Era um dia de chuva muito forte

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Era uma vez‌ uma família

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Era um dia de chuva muito forte, daqueles dias em que o sol fica com tanta preguiça que nem chega a aparecer. Como era habitual nestes dias de mau tempo, Carolina foi brincar para o sótão da sua avó Judie.

Carolina adorava o sótão da avó. Era como um daqueles sítios mágicos dos livros, onde havia reis e rainhas, bailarinas, brinquedos que saltavam do nada, armários e caixas que continham animais do outro mundo! Desta vez, Carolina decidiu dar um baile. Todos tinham de ir vestidos a rigor, até os animais! O vestido azul para a coelha Joaquina, o colete de príncipe para o Sr. Sapo, tudo enfeitado para receber a bela princesa Carolina, do Sótão Mágico, com o seu belo vestido rosa e o seu chapéu muito largo que quase lhe tapava os olhos.

Ia começar o baile. O Sr. Sapo era o maestro dos músicos do reino. Todos estavam preparados. Uma linda música enchia o salão e todos ficaram admirados com a beleza da princesa Carolina, a princesa do Sótão Mágico! Oh como dança tão bem a princesa, que vestido tão bonito! Oh dança tão bem! Olhem para ela! De repente ouviu-se um grande estrondo. A avó Judie correu apressadamente para ver o que se passava. Carolina tinha caído. Estava enrolada numa grande manta rosa com um chapéu muito antigo da avó enfiado na cabeça. -Então, minha querida, tropeçaste? -Sim avó e acho que fiz um dói-dói – dizia Carolina, choramingando, ao mesmo tempo que observava o seu joelho. -Avó! Que mala é esta tão grande aqui? – e apontou para a mala em que tinha tropeçado.

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A avó Judie aproximou-se, sacudiu a mala poeirenta e espreitou. De repente, o seu rosto iluminou-se como se o sol tivesse voltado por uns momentos. Fez um sorriso enorme e perguntou-lhe: -Queres ouvir uma história, Carolina, enquanto a avó te trata da ferida?

-Sim, avó! Quero! -Então cá vai…

“Era uma vez uma menina que vivia numa aldeia pequenina, no meio de umas montanhas muito altas, que tinham neve todo o ano. 3


Essa menina viva com o pai, Avner, a mãe, Civia, o irmão Benjamin e a cadela Kira. Eram uma família pequena e muito feliz. Os pais tinham uma padaria, onde a menina adorava ajudar a fazer os bolinhos e os pãezinhos de chocolate. Todos gostavam uns dos outros naquela aldeia. A menina e o irmão brincavam sempre com os seus amigos num prado junto à povoação, fizesse frio ou calor.

Mas havia algo que distinguia a família Brady de todas as outras: eram judeus. -Avó o que são judeus? – Perguntou muito curiosa a neta Carolina. -Os judeus são pessoas que têm uma religião diferente dos que acreditam em Jesus, ou em Alá, como os Muçulmanos, por exemplo! Têm crenças diferentes e há muitos judeus espalhados pelo mundo, mesmo que não se ouça falar muito deles. Mas são pessoas iguais a nós! Mas, há muito tempo, houve um senhor muito mau, chamado Hitler, que foi para ao Governo e não gostava nada dos Judeus. Por isso fazialhes coisas muito más, tratava-os mal e isolava-os em casas especiais onde só havia Judeus. -Então o que aconteceu com a família Brady avó? Foram para as casas especiais? – Perguntou Carolina com os olhos muito abertos. -Bem… Sim, foram, menos a menina. Antes de partirem para as casas especiais, a aldeia mudou completamente desde que o senhor Hitler foi para o Governo. Os irmãos já não podiam brincar com os outros meninos, não podiam ir à escola, nem ir ao cinema, tinham de estar sempre em casa, usavam uma estrela de tecido amarelo cosida aos casacos onde estava escrita a palavra judeu. Até a padaria da família fechou e tudo. Vê lá!

