abrir-se ao outro, “partindo-se” e “derramando-se”, sem ressentimento mas num gesto de pura gratuidade e amor, amando sem medida e até ao fim de si mesma. Dando o melhor de si mesma… um perfume de alto preço. Derramou-lho sobre a cabeça…revela e antecipa com a sua própria vida a agonia de Jesus, assumindo-o num gesto de adoração e de adesão total. Aceita e acolhe incondicionalmente, naquele gesto de total e radical humildade, o Senhor Jesus. Afirma o projeto de Jesus até ao fim como única possibilidade de gerar Vida , como fragância que se espalha e chega a todos, sem exclusão. Quando sigo, a quem sigo? Quando amo, a quem amo? 5 6

Mt 16, 22-23 Mt 26, 6-13

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12 de Março | Início do Conclave

DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM uma forma possível de amar

Orientar o nosso desejo para Jesus Crucificado é a possibilidade real de por à prova a autenticidade do nosso seguimento no amor e no serviço. É alargar o horizonte do nosso coração dando entrada à forma divina de amar, sem que nada nem ninguém, por repugnante e doloroso que (me) seja, fique fora dessa força que nos move e move o mundo e que afirmamos ser o Amor.

Orientar o nosso desejo para Jesus Crucificado é “tocar” as humildes entranhas de Jesus e aprender, humildemente, a amar. Ir. Rita Cortez, aci Escrava do Sagrado Coração de Jesus

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DISPONIBILIDADE 17 MARÇO | V DOMINGO DA QUARESMA


17 de Março | V Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO MUDANÇA REFERÊNCIAS •

LEITURA I - Is 43, 16-21

SALMO RESPONSORIAL - Salmo 125 (126)

LEITURA II - Filip 3, 8-14

EVANGELHO - Jo 8, 1-11

REFLEXÃO Mensagem quaresmal do cardeal Jorge Mario Bergoglio (papa Francisco) Buenos Aires, 13.2.2013

«Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes, convertei-vos ao Senhor, vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia» (Joel 2, 13)

Pouco a pouco acostumámo-nos a ouvir e ver, através dos meios de comunicação, a crónica negra da sociedade contemporânea, apresentada quase com perverso regozijo, e também nos acostumámos a tocá-la e a senti-la em torno de nós e na nossa própria carne.

O drama está na rua, no bairro, na nossa casa e, por que não, no nosso coração. Convivemos com a violência que mata, que destrói famílias, aviva guerras e conflitos em muitos países do mundo. Convivemos com a inveja, o ódio, a calúnia, o mundanismo no nosso coração.

O sofrimento de inocentes e pacíficos não deixa de nos esbofetear; o desprezo pelos direitos das pessoas e dos povos frágeis não nos são tão distantes; o império do dinheiro com os seus efeitos demoníacos como a droga, a corrupção, o tráfico humano - incluindo crianças – a par da miséria material e moral são moeda corrente.

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17 de Março | V Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO MUDANÇA A destruição do trabalho digno, as emigrações dolorosas e a falta de futuro unem-se também a esta sinfonia. Os nossos erros e pecados como Igreja também não ficam fora deste panorama.

Os egoísmos mais pessoais justificados, e não por causa disso menores, a falta de valores éticos dentro de uma sociedade que faz metástases nas famílias, na convivência dos bairros, vilas e cidades, falam-nos da nossa limitação, da nossa debilidade, e da nossa incapacidade de transformar esta lista inumerável de realidades destrutivas.

A armadilha da impotência leva-nos a pensar: Será que faz sentido tentar mudar tudo isto? Podemos fazer algo diante desta situação? Vale a pena tentá-lo se o mundo continua a sua dança carnavalesca disfarçando tudo por um tempo? No entanto, quando a máscara cai, aparece a verdade e, embora para muitos soe anacrónico dizê-lo, reaparece o pecado, que fere a nossa carne com toda a sua força destrutiva, desfigurando os destinos do mundo e da história.

A Quaresma apresenta-se-nos como grito de verdade e de esperança certa que nos responde que sim, que é possível não nos maquilharmos e esboçarmos sorrisos de plástico como se nada se passasse.

Sim, é possível que tudo seja novo e diferente porque Deus continua a ser «rico em bondade e misericórdia, sempre disposto a perdoar», e encoraja-nos a começar uma e outra vez.

Hoje, novamente, somos convidados a empreender um caminho pascal até à Vida, caminho que inclui a cruz e a renúncia; que será incómodo mas não estéril. Somos convidados a reconhecer que algo não está bem em nós mesmos, na sociedade ou na Igreja, a mudar, a fazer uma viragem, a convertermo-nos.

Neste dia, são fortes e desafiadoras as palavras do profeta Joel: «Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes, convertei-vos ao Senhor, vosso Deus». São um convite a todo o povo, ninguém está excluído.

Rasguem o coração e não as roupas de uma penitência artificial sem garantias de futuro.

Rasguem o coração e não as roupas de um jejum formal e de cumprimento que nos continua a manter satisfeitos.

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17 de Março | V Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO MUDANÇA Rasguem o coração e não as roupas de uma oração superficial e egoísta que não chega às entranhas da própria vida para a deixar tocar por Deus.

Rasguem os corações para dizer com o salmista : «pecámos». «A ferida da alma é o pecado: Oh pobre ferido, reconhece o teu Médico! Mostra-lhe as chagas das tuas culpas. E uma vez que a ele não são ocultos os nossos pensamentos, faz-lhe sentir o gemido do teu coração. Leva-o à compaixão com as tuas lágrimas, com a tua insistência, importuna-o! Que ouça os teus suspiros, que a tua dor chegue até Ele, de modo que, no fim, possa dizer-te: “O Senhor perdoou o teu pecado”»” (S. Gregório Magno).

