Filosofia: Consruir o Pensar

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Filosofia Construindo o Pensar Volume único

Dora Incontri Nasceu em São Paulo, SP, cursou jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e tem se dedicado à área da educação. Fez mestrado, doutorado e pós-doutorado em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Escreve textos sobre educação, filosofia, religião, além de livros didáticos para o Ensino Funda­mental e Médio. Atua como professora e consultora em projetos pedagógicos especiais, em escolas públicas e particulares.

Alessandro Cesar Bigheto Nasceu em Jundiaí, SP, fez faculdade de Pedagogia e é mestre em Educação, no campo da História e da Filosofia, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pertence ao grupo de História da Educação no Brasil – Histedbr – e é autor de livros didáticos para Ensino Fundamental e Médio. Atua também como professor de Filosofia e Ética para o Ensino Fundamental, Médio e Superior.


Edições Escala Educacional Av. Profª Ida Kolb, 551 – 3º andar Casa Verde – São Paulo – SP CEP 02518-000 Tel.: (11) 3855-2201 Fax: (11) 3855-2189 www.escalaeducacional.com.br

© 2012 Edições Escala Educacional São Paulo • 1ª edição • 2013 1ª impressão • 2013 ISBN 978-85-377-1985-5 (aluno) ISBN 978-85-377-1986-2 (professor)

Gerência editorial de Humanas Maria Rocha Rodrigues Edição Leonilda Pereira Simões Salvine Maciel Assistência editorial Ricardo Coimbra Revisão Kátia Miaciro (coord.) Gabriela Madeira Ana Luiza B. C. Roxo Esther Oliveira Alcântara Edição de arte Bruna Fava Assistência de arte Andrea Landmann

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) XXXX

Projeto gráfico e diagramação Terra Comunicação Iconografia Neuza Faccin Maria Alice Bragança

Impressão Oceano Indústria Gráfica (11) 4446-7000

Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia : Ensino Médio 372.89


Sumário Capítulo I Filosofia: o que é? Para quê?................................................................................................9 Capítulo II Ser ou não ser? Eis a questão!...........................................................................................27 Capítulo III Deus: dúvida, certeza ou negação?....................................................................................55 Capítulo IV Temos certeza do que sabemos?.......................................................................................79 Capítulo V Certo e errado: bem e mal existem?...................................................................................115 Capítulo VI O ser humano em foco....................................................................................................145 Capítulo VII Se eu vivo, logo existo?.................................................................................................171 Capítulo VIII Morrer e deixar de ser.................................................................................................195 Capítulo IX O poder: um mal necessário?.........................................................................................221 Capítulo X Quem quer um mundo diferente?..................................................................................351 Capítulo XI Por uma Filosofia do diálogo.........................................................................................375 Capítulo XII Amor, coisa do corpo ou da alma?...............................................................................301 Contando a História?.......................................................................................................................319 Filosofia antiga.....................................................................................................................................319 A passagem para a Filosofia medieval................................................................................................329 O Renascimento e a Filosofia moderna...............................................................................................336 Dois séculos entrelaçados...................................................................................................................341 Filosofia contemporânea.....................................................................................................................348 Filosofia no Brasil............................................................................................................................352 Referências bibliográficas..............................................................................................................361


conversa necessária Caros alunos,

Antes de começarmos a pensar em cada tema particular da Filosofia, é preciso apresentar algumas palavras sobre o plano deste livro — como e porquê ele foi imaginado. Esta introdução é importante para você entender alguns pontos iniciais e fundamentais de nosso estudo. Não há nem nunca haverá dois livros de Filosofia iguais, nem mesmo muito parecidos. Porque cada pessoa que mergulha no universo da Filosofia vai entendê-lo de um modo todo seu. Isso não quer dizer que um livro esteja certo e outro errado. Quer dizer, simplesmente, que são leituras diferentes, a partir de visões de mundo diversas. Mas, apesar da maneira particular de cada autor interpretar a Filosofia, seus temas e seus pensadores, o que se espera e o que se exige é a honestidade de atribuir a cada pensador o que ele realmente pensou. Se não concordamos com certo filósofo, não podemos dizer que ele disse o que não disse. Ou seja, não podemos mentir sobre suas ideias ou interpretá-las de maneira errônea. A honestidade também se refere ao fato de não deixar nada importante de lado. Não podemos nos esquecer de mencionar um pensador muito famoso da História simplesmente porque não gostamos dele. No entanto, a escolha dos temas, a forma como organizamos as ideias e a maneira como interpretamos o todo são sempre influenciadas pela nossa filosofia, pela nossa maneira de ver o mundo.

Aqui miniatura a ser escolhida na prova final

Muitos professores de Filosofia, mesmo na universidade, consideram a sua interpretação a “verdade”, a “Filosofia em si” ou a “história da Filosofia em si”. Isso não existe. A Filosofia não é um conhecimento como a Matemática — exato, preciso, indiscutível; trata-se de um conhecimento interpretativo. A interpretação de quem ensina, portanto, sempre está presente. E é muito mais honesto dizermos qual é a nossa visão que nos arrogar ares de neutralidade absoluta e impossível.


Posto isso, vamos explicar de onde partimos e aonde chegamos com nosso livro. Trata-se de uma obra dividida em duas partes: a primeira é composta por 12 capítulos temáticos, por meio dos quais procuramos despertar os leitores para os grandes questionamentos da Filosofia, de modo que possamos pensar juntos, nós autores e vocês leitores, invocando os grandes filósofos que já refletiram sobre aqueles temas. Uma característica dessa abordagem é que ela é transdisciplinar, pois esses temas se inter-relacionam e permitem a discussão com outras áreas do conhecimento que não a Filosofia, no sentido estrito do termo: ciências, artes, religião, política, economia etc. Com isso, retomamos a maneira de filosofar dos antigos gregos, em que não havia uma separação, mas a união de todos os saberes para uma visão geral. Por outro lado, estamos acompanhando a tendência contemporânea de “religação dos saberes”. Como diz Edgar Morin, um dos pensadores contemporâneos que defendem a ideia de reunificar as diferentes áreas do conhecimento, no livro Aqui miniatura a ser A religação dos saberes: “É preciso sepaescolhida na prova final rar, distinguir, mas também é necessário reunir e juntar”. A segunda parte, Contando a História, é uma breve história da Filosofia, desde as suas origens até os nossos dias.

A organização dos temas e a ligação de todos entre si A Filosofia toca todos os questionamentos da existência humana, todas as grandes questões da Ciência e da fé, dos porquês (causas), dos comos (formas) e dos para quês (finalidades). A grande dificuldade de se separar a Filosofia em temas é que, geralmente, um tema se relaciona com outro e a maioria dos pensadores tratou de quase todos os assuntos. A questão principal é entender, porém, que uma posição está ligada à outra. Vejamos alguns lances desdobrados nos capítulos: •

da indagação sobre o mundo e as coisas, pela faculdade da razão, nasce a Filosofia com todos os seus questionamentos. Trata-se de uma busca racional para explicar o cosmo e o ser humano (esta discussão se encontra no capítulo 1); Procurando as causas primeiras e os fundamentos de tudo, nasce a metafísica — que pode ser ontologia, teologia e gnoseologia (ou epistemologia). E na metafísica (ou na sua negação) fundamenta-se a ética: •

na ontologia, estuda-se o ser enquanto ser (capítulo 2);


na teologia, busca-se a fundamentação em Deus (capítulo 3);

na gnoseologia, precisamos saber o que é o próprio saber, como conhecemos e qual a certeza que podemos ter desse conhecimento. Será por meio dos sentidos que conhecemos ou da razão, ou ainda pelo “olho da alma”, como diria Platão? Será que realmente conhecemos ou apenas imaginamos conhecer (capítulo 4)?

da ideia que fazemos do mundo e do ser individual, de Deus ou da ausência de Deus, teremos uma proposta ética — como agir melhor, qual é o sentido de nossas ações no mundo e como encontrar a felicidade (capítulo 5);

Diante dessas questões, entre os filósofos há nos extremos as seguintes posições (no meio, há diversas posições intermediárias): •

os que afirmam e os que negam o ser das coisas: os metafísicos e os niilistas;

os que afirmam e os que negam a existência de Deus: os teístas e os ateus;

os que afirmam e os que negam a possibilidade de conhecermos algo (alguns apenas limitam essa possibilidade); há posições, ainda, que negam a própria razão capaz de conhecer;

os que afirmam a existência de leis morais dentro do ser humano, independentemente da cultura e dos costumes, e os que negam princípios éticos universais, adotando uma ética que varia segundo o tempo e os costumes etc. Vamos exemplificar a lógica interna de cada posição extrema. De um lado temos, por exemplo, Sócrates e Platão. Para eles: •

o ser é, porque é imortal;

é imortal, porque é divino;

a divindade está na alma e no mundo, a inteligibilidade e o sentido estão em mim e no mundo;

é possível conhecer o mundo fazendo Ciência e Filosofia;

é possível conhecer eu mesmo descobrindo minha consciência moral, a presença divina em mim e, portanto, concebendo uma ética absoluta, não relativa aos costumes.

No outro extremo, temos os niilistas (na época de Sócrates e Platão, eram os sofistas que partilhavam essa ideia): •

o ser nada é;

se nada é, não pode conhecer;

não pode conhecer porque a realidade não tem fundamento, não tem sentido;


no campo do conhecimento, como no campo da ética, existe apenas o reinado da opinião: nenhuma verdade, nenhum conhecimento, nenhum princípio;

tudo é apenas discurso.

Essa é uma simplificação das ideias mais extremas da Filosofia. Mas trata-se de compreender que a Filosofia se põe frente às questões radicais da vida, do mundo e do ser humano, e ante cada resposta, tudo se modifica. Por isso, nos capítulos restantes da primeira parte, vamos tratar de problemas importantes, diante dos quais as filosofias se posicionam: •

a condição humana: o que é o ser humano e para que se destina? (capítulo 6);

que sentido tem a nossa existência? (capítulo 7);

a morte é o fim ou o começo da vida: somos seres de finitude ou de transcendência? (capítulo 8);

o ser humano como ser político e a questão do poder (capítulo 9);

como vemos a sociedade? É possível transformá-la e buscar projetos de sociedades melhores? (capítulo 10);

no mundo dos meios de comunicação de massa, temos diálogo real? É possível viver em paz com as diferenças e dialogar com tolerância? (capítulo 11);

o que é o amor? Como se integram amor e sexualidade? O desejo é fonte de prazer ou de dramas sem solução? (capítulo 12).

Há uma lógica filosófica na escolha dos temas e, com eles, pretendemos que vocês, leitores e leitoras, se apropriem das variadas tradições da Filosofia, mas sobretudo aprendam a pensar por si nos problemas centrais da existência. As atividades de cada capítulo oferecem oportunidades de reflexões, discussões e pesquisas mais abrangentes sobre os temas tratados no referido capítulo. Os autores


Capítulo

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Filosofia: O que é? Para quê?

Museu do Louvre, Paris, França

Para começar

Filósofo em meditação, de Rembrandt, 1633. Óleo sobre tela.

O que é Filosofia? O que é Filosofia? Perguntam todos perplexos. Será um monte de livros, Com discursos desconexos?

Filosofia é uma forma de perguntar as questões, que mais afligem o homem, que mais nos dão comichões.

Filósofo é qualquer um que para à beira da estrada para pensar sobre as coisas e ver que não sabe nada.

Será um bicho difícil, que pode nos devorar, se não formos muito espertos, para a resposta encontrar?

É perguntar sobre a vida querer saber sobre a morte, é um olhar para o Universo é um indagar sobre a sorte...

Filósofo deve ser quem não quiser vegetar, passando a vida sem rumo sem um sentido encontrar.

Na Filosofia, mesmo, nada deve ser complexo, podemos fazê-la fácil, numa lógica com nexo.

Filosofia faz parte da vida de cada dia porque pergunta os porquês que a nossa razão afia.

Portanto filosofemos, buscando sabedoria, pois num bom filosofar, teremos mais harmonia. Texto produzido pelos autores

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Como definir Filosofia? Você provavelmente já ouviu falar em Filosofia. E pode ser até que já tenha lido algo sobre a vida ou o pensamento de algum filósofo. Mas o que de fato caracteriza a atividade filosófica? Você tem uma visão clara sobre isso? Para começar essa conversa, vale a pena observar que há diferentes formas de caracterizar a Filosofia e o trabalho do filósofo. Leia algumas definições a seguir:

[...] a Filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. […] O filósofo é amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que a Filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A Filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. […] Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 10-13.

[Parte-se] da convicção de que nada do que é humano é alheio à Filosofia e de que, pelo contrário, esta é o próprio homem, que em si mesmo se faz problema e busca as razões e o fundamento do ser que é o seu. ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Lisboa: Presença, 1981. p. 7. v. 1.

A Filosofia é a ciência dos fundamentos da realidade. Lá onde as outras ciências param, onde, sem mais indagar, aceitam os pressupostos, aí entra o filósofo e começa a investigar. As ciências conhecem – mas o filósofo pergunta o que é o conhecimento; as outras ciências estabelecem leis – ela põe a questão do que seja uma lei; o homem comum e o político falam do fim e da utilidade – o filósofo pergunta o que se deve entender por fim e utilidade. Já se vê que a Filosofia é uma ciência radical, no sentido em que ela vai às raízes das questões muito mais profundamente que qualquer outra ciência; lá onde as outras se dão por satisfeitas, ela continua a indagar e a perscrutar. BOCHENSKI, J. M. Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo: EPU, 1977. p. 29-30.

Você observou como a atividade filosófica pode ser pensada de diferentes formas, a partir de perspectivas diferentes? Talvez ainda não tenha uma compreensão plena dessas diferentes formas de se caracterizar o pensamento filosófico, mas isso não é um problema, porque estamos apenas no início de um longo percurso. O importante, agora, é que você seja capaz de reconhecer essa diversidade. Essa diversidade é parte essencial da Filosofia, pois com ela tudo se questiona, tudo se discute, tudo deve ser observado na maior quantidade possível de pontos de vista. 9


Ediciones de La Flor, Buenos Aires

Vamos agora conhecer um pouco mais sobre a palavra “filosofia”, seu significado, sua origem e sua história.

Mafalda, personagem do cartunista argentino Quino, 1932.

Destaque

O termo “filosofia” tem origem grega e significa “amor à sabedoria” (philos = amizade, amor; sophia = sabedoria). Em sentido estrito, o termo se refere a uma forma de pensar sobre questões da vida, do mundo e do ser humano sobre si mesmo. A maior parte dos historiadores reconhece que a atividade filosófica se origina e atinge seu ápice na Grécia antiga. É um componente da cultura grega que não se encontra em O filósofo pitagórico, nenhuma outra cultura antiga, como acontece tela de Pietro Longhi, 1762. Óleo sobre tela. com a religião, a arte, a política e a técnica, presentes em outras civilizações da época. Segundo a tradição, o criador do termo foi Pitágoras , o que não é historicamente comprovado, mas é uma tese possível. Ele foi uma figura de grande saber, inteligência e conhecimentos, capaz de desenvolver ideias muito originais e, assim, tornou-se uma lenda entre os gregos. Pitágoras foi o primeiro a se intitular filósofo, ou amigo da sabedoria. No livro Pitágoras e os pitagóricos, conta-se o seguinte:

Segundo o testemunho de Heráclito do Ponto, com efeito, Pitágoras teria tido uma conversação sábia com Leão, o tirano de Flionte. Como este último admirasse seu gênio e sua eloquência, indagando em que arte se apoiava, Pitágoras teria declinado do epíteto de “sábio” (sophós) e respondido que não conhecia nenhuma arte, mas que era “filósofo” (philósophos). Leão espantou-se com esse novo termo e perguntou quais eram as diferenças entre os filósofos e os homens.

Arte & Immagini / Corbis

De onde vem a palavra “filosofia”? Pitágoras de Samos (cerca de 570-496 a.C.) Filósofo, matemático e místico grego, a quem se atribui a criação do termo filosofia como amizade da sabedoria. Sua figura foi quase lendária e nada nos chegou de seus escritos. Sabe-se que ele fundou uma escola com características de comunidade religiosa (vegetariana, praticante de um comunismo igualitário e de não violência). Nela, aceitava-se a ideia da reencarnação (chamada de metempsicose), que identificava no Cosmo uma força espiritual harmoniosa, que podia ser entendida pela música e pela Matemática. Os pitagóricos exerceram influência sobre a filosofia platônica, entre outras.

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AFP

Pitágoras, em uma representação de 1883. O filósofo estava sempre em busca do saber, amava a verdade e nunca deixava de procurá-la.

Pitágoras respondeu que a vida humana era comparável às assembleias às quais a Grécia inteira comparecia, por ocasião dos grandes jogos: alguns vêm aí para lutar e obter uma coroa; outros tratam de fazer comércio; outros, enfim, não se interessam nem pelos aplausos nem pelo ganho, mas vêm para ver, simplesmente, o que se passa nos jogos. Do mesmo modo, na vida, alguns são escravos da glória, outros do dinheiro, mas outros, mais raros, observam com cuidado a natureza: “são esses que chamamos de amigos da sabedoria, quer dizer, de filósofos”, comenta Cícero. A meio caminho entre os deuses e os homens, o filósofo será doravante este ser enigmático, que lança um olhar sobre o teatro da existência. Pode-se imaginar que no fim do espetáculo ele saberá jogar seu manto na espádua direita e partir, com um gesto soberano de um homem livre. MATTEI, Jean François. Pitágoras e os pitagóricos. São Paulo: Paulus, 2000. p. 6.

Pitágoras considerava que a sabedoria só seria possível à divindade, ou seja, somente Deus (ou os deuses) teria posse segura da verdade de todas as coisas. Os seres humanos que quisessem ser filósofos deveriam se colocar em busca da sabedoria, mas nunca chegariam a possuí-la, pois ela é divina. Por isso, Pitágoras preferia ser chamado de filósofo, amigo da sabedoria, que ser chamado de sábio. Dessa forma, apresenta o filósofo como alguém que está em busca do saber, que ama a verdade, se aproxima dela constantemente e nunca para de buscá-la. Segundo ele, nesse trecho, o amigo da sabedoria desapega-se e toma distância do mundo para melhor examiná-lo e conhecê-lo, colocando-se entre os homens e Deus. Sócrates , proeminente sábio grego, afirmava: “Só sei que nada sei”. Em ambos os filósofos podemos notar a humildade diante do conhecimento e, também, uma disposição permanente para explicar e compreender o mundo. Sócrates (470-399 a.C.) Foi o filósofo que maior fascínio e influência exerceu em toda a história do pensamento ocidental. Nada escreveu, mas sua vida se tornou um símbolo da virtude filosófica. Cidadão ateniense, filho de uma parteira e de um escultor, foi descrito por seus discípulos como modelo de coragem, retidão e sabedoria. Tinha uma atitude de busca constante da verdade, com sua famosa afirmação “Só sei que nada sei”. Essa atitude gerou uma interpretação equivocada de um Sócrates cético, que nunca chegava a nenhuma conclusão ou certeza. Seu método de maiêutica (método que consiste em realizar várias perguntas ao interlocutor, induzindo-o à descoberta de suas próprias verdades), porém, mostra que ele admitia ser possível chegar a um conhecimento das coisas e que julgava a razão humana capaz de acessar esse conhecimento. Foi essa a interpretação de Platão, seu principal discípulo, que construiu a partir dos pressupostos socráticos uma doutrina metafísica que teria influência permanente no mundo ocidental. Condenado à morte pelos magistrados de Atenas como suposto corruptor da juventude, Sócrates deu testemunho de extrema serenidade diante da morte.

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Sabe quando você sente interesse e curiosidade a respeito de algum assunto? Algo lhe parece intrigante e você interroga pessoas, busca informações na internet e em livros, há uma mobilização interna que o leva a querer saber mais sobre aquilo. A Filosofia provavelmente nasceu de forma parecida. Só que ela não está voltada para um assunto específico, mas para toda a realidade, para os enigmas do Universo, da vida, da existência, do ser. É talvez nesse sentido que Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), seu discípulo, afirmavam que a “admiração está na raiz da Filosofia”. De acordo com esses pensadores, o homem se vê em um mundo que é anterior a ele mesmo, em que seres e acontecimentos se apresentam como enigmas. Ao mesmo tempo em que se encanta com esse mundo de coisas magníficas, precisa conhecê-lo e explicá-lo.

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Algumas ideias

Imagens de um planeta, estrelas e de uma galáxia: o ser humano sempre se questionou sobre o cosmo, o surgimento e a origem da vida.

Platão (427-347 a.C.) Nasceu em uma das mais influentes famílias gregas de seu tempo, mas desde muito jovem foi atraído pela figura de Sócrates. Esse encontro transformou sua vida, fazendo-o dedicar-se à Filosofia, em vez de seguir a carreira política. A condenação de seu mestre, no ano de 399 a.C., causou-lhe uma grande desilusão em relação ao Estado e à sociedade ateniense. O projeto da vida de Platão foi dar continuidade à filosofia socrática, buscando criar um Estado que procurasse a perfeição das coisas. Platão tentou implantar esse Estado ideal na cidade de Siracusa, governada por Dionísio, seu discípulo. Esse projeto, porém, fracassou. Fundou a primeira Academia no Ocidente, uma instituição voltada para a educação e a formação de filósofos, em uma bela propriedade cercada por bosques. A filosofia platônica é ampla, complexa e multifacetada, mas seu principal objeto está na metafísica. Ele acreditava que a vida e o mundo possuíam duas dimensões: a dimensão metafísica e a dimensão física. A dimensão metafísica é a dimensão das formas e das ideias eternas, imutáveis e predeterminadas. O verdadeiro ser das coisas que tanto os filósofos gregos procuravam não está nas coisas em si, mas fora delas, no mundo das formas ideais. O conhecimento verdadeiro, para ele, se dá quando se consegue contemplar esse mundo eterno e imutável. O mundo físico é um simulacro, uma cópia imperfeita desse mundo das ideias. Suas obras revelam um gênio literário incomparável, entre as quais estão: A apologia de Sócrates, Protágoras, Górgias, Fédon, O banquete, Fedro, A República e Leis.

Aristóteles (384-322 a.C.) Nascido em Estagira, na Trácia, mudou-se para Atenas aos 18 anos. Na cidade, passou a frequentar a Academia de Platão. Posteriormente, tornou-se preceptor de Alexandre e, em seguida, fundou o Liceu. Aristóteles produziu duas classes de livros: a de livros exotéricos, destinados ao público em geral e escritos na forma de diálogos – desses restaram apenas fragmentos; a de livros acroamáticos ou filosóficos, que tratam de questões mais profundas da Filosofia e eram destinados a seus alunos. Aristóteles dividiu as ciências entre teóricas, práticas e produtivas. Segundo ele a ciência teórica seria aquela baseada na contemplação, cuja finalidade é ela mesma, como é o caso da metafísica, da lógica e da Matemática, as principais obras que abordam esse tipo de conhecimento científico são Física, Da Alma e Metafísica. As ciências práticas são as que lidam com a vida individual e social do ser humano. As obras que abordam essas ciências são Ética a Nicômaco e A política. E as ciências produtivas são aquelas ligadas à produção, seja de um armário ou de um discurso. As principais obras sobre esse tema ciências são A poética e A retórica.

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Há vários instrumentos para sentir, conhecer e explicar o mundo: a fé, a imaginação, a arte e a razão. A Filosofia é a busca da razão, do questionamento, da vontade de explicar o todo. Segundo Aristóteles, no princípio, os homens ficavam maravilhados e procuravam resolver as coisas mais simples de sua existência. Depois, começaram a se colocar problemas mais complexos, questionando-se sobre o surgimento do Cosmo e da vida, sobre a origem e o sentido de tudo, sobre si mesmos... Toda pessoa, algum dia na vida, formula questões como: Por que estamos aqui? De onde viemos e para onde vamos? Deus existe? A vida tem sentido? O que é o bem e o que é o mal? A vida acaba na morte? O que é o belo? O que é verdadeiro e o que é falso? Até certo ponto, parece que temos uma tendência natural para filosofar, isso porque não podemos deixar de nos admirar diante das coisas, nem renunciar a um possível conhecimento sobre elas. Se deixarmos de filosofar, podemos perder nossa dimensão mais profundamente humana. Mesmo os que negam a Filosofia a usam para destruí-la, porque mesmo para dizer que ela não é útil ou não é necessária é preciso usar argumentos filosóficos – assim, nunca escapamos de filosofar. Filosofar, porém, não é apenas se propor questões. É seguir um método rigoroso de racionalidade e crítica, para chegar a respostas bem fundamentadas.

O mito de Poseidon, conhecido como Netuno para os romanos: o grande rei grego dos mares, muito forte, com barba, sempre representado com um tridente na mão e, às vezes, com um golfinho. Filho de Cronos, deus do tempo, e da deusa da fertilidade, Reia. Morava no fundo do mar e com seu tridente causava maremotos e tremores. É um exemplo de narrativa que tem um conteúdo impossível de se demonstrar de forma racional, mas inquestionável.

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O Mito e a Filosofia Você já inventou uma história para exemplificar algo? Nós, seres humanos, frequentemente, utilizamos as narrativas para explicar uma série de coisas, como a nossa origem, por exemplo. Toda vez que ouvimos nossos pais ou outros familiares contarem algo sobre nossa infância, podemos conhecer mais sobre nós mesmos, quem e como somos. A narrativa, nesse caso, cumpre uma função explicativa, pois através dela conseguimos nos situar melhor no mundo. O mito nada mais é do que uma narrativa que pretende cumprir uma função explicativa para o ser humano, procurando situá-lo no mundo, só que apresentando uma história imaginária, inventada. Trata-se da narrativa mais antiga a respeito do surgimento e das funções dos deuses, do mundo e da vida e está presente na cultura de todos os povos antigos, que a utilizavam para orientar suas vidas. O sistema mítico de explicação da realidade projeta as paixões, as motivações e as experiências mundanas no divino, isto é, projetavam nos deuses os mesmos sentimentos e qualidades dos seres humanos.


A característica principal do mito é que seu conteúdo não pode ser demonstrado de forma racional. Nos mitos gregos, por exemplo, afirma-se que os raios que caem sobre a terra provêm de Zeus, afirmação que não é passível de ser comprovada. O mito é um pensamento acrítico, pois não explica nem analisa sua maneira de conhecer ou o processo pelo qual chega ao saber. Surge, assim, como uma narrativa inquestionável e incontestável. Porém, no século VI a.C., vários fatores históricos e culturais – contato com outras culturas, surgimento do comércio, novas formas de organização política e social, a utilização da moeda – levaram os gregos a questionar os mitos. A partir desse momento, as respostas mitológicas não satisfaziam mais a alguns pensadores, que exigiam explicações mais rigorosas e aprofundadas. Abria-se uma brecha na estrutura mitológica para o surgimento do pensamento filosófico-científico, que valorizava a razão como a principal capacidade humana para conhecer a realidade. Até certo ponto, o pensamento filosófico surgiu em oposição ao pensamento mitológico. Mas seria um erro pensar que o pensamento mitológico tenha sido completamente desprezado pelo pensamento que o sucederia. Podemos dizer que o pensamento filosófico-científico, por um lado, nasceu em ruptura com a visão mítica do mundo e, por outro, incorporou em certa medida a estrutura mítica. Platão, por exemplo, em suas obras, utiliza-se muitas vezes de mitos para expressar alguma ideia filosófica. Os estudiosos discutem o que significa o mito platônico: alguns o apontam apenas como um recurso didático, outros como a permanência de estruturas míticas em seu pensamento; outros, ainda, como uma parte oculta de sua filosofia.

Para que serve a Filosofia? “A Filosofia é um saber que não tem utilidade alguma.” Essa é uma crítica que frequentemente se faz ao conhecimento filosófico. Mas será que só tem importância aquilo que tem uma utilidade imediata para o ser humano? Será que a Filosofia é inútil como seus críticos querem nos fazer acreditar? Pode-se pensar que a Filosofia é um saber inútil porque estamos acostumados a achar que para alguma coisa ter utilidade precisa produzir algum benefício material para a vida humana. Nossa sociedade capitalista está sempre querendo resultados numéricos, monetários, quantitativos e acredita que a Ciência e a tecnologia – essas sim – satisfazem as necessidades concretas dos seres humanos. Porém, as necessidades humanas não são apenas materiais, e a Filosofia atende a uma profunda carência do ser, que é a carência de sentido, de explicação dos primeiros e últimos porquês. Não conseguimos viver sem pensar na vida, na existência e em como podemos usar nossa liberdade, por exemplo. É como se estivéssemos guiando um barco por águas profundas em alto-mar, sem examinarmos como o barco funciona e em que direção ele está indo, sem revisar a sua estrutura, sem termos um roteiro de viagem, sem sabermos aonde vamos chegar. 14


Oliver, Martin. História ilustrada da Filosofia

A Filosofia também é necessária para pensarmos por nós mesmos. No mundo contemporâneo, muito do que pensamos não reflete nossos próprios pensamentos, apenas reproduzimos ser perceber, sem refletir, o que a mídia que nos cerca nos impõe. Então, não sabemos argumentar, não temos ideias próprias, temos apenas ideias em pedaços, que pensamos ser nossas, mas nem sempre são. Você provavelmente já deve ter se relacionado com pessoas que se sentem as “donas da verdade”. Sim, há muitas por aí! Essas pessoas nunca têm dúvida de nada: estão plenas de certeza. E o pior, na maioria das vezes, se sentem no direito de definir como os outros devem ser, pensar e agir. Pessoas com essas características assumem uma atitude bastante contrária à do filósofo, porque a reflexão filosófica só pode ser verdadeiramente vivenciada por aqueles que se permitem ter dúvidas.

Ilustração: Sócrates e discípulos. No julgamento do sábio, sua defesa argumentou a favor da sabedoria como a mais elevada das virtudes.

Sócrates viveu há quase 2 500 anos, quando ainda não havia a mídia – que formata tão profundamente as mentalidades – e, já no seu ­contexto, demonstrava que muitas das ideias que temos, adquirimos sem refletir sobre elas: são ideias que estão no ar. Ele usava o método da ironia para desconstruir pensamentos prontos e sem reflexão. Primeiro, perguntava a seu interlocutor, dando-lhe total liberdade, o que ele achava que era a coragem, a justiça ou algum outro princípio. Depois que o interlocutor discorria sobre suas certezas, Sócrates lhe propunha várias perguntas, muitas vezes deixando-o sem respostas, sem argumentos que confirmassem suas 15


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primeiras certezas, seu ponto de vista. Dessa forma, o filósofo demonstrava que seu interlocutor não tinha um pensamento próprio, mas uma ideia adquirida sem pensar. Você pode imaginar como seria se Sócrates aplicasse seu método nas pessoas de nossa sociedade atual? Além de comprovar que muitos de nós não têm pensamentos próprios, provavelmente ele iria encontrar bastante resistência, como, aliás, encontrou na Grécia do século IV a.C., pois sujeitos questionadores quase nunca são bem-vindos. Em geral, preferimos viver a ilusão de um saber que, no fundo, não temos, preferimos ignorar nossa própria ignorância. Assim, em resumo, tomando o pensamento dos gregos como referência, podemos dizer que, se na raiz da Filosofia está o admirar-se com o mundo – e esta é uma tendência natural dos seres humanos –, o pensamento filosófico se estrutura como um pensamento rigorosamente investigativo, pois traz na sua essência uma atitude radical de reflexão, de exame, de compreensão do conhecimento, dos sentimentos e dos pensamentos. A Filosofia indaga, quer saber de forma profunda o que são as coisas, interroga a sua estrutura e as relações entre elas, a causa e a finalidade de tudo. A atitude filosófica não se contenta com explicações simplistas e superficiais. O filósofo procura a lógica e a coerência nas explicações e recusa-se a trabalhar com ideias ou hipóteses sem fundamentos racionais: tudo deve ser demonstrado e validado. É por isso que temos que aprender a filosofar, mesmo já possuindo uma tendência para isso. O estudo dos filósofos é essencial para esse aprendizado. Veremos isso com mais clareza no texto de Miguel Reale, na seção Texto original. Apesar da necessidade de rigor, a Filosofia não deve ser algo monótono, chato e de difícil compreensão: ela nos dá, acima de tudo, um imenso prazer – o prazer de pensar e explorar a vida.

As ideias estão no ar. O pensamento filosófico é investigativo, quer saber o que são as coisas, sondar a vida. A filosofia traz o imenso prazer de pensar.