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Uns dias antes de partirem para essas casas especiais, a Mãe Civia, marcou quatro malas castanhas que tinha guardadas num sótão como este onde estamos. Eram malas muito bonitas, muito grandes, de um castanho muito claro, que brilhava ao sol e com pintinhas vermelhas por dentro. Nessas malas, a mãe marcou o dia de aniversário de cada pessoa da família, o primeiro nome de cada um e o apelido da família: Brady. Na mala da menina, a mãe colocou um par de sapatos pretos brilhantes, um vestido azul novo, três pãezinhos de chocolate, de que a menina tanto gostava, e uma boneca de trapos, gasta pelo tempo. Os pais foram os primeiros a partir. Tinha começado a guerra na Europa e Hitler obrigou os judeus a irem para as casas especiais. A menina não conseguia perceber porque é que tinha que abandonar os pais, afinal de contas eram a família dela e ela gostava tanto deles. Não os queria deixar partir. Numa manhã de inverno muito fria e com muita neve, a menina, o irmão e a cadela Kira foram acompanhar os pais à estação da aldeia. Uns polícias do governo de Hitler empurraram os pais da menina com tanta força que a família nem se pôde despedir como deve ser. Foi um dia muito triste, até a cadela estava triste. -E para onde é que foi a menina, afinal, e o irmão? O que é que lhes aconteceu? Conta, avó! -Bem, a menina e o irmão, como eram mais novos, ficaram com uma vizinha da família, que se chamava Katarina, mas a menina não gostava nada dela. Dizia que cheirava a meias malcheirosas!

-Ui, que horror, avó – riu-se a menina. -A menina lá teve de aguentar, porque era preferível isso do que ir para as casas especiais como tinham ido os pais. 5


-Porquê, avó? -Quando os pais foram no comboio, não iam como nós vamos agora sentados a apreciar a paisagem. Iam fechados em carruagens que só tinham uma janela, e nem podiam ir sentados! Com eles iam mais pessoas, todas elas com as estrelas nos casacos. Quando chegaram às casas especiais, as mulheres foram separadas dos homens. A mãe Civia e o pai Avner deram um abraço muito grande, porque sabiam que não se iam voltar a ver tão cedo e foi mesmo isso que aconteceu. Só passados dois anos é que se voltaram a ver. Já viste quando tempo é? É muito tempo!

-Eu não conseguia estar tanto tempo separada da mamã e do papá. -Acredito que não, ninguém quer passar por isso. Os pais de Carolina, cada um numa casa especial, além de separados, viviam muito mal. O pai da menina trabalhava nas obras de um armazém nas casas especiais. A mãe trabalhava na horta a plantar batatas com as outras senhoras. Os dois trabalhavam desde que o sol nascia até que o sol se punha, e só paravam ao almoço. Tinham direito a duas refeições por dia, mas a comida, além de não ser suficiente, não prestava mesmo para nada e as pessoas tinham sempre muita fome. Havia muita gente que ficava doente porque não comia como devia ser e apanhava muito frio e muita chuva. Só tomavam banho duas vezes por semana e dormiam em beliches feitos de madeira, sem almofadas. Era tudo muito desconfortável. -Que mau, avó! Coitados, isso não se faz a ninguém. E então como ficaram a menina e o irmão? -Já se tinham passados muitos meses desde que os pais tinham ido embora da aldeia, e o irmão e a menina continuavam a viver em casa da vizinha, mas agora era tudo mais complicado, porque Hitler até as crianças queria mandar para as casas especiais! A menina e o irmão agora tinham que viver no sótão da vizinha e só podiam ir à rua de noite e descer até ao piso debaixo da casa também durante a noite. Foram momentos muito difíceis, Carolina. Consegues imaginar-te a viver neste sótão onde estamos durante um ano e meio? Sem poderes brincar com mais meninos, a não ser o teu irmão, e mal veres a luz do dia?