Esta é a realidade da nossa condição humana. Esta é a verdade que pode aproximar-nos da autêntica reconciliação… com Deus e com os homens. Não se trata de desacreditar a autoestima mas de penetrar no mais fundo do nosso coração e cuidar do mistério do sofrimento e da dor que nos liga desde há séculos, milhares de anos... desde sempre.

Rasguem os corações para que por essa fenda possamos olharmo-nos de verdade.

Rasguem os corações, abram os vossos corações, porque só num coração rasgado e aberto pode entrar o amor misericordioso do Pai que nos ama e nos cura.

Rasguem os corações diz o profeta, e Paulo pede-nos quase de joelhos “deixai-vos reconciliar com Deus”. Mudar o modo de vida é o sinal e fruto deste coração reconciliado por um amor que nos ultrapassa.

Este é o convite, frente a tantas feridas que nos magoam e que nos podem levar à tentação de endurecermos: Rasgai os corações para experimentar na oração silenciosa e serena a suavidade da ternura de Deus.

Rasguem os corações para sentir o eco de tantas vidas rasgadas e que a indiferença não nos deixe inertes.

Rasguem os corações para poder amar com o amor com que somos amados, consolar com o consolo que somos consolados e partilhar o que recebemos.

Este tempo litúrgico que inicia hoje a Igreja não é só para nós mas também para a transformação da nossa família, da nossa comunidade, da nossa Igreja, da nossa pátria, do mundo inteiro.

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17 de Março | V Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO MUDANÇA São 40 dias para que nos convertamos à santidade mesma de Deus; nos convertamos em colaboradores que recebemos a graça e a possibilidade de reconstruir a vida humana para que todo o homem experimente a salvação que Cristo nos ganhou com sua a morte e ressurreição.

Juntamente com a oração e a penitência, como sinal da nossa fé na força da Páscoa que tudo transforma, também nos dispomos a começar como nos outros anos o nosso “Gesto quaresmal solidário”.

Como Igreja em Buenos Aires que marcha rumo à Páscoa e que crê que o Reino de Deus é possível necessitamos que, dos nossos corações rasgados pelo desejo de conversão e pelo amor, brote a graça e o gesto eficaz que alivie a dor de tantos irmãos que caminham ao nosso lado.

«Nenhum ato de virtude pode ser grande se dele não resulta proveito para os outros… Assim pois, por mais que passes o dia em jejuns, por mais que durmas sobre o chão duro, e comas cinza, e suspires continuamente, se não fazes bem a outros, não fazes nada grande». (São João Crisóstomo)

Este ano da fé que percorremos é também a oportunidade que Deus nos dá para crescer e amadurecer no encontro com o Senhor que se faz visível no rosto sofredor de tantas crianças sem futuro, nas mãos trementes dos idosos esquecidos e nos joelhos vacilantes de tantas famílias que continuam a dar o peito à vida sem encontrar ninguém que as sustenha.

Desejo-vos uma santa da Quaresma, penitencial e fecunda Quaresma e, por favor, peço-vos que rezem por mim. Que Jesus vos abençoe e a Virgem Santa vos proteja. Cardeal Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco)

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17 de Março | V Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO MUDANÇA D. ANTÓNIO COUTO BISPO DA DIOCESE DE LAMEGO

DEUS NÃO TEM PLANOS, TEM SURPRESAS!

1. A «caminhada« quaresmal aproxima-se da sua meta e do seu verdadeiro ponto de partida: a Cruz Gloriosa onde resplandece para sempre o Rosto do imenso, indizível, surpreendente amor de Deus. Nesta altura do percurso (supõe-se que encetámos uma subida espiritual: entenda-se no Espírito Santo e com o Espírito Santo), baptizados e catecúmenos devem estar já a ser Iluminados por essa luz, a ponto de se desfazerem das «obras das trevas» e de abraçarem as «obras da Luz», como verdadeiros discípulos que seguem o Mestre até ao fim, que é também o princípio, a Fonte da Vida verdadeira donde jorra o Espírito Santo (sempre Actos 2,32-33; João 19,30 e 34; 7,37-39). Os catecúmenos têm neste Domingo V da Quaresma os seus terceiros «escrutínios»: última «chamada» para a Liberdade antes da Noite Pascal Baptismal.

2. Deus não tem planos, tem surpresas. É, portanto, sempre desmedido e surpreendente quanto vem de Deus. Brota do excesso de Deus, que supera em muito as nossas necessidades e capacidades. Aí está, neste Domingo V da Quaresma, a imensa lição do Evangelho de João 8,1-11. Esta passagem parece uma incrustação no IV Evangelho, pois interrompe o discurso de Jesus durante a Festa das Tendas, não aparece nos manuscritos mais antigos e nos códices antigos mais importantes dos Evangelhos, nem nos Padres gregos. Omitem-na nos seus comentários Orígenes, João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia, Cirilo de Alexandria, Teófilo, Tertuliano, Cipriano, Hilário e Taciano. Os Padres latinos Ambrósio, Agostinho e Jerónimo conhecem-na noutro lugar. Alguns manuscritos situam esta perícope no Evangelho de João depois de 7,37, outros depois de 7,44, ou mesmo no final. Outros ainda introduzem-na no Evangelho de Lucas (Lc 21,37 e seguintes). Por outro lado, a perícope não tem o estilo joanino. Está, de facto, mais perto do estilo lucano.

3. Fixemos a nossa atenção no movimento do texto. Jesus SENTA-SE como MESTRE, para ensinar, e SENTADO como MESTRE permanece na cena até ao fim. Apenas se inclina para o chão, e de novo se endireita, nunca deixando, porém, a posição de SENTADO. Portanto, permanecendo SENTADO, está sempre na cátedra a ensinar. Nele tudo é lição. São lição os seus gestos; são lição as suas palavras.