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Como a Filosofia começa na Grécia

Considerado um dos grandes sábios da humanidade, foi, segundo Aristóteles, o primeiro dos filósofos. Isso porque Tales teria sido o primeiro pensador ocidental a buscar uma explicação racional e natural para os fenômenos da natureza e, ao mesmo tempo, indagar sobre a totalidade de tudo o que existe. Considerava que a água teria dado origem a todas as coisas; e, embora seus seguidores discordassem de ter essa como substância essencial, concordavam que haveria um princípio único para a natureza primordial. Entre seus principais discípulos estão Anaxímenes e Anaximandro.

Os gregos, além de criarem a Filosofia, também abriram diversas áreas de investigação filosófica. Os primeiros filósofos (chamados hoje de pensadores pré-socráticos ou de filósofos da natureza) estavam preocupados com o estudo da natureza (physis) e do Cosmo (kosmos). Eram homens de grande saber teórico e prático, que tinham conhecimentos de Matemática e Astronomia. Para eles, a grande questão era entender a totalidade do real, o surgimento e o funcionamento da vida e do Universo. Os primeiros filósofos surgiram na cidade de Mileto, no século VI a.C.: Tales , Anaximandro e Anaxímenes ficaram conhecidos por sua originalidade em considerar os mitos insuficientes para explicar as coisas e a vida. Queriam respostas racionais para o surgimento do Cosmo e da vida e também para os fenômenos naturais, como o arco-íris, a chuva, o trovão, o raio. Empreenderam uma tentativa de explicar os fenômenos de forma especulativa e racional, sem a participação direta dos deuses. Para Tales, o princípio de tudo é a água; Anaximandro diz que o elemento básico é o indeterminado; para Anaxímenes, esse elemento é o ar. Esses filósofos buscavam o motivo, os fundamentos, a causa primeira da qual tudo teria derivado. Outros temas e filósofos também foram importantes nesse período, por trazerem novas problemáticas para o âmbito da Filosofia: o problema do ser e do não ser, do sensível e do inteligível, da pluralidade e da unidade, do movimento e do repouso (temas que veremos ao longo deste livro).

Anaximandro (610-547 a.C.) Discípulo de Tales de Mileto, pouco se sabe sobre sua vida. Escreveu Da natureza, obra que não chegou até nós. Matemático e astrônomo, procurou responder à pergunta comum entre os pensadores gregos de sua época: Qual é a origem de todas as coisas? Para ele, tratava-se do apeíron, palavra que significa “o infinito” ou o “indeterminado”.

Anaxímenes (c. 585-528 a.C.) Principal discípulo de Anaximandro, da escola filosófica naturalista grega. Introduziu na filosofia naturalista o conceito de ar como princípio fundador da natureza e começou a se preocupar com a questão do movimento e da transformação das coisas.

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Museu do Vaticano, Roma, Itália

Tales de Mileto (cerca de 625-558 a.C.)

Escola de Atenas (detalhe), de Rafael, 1510 - 1511. Neste detalhe da pintura, uma idealização do que teria sido a Escola de Atenas (já que os filósofos citados não viveram na mesma época – veja na pág. 13), vê-se Aristóteles, ao centro, com a mão para baixo, talvez indicando a importância da natureza material. Ao seu lado, Platão ergue o indicador para o alto, quem sabe advertindo sobre o poder dos pensamentos e das ideias. Os dois filósofos foram grandes referências para a Filosofia moderna.


Guy Rachet, La Grèce et Rome

Didaticamente, podemos dividir algumas tendências do filosofar no decorrer da História: • Há aqueles filósofos que se detêm sobre a questão do ser das coisas e do ser do homem – a ontologia é o estudo do ser. O termo mais antigo é metafísica (o que está além da física). As respostas a esse questionamento podem variar: o ser é, o ser está sendo e o ser nada é (conteúdo abordado no capítulo 2). • Há aqueles que estão mais interessados em saber o que podemos saber e mesmo se podemos saber algo – qual é a segurança ou não do nosso conhecimento –; a gnoseologia é o estudo do conhecimento. As respostas também variam: é possível, de alguma forma, termos um conhecimento da realidade (há inúmeras teorias a respeito de como pode ser esse conhecimento e seus limites) ou não termos nenhum tipo de verdade, certeza ou conhecimento objetivo (isso será objeto do capítulo 4). • Há os filósofos que se debruçam sobre os valores ou princípios que devem guiar o comportamento humano – este é o domínio da ética (isso será discutido no capítulo 5). Entre esses, há dois extremos: os que consideram que há princípios válidos acima do tempo e da História, pois pertencem à dimensão humana, e os que acham que tudo é relativo, ou seja, depende das circunstâncias. • Há ainda aqueles que consideram primordial, na Filosofia, estudar as relações sociais do ser humano, seu status político, seu modo de estar em sociedade. Trata-se da Filosofia política (capítulos 9 e 10). • Outros, por fim, reconhecem enorme valor na Arte como maneira de perceber a vida e a realidade, e também de expressar essa percepção. Nesses casos, temos a estética como foco central da Filosofia. Nada impede que um filósofo pense ao mesmo tempo sob diversos aspectos, por exemplo, fazendo pontes entre a metafísica e a ética, ou entre a ética e a Filosofia política, ou entre a estética e a ética, e assim por diante.

As ruínas de Ágora: do grego agorá, tratava-se de um espaço público, ou praça do povo, onde os gregos sentavam-se e livremente debatiam política, compravam e vendiam produtos e mantinham outras atividades. A praça da foto ficava na vila de Mecenas, no Peloponeso, século V a.C.

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AFP

A face oriental Há uma discussão antiga sobre se a Filosofia é mesmo uma criação dos gregos ou dos povos orientais. Quando os gregos a criaram, os povos orientais já possuíam um elevado nível de civilização, um grande acúmulo de conhecimento, diversos tipos de habilidades técnicas, saber científico e filosofias de vida e religiosas. Nesse sentido, afirmar que a Filosofia é obra dos gregos pode soar como pretensão à superioridade e pedantismo ocidental. No entanto, uma reflexão um pouco mais profunda pode nos revelar que essa tese não se sustenta. Segundo John Burnet e Giovanni Reale, nenhum pensador, filósofo ou historiador antigo mencionou a origem da Filosofia no Oriente. Vários pensadores gregos, como Heródoto e Platão, reconheceram suas dívidas intelectuais para com os povos orientais. Os povos orientais com os quais os gregos tinham contato possuíam sabedoria religiosa, mas não uma Filosofia baseada na crítica à tradição e na busca racional e lógica. De acordo com os historiadores, possuíam a Ladrilho fabricado pelos harappas em 2000 a.C. representa um mesma espécie de sabedoria dos gregos anhomem em atitude de meditação. Harappa é um sítio arqueotes de criarem a Filosofia. lógico a 480 quilômetros ao norte do vale do Indo, na Índia. Burnet e Reale dizem que, sem dúvida, os gregos incorporaram conhecimentos orientais como a Matemática, a Geometria e a Astronomia, mas aproveitaram esses conhecimentos e os transformaram em algo mais consistente, racional, lógico e coerente. Quebraram a tradição dos mitos, romperam com as explicações convencionais e religiosas, elaborando um conhecimento racionalizado, questionador e organizado. Outro fator importante a ser levado em consideração é que não se sabe da utilização, por parte dos gregos, de nenhuma obra de pensador oriental. Segundo os historiadores, antes de Alexandre, o Grande, da Macedônia, que estendeu suas conquistas ao Oriente, seria impensável que a sabedoria hindu ou de qualquer povo oriental chegasse à Grécia de forma elaborada ou que pudesse existir algum grego capaz de fazer uma tradução de um texto oriental. No período em que surge a Filosofia, dificilmente um grego teria condições de entender um discurso de um sacerdote egípcio ou hindu, por exemplo. O fato de os gregos terem incorporado conhecimentos orientais na estrutura do seu pensamento não prova que a Filosofia seja um produto oriental. Não se pode negar que ela teve como marca a originalidade dos 19


gregos, que incorporaram ideias e conhecimentos de outros povos, e deram um salto qualitativo ao criá-la. Essa nova forma de conhecimento apresentou uma nova estrutura do pensar, um novo caminho para se apropriar das coisas, uma nova abordagem da realidade que teve a lógica e a razão como instrumentos principais.

Nesse sentido, formas de conhecimento baseadas na revelação (de sábios, profetas e sacerdotes) e na tradição (como um conhecimento que passa de geração para geração, sem nenhum questionamento) apresentam limites para seu desenvolvimento, pois não podem ser criticadas ou modificadas. O que se chama de filosofia oriental apresenta essas características, por isso não pode ser classificada como Filosofia no sentido estrito da palavra, apenas em um sentido mais amplo, como uma sabedoria de vida. A Filosofia grega combateu e destruiu as crenças estabelecidas, rompeu com a tradição, promoveu transformações radicais, pois o saber não é uma revelação de seres especiais ou superiores, mas conquista ou produto dos seres humanos. É um saber que passou por um processo de dúvida, de busca, de conquista, de julgamento e de crítica, podendo ser aceito, rejeitado ou corrigido. A Filosofia, tal como foi arquitetada pelos gregos, tem um caráter investigativo e é um saber que deve ser comprovado e validado pelo raciocínio. Isso tudo não quer dizer que a sabedoria oriental não possa dar sua preciosa contribuição para enxergarmos o mundo. Trata-se apenas de outro tipo de sabedoria, com outros métodos que não os da Filosofia ocidental.

Vocações Vamos refletir sobre isso: a Filosofia é uma profissão? Vive-se de Filosofia? Nada fácil responder. Para Sócrates, por exemplo, seria uma espécie de “prostituição intelectual” ganhar dinheiro para filosofar, pois a Filosofia é uma sabedoria de vida, que exige desprendimento dos bens materiais, e não algo que possa ser “vendido”. Já os sofistas, contemporâneos de Sócrates, foram os primeiros a receber (e recebiam bem) para ensinar à juventude o dom da retórica ou do discurso. Porém, eles não se denominavam filósofos. Por outro lado, surge uma pergunta: o professor de Filosofia (que recebe salário para ensinar) precisa ser filósofo? E o filósofo pode ou deve ser professor de Filosofia? Se considerarmos a Filosofia como um amontoado de sistemas fechados, que pode ser transmitido mecanicamente, então o professor de Filosofia será apenas um mediador passivo entre as ideias filosóficas acumuladas no decorrer da História e o aluno.

Sofista Sofista é aquele que argumenta com base em sofismas, argumentos ou raciocínios aparentemente lógicos, mas, na verdade, não conclusivos ou enganosos. Para os sofistas, o homem não pode encontrar a verdade (aletheia), só emitir a opinião (doxa), pois não existem verdades absolutas.

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Entretanto, a Filosofia é um modo de estar no mundo, uma maneira de pensar a vida, uma atitude intelectual e existencial. Os verdadeiros filósofos terão horror a esse ensino da Filosofia, que a considera uma coleção de sistemas sem vida, estáticos, sem sentido existencial, sem outro propósito que não o de propor respostas prontas na hora da prova. Por isso, dizemos que é preciso sim ser filósofo ou, pelo menos, é preciso estar imbuído de uma atitude filosofante! Isto é, não é preciso ser Platão ou Kant para ensinar ou estudar Filosofia, mas é preciso ter uma postura filosófica. Isso se traduz em uma atitude indagadora, investigativa, inquieta, nunca passiva ou conformista diante de respostas prontas. Ora, quem age assim tem naturalmente a tendência a contagiar outros com suas buscas; portanto, o filósofo se torna um educador (mais do que um professor no sentido estrito do termo). E, nesse caso, que mal há em ser ele remunerado por uma função social, que é a de contagiar as novas gerações com a chama filosófica? Mas ele deverá fazer isso sempre, independentemente de seus compromissos profissionais, porque Sócrates tinha razão ao considerar a Filosofia, sobretudo, uma atitude de vida. E, ao fazê-lo, o filósofo-educador poderá muitas vezes ter desvantagens financeiras, porque quem filosofa de fato não vende a mente, não faz concessões em seus princípios, é fiel à própria consciência.

Filosofia no Brasil Interdisciplinaridade

História

Comunismo Por definição, o comunismo é um sistema de governo no qual, na teoria, não existe propriedade privada, a terra e os meios de produção pertencem à população em geral, geridos pelo Estado, e os bens são partilhados segundo a necessidade de cada um.

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Sabe aquelas pessoas que sempre se consideram donas da verdade ou das situações, que acham que não precisam apresentar justificativas para o que fazem ou deixam de fazer, sem medir consequências? No campo da política algo parecido pode acontecer. Em uma situação de ditadura militar, por exemplo, os representantes do Estado não se sentem na obrigação de dar satisfação aos cidadãos e preferem silenciar os questionamentos para exercerem o poder de forma autoritária. E a Filosofia? Como fica nessas condições políticas? Será que ela é valorizada pelo Estado, e por aqueles que defendem práticas autoritárias de poder? Quando a ditadura militar estava no auge no Brasil, em 1968, e vigorava o Ato Institucional nº 5, sob o governo do general Garrastazu Médici, era proibido pensar. Os anos em que Médici ficou no poder, entre 1969 e 1974, foram os piores da ditadura. Milhares de pessoas foram torturadas, mortas ou exiladas do país por terem alguma ideia contrária à ideologia reinante ou simplesmente por manifestarem posições políticas contra o regime militar. A maior repressão era contra aqueles que eram ou pareciam ser simpatizantes ao comunismo, muitos dos quais foram perseguidos e mortos.


Arquivo/AE

Naturalmente, em um regime desses, a Filosofia era muito malvista, por ser uma porta de crítica e reflexão, de pensamento autônomo e plural. Foi justamente durante esse governo que ela foi retirada do currículo das escolas brasileiras. A Lei nº 5.692, de 1971, aboliu a disciplina Filosofia, e apenas em 1982 ela retornou ao currículo, mas como matéria optativa, que as escolas poderiam oferecer ou não.

Golpe militar Os militares temiam que João Goulart, um político de esquerda, implantasse no Brasil um regime comunista nos moldes da China e de Cuba, por isso planejaram e executaram um golpe de estado contra ele. Médici fazia parte da junta militar que assumiu o poder após o golpe, com os generais Humberto de Alencar Castello Branco e Arthur da Costa e Silva. Depois deles, assumiram, pela ordem, Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo, o último dos generais na presidência no Brasil, que deixou o cargo em março de 1985. Tancredo Neves, que venceu a primeira eleição direta em mais de 20 anos no país, e que sucederia Figueiredo, teve de ser internado na véspera da posse. Muito doente, morreu em abril, o que levou José Sarney, seu vice, a assumir a presidência.

Coleção Folha Imagem

A desvalorização ou mesmo a ausência da Filosofia na escola durante grande parte da História do Brasil podem ter contribuído significativamente para uma mentalidade pouco questionadora e crítica do povo brasileiro, sobretudo nas últimas décadas. Essa desvalorização, porém, não acontece apenas em regimes políticos autoritários. A sociedade capitalista atual também menospreza a Filosofia, que, com isso, não ganha lugar de relevo nas escolas. Isso porque atualmente o que mais se valoriza é o preparo do indivíduo para o mercado de trabalho, quase sempre sem preocupação com seu espírito crítico, sua capacidade de pensar e sua realização pessoal. Ora, a Filosofia pode ser um bom instrumento crítico contra essa anulação do sujeito perante a sociedade de consumo.

Estudantes são conduzidos para inquérito no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), durante o regime militar no Brasil, no Rio de Janeiro, em 1968.

General Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil (1969-1974), durante o regime militar que derrubou o governo do presidente João Goulart, em março de 1964.

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Texto original Amor do saber e exigência de universalidade

ser capaz de dizer em que ano escreveu Kant cada um de seus estudos, para se possuir atitude filosófica: esta é própria de quem saiba captar e renovar os problemas universais sobre o Cosmo e sobre a vida, procurando satisfazer às exigências atuais, significantes por novos e por velhos problemas situados em diversos ciclos histórico-culturais.

Miguel Reale

S

e nos inspirarmos nas origens do pensamento ocidental, verificaremos que a palavra filosofia significa amizade ou amor pela sabedoria. O termo é deveras expressivo. Os primeiros filósofos gregos não concordaram em ser chamados sábios, por terem consciência do muito que ignoravam. Preferiram ser conhecidos como amigos da sabedoria, ou seja, filósofos. A Filosofia reflete no mais alto grau essa paixão da verdade, o amor pela verdade que quer ser conhecida sempre com maior perfeição, tendo-se em mira os pressupostos últimos daquilo que se sabe. O filósofo autêntico, e não mero expositor de sistemas, é, como o verdadeiro cientista, um pesquisador incansável, que procura sempre renovar as perguntas formuladas, no sentido de atingir respostas que sejam “condições” das demais. A Filosofia começa com um estado de inquietação e de perplexidade, para culminar numa atitude crítica diante do real e da vida. Aristóteles (384-322 a.C.), repetindo ensinamento platônico, dizia que a Filosofia começou com a perplexidade, ou melhor, com a atitude de assombro do homem perante a natureza, em um crescendo de dúvidas, a começar pelas dificuldades mais aparentes. O homem passou a filosofar no momento em que se viu cercado pelo problema e pelo mistério, adquirindo consciência de sua dignidade pensante. Não é preciso, pois, sentir-se tranquilamente ancorado em algum sistema da Filosofia, nem

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A Filosofia, por ser a expressão mais alta da amizade pela sabedoria, tende a não se contentar com uma resposta, enquanto esta não atinja a essência, a razão última de um dado “campo” de problemas. Há certa verdade, portanto, quando se diz que a Filosofia é a ciência das causas primeiras ou das razões últimas: trata-se, porém, mais de uma inclinação ou orientação perene para a verdade última do que a posse da verdade plena. A Filosofia, com efeito, procura sempre resposta a perguntas sucessivas, objetivando atingir, por vias diversas, certas verdades gerais, que põem a necessidade de outras: daí o impulso inelutável e nunca plenamente satisfeito de penetrar de camada em camada, na órbita da realidade, numa busca incessante de totalidade e sentido, na qual se situem o homem e o Cosmo. Ora, quando atingimos uma verdade que nos dá a razão de ser de todo um sistema particular de conhecimento, e verificamos a impossibilidade de reduzir tal verdade a outras verdades mais simples e subordinantes, segundo certa perspectiva, dizemos que atingimos um princípio ou um pressuposto. Quando se afirma que Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, o que se quer dizer é que a Filosofia pretende elaborar uma redução conceitual progressiva, até atingir juízos com os quais se possa legitimar uma série de outros juízos integrados em um sistema de compreensão total. Assim, o sentido de universalidade revela-se inseparável da Filosofia. Vê-se, pois, que a Filosofia representa perene esforço de sondagem nas raízes dos problemas.


de antigas perguntas: o que distingue, porém, a Filosofia é que as perguntas formuladas por Platão e Aristóteles, Descartes ou Kant, não perdem a sua atualidade, visto possuírem um significado universal que ultrapassa os horizontes dos ciclos históricos. A universalidade da Filosofia está de certa forma mais nos problemas do que nas soluções. [...] A pesquisa das razões últimas das coisas e dos primeiros princípios implica a possibilidade de soluções diversas e de teorias contrastantes, sem que isto signifique o desconhecimento de verdades universais que se imponham ao espírito com a força irrefragável da evidência.

É uma ciência cujos cultores somente se considerariam satisfeitos se lhes fosse facultado atingir, com certeza e universalidade, todos os princípios e razões últimas explicativas da realidade, em uma plena interpretação da experiência humana; mas nas vicissitudes do tempo, tal paixão pela verdade sempre se renova; surgem teorias, sistemas, posições pessoais, perspectivas diversas, em um dinamismo que nos é conatural e próprio, de maneira que a universalidade dos problemas não pode contar com resultados ou soluções todos universalmente válidos. Poder-se-ia dizer, porém, que é em nossa procura total da verdade que se manifesta a verdade total. [...] Quem passa a estudar Filosofia no plano da História fica, à primeira vista, desapontado, quando não cético, por encontrar um tumultuar de respostas, uma multiplicação de sistemas e de teorias. Surge, então, logo a pergunta: por que estudar Filosofia, se os filósofos jamais logram se entender? Qual é a vantagem ou utilidade da Filosofia, se os maiores pensadores nunca chegam à concordância sobre pontos fundamentais? Quando se faz tais perguntas, pensa-se que estão sendo destruídas as veleidades da Filosofia, esquecendo-se que reside exatamente aí a dignidade e a grandeza do saber filosófico, sem que resulte comprometida a sua pretensão de ser ciência rigorosa.

A História da Filosofia tem o grande valor de mostrar que esta não pode se estiolar em um sistema cerrado, onde tudo já esteja pensado, muitas vezes antecipadamente resolvido. Quando um filósofo chega ao ponto de não ter mais dúvidas, passa a ser a história acabada de suas ideias, o que não quer dizer que não gere a Filosofia nos espíritos uma serenidade fecunda, apesar da incessante pesquisa. Como observa Karl Jaspers: “Esse modo de estar em marcha – o destino do homem no tempo – não exclui a possibilidade de uma profunda paz interior e, até mesmo, em certos instantes supremos, a de uma espécie de plenitude. REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 3-6.

Para estudar o texto: Ceticismo Cético é o indivíduo que não acredita, duvida ou se apresenta como incrédulo. O ceticismo é uma doutrina filosófica que tem por base a ideia de que o homem não tem capacidade de atingir a certeza total sobre uma verdade ou conhecimento específico.

A Filosofia não existiria se todos os filósofos culminassem em conclusões uniformes, idênticas. A Filosofia é, ao contrário, uma atividade perene do espírito, ditada pelo desejo de ­renovar-se sempre a universalidade de certos problemas, embora, é claro, as diversas situações de lugar e de tempo possam condicionar a formulação diversa

• •

Anote no caderno todas as palavras que você desconhece e procure-as no dicionário. Entenda o texto parágrafo por parágrafo, relendo-o se for necessário, para a compreensão integral do pensamento do autor. Se houver um conceito ou um trecho que lhe pareça particularmente difícil, peça ajuda ao seu professor. Escreva um pequeno resumo de 5 a 10 ­linhas, com as ideias principais.

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Atividades

Não escreva n

o livro!

Lanche filosófico 1. Reúna-se com três ou quatro colegas de classe, leiam os textos apresentados a seguir e façam uma breve discussão filosófica, levando em consideração as seguintes questões: a) Das definições de Filosofia apresentadas, qual é a mais divergente? Em que sentido? b) Ao ler as definições, qual vocês acharam mais interessante? Por quê? c) Como vocês, afinal, definiriam a Filosofia? Para ficarem inspirados, vocês podem ouvir as seguintes músicas de compositores brasileiros, que citam o assunto: Filosofia, de Noel Rosa, O Filósofo, de Jorge Ben Jor, e Mora na Filosofia, de Caetano Veloso. Depois dessa discussão entre os integrantes do grupo, partilhem suas conclusões com o restante da classe.

A Filosofia é a ciência dos fundamentos da realidade. Lá onde as outras ciências param, onde, sem mais indagar, aceitam os pressupostos, aí entra o filósofo e começa a investigar. As ciências conhecem – mas o filósofo pergunta o que é o conhecimento; as outras ciências estabelecem leis – ela põe a questão do que seja uma lei; o homem comum e o político falam do fim e da utilidade – o filósofo pergunta o que se deve entender por fim e utilidade. Já se vê que a Filosofia é uma ciência radical, no sentido em que ela vai às raízes das questões muito mais profundamente que qualquer outra ciência; lá onde as outras se dão por satisfeitas, ela continua a indagar e a perscrutar. BOCHENSKI, J. M. Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo: EPU, 1977. p. 29-30.

[Parte-se] da convicção de que nada do que é humano é alheio à Filosofia e de que, pelo contrário, esta é o próprio homem, que em si mesmo se faz problema e busca as razões e o fundamento do ser que é o seu. ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Lisboa: Presença, 1981. p. 7. v. 1.

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Capítulo

2

Ser ou Não Ser? Eis a Questão!

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Para começar

O rio Tejo corre ao lado das casas na parte antiga de Lisboa, em Portugal.

Da mais alta janela da minha casa [...] Flor, colheu-me o meu destino para os olhos. Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas. Rio, o destino da minha água era não ficar em mim. Ide, ide, de mim! Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. Murcha a flor e o seu pó dura sempre. Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. Passo e fico, como o Universo PESSOA, Fernando. O Eu profundo e outros Eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

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Coleção particular

A ponte de Heráclito, de René Magritte, 1935.

As coisas são, estão sendo ou não são?

Nicola Abbagnano (1901-1990) Filósofo que foi um dos precursores do existencialismo italiano. Ele se tornou um grande inspirador do grupo de intelectuais denominado “neo-iluminista”, organizando encontros para a construção de uma filosofia laica, que aceitava as principais correntes de pensamento filosófico mundiais. É autor de diversos livros, entre os quais uma coleção considerada o melhor material a sintetizar a história da Filosofia.

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Basta olhar à volta para ver que tudo se modifica a todo instante. Ou mesmo olhar para nós mesmos: nascemos, crescemos, amadurecemos, envelhecemos, e a cada dia somos diferentes, tanto por fora como por dentro. Mas há algo também de permanente: todos os dias o Sol está no céu; se jogarmos uma pedra de certa altura, ela cairá; se aquecermos a água, em determinado grau ela ferverá... E nós, apesar de sermos diferentes a todo momento, somos sempre nós mesmos. Por isso, podemos usar a palavra eu. Esse nosso eu é diferente de todos os outros eus e há algo nele que não muda, pois sempre podemos nos reconhecer. Essa reflexão nos introduz um dos grandes problemas da Filosofia de todos os tempos: o problema do ser. Podemos usar o verbo ser de uma maneira cotidiana, quando atribuímos uma qualidade a alguma pessoa ou coisa. Por exemplo: a menina é bonita, o céu é azul, o dia é claro. Mas, na Filosofia, podemos usar esse verbo sem predicativo: o homem é, as coisas são, a realidade é. Nesse caso, estamos tratando da existência de algo, de uma existência real: além das mudanças que as coisas podem apresentar, elas são algo permanente. Essa questão tem sido importante no decorrer dos milênios, tanto na Filosofia ocidental quanto na Filosofia oriental (como veremos adiante). A parte da Filosofia que se ocupa dessas questões relativas ao ser é chamada de metafísica (estudo dos princípios elementares do conhecimento e do ser, da essência do ser). Segundo o filósofo italiano Nicola Abbagnano , no século XVIII criou-se outro termo para esse ramo da Filosofia: a ontologia (o estudo do ser). Entre as muitas discussões sobre esse tema, surge ainda outro conceito ou anticonceito, difícil de ser imaginado, porque parece que não tem sentido: o nada ou o não ser. Há filósofos que admitem que o ser nada é e que nada podemos saber do ser.


Como se começou a pensar o ser?

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Quando observamos a realidade percebemos que ela está em constante mudança. As pessoas, por exemplo, mudam ao longo do tempo. Uma criança, com o passar dos anos, se transforma: seu corpo, seu comportamento e sua maneira de pensar mudam de forma sensível. Mas não são apenas os seres humanos que se transformam. A natureza também está o tempo todo apresentando movimentos dos mais variados. Parte das águas dos rios e dos mares, por exemplo, evapora e se transforma em chuva; um fruto cai em terra fértil e sua semente se transforma em uma nova planta; o dia se transforma em noite. Diante desse quadro de mudanças sensíveis, os primeiros filósofos gregos se colocaram a seguinte questão: as coisas que vemos e conhecemos (natureza e seres humanos) estão em constante movimento de mudança, mas será que há algo de permanente, de estável, de imutável? Ou será que estamos condenados a sermos expectadores de um mundo que, por não apresentar identidade, não pode ser conhecido? Parmênides , no texto Poema, apresenta uma resposta a essa problemática. O filósofo admite que, por trás das aparências – do que parece ser e do que está em constante transformação – existe uma essência do real permanente que não está sujeita a transformações de qualquer espécie. Essa essência é eterna, imutável, imóvel e incorruptível. O movimento das coisas, tal como nossos sentidos percebem, é apenas aparência. Ou seja, ele é uma característica superficial das coisas. Parmênides chama a essência das coisas de ser e o movimento superficial das coisas de não ser, preocupando-se em definir o que é e o que não é. Para ele, podemos dizer que existem duas dimensões da realidade: a essencial e a da aparência. As coisas são, antes de apresentarem certas características (por exemplo, serem coloridas, quentes ou frias). Surge, então, outra questão fundamental na filosofia de Parmênides: Como podemos conhecer o ser das coisas? Nossos sentidos têm a capacidade de chegar até esse ser? Parmênides (530-460 a.C.) Filósofo grego pré-socrático, foi fundador da escola eleática. Estudou a questão do ser, que para ele era uno, imóvel e imutável. Seus pensamentos foram expressos em um poema chamado Sobre a natureza.

Parmênides.

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Heráclito de Éfeso (c. 540-470 a.C.) Filósofo grego, pré-socrático, formulou a ideia de que tudo está em um devir constante, sempre em mudança. No entanto, considera-se que ele também aceitava algo que seria permanente no Universo. Foi chamado de Obscuro, por causa de seus textos de difícil interpretação.

Devir É o que virá a ser, é o passar a ser, a mudança constante de tudo o que existe.

Logos É entendido como o princípio supremo que rege o universo. Para a filosofia estoica, é o princípio que anima e organiza a matéria, agindo como força determinante do destino e da racionalidade humana. É também entendido como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da ordem e da beleza.

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Aliás, como veremos, a questão do ser vem sempre acompanhada da questão de como podemos conhecer o ser, se é que podemos conhecê-lo! Isso porque, de acordo com Parmênides, o conhecimento de algo só se torna possível, se esse algo apresentar uma identidade, isto é, se ele apresentar um mínimo de estabilidade e permanência. Para Parmênides, os sentidos não são os melhores instrumentos para conhecer o ser das coisas. O ser imutável está por trás da mudança e só pode ser visto pelo pensamento ou pela alma; os órgãos sensoriais só captam as aparências, as transformações. Assim, se quisermos conhecer verdadeiramente as coisas, temos de ir além da experiência e do conhecimento sensível: a descoberta do ser parmenidiano se dá pelo pensamento, pela atividade racional. As coisas mudam, mas o ser das coisas não muda. Os sentidos veem o que muda e a alma vê o que não muda. Para o filósofo, só é possível explicar o movimento das coisas se por trás desse movimento existir um ser que dá identidade a essa coisa. Imaginemos uma árvore que, desde o nascimento até a sua morte, está em constante transformação. Ainda assim é possível ver nessa árvore o mesmo ser que nos permite reconhecê-la como a mesma árvore, desde que nasceu até sua morte. Por isso, por trás de sua constante mudança, ela tem uma identidade. A esse reconhecimento chamamos, em Filosofia, de princípio da identidade: a realidade em seu sentido profundo tem algo de permanente e imutável. O debate inaugurado pelo filósofo encontrou eco em diversas correntes filosóficas posteriores, como veremos neste capítulo. Provavelmente, Parmênides, em sua filosofia, está criticando o filósofo grego Heráclito de Éfeso (c. 540-470 a.C), chamado de “Obscuro”, pois seu pensamento parece difícil de ser compreendido. Heráclito considerava que as coisas estavam em permanente transformação, em um incessante devir. “O ser não é mais que o não ser”, dizia, porque tudo é devir. O ser é dinâmico, e não imutável e estático. Heráclito é o autor da famosa frase: “Tudo flui, não nos banhamos nunca duas vezes no mesmo rio”. Ele via o mundo como um eterno fogo que se transforma. Além disso, ele entendia que todas as coisas estão em conflito constante na realidade. Em um dos seus aforismos dizia: “A luta é a mãe de tudo”. Tudo o que existe no mundo tem origem na discórdia e na contrariedade. A realidade é composta de contrários que se completam: dia e noite, vida e morte, calor e frio, beleza e feiura... Esse conflito de opostos dá equilíbrio ao fluir do ser. No entanto, além do devir e da oposição dos contrários, parece que Heráclito acreditava na permanência de uma substância única que não estava sujeita ao devir e que garantiria a ordem harmoniosa do Cosmo. Ele chama essa substância de logos, que é unificador do real. Para ele “todas as coisas são uno”. O mundo oculta uma lei permanente, que não está sujeita à mudança. É preciso descobrir essa lei por trás de tudo. O homem desperto – o filósofo –, que segue o que é divino com a razão, chega ao permanente e ao uno. Nesse sentido, historiadores da Filosofia dizem que, no fundo, o pensamento de Heráclito se assemelha ao de Parmênides.