-Fico tão triste só de pensar nisso, avozinha. O senhor Hitler foi muito injusto… - disse Carolina a imaginar-se na pele da menina e do irmão – e eles ficaram no sótão quanto tempo, avó? 6


-Bem, numa noite amena de primavera, Benjamin, o irmão da menina, às escondidas, enquanto a dona Catarina e a irmã dormiam, saiu muito devagarinho para ir espreitar a lua que ele adorava. Imaginava que a mãe Civia também estivesse a ver a lua, porque desde muito pequeno a mãe lhe contava que na lua vivia um homem e que, se olhássemos com atenção, podíamos ver o homem e dizer olá! E nas noites de luar, os dois ficavam horas a olhar para a lua à procura desse senhor!

-Uau, avó, também quero ver esse homem da lua! -Aahaha, mais tarde, pequena, mais tarde. Agora tenho de acabar de contar a história! -Sim, sim avó, continua, quero saber o que aconteceu à menina e ao irmão, e se eles voltaram a ver os pais. Voltaram a ver não voltaram? -Sim, pequenina, voltaram, mas passado muito tempo. Como ia a dizer, nesse dia de primavera, quando ele foi ver a lua, estava um polícia na rua daqueles polícias que o Hitler mandava para apanharem os judeus e zás! Levou o menino. -Oh! Não! Coitado do menino, avó... E ao menos levaram-no para o pé dos pais, avó? Foi para as casas especiais? -Sim, ele acabou por ir para as casas especiais, mas infelizmente não eram as mesmas casas onde estavam os pais.

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Foi para uma casa com milhares de meninos como ele, só meninos, porque os separavam tal como faziam com os adultos. Havia muitos meninos, todos muito magrinhos, esfomeados e doentes. George trabalhava numa fábrica de papel e, tal como a mãe e o pai, era tratado muito mal, sem comida ou uma cama para se deitar. Às vezes havia meninos que desapareciam, ele tinha muito medo, e chorava muitas noites porque tinha saudades do pai, da mãe e da irmãzinha. -Ele não tinha amigos lá? -Tinha, aliás tinha dois grandes amigos: Isaac e Jacob. Não brincavam, porque passavam o dia a trabalhar, mas falavam bastante antes de adormecerem ou durante o almoço, quando os guardas das casas especiais não os mandavam calar ou não reparavam que eles conversavam. -Havia guardas nas casas especiais, avó? -Sim, minha querida. Havia guardas especiais só para tomarem conta dos meninos e verem se faziam o trabalho como deve ser. Eram muito rígidos e tinha de estar sempre tudo em ordem, senão eram castigados, -E conversavam sobre o quê? -Bem, falavam sobre muitas coisas. Sobre os sonhos deles, o que iriam fazer quando saíssem dali, o que gostariam de comer. Quando iam para a cama com o estomago vazio, imaginavam banquetes enormes com muita comida boa toda só para eles, a noite toda a dançar, depois as famílias dos meninos iam lá ter. Mas infelizmente era só imaginação… Por vezes jogavam às cartas. O Jacob tinha guardado umas cartas que o avô lhe tinha dado antes de se separarem. Mas precisavam de ter cuidado quando jogavam, era preciso esperar que os polícias que tomavam conta deles adormecessem, porque era proibido aos judeus ter fosse o que fosse e, se fossem apanhados, eram castigados. Os meninos daquela casa especial tornaram-se uma família para tentar esconder as saudades da verdadeira família e assim se passaram meses nesta vida, todos os dias a trabalhar, sem verem a mãe ou o pai. As saudades iam aumentado e cada vez havia mais doenças… -Mas, avó… E então a menina? Nunca mais falaste sobre a menina, o que lhe aconteceu, afinal? -Bem, quando o irmão foi apanhado pela polícia, a D. Katarina decidiu que era preciso fazer alguma coisa, porque a menina era mesmo pequenina e era muito cruel ela ir para essas casas especiais. Ela tinha um amigo que vivia num país que Hitler não tinha ocupado e, por isso, pensou seriamente que a solução para a menina seria ela ir com esse senhor. Sabes o que aconteceu?