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17 de Março | V Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO MUDANÇA 4. Entram na cena os «impecáveis» do costume: os escribas e os fariseus. Desta vez não vêm sós. Trazem uma mulher apanhada em flagrante adultério. Eles conhecem a Lei de Moisés, que citam a propósito, para dizer que tais mulheres devem ser apedrejadas. Mas, roídos de malícia, querem saber o que, sobre este assunto preciso, tem a dizer o MESTRE Jesus. Só isto: permanecendo SENTADO como MESTRE, inclinou-se, e, COM O DEDO, escrevia no chão.

5. Os escribas e fariseus tinham compreendido mal a Lei, citando só metade, pois a Lei diz que, em caso de adultério, morrerão os dois: o homem e a mulher (Levítico 20,10; Deuteronómio 22,22). Tão-pouco estavam a compreender a resposta do MESTRE Jesus ao parecer jurídico que lhe tinham pedido. E era clara a lição: na verdade, há apenas outra circunstância na Escritura Santa em que alguém escreve COM O DEDO: as tábuas de pedra escritas pelo DEDO DE DEUS no Sinai (Êxodo 31,18; Deuteronómio 9,10). Claramente: o MESTRE que escrevia COM O DEDO era Deus! Conhecia a Lei, mas conhecia também os Profetas, pois ao ESCREVER NO CHÃO, está a ler Jeremias que diz que «os que se afastam de YHWH serão escritos no chão» (17,13). Jesus conhecia a Lei e os Profetas, isto é, a inteira Escritura Santa, e conhecia também os homens por dentro (João 2,24-25). Permanecendo SENTADO, endireitou-se e disselhes: «Aquele que estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra!». Inclinou-se novamente e continuava a escrever. Saíram todos, a começar pelos mais velhos, diz-nos o narrador, recorrendo com certeza outra vez a Jeremias 17,13, que diz ainda que «os que abandonam YHWH serão cobertos de vergonha». É esta vergonha que faz com que todos se vão embora, um após outro, a começar pelos mais velhos, os primeiros a sentir o peso da vergonha. Ontem como hoje: os mais novos chegam lá sempre depois.

6. Ao comentar este episódio, Santo Agostinho diz luminosamente que só ficaram dois em cena: a miserável e a misericórdia! Os escribas e fariseus prenderam e acusaram a mulher, mas foram eles que se sentiram acusados, desvendados, lidos, descobertos no esconderijo do seu próprio pecado! Nem sequer viram a mulher como uma pessoa: nunca falam com ela ou para ela; falam simplesmente dela, como se de um objecto se tratasse. É o MESTRE Jesus o primeiro na cena que fala para a mulher, e não a prende, mas liberta-a, colocando-a no caminho novo da liberdade: «Vai e não tornes a pecar», diz-lhe Jesus. Aproximou-se um homem habituado ao uso inveterado do silêncio o seu olhar varrendo toda a fraude das palavras Aproximou-se firme e impoluto

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17 de Março | V Domingo da Quaresma

DESENVOLVIMENTO COMO MUDANÇA Esquadrinhou as faces oxidadas da mentira Olhou depois o chão como quem abre um sepulcro e lentamente desenhou o puro rosto da verdade sobre a areia

7. O anónimo profeta do exílio, o chamado «Segundo Isaías» (Isaías 40-55), põe hoje Deus a interpelar-nos assim directamente, como Jesus no Evangelho: «Eis que vou fazer uma coisa nova! Ela já desponta: não a compreendeis?» (Isaías 43,19). A nós compete entender a obra sempre nova e surpreendente de Deus, que ultrapassa sempre a medida do nosso coração e da nossa capacidade de compreensão! Pode o deserto florir, encher-se de água, e pode o mar encher-se de caminhos. Pode sempre a semente germinar antes do tempo, e a espiga amadurar antes do campo!

8. Paulo pode bem ser hoje o modelo a seguir (Filipenses 3,8-14): esquecendo o que fica para trás, atira-se todo para a frente, para Cristo. Quando Jesus irrompe na vida de alguém, interrompe a normalidade de um percurso, e rompe essa vida em duas partes desiguais: uma que fica para trás, outra que se abre agora à nossa frente, recta como uma seta directa a uma meta, a um alvo, um objectivo intenso e claro, tão intenso e claro que na vida de cada um só pode haver um! D. António Couto Bispo da Diocese de Lamego e Presidente da Comissão Episcopal da Missão e Nova Evangelização

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COERÊNCIA 24 MARÇO | DOMINGO DE RAMOS


24 de Março | Domingo de Ramos

DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA REFERÊNCIAS •

LEITURA I - Is. 50, 4-7

SALMO RESPONSORIAL - Salmo 21 (22)

LEITURA II - Filip 2, 6-11

EVANGELHO - Lc 22, 14 – 23, 56

REFLEXÃO Juan Ambrosio FACULDADE DE TEOLOGIA, UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA De um modo geral, apesar de muitas ambiguidades, a maioria dos seres humanos tem fome de mudança. Ainda que a partir de diversas perspetivas e de diversos modos, a grande maioria de nós é capaz de intuir a necessidade de introduzir mudanças significativas no futuro que estamos a construir. Se tudo continuar na mesma, as diferenças entre ricos e pobres continuarão a aumentar na mesma medida dos mais diversos egoísmos.

Também de um modo geral as pessoas começam a estar cansadas dos discursos, pois ainda que muitas vezes pareçam indiciar as tais mudanças acabam por as não gerar. Pouco a pouco, as atenções vão-se virando para os gestos e para as atitudes, na tentativa de, no meio de tantas palavras e mesmo de tantas imagens, vislumbrar sinais e indicativos capazes de sustentar a esperança e a confiança na construção de um mundo diferente e melhor.