Reprodução (?)

A criação dos animais, de Rafael, 1518 - 1519. Na obra, o pintor capta a preocupação pré-socrática com o mundo físico mais do que com o mundo mental.

O devir de Heráclito vai influenciar na quebra da identidade do ser na Filosofia ocidental. Se o ser é devir, é ao mesmo tempo ser e não ser, portanto, deixa simplesmente de ser. O sopro de Heráclito se fará presente na era moderna na filosofia de Georg Hegel (1770-1831). Veremos isso mais adiante neste capítulo. Outros filósofos pré-socráticos enfrentaram essa questão de uma maneira parecida com a Ciência moderna. Não estavam preocupados com o ser, mas com a realidade material, em explicar a física da natureza. Empédocles procurou resolver a questão dizendo que existem quatro elementos (fogo, água, terra e ar) que são movidos pela amizade e pela discórdia. Esses elementos são raízes de tudo e dão unidade ao todo: agregando-se, dão origem e nascimento às coisas; desagregando-se, produzem sua corrupção. O processo de agregar e desagregar explica a pluralidade e o movimento da realidade e do mundo. Já os atomistas Leucipo e ­Demócrito de Abdera afirmaram que o elemento primordial da realidade é o átomo. Toda realidade é composta de átomos e de vazio. Foram eles os antecessores da Física do século XX, que passou a ver o Universo como constituído de partículas ainda menores que os átomos e de espaços vazios.

Leucipo (c. 500 a.C.) Foi, provavelmente, o pioneiro do atomismo grego. Pouco se sabe sobre ele. Considerava o Universo infinito, ordenado segundo a lei da necessidade. Os elementos fundamentais de sua doutrina estão presentes na obra de Demócrito, seu discípulo.

Demócrito de Abdera (c. 460-370 a.C.) Um dos últimos filósofos pré-socráticos, seguidor de Leucipo. Para ele, a realidade era composta de átomos, pequenos elementos indivisíveis de formas variadas, e sua união e separação produziam todas as coisas.

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A face oriental O ser e o devir em Lao-Tsé Na mesma época de Heráclito, entre os séculos VI e V a.C., na China, a filosofia taoísta também encontra uma visão de devir da realidade e, ao mesmo tempo, de unidade do ser. No livro Tao-Te King (comumente traduzido do chinês como Livro do Caminho e da Virtude), atribuído a Lao-Tsé, há a noção de constantes transformações das coisas e da realidade e, ao mesmo tempo, a ideia de uma unidade imutável do todo. Trata-se de um livro poético, com reflexões filosóficas e morais.

Coleção Roger Viollet / AFP

IV O Tao flui sem cessar. No entanto, na sua atuação, ele jamais transborda. Ele é um abismo; parece o ancestral de todas as coisas. Abranda a sua dureza. Desata os seus nós. Modera o seu brilho. Une-se com a sua poeira. É profundo, mas como é real! Não sei de quem possa ele ser filho. Parece ser anterior a Deus.

Nesta pintura está representado um encontro entre os sábios chineses Lao Tsé e Confúcio.

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XXV Há uma coisa que é invariavelmente perfeita. Antes que houvesse Céu e Terra, já estava ali, Tão silenciosa e solitária. Ela continua sozinha, imutável. Corre em círculo e não se põe em risco. Pode ser chamada de “Mãe do ­Mundo”. Não conheço o seu nome. Qualifico-a de Tao. Dando-lhe a muito custo um nome, Chamo-a de Grande. “Grande” quer dizer “sempre em movimento”. “Sempre em movimento” quer dizer “distante”. “Distante” quer dizer “de volta”. Assim, o Tao é grande, o Céu é grande, a Terra é grande, E o Homem também é grande. No espaço, há quatro grandes, E o Homem é um deles. O Homem orienta-se pela Terra. A Terra pelo Céu. O Céu orienta-se pelo Tao. O Tao orienta-se por si mesmo. LAO-TSÉ. Tao-Te King. Texto e comentário de Richard Wilhelm. São Paulo: Pensamento, 2006. p. 40 e 61.


O ser e o movimento Você acha possível conhecer algo que não apresenta identidade, que muda o tempo todo e que não apresenta a menor estabilidade? Seria difícil, não é mesmo? Imagine, por exemplo, uma pessoa que a cada instante mudasse seu jeito de ser e de se comportar. Na condição de observador, jamais poderíamos chegar a um conhecimento preciso dessa pessoa, porque a cada momento ela nos surpreenderia com atos e maneiras de ser. Se olharmos para o mundo que nos cerca, podemos facilmente ver que ele é, em grande medida, mutável. Tudo nele se transforma, se altera, se modifica. Diante desse quadro de mudanças das mais variadas podemos assumir duas posições distintas: ou concordamos com os sofistas gregos, ou nos colocamos do lado de Parmênides e aceitamos a possibilidade de encontrar o permanente por detrás das mudanças. Os sofistas – grupo que viveu na mesma época de Sócrates, na Grécia antiga, durante o século IV a.C.) – não se autodenominavam filósofos, porque, enquanto os filósofos sempre foram em busca de algum conhecimento, alguma verdade, alguma explicação do ser e do mundo, eles defendiam que não se podia ter certeza de nada, conhecer nada, saber nada. Górgias , um dos mais famosos sofistas, por exemplo, afirmava: “o ser nada é, se for alguma coisa, não podemos saber e se pudermos saber, não podemos comunicar”. Isso quer dizer que os sofistas sustentavam a ideia de que o homem não pode encontrar a verdade (alétheia), mas apenas permanecer no registro da opinião (doxa). Górgias de Leontini (c. 485-480 a 375 a.C.) Filósofo grego, nascido na Sicília, um dos grandes sofistas e oradores da Grécia antiga, com destaque como professor de retórica. O título de sua obra principal é Do não ser. Para ele, a Filosofia deveria renunciar à busca do ser e da verdade e voltar-se para a retórica.

Imagine um sujeito que só é capaz de falar de suas preferências pessoais, alguém que só pode discorrer sobre suas impressões subjetivas, seus pontos de vistas e sua forma particular de olhar a realidade. Essa pessoa, segundo os gregos, só tem condição de dizer e de se orientar pela opinião (doxa), por isso, não pode alcançar a verdade (alétheia). Para encontrar a verdade, esse sujeito teria de abrir mão de suas preferências, sentimentos e gostos pessoais para atingir o ser das coisas que se identifica com a verdade (alétheia). Esse, porém, é justamente o movimento que os sofistas dizem ser impossível de realizar. Trataremos mais dessa questão no capítulo 4, onde abordaremos a questão da possibilidade do conhecimento, mas desde já procure refletir sobre a seguinte questão: Qual sua posição a respeito do ser: você pensa como os sofistas, que é impossível conhecê-lo ou desvendá-lo, ou acredita, 32


como Parmênides e outros filósofos gregos (Platão e Aristóteles), que o ser é e, portanto, pode ser pensado e conhecido por nós?

Para auxiliá-lo nessa reflexão, veja de que forma outros filósofos gregos trataram a questão do ser e da possibilidade de conhecê-lo.

A defesa do ser Platão Você já deve ter notado que o movimento é uma das grandes questões da filosofia grega. E já deve ter notado também que a questão do movimento está ligada diretamente à problemática do ser. Pois aquilo que está em movimento parece ser e não ser ao mesmo tempo. Pois bem, vejamos o que Platão tem a nos dizer sobre essa questão. Platão procurou explicar a mudança: para ele o que se transforma é apenas a realidade das coisas ou dos fenômenos e não a do ser. O mundo das coisas sensíveis e perceptíveis é e não é, porque tudo o que existe está sujeito a um processo de nascimento e morte, portanto de ser e de não ser. Mas, além desse mundo de mutações, existe um outro, absoluto, denominado pelo filósofo de Mundo das Ideias. Esse mundo seria um lugar onde o ser das coisas ou das verdades eternas tem existência. Nele está a realidade essencial do ser: eterna, una, imutável, que jamais deixará de ser. Essa forma de pensamento, que teve enorme influência em toda a história do Ocidente, é chamada de dualismo, pois concebe dois mundos: o sensível, das coisas que vemos, e o espiritual, daquilo que não vemos. Saint-Exupéry, o autor de O pequeno príncipe, definiu o mundo platonicamente: “O essencial é invisível aos olhos”. Isso não significa que, para Platão, o mundo sensível não exista, que se trata de uma ilusão. O ser das coisas do mundo sensível participa e é originário do ser do mundo metafísico. É como se fôssemos interpenetrados (nós, que estamos no mundo sensível) pela essência do mundo invisível. Nesse mundo de formas perfeitas encontram-se ideias de todas as coisas: ideias estéticas, ideias de valores morais, ideias de coisas da realidade corpórea, ideias geométricas e matemáticas. Essas ideias, para Platão, não são puros conceitos produzidos pelo cérebro ou representações mentais, apenas integrantes do pensamento humano. Ao contrário: elas são entidades, substâncias metafísicas, com existência própria. Elas são os modelos, a essência formadora das coisas materiais. Por isso, o físico e o sensível não podem ser considerados como verdadeiras causas. O Mundo das Ideias é sustentado por um Ser Supremo que é eterno e imutável, regente da matéria inanimada e se manifesta no Universo. Ele governa e dá unidade ao mundo metafísico, sustenta a ordem universal. Ele dá unidade a todas as coisas. O verdadeiro, o belo e o bom são emanações desse Ser; sendo assim, não se modificam. 33


A partir de Platão, a realidade começou a ser analisada por muitos pensadores com novas categorias: material e imaterial, sensível e suprassensível, física e não física.

Aristóteles

Mary Evans Picture Library

O modelo platônico foi adotado por Aristóteles e, posteriormente, a teologia cristã se tornou herdeira dessa vertente. A filosofia do ser e o princípio da identidade marcam a filosofia aristotélica. Aristóteles define esses dois princípios da Filosofia como o fundamento de sua lógica. Sua explicação para isso é bastante simples: “Tudo é aquilo que é”, cada coisa é aquilo que é, ou seja, A é A e B é B. E nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Aristóteles diz que tudo aquilo que é entra na esfera do ser. Podemos, dessa forma, classificar na esfera do ser a realidade física – sensível – e a realidade suprafísica. Assim, a realidade é composta por duas espécies de ser: o ser das coisas, que o filósofo chama de substância – aquele que se modifica – e o suprassensível – imutável e puro –, que é Deus. Ocorre que, se a metafísica busca as causas e as substâncias primeiras, necessariamente deve chegar a Deus, pois Ele é a causa e o princípio de tudo. Pode-se dizer que a ciência primeira, em Aristóteles, tem duas dimensões básicas e entrelaçadas: o estudo do ser e o estudo de Deus. Aristóteles agrega algo fundamental a esse estudo, pois assinala a existência de quatro causas determinantes dos seres sensíveis: 1 – a causa formal (todo ser tem uma forma); 2 – a causa material (todo ser tem uma estrutura material); 3 – a causa eficiente (todo ser foi gerado e nasceu); 4 – a causa final (todo ser tende para algum objetivo, tem uma finalidade).

Na imagem, Alexandre, o Grande, recebe orientação de seu tutor, Aristóteles.

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A substância, na filosofia aristotélica, é a essência do ser, aquilo que ele tem de mais importante. Sua composição é a mistura de matéria e forma. A matéria constitui a base da realidade sensível; logo, sem ela não existiria realidade física. No entanto, a matéria é algo indeterminado; o que a determina é a forma, que lhe dá concretude. A matéria sozinha não pode ser substância, como pensavam os atomistas, ela precisa da forma para se estruturar. Mas também em Aristóteles a forma não é um ser do Mundo das Ideias, como em Platão: ela faz parte da estrutura da matéria. A forma delimita e organiza a matéria. Portanto, para Aristóteles, substância é um composto de forma e matéria; e os corpos físicos têm, necessariamente, esses dois componentes. Ou seja, é impossível separar das substâncias sua forma e sua matéria. Observe, por exemplo, uma mesa: ela que é composta de matéria (madeira) e possui uma determinada forma. O mesmo se dá com uma casa ou uma estátua, por exemplo. A substância é o que faz as coisas serem o que são, ela garante a individualidade. Uma das características mais importantes das substâncias, observada por Aristóteles, é o fato de que elas mudam. A substância platônica era imutável; as substâncias aristotélicas se modificam, se transformam, se alteram. Na filosofia de Aristóteles, a mudança pode ocorrer em termos de substância, de qualidade, de quantidade ou de lugar. Em termos de substância, ela ocorre quando algo vem a existir ou deixa de existir. Uma estátua pode vir a existir pelas mãos de um artista e deixar de existir, se quebrada. A substância muda de qualidade quando, por exemplo, um homem com boa saúde deixa de tê-la por algum motivo. Em relação à quantidade, o filósofo explica que uma substância pode aumentar ou diminuir seu volume.

Ato e potência Conforme vimos, a mudança e o movimento eram problemas por excelência na Filosofia grega. Aristóteles, em suas obras, não se limita a reconhecer o movimento, mas formula uma resposta do porquê as coisas se movem, e essa resposta é instigante. Segundo ele, movimento é a atualidade (ou seja, a realização) de algo que é potência. Os termos “atualidade” e “potência” são constantes nas suas obras. Toda matéria é capaz de assumir forma, portanto toda matéria contém em si a potência de se tornar forma. O ato, assim, é a concretização da potência, a forma. Todas as coisas possuem potencialidade que se tornará ato. Toda potencialidade tem como finalidade ser ato. O ato se apresenta como matéria e forma. No processo de atualização da potencialidade está o segredo do movimento. Por exemplo, o mármore é potência de vários objetos, e a estátua de mármore é a realização da potência, portanto, o ato. A madeira também é potência para muitas coisas. A semente contém potencialmente uma árvore, e no 35


Museu Kunsthistorisches, Viena, Áustria

processo de realização da semente em árvore é que está a mudança, a transformação e o movimento. No entanto, para Aristóteles, todas as substâncias materiais estariam sujeitas ao movimento de potência a ato, exceto uma substância, que é Deus. Na filosofia aristotélica, Deus é uma substância suprassensível. Ele é causa do movimento, é uma espécie de motor que colocou tudo em movimento no Cosmo. Ele próprio não está em movimento, pois é imóvel como princípio. Segundo Aristóteles, tudo o que está em movimento foi movido por alguma coisa imóvel, portanto afirma que é preciso que haja um princípio imóvel. Sendo esse princípio imóvel, ele não tem potencialidade, é ato puro. Esse motor, para Aristóteles, move o Universo, pois o atrai para si, como o belo e o bom atraem os seres humanos. O Cosmo sempre existiu, e o Deus de Aristóteles não é um criador das coisas a partir do nada, mas foi quem o colocou em movimento.

Harmonia macrocósmica, de Andreas Cellarius, 1660. Representação do cosmo aristotélico, um atlas celeste feito pelo cartógrafo holandês Cellarius.

Destaque A grande disputa medieval Será que é possível conciliar a fé católica com a reflexão filosófica? Já vimos que Platão e Aristóteles tratam de Deus, mas é importante sublinhar que a ideia de Deus presente no pensamento de ambos não é a mesma que está presente no contexto do cristianismo. Platão e Aristóteles tiveram ressonâncias durante 2 000 anos na Filosofia ocidental. Na Idade Média, principalmente nos séculos da chamada escolástica, Aristóteles es36


teve fortemente presente, pois suas ideias foram trazidas pelos filósofos árabes e judeus para a cena de discussão. Entre eles, os principais foram Avicena e Averróis (muçulmanos) e Maimonides (judeu).

Na era medieval, pensadores cristãos viviam o conflito de conciliar a razão filosófica com a fé católica. Eles aproveitaram algumas reflexões de pensadores não católicos e entraram em uma discussão interminável e muito difícil justamente sobre o ser: a disputa dos universais. Al-Farabi (870–950)

Avicena (980-1037)

Filósofo muçulmano, de cultura universal, dedicouse à Física, à Química e às Ciências políticas. Considerava-se influenciado por Platão e Aristóteles, tendo sido tradutor deste último. Foi o primeiro a formular uma Filosofia que incorporasse elementos gregos e do Alcorão. Influenciou os escolásticos cristãos.

Filósofo, médico e teólogo muçulmano de origem persa. Aos 10 anos de idade já conhecia gramática e teologia e sabia o Alcorão de cor; aos 16 anos exercia a medicina de modo muito competente. Fez uma leitura do islamismo com influências platônicas e aristotélicas. Seus argumentos para a defesa da existência de Deus foram reelaborados por Tomás de Aquino. Influenciou vários filósofos cristãos medievais. Agora, para se ter uma ideia sobre como não é tão fácil entender as grandes obras filosóficas, mesmo Avicena, com todo esse conhecimento e enorme inteligência, afirmava ter lido 40 vezes o livro Metafísica, de Aristóteles, traduzido para o árabe, e não o ter compreendido. Apenas quando leu um pequeno livro explicativo de outro filósofo árabe, Al-Farabi (870-950), é que começou a entender o que Aristóteles quis dizer.

Averróis (1126-1198) Médico, astrônomo e filósofo muçulmano, nascido na Espanha islâmica, foi comentarista de Aristóteles. Considerava que a razão tinha de ter independência em relação à fé. Exerceu grande influência sobre pensadores europeus.

Maimonides (Moshe ben Maimon) (1135-1204) Filósofo e médico judeu, nasceu na Espanha muçulmana. Estruturou filosoficamente os princípios do judaísmo, com instrumentos racionais da Filosofia árabe-aristotélica.

Tomás de Aquino (1225-1274) Frade dominicano italiano, foi o maior representante da escolástica. Sua doutrina se constituiu como um diálogo entre o cristianismo (na ortodoxia católica) e o aristotelismo. Fez a maior sistematização filosófica cristã, até hoje aceita como doutrina oficial da Igreja. Tomás achava que a razão natural não se opunha à fé, mas a revelação teria aspectos que ultrapassavam o alcance da razão. Escreveu a Suma teológica em vários volumes, nos quais tratou de teologia, ética, política e da Ciência.

Na tentativa de conciliar a doutrina de Aristóteles com a fé cristã e diante de várias interpretações da Metafísica, surgiram as mais diferentes posições durante toda a Idade Média entre os filósofos cristãos. Há duas ideias básicas em relação à questão da substância (universal): a realista e a nominalista. Da realista, o maior representante é São Tomás de Aquino ; da nomi37


Jean-Loup Charmet

nalista, primeiro Pedro Abelardo e depois Guilherme Ockham . Segundo a posição realista, as coisas têm uma essência universal real. Por exemplo, todas as coisas brancas participam da substância branca. Ou seja, a brancura é uma essência universal. Segundo a posição nominalista, o branco das coisas é apenas uma palavra. Pode-se talvez dizer que os nominalistas se aproximam dos sofistas, para quem o conhecimento são apenas palavras, sem consistência real. Pedro Abelardo (1079-1142) Conhecido por sua trágica história de amor com Heloísa, foi um dos principais pensadores da Filosofia medieval. Preocupou-se em explicar racionalmente as verdades da fé e, ao contrário da ortodoxia cristã da época, achava que somente a razão poderia clarear as teses teológicas. Escreveu, entre outros livros, Introdução à teologia, Sim e não e a sua famosa Dialética.

Guilherme Ockham (1285-1347) Filósofo inglês considerado o último dos escolásticos ou o primeiro dos modernos. Pôs em cheque a escolástica, ao considerar impossível acessar pela razão os mistérios da fé e, ao mesmo tempo, preconizar a pesquisa livre e empírica para o conhecimento humano.

René Descartes, matemático e um dos principais pensadores da Filosofia moderna no século XVII, retratado por Frans Hals, em 1649.

O ser como Ser Há filósofos que não dissociam a questão da verdade e a prova da existência de Deus. Esses pensadores sustentam que, para se buscar a verdade, é necessário considerar inicialmente a ideia de Deus e sua existência. Para Aristóteles, o máximo da metafísica é a teologia, o estudo de Deus. Praticamente 2 000 anos depois, para o filósofo francês René Descartes , o núcleo da Filosofia é a metafísica e o máximo que a metafísica alcança é Deus. Ele compara a Filosofia a uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco é a física e os ramos que procedem do tronco são as outras ciências. E os dois pontos focais da metafísica são: • a metafísica como ciência que procura entender do que o mundo é feito, como ele é feito e por que ele é feito. Ela se ocupa de estudar os fundamentos e a finalidade das ciências particulares; • a metafísica como o estudo de Deus e de seus atributos. Nas Meditações metafísicas, sua obra fundamental, Descartes mostra a convicção de que a ciência metafísica pode acessar a verdade divina. Ao procurar dentro de si e na ordem do mundo, o ser humano se depara com a realidade divina. Ainda segundo o filósofo francês, somente uma vez alcançada a ideia clara de Deus, por meio da atividade racional, é que poderemos chegar à verdade das coisas. Isso por uma razão muito simples: Deus é quem garante

René Descartes (1596-1650) Francês, pode ser considerado o fundador da Filosofia moderna. Queria construir uma filosofia baseada no princípio da certeza. Inicia sua filosofia a partir da dúvida de tudo que formava o sistema de conhecimento, questionando as crenças que eram tidas como certas. A princípio, sua atitude foi a de um cético, duvidando de tudo. Depois, a dúvida o levou a uma única certeza: “eu sou”. Concebeu, assim, de forma segura, a sua existência. Sobre essa base, Descartes construiu um novo sistema filosófico, estabelecendo que qualquer ideia, para ser verdadeira, deve partir da dúvida e ser formulada de forma clara e distinta.

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as coisas, a vida, a verdade, a bondade. Deus é o fundamento de todas as coisas, pois Ele é o criador absoluto, responsável pelas ideias e verdades eternas. É descobrindo e estudando Deus que chegamos aos tesouros da Ciência e da sabedoria, assim como chegamos à essência do Universo.

Deus, em Descartes, é uma substância infinita que cria o mundo e o ser pensante. O filósofo diz que substância é ter independência e não necessitar de outra coisa para existir. Nesse sentido, o único ser independente é Deus, uma vez que todo o resto depende da sua existência. O ser humano pensante e o mundo são substâncias criadas por Ele, embora dependam Dele de forma atenuada. Ou seja, para existir dependem apenas de Deus. A obra Metafísica, de Descartes, influenciou dois outros importantes filósofos do século XVII que deram suas contribuições à metafísica: Bento de Espinosa e Gottfried Leibniz . Bento de Espinosa (1632-1677) Filósofo judeu, holandês, foi um dos grandes racionalistas da Filosofia moderna. Identificava Deus e a natureza em um panteísmo que o fez ser expulso da Sinagoga de Amsterdã. Uma de suas obras mais importantes, Ética, tem uma proposta original que considera o papel das emoções nas ações humanas.

Gottfried Leibniz (1646-1716)

Nationalgalerie, Berlim, Alemanha

Filósofo e matemático alemão, racionalista, vê o Universo como uma obra matematicamente ordenada por Deus. Segundo ele, o Universo é o melhor possível, porque espelha a perfeição divina. Nesse caso, há apenas uma substância real — mas subdividida em uma infinidade de seres, que ele chama de mônadas. Como matemático, Leibniz foi o inventor genial do sistema binário, que hoje é a base da computação.

Gravura de Johannes Collaert, produzida em 1582, mostra como Espinosa conseguiu sustentar-se na Filosofia trabalhando como óptico.

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AFP

A obra de Espinosa tem como ponto de partida a reflexão sobre Deus e segue o traçado de Descartes ao insistir que Deus é a única substância, pois é o Ser em si que se concebe por si, ou seja, não precisa de nada para existir. Podemos dizer, em termos filosóficos, que as características mais importantes de Deus para Espinosa é que é um Ser absolutamente infinito, fundamento primeiro e supremo de todas as coisas. A verdade é manifestação divina e deve ser buscada pela ciência metafísica. Isso porque só existe uma substância verdadeira, que é Deus; as outras coisas, como mundo e ser pensante, não são substâncias, mas atributos, modos, características e propriedades da substância. Mas, ao contrário de Descartes, para Espinosa existe uma unificação de Deus com a realidade física, isso porque Ele é natureza, e tudo o que existe na realidade física é extensão Dele. Leibniz foi leitor de Descartes e de Espinosa e, ao mesmo tempo, crítico dos dois, procurando criar uma filosofia original. Como Descartes e Espinosa, ele entende que o mundo e a realidade possuem uma estrutura metafísica, que tem por fundamento Deus. A metafísica seria a Ciência por excelência, pelo fato de nos permitir conhecer as substâncias, o princípio primeiro das coisas. Em seu livro Discurso de metafísica (1686), Leibniz afirma que a metafísica deve lançar luz sobre a questão do ser, da substância das coisas. Para isso, o autor formula uma ideia original: a ideia de mônada. As mônadas são substâncias unitárias, dinâmicas e indivisíveis. Compostas de força, vida e energia, entram na formação de todas as coisas. Existe uma multiplicidade de mônadas que formam a realidade. Elas foram ordenadas previamente por Deus, que as dispôs harmoniosamente a fim de cumprir seus desígnios. Essa substância, segundo Leibniz, traz consigo a sabedoria divina e é como um espelho do Universo. Deus organizou as mônadas hierarquicamente, desde a matéria inanimada até a mônada pensante, alma pensante no ser. Há duas espécies de mônadas: mônadas inferiores não inteligentes; e mônadas superiores inteligentes. Leibniz e a alquimia, de Stefano Bianchetti. O filósofo Leibniz, além de matemático, tinha uma paixão pela alquimia.

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Bacon, Hume e a crítica à metafísica Vimos que a metafísica ocupa um lugar fundamental na reflexão dos antigos, porque é no campo da metafísica que se discute um dos temas fundamentais da Filosofia: a problemática do ser. Na modernidade, com o desenvolvimento das ciências experimentais, a metafísica passa a ser entendida de outra forma, e em alguns casos, passa a ser alvo de críticas severas. Em plena Idade Média, já havia pensadores que criticavam a metafísica e diziam que o problema do ser era irrelevante, porque não valia a pena discutir algo sem fundamento. John Duns Scott e Guilherme Ockham foram desses que começaram a questionar a metafísica. Começava, então, uma tradição da Filosofia inglesa de ser mais focada na realidade que apreendemos pelos sentidos. Mas, foi na modernidade que a metafísica tradicional ganhou inimigos mortais.

John Locke (1632-1704) Filósofo e médico inglês, considerado um dos principais empiristas da História da Filosofia moderna. Abriu caminho para a Ciência, considerando que o conhecimento era limitado à experiência sensível, organizada pela razão. Também foi ideólogo do liberalismo político e econômico, além de precursor do Iluminismo. Apesar de seus ideais de liberdade, defendia a escravidão dos negros.

John Duns Scott (c. 1265-1308) Filósofo e frade franciscano nascido na Escócia, pregava a autonomia da Filosofia em relação à fé.

AFP

A metafísica como Filosofia da ciência

Francis Bacon retratado por autor desconhecido, no século XVIII.

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Francis Bacon , iniciador do pensamento moderno ao lado de Descartes, deu à metafísica um novo rumo, na medida em que definiu a metafísica como Ciência primeira, como o fundamento das outras ciências. A ciência metafísica, para Bacon, passou a ser apenas uma ciência com a função de se ocupar das outras ciências e contribuir para seu progresso, fundamentando e estabelecendo uma base comum. Segundo Bacon, embora as ciências fossem diferentes, todas elas tinham conceitos, ideias e métodos semelhantes; assim, a metafísica deveria ajudar a estruturar e estudar o que é comum em todas elas. Hoje, chamamos a isso de filosofia da ­Ciência. A metafísica se encontraria naquilo que tem raiz comum nos princípios científicos que condicionam o saber. Bacon tinha clara a importância da ciência metafísica para ajudar a estruturar e renovar a concepção científica do seu tempo. John Locke , logo depois de Bacon, entendeu a metafísica no mesmo sentido, reconhecendo seu papel no estudo das ciências. Francis Bacon 1561-1626) Filósofo inglês que se opôs ao domínio da teologia e incentivou o espírito científico. O projeto do filósofo está contido em sua obra A nova Atlântida, na qual propõe uma nova forma de conhecimento e metodologia para o desenvolvimento da humanidade: o empirismo.


AFP

O fim da metafísica Já o filósofo escocês David Hume , no século XVIII, foi um dos críticos mais radicais da metafísica, concluindo pela sua impossibilidade. O filósofo parte da ideia de que a metafísica como Ciência não existe, pois a mente humana não tem a capacidade de conhecer as coisas em sua essência. Esse era também o pensamento de Ockham. Hume afirmava que o conhecimento humano se dá por meio dos sentidos e eles são capazes de perceber apenas características como cor, dureza, sabor, cheiro, forma, textura, extensão, e jamais as substâncias das coisas. Além disso, a crença na possibilidade de conhecer a essência cria um campo de conhecimento de disputas teóricas intermináveis e insolúveis. Uma metafísica que não atinge o ser das coisas deixa de ser metafísica. David Hume (1711-1776) Filósofo iluminista escocês, teve influência sobre Kant e sobre os filósofos dos séculos XIX e XX, caracterizando-se por dois aspectos principais: o ceticismo, ou a ideia de que não podemos ter muitas certezas a respeito de nada; e o empirismo, ou o fato de tomar como única fonte possível de conhecimento (e ainda relativo) a observação dos fenômenos. Kant dizia que Hume o tinha despertado de seu sono dogmático.

Ilustração de David Hume inspirado no retrato de Allan Ramsay, 1776.

O movimento crítico Posto entre o racionalismo metafísico de Descartes e o ceticismo crítico de Hume, o filósofo alemão Immanuel Kant vai tentar uma conciliação – ou antes uma superação de ambos. Fazendo uma crítica à razão, Kant concorda com Ockham e com Hume sobre o ser humano não poder alcançar a essência das coisas (que ele chama de nous), pois este só consegue constatar os fenômenos. Entretanto, segundo ele, é preciso supor que Deus existe, que as coisas têm uma universalidade para agir bem. (Veremos mais detalhes dessa doutrina nos capítulos 4 e 5.) Isso significa que o ser passa a não ser mais objeto da discussão filosófica, de reflexão da Filosofia. É como se a Filosofia não pudesse mais tratar do “dentro das coisas” – como diria o teólogo Pierre Teilhard de Chardin, um metafísico cristão do século XX –, mas apenas pudesse se ocupar do “fora das coisas”.

Racionalismo Atitude filosófica que considera a razão humana um instrumento capaz de captar a realidade, considerada ela mesma racional. O uso do discurso lógico, da análise e da dedução é próprio das atitudes racionalistas. Nessa vertente, parte-se do pressuposto de que o ser humano é um ser racional, e de que o mundo tem uma ordem intrínseca, que pode ser desvendada pela razão. Também se considera que a razão humana tem ideias inatas, intuições que não precisam passar pela verificação empírica.

Ceticismo O ceticismo nasceu como corrente filosófica, mas significa, até hoje, uma postura de dúvida e de crítica diante de qualquer conhecimento, mantendo-se a posição de que é impossível conhecer algo com certeza. Os primeiros céticos remontavam aos sucessores que assumiram a Academia de Platão (apesar de que este não tinha nada de cético), que interpretavam a postura de Sócrates, “só sei que nada sei”, como um ceticismo saudável e definitivo. No século III a.C., destaca-se o pensador Pirro de Elis, que deixou uma descendência de ceticismo no Ocidente e teve ressonâncias em todas as épocas.

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Immanuel Kant (1724-1804) Filósofo alemão, considerado um dos que mais influenciaram o pensamento moderno, questionou grande parte do edifício filosófico que o antecedeu, estruturando uma filosofia que permanece influente. Foi influenciado pelo debate conceitual entre racionalistas e empiristas a respeito da natureza do conhecimento. O princípio da filosofia kantiana foi uma crítica tanto ao pensamento racionalista cartesiano, de que existem ideias que são inatas à mente humana, quanto ao pensamento empirista de que tudo o que conhecemos provém dos sentidos. Kant fez uma análise crítica do que a razão pode ou não pode conhecer em seus livros A crítica da razão pura e A crítica da razão prática.