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-Que aconteceu, avó? -A D. Katarina e o senhor, que tinha um nome muito engraçado, Nicholas Winton, combinaram entre si que iriam levar a menina para esse país, mas iria ser uma viagem muito atribulada, como nos filmes de ação, como se tudo fosse uma grande missão secreta e a menina o tesouro! -Uau! -Combinaram sair de manhã, porque não havia tantos polícias na estação de comboios. Estava a um dia de muita chuva, o que facilitou ainda mais a missão de sair com a menina da cidade. Levava uma capa vermelha que a envolvia da cabeça aos pés e, assim, ninguém lhe via a cara. Tudo correu como planeado! A menina chegou ao destino sem ser descoberta. A missão estava completa, embora durante a viagem tenha havido um ou outro susto! -A menina conseguiu, avó! Então e depois? -Passou cerca de um ano, mais ou menos. A menina estava mais crescida e já não via os pais há quase dois anos! Vivia agora com a família do Sr. Nicholas. Era muito bem tratada e tinha mais ou menos a vida que tinha antigamente, porque lá não havia polícias maus, mas a menina não era feliz… Tinha saudades do pai, da mãe, do seu irmãozinho e, claro, de brincar com a cadela Kira. O que mais assustava a menina é que não sabia se alguma vez iria voltar a ver os pais, ou onde eles estavam e como estavam. Tinha muitas perguntas. Mas o Sr. Nicholas animava-a. Dizia que o senhor Hitler estava quase a sair do governo e que, em breve, ela poderia voltar para casa, voltar a ver o irmão e os pais. Mas a menina não tinha tanta certeza disso. Até que… 9


-O Hitler foi-se embora como o Sr. Nicholas dizia? Foi, avó, foi? -Hahahha… Sim, minha querida, foi mesmo isso! E outra coisa muito importante: a guerra tinha acabado. A menina ficou muito feliz, o coração dela estava aos saltos, ela não aguentava tanta felicidade. Poderia voltar a ter uma vida normal, podia voltar a brincar na sua aldeia, voltar a ver os seus amiguinhos e, mais que tudo, iria voltar a ver a sua família. Passaram-se muitos dias em festa. Toda a gente estava feliz, era o voltar à normalidade, mas os pais e o irmão da menina ainda não tinham voltado e a felicidade que ela tinha no início foi desaparecendo, porque ela queria partilhar essa felicidade com a sua família, queria estar ao pé deles e dar-lhes muitos beijinhos, dizer que os amava, só os queria de volta… Até que um dia, quando a menina estava a brincar no jardim, cabisbaixa porque estava muito triste, ouviu uma voz ao longe, que ela conhecia, a chamar por ela…

-“Judie”! -Quem era avó? – quis saber Carolina -Eram o pai, a mãe, o irmão e a sua cadelinha. Todos juntos, com as suas malas! Estavam todos muito, muito magrinhos, diferentes, porque nas casas especiais passaram momentos muito desagradáveis, mas eram eles. A menina sabia que eram eles, conhecia a voz deles. A menina correu para os braços da família e deu-lhes um abraço do tamanho do mundo… -Siim! Finalmente! Hitler foi vencido! Eu sabia! -E queres saber um segredo, minha querida? – perguntou a avó Judie com um sorriso muito especial. A avó abriu a mala, onde Carolina tinha tropeçado. Era uma mala com pintinhas vermelhas por dentro. -Essa menina era eu…

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-FIM-

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Histรณria inspirada na Mala de Hana, de Karen Levine, e escrita por Ana Formigo, aluna do 12ยบ G, da ESP Ilustrada por alunos da Escola Secundรกria de Pombal 2013-2014

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