Se olharmos com alguma atenção, julgo que seremos capazes de perceber como, em muitas das sociedades denominadas de avançadas, foram acontecendo algumas transformações que acabam também por revelar como os gestos e as atitudes se revestem, hoje, de uma enorme importância.

Na verdade, hoje podemos assistir a como se privilegia muito mais o processo da procura e da busca do que propriamente o processo da receção. Para muitos, é mais importante o procurar do que propriamente o encontrar ou receber. Intimamente ligada com esta realidade, está igualmente, sobretudo nos processos educativos, a deslocação que se deu do polo da autoridade para o polo da experiência. Não há muito tempo aceitávamos o que nos era dito e transmitido

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24 de Março | Domingo de Ramos

DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA porque reconhecíamos autoridade aqueles que o faziam. Hoje, para validar alguma coisa sentimos necessidade de a experimentar de alguma maneira. A passagem da importância do grupo/comunidade, para a importância do eu pode também ser vista nesta mesma linha. Não há muito tempo, a pertença a uma determinada comunidade ou grupo era capaz de influenciar profundamente as crenças e as atitudes e sustentar os mais diversos comportamentos. Hoje, o eu é praticamente a medida de todas as coisas que experimentamos e vivemos. A predominância do ver sobre o escutar sublinha outra dessas transformações. Hoje, as pessoas estão de um modo geral mais recetivas a acreditar naquilo que veem em detrimento daquilo que escutam.

Como é óbvio, o ver, o experimentar, o procurar, o eu, são dimensões fundamentais do ser humano. Ignorá-las, ou mesmo secundarizá-las, seria certamente um grande erro. Mas absolutizá-las não me parece, também, que seja o melhor caminho a seguir nas mudanças que todos procuramos.

Se olharmos para a experiência da transmissão da fé veremos como as dificuldades surgidas a partir destas transformações podem revelar-se ainda de um modo mais claro. A fé, todos sabemos, é uma opção pessoal, mas que se vive sempre em comunidade. Mesmo quando procurada, acaba sempre por ser vivida como um dom gratuito que recebemos de Deus. E no processo do crescimento da fé, a autoridade de vida daqueles que no-la transmitem e testemunham desempenha sempre um papel fundamental. Mais do que simplesmente nos permitir ver o mistério de Deus, a fé possibilita-nos escutá-lo através de palavras ditas, escritas, ou ouvidas, essencialmente a partir daquele falar de Deus que em Jesus se concretizou.

Tanto na vida das nações, como na experiência da fé, o testemunho dado pela vida das pessoas reveste-se de uma importância fundamental. As palavras dos que nos governam parecem já não ter peso, e nas experiências de transmissão e educação também o escutar parece ter perdido terreno. Mas ao testemunho da vida - sobretudo ao testemunho coerente - as pessoas parecem estar muito atentas e sensíveis.

Essa importância é ainda mais relevante quando não é simplesmente vivida, permitam-me assim dizê-lo, em ‘circuito fechado’. É que por si mesma a coerência pode até não ser um grande valor. Infelizmente todos sabemos como algumas das figuras mais revoltantes da história até foram coerentes com os seus princípios e os seus ideais. Por isso, a coerência deve ser vista à luz de outras dimensões, das quais quero destacar o «bem comum» e o «cuidado dos outros».

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24 de Março | Domingo de Ramos

DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA Todos aqueles que coerentemente viveram a sua existência, tendo bem presentes o bem comum e o cuidado dos outros, acabaram por ser grandes, mesmo muito grandes, na história humana, ainda que deles não tenha ficado registo algum nas páginas oficiais dessa mesma história. Mas a vida das pessoas que com eles se cruzaram, essa ficou para sempre com a sua marca indelével. E é de marcas dessas que estamos sempre a precisar.

É também a partir desta perspetiva que podemos olhar para a vida de Jesus. Claro que para os crentes a sua vida não pode ser só vista à luz da coerência. E, no entanto, é essa mesma coerência que acaba por interpelar, de uma maneira definitiva, crentes e não crentes. Ao longo de Toda a sua existência sobressai a sua absoluta fidelidade à causa do Pai como causa do ser humano. Todo o seu viver é assumido a partir desta pró-existência: vive para Deus Pai, vive para o ser humano.

O anúncio do Reino de Deus é bem disso o testemunho coerente. Jesus anuncia o Reino para todos e faz desse anúncio o núcleo mais profundo do seu viver. Por causa do Reino viveu Jesus, por causa do Reino morreu Jesus. E o anúncio desse Reino testemunha-nos igualmente a coerência de uma existência totalmente vivida em prol do bem comum e do cuidado dos outros. E Jesus viveu assim, porque nos quis testemunhar que é assim que Deus é para o ser humano. Também a este nível encontramos a nota da coerência.

Num momento verdadeiramente decisivo da história da humanidade, os cristãos são chamados também a ser testemunhas coerentes, com gestos e atitudes, deste Deus que quer o bem, a realização e a salvação do ser humano, de todo o ser humano. Juan Ambrosio Professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

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24 de Março | Domingo de Ramos

DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA

Eusébio Amarante Guengo Direção Geral da Caritas de Angola

“Então, é quarema do pobre ou o pobre da quaresma?!”

No diálogo com a vida, algum momento nos impele a fé; cá entre nós, nos temos perguntado o que ela representa (individual ou colectivamente); é tempo de penitencia, reflexão, castigo, sofrimento, arrependimento, confissão ou perdão?