As reações metafísicas e a volta do ser No século XVIII, surgiu uma reação às teorias que apontavam o fim da metafísica. Os herdeiros de Kant se voltaram contra o aspecto crítico de seu pensamento. O filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte retomou o debate sobre a metafísica, influenciando dois grandes metafísicos do final do século XVIII e início do século XIX, Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling e Georg Wilhelm Friedrich Hegel . Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) Filósofo idealista alemão, teve contato com Kant e foi apoiado por este em seu início de carreira. Tinha uma visão panteísta, com sua teoria do Eu absoluto, o que lhe valeu a acusação de ateísta, sendo obrigado a deixar a universidade onde lecionava. Depois, tornou-se reitor da Universidade de Berlim. Seu apogeu na Alemanha ocorreu ao escrever os Discursos à nação alemã, que iniciaram a formação da consciência nacionalista do povo alemão. Sua obra teve grande influência sobre filósofos como Schelling e Hegel. Outras de suas obras que se destacam são Doutrina da Ciência, As características da Idade Contemporânea e Por uma universidade orgânica.

Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) Foi um dos grandes filósofos idealistas alemães. Elaborou uma filosofia da natureza, rompendo com os sistemas mecanicistas do período moderno, ao defender que a natureza é um organismo vivo e possui um princípio vital. Reconheceu uma identidade entre espírito e natureza. O espírito, em Schelling, vai se desenvolvendo e se manifestando na natureza em etapas sucessivas. Essa identidade e esse processo de desenvolvimento só pode ser captado por uma espécie de intuição intelectual e por meio da experiência estética.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) Foi o mais importante dos filósofos idealistas alemães. Seu pensamento – que abrangeu a ética, a política, a estética, a religião e a História – pretendeu introduzir um novo paradigma para entender o ser humano e a História. Para ele, a História está em um devir permanente (ideia que mostra a influência de Heráclito sobre seu pensamento) e o Espírito Absoluto a perpassa, procurando realizar a perfeição. Esse devir se dá de forma dialética ternária, constituindo-se em tese, antítese e síntese. Marx adotaria a dialética hegeliana, mas, conforme ele mesmo afirmou, a pôs de cabeça para baixo ao adotar a perspectiva materialista, em vez da idealista.

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Museum of Fine Arts, Boston, EUA

Tanto em Fichte, como em Schelling e Hegel, tem-se a busca de um ser que não se separa da natureza. Fichte trata de um Eu, não o “eu” individual de cada pessoa, mas o Eu do todo, o Absoluto. Já para Schelling, a estrutura do mundo é metafísica, composta basicamente de duas realidades: espírito absoluto e natureza. Entre essas duas dimensões, não existe dualidade nem contradição, pois elas estão relacionadas. O espírito absoluto é natureza e a natureza é espírito absoluto. É um devir ao mesmo tempo espiritual e natural.

De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? de Paul Gauguin, 1897.

Hegel segue a mesma linha, porém com mais originalidade. Sua filosofia defende que as coisas são e não são ao mesmo tempo. Sua tese é de que as coisas estão em constante movimento, em um eterno vir a ser. “A” é também “não A”, ou a verdade é e não é, o bem é e não é e o belo é e não é. Isso porque toda realidade obedece à lei de nascimento, desenvolvimento, morte e renascimento. Para ele, existem três conceitos importantes a serem considerados em relação ao ser. O primeiro é o de Parmênides, para quem o ser é sempre e não pode não ser. O ser é absoluto, a única verdade. O segundo é como o de muitos sistemas orientais, em que o nada aparece como princípio absoluto. O terceiro momento é realizado por Heráclito, que reconhece, segundo Hegel, o devir total de tudo. Hegel diz que no princípio da identidade não existe movimento, pois o nada é sempre nada e o ser é sempre ser. O movimento só é explicado na dialética do ser. Do ser se passa ao nada e do nada se passa ao ser. Para Hegel não é possível determinar o ser; a única coisa que se pode dizer é que o ser é o nada, pela ausência de determinações e conteúdo. A maneira de ser do ser é deixar de ser e passar ao nada, e a maneira de ser do nada é passar a ser. Todo ser está em um constante movimento interno do ser ao não ser e do não ser ao ser. Hegel chama esse movimento de devir e dialética. 44


Dialética É a arte ou o processo de buscar a verdade por meio do diálogo, da conversa e da discussão.

A mudança dentro do movimento dialético é feita por estágios. Em cada novo estágio há um rompimento com o estágio anterior e, ao mesmo tempo, o novo estágio carrega a verdade do anterior. Tudo o que vive contém em si o germe de morte, um germe de contradição interna, que pouco a pouco acaba em sua própria destruição. Mas essa destruição é produtiva, pois gera um novo ser, que carrega elementos verdadeiros do ser anterior. Como a semente que, para brotar e desenvolver-se em uma árvore, precisa morrer no solo da terra, assim é a dialética de vida e morte, de ser e não ser de toda realidade, para o desenvolvimento do todo. Os dois aspectos básicos da filosofia de Hegel são: a constante mudança do ser e a ideia do ser, devir e não ser. Essa lógica foi utilizada por muitos pensadores para entender a realidade natural, social e humana, como por Karl Marx e Friedrich Engels para compreenderem a História e o capitalismo. Mas a originalidade do pensamento de Hegel está no fato de que, para ele, da morte nasce uma vida nova (ele utiliza a imagem da Fênix, que renasce eternamente das cinzas). Hegel rompe com a racionalidade aristotélica, na medida em que não aceita o princípio da identidade, mencionado anteriormente. A única unidade em seu pensamento é o devir. Karl Marx (1818-1883) Pensador de enorme influência no final do século XIX e em todo o século XX. Seu pensamento abrangeu a Filosofia, a Economia, a História e teve reflexos na Sociologia. Após cursar a universidade, conheceu, em Londres, Friedrich Engels, de quem se tornou amigo até o fim da vida. Foi graças a Engels que Marx conheceu a verdadeira situação do proletariado, assim como as teorias clássicas do socialismo. Marx partiu da ideia de que a História deve ser entendida a partir da relação entre o que o ser humano cria e o meio em que vive. As condições materiais de produção guiam os seres humanos e determinam o pensamento e as condições de vida. Os homens criaram a divisão social do trabalho e passaram a explorar o trabalho dos outros. As sociedades, para Marx, sempre carregam conflitos e contradições. A História, em sua concepção, tem três fases: a feudal, a capitalista e a comunista. O capitalismo é um sistema que carrega em si conflitos de classes agudos e contradições que levariam ao seu fim. O proletariado, filho do capitalismo e desprovido de tudo, ao perceber as contradições desse sistema, faria a revolução e poria fim a ele. Entre suas obras, destacam-se O manifesto comunista, A ideologia alemã e O capital.

Friedrich Engels (1820-1895) Pensador alemão, filho de um industrial do ramo têxtil. Já aos 24 anos de idade, escreveu um dos livros que se tornaria clássico na literatura socialista, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, em que denuncia a exploração e as péssimas condições em que vivia o trabalhador inglês. Mais tarde, vinculou-se a Karl Marx, mantendo até o fim da vida uma estreita parceria intelectual. Engels teve papel de destaque na formação das teorias marxistas, principalmente na formação do socialismo científico e do materialismo histórico e dialético.

Cada ser humano, cada instituição, cada período histórico é uma etapa transitória no desenvolvimento sem fim da sociedade humana, em um 45


movimento progressivo que vai do inferior ao superior. Os períodos históricos envelhecem e dão lugar a novos. Como vimos, “A” contém ao mesmo tempo o “não A” (sua morte ou sua negação), e “B”, sua superação. Hegel substitui o velho princípio da identidade de Aristóteles pelo da contradição criadora. A morte tem força geradora e criadora. Todo ser contém em si o germe de sua destruição e de sua superação. Essa posição de Hegel rompe com a antiga lógica aristotélica que não aceita a contradição de que aquilo que é, é e não pode não ser. Para ele, algo não pode ser duas coisas opostas ao mesmo tempo, pois perderia a estabilidade, a concretude, quase deixaria de ser, porque é sempre devir e nunca ser. Mas, por outro lado, a realidade se torna mais flexível, mais dinâmica, porque o ser não é estático, está sempre em processo. Essa brecha para o não ser e a introdução do nada na tradição filosófica ocidental abrem o caminho para a tônica filosófica do século XX: o ser e o nada.

O que é o que não é – uma questão de lógica Todo mundo usa no cotidiano expressões como “Isso é lógico!” ou “Isso não tem lógica!” quando quer dizer que alguma coisa faz ou não um sentido racional, que tem ou não uma consistência de “verdade”. A Lógica, porém, é um dos ramos mais importantes e antigos da filosofia, indicador de caminhos para compreendermos o ser e o mundo, ou, pelo menos, para organizarmos e validarmos nossos raciocínios. Foi Aristóteles o primeiro sistematizador da Lógica, embora ainda não adotasse esse termo. Ele propôs o que chamamos até hoje de método dedutivo – segundo o qual, se partirmos de premissas verdadeiras, chegaremos necessariamente a conclusões verdadeiras. Com a estruturação lógica do raciocínio, construímos uma argumentação, através da qual, podemos defender ideias e posições de maneira válida e coerente. Vamos examinar uma estrutura argumentativa chamada silogismo, na qual há duas premissas e a conclusão (cada premissa tem um termo em comum uma com a outra e com a conclusão). Observe o exemplo a seguir: Todos os pássaros voam. A andorinha é um pássaro. A andorinha voa. Entretanto, para Aristóteles e filósofos realistas da Idade Média, quando trabalhamos com premissas e conclusões válidas, estamos trabalhando com verdades que correspondem à substância da realidade. Ou seja, aquilo que é (o princípio de identidade) e aquilo que não é (princípio de contradição) no raciocínio lógico correspondem a aquilo que é e a aquilo que não é no mundo objetivo. Entre os nominalistas medievais e, mais tarde, entre os lógicos do século XX, tudo isso são apenas regras de linguagem e de raciocínio. Um argumento pode ser válido logicamente, sem necessariamente termos de 46


declarar que seja verdadeiro ou que corresponda a uma realidade objetiva. Por exemplo, façamos um silogismo a partir de uma obra de ficção científica da década de 1960, Jornada nas Estrelas:

Todos os vulcanianos têm orelhas pontudas. Spock é vulcaniano. Spock tem orelhas pontudas. Esse argumento é perfeitamente válido, mas não corresponde a uma realidade objetiva, por tratar-se de uma obra de ficção. No estudo da lógica, temos também as falácias – raciocínios incorretos, às vezes usados de má-fé, mas que podem, à primeira vista, parecer racionais. Quando alguém deseja convencer o outro de uma ideia, sobretudo se tem interesses a defender (como em uma propaganda política, um anúncio publicitário, ou em um tribunal), costuma-se recorrer a esses falsos raciocínios, que também podem ser chamados de sofismas, em uma referência histórica aos sofistas da Antiguidade. Examinemos alguns tipos de falácias: Ataque ao outro: quando, em vez de argumentar logicamente, parte-se para o ataque pessoal contra o debatedor. Um político expõe seu ponto de vista a respeito de um assunto e seu oponente, em vez de responder com uma contra-argumentação dentro do mesmo tema, responde com ofensas. A ofensa também pode estar ligada a uma condição respeitável da pessoa atacada, mas que é desqualificada pelo ofensor, por exemplo: “O que você diz não vale nada, porque você é comunista”. Apelo à força: quando é feita ameaça ao outro para que este aceite uma conclusão. Exemplo: o dono de um jornal diz a um de seus editores: “Defenda essa ideia, ou será demitido”. Apelo à autoridade: quando se argumenta apenas invocando a autoridade de alguém, por exemplo: “Se o Papa disse, é verdade”. Apelo ao povo: quando se argumenta a favor de algo como verdadeiro apenas porque muita gente partilha daquela opinião. Por exemplo: “A maioria da população votou neste candidato, portanto é o melhor”. Argumento pela ignorância: sempre que se afirma algo como verdadeiro, porque não foi provado que é falso, ou que se afirma como falso, porque não foi provado que é verdadeiro. Exemplo: “Não existem extraterrestres porque ninguém provou que eles existem”; “Extraterrestres existem porque ninguém provou que eles não existem”. Generalização precipitada: quando se chega a uma conclusão generalizada a partir de casos particulares. Exemplo: “Conheço três jovens promíscuos sexualmente, portanto toda a juventude é promíscua”.

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Guggenheim Museum, Nova York, EUA

Arte Interdisciplinaridade

Museu Nacional de Arte Moderna, Tóquio, Japão

Arte

Improviso 31 (batalha naval), 1913. Óleo sobre linho.

Ênfase no rosa, de Wassily Kandinsky, 1926.

“Toda obra de arte é uma filha de seu tempo e, em muitos casos, a mãe de nossas emoções. Seguese que cada período de cultura produz uma arte própria que nunca poderá se repetir.” KANDINSKY, Wassily. O espiritual na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Criando a arte abstrata com a obra Aquarela (1910), Wassily Kandinsky (1866-1944), artista russo, foi o primeiro pintor que rompeu com o paradigma da arte figurativa, aquela que necessariamente representa o real. Além de criar a primeira obra abstrata da história da arte, Kandinsky também inovou ao se tornar teórico das artes plásticas, tendo ainda participado como professor da Bauhaus, escola de arte alemã do início do século passado. Como a instituição, fundada pelo arquiteto Walter Gropius em 1919, apoiava a criação livre e democrática, acabou sendo fechada pelos nazistas em 1933. A qualidade do design e o conceito inovador da Bauhaus até hoje influenciam a arte no mundo. • É possível relacionar a arte abstrata não figurativa com a dissolução do ser, com a realidade que tomava conta do século XX? Seria a arte abstrata a única capaz de dar voz a essa perda do ser? Ou seria Kandinsky um profeta de uma nova tendência filosófica a se manifestar primeiro na arte?

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Texto original O Ser J. M. Bochenski

T

rata-se dum campo de todo particular. É de suma importância – muitos filósofos contemporâneos têm-no como centro de toda Filosofia – mas é também extremamente difícil. As dificuldades aumentam porque hoje estamos sofrendo as consequências de uma dupla tradição no campo filosófico que impedem todo acesso às questões ontológicas. Em oposição aos outros campos da Filosofia, onde todos, pelo menos em um ponto, estão de acordo, isto é, há questões a serem discutidas, com a ontologia é diferente: grande número de filósofos passados e alguns recentes negam simplesmente a existência de uma ontologia e dizem que seus problemas não têm sentido algum. Essas duas tradições antiontológicas são constituídas pelo positivismo e pelo idealismo gnoseológico. Por isso, temos duas séries de questões a tratar: primeiro devemos perguntar-nos se existe uma ontologia, e caso tivermos concluído pela sua legitimidade, poderemos ocupar-nos de seus problemas.

Mas antes de entrarmos na discussão desses problemas, será de utilidade esclarecer algumas questões de terminologia. Na ontologia fala-se, frequentemente, do ser. Essa palavra não é aqui usada como verbo mas como substantivo. Não se diz em ontologia: “É bom ser rico” mas “O ser é isto ou aquilo”. Grande número de ontólogos continuam a usar o termo neste sentido. Quanto a mim, sempre julguei melhor não falar de ser, mas de ente. Cada um de meus prezados leitores é um ente; ente é também o seu lenço e até sua disposição boa ou má; mesmo a simples possibilidade de que amanhã eu iria é um ente, pois tal possibilidade existe, é real, está aí. Tudo o que é é ente, e fora do ente nada existe. 49

Quanto ao ser, este é o termo abstrato do concreto ente – mais ou menos como vermelhidão é o abstrato do concreto vermelho, raiva o abstrato de um homem ou animal raivoso, altura o abstrato de uma alta torre etc. Ora, uma das regras fundamentais do método filosófico diz que se devem reduzir, quanto possível, os termos abstratos aos concretos, porque neste caso a investigação se torna mais fácil e se está, de certo modo, assegurado contra um sem-número de disparates que são tão comuns no campo dos termos abstratos. Pense-se, por exemplo, sobre todos os disparates e absurdos que foram escritos sobre a verdade, e isto só porque não se substituiu o termo abstrato “verdade” pelo concreto “verdadeiro”. Por esse motivo evitarei, quanto possível, a palavra ser para falar sempre de ente. Como já ficou dito, existem opiniões segundo as quais não pode existir uma doutrina geral sobre o ente. Esta opinião foi, primeiramente, afirmada pelo idealismo teorético. Os idealistas teoréticos afirmam que tudo o que pode ser conhecido sobre o ente já é tratado nas ciências particulares e que para a Filosofia só resta a tarefa de explicar a origem do conhecimento nas ciências e sua possibilidade. Ainda costumam acrescentar que o ente deve ser reduzido ao pensamento. A isto os ontólogos respondem de dois modos. Dizem, primeiro, que nenhuma ciência particular trata, ou pode tratar, de questões como a possibilidade, as categorias etc. Em segundo lugar, anotam que o pensamento a que se quer reduzir o ente também existe, é portanto um ente, e que toda essa questão de pensamento e ente só tem sentido quando se admitem duas espécies de entes e se investigam suas relações mútuas. E isto – dizem os ontólogos – é pura ontologia. O idealismo teorético, portanto, é fundamentalmente uma ontologia, embora seja uma ontologia primitiva e simplória, por ser inconsciente. A outra opinião antiontológica é a dos positivistas. […] Esses filósofos afirmam que se digo,


por exemplo, que o cão é um animal, essa expressão tem sentido e é científica; mas se digo que é uma substância – um termo ontológico – nada afirmo sobre a realidade; não falo do cão mas da palavra “cão”. Para eles a ontologia deve ser substituída por uma gramática geral. Mas os ontólogos não se sentem atingidos por esta argumentação. Dizem que não é clara a razão porque se podem generalizar os termos só até certo limite — por exemplo: a série seria legítima: animal de rapina – mamífero – vertebrado – animal – ser vivo; mas que não se deve continuar pois se trataria de simples palavras. Por que – perguntam os ontólogos — este repentino salto para a palavra? Qualquer ciência positiva pode ser transformada, por meio da semântica, em ciência linguística; assim, em vez de falar em animais “vertebrados” pode-se falar do uso da palavra “vertebrado”. […] Seria possível formular uma terceira opinião contra a ontologia: pode-se dizer algo mais que trivialidades sobre o ente em geral? Por exemplo: “o ente existe” ou “o que é, é” etc. […] Parece-me que a melhor resposta a essa objeção consiste em fazer simplesmente ontologia, em levantar seus problemas e solucioná-los. É isto o que fizeram todos os grandes filósofos do passado, de Platão a Hegel, e é isto que hoje em dia – depois de um período relativamente curto sem ontologia – faz novamente uma longa série de ontólogos convencidos. Segui-los-emos em suas pesquisas. Primeiramente, uma questão bem pequena e à primeira vista de fácil solução, mas que suscitou muitas e acaloradas discussões nos últimos decênios: a questão do nada. Dissemos que tudo o que existe é um ente. Donde parece seguir-se que fora do ente nada existe. Mas daí se poderia deduzir que nada existe, que o nada tem de algum modo um sofisma. Costumamos dizer que alguma coisa não é – ou como Sartre o formula ainda mais

fortemente: que nada é. Por exemplo: quando para o motor do carro alguém olha no carburador e diz: “No carburador nada há”. Pergunta-se: esta frase é verdadeira? Algumas vezes ela é, sem dúvida alguma, verdadeira. Mas, se uma proposição é verdadeira, a realidade deve ser como ela afirma; tal é a definição de verdade. Portanto o nada existe no carburador. Ainda mais: somos capazes de discorrer racionalmente sobre o nada, como agora estamos fazendo. Mas se falo sobre uma coisa racional e sensatamente, esta coisa deve ser um objeto; do contrário não poderia falar sensatamente sobre ela. Portanto, o nada é um objeto; portanto existe. Contudo é nada; portanto não existe. Alguns pensadores contemporâneos – os [...] existencialistas – se deixaram levar por estas, e semelhantes considerações, e afirmaram que o nada de algum modo existe. Outros filósofos, naturalmente, não os seguem. Dizem que o nada só é pensado, mas não existe realmente. Pessoalmente, a questão me parece bastante complexa e difícil. Interrogado, diria o seguinte: deve-se distinguir entre o ente real e o ente de razão. O conceito de nada é um ente de razão, uma representação, uma imagem ideal da ausência do ente real. Isto explica por que podemos falar sobre ele. Diria, além disso, que a ausência, a privação, pode ser real; que, por exemplo, meu amigo João não esteja neste bar é alguma coisa real; não só é pensado, mas assim é no próprio bar. A questão da privação é uma questão um tanto estranha e difícil; algumas privações estão presentes em tudo o que conhecemos e isto porque todos os entes são limitados e finitos. BOCHENSKI, J. M. Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo: EPU, 1977. p. 29-30.

Existencialismo O existencialismo é um método filosófico, uma certa forma de abordar os problemas da existência humana, e não apenas um determinado número de proposições. O existencialismo pode ser, por exemplo, ateu ou cristão, mas sempre parte de uma reflexão do ser humano no mundo, de sua existência singular, dos problemas de sua liberdade e da sua ação na existência.

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Texto original A Questão fundamental da metafísica

O

que há com o Ser? Pode-se ver o Ser? Vemos o ente, esse giz aqui. Acaso vemos o Ser, como a cor, a luz, o escuro? Ou o ouvimos, cheiramos, saboreamos, tocamos? Ouvimos a motocicleta, seu barulho pela rua. Ouvimos as galinhas silvestres passarem a arribação pela alta floresta. Propriamente ouvimos apenas o barulho do bater do motor; o ruído que as galinhas silvestres fazem. Ademais, é muito difícil e para nós insólito descrever o ruído puro, porque não é o que ouvimos comumente. Com relação ao simples ruído ouvimos sempre mais. Ouvimos a ave, que voa, embora rigorosamente se deva ser: uma galinha silvestre não é algo audível, alguma espécie de som, que se pudesse enquadrar na escala. E o mesmo ocorre com os demais sentidos. Tocamos veludo, seda. Vemo-los, sem mais, como ente de tal ou qual maneira. Vemos que um é diferente do outro. Em que reside e em que consiste o Ser? Temos que percorrer ainda mais variadamente o que vemos ao nosso redor e lembrarmos no círculo mais estreito e mais amplo que nos rodeia, no qual nos encontramos, sabendo ou sem saber, diariamente e a cada hora. Um círculo que alarga continuamente seus limites, até romper-se de repente. Uma grande tormenta que se levanta nas montanhas “é”, ou o que dá no mesmo, “era” de noite. Em que consiste o seu Ser? Uma cordilheira de montanhas, ao longe debaixo de um grande céu..., também “é”. Em que consiste o seu Ser? Quando e a quem ele se manifesta? Ao viajante, que admira a paisagem, ou ao camponês, que dela e nela constrói seu trabalho

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diário, ou ao meteorologista, que deve redigir o boletim com as previsões do tempo? Quem desses apreende o Ser? Todos e nenhum. Ou acaso aquilo que eles apreendem na cordilheira de montanhas, debaixo de um largo céu, não seja senão determinados aspectos dela, e não a cordilheira em si mesma, tal como ela “é”, quer dizer, não apreendem aquilo em que consiste propriamente o Ser dela. E quem então o apreenderia? Ou seria um contrassenso, contra o sentido do Ser, investigar simplesmente o que ela é em si por detrás daqueles aspectos? Reside o Ser nos aspectos das coisas? O portal de uma antiga igreja romana é um ente. Como e a quem se manifesta o Ser? Ao perito de arte, que numa excursão a visita e a fotografa, ou ao abade, que nos dias de festa entra pelo portal, em procissão com seus monges, ou às crianças, que, nos dias de verão, brincam à sua sombra? O que há com o Ser desse ente? […] A pintura de Van Gogh: um par de toscos sapatos camponeses, e nada mais. Propriamente o quadro não representa nada. Sem embargo, estamos logo sozinhos com o que está ali, como se numa tarde já adiantada de outono, voltássemos cansados, de enxada na mão, do campo para casa ao apagar-se o último fogo das batatas. O que no quadro está sendo? A tela? As pinceladas? As manchas da tinta? Em tudo isso, que acabamos de mencionar, o que é o Ser do ente? Como nos encontramos e andamos pelo mundo afora, com nossas idiotas presunções e espertezas! Tudo o que mencionamos, sem dúvida “é” e todavia, ao querermos apreender o Ser, ocorre-nos sempre como se pegássemos no vazio. O Ser, que investigamos, é quase como o Nada, embora quiséssemos sempre resistir e precavermo-nos contra a atenção de tudo o que “é”. NÃO É.


Mas o Ser continua impossível de localizar, quase tanto quanto o Nada ou mesmo inteiramente como o Nada. Assim, a palavra “Ser” é, de fato, apenas uma palavra vazia, não diz nada de efetivo, palpável, real. Sua significação é um vapor irreal. Ao fim das contas Nietzsche tem, pois, toda a razão, ao chamar esses “conceitos supremos” como Ser, “a última fumaça da realidade evaporante”

(Crepúsculo dos deuses, VIII, 73). Quem ainda se disporia a correr atrás de um tal vapor, cuja designação verbal é o nome de um grande erro! “De fato, até agora nada teve um poder de persuasão mais ingênuo que o erro do Ser.” (VIII, 80).”

Museu Van Gogh, Amsterdã, Holanda

HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro: Tempo, 1999. p. 61-63.

O par de sapatos, de Vincent Van Gogh, 1887.

Para estudar o texto: • •

Leia os verbetes referentes aos autores Joseph Maria Bochenski e Martin Heidegger. Anote no caderno todas as palavras dos textos que você desconhece e procure-as no dicionário. Entenda os textos parágrafo por parágrafo, relendo-os se for necessário, para a compreensão integral do pensamento de cada autor. Se houver um conceito ou um trecho que lhe pareça particularmente difícil, peça ajuda ao seu professor ou consulte um dicionário de Filosofia.

Escreva em 5 a 10 linhas a concepção do ser que mais lhe pareceu interessante e argumente por quê. Para tornar mais claros os conceitos discutidos neste capítulo, procure as seguintes palavras em dicionários comuns e em dicionários de Filosofia. Depois, construa um pequeno glossário para uso pessoal com seus significados: devir ente metafísica niilismo ontologia ser

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Atividades

Não escreva n

o livro!

Lanche filosófico 1. Leia o comentário a seguir: No final do século XIX, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche anunciou o niilismo (de nihil – nada, em latim), que passou a exercer grande influência a partir da segunda metade do século XX no pósmodernismo, depois que Martin Heidegger o resgatou. Segundo essa posição, que parte do pressuposto da morte de Deus, retira-se todo o fundamento da realidade e toda a consistência do ser. Nada é, nada somos, porque não existe uma realidade real no ser das coisas e no ser do homem. A “sombra” do nada se estendeu sobre o século XX, chegando ao século XXI e causando o que muitos chamam de “mal-estar da pós-modernidade”: uma sensação de vazio toma conta das pessoas, porque as referências do real foram perdidas. Isso ocorre porque, com a morte do ser, morre também a realidade e a possibilidade de a conhecermos (a realidade real e não apenas a aparência das coisas), instalando-se um princípio que hoje se chama de “incerteza”. A incerteza tem um sentido positivo, quando abre possibilidades para novos caminhos de pensamento e quando funciona como um antídoto ao dogmatismo ou a sistemas muito fechados. Mas se nos fixamos apenas nela, negando qualquer possibilidade de certeza, se nada mais há de sólido (em nós mesmos ou fora de nós), podemos nos imobilizar no ceticismo. Esta é a crise que muitos apontam como típica do período pós-moderno, em que estamos inseridos. •

Relacione esse comentário com o texto “A questão fundamental da metafísica”, de Heiddeger, que você leu anteriormente. Forme uma dupla e discuta com seu colega a questão do ser e do nada.

Produção de arte •

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Inspirado nessas discussões e nas obras de Wassily Kandinsky, procure representar, por meio de desenho, pintura ou mesmo massa de modelar, o que para você significa o ser.


Capítulo

3

Deus: Dúvida, certeza ou negação?

Nasa

Para começar

Via Láctea Uma nebulosa que forma uma larga faixa esbranquiçada vista em noites escuras no céu e que abrange quase um círculo máximo da esfera celeste, assim é a Via Láctea. Nebulosas são imensas faixas de poeira ou gases, muito rarefeitos, que ficam no espaço interestelar da nossa Via Láctea ou de outras galáxias (bilhões de grandes sistemas de estrelas, alguns dos elementos que constituem o universo). Imagens como esta são feitas por telescópios espaciais, como os desenvolvidos pela americana Nasa, entre eles o Telescópio Espacial Fermi Gamma-ray, que exploram o cosmo. Os EUA têm também o telescópio Hubble, cuja tecnologia foi superada pelo lançamento do radiotelescópio russo Spektr-R, em 2011, que produz imagens com nitidez 100 mil vezes maior do que as do telescópio americano. Outros países europeus desenvolvem projetos semelhantes, como o observatório especial Herschel, da agência espacial europeia, Esa.

Reflexão Independentemente de ser religioso ou não, qual seu ponto de vista sobre Deus? Já questionou sua existência? Já viveu algum momento de profunda fé em uma força superior? Estamos habituados a associar Deus à religião, mas, como observaremos, pensar em Deus não é algo que ocorre apenas entre os religiosos. Prova disso é que até os ateus pensam em Deus, mesmo que seja para negar sua existência. Muitos filósofos refletiram sobre esse tema e apontaram para diferentes caminhos, seja para

negar sua existência, seja para afirmá-la. Neste

capítulo, vamos trilhar alguns desses caminhos. Para começar, vamos falar da obra de ficção científica Contato, um dos livros escritos por Carl Sagan , astrônomo e escritor norte-

americano, que foi transformada em um filme

em 1997, um ano após a morte do astrônomo. A versão cinematográfica é diferente do livro, mas as questões ali discutidas são as mesmas: a razão científica e a fé em Deus.

Texto dos autores

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Carl Edward Sagan (1934-1996) Cientista, astrônomo e escritor norte-americano que, com formação multidisciplinar e inteligência fora do comum, desempenhou várias outras atividades. Foi um grande divulgador e incentivador da Ciência, o que é possível perceber em uma de suas obras mais notáveis: a premiada série-documentário Cosmos, que produziu e apresentou, por meio da qual procurou tornar acessível a informação científica. Entre suas obras estão Os Dragões do Éden, O Romance da Ciência, Pálido Ponto Azul, O Mundo assombrado pelos demônios e Contato, que foi levado para as telas de cinema. Sua última obra, Bilhões e bilhões, foi publicada postumamente, e, em 2008, foi publicado Variedades da experiência científica: uma visão pessoal da busca por Deus, uma coletânea de suas palestras sobre teologia natural.

Sinopse do filme

Ria Novosti/AFP

A Dra. Eleanor Arroway, desde menina, dedica sua vida à busca de contato com seres inteligentes no Universo através de radiotelescópio. Descrente na existência de Deus, defende que apenas a Ciência pode dar as explicações para a vida e o Cosmos, procurando a verdade por meio do estudo da Astronomia. Ela tem um romance com Palmer Joss, um teólogo de posições religiosas avançadas, o que traz o melhor do filme: os diálogos de ambos, cada um defendendo seu ponto de vista e observando o ponto de vista do outro. A cientista e o religioso defrontam-se com uma nova situação para a humanidade: uma mensagem foi enviada por extraterrestres, em fórmulas geométricas e matemáticas, para a construção da nave que deve levar um representante da Terra a uma viagem cósmica. Segundo Dra. Arroway, foi possível decifrar a mensagem e construir a nave porque ela foi escrita em uma linguagem universal: a Matemática. Trata-se de uma envolvente história que fala de razão, emoção e fé.

Trecho do livro

O astrônomo americano Carl Sagan foi um grande incentivador da Ciência e contribuiu para popularizar a astronomia com o documentário Cosmos, de 1980, que produziu e apresentou.

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O Universo fora construído com um sentido […]. Seja em que galáxia estiveres, toma a circunferência de um círculo, divide-a por seu diâmetro, mede com todo cuidado e descobre um milagre – outro círculo, traçado a quilômetros da vírgula decimal. Haveria, mais adiante, mensagens ainda mais ricas. Não importa a tua aparência, a matéria de que és feito ou de onde vieste. Desde que vivas neste Universo, e tenhas um modesto talento para a Matemática, mais cedo ou mais tarde o encontrarás. Já está aqui. Está dentro de tudo. Não precisas deixar teu planeta para encontrá-lo. Na trama do espaço, como na natureza da matéria, e ainda numa grande obra de arte, lá está ela, em letras pequenas, a assinatura do artista. Sobrepondo-se aos homens, aos deuses e aos demônios, […] há uma inteligência que antecede o Universo. SAGAN, Carl. Contato. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 414.