A Igreja proporciona-nos este tempo de “Quaresma” para fortalecer a nossa caminhada para a Vida Eterna. Mesmo com sentido transcendente em que a terra prometida é a Jerusalém Celeste. A Quaresma era vivida como um tempo forte de preparação para o baptismo. Na Quaresma, a pessoa que se tornaria cristã tinha a oportunidade de refletir mais e mais na nova vida que estava assumindo, assim como nas dificuldades que haveria de enfrentar para ser fiel ao evangelho no meio de um mundo pagão. Hoje a situação não é muito diferente para todos os que pretendem viver de modo cristão. Se no início, para celebrar a sua fé, aconteceu aos cristãos terem de se esconder nos subterrâneos das catacumbas, atualmente podem celebrar o mais sagrado dos seus mistérios diante das câmaras bisbilhoteiras da televisão. Isso, porém, não quer dizer que tenha ficado fácil viver hoje de maneira autenticamente cristã. As tentações de reduzir o sentido da vida ao bem-estar, ao consumismo fácil e até ao desperdício, as tentações dos ídolos do dinheiro e do mercado e os da religião milagrosa que põe a fé ao serviço de interesses pessoais, estão fortemente presentes hoje, mais até do que no passado. Não apenas é tempo mas também lugar para o encontro com Deus. Somos chamados a buscar um marco de silêncio e solidão (como o deserto) para percorrer o nosso caminho interior. Na mentalidade do povo de Deus, o deserto era o âmbito reservado aos malditos e aos deserdados. Aos prodígios iniciais da libertação e da aliança, vai-se somando a superação das provas e das tentações, através das quais o povo experimenta como o amor de Deus se expressa em termos íntimos de noivado e de casamento místico: “Eis o que diz o Senhor: foi concedida graça no deserto ao povo que o gládio poupara. Dentro em pouco Israel gozará de repouso. De longe me aparecia o Senhor: amo-te com eterno amor, e por isso a ti estendi o meu favor’’ (Jeremias 31, 2-3).

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24 de Março | Domingo de Ramos

DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA João Baptista, o homem do deserto por excelência, de corpo endurecido, com voz que clama à conversão: a sua existência faz-se caminho para o Senhor. Jesus, após o baptismo, viverá no deserto uma experiência de prova que lhe levará à plena aceitação de sua própria identidade e da missão encomendada. A mesma Igreja terá sua experiência de deserto. Aparece no Apocalipse. A mulher-igreja é levada ao deserto, lugar que Deus lhe preparou como refúgio, purificação, prova e superação da perseguição: toda uma experiência de salvação que a igreja tem de viver com fidelidade.

“Os infelizes que buscam água e não a encontram e cuja língua está ressequida pela sede, eu, o Senhor, os atenderei, eu, o Deus de Israel, não os abandonarei. Sobre os planaltos desnudos, farei correr água, e brotar fontes no fundo dos vales. Transformarei o deserto em lagos, e a terra árida em fontes. Plantarei no deserto cedros e acácias, murtas e oliveiras; farei crescer nas estepes o cipreste, ao lado do olmo e do buxo, a fim de que saibam à evidência, e pela observação compreendam, que foi a mão do Senhor que fez essas coisas, o Santo de Israel quem as realizou.” (Is 41,17-20).

“Que delícia oferece a solidão e o silêncio do ermitão... Aqui, o olho adquire esse olhar singelo que fere de amor ao esposo(a), ao amigo(a), à comunidade, etc.” Aceitar esse fato, no entanto, pode acordar em nós um oásis. Outras vezes, é o deserto da falta de amor, a solidão, a distância que nos separa de outros seres humanos que nos torna enfraquecidos. Ainda que estejam perto, falta comunhão; há uma aparente ruptura dura e dolorosa entre a fé e a razão. Há quem, anuncie uma espécie de ausência de Deus, o sem sentido de muitas coisas, a aridez da fé, que alguém chamaria de “Noite escura”. Porém não é assim. O que nos abandona são as nossas ilusões e fantasias; a fé não se perde, pelo contrário começa-se a aprofundar quando perdemos as nossas “crenças”. Devemos viver o sentido da passagem, da purificação e da provisionalidade. Devemos ter confiança para caminhar às cegas e na austeridade, sempre abertos à solidariedade. Devemos mudar o coração para, em liberdade, sermos capazes de oferecer a vida. É tempo de confissão e conversão. A Quaresma é um tempo propício para renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de Fé. É um percurso marcado pela oração e a partilha, pelo silêncio e o jejum, com a esperança de viver a alegria pascal. Partilhar o pão de cada dia com as crianças de ou na rua; ouvir o clamor das violentadas e denunciar; partilhar abrigo ou terra com os desterrados; partilhar equitativamente os rendimentos provindos do ventre da natureza; dar olhos e ouvidos ao irmão por meio da alfabetização / formação; evangelizar os de coração de pedra, etc. “AMAI-VOS UNS AOS OUTROS COMO EU VOS AMEI” (Jo. 15,12) e ver 1Jo.4,20); “AMAR E SER

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24 de Março | Domingo de Ramos

DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA AMADOS” é o antídoto e caminho perfeitos para a Felicidade, não apenas terrena como eterna.

Quem é o “outro” na minha vida? É meu irmão/a; amigo/a; família/comunidade; o outro é um Mistério, é JESUS para mim! O mundo atual sofre sobretudo de falta de fraternidade. “O mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de fraternidade entre os homens e entre os povos, do que na esterilização ou no monopólio, que alguns fazem dos recursos do universo” (Paulo VI, Populorum progressio, 66)” (Q.2012)

Heb. 10,24: “Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras”. Conscientes de que ninguém nasce e vive para si, somos todos chamados a procurar o bem do outro, mesmo quando não o fizemos pela fé, mas sim pela responsabilidade social: no aspeto físico/material; no aspeto moral/ emocional; no aspeto espiritual. O fruto do acolhimento de Cristo é uma vida edificada segundo as três virtudes teologais: À (1.) firmeza da fé junta-se a (2.) persistência da Esperança e a (3.) primazia da Caridade. “A Fé vive-se na Caridade para a Esperança” (Tiago,2, 14-24). Por isso, o jejum é visto hoje como o domínio sobre o primeiro e mais forte instinto, o de sobrevivência. A grande tentação hoje limita-se à palavra de ordem: “tem vontade, faz!” Em nome da liberdade, impõe-se a libertinagem. O “senhor Mercado” exige isso, porque jejum, moderação, educação não dão lucro, e libertinagem dá. Transformamos as tentações que Jesus venceu em alvos a conquistar.

Hoje, transformam-se as pessoas em consumidoras, se reduzirmos o sentido da vida ao conforto e ao consumo que nada tem a ver com o pão necessário. É a ordem do senhor Mercado e é o que mais se vê. Não é mentalidade comum a ideia de que viver bem significa gozar de todos os prazeres que a vida pode oferecer? Boa oportunidade para o arrependimento e perdão. Poder e dinheiro: essas tentações existem hoje? É até difícil falar sobre isso; todos estão cansados de ver e saber. Mas não escapam a elas. O dinheiro pode-se contar, somar ou diminuir. É muito visível. Outros valores, como honra, dignidade, respeito, solidariedade, que não se podem contar nem somar, desaparecem diante do dinheiro?! É mesmo pena, sabendo que o dinheiro não tem qualidade, só quantidade. Só assim se percebe porquê em negócios e em política vale tudo, só não vale perder (...). Reflexão e penitência não seriam aconselháveis?

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24 de Março | Domingo de Ramos

DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA A religião de curas e milagres cresce. O individualismo e a busca de soluções na religião para problemas psicológicos, afectivos, de saúde a até económicos são fenómenos que parecem característicos dos nossos tempos. A fé já não é o comprometer-se com um Messias crucificado, mas acreditar na cura, acreditar que Jesus me livra das dificuldades. O centro da religião passa a ser o eu. Quaresma é lutar e vencer essas tentações (…), é tempo de reflexão e arrependimento. É tempo de reflexão! Não devemos ficar calados perante o mal. “ O silêncio dos bons” é mais perigoso do que o alarido dos que fazem mal.

É tempo de reflexão! Que nos dias de hoje se devia prolongar no quotidiano. Eusébio Amarante Guengo Direção Geral da Caritas de Angola

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ESPERANÇA 29 MARÇO | SEXTA-FEIRA SANTA


29 de Março | Sexta-feira Santa

DESENVOLVIMENTO NA ESPERANÇA REFERÊNCIAS •

LEITURA I - Is 52, 13 – 53, 12

SALMO RESPONSORIAL - Salmo 30 (31)

LEITURA II - Hebr 4, 14-16; 5, 7-9

EVANGELHO - Jo 18, 1 - 19, 42

REFLEXÃO ISABEL JONET presidente da Federação Portuguesa dos BAncos alimentares No termo de mais uma Quaresma, caminhada em que, passo a passo, nos aproximamos do dia em que a ressurreição de Jesus veio dar um sentido e uma dimensão à vida do homem que a alterou radicalmente, somos desafiados a reflectir naquilo que significa este tempo e esta passagem.

Passagem por uma vida terrena, passagem para a vida eterna que dá sentido a toda a nossa caminhada, que inclui inevitavelmente sofrimento e dor, mas onde cada um pode ser fermento novo que leveda a massa se efectivamente encontrar esse sentido. Tendo fome de mudança porque só assim receberemos a energia e a razão que darão sentido ao que empreendemos, fazendo de cada um de nós instrumentos do amor de Deus, verdadeiros agentes da caridade. A sociedade actual precisa de compaixão, não sinónimo de pena, mas de empenhamento no bem comum. Indo ao encontro dos que sofrem, com as escolhas feitas e com a forma de viver. Ter compaixão significa colocar-se incondicionalmente ao lado do outro, levando-lhe o que ele precisa, com alegria. A compaixão exige de nós actos, iniciativas. Exige que não nos conformemos e passemos do sentimento à acção. Compaixão e solidariedade ou caridade são indissociáveis.

O alimento é elemento de vida. Sem comida não se vive. Alimentar-se é a primeira necessidade tanto para o rico como para o pobre. A alimentação é um recurso fundamental para a sobrevivência do ser humano. Desde que ocupa a Terra que o homem procura a sua alimentação. Começou por ser caçador e, em seguida, aprendeu a cultivar a terra. A alimentação esteve no cerne dos processos de formação de identidades colectivas, no plano das civilizações, a nível social ou mesmo

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29 de Março | Sexta-feira Santa

DESENVOLVIMENTO NA ESPERANÇA familiar. O exemplo da relação entre alimentação e ritos religiosos marcou profundamente as diferentes civilizações e os seus comportamentos em relação aos diversos tipos de alimentos e a luta contra a fome deve ter em consideração estes diferentes elementos.

Para uma grande parte da humanidade que vive na miséria, a procura de comida é um combate quotidiano que mobiliza a maior parte das energias e impede o desenvolvimento harmonioso da pessoa humana e a procura de um projecto de vida na sociedade. Hoje mais do que nunca, dada a dimensão mundial que a pobreza e a questão social assumiram, há que ter atenção pelas pessoas com fome, sem casa, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor.

Os pobres, infelizmente, em vez de diminuírem, multiplicam-se, não só nos países em vias de desenvolvimento, mas, naquilo que pareceria menos provável, também nos países desenvolvidos.