Capela Sistina, Vaticano, Roma, Itália

Deus é apenas assunto de religião?

A criação do homem, de Michelangelo, 1511-1512. A pintura, localizada no teto da Capela Sistina, representa Deus como um homem forte, idoso, com cabelo e barba longos e grisalhos – essa imagem ficou eternizada no imaginário popular.

Engana-se quem pensa que apenas as religiões falam sobre Deus. Um dos temas mais discutidos pelos filósofos de todos os tempos é justamente esse: Deus existe? Não existe? O que é? Qual é sua relação com o mundo? É possível afirmar ou negar a sua existência? Algumas pessoas consideram que,quando se fala de Deus em termos racionais, analisando a possibilidade ou não da sua existência, buscando respostas lógicas,trata-se de filosofia sobre Deus. E, quando há fé e se acredita que Deus existe, dirigindo-se a Ele por meio de orações, trata-se de religião. No entanto, há muitos pensadores religiosos que usam da razão para provar a existência de Deus; e há filósofos, como Henri Bergson – cujas ideias veremos adiante –, que dispensam a razão e acham que somente a experiência religiosa pode revelar Deus. Portanto, nesse contexto, existem dois caminhos: a religião buscando o apoio da Filosofia para mostrar a existência de Deus, e a Filosofia aceitando a experiência da religião para afirmar Deus. É verdade, porém, que podemos delimitar o campo da religião para o da revelação (quando Deus aparece, se revela, se mostra, fala por meio de um livro sagrado ou de uma tradição oral), ao passo que na Filosofia é o homem que busca, indaga, questiona e põe Deus como uma solução para os problemas últimos da existência. Qual seria a relação da Ciência com Deus? Pode-se considerar, erroneamente, que a Ciência é necessariamente contra a existência de Deus, mas a Ciência em si não nega nem afirma a existência de Deus, porque Ele não é objeto da pesquisa científica. Vale notar que há cientistas que aceitam Deus e cientistas que o negam. Assim, entre cientistas, religiosos e filósofos há pontos divergentes e pontos em comum na forma de ver o mundo.

Henri Bergson (1859-1941) Filósofo francês, ganhou em 1927 o prêmio Nobel de Literatura por escrever a Filosofia em grande estilo literário. Foi professor de várias universidades francesas e realizou profundos estudos sobre Plotino, de quem recebeu influência. A filosofia de Bergson significou uma tentativa de superação do modelo positivista de pensamento e uma busca por fundamentar uma nova metafísica. Entre suas obras, estão Matéria e memória, A evolução criadora e As duas fontes da moral e da religião.

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Photos 12 Observatório Arcetri, Museu da História das Ciências, Florença, Itália

AFP

Cena do filme Contato, de 1997, direção de Robert Zemeckis, com Jodie Foster.

No filme Contato, a cientista Eleanor Arroway afirma que a Matemática é uma linguagem universal e que, se seres de outros planetas mandassem uma mensagem, eles o fariam usando números. Provavelmente, Pitágoras e Platão concordariam com ela. Também os astrônomos que iniciaram a Ciência moderna a partir do Renascimento, como ­Giordano Bruno (1548-1600), Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630), estariam plenamente de acordo. Esses filósofos e cientistas diriam que, se o Universo tem uma linguagem que podemos decifrar e entender, se podemos descobrir como tudo funciona e expressar em leis de forma matemática, então isso indica que há uma inteligência por trás de tudo.

Galileu e Viviani, de Tito Lessi, 1892. Óleo sobre tela. A pintura mostra Galileu Galilei com um dos seus discípulos.

Comparação gráfica em que se vê, na metade superior, o modelo dos movimentos planetários defendido pelo astrônomo grego Cláudio Ptolomeu (87-151 d.C.), aceito por quase dez séculos, e, na metade inferior, o modelo heliocêntrico proposto por Nicolau Copérnico (14731543). Imagem publicada em 1584 na obra A ceia e quarta-feira de cinzas, de Giordano Bruno, em que este toma o heliocentrismo de Copérnico e sugere ser o Universo infinito e formado por mundos semelhantes aos conhecidos.

Tanto em Pitágoras quanto em Platão e Aristóteles, aparece a ideia de um Universo perfeito, ordenado, harmônico, que se pode captar por meio de leis e da Matemática. Para Pitágoras, isso é possível também por meio da música. Vale ressaltar que ele era convicto da existência de Deus – como vimos anteriormente, ele dizia que “somente Deus” poderia possuir a sabedoria plena. Um cientista contemporâneo, muito respeitado, tem a mesma linha de raciocínio: Albert Einstein. Leia o que ele escreveu no trecho a seguir:

Não sou ateu, e não creio que possa me chamar panteísta. Estamos na situação de uma criancinha que entra numa imensa biblioteca, repleta de livros em muitas línguas. A criança sabe que alguém deve ter escrito aqueles 57


livros, mas não sabe como. Não compreende as línguas em que foram escritos. Tem uma pálida suspeita de que a disposição dos livros obedece a uma ordem misteriosa, mas não sabe qual ela é. Essa, ao que me parece, é a atitude até mesmo do mais inteligente dos seres humanos diante de Deus. Vemos o Universo, maravilhosamente disposto obedecendo a certas leis, mas temos uma pálida compreensão delas. Nossa mente limitada capta a força misteriosa que move as constelações. Einstein, apud JAMMER, Max. Einstein e a religião. Rio de Janeiro: Contra Ponto, 200. p 34-40

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É importante pensar sobre Deus?

Na Filosofia, entre algumas respostas para as dúvidas sobre a existência de Deus, existe o conceito de que Deus dá sentido, pois a natureza, a vida, a condição humana, o Universo fazem mais sentido dentro de uma concepção de um projeto concebido por um Ser Perfeito em vez de resultado do acaso. E há a ideia que Deus está presente em tudo no Universo, dentro e fora de nós.

Para muitos filósofos, definir a existência de Deus é uma questão essencial. Admitir ou não sua existência implica em consequências filosóficas diferentes. Para Platão, como vimos, deveríamos enfrentar essa questão para conduzirmos bem nossas vidas, pois a posição que tomamos ao crer ou não em Deus afeta o modo como agimos, como vemos a nós mesmos, o significado e a importância que damos à vida, o que esperamos do futuro. Para os que aceitam Deus, a vida só ganha sentido com a sua existência. Se Ele existe, a vida pode ter um sentido de transcendência, que vai além do aqui e do agora, pode haver uma providência por trás das coisas, a morte pode não ser o fim de tudo... Para os que não aceitam a existência 58


de Deus, a vida deve ter outros significados, voltados mais para a imanência, para o aqui e o agora, ou para um sentido histórico, ou pode não ter sentido nenhum.

Estoicismo Escola que começou com Zenão de Citium, no século III a.C., e se estendeu até os primeiros séculos da era cristã, com os filósofos romanos, como Cícero, Sêneca e Marco Aurélio. Teve forte influência em toda a história da Filosofia. Suas ideias principais foram: 1) o mundo é um todo orgânico, material, animado por um logos (razão) divino, do qual fazemos parte; 2) viver, segundo a natureza e segundo essa razão, é que nos faz ser virtuosos; 3) só a virtude é boa, só o vício é mau; o resto é indiferente. Os estoicos pregavam uma ética de indiferença ao sofrimento. Até hoje, o termo estoico quer dizer impassível, imperturbável, moralmente forte.

Escolástica Termo que define o período da filosofia cristã medieval, que vai do século VIII ao XVI — embora a ruptura com suas proposições tenha iniciado no século XIV. Trata-se da estruturação da Filosofia baseada na revelação do cristianismo, comprometida com os postulados da Igreja Católica. Por extensão, chama-se de escolástico todo o ensino desta tradição.

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De qualquer forma, é praticamente impossível filosofar sem tomar um posicionamento a respeito de Deus, seja para afirmá-lo, seja para negá-lo, seja ainda para concluir que nada podemos dizer sobre Ele. Em toda sua história, a Filosofia tem produzido argumentos a favor da existência de Deus e contra ela, e filósofos em diferentes contextos, condições históricas e culturais estudaram essa questão e reivindicaram um determinado ponto de vista. A filosofia de Platão e Aristóteles pretendia entender a divindade de forma racional, argumentativa, assim como o fizeram os estoicos, os escolásticos, Descartes e Espinosa, entre outros. Disso se depreende que a ideia de Deus na Filosofia está fortemente ligada à razão. Desde os gregos, o esforço de muitos pensadores é justamente usar a razão para buscar, demonstrar e compreender Deus. O poder dos argumentos a favor de uma ideia de divindade foi por muitos considerado definitivo. A razão também é vista como instrumento de entendimento da natureza divina. A questão não é só mostrar que Ele existe – e se Ele existe –, mas o que Ele é,como Ele é... Nos últimos três séculos, houve maior número de filósofos que argumentaram contra a existência de Deus. Nietzsche chegou a declarar que Deus “está morto”. No entanto, a questão e a discussão sobre sua existência ou não continua viva. Friedrich Nietzsche (1844-1900) Foi um dos filósofos de maior impacto no século XX. Sua primeira obra, O nascimento da tragédia, demonstrou seu interesse pela cultura grega e sua precoce inteligência. Foi influenciado por Schopenhauer. Crítico do pensamento ocidental, desenvolveu um embate retomando desde Sócrates e Platão. Para ele, não existia verdade universal: a verdade é apenas um conceito criado culturalmente. Também foi cético quanto à existência de noções absolutas de bem e de mal. A filosofia de Sócrates e do cristianismo, segundo Nietzsche, impôs aos homens uma moral racionalista e de escravos. Essa moral cristã amorteceu aquilo que havia de mais profundo na natureza humana: a força, a vontade e o desejo. A paixão, a agressividade e a força, no seu pensamento, são as fontes da moralidade humana.

Por que Deus é Deus? Quando os filósofos pretendem provar a existência de Deus, usam argumentos que falam da natureza divina. No porquê, muitas vezes já está presente o que e o para quê. Por que, de acordo com alguns filósofos, precisamos de Deus para explicar o mundo? Que Deus é esse que explica o mundo? Para que precisamos de Deus em nossa vida? Vamos resumir algumas respostas que aparecem na Filosofia. Deus é causa – Só se pode explicar tudo o que existe, de maneira tão bela e tão ordenada, tão funcional e tão inteligente, se aceitarmos que existe uma inteligência criadora ou, se não for criadora (há filósofos que não


aceitam Deus como criador), pelo menos uma inteligência organizadora. Esse argumento causal está em Platão, Aristóteles, em filósofos cristãos, como Tomás de Aquino, em filósofos árabes, como Avicena, em filósofos judeus, como Maimonides e Espinosa.

Deus é a medida do bem – Para podermos dizer que algo é mais justo ou menos justo, melhor ou pior, para haver uma moralidade real no ser humano, na vida e no mundo, é preciso que haja um conceito supremo de bem, uma medida absoluta. Platão e Aurélio Agostinho enfatizaram esse argumento. O escritor russo Dostoievski resumia essa ideia da seguinte forma: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Nietzsche, em Além do bem e do mal, defende que o bem e o mal são conceitos relativos e devem ser ultrapassados. Nesse item, observamos o argumento a favor da existência de Deus como parâmetro para as leis morais – discutiremos no capítulo V se é possível ou não uma ética sem Deus. Aurélio Agostinho ou Agostinho de Hipona (354-430) Filósofo cristão, teólogo e bispo, é considerado um dos pais da Igreja católica. Foi professor de retórica e seguiu o maniqueísmo (seita da época segundo a qual havia dois princípios no Universo: o bem e o mal) antes de se converter ao catolicismo por influência de sua mãe, Mônica, e da pregação de Santo Ambrósio de Milão. Formulou a primeira grande sistematização da doutrina católica com a influência do neoplatonismo. Entre suas obras, destacam-se Confissões e Cidade de Deus.

Deus dá sentido – A natureza, a vida, a existência humana, o Universo fazem mais sentido dentro de uma concepção inteligente, de um projeto concebido por um Ser Perfeito e Todo-Poderoso em vez de resultado do acaso. Esse sentido ganha corpo quando aliado à ideia de eternidade – nesse espaço de tempo em que desfrutamos da vida que vivemos não é possível esgotar todas as nossas possibilidades e desejos. Portanto, a ideia de Deus dando sentido existencial está ligada à imortalidade da alma. Deus é imanente – Deus está presente em todas as coisas, no Universo, dentro e fora de nós; por isso, podemos observar suas leis agindo em tudo e, ao mesmo tempo, podemos “sentir” essa presença. Espinosa enfatiza essa onipresença e Bergson mostra que é possível experimentar essa divindade em toda a criação. Quando essa ideia é levada ao extremo, temos o que se chama panteísmo– em que Deus e a natureza são uma só coisa. Essa é a posição do próprio Espinosa e dos idealistas alemães, como Hegel e Fichte. Deus é transcendente – Deus está além de todas as coisas, pois tudo muda, tudo se move, tudo nasce e morre, tudo é limitado – mas Deus é eterno, infinito, nunca se modifica, ele pode estar em tudo, mas não é tudo. Aristóteles, Agostinho, Martin Buber citam Deus como Ser, o Outro e Tu. Deus é finalidade – O ser humano está sempre em busca da beleza, do bem, da felicidade, quer sempre algo mais, está sempre insatisfeito. Sonha com utopias, deseja sentir-se pleno, inteiro, almeja algo que muitas vezes nem

Idealismo Considerado como o oposto do materialismo, é a posição filosófica que vê no espírito a realidade essencial do Universo. Nesse sentido, o platonismo é visto como um idealismo, pois considera que a realidade está no mundo das ideias, das quais o mundo material é apenas uma cópia imperfeita. Na Filosofia alemã, Kant é apontado como idealista, mais especificamente por considerar que o conhecimento das coisas depende do sujeito que as conhece — portanto, a Filosofia se centra no sujeito, e não no objeto. Em um sentido mais amplo, pode-se falar do idealismo de Hegel, que considera toda a realidade idêntica ao Espírito Absoluto, dissolvendo a dicotomia entre sujeito e objeto.

Martin Buber (1878-1965) Filósofo judeu, austríaco, considerava que a existência humana é basicamente a comunicação que se dá entre os sujeitos. Para ele, se a comunicação for plena há uma relação eu-tu; se houver uma instrumentalização do outro, dá-se uma relação eu-isto; mas a máxima comunicação é a vertical, em que ocorre uma relação ser humano-Deus.

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Al-Ghazâlî (1058-1111) Filósofo, jurista, teólogo e místico muçulmano de origem persa. Ao contrário de Al-Farabi e Avicena, Al-Ghazâlî não aceitava a Filosofia grega e era cético em relação aos sistemas filosóficos.

sabe o que é. Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino ou um filósofo árabe como Al-Ghazâlî e tantos outros identificam essa busca humana como busca de Deus – supremo bem, supremo amor – e dizem que só Nele poderíamos encontrar esse bem completo, a verdade total e a felicidade absoluta.

Deus é perfeição – Somos seres imperfeitos, mas temos a ideia de um Ser perfeito. Como poderíamos imaginar a perfeição, o infinito, a eternidade, se somos imperfeitos, finitos e mortais? A ideia de Deus nos seres humanos seria a marca do Criador na criatura: trazemos essa ideia inata. Esse é o maior argumento de René Descartes.

Destaque

Galeria Nacional da Escócia, em Edimburgo

Para Platão, Deus se manifesta não só em uma ordem cósmica, mas também em uma ideia de bem supremo. Só podemos dizer que algo é justo ou injusto, bom ou mau, porque há uma medida suprema de justiça e de bem. Ou seja, sem Deus não haveria a possibilidade de desenvolvermos conceitos de moralidade. Vejamos a seguir o que diz Giovanni Reale, um dos maiores intérpretes de Platão na atualidade:

David Hume retratado por Allan Ramsey, escritor, 1766. Para Hume, o conceito de Deus é produzido pelos sentimentos e pela imaginação humana, portanto expressões do irracional. A existência de alguma coisa, segundo ele, só pode ser afirmada pela constatação de um fato e Deus não é um fato da realidade: pertence ao rol das crenças humanas.

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E.T. Archive

Deus em Platão

Busto de Platão, século V a.C.

[...] chegamos a compreender perfeitamente o que significa para Platão o “tornar-se semelhante a Deus”, a que muitos diálogos se referem. Na República, por exemplo, o nosso filósofo diz que o homem deve praticar a justiça e a virtude, e na medida do possível ao homem “fazer-se semelhante a Deus”(República, X, 613 B1). No Teeteto reafirma o mesmo conceito, dizendo que “a fuga do mundo” (do mal do mundo) consiste num “tornar-se semelhante a Deus” na medida do possível, e que a semelhança a Deus é justiça e santidade, segundo a sabedoria (Teeteto, 176 B1-3). E nas Leis Platão indica na “justa medida” a condição para ser amigo de Deus; enquanto as coisas são “privadas de justa medida” não são amigas nem entre si nem com quem as conserva; e portanto: “Deus é para nós, acima de tudo, a medida de todas as coisas, muito mais do que qualquer homem, como se afirma; quem portanto quiser se tornar amigo de alguém como Ele, é preciso que busque tornar-se o máximo possível semelhante a Ele”. (Leis, IV, 716 C4-D1) REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. São Paulo: Loyola, 1997. p. 529-530.


O que cabe ao ser humano conhecer? O que, de fato, pode ser apreendido pela razão humana? Deus pode ser conhecido de forma clara e distinta? Para alguns filósofos, Deus não pode ser assunto da filosofia. Vejamos o que eles nos dizem a respeito disso. No século XVIII, dois filósofos iniciaram uma crise na história da Filosofia: David Hume e Imannuel Kant. Trata-se de uma crise da razão, cujas consequências vivemos até hoje. Eles fizeram uma crítica à razão humana, desqualificando-a como capaz de provar, buscar, entender ou definir qualquer coisa a respeito de Deus. Hume tratou da religião em duas de suas obras: Diálogos sobre a religião natural e História natural da religião. Em ambas, ele nega a possibilidade de a razão humana chegar a descobrir qualquer Inteligência Suprema por trás da realidade. Ele contesta a validade de todos os argumentos construídos a favor da existência de Deus. No seu entender, o conceito de Deus é produzido pelos sentimentos e pela imaginação humana, portanto expressões do irracional. A existência de alguma coisa, para ele, só pode ser afirmada pela constatação de um fato e Deus não é um fato da realidade: pertence ao rol das crenças humanas. A razão humana apresenta muitas fragilidades, o que a torna incapaz de romper a barreira dos mistérios e chegar a certezas. Por mais que pesquisemos a respeito de um objeto, depois de uma análise cuidadosa, a única certeza seria a da dúvida. Essa é uma posição cética, que faz da dúvida permanente o ponto final da Filosofia. Na mesma perspectiva, estão os argumentos de Kant contra as provas dadas pelos filósofos a respeito da existência de Deus. Ele não aceita que a razão humana possa conhecer Deus, embora possa pensá-lo, devido ao fato de que a razão está presa ao mundo dos fenômenos e não pode acessar a essência das coisas e o mundo metafísico. O poder do conhecimento do ser humano é restrito ao plano mundano, esse mundo, e a ele faltam elementos empíricos que provariam a existência de Deus de forma indiscutível. Essas provas só podem despontar como especulações. Nem Kant nem Hume chegam a negar a existência de uma realidade espiritual e de Deus; eles apeO sono da razão produz monstros, de Francisco Goya, 1797-1799. nas mostram a impossibilidade de a razão chegar a Na gravura, na qual o personagem seria o próprio arDeus pelos dados da realidade. A razão não pode dar tista, o mundo além da razão, manifesto nos sonhos, o veredicto final, portanto os dois defendem que essa atormenta o homem. discussão não tem sentido. 62

Rijksmuseum, Amsterdã, Holanda / AFP

A Crise da razão


Essa postura de ambos deflagrou uma crise sem precedentes na história da Filosofia, porque defendia que quem quisesse tratar, sob qualquer prisma, da ideia de Deus, que o fizesse apenas pela fé. Dessa forma, aprofunda-se um abismo entre fé e razão, entre Filosofia, Ciência e religião.

O problema do mal

Epicurismo Escola que se iniciou com Epicuro, no século­ III a.C., e alcançou o período helenístico, mas sem tanta influência quanto o estoicismo sobre a cultura romana. Suas ideias principais foram: 1) o mundo é constituído de átomos, que são conjuntos de partículas ainda menores; 2) a vida não tem nenhum tipo de elemento espiritual: os próprios deuses e a alma são feitos de átomos; 3) para eliminar uma das fontes de sofrimento do ser humano é preciso se livrar do medo da morte e dos deuses; 4) a ética epicurista é a que elege como valor máximo o prazer. Para livrar-se do sofrimento e ter os prazeres possíveis na vida, os epicuristas pregavam uma vida simples e contida, centrada nos prazeres naturais, sem excessos, e nos prazeres intelectuais

Epicuro de Samos (341-270 a.C.) Filósofo grego, foi fundador da escola epicurista. Sua filosofia propunha uma forma de vida que buscasse o prazer, mas não o prazer sensualista, e sim o prazer do filósofo, que tem controle sobre si mesmo e sabe moderar seus desejos.

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Deus, na tradição cristã, é pensado como um ser supremo da bondade, não é? Então, por que existe o mal? Por que a vida humana é marcada por tantos sofrimentos aparentemente desnecessários? A presença do mal no mundo não pode ser pensada como uma prova da inexistência de Deus? Entre as objeções mais fortes à existência de Deus está a presença do mal no mundo. A questão é: Se Deus existe, por que existe o mal e o sofrimento? Se Ele permite, é porque não é bom e se Ele não pode impedir, é porque não tem poder – em ambos os casos, não pode ser chamado de “Deus”, porque, como vimos, Deus tem de ser perfeito e onipotente. Hume usou esse argumento em seu livro Diálogos sobre a religião natural. Existem várias respostas para essa crítica. A primeira foi dada por Santo Agostinho, mais de mil anos antes de Hume. Para Agostinho, Deus é o Sumo Bem (como para Platão e Aristóteles) e a única realidade. O mal não tem consistência, é apenas a ausência de Deus, é fruto de nosso livre-­ -arbítrio. É porque Deus nos dá liberdade que existe o mal, sendo o mal a nossa negação de Deus, o nosso afastamento de Sua vontade, que é sempre boa. Outra resposta pode ser encontrada nas filosofias de Descartes e Espinosa, as quais consideram que nós vemos o mal de nosso ponto de vista, porque não conseguimos enxergar a harmonia do todo. Nessa harmonia, aquilo que nos parece mal faz parte de um conjunto inteligente: não haveria luz se não houvesse sombra, não haveria justiça se não houvesse injustiça – sendo a justiça a vitória sobre a própria injustiça.

As vozes que negam Deus Muitos filósofos desenvolveram e defenderam ao longo da história a negação de Deus, de qualquer tipo de divindade ou de um Ser que dê fundamento absoluto à realidade. Essa negação é chamada de ateísmo (do grego a, “ausência”, e Théos, “Deus”). O ateísmo já está presente entre certos filósofos gregos, que acreditavam que a matéria seria a única realidade do Cosmo e que a alma era um subproduto da matéria. A divindade não exerceria nenhum papel com relação ao que é da natureza ou dos seres humanos. Os filósofos gregos denominados epicuristas, discípulos do filósofo Epicuro , eram partidários dessas teses. A questão foi discutida por Platão, em seu livro Leis, onde aparece a primeira análise do ateísmo na história da Filosofia. O livro aborda três formas


de ateísmo: 1– a negação de qualquer espécie de divindade; 2 – a crença na existência da divindade, mas que não cuida dos seres humanos e da vida mundana; 3 – a ideia de que com oferendas e doações pode-se influenciar a divindade. Entretanto, Platão entende a primeira forma de ateísmo como a única verdadeiramente filosófica, que defende a tese de que a matéria precede a divindade e é a causa de todas as coisas. O filósofo grego refuta as correntes ateias da filosofia grega, pois, como já foi discutido anteriormente, Deus e a realidade transcendente fundamentavam sua Filosofia.

Musée A. Leauyer, Saint-Quentin, França

O fenômeno do ateísmo, para os historiadores da Filosofia, ocorre desde a Antiguidade, mas é somente nos tempos modernos e contemporâneos que ele se torna amplo e cria raízes na cultura de massa. Até esse período, o ateísmo era um fenômeno individualizado. A partir do século XVIII, no seio do movimento iluminista, as concepções teóricas ateístas começam a se estruturar. O iluminismo representou um movimento multifacetado com características filosóficas, culturais, econômicas e políticas. Caracterizou-se por uma confiança no poder racional dos seres humanos e na utilização dessa razão como instrumento promotor de mudanças profundas na sociedade, nas instituições e no conhecimento. Nesse sentido, outro traço típico do iluminismo foi sua crítica ao tradicionalismo religioso e à Igreja. De uma forma ou de outra, todos os pensadores desse período trataram da questão de Deus e da religião. Entretanto, se alguns negaram o Deus das Igrejas, não negaram o conceito de Deus em si. Esse foi o caso de François Marie Arouet Voltaire e de Jean-Jacques Rousseau . François Marie Arouet Voltaire (1694-1778) Foi um dos mais famosos iluministas franceses. Possuía grande clareza e talento para divulgar as ideias filosóficas iluministas, apesar de nem sempre ter sido considerado profundo ou original. Voltaire exaltou a razão e a Ciência, adotando o ponto de vista empirista, do conhecimento derivado da experiência. Elaborou uma poderosa crítica à religião instituída, assumindo uma posição anticlerical e atacando a intolerância religiosa. Um de seus pontos fortes foi a sua filosofia da tolerância. Suas duas obras mais importantes são Cândido, que contribuiu para a propagação do Iluminismo, e o Tratado de tolerância, uma exaltação da tolerância religiosa entre os povos.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) Filósofo e educador suíço radicado na França. Iluminista, teve uma obra multifacetada, com grande influência no século XIX. Iniciou sua carreira como músico, e foi convocado por Diderot e D’Alembert a escrever o verbete sobre música na Enciclopédia. Depois, dedicou-se à Filosofia e à educação, sendo considerado o “Copérnico da Pedagogia” por seu livro Emílio, ou da educação. A ideia de que o homem é essencialmente bom e de que a sociedade o corrompe por suas instituições sociais injustas o levou a propor uma nova educação (que preservaria a bondade natural do homem) e uma nova sociedade (baseada em outro tipo de contrato social, em que a vontade geral fosse a fundadora da democracia igualitária e justa). Além de Emílio, suas obras principais, escritas em grande estilo literário, são Discurso sobre a origem da desigualdade, Contrato social, Júlia, ou a Nova Heloísa e Confissões.

Em 2012 ocorreram muitas comemorações pelos 300 anos de nascimento do filósofo Jean-Jacques Rosseau, cujo pensamento se centrou na discussão das questões éticas e ontológicas ligadas à natureza humana. O conhecimento de Rosseau abrange, além da Ética, Educação e Política, a Antropologia Cultural, a Filosofia da Religião e a Ecologia, entre outras disciplinas. Ele foi também defensor dos indígenas (criou a definição do bom selvagem – o ser que é, essencialmente, bom, mas a sociedade o corrompe) em contraposição ao homem corrupto do processo civilizatório.

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Nesse sentido, é importante estabelecermos uma distinção quando tratamos do conceito de Deus na Filosofia: negar a ideia de um Deus, que foi apropriada pelas igrejas, não implica em negar o conceito de Deus em si. O que ocorre, em muitos casos, é que os filósofos podem ser críticos ardorosos das igrejas e, ainda assim, continuar sustentando a ideia de um Deus existente.

O ateísmo depois da Revolução Francesa

Marquês de Condorcet (Marie Jean Antoine Nicolas Caritat) (1743-1794)

Biblioteca Nacional Francesa, Paris

Filósofo e matemático francês, participou da Revolução Francesa, mas supõe-se que tenha sido assassinado na prisão pelo governo revolucionário. Condorcet foi um dos grandes iluministas que teorizou sobre o progresso. Buscou a emancipação do ser humano e os seus direitos. Defendeu o voto feminino e trabalhou em favor dos negros. Considerava a religião um entrave para o progresso.

O modo como as igrejas pensam e praticam Deus pode estar associado a uma desvalorização ou a uma desqualificação do ser humano? Para muitos pensadores da modernidade, a presença da religião na vida do ser humano vem necessariamente acompanhada pelo elemento da opressão. Vejamos o porquê disso na sequência. Depois da Revolução Francesa, o ateísmo ganhou a sociedade e impregnou a cultura. O Marquês de Condorcet , um pensador desse ­período, via na religião e em Deus um conjunto de superstições, que deveria ser retirado da base de qualquer conhecimento. Eles e outros pensadores apontavam a ideia de Deus como forma de poder e opressão e desqualificavam qualquer argumento a respeito de Deus como confiável. A Revolução Francesa trouxe uma nova realidade material (econômica e política) e espiritual (costumes e cultura) que possibilitaram a expansão do ateísmo. Havia um clima de revolta contra as imposições milenares da Igreja Católica e, depois, do próprio protestantismo, com a imagem de um Deus severo, repressor e distante do ser humano. No século XIX, o ateísmo ganha força teórica com o filósofo alemão ­Ludwig Feuerbach . Em seus livros A essência do cristianismo e A es-

Tomada da Bastilha, de Jean-Pierre Houel, 1789, representando um dos fatos mais importantes, um ícone, do início da Revolução Francesa. A rebelião marcou uma ruptura com várias instituições, inclusive com a Igreja.

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sência da religião, o ateísmo aparece com consistência filosófica a ponto de certos historiadores colocarem Feuerbach como o pai do ateísmo teórico. Segundo ele, Deus é a expressão da consciência e dos sentimentos humanos, e foi o próprio ser humano que criou Deus. O Ser Divino nasceu do sentimento psicológico e subjetivo da sensação de dependência e de desamparo do ser humano diante da realidade e do mundo que o cercam. Por exemplo, o medo dos seres humanos que viviam em comunidades primitivas perante os fenômenos da natureza os levou a criar deuses que os protegessem e, ao mesmo tempo, controlassem a natureza. Deus ganha a dimensão de “Pai” pela necessidade de segurança dos humanos. O mundo espiritual surge como uma representação do próprio mundo terrestre não como ele é, mas como os humanos gostariam que ele fosse. Feuerbach pretende alertar quanto às ilusões causadas pela religião, em especial à ideia de que um Ser Supremo tenha existência em si, quando Ele é, na verdade, idealização dos próprios sentimentos humanos.

E, em seu rastro, aparecem pensadores como Auguste Comte , Karl Marx, Friedrich Engels, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud (ver capítulo 6), Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger . Todos esses, cada um à sua maneira, também admitem que a ideia de Deus é ilusória, uma espécie de projeção dos sentimentos e pensamentos humanos. Jean-Paul Sartre (1905-1980) Filósofo e escritor francês existencialista, exerceu grande influência entre os anos 1950 e 1960 no cinema, no teatro e na literatura. Em seus romances filosóficos, apresentou personagens marcados por intensa angústia diante da vida. Esse é o cerne do seu filosofar, elaborado no livro O ser e o nada. Para ele, o ser humano tem uma sensação profunda de insegurança diante da existência. Isso porque não somos seres determinados pela natureza: somos seres que agem, escolhem, decidem e é isso que dá sentido à existência e ao mundo. A liberdade é o centro da vida humana e é diante da liberdade solitária que surge a angústia. Ao ser humano cabe construir o sentido de sua existência. Seguindo essa linha, Sartre afirma que o indivíduo não tem nenhuma essência determinada previamente por Deus ou pela natureza: a essência humana procede do seu existir no mundo e está ligada às escolhas de cada um.