É um olhar diferente que cada um de nós deve ter sobre os mais desprotegidos. Piedade com compaixão. Chegar a cada um dos nossos irmãos, comungar com cada um deles e sentir-se solidário: é partilhando estes valores, individualmente e em equipa, que encontraremos a força criadora que tornará a nossa acção forte e credível.

Somos impelidos a lutar incessantemente contra a indiferença e a apatia das pessoas, das instituições. A ser mulheres e homens que sobressaem pela esperança de que dão testemunho. Vivendo na Verdade, enquanto valor primordial que guia as suas vidas. Levando essa Verdade, com afecto e esperança, com compaixão aos que sofrem no corpo ou na alma. Vive-se hoje no registo do “cada um por si”. Não é de estranhar, portanto, que se acumulem leis que não conseguem erradicar a pobreza.

É indispensável alertar todas pessoas de forma inequívoca para que a fome e a subnutrição são inaceitáveis num mundo que dispõe de níveis de produção, de recursos e de conhecimentos suficientes para pôr termo a esse flagelo e às suas consequências.

A resolução dos actuais problemas sociais, dada a sua enorme complexidade, requer uma melhor coordenação de esforços e o trabalho em rede dos vários intervenientes (instituições, entidades governamentais, empresas e pessoas individuais) em torno de uma agenda comum, criando um impacto colectivo.

FOME DE MUDANÇA | QUARESMA 2013 54


29 de Março | Sexta-feira Santa

DESENVOLVIMENTO NA ESPERANÇA Assiste-se felizmente ao aparecimento de uma nova mentalidade, de partilha e solidariedade, entre jovens e idosos, entre os cidadãos comuns e as empresas. Ganha espaço e afirma-se o conceito da responsabilidade social. Mas é preciso avançar mais, criar novas sinergias, provocar a imaginação criativa, para construir alternativas que dêem oportunidades de vida digna, quando a necessidade bate à porta.

Mobilizar pessoas com fome de mudança, que querem estar envolvidas e participar em acções concretas. Propondo-lhes um modo de estar na vida, por via do qual a participação activa e responsável nas diversas estruturas da sociedade se torna um imperativo de cidadania, exercício de civismo e de co-responsabilidade pelo bem comum. Cada pessoa dá em função da sua vontade, da sua disponibilidade. Mas existe um efeito multiplicador, em termos de resultados, da acção da sociedade civil quando reunida e organizada. O importante é o comprometimento e o reconhecimento de que cada um de nós pode fazer a diferença com a sua forma de estar na vida e com as suas opções.

“Dai-lhes vós mesmos de comer” foi a ordem de Jesus aos seus discípulos. E o amor de Cristo leva-nos a sair de nós próprios e a agir. Porque acreditamos que Ele vive. Isabel Jonet Presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares

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PASSAGEM 31 MARÇO | DOMINGO DE PÁSCOA


31 de Março | Domingo de Páscoa

DESENVOLVIMENTO COMO PASSAGEM REFERÊNCIAS •

LEITURA I - Act. 10, 34a, 37-43

SALMO RESPONSORIAL - Salmo 117 (118)

LEITURA II - Col. 3, 1-4

EVANGELHO - Jo 20, 1-9

REFLEXÃO Frei mário Rui, op Páscoa: itinerário(s) de desenvolvimento Aleluia! Cristo ressuscitou!

Na tradição judaica, a Páscoa celebra a passagem da escravidão para a Liberdade. Na tradição cristã celebra a passagem da morte à Vida. Mas o que significa, hoje, para nós, a ressurreição de Jesus? Os textos da liturgia eucarística do Domingo de Páscoa podem ajudar-nos a abeirarmo-nos do mistério pascal.

Maria, Pedro e João correm… Fazem o caminho… Esta é a nossa condição humana – homo viator – gente a caminho… O que nos faz andar ou correr? Fugir dos nossos medos e inseguranças? Procurar o poder do prestígio, do dinheiro, do domínio sobre os outros,…? Procurar a protecção e o conforto daqueles - poucos - que amamos?

A Páscoa é-nos proposta como uma forma própria de fazer caminho, de estar em marcha... Estamos de passagem, mas a travessia da nossa vida é feita de inúmeras passagens que vão dando sentido ao caminho e vão preparando a passagem final para os braços amorosos de Deus… A nossa tendência para nos imobilizarmos, para nos instalarmos em hábitos e seguranças, para criar raízes, para tomar por definitivo o provisório; para acumular bagagens, é muitas vezes um obstáculo a vencer no itinerário pascal…

A Páscoa de Jesus, não é apenas a glória junto do Pai, como um super-herói que finalmente paira triunfante acima dos

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31 de Março | Domingo de Páscoa

DESENVOLVIMENTO COMO PASSAGEM seus inimigos. A Páscoa de Jesus está presente na sua encarnação, na forma como assumiu a fragilidade da nossa condição humana – passou fazendo o bem (Act 10,38) – acolhendo e colocando no centro das atenções as/os que por razões culturais, económicas, políticas e religiosas tinham sido empurrados para as periferias da vida, como gosta de frisar o papa Francisco. Não se limita a torná-los visíveis, mas abre-lhes possibilidades concretas de caminhar na vida pelo seu próprio pé...

Reflectindo sobre o mistério pascal como impulso ao desenvolvimento proponho que percorramos um itinerário que parte do volver, passa pelo envolver para se concretizar no desenvolver. Volver

É o primeiro dia da semana – aquele para os cristãos se tornará por excelência o Dia do Senhor, a celebração jubilosa da “nova criação” – e Maria Madalena, de manhãzinha, ainda escuro, volta ao sepulcro. Procurará apenas completar os rituais de sepultamento que o repouso sabático não permitira concluir? Procurará junto do túmulo, a proximidade afectiva com Aquele que amava? Procurará fazer o seu luto, chorando a perda do amigo e a decepção pela Esperança assassinada no Gólgota?