Martin Heidegger (1889-1976) Filósofo alemão de maior influência no século XX. Personalidade enigmática, pertenceu ao partido nazista e foi empossado por Hitler como reitor da Universidade de Berlim. Chegou a afirmar que a Alemanha inauguraria uma nova fase na História. Alguns historiadores e filósofos discutem até que ponto sua relação com o partido nazista foi apenas circunstancial. Para alguns, ela foi parte estruturante de sua filosofia e personalidade. Seu pensamento filosófico é complexo e de difícil compreensão. Recebeu influência da fenomenologia, especialmente do seu mestre Husserl. Foi considerado, ao menos nas suas obras iniciais, um representante do existencialismo. A preocupação básica de seus escritos foi entender o nascimento dos fundamentos do pensamento ocidental. Ele questionou as bases postas por Platão de que o ser humano é constituído por uma essência e que o mundo possui categorias que podem ser compreendidas. Para Heidegger, o ser humano não tem essência predeterminada: sua essência é determinada pela sua existência, pelo mundo em que vive. Entre seus livros, destaca-se O ser e o tempo.

Ludwig Feuerbach (1804-1872) Filósofo alemão, recebeu influência de Hegel. Fez uma análise profunda do fenômeno religioso e foi um dos principais pensadores do século XIX a questionar a ideia de que o ser humano era divino e imortal. Segundo ele, a imortalidade da alma e a divindade do homem não repousam sobre uma crença racional, e a religião é uma espécie de alienação do homem de si mesmo, pois projeta em Deus suas capacidades.

Auguste Comte (1798-1857) Pensador francês, pai do positivismo e da Sociologia, teve sólida formação matemática e científica. Foi colaborador do socialista Saint-Simon (com quem depois rompeu), de quem recebeu influência para criar uma ciência social e uma política científica. O positivismo de Comte foi a doutrina filosófica que estruturou o conhecimento das coisas de forma positiva e de acordo com o último estágio de desenvolvimento da humanidade, impulsionado pelas conquistas da Ciência. Obras principais: são Curso de filosofia positiva, Discurso sobre o espírito positivo e Catecismo positivista.

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O ateísmo como alienação em Marx e Engels

AFP

Marx e Engels defendem uma filosofia ateia em que Deus aparece como ilusão. Na religião, o ser humano aliena o seu próprio ser, ou seja, ele se perde. A ideia de Deus sucumbirá tão logo acabe o motivo da alienação humana – que são as injustiças sociais. Para eles, isso ficava claro no cristianismo, que justificava as injustiças sociais ao transferir para o céu a compensação dos sofrimentos da vida. Esses princípios referendaram a escravidão e aprovaram a exploração do homem pelo homem. Nesse caso, os seres humanos gozariam uma felicidade ilusória, uma vez que a felicidade real não seria alcançada no mundo terreno. A ideia de Deus, para os dois pensadores, havia sido usada historicamente como instrumento de soberania das classes dominantes sobre as classes dominadas. Era uma ilusão criada pelas criaturas oprimidas do mundo para se consolar das injustiças sofridas e um instrumento de controle na mão dos opressores. Na concepção deles, a ideia de Deus não teria mais sentido de existir na nova sociedade comunista que ambos previam e idealizavam. Nessa sociedade, Deus perderia a função, pois não haveria mais opressão e as relações sociais seriam justas. Em suas críticas a Deus e à religião, percebe-se uma tentativa de elevar a figura do ser humano e inverter as situações em que ele aparece como um ser servil, desprezível e abandonado. O ateísmo marxista é uma forma de valorização do ser humano, que objetiva elevá-lo à sua grandeza. Assim, é preciso extinguir tudo que impede os seres humanos de tomarem consciência de si mesmos e de sua dignidade. A ideia de Deus havia se tornado um obstáculo à promoção humana, à libertação do homem e de sua real felicidade. A rejeição de Marx à ideia de Deus tem, portanto, um fundamento fortemente político e social. Alguns críticos da teoria marxista, como Bertrand Russell e Raymond Aron, ou mesmo alguns marxistas, como Ernst Boch, veem em seu pensamento, apesar da negação ateísta, uma presença marcante de religiosidade, provavelmente herdada da cultura judaico-cristã em que estava inserido. A ideia de uma sociedade perfeita teria muito a ver com as profecias de um paraíso na Terra, e o modo de ação social e política de Marx estaria também impregnado de vigor profético e ardor místico. Retrato de Nietzsche, de Edvard Munch, 1906. Óleo sobre tela.

Bertrand Russell (1872-1970) Filósofo e matemático britânico, teve uma vasta obra e vida como militante. O objetivo de sua filosofia era limpar do pensamento filosófico as especulações vazias e construir uma filosofia calcada na fundamentação lógica. A filosofia de Russel considerava que o tratamento das questões filosóficas deve começar por uma análise lógica da linguagem. A linguagem é a estrutura lógica subjacente às formas de representações da mente humana.

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“Deus está morto” Friedrich Nietzsche, outro importante pensador ateísta, pensava de forma diferente, e até mesmo criticava o socialismo marxista. Ele afirma que a ideia de Deus e de religião construída no Ocidente possui um significado desumanizante e perverso. Acabar com a ideia de Deus era fundamental para superar a visão de um homem servil, fraco e decadente e construir a ideia de um homem forte, viril e corajoso. Esse homem tem características polêmicas, como agressividade, egoísmo e orgulho e são valorizadas no livro A Gaia ciência, no qual o filósofo decreta a morte de Deus. No livro Assim falou Zaratustra, conhecemos essa tese por meio dos discursos do personagem Zaratustra. Para ele, a morte de Deus abriria nova possibilidade para o pensamento ocidental. Deus morrendo, colocava-se um ponto final na tradição filosófica ocidental que tinha por base o desgastado pensamento socrático-cristão e, assim, tornava a proposta de um novo tipo de cultura e de um novo ser humano, uma nova aurora que se anunciava para o século XX. Para o filósofo alemão, a crença na razão e a crença em Deus são faces de uma mesma moeda e pertencem a uma mesma estrutura filosófica que ele pretendia superar, com base em um niilismo filosófico. Nietzsche diz que a ideia de Deus está vinculada ao conceito de razão, conhecimento e linguagem no pensamento ocidental. Para ele, o ateísmo iluminista estaria ainda carregado de religiosidade, pois a razão iluminista provinha de uma herança cultural cristã. Nesse contexto, ele critica o cristianismo, descrevendo-o como a religião dos fracos, pois impede a seleção dos fortes, constrói um ideal de servilidade e sacrifica a força do ser humano. Critica valores cristãos como compaixão e fraternidade e aponta o cristianismo como uma religião antinatural, que destrói os valores saudáveis da vida, como orgulho, virilidade e liberdade.

Os ateísmos de Heidegger e Sartre Para Heidegger, os filósofos tinham valorizado demais a problemática de Deus e da religiosidade e essa metafísica deveria ser superada, por meio de uma análise filosófica do ser. Nesse sentido, recusa a tradição, defendendo uma nova maneira de ver a Filosofia, o ser humano, os valores e o mundo. Certos historiadores dizem que, em relação a Deus, é difícil classificar o pensamento de Heidegger. Sartre dizia que Heidegger seria um antimetafísico e ateu, pois destruía a noção de Deus na metafísica. Outros autores, como Hans-Georg Gadamer , dizem que no texto Contribuições à Filosofia, Heidegger apresenta uma relação entre o ser e Deus como necessidade. Mas esse Deus não apresenta classificações monoteístas (acreditar em apenas um Deus), panteístas (a doutrina filosófica que identifica Deus com tudo o que existe, tornando tudo uma realidade integrada) ou ateias (quando não se acredita na existência de Deus nenhum). É um Deus que está fora de qualquer metafísica.

Hans-Georg Gadamer (1900-2002) Filósofo alemão, discípulo de Heidegger, tratou da hermenêutica (ciência da interpretação) em sua obra Verdade e método, na qual analisa o enraizamento histórico das verdades.

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Outro importante filósofo ateu do século XX foi o francês Jean-Paul Sartre. Sua filosofia é mais clara e fácil de ser apreendida do que a do filósofo alemão Heidegger. O problema de Deus também está presente em sua literatura filosófica, tornando-se mesmo um dos aspectos centrais do seu pensamento. Para ele, Deus é uma projeção dos humanos, que desejam ser Deus. O ser humano não se contenta em viver em um mundo desordenado e assumir suas contingências, finitudes e limitações; portanto, projeta uma perfeição e infinitude de si próprio e do mundo na criação de Deus. O ser humano está sozinho no mundo e deve reconhecer isso. Deus não é, para Sartre, como era para Marx e Engels, condicionamento histórico e social: ele faz parte da condição humana. A ideia de Deus é uma fuga da realidade aterrorizante que circunda o homem, portanto sempre vai existir: faz parte do viver no mundo e de seus projetos. Os seres humanos sempre terão ilusões transcendentais. O humanismo ateu, segundo Sartre, deveria expulsar a religiosidade de todos os âmbitos da vida. A emancipação do ser humano e sua liberdade só fazem sentido dentro da filosofia ateia. Por uma série de razões históricas e culturais, o ateísmo ganhou força no século XX e passou a fazer parte de quase todos os ramos do conhecimento. A vida, a cultura, o conhecimento, os valores foram se tornando secularizados, ou seja, desligados de concepções teológicas. Entretanto, um fato é notório: por mais que se tenha criticado a ideia de Deus, ela não desapareceu em nenhuma sociedade, em nenhuma cultura. Mesmo naquelas que foram maciçamente doutrinadas no ateísmo, como a sociedade russa, cubana ou chinesa (pela presença da ideologia marxista), as crenças ressurgem sempre. Um dos grandes filósofos do século XX, Henri Bergson, em seu livro As duas fontes da moral e da religião, usou um argumento a respeito da existência de Deus muito interessante: ele aponta que, ao longo da História, houve homens e mulheres – e ainda os há – chamados de místicos. São aquelas pessoas que afirmam ter uma experiência direta com Deus. Não argumentam, apenas sentem profundamente a presença divina e exprimem isso em imagens de grande beleza poética e em uma vida de virtudes, devotamento ao próximo e elevação moral. Diz Bergson que todos podemos sentir a mesma coisa, embora em grau menor que o dos grandes místicos e, se sentirmos, todas as argumentações contrárias perdem a razão.

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Destaque A aposta de Pascal

Toulouse, Archevêché, França

Blaise Pascal foi um filósofo e matemático francês que discutiu a problemática de Deus. Em sua opinião, as pessoas tinham medo de enfrentar essa questão, pois receavam que Deus existisse de fato. Ainda de acordo com esse filósofo, não é possível ficarmos indiferentes à existência de Deus, pois Ele está diretamente ligado ao modo de vida dos seres humanos e cada um molda sua vida de acordo com essa questão. A ideia de Deus não é contrária à razão; no entanto, no caminho dessa descoberta, a razão tem suas limitações, por isso as pessoas precisam pensar em termos de conveniência: é mais conveniente acreditar em Deus ou não acreditar? Esse pensamento é conhecido como “a aposta de Pascal”. Seu objetivo não é demonstrar a existência de Deus. Pelo contrário, seu interesse é mostrar que qualquer pessoa sensata apostaria na existência Dele.

Blaise Pascal, em retrato feito por pintor anônimo, no século XVII.

O filósofo diz que devemos imaginar como se estivéssemos diante de um jogo: precisamos calcular o que ganhamos e o que perdemos acreditando ou não na Sua existência. O apostador deve procurar a hipótese em que ele ganhe mais. Quem aposta na existência de Deus tem muito a ganhar e pouco a perder. O que Pascal quer dizer é o seguinte: Se apostarmos na existência de Deus e vencermos, se de fato Ele existir, ganhamos maior consciência das coisas e a vida eterna, ainda que percamos alguns prazeres e tempo para nos dedicarmos a Ele. Se apostarmos em Sua inexistência, e Ele de fato não existir, viveremos sem essa ilusão e poderemos gozar os prazeres da vida sem medo de consequências desagradáveis; porém, se apostamos nessa hipótese e Ele de fato existir, podemos ter tido uma vida desregrada moralmente, o que nos acarretará problemas na vida eterna.

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E.T. Archive

Texto original

Retrato de Feuerbach.

Quarta preleção e trigésima preleção Ludwig Feuerbach

[...] Distingo-me dos ateístas e dos panteístas anteriores (neste ponto tinham os panteístas a mesma posição filosófica dos ateístas), como, por exemplo, Espinosa, exatamente por estabelecer para a religião não somente causas negativas mas também os sentimentos contrários aos do medo, os sentimentos positivos da alegria, da gratidão, do amor e da adoração, e por afirmar que, tanto quanto o medo, também o amor, o júbilo e a adoração criam deuses. [...] O sentimento da angústia é transitório, mas o da gratidão é permanente: une os laços do amor e da amizade. O sentimento da angústia é um sentimento comum, mas o sentimento da gratidão é um sentimento nobre [...]. Mas se eu agora não quiser nem puder apresentar como única explicação da religião nem o medo, nem a alegria, nem o amor, que outro nome encontrarei que seja universal, que contenha ambos, a não ser o do sentimento de dependência? O medo é sentimento de morte, a alegria é sentimento de vida. O medo é o sentimento da dependência de um ser sem ou pelo qual não sou nada, que tem o poder de me aniquilar. A alegria, o 71

amor, a gratidão são os sentimentos da dependência de um ser por meio do qual eu sou alguma coisa, que me dá o sentimento e a consciência de que eu vivo e existo por meio dele. Uma vez que eu vivo e existo por meio da natureza ou Deus, amo-o; uma vez que eu sofro e me consumo por meio da natureza, tenho medo dela. Em resumo, quem dá ao homem os meios ou as causas da alegria de viver será amado por ele, e quem toma a ele esses meios ou tem o poder de tomá-los, este será temido por ele. Mas ambos se unem no objeto da religião: o mesmo que é fonte de vida é também negativamente, quando não o tenho, fonte da morte. [...] a religião é essencial ou inata no homem; não a religião no sentido da teologia ou do deísmo, da própria crença em Deus, mas a religião enquanto nada mais expressa que o sentimento de finitude e dependência da natureza por parte do homem. [...] [...] O ateísmo tímido é, portanto, um a­ teísmo nulo e vazio. Ele não tem nada para dizer, por isso também não ousa se pronunciar. O ateu privado ou oculto diz ou pensa somente consigo: “Não existe um Deus”, seu ateísmo se resume somente nesse princípio negativo, e esse princípio é para ele isolado, de forma que, apesar de seu ateísmo, tudo para ele continua como estava antes. E de fato, se o ateísmo nada mais fosse que uma negação, um mero negar sem conteúdo, ele não serviria para o povo, isto é, para o homem, para a vida pública, mas somente porque ele mesmo de nada valeria. Mas o ateísmo, pelo menos o verdadeiro, o não tímido, é ao mesmo tempo uma afirmação, o ateísmo nega apenas a essência do homem ­abstraída que é e se chama Deus, para substituí-la pela essência do homem como a verdadeira. O deísmo, a crença em Deus, é, ao contrário, negativo; ele nega a natureza, o mundo e a humanidade: diante de Deus é o mundo e o homem um nada, Deus existe e existiu antes que o mundo e os homens existissem; ele pode existir sem eles; ele é o nada do mundo e do homem; Deus pode (como crê pelo menos o deísta ortodoxo) aniquilar o mundo a qualquer instante; para


FEUERBACH, Ludwig. A essência da religião. Campinas: Papirus, 1989. p. 34-55, 234-235.

A existência de Deus Henri Bergson

AFP

o verdadeiro deísta, não existe nenhum poder e beleza da natureza, nenhuma virtude do homem; tudo retira o deísta do homem e da natureza para assim enfeitar e glorificar somente o seu Deus. “Só a Deus devemos amar”, diz, por exemplo, Santo Agostinho, “mas todo este mundo, isto é, tudo o que é sensorial, devemos desprezar”. “Deus”, diz Lutero numa carta latina, “quer ser o único amigo ou nenhum”. “Só a Deus”, diz ele em outra carta, “é devida a fé, a esperança e o amor, pelo que se chamam essas virtudes teológicas”. O deísmo é portanto“negativo e destrutivo”[...]. Mas Deus nada mais é que a essência do homem e da natureza abstrata, fantástica, tornada autônoma pela imaginação; por isso, o deísmo sacrifica a vida e a essência real das coisas e dos homens a uma mera entidade do pensamento e da fantasia. O ateísmo, ao contrário, sacrifica a essência do pensamento e da fantasia em nome da vida e da essência real. Por isso é o ateísmo positivo, afirmativo; ele dá novamente à natureza e à humanidade a importância, a dignidade, que o deísmo lhes roubou; ele dá vida à natureza e à humanidade, das quais o deísmo sugou as melhores forças. Deus é ciumento com a natureza, com o homem [...], só ele quer ser adorado, amado e servido, só ele quer ser algo, tudo o mais deve ser um nada, ou seja, o deísmo é ciumento com o homem e o mundo, ele não lhes dá nada de bom. [...] Mas o ateísmo é liberal, generoso, franco, ele reconhece a todo ser sua vontade e seu talento, ele se rejubila de coração com a beleza da natureza e com a virtude do homem: a alegria, o amor não destroem mas dão vida, afirmam.

O filósofo francês Henri Bergson, que ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 1927.

Quando assim se tenha reconstituído a origem e a significação do Deus de Aristóteles, indaga-se como os modernos tratam da existência e da natureza de Deus, complicando-se com problemas insolúveis que só se apresentam se Deus for encarado do ponto de vista aristotélico […]. Será a experiência mística a que resolverá esses problemas? Percebe-se de pronto as objeções que ela suscita. Afastamos aquelas que consistem em fazer de todo místico um ser desequilibrado, e de todo misticismo um estado patológico. Os grandes místicos, que são os únicos de que nos ocupamos, em geral foram homens ou mulheres de ação, dotados de um bom senso superior; importa pouco que tenham tido pessoas desequilibradas por imitadores, ou que algum deles se tenha ressentido, em certos momentos, de uma tensão extrema e prolongada da inteligência e da vontade; muitos homens de gênio estiveram no mesmo caso. Há, porém, outra série de objeções de que é impossível não nos apercebermos. Alegase, com efeito, que a experiência desses grandes místicos é individual e excepcional, que ela não pode ser controlada pelo comum dos homens, e 72


que não é comparável, por conseguinte, à experiência científica e não poderia resolver problemas. Muito haveria a dizer sobre essa questão. Primeiramente, falta que uma experiência científica, ou de modo mais geral, uma observação registrada pela ciência, seja sempre suscetível de repetição ou de controle. No tempo que a África central era uma terra incognita, a geografia baseava-se no relato de um explorador único se este oferecesse garantias suficientes de honestidade e de competência. O traçado das viagens de Livingstone por muito tempo figurou nos mapas de nossos atlas. Replicar-se-á que a verificação era possível de direito, se não de fato, e que outros viajantes eram livres para irem verificar que, de resto, o mapa desenhado com base nas indicações de um viajante único era provisório até que explorações ulteriores o tornassem definitivo. Estou de acordo; mas o místico, por sua vez, fez uma viagem que outros podem fazer de novo de direito, se não de fato; e os que são realmente capazes disso são pelo menos tão numerosos quanto os que tivessem a audácia e a energia de um Stanley indo reunir-se a Livingstone. Isso não é tudo. Ao lado das almas que iriam até o extremo da via mística, muitas há que efetuariam pelo menos parte do itinerário: quantos não deram pelo menos alguns passos, seja por um esforço de vontade, seja por uma disposição de sua natureza! William James declarava não haver jamais experimentado estados místicos; mas acrescentava que se ouvia falar disso por um homem que tivera a experiência, “alguma coisa ressoava nele” Em maioria talvez estejamos no mesmo caso. […] […] [o místico] crê ver o que Deus é, não tem visão alguma do que Deus não seja. É, pois, sobre a natureza de Deus, imediatamente apreendida no que ela tem de positivo, quero dizer, de perceptível aos olhos da alma, que o filósofo deverá interrogar o místico. O filósofo teria imediatamente de definir essa natureza se quisesse exprimir o misticismo em 73

fórmula. Deus é amor, e é objeto de amor; tudo o que o misticismo tem a dizer e a fazer consiste nisso. Desse duplo amor o místico jamais acabará de falar. Sua descrição é interminável, porque a coisa a descrever é inexprimível. Mas o que ela diz claramente é que o amor divino não é alguma coisa de Deus: é o próprio Deus. […] Esse amor terá um objeto? Observemos que uma emoção de ordem superior basta-se a si mesma. Certa música sublime exprime o amor. No entanto, não é o amor de ninguém. Outra música será outro amor. Haverá no caso duas atmosferas de sentimento distintas, dois perfumes diferentes, e nos dois casos o amor será adjetivado por uma essência, e não por seu objeto. Entretanto, é difícil conceber um amor atuante, que a nada se dirige. De fato, os místicos são unânimes em atestar que Deus precisa de nós, como precisamos de Deus. Por que teria ele necessidade de nós, a não ser para nos amar? Tal será certamente a conclusão do filósofo que se transporte à experiência mística. A criação divina lhe parecerá como um empreendimento de Deus para criar criadores, para associar a si seres dignos do seu amor. BERGSON, Henri. As duas fontes da moral e da religião. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. p. 201-202, 207-208.

Para estudar os textos: Leia os verbetes referentes aos autores dos textos Feuerbach e Bergson. • Anote no caderno todas as palavras que você desconhece e procure-as no dicionário. • Entenda os textos parágrafo por parágrafo, relendo-os se for necessário, para a compreensão integral do pensamento de cada autor. • Se houver algum conceito ou trecho que lhe pareça particularmente difícil, peça ajuda a seu professor ou consulte um dicionário de Filosofia. • Escreva um texto de 5 a 10 linhas comparando as posições defendidas por ambos os autores.


Atividades

o livro!

Interdisciplinaridade

Arte, Física e Literatura

1) Assista ao filme Contato e escreva uma resenha sobre ele, apresentando seu ponto de vista sobre conceitos que nele despontam. Dados do filme: Contato (Contact), Estados Unidos, 1997. Direção: Robert Zemeckis. Com Jodie Foster e Matthew McConaughey. 2) Assista ao filme O vento será tua herança, de 1960, de Stanley Kramer. Faça um paralelo entre os conceitos desse filme e os de Contato e escreva um texto discorrendo quanto a essa avaliação. Sobre o filme: baseado em um caso real, ocorrido em 1925, o filme mostra a atuação de dois grandes advogados no caso de um professor preso por ensinar a teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, em Hillsboro, peCartaz do filme quena cidade americana que proíbe o tema. Os personagens dos atores Spencer Tracy (que faz o advogado de defesa, muito respeitado) e Frederich March (interpreta o de acusação, um político e teólogo ultraconservador) têm debates inflamados sobre a condição humana, a religião e os direitos civis básicos, como o de liberdade de expressão. Tracy defende o evolucionismo e March apoia o criacionismo (ver capítulo IV). O caso ficou mundialmente conhecido como The monkey trial (O julgamento do macaco). No decorrer da trama, a defesa não pode apresentar testemunhas que comprovem os aspectos científicos da teoria, o que acaba levando a uma análise sobre a Bíblia, único livro autorizado a ser utilizado. O que poderia favorecer o líder religioso termina não seguindo esse rumo e ele entra em desespero ao não conseguir responder de forma racional a questões sobre o livro sagrado, deixando expostas as fragilidades da interpretação fundamentalista. O título do filme vem da Bíblia, do livro de Provérbios, capítulo 11, versículo 29: “Aquele que perturba a sua casa herdará o vento”.

A mídia em pauta No texto a seguir, Paul Davies busca respostas para os “conceitos fundamentais” do Universo. Para ele, cientistas e religiosos têm mais em comum do que pensam. Leia o texto e anote no caderno as ideias principais. Depois, forme um grupo com dois colegas e discutam a relação deste texto com o capítulo estudado.

“Ciência é uma questão de fé”, defende pesquisador Paul Davies

A Ciência, como sempre escutamos falar, é a mais confiável forma de conhecimento sobre o mundo porque se baseia em hipóteses passíveis de comprovação. A religião, por outro lado, baseia-se na fé. A figura de São Tomé ilustra muito bem a diferença. Na ciência, um ceticismo saudável é requisito profissional; na religião, crer sem ter provas é considerado virtude. O problema dessa nítida separação entre “domínios do conhecimento que não se justapõem”, como Stephen Jay Gould descreveu a ciência e a religião, é que a Ciência possui o seu próprio sistema de crenças baseado na fé. Toda ciência funciona a partir da suposição de 74

Credito

Cinema pensante

Não escreva n


que a natureza é organizada de uma maneira racional e inteligível. Você jamais poderia ser um cientista se achasse que o Universo é uma confusão de fragmentos sem sentido onde se acha de tudo um pouco, frações justapostas ao acaso. Quando físicos sondam um nível mais profundo da estrutura subatômica ou astrônomos ampliam o alcance de seus instrumentos, eles esperam encontrar uma nova e coesa ordem matemática. E, até agora, essa fé foi convincente. A mais refinada expressão de inteligibilidade racional do cosmo se encontra nas leis da física, as regras fundamentais segundo as quais a natureza funciona. As leis da gravidade e do eletromagnetismo, as leis que regem o Universo dentro do átomo, as leis da mecânica, todas são expressas por detalhadas relações matemáticas. Mas de onde vêm essas leis? E por que são descritas desta forma? No meu tempo de estudante, as leis da Física eram consideradas como algo completamente intocável. O trabalho do cientista, como nos diziam, era descobrir as leis e aplicá-las, não questionar sua origem. As leis eram tratadas como “pressupostos”, impressas no Universo como uma marca do Criador no momento do nascimento cósmico, e imutáveis para todo o sempre. Portanto, para ser um cientista, era preciso ter fé na ideia de que o Universo é regido por leis matemáticas, fidedignas, imutáveis, absolutas e universais, de origem não especificada. Era preciso acreditar que essas leis não falhariam, que não acordaríamos um belo dia e descobriríamos o calor em fluxo do frio para o quente, ou a velocidade da luz mudando de hora em hora. Ao longo dos anos, perguntei diversas vezes a meus colegas físicos por que as leis da Física são o que são. As respostas variavam de “essa não é uma pergunta científica” até “ninguém sabe”. A resposta favorita é: “não há motivo para elas serem o que são. Elas simplesmente são”. A ideia de que as leis existem irracionalmente é profundamente antirracional. Afinal de contas, a própria essência da explicação científica de alguns fenômenos é que o mundo é organizado de maneira lógica e existem motivos para as coisas serem como são. Se alguém seguir as pistas desses motivos em todo o percurso até o fundamento da realidade (as leis da Física), somente para descobrir que a razão naquele ponto nos abandonou, isso seria zombar da Ciência. Será possível que a poderosa estrutura da ordem física que percebemos no mundo que nos diz respeito seja, em última análise, alicerçada em um absurdo irracional? Se sim, então a natureza é um embuste diabolicamente sábio: absurdo e ausência de sentido de alguma forma disfarçando uma engenhosa ordem e racionalidade. Embora os cientistas tenham durante muito tempo uma inclinação a jogar para baixo do tapete as dúvidas referentes à origem das leis da Física, vemos agora uma mudança considerável de postura. Isso se explica, em parte, pela crescente aceitação de que o surgimento da vida no Universo, e logo, a existência de observadores como nós, depende sensivelmente da forma das leis. Se as leis da Física fossem apenas um saco com um monte de regras velhas e esfarrapadas, é quase certo que a vida não existiria. Um segundo motivo pelo qual as leis da física agora começam a entrar no escopo do questionamento científico é a compreensão de que aquilo há tanto tempo considerado como leis absolutas e universais poderia não ser sequer verdadeiramente fundamental, mas talvez algo mais parecido com regimentos locais. Elas poderiam variar de um lugar para outro em uma escala megacósmica. Uma visão de cima, panorâmica, poderia revelar uma enorme colcha de retalhos de universos, cada um com seu próprio conjunto característico de regimentos. Nesse “multiverso”, a vida surgiria apenas nos locais com leis propícias à vida, então não é de se surpreender que nos encontremos em um universo de conto de fadas, ideal à vida. Selecionamos isso por conta da nossa própria existência. 75


A teoria do multiverso está se tornando cada vez mais popular, mas ela não explica exatamente as leis da Física. Na verdade, esquiva-se da questão como um todo. Deve haver um mecanismo físico para criar todos esses universos e conferi-los leis. Esse processo exigiria suas próprias leis ou metaleis. De onde elas vêm? O problema simplesmente foi transferido de um nível superior de leis do Universo para o das metaleis do multiverso. É óbvio, portanto, que religião e ciência fundamentam-se na fé, a saber, na crença da existência de algo externo ao Universo, como um Deus ou um conjunto de leis inexplicadas, talvez até uma enorme formação de universos invisíveis também. Por esse motivo, tanto a religião monoteísta quanto a ciência ortodoxa não são capazes de apresentar uma explicação completa da existência física. Esse fracasso compartilhado não é novidade, já que, antes de mais nada, a própria ideia de lei da Física é teológica, fato que faz muitos cientistas torcerem o nariz. Isaac Newton teve primeiramente a ideia de leis absolutas, universais, perfeitas e imutáveis a partir da doutrina cristã de que Deus criou o mundo e o organizou de forma racional. Os cristãos imaginam Deus como o sustentáculo da ordem natural de além do Universo, enquanto os físicos pensam em suas leis como ocupantes de um reino abstrato transcendente de relações matemáticas perfeitas. E assim como os cristãos afirmam que a existência do mundo depende totalmente de Deus, embora o oposto não seja verdade, da mesma forma os físicos creem em semelhante assimetria: o Universo é regido por leis eternas (ou metaleis), mas as leis são completamente resistentes e não afetadas pelo que acontece no Universo. Para mim fica a impressão de que não existe esperança para um dia explicarmos por que o universo físico é como é enquanto estivermos presos a leis imutáveis ou metaleis que existem irracionalmente ou são impostas pela providência divina. A alternativa é considerar as leis da Física e o Universo por elas regido como parte e componente de um sistema unitário, e serem incorporados juntos dentro de um esquema explanatório comum. Em outras palavras, as leis devem ter uma explicação de dentro do Universo e não devem apelar a um agente externo. Os detalhes dessa explicação são assunto para futuras pesquisas. Mas enquanto a Ciência não apresentar uma teoria das leis do Universo que seja passível de comprovação, sua alegação de que ela não se baseia em fé permanece claramente falsa. * Paul Davies é diretor do Beyond, centro de pesquisa da Arizona State University, e autor do livro Cosmic Jackpot: why our universe is just right for life. New York Times, 28 nov. 2007. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL195628-5603,00.html>. Acesso em: 22 out. 2012.

O texto anterior trata do universo, da fé e também das leis da física. No início do capítulo há informações sobre o espaço sideral. Procure com um colega informações sobre telescópios espaciais mais modernos e sobre filmes e séries de ficção científica, como Star trek ou Guerra nas estrelas e faça um paralelo entre essas pesquisas e o aspecto de fé abordado no capítulo.

Produção de arte

Não escreva n

o livro!

Leia a seguir dois textos sobre Deus: um do filósofo árabe Al-Ghazâlî e outro do filósofo brasileiro J. Herculano Pires. • Depois, solte a imaginação e escreva um texto ou uma poesia que mostre a sua visão a respeito de Deus e sobre o seu entendimento quanto aos diferentes sentimentos que às vezes assaltam as pessoas, como a raiva, a dor etc. A seguir, avalie se a sua ideia tem algo a ver com o que foi abordado nesses textos. 76


Coleção Jacques e Natasha Gelman, Cidade do México

[…] o modo de existência da alma humana nos proporciona alguma percepção do modo de existência de Deus. Em outras palavras, ambos, Deus e a alma, são invisíveis, indivisíveis, irrestritos a espaço e tempo, fora das categorias de quantidade e qualidade; e as ideias de forma, cor ou tamanho não lhes podem ser atribuídas. As pessoas acham difícil formar uma ideia de tais realidades como o são, isentas de qualidade e quantidade etc., mas uma dificuldade semelhante junta-se à compreensão dos nossos sentimentos do dia a dia como raiva, dor, prazer ou amor. Eles são conceitos mentais e não podem ser conhecidos pelos sentidos; enquanto qualidade, quantidade etc., são sensações-conceito. Assim como o ouvido não pode tomar conhecimento da cor, nem o olho, do som, nós também, ao concebermos a realidade fundamental, Deus e a alma, nos encontramos numa região na qual sensações-conceito não podem fazer parte. Entretanto, podemos ver que, assim como Deus é Regente do Universo e, sendo Ele além do espaço, tempo, quantidade e qualidade, governa coisas que são tão condicionadas, também a alma governa o corpo e seus membros, sendo ela própria invisível e indivisível, sem estar localizada em nenhuma parte especial. […] De tudo isso, vemos como é verdadeiro o ditado do Profeta: “Deus criou o homem à Sua própria semelhança”. (Bukhâri, Sahih, 79/1).

O amor abraça o universo, de Frida Kahlo.

AL-GHAZÂLÎ. A alquimia da felicidade. Rio de Janeiro: Fissus, 2001. p. 19-20.

[...] se podemos [perceber Deus] em nós mesmos, na nossa consciência e no nosso coração, se podemos vê-lo em Seu poder criador numa folha de relva, numa flor, num grão de areia e numa estrela, se podemos conviver com Ele e sentarmos com Ele à mesa e partir o pão com os outros, então Ele realmente existe em nossa realidade humana e O podemos amar, e de fato O amamos de todo o coração e de todo entendimento. Deus como Existente é o nosso companheiro e o nosso confidente. PIRES, J. Herculano. Concepção existencial de Deus. São Paulo: Paideia, 1981. p.10-11.

Na pág. 57, na biografia de Henri Bergson, você ficou sabendo que ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1927. Outro filósofo e escritor francês também venceu este prêmio, foi o contemporâneo Jean-Paul Sartre, em 1964, mas ele se recusou a recebê-lo porque sempre declinava homenagens oficiais. Sartre foi companheiro da também escritora e filósofa Simone de Beauvoir. O Nobel, ao longo dos anos, destaca trabalhos de autores de variadas linguagens e experiências culturais, desde talentos não muito conhecidos até mestres aclamados mundialmente. O escritor Mikhail Sholokov venceu em 1965 “pela força artística e integridade, no seu épico livro O Don ­Silencioso, em que retratou uma fase histórica da vida do povo russo”. Um outro grande autor russo, Boris Pasternak, autor de Doutor Jivago, aceitou de início o galardão, mas, por causa do governo da então União Soviética, foi obrigado a recusá-lo. Apenas Pasternak e Sartre não aceitaram o prêmio. Pesquise sobre o que tratam os outros livros citados e também se outros filósofos ganharam o Nobel.

Para ler mais Deus e deus. INCONTRI, Dora. Bragança Paulista: Comenius, 2007. Trata, em linguagem leve e poética, a questão de Deus no mundo contemporâneo. Deus com letra maiúscula é o Deus cósmico, verdadeiro, eterno; e o deus, com letra minúscula, representa todos os outros que criamos: humano, vingativo, irascível etc.

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Capítulo

4

Temos certeza do que sabemos? Bettmann/Corbis

Para começar

Representação de mar, de Sebastian Munster, século XVI. Para alguns, só é real e científico aquilo que caiu nas redes reconhecidas pela confraria dos cientistas.

Arte poética Mirar o rio, que é de tempo e água, E recordar que o tempo é outro rio, Saber que nos perdemos como o rio E que passam os rostos como a água. [...] E ver no dia ou ver no ano um símbolo Desses dias do homem, de seus anos, E converter o ultraje desses anos

Em uma música, um rumor e um símbolo. [...] Às vezes, pelas tardes, uma face Nos observa do fundo de um espelho; A arte deve ser como esse espelho Que nos revela nossa própria face. Contam que Ulisses, farto de prodígios, Chorou de amor ao avistar

sua Ítaca Humilde e verde. A arte é essa Ítaca De um eterno verdor, não de prodígios. Também é como o rio interminável Que passa e fica e que é cristal de um mesmo Heráclito inconstante, que é o mesmo E é outro, como o rio interminável.

BORGES, Jorge Luis. O fazedor. São Paulo: Difel, 1984.

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A razão e os sentidos

Fundação Gala-Salvador Dalí, Filgueras, Espanha

Na condição de observador, temos a sensação de que sabemos muitas coisas a respeito do mundo. Temos a convicção, por exemplo, de que temos um corpo e de que é por meio dele que nos chegam as mais variadas informações a respeito da realidade. Mas será que o corpo é uma fonte segura do conhecimento? Será que os sentidos (audição, olfato, paladar, tato e visão) nos dão informações corretas a respeito da realidade? E a razão? Na condição de seres racionais, temos a impressão de que conhecemos muitas coisas que não nos chegam através dos sentidos. A matemática, por exemplo, é um saber que parece se desenvolver em um plano puramente intelectual. E, dessa forma, dispensa qualquer auxílio dos sentidos. Mas será que a matemática pode ser tomada como modelo de todo e qualquer conhecimento?

Galatea das esferas, 1952, de Salvador Dalí. Óleo sobre tela, 65 cm x 54 cm.

Poderíamos intitular este capítulo “As aventuras e as desventuras da razão humana”. Ou ainda, “Que certeza temos de nossas certezas?”. Pois ele trata de acompanhar quais caminhos a razão percorreu, que obstáculos encontrou, como se desiludiu consigo mesma algumas vezes e como quis até mesmo cometer suicídio em momentos de crise. 79


Maty Evans Picture Library, Londres, Inglaterra

A Filosofia sempre buscou respostas para muitas questões cruciais da vida humana, do próprio ser humano e das coisas. Mas também sempre foi palco de questionamentos a respeito da sua própria maneira de indagar. E mais: teve a honestidade de se perguntar se as maneiras de abordar a realidade eram realmente eficazes. Não basta procurar verdades, é preciso saber se são verdades de fato, ou mesmo se é possível encontrar verdades. Como consequência das buscas por respostas mais racionais, surgiram diferentes sistemas de pensamento; nasceu a Ciência, como a conhecemos no Ocidente e, ainda, diversas concepções de Ciência. Por outro lado, como resultado das críticas à razão, enfraqueceu-se a Filosofia, o que também abalou a Ciência. No mundo contemporâneo, há uma relativização de qualquer certeza, mesmo científica. Muitas vezes, a razão alcançou muita preponderância, julgou-se tão poderosa, que se tornou dogmática, até prejudicando o conhecimento. De outras vezes – e é um momento desses que vivemos –, a razão ficou tão desprezada, que evidencia nossa impossibilidade de se conhecer algo. Corremos então o risco de não avançar, em termos de desenvolvimento intelectual, o quanto poderíamos. E, em relação às disputas, ligações e rupturas entre a razão e a fé? Esse é um tema de grande interesse para a Filosofia, pois, ao contrário do que se possa pensar, essa ainda é uma questão inquietante no mundo contemporâneo. O que ocorre com uma fé totalmente irracional? Ela não torna as pessoas cegas e fanáticas? Mas há argumentos para utilizar a razão junto à fé? É possível realizar diálogo construtivo utilizando as duas? Ou são áreas opostas irreconciliáveis?

Gravura retratando Academia Platônica, que Platão fundou por volta de 387 a.C.

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Sócrates e os sofistas, entre a busca e a impossibilidade Já mencionamos os sofistas no Capítulo 1, agora vamos conhecer um pouco mais sobre essas figuras que tanto foram criticadas por Sócrates, Platão e Aristóteles. Na democracia grega, na época do nascimento de Sócrates, por volta de 470 a.C., perambulavam pelas cidades-estados os célebres sofistas. Não podemos caracterizá-los como corrente filosófica, mas como um movimento de contestação à própria Filosofia, já que eles não se denominavam filósofos, apenas sofistas. Costuma-se enfatizar sua proposta de educação – entretanto, eram educadores que não trabalhavam com conteúdos e valores, e sim com o discurso e a gramática. Esses cidadãos, que ensinavam mediante o vultoso pagamento das elites, não aceitavam a validade de nenhuma certeza filosófica, científica ou moral. A máxima proclamada por um deles, Protágoras , de que “o ser humano é a medida de todas as coisas”, tinha para eles o sentido de que cada qual inventa suas próprias verdades e formas de comportamento, não podendo haver nenhuma certeza para a humanidade. Seu ensino, pois, restringia-se à retórica – que era a arte de conversar, de falar, de argumentar. Protágoras de Abdera (480-410 a.C.) Sofista, viveu e lecionou na cidade de Atenas. Foi um dos principais pensadores da cidade no tempo de Péricles e um dos mais famosos professores de retórica. Ficou conhecido pelo seu ceticismo quanto à possibilidade de produção de um conhecimento seguro das coisas. É de sua autoria a célebre frase “O homem é a medida de todas as coisas: das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são”. Para muitos intérpretes, essa frase expressa a doutrina de Protágoras quanto ao seu ceticismo e seu relativismo.

Os sofistas estavam interessados, portanto, em formar bons oradores, sujeitos capazes de persuadir, de convencer os outros. E como essa capacidade era fundamental em um sistema político democrático, uma vez que o jogo político da democracia é basicamente constituído pelo embate de discursos ou de propostas, os sofistas tinham bastante sucesso, não se comprometendo com o conteúdo dos discursos, mas apenas com a capacidade de conquistar a adesão dos cidadãos. Nesse contexto, surgiu, então, a figura de Sócrates, que possuía em alto grau essa arte da retórica, porém a aplicava em um sentido diferente da de seus contemporâneos. Ensinando gratuitamente nas ruas, a aristocratas e a escravos, a discípulos de todas as idades, Sócrates fez nascer pela primeira vez no Ocidente a noção de “conceito” e mais ainda a de “conceito moral”. Por meio do diálogo com seus interlocutores, ele pretendia delimitar um conceito (no caso, estava em busca daquele relacionado ao comportamento humano, à ética, de que trataremos no capítulo 5). Quando se pretende um conceito, está se supondo um terreno comum de 81


entendimento, de que qualquer ser humano possa participar. Trata-se de um empreendimento da razão. E todo empreendimento da razão é universalista e tem um caráter igualitário, pois todas as pessoas – diferentemente dos animais – são dotadas de razão. Todas, em princípio, podem alcançar um conhecimento, fruto de uma busca racional. Para os sofistas, ao contrário, vivemos no reinado da opinião (doxa) e cada qual pensa o mundo à sua maneira, sendo impossível formatar conceitos que derivem da análise racional da realidade. O fato de Sócrates buscar um conceito e admitir a possibilidade de encontrá-lo não significa que ele tivesse um pensamento dogmático, mas sua busca partia de um momento de ceticismo.

Doxa e dogmatismo Doxa: Conjunto de juízos que um grupo ou uma sociedade elabora em um determinado momento histórico supondo tratar-se de uma verdade óbvia ou evidência natural, mas, para a filosofia, trata-se de crença ingênua, a ser superada para a obtenção do verdadeiro conhecimento. Dogmatismo: É a tendência a um sistema fechado de pensamento, ou ainda o ato de não se questionar sobre o conhecimento. Dogmatismo e ceticismo geralmente são posturas opostas, tendo em vista que ceticismo, como vimos no Capítulo II, é a tendência a duvidar de tudo.

Para entender essas tendências de forma mais concreta, pense nesta situação: Sabe aquelas pessoas que têm sempre a certeza de estarem com a verdade, acham que estão com a razão e que não aceitam crenças e opiniões diferentes das suas? Você já deve ter encontrado pessoas assim: elas são dogmáticas, porque nunca se permitem questionar e reformular as próprias ideias e convicções. E aquelas que, ao contrário, duvidam de tudo, ironizam qualquer certeza, não acreditam em nada, são as que podemos chamar de céticas. Os dogmáticos têm excesso de certezas; os céticos não aceitam nenhum tipo de certeza. Sócrates observa que as pessoas dogmáticas “acham que sabem sem saber”, vivem a ilusão de um saber que, na verdade, não possuem. É por isso que Sócrates, em geral, com ironia, questiona aquilo o que os interlocutores “acreditam saber”. Depois desconstrói as diferentes opiniões, fazendo com que reconheçam que de fato nada sabem. Então, inicia a jornada da maiêutica, ou seja, de fazer com que seus ouvintes extraiam de dentro de si mesmos os princípios que procuram. A atitude de Sócrates, embora se oponha à dos sofistas, não é uma atitude dogmática. Ao contrário, parte da dúvida rumo a alguma ideia. A dúvida é um meio e não um ponto de chegada – se ela se torna um ponto de chegada, temos um relativismo epistemológico (do grego episteme = ciência, conhecimento), o que significa uma descrença na possibilidade de conhecer e de termos uma Ciência.

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AFP

Destaque

Foto da cidade de Atenas. A Ágora ficava no centro da democracia ateniense.

Leia e avalie o trecho a seguir sobre os sofistas, escrito por William Keith Chambers Guthrie (1906-1981), um importante pesquisador escocês, conhecido por seus estudos a respeito da história da Filosofia na Grécia antiga.

Havia, como vimos, uma arte que todos os sofistas ensinavam, a retórica, e uma posição epistemológica de que todos partilhavam: um ceticismo segundo o qual o conhecimento só podia ser relativo ao sujeito que percebe. Os dois estavam mais diretamente conexos do que se podia pensar. A retórica não desempenha o papel em nossas vidas que desempenhou na Grécia antiga. Hoje em dia, as palavras “sucesso” ou “homem bem-sucedido” sugerem mais imediatamente o mundo de negócios, e só secundariamente o da política. Na Grécia, o sucesso que contava era primeiramente político e em segundo lugar forense, e sua arma era a retórica, a arte da persuasão. Seguindo a analogia, pode-se atribuir à retórica o lugar agora ocupado pela propaganda. Com certeza, a arte da persuasão, amiúde por meios dúbios, não era menos poderosa então e, assim como temos nossas escolas de negócios e escolas de propaganda, assim também os gregos tinham seus mestres de política e retórica: os sofistas. Peitho, persuasão, era para eles uma poderosa deusa; “a feiticeira à qual nada se nega”, assim Ésquilo a chamou (Suppl. 1039s), e Isócrates, um século depois, lembrou o seu auditório ateniense que era seu costume oferecer-lhe um sacrifício anual (Antid. 249). Górgias em seu Encômio de Helena – um exercício escolar de retórica, sofístico em todo o sentido – menciona discurso e persuasão como as duas forças irresistíveis. “Aquele que persuadiu errou em compelir, mas ela que foi persuadida agiu sobre a compulsão da palavra e é vão censurá-la”. Assim Helena é absolvida da culpa e descrita como vítima desamparada, merecendo piedade, e não ódio e desprezo. 83


Constituía parte da instrução retórica ensinar o aluno a argumentar com igual êxito sobre ambos os lados da questão. Como Protágoras disse, “Sobre cada tópico há dois argumentos contrários entre si”. Ele visava a treinar seus alunos para elogiar e censurar as mesmas coisas, e em particular escorar o argumento mais fraco para que parecesse mais forte. O ensino retórico não se restringia à forma e ao estilo, mas lidava também com a substância do que se dizia. Como se podia deixar de inculcar a crença de que toda verdade era relativa e ninguém conhecia coisa alguma como certa? A verdade era ­individual e temporária, e não universal e permanente, pois a verdade para o homem era simplesmente aquela de que podia ser persuadido, e era possível persuadir qualquer um de que preto era branco. Pode haver crença, mas não conhecimento. Para provar sua ideia de que “a persuasão aliada a palavras modela as mentes dos homens como quiser”, Górgias aduziu três considerações que ilustram a maneira como o ensino dos sofistas nasceu da vida e filosofia de sua época (Hel. 13): 1. As teorias dos cientistas naturais, cada um pensando que tem o segredo do Universo, mas de fato apenas opondo uma opinião contra a outra e colocando o invisível e incrível diante dos olhares da imaginação. 2. As inevitáveis controvérsias e debates da vida prática (como nos tribunais e na Assembleia), em que um discurso pode alegrar e convencer a multidão apenas porque é tramado artística e habilmente, e não porque contém a verdade. 3. As disputas dos filósofos, que só mostrarão a rapidez com que o pensamento pode demonstrar a mutabilidade de opiniões e de crenças. Nesta atmosfera, não surpreende que devesse ganhar favor uma epistemologia segundo a qual, “o que parece para mim é para mim, e o que parece a ti é para ti”, e ninguém pode estar numa posição para contradizer a outrem. GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995. p. 51-52.

Os descendentes de Sócrates Tanto Platão quanto Aristóteles argumentaram fartamente contra os sofistas e lançaram as bases de toda a construção filosófica e científica do Ocidente. Para ambos, seguindo as pegadas de Sócrates, é possível, sim, conhecer e há grande diferença entre “Ciência” (episteme) e “opinião” (doxa). Ciência é um conhecimento demonstrativo, que se constrói por meio de raciocínios lógicos. Por que a razão pode decifrar a realidade? Porque a 84


realidade é racional. A razão que está em nós é a mesma que está nas coisas. Como exemplo de raciocínio lógico, podemos colocar a seguinte sequência de frases: Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal.

A caverna de Platão, de Eric Lessing, século XVI. Na obra é abordada a alegoria criada por Platão em relação ao aprisionamento dos seres humanos em seus corpos, uma visão do filósofo sobre a condição humana. A imagem mostra prisioneiros numa caverna escura. Essa metáfora foi utilizada também em relação ao cinema, a sala escura sendo comparada a uma caverna, em que a realidade não é o que está lá, mas o que fica em nossas mentes.

Segundo Platão, se esse prisioneiro liberto voltasse à caverna e dissesse a seus antigos companheiros de cativeiro que o que eles veem são apenas sombras, certamente diriam que ele estava louco e até tentariam matá-lo. Nessa alegoria, o prisioneiro liberto representa o filósofo e, mais ainda, um filósofo específico: Sócrates, que morreu por querer apontar a seus contemporâneos outra realidade. Além disso, apresenta o sentido de o que é de fato conhecer para Platão: Quando o ser humano está apenas condicionado aos sentidos, ele os toma por realidade, mas as sensações físicas são apenas “sombras” da realidade. Quando só tem sensações, ele só tem opiniões. A verdade verdadeira está no mundo do espírito e, portanto, só pode ser entrevista com os olhos da alma racional – mas essa alma precisa sair do condicionamento dos sentidos para poder ver “o Sol lá fora”. 85

Museu Chartruese Douai, França

Para Platão, porém, o processo do conhecimento tem um caráter específico. Em sua obra-prima A República, expõe em uma metáfora sua ideia do que é conhecer: o “Mito da caverna”, no qual narra a história de prisioneiros que vivem em uma morada subterrânea, acorrentados, com o rosto imobilizado, e que são constrangidos a olhar apenas para uma parede ao fundo, iluminados por um fogo que reluz atrás deles. Nessa parede, veem as sombras das coisas que se projetam. Tomam aquelas sombras por realidades e fazem concursos entre si, para dizerem qual sombra aparecerá primeiro, qual delas é a maior ou a menor e assim por diante. Certo dia, um prisioneiro se liberta e sai da caverna, mas, como vivia no escuro, tem dificuldades para enxergar. Consegue primeiro olhar os objetos refletidos nos lagos e decide esperar a noite para ver o mundo sob a suave luz lunar. Depois se acostuma a enxergar à luz do dia e, por fim, pode notar o próprio Sol e ver que tudo deriva dessa fonte de luz.


Existe em Platão uma conexão íntima entre ser justo, ser bom – do ponto de vista moral – e a capacidade de conhecer. O Sol fora da caverna é o bem absoluto. Para nos identificarmos com a realidade, precisamos também caminhar no sentido do bem. Aquele que sabe, para Platão, é bom. Verdade e bem são indissociáveis. Na filosofia platônica, porém, entre a opinião que provém das impressões dos sentidos e a ciência do inteligível estão mais dois degraus do conhecimento. Um pouco acima da opinião está a crença (que pode ser uma opinião acertada); mais acima está o conhecimento discursivo – os conhecimentos que hoje diríamos técnicos (por exemplo, a Medicina e a Engenharia), em que se formulam hipóteses e se deduzem os princípios por meio da razão. Mas, acima de tudo, está a Ciência primeira, a Ciência do ser. Aristóteles, no entanto, não considera essa relação necessária entre o filósofo e o homem moral – a Ciência não depende da moralidade. Dessa forma, enquanto para Platão, as essências estão no mundo espiritual e, para atingi-las, é preciso um esforço de desprender-se da matéria, para Aristóteles, a essência está nas coisas, então sua apreensão nada tem a ver com o comportamento moral. E, enquanto para Platão os sentidos podem turvar o conhecimento, para Aristóteles todo conhecimento passa pelos sentidos.

Os descendentes medievais O pensamento platônico-aristotélico esteve durante mais de mil anos em convivência, encontros e desencontros com a fé. Durante toda a Idade Média, judeus, árabes e cristãos seguiram vários caminhos para articularem a Filosofia com a revelação. Na concepção platônica, a fé seria uma “opinião certa”, mas não era conhecimento de fato. Para o pensamento religioso medieval, a fé vinha em primeiro lugar e a tentativa era fazer com que a razão fornecesse argumentos racionais à fé. Para aquele que crê, a fé é constituída por ensinamentos revelados. Ou seja, é um pensamento que vem pronto da esfera divina, considerado sagrado e inquestionável, seja dado por profetas, como os do Velho Testamento, pelo profeta Maomé, ou pelo próprio verbo divino, com a palavra direta de Deus. Tendo o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, religiões que formaram o caldo cultural do Ocidente e do Oriente Médio, cada qual um livro sagrado por referência – a Torá, o Evangelho e o Alcorão, respectivamente –, houve por parte dos filósofos o trabalho intelectual de articular a interpretação e cada um com aquilo que era considerado a Ciência da época: a Filosofia herdada dos gregos. Na escolástica cristã, duas vertentes principais se manifestaram nesse sentido: a de influência neoplatônica, descendente de Santo Agostinho (que ainda estava no mundo da patrística), e a aristotélica, que se solidificou em São Tomás de Aquino.

Neoplatonismo Trata-se da última escola filosófica da Antiguidade, que durou desde Plotino (século III d.C.). Até o fechamento da Escola Platônica em Atenas, pelo Imperador Justiniano em 529 d.C. A sua influência se estendeu até o Renascimento e mesmo aos idealistas alemães do século XIX. Era uma espécie de monismo idealista, que considerava toda a realidade como espiritual, abrangendo desde o Uno Supremo a diferentes níveis derivados deste. Ou seja, entre o Uno e o ser humano, os neoplatônicos consideravam a existência de diversos deuses intermediários.

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Convento de Grilo, Lisboa, Portugal

Santa Maria Novella, Florença, Itália

São Tomás de Aquino, de Domenico Ghirlandaio, 1491.

Santo Agostinho, de Bento Coelho da Silveira, 1706.

Santo Agostinho pretendeu articular racionalmente a fé e adotou uma postura original, que também teve origem socrática – que é o voltar-se para sua interioridade, seguindo uma recomendação de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Para Agostinho, o objetivo principal da Filosofia seria encontrar Deus e a alma. Mas como encontrá-los? Nesse sentido, inaugura um gênero de filosofia literária ou literatura filosófica denominado “confissões”, que se refere a quando um pensador se volta para si mesmo para buscar alguma verdade. Em seus escritos, revela uma introspecção, uma análise da própria consciência e na própria consciência buscar a alma e Deus. Sua obra Confissões, de grande beleza poética, teve várias ressonâncias no decorrer dos séculos, a mais famosa delas deu-se no século XVIII, com Jean-Jacques Rousseau, em uma obra de mesmo nome. Rousseau chama a consciência de “luz interior” e, como Agostinho, implica na Filosofia o ver-se, o sentir-se, o descobrir-se como essência divina. O objeto do conhecimento torna-se o próprio ser e só é possível alcançar certas verdades a partir de si mesmo. Para Tomás de Aquino, porém, um filósofo mais objetivo, havia uma “razão natural” que poderia atingir as verdades essenciais da fé, independentemente de a pessoa ser cristã ou não. Por exemplo, a existência de Deus, que Aristóteles e Platão demonstraram, no contexto pagão ao qual pertenciam, estava dentro do âmbito de uma razão humana universal; para Aquino, a Filosofia poderia reunir argumentos para explicar a ideia da Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) da concepção cristã de Deus, mas isso seria algo revelado pela fé, tratando-se de um dado de crença e não de busca racional. A obra de Aquino teve o intuito de demonstrar que não havia contradição entre a sabedoria adquirida pela perquirição racional e os mistérios da fé. 87


A percepção é enganadora Como vimos, na filosofia de Platão, os sentidos são enganadores, pois através deles não podemos conhecer o ser das coisas, isto é, o que as coisas verdadeiramente são. Mas será que todos os filósofos concordam com essa perspectiva? O que você pensa sobre isso? Já refletiu a respeito da importância que os sentidos desempenham em nossas vidas? Eles nos guiam na vida prática, mas será que a visão, o tato, o olfato, o paladar e a audição podem servir de base para a construção de um conhecimento filosófico? Se para Platão os sentidos são enganadores e o conhecimento provém do Mundo das Ideias, para muitos outros filósofos é justamente dos sentidos que vem o conhecimento. Essa visão de que tudo o que sabemos provém da experiência sensível é modernamente chamada de empirismo – entretanto, há uma via empírica que leva ao total ceticismo. Como mencionado anteriormente no capítulo 2, à concepção que defende a razão como única via confiável para o conhecimento dá-se o nome de racionalismo.

Empirismo Atitude filosófica que considera que o conhecimento só pode ser alcançado pela observação dos fenômenos objetivos e pela experiência concreta. É a fundamentação filosófica do método científico-experimental.

A ideia de que o conhecimento é adquirido por meio dos sentidos tem várias facetas e possibilidades. Um dos mais importantes sensorialistas (aqueles que creditam aos sentidos a origem de tudo) da Antiguidade, Epicuro, tinha uma visão materialista e mecanicista da natureza. O conhecimento é adquirido por meio da experiência sensível e nada existe além dela – não há alma, não há deuses espirituais, não há essências, pois nada disso pode ser visto ou tocado. Tudo é matéria e o que se disse sobre metafísica (o que está além do plano físico) é pura especulação. Mas essa maneira de ver as coisas – que teria desdobramentos mais tarde em formas mais elaboradas, como o positivismo – aceita que a realidade tem uma objetividade e pode ser conhecida.

Positivismo Doutrina filosófica criada por Auguste Comte. Por extensão, o termo pode ser atribuído a qualquer postura que considere a Ciência como única fonte confiável de conhecimento e exalte os valores humanos, em detrimento dos valores advindos da religião. Trata-se de aplicar a pesquisa científica em todos os domínios, sobretudo no campo social.

Não era essa a posição dos sofistas, como já vimos (lembremos do ser e o nada de Górgias), e muito menos dos céticos, que se inspiraram no filósofo Pirro de Elis . Pirro propunha a suspensão pura e simples de

Pirro de Elis (c. 360-270 a.C.) Foi um dos principais representantes do ceticismo na Antiguidade, desempenhando uma atitude de negação de qualquer possibilidade de conhecimento. Pregava a ataraxia como uma indiferença ou despreocupação com as coisas que nos cercam.

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toda investigação sobre a realidade. Nada podemos saber sobre as coisas, nenhuma teoria, nenhuma ideia. É o que ele chama de epochê, ou suspensão do juízo: nunca se deve dizer se algo é falso ou verdadeiro, justo ou injusto, bonito ou feio. Essa atitude mental geraria aquilo a que os céticos davam o nome de ataraxia, isto é, ausência de perturbação ou inquietação na mente. Por incrível que pareça, esse ceticismo radical, que provocou estagnação filosófica por séculos (se nada podemos saber, de que adianta buscar alguma verdade e refletirmos sobre as coisas?), teve presença marcante na Academia que os discípulos herdaram de Platão. Este, o maior dos metafísicos, teve continuadores completamente céticos. Há uma interpretação, até hoje vigente, de que Sócrates teria sido na verdade um cético, e que sua afirmação – de que era o mais sábio de todos os homens (conforme havia lhe dito o Oráculo de Delfos) porque “era o único que sabia que nada sabia” – seria definitiva. Sócrates disse isso, no entanto, como ponto de partida para iniciar uma busca comprometida com o conhecimento. Para a interpretação cética, porém, ele teria parado por aí e o que viria depois seria apenas invenção de Platão. Na Idade Média, Tomás de Aquino, apesar de grande metafísico que reunia todas as argumentações lógicas para provar a existência de Deus ou para refletir sobre o ser das coisas, considerava que a apreensão humana da realidade se dava pelos sentidos. Mas foi o frade franciscano Guilherme Ockham, já no final da escolástica, que abriu o caminho para a quebra da aliança medieval da fé e da razão (em que a razão era quase sempre submissa à fé). Ele questionou toda a metafísica e lançou as bases do empirismo. A tensão entre racionalismo e empirismo deu-se em uma história de radicalismos e aproximações mútuas, de inclusões e exclusões. Um dos maiores racionalistas de todos os tempos foi René Descartes, que, além de filósofo, era matemático. Aliás, desde a época de Pitágoras e com grande ênfase em Platão, a Matemática foi considerada por muitos como um critério excelente de conhecimento da realidade. Segundo grandes filósofos, a estrutura do Universo é matemática e essa ciência seria a primeira e a única inquestionável, pois sua lógica não oferece contestação e não depende de nenhuma apreensão dos sentidos. Para os astrônomos-filósofos, que iniciaram a Ciência moderna, e para um sábio como Leonardo da Vinci, que tinha já no século XV uma concepção muito científica da realidade, a Matemática seria a base de todo possível conhecimento, porque seria a base estrutural do Universo. René Descartes partiu, como Sócrates, de uma dúvida primordial – pondo em xeque tudo o que havia aprendido e dado como certo – para encontrar um novo ponto de partida para a Filosofia: “Cogito, ergo sum” – penso, logo existo. Desfazendo-se de todos os pressupostos, Descartes encontra a identidade do eu racional, radicada na alma, capaz de pensar, indagar e encontrar respostas. Ele não nega a realidade das coisas corpó89


Gallerie dell’Academia, Veneza, Itália E. T. Archive

reas, mas, como Platão, coloca a realidade maior na essência espiritual, onde se radica a razão. E a razão é capaz de compreender o mundo, estruturar um pensamento verdadeiro sobre as coisas, onde a Matemática exerce um papel essencial. Na mesma linha, seguem Leibniz e Espinosa, ambos filósofos amantes da Matemática e racionalistas. Para quaisquer que fossem os objetos de análise, Descartes estabeleceu quatro regras básicas para se chegar ao conhecimento verdadeiro: 1 – Jamais admitir coisa alguma como verdadeira que não tenha se tornado evidente, clara e distinta, não permitindo a possibilidade da dúvida. 2 – Caso fosse preciso, dividir o problema em tantas partes Homem vitruviano, de Leonardo quantas possíveis, a fim de analisá-lo com clareza. da Vinci, 1490, desenho baseado 3 – Caminhar do mais simples para o mais complexo. nas indicações do arquiteto romano Marcus Vitruvio, que descreve 4 – Relacionar tudo metodicamente e fazer uma revisão commatematicamente as proporções pleta, sem nada omitir. do corpo humano masculino. As proporções demonstradas nesse Seguindo essas regras, o ser humano poderia conduzir bem desenho são perfeitas e inserem sua razão e chegar a certezas fundamentais. o conceito clássico e divino de beleza por meio do raciocínio maJohn Locke, um dos filósofos da grande tradição empirista intemático. glesa, partiu das regras de Descartes para discordar dele, ainda que não completamente. A maior discordância de ambos era em relação às ideias inatas: para Descartes, Deus, por exemplo, é uma ideia inata no ser humano, ou seja, trata-se de uma ideia que está na consciência do ser humano desde seu nascimento; Locke, por sua vez, anunciou que não existem ideias inatas e que a mente é uma “tábula rasa” (isto é, vazia), sobre a qual seriam impressas as experiências sensoriais. É claro que, para ordenar, comparar e classificar essas experiências, a razão exerce um papel, porém teria um alcance limitado. Locke, embora empirista, não era ateu nem materialista (como Epicuro) e, por isso, pressupunha a existência de Deus e da alma, porém submetendo a fé à razão.

Execução de Carlos I. À esquerda, John ­Locke. É provável que Locke tenha assitido à execução de Carlos I, em 1649.

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Temos então duas posições: o empirismo de Locke, que aceita a razão, embora limite seu alcance, e o racionalismo de Descartes, que aceita a realidade concreta, embora desconfie dos sentidos que a apreendem. Mas outro filósofo, David Hume, já citado em capítulos anteriores, se opôs tanto a Descartes quanto a Locke. Seu ceticismo dissolvente provocou uma crise sem precedentes na história do pensamento humano. Poderíamos dizer que ele foi uma edição atualizada de Pirro ou de algum cético da Antiguidade, pois, como já vimos, renega a razão, descarta Deus e dissolve a metafísica. Mas Hume também limita o empirismo, pois considera que as impressões que recebemos por meio dos sentidos não podem nos levar a formar ideias abstratas e a coordenar conhecimentos – essas são impressões esparsas. Ele ataca a identidade racional do ser, afirmando que a mente é apenas uma junção de percepções, imagens e memórias, e o que podemos perceber da realidade não constitui um conhecimento, mas uma probabilidade. Assim, só há uma coisa necessariamente verdadeira: a Matemática. Para Hume, em seu Tratado da natureza humana, o ser humano é muito mais instinto e sentimento do que razão.