É o primeiro dia da semana… mas Maria volta ao passado… é de manhãzinha… mas Maria volta ao ocaso de sexta feira… Está ainda escuro… Maria apenas encontra sinais de ausência…

Como Maria, demasiadas vezes, recusamos começar em direcção ao novo e ao desconhecido, preferindo a lamentação sobre o passado, enleados num lamber as feridas sem horizonte… Na nossa história pessoal e colectiva demasiadas vezes volvemos sobre o passado, desperdiçando aí as nossas energias, revolvendo-nos em labirintos de traumas e decepções… Quantas vezes os nossos horizontes de futuro se traduzem apenas em tentativas vãs de reproduzir um passado idealizado (como imaginamos que deveria ter sido e que, na verdade, nunca existiu…). O passado é importante como sabedoria para viver o presente, mas Deus chama-nos do futuro - Eu sou Aquele que serei! (Ex. 3,14). É nos caminhos que percorremos que Deus se manifesta como Presença vivificadora que congrega e envia…

Mas há caminhos que parecem apenas voltar ao mesmo: impressiona-me como se procura sair da crise económica que afecta tantas zonas do globo retomando as lógicas e as receitas que levaram à crise… Por exemplo, porque não acabar

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31 de Março | Domingo de Páscoa

DESENVOLVIMENTO COMO PASSAGEM com os off-shore que distorcem o sistema financeiro e ocultam o dinheiro sujo da corrupção, dos tráficos, dos apoios secretos entre Estados,…? Porque não aplicar nos processos de desenvolvimento centrados nas pessoas pelo menos tantos milhões como se aplicaram para “salvar” o sistema bancário? O problema não está na falta de dinheiro, mas na mentalidade que decide sobre o uso do dinheiro que há…

Apesar de tudo, o passado não se repete… a pedra foi retirada! Não sabemos ainda o que significa… Para Maria, o desconhecido não se enfrenta em competição, mas suscita a cooperação… Maria corre… procura outros… anuncia… envolve… Envolver Num primeiro momento, Maria envolve Pedro e João! Como refere Raymond Brown, no Evangelho segundo S. João, o discípulo amado não é apenas o “lugar” em que as comunidades joânicas reconhecem o seu patrono, mas é o lugar que cada um de nós – ouvintes da Palavra – é chamado a ocupar…

Maria corre a anunciar … Pedro e João correm ao sepulcro… Gosto de olhar para esta passagem vendo Pedro como o peso da instituição e João como a leveza do amor. O Amor chega primeiro… entrevê apenas sinais de morte… mas aguarda e respeita o “mais velho” que chega entretanto… A instituição segue o Amor… chega depois, entra, abeira-se e encontra sinais da morte…

A vida é feita de amor, de convicção, de intuição, mas também de estruturas e instituições… sem elas tudo seria demasiado efémero… Quantas iniciativas admiráveis nasceram, cresceram e morreram com as mesmas pessoas por nunca se terem institucionalizado? O Amor e a instituição não se contrapõem, mas complementam-se… A instituição não é um fim em si mesma, mas deve deixar-se conduzir pelo Amor e este precisa daquela para manifestar toda a sua fecundidade…

A Páscoa supõe a coragem de nos aproximarmos dos lugares de decepção, de sofrimento, de morte que povoam o nosso mundo. Por vezes, não temos sequer a coragem de os ver na TV, preferindo mudar de canal para que não nos incomodem “imagens chocantes”… Para outros a banalização mediática do sofrimento humano endurece o coração, como se tudo fosse apenas ficção… Os que têm uma vida mais cómoda, pensam proteger os seus filhos poupandolhes o contacto com o lado sombrio da vida, não compreendendo que uma educação integral exige que saibamos aproximar-nos destas realidades - não como voyeur, como quem visita um jardim zoológico – reconhecendo que fazem

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31 de Março | Domingo de Páscoa

DESENVOLVIMENTO COMO PASSAGEM parte da nossa vida. Não são a vida de “outros” – estamos envolvidos - são a face desfigurada da nossa vida humana que somos chamados a transformar! Desenvolver O discípulo amado entra no sepulcro – viu e acreditou (Jo 20, 8) – viu sinais de morte e acreditou no princípio de uma vida nova… É este o princípio do desenvolvimento – ter a coragem de nos aproximarmos dos lugares onde a morte reina e acreditar que pode ser diferente se não nos limitarmos a ficar ou estar envolvidos, mas abrirmos processos que permitam algo novo: que as pessoas possam erguer-se – ressuscitar – tornando-se protagonistas do seu caminho e companheiras de viagem…

A Páscoa não se fundamenta num túmulo vazio, mas na Presença vivificadora do Ressuscitado que - carregando as marcas da injustiça e da violência - congrega os/as discípulos/as após a decepção que dispersa, os cura depois da traição que envergonha, os liberta do medo que tolhe, os fortalece na compreensão da Escritura, as/os envia a testemunhar, por palavras e sinais, da passagem que se operou na sua vida e na vida da humanidade.

É esta a dinâmica fundamental do desenvolvimento… Não se trata de resolver todos os problemas… Mas de testemunhar com outras/os, por palavras e acções concretas, que a vida pode ser diferente se vivermos a nossa Páscoa, abrindo passagens para que outras e outros possam ver reconhecida a sua dignidade de filhas e filhos muito queridos por Deus.

Na verdade, hoje como ontem, para quem tem a coragem de se aproximar da cruz, a alegria da manhã de Páscoa é sempre mais intensa… Alegria irmã(o)s! Cristo ressuscitou verdadeiramente! Aleluia! Frei Mário Rui, op

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