Os filósofos educadores A educação é um tema importante no campo da Filosofia. E, embora muitos pensadores não tenham se dedicado diretamente a esse assunto, é possível extrair de suas obras várias ideias a respeito do papel que a educação ocupa na vida das pessoas. É por isso que, entrando em contato com as obras de Platão, Aristóteles, Kant e outros, podemos nos deparar com reflexões a respeito de alguns temas fundamentais da educação: O que é conhecimento? Como adquirimos conhecimento? Como as crianças desenvolvem sua aprendizagem? Para quais finalidades deve estar voltada a educação de um indivíduo? Você já pensou em algumas dessas questões? Quem quer assumir a condição de educador não pode deixar de refletir e ter clareza sobre isso, porque toda prática educativa está ligada a um fim ou objetivo maior. Os grandes educadores colocaram essas e outras questões em termos bastante filosóficos, mas, muitas vezes, passaram despercebidos, porque em nossa sociedade (e também em sociedades antigas) pessoas que se relacionam com temas ligados à infância são vistas com certo menosprezo. No entanto, as atitudes de um ser humano durante a vida e o percurso histórico de uma sociedade dependem muito da educação: tudo o que nós somos ou mesmo sonhamos ser, é em grande medida o resultado da educação que recebemos ao longo da vida. 91


Jan Amos Comenius, educador tcheco do século XVII, por exemplo, que era muito admirado por Leibniz e manteve um diálogo com Descartes, concebeu uma ideia muito interessante sobre o conhecimento: ele considerava que deveríamos levar em conta a racionalidade (portanto, a Filosofia), a experimentação e a observação (portanto, a Ciência) e a fé (portanto, a revelação religiosa). Colocando essas três formas de apreensão da realidade em um diálogo profundo, chegaríamos a uma pansofia (sabedoria do todo). Dessa pansofia, Comenius derivava a ideia de uma pampædia, que significa ensinar tudo a todos. Comenius foi um defensor dos direitos de todas as pessoas do mundo terem acesso a um conhecimento integral. Para ele, a fragmentação das áreas em Ciência, Filosofia e religião provocava um empobrecimento na busca da verdade. Era preciso haver uma troca entre elas. Já Jean-Jacques Rousseau, em pleno movimento iluminista no século XVIII, não nega nem a razão, nem a capacidade de o ser humano conhecer, mas une ao conhecimento racional a sensibilidade íntima, uma espécie de subjetividade. Ou seja, ele propõe que o ser humano conheça com razão e sentimento, intelecto e sensibilidade. Ele resgata, por exemplo, as noções de Deus e de alma, sem rígidas demonstrações racionais, mas apelando para o sentimento natural de religiosidade humana.

Iluminismo

E, por fim, Johan Heinrich Pestalozzi, discípulo de Rousseau, propõe um método de aprendizagem em que as duas facetas seriam a percepção externa e a percepção interna. A primeira seria a ideia da aprendizagem sensorial: tocar, ver, degustar, ouvir, apurar os sentidos, para a percepção da realidade externa. E a segunda é o educando aprender a olhar para dentro de si mesmo e aí perceber seus sentimentos, motivações e a presença de Deus. O que há de comum em Comenius, Rousseau e Pestalozzi e, mais tarde, foi confirmado por estudiosos da Psicologia infantil, como Jean Piaget e Maria Montessori, é que o indivíduo só aprende fazendo. Ou seja, o conhecimento é uma construção ativa do sujeito, em uma interação com a realidade que o cerca, na qual vai desenvolvendo suas potencialidades.

O ponto de vista de Kant

Coleção Roger-Viollet

Tendência filosófica nascida no século XVIII, com um ideário de emancipação humana, valorização da razão, espírito crítico em relação às tradições, proposta de laicização da sociedade e ideias liberais na política e na economia.

Pestalozzi com seu filho, obra de F. G. Schöner.

Você já viveu a experiência de ter certeza de algo e, em outro momento, verificar que o que você considerava certo era na verdade falso? Isso é muito comum entre nós, seres humanos. Muitas vezes supomos que estamos conhecendo algo, mas na verdade estamos projetando sobre o 92


Sygma / Keystone

Immanuel Kant, retratado por John Chapman, início do século XIX.

mundo algo que é nosso, a nossa interpretação da realidade. Diante dessa experiência, podemos nos colocar as seguintes questões: Será que podemos conhecer a realidade tal como ela é? Ou será que estamos sempre olhando para o mundo através de um filtro que nos impossibilita de chegar à plena objetividade? Immanuel Kant, filósofo alemão-prussiano muito sistemático, que teve uma formação profundamente religiosa (no protestantismo pietista – uma corrente bastante rígida), se defrontou com essas perguntas – que, aliás, já vinham sendo feitas pelos racionalistas e empiristas. De um lado, o racionalismo de Descartes exalta os poderes inatos da razão. De outro, o empirismo moderado de Locke e, de outro ainda, o ceticismo avassalador de Hume. Por fim, o apelo ao sentimento e à fé natural de Rousseau. Kant propôs-se a descobrir um fio da meada de tudo isso e salvar a fé e a razão. Mas, para isso, teria de limitar muito bem uma e outra. Com isso, talvez, tenha abalado profundamente ambas. Dois de seus livros foram marcantes na história da Filosofia: Crítica da razão pura e Crítica da razão prática, e tratam de examinar o que a razão pode ou não conhecer. Essa é, portanto, a questão central do pensamento kantiano e que pode ser formulada nos seguintes termos: Quais são os objetos que podem ser verdadeiramente conhecidos pelo ser humano? “Razão pura” refere-se à razão em si mesma, independentemente da experiência e “razão prática” é aquela que se relaciona com a ação moral – a razão aplicada à decisão ética. Diz Kant, então, a respeito da razão: • a razão não pode conhecer ou demonstrar aquilo que a metafísica sempre demonstrou: Deus, a alma, o ser em si, a essência das coisas; aquilo que é matéria de fé, a razão não pode provar; • a razão, instruída pela experiência, só pode acessar os fenômenos, ou seja, nossa interpretação da realidade, não a realidade em si. Não que ela não exista, mas ela passa sempre pelas nossas sensações; não podemos acessar o que Kant chama de “númenos”;

Númeno De Noumenon, termo criado por Kant a partir do grego nooúmena, usado por Platão ao se referir a “ideia”, “aquilo que é pensado, pensamento”. Foi utilizado por Kant para definir a realidade tal como existe em si mesma, de forma independente da perspectiva necessariamente parcial em que se dá todo o conhecimento humano; coisa em si.

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temos duas faculdades que fazem parte do nosso conhecimento: a sensibilidade e o entendimento; a sensibilidade recebe impressões e nos dá intuições, e o entendimento constrói conceitos. Se as intuições e os conceitos vêm da experiência, eles são empíricos. Mas há também os que são puros, que não vêm de nenhuma experiência. No caso da sensibilidade, temos intuição pura do tempo e do espaço. Em relação ao entendimento, temos as categorias a priori da casualidade (todo efeito tem uma causa) e da matéria. Com essas ferramentas, que


já estão em nós, independentemente da nossa experiência, podemos operacionalizar o conhecimento e nos situarmos no mundo; • o conhecimento que temos das coisas é, portanto, o resultado da impressão sensorial organizada pelas categorias na mente, mas não é o conhecimento da coisa em si. Depois de Kant, podemos dizer que a Filosofia, no século XIX, tomou dois caminhos opostos (ambos dogmáticos): de um lado, temos o idealismo alemão, que então ficou com essa imagem da razão em si mesma, mas não limitada como em Kant. A “Razão”, escrita com inicial maiúscula, passou a ser o mesmo que Eu absoluto, Espírito absoluto – a razão criaria a própria realidade e seria una com ela. Não é essa razão individual – de cada um de nós –, mas uma Razão divinizada, totalizadora. O outro caminho foi o do cientificismo, comum a várias teorias filosófico-científicas do século XIX. Ocorria então o inchaço da concepção da Ciência, que alcançaria as últimas verdades: nada de análises sobre a própria razão, nada de questionamento sobre os limites ou não do ­conhecimento. No cientificismo, a Ciência é a grande reveladora de todos os segredos da natureza e tudo o que ela vem a descobrir é verdade confiável. Mas quem afirmava isso não era apenas ela mesma, mas a Filosofia. Esse cientificismo percorreu o espírito do tempo e está presente em vários sistemas filosóficos e várias doutrinas da época, as mais distantes entre si. Vamos tomar dois exemplos muito diferentes, mas que compartilham essa crença irrestrita na Ciência: o positivismo e o marxismo.

A crença irrestrita na ciência A ciência ocupa um lugar de destaque nas sociedades atuais. Ela é tida como um conhecimento objetivo, verdadeiro e serve como guia para a vida prática das pessoas. Sob esse ponto de vista, a ciência parece responder a todas as inquietações humanas. Mas será que todas as perguntas feitas pelo homem encontram respostas satisfatórias no campo do conhecimento científico? Tente responder essa questão, a partir da contribuição do positivismo e do marxismo. Auguste Comte elaborou a doutrina positivista, preconizando que a humanidade passava historicamente por três estágios: o teológico, o metafísico e o positivo. O primeiro era a época em que a fé predominava e tudo era explicado por ela; no segundo, o predomínio era da Filosofia, e a razão especulativa procurava construir sistemas de pensamento; por fim, vinha o estado positivo, em que o ser humano se regeria apenas pela Ciência – então não mais precisaríamos de Filosofia, nem de religião, porque a Ciência tudo explicaria e tudo regeria na sociedade. Marx, cuja teoria analisaremos no Capítulo X, criou, com Engels, o socialismo científico, procurando descobrir leis na História que lhe conferiam sentido e previsibilidade. 94


Tanto Comte quanto Marx e Engels estavam, na verdade, praticando Filosofia, mas achavam-se científicos, no sentido de que suas doutrinas eram verdades assentadas, aliás, sistemas de pensamento que tinham uma característica própria do século XIX: pretendiam explicar tudo, abranger tudo, dar solução para tudo, sistemas que os pós-modernos chamam de “grandes narrativas do século XIX” e que haviam perdido aquela moderação crítica proposta por Kant. A partir desse período, a história da razão se tornou uma história das concepções da Ciência, pois, desde o século XIX, esta ganhou tal predominância na vida do ser humano que a questão do conhecimento passou a ser uma questão da Ciência, mas foi a Filosofia que refletiu sobre o seu papel. Nas últimas décadas do século XX, a filosofia da Ciência tornou-se um campo bastante discutido. Já o filósofo contemporâneo francês, André Comte-Sponville procura descomplicar e popularizar a Filosofia em suas obras, transitando por temas clássicos, como o amor e a felicidade, e as urgências da vida contemporânea. Tendo lecionado na Sorbonne, hoje dedica-se exclusivamente a seus livros e às palestras que ministra. Seu livro mais célebre, O capitalismo é Moral?, discute a falta de relação entre ética e economia. Embora se considere ateu, defende a prática de uma espiritualidade, mas desprendida de religiões e da crença em Deus, pensamento que expõe em sua obra O Espírito do Ateísmo.

Ciência, razão e conhecimento nos séculos XX e XXI As entidades postuladas pela Ciência não são descobertas e não constituem um estágio “objetivo” para todas as culturas ou ao longo de toda a História. São moldadas por grupos, culturas, civilizações particulares.

Gaston Bachelard (1884-1962) Filósofo e poeta francês, estudou as relações entre a Ciência e a Filosofia e entre a razão e a intuição. Defendeu em suas teses a existência de uma relação intrínseca entre o saber produzido pela Ciência e os processos de desenvolvimento da própria História. Seu projeto era expressar adequadamente o novo espírito científico e elaborar a importância da capacidade criadora humana. Em sua vasta obra filosófica e poética, destacam-se: O novo espírito científico, A formação do espírito científico e A poética do espaço.

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FEYERABEND, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

[...] a verdade é a retórica da verdade… é o efeito de convencimento dos vários discursos de verdade em presença. SANTOS, Boaventura. Introdução a uma Ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

Essas citações nos dão uma imagem bastante diferente da visão que o homem comum tem do conhecimento científico. Em que sentido essas frases rompem com a visão tradicional da Ciência? Afinal, a Ciência é ou não é um conhecimento objetivo da realidade? Acompanhe a exposição a seguir e procure refletir sobre essa questão. Essas frases representam o final de um processo de relativização da Ciência, da razão e do conhecimento ocorrido durante o século XX, resultando no que podemos chamar de “desconstrução da Ciência”. Já na década de 1930, o filósofo e poeta Gaston Bachelard deu um golpe nas pretensões do positivismo, afirmando, em seu livro O novo es-


pírito científico, que a Ciência não é um corpo total de verdades, mas um diálogo aberto, não sistemático, entre a razão e a experiência. Nessa linha, delineia-se a concepção de que outros elementos entram na formulação do conhecimento científico que não são apenas aqueles de experimentação e descoberta de leis objetivas – aceitos pelo positivismo tradicional. Bachelard indica o papel da mente criadora, da imaginação e da própria intuição como constituintes do processo de construção científica.

Arquivo

Menos romântico que Bachelard, que investigou também a poesia, instaurando uma filosofia da criação artística, Karl Popper refaz o conceito de Ciência em duas obras, A lógica da descoberta científica (1934) e Conjecturas e refutações (1963), formulando o princípio da falseabilidade como critério que a caracteriza. Para Popper, afirmações que não são muito precisas, isto é, que não deixam claro o que elas estão dizendo, não são falsificáveis, pois não podem ser nem confirmadas nem rejeitadas pela experiência. Karl Popper (1902-1994) Filósofo austríaco radicado na Inglaterra, propôs uma filosofia da Ciência, segundo a qual o critério de uma teoria científica deve ser a possibilidade de ter suas hipóteses falseadas, ou seja, confrontadas com os fatos. Foi defensor intransigente da democracia liberal. Entre suas principais obras, estão A lógica da descoberta científica, Conhecimento objetivo, A miséria do historicismo e A sociedade aberta e seus inimigos.

Para deixar mais claro esse critério da falseabilidade, proposto por ­Popper, podemos pensar em afirmações do tipo: “Se você for um homem de sorte pode ganhar na loteria”. Uma afirmação como essa não se mostra falsificável, pois a experiência pode tanto comprovar como refutar o que foi dito. A possibilidade de falsificar uma teoria científica é que confere a validade desse conhecimento, que é sempre hipotético, nunca detentor de uma certeza acabada. Isso significa que uma teoria científica é sempre provisória. Se aparecer alguma outra que demonstre que ela estava errada, ela deve ser abandonada. Outro pensador que marcou esse processo de desestabilização da ­Ciência foi Thomas Kuhn , com a obra A estrutura das revoluções científicas (1962). São, sem dúvida, originais e instigantes suas ideias de paradigma, de ciência normal, de ciência pré-paradigmática e de revolução científica. Examinemos mais de perto esses conceitos, porque hoje muitos falam em paradigma e não sabem o que isso realmente significa.

Karl Popper.

Thomas Kuhn (1922-1996) Físico e filósofo da Ciência norte-americano. Sua obra A teoria das revoluções científicas, na qual propõe a ideia de que a Ciência progride por meio de revoluções que rompem com um paradigma anterior e estabelecem um novo paradigma, teve grande repercussão.

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Paul Feyerabend (1924-1994) Filósofo austríaco, radicado nos Estados Unidos, deu uma contribuição polêmica e original à filosofia da Ciência. Em Contra o método, criticou as regras rígidas do pensamento científico, propondo uma espécie de anarquismo científico. Sua crítica também foi social, pois propôs que a Ciência deveria ser separada do Estado, não ficar apenas nas mãos das elites e que o povo deveria participar da escolha do que pesquisar.

Boaventura de Sousa Santos (1940-) Sociólogo e pensador português, pretende uma “sociologia das emergências”, no sentido de resgatar as experiências humanas e a participação popular na constituição da sociedade e do conhecimento. Entre suas principais obras, destacam-se Introdução a uma Ciência pós-moderna, Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, A Gramática do tempo e As vozes do mundo.

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Kuhn distingue dois tipos de Ciência: a normal e a em crise (ou revolucionária). Ciência normal é a ciência praticada por uma comunidade de cientistas que partilham um mesmo paradigma. O termo “paradigma” teria uma conotação circular, pois, segundo o autor, representa “aquilo que os membros de uma comunidade científica partilham, e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma”. A ciência revolucionária é aquela que rompe com o paradigma vigente, quando este “deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da natureza”, propondo outro no lugar, para então adquirir o status de ciência normal. Podemos citar como exemplo o momento histórico em que o paradigma ptolomaico – de que o Sol girava em torno da Terra e o Universo era estático –, aceito por Aristóteles e adotado em toda a Idade Média, caiu e firmou-se o paradigma de Copérnico e Galileu. A fase pré-paradigmática pode ser aquela em que uma ciência ainda está se constituindo ou uma fase de uma ciência já constituída, mas em que um novo paradigma está despontando, pela necessidade de atender às chamadas “anomalias” (fatos não explicados) que a ciência normal não conseguiu resolver dentro de seu paradigma. Instaura-se uma crise que só se resolve com uma revolução científica, que implica na substituição de paradigmas. Em uma de suas definições de paradigma, Kuhn indica que fazem parte de um determinado paradigma “toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc. partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada”. Há fecundidade e problematicidade nessa definição, porque aponta como constituintes do discurso científico crenças, valores pessoais e culturais, princípios filosóficos e conjunturas sociais, abalando o parâmetro de objetividade buscado pela Ciência. Agrava-se ainda a questão pela chamada “incomensurabilidade” dos paradigmas. Segundo Kuhn, não existe necessariamente um movimento progressivo de um paradigma a outro e não são apenas critérios objetivos que influem na mudança de um paradigma, mas outros subjetivos, inclusive o da persuasão. Duas questões vitais para a Ciência estão em jogo na teoria de Kuhn, mas já haviam sido objeto de investigação tanto de Bachelard, quanto de Popper: a da objetividade e a do progresso do conhecimento. Na medida em que Kuhn invoca a persuasão como um dos elementos da adoção de um novo paradigma, a importância da demonstração se reduz. Nesse sentido, suas teorias se aproximam das de Paul Feyerabend . Tanto no livro Contra o método, de Feyerabend, quanto em Introdução à Ciência pós-moderna, de Boaventura de Sousa Santos , há um processo de relativização completa de todas as teorias, tenham elas critérios de racionalidade, experimentação ou não.

Questão de método Na história do conhecimento ocidental, uma questão que está ligada tanto à Filosofia quanto à Ciência, sendo também um dos objetos da Lógica, é


a do método para se alcançar uma verdade e a validade possível desse método. Desde Aristóteles, fala-se em método dedutivo e em método indutivo. Vejamos o que o autor inglês Nigel Warburton define a esse respeito:

Indução e dedução são tipos diferentes de argumento. Um argumento indutivo envolve uma generalização baseada em certo número de observações específicas. Se depois de observar um grande número de animais com pelagem eu concluísse que todos eles são vivíparos (isto é, dão à luz filhotes vivos, em vez de botar ovos), estaria usando um argumento indutivo. Um argumento dedutivo, por outro lado, começa com premissas particulares, e então passa logicamente para uma conclusão que se segue dessas premissas. Por exemplo, eu poderia concluir das premissas “Todas as aves são animais” e “Cisnes são aves”, que todos os cisnes são animais: este é um argumento dedutivo. Argumentos dedutivos são preservadores da verdade. Isso significa que, se suas premissas são verdadeiras, suas conclusões devem ser verdadeiras. Você estaria se contradizendo se afirmasse as premissas mas negasse a conclusão. Logo, se “Todas as aves são animais” e “Cisnes são aves” forem ambas verdadeiras, deve ser verdade que todos os cisnes são animais. Em contraste, as conclusões de argumentos indutivos com premissas verdadeiras podem ou não ser verdadeiras. Ainda que toda observação minha sobre animais com pelagem fosse exata, e eles fossem todos vivíparos, e mesmo que eu tenha feito milhares de observações, minha conclusão indutiva de que todos os animais com pelagem são vivíparos ainda poderia ser falsa. De fato, a existência do ornitorrinco, um animal peculiar, coberto de pelagem e que põe ovos, demonstra que esta é uma falsa generalização. WARBURTON, Nigel. O básico da Filosofia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2008. p. 173-174.

De maneira geral, pode-se dizer que a Filosofia trabalhou no decorrer dos séculos muito mais com a dedução, e a Ciência trabalha predominantemente com a indução, pois parte da observação, para generalizar uma teoria. Entretanto, o método indutivo também pode ser enganoso:

Bertrand Russel, em seu livro Os problemas da Filosofia, usou o exemplo de uma galinha que desperta todas as manhãs achando que, como foi alimentada no dia anterior, isso aconteceria novamente naquele dia. Certa manhã, ela desperta só para ter seu pescoço torcido pelo granjeiro. A galinha estava certa usando um argumento indutivo baseado em um grande número de observações. Confiando muito fortemente na indução estaremos sendo tão tolos quanto essa galinha? Como podemos algum dia justificar nossa fé na indução? Este é o chamado Problema da Indução, um problema identificado por David Hume em seu Tratado da natureza humana. [...] Isto é de particular relevância para a filosofia da Ciência, porque, pelo menos na teoria simples esboçada acima, a indução tem um papel crucial a desempenhar no método científico. WARBURTON, Nigel. O básico da Filosofia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2008. p. 175.

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Por isso, a Ciência contemporânea é muito mais probabilística do que a antiga ciência positivista, que pretendia descobrir leis imutáveis. Por outro lado, alguns pensadores pós-modernos, à maneira dos sofistas gregos, acham que por essas e por outras, não temos nenhuma probabilidade de conhecer algo.

National Gallery, Londres, Inglaterra

Destaque

Gilles Deleuze (1925-1995) Filósofo francês contemporâneo, considerava a Filosofia como criadora de conceitos. Criticou a Filosofia tradicional e classificou o ser humano como “máquina desejante”. Entre suas principais obras, estão Empirismo e subjetividade, Nietzsche e a Filosofia, A Filosofia Crítica de Kant, Lógica do Sentido e Crítica e Clínica.

Richard Rorty (1931-2007) Filósofo americano de caráter pragmático e pós-moderno, foi pragmático na medida em que se considerava um antifilósofo. Desconfiado das especulações teóricas da Filosofia e, por isso mesmo, pós-moderno (dentro da tendência cética e relativista do pós-modernismo), foi defensor do liberalismo. Sua principal obra foi A Filosofia e o espelho da natureza.

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Mulher observa obra Marylin (1967), de Andy Warhol. A arte pós-moderna incorporou ­símbolos da cultura de massa e técnicas industriais de produção em série.

O que é pós-moderno? A definição de “pós-moderno” é controversa, porque não se trata de uma escola filosófica, mas uma tendência encontrada em vários pensadores contemporâneos, como Jean-François Lyotard, Michel Foucault, Richard Rorty , Gilles Deleuze , Jacques Derrida e outros, que têm, entretanto, diferentes caminhos de filosofar. Leia a definição de pós-modernismo formulada por Simon Blackburn:

Na cultura, em geral, o pós-modernismo está associado à alegre aceitação do imediato, a um estilo superficial, à citação e à paródia deliberadas […] e à celebração do irônico, do efêmero e do irrelevante. É frequentemente tomado como uma reação contra a confiança sisuda e ingênua no progresso e na verdade ou objetividade científicas. Do ponto de vista filosófico, por conseguinte, implica uma suspeita em relação às grands récits (grandes narrativas) da modernidade: as justificações de grande envergadura da sociedade ocidental e a confiança no progresso desta sociedade, encontradas em Kant, Hegel ou Marx, ou resultantes de visões utópicas da perfeição obtida através da evolução, da melhoria das condições sociais, da educação e da expansão da Ciência. Nos seus aspectos pós-estruturalistas, o pós-modernismo inclui a negação da existência de significados estáveis, da correspondência entre a linguagem e o mundo e de realidades, verdades ou fatos que devam ser fixados como objetos de investigação.


Essa tendência foi antecipada, e talvez tenha sido expressa da forma mais brilhante por Nietzsche, cujo perspectivismo é visto como uma técnica filosófica que consegue enfraquecer o pressuposto de que o conhecimento objetivo pode ser alcançado. A objetividade se mostra como um disfarce para o poder ou para a autoridade nos meios acadêmicos e muitas vezes como o último bastião de um privilégio dos brancos do sexo masculino. O pensamento lógico e racional é apresentado como uma imposição de dicotomias suspeitas ao fluxo de acontecimentos. Os pós-modernos dividem-se quanto às consequências dessas descobertas, deparando-se com o antigo problema dos céticos acerca de como pensar e agir à luz de sua própria doutrina. Enquanto para alguns a destruição da objetividade parece ser o caminho para se chegar a um radicalismo político libertador, para outros isso vem permitir pontos de vista nada libertadores, como a negação de que tenham existido (objetivamente) acontecimentos como a Segunda Guerra Mundial ou o Holocausto, e para outros ainda, como Rorty (Contingência, ironia e solidariedade, 1989), essa destruição permite o recolhimento de cada um de nós numa atitude estética, irônica, desapegada e jovial quanto às nossas próprias crenças e quanto ao curso dos acontecimentos. Esse recolhimento tem sido criticado por ser socialmente irresponsável (e, em última instância, muito reacionário). A estrutura ideológica do pós-modernismo, traçada por exemplo em A condição pós-moderna (1984), de Jean-François Lyotard [1924-1998], parece depender de uma rejeição arrogante do êxito da Ciência na procura da melhoria da condição humana, de um exagero quanto à falibilidade das tentativas de obter conhecimentos nas disciplinas humanas e da ignorância de uma verdade banal: apesar de a lei e a História humanas não permitirem uma descrição final, permitem no entanto descrições mais ou menos precisas, tal como não é possível traçar um mapa único de um território, o que não impede a existência de mapas mais precisos que outros. BLACKBURN , Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 305-306.

A Ciência aplicada e o racionalismo técnico Se você refletir um pouco sobre o papel ocupado pelo conhecimento científico nas sociedades atuais, vai certamente chegar à conclusão de que a Ciência é algo bastante presente no nosso cotidiano. O remédio que ingerimos, os aparelhos eletrônicos que utilizamos, os mais variados meios de transportes pelos quais nos deslocamos, a luz elétrica que ilumina a vida noturna: tudo isso e muito mais são consequências diretas das pesquisas e descobertas científicas. Simon Blackburn (1944) Filósofo britânico contemporâneo que tem papel importante na tentativa de popularizar a Filosofia. É o autor do Dicionário de Filosofia Oxford e inventor do quase-realismo, que sustenta que é possível legitimar o discurso realista, em moral, utilizando uma perspectiva expressivista ou projetivista da ética. Assim, num discurso ético, os enunciados são considerados expressões de crenças, atitudes, emoções ou demais estados relacionados à pragmática – atos de fala relacionados com uma ação.

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Estruturalismo Método de análise da realidade que trabalha com estruturas consideradas universais. Elas podem ser de natureza linguística, psicológica ou antropológica, encontradas no universo humano. Segundo os teóricos dessa linha de pensamento, essas estruturas podem influenciar e até determinar o comportamento individual.

Max Horkheimer (1895-1973) Filósofo judeu, alemão, seu pensamento constituiu o núcleo principal da Escola de Frankfurt. Suas influências foram Schopenhauer e Marx. Desenvolveu a ideia de que a Ciência e a tecnologia, apesar de desenvolverem o progresso, também contribuíram para que a humanidade entrasse em um novo tipo de barbárie. Para ele, essa condição não é imposta por uma classe dominante, mas pela nova consciência tecnológica que está presente na sociedade de massa. Nessa sociedade, os seres humanos são cada vez mais desumanizados. Um dos principais livros de Horkheimer foi escrito em parceria com Theodor W. Adorno, Dialética do esclarecimento.

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Nesse sentido, a Ciência é fonte de benefícios para o ser humano, mas será que sua aplicação nos mais variados setores da sociedade sempre traz efeitos salutares? Veja o que alguns filósofos disseram sobre essa questão e tire suas próprias conclusões. Segundo Henri Bergson, o ser humano tem por natureza “fazer” as coisas, é um artesão que necessita de instrumentos. Para a sua sobrevivência, criou as ferramentas e, depois, criou a máquina com o mesmo intuito. Bertrand Russel diz que é próprio da Idade Moderna a Ciência aplicada, que permitiu que o conhecimento racional fosse aplicado às máquinas. Com a invenção da máquina, nasceu um novo tipo de técnica que não é a do artesanato ou da invenção de utensílios, mas a técnica da máquina e da mecânica. Foram os iluministas franceses que conceituaram a Ciência técnica e, mais especificamente, a técnica mecânica, como um tipo de saber científico, tornando-se seu estudo, assim, fundamental. A máquina, com sua tecnologia, contribuiu para uma nova organização do conhecimento, do trabalho, da vida, do tempo e da sociedade. Marx e Engels, como também Auguste Comte, defendem que a tônica do capitalismo é gerar novas técnicas ou tecnologias. Para Comte, a nova sociedade deveria ser a sociedade da técnica. Marx e Engels viam a tecnologia como algo importante, pois o ser humano poderia dominar a natureza e gerar os meios de satisfazer suas necessidades básicas, desde que bem utilizada e a serviço da coletividade, e não para beneficiar apenas um grupo. Desde essas correntes do século XIX, a evolução da técnica tem sido vista como um progresso. A vida passou a depender cada vez mais da tecnologia e a base das economias passou a ser as fábricas, produtoras e consumidoras da tecnologia. A própria Ciência tem sido vista não como conhecimento de alguma verdade, mas como produtora de coisas. Em nossa sociedade, damos valor ao saber científico se ele é útil, se tem alguma aplicação prática, enquanto os saberes que lidam com as humanidades recebem atenção muito menor. O conhecimento técnico-científico se tornou indispensável para a vida e para a formação das pessoas. As fábricas contemporâneas se automatizaram de tal forma que utilizam muito pouco a mão de obra humana. Nos dias de hoje, como está presente em todas as áreas do cotidiano, a tecnologia é vista como motor do progresso e do bem-estar. No século XX, muitos concordaram com a importância da tecnologia e das técnicas para a vida, mas passaram a meditar um pouco mais sobre as consequências de uma sociedade tecnológica ao extremo. Martin Heidegger questionou os rumos tomados pelas sociedades tecnológicas, pois para ele tais sociedades perdem a noção grega de “técnica”, isto é, a produção da verdade e do belo. Heidegger achava que a sociedade tecnológica impossibilitava o desenvolvimento do ser e da natureza. A sociedade tecnológica tem sido objeto de severas críticas também da Escola de Frankfurt. Max Horkheimer , um dos pensadores dessa escola, faz uma crítica à razão técnica. Para ele, o ser humano usa a razão


em diversas frentes para se adaptar à realidade que o circunda. Portanto, existem diferentes tipos de razão. Uma das razões utilizadas pela humanidade é a instrumental, que está na base da técnica. Uma razão desse tipo faz com que o ser humano só pense nos meios, no conjunto das atividades, sem pensar nos fins. Pensa-se na técnica para fazer determinados objetos, ou seja, quais os “melhores meios” para fazer coisas, e não se pensa qual é a “finalidade” das coisas feitas. A verdadeira razão não é instrumental, mas é a razão que pensa nos fins. A razão instrumental deve ser subordinada à razão dos fins. Os fins verdadeiros são os seres humanos e a vida. Essa questão, entretanto, tem sido invertida e não se percebe que a técnica é importante para os seres humanos e para a vida em geral, desde que permita o desabrochar da vida e o realizar-se como ser humano. O equívoco está em usar a tecnologia para a morte e para a destruição e escravização da própria espécie. A técnica pode instrumentalizar as coisas, mas não o ser humano. Nos séculos XX e XXI, tem-se usado a tecnologia para controlar as vidas, explorá-las para as mais variadas formas de destruição. A vida tem outras finalidades que não apenas as tecnológicas e materiais. Não podemos nos esquecer dos problemas existenciais, do porquê estamos aqui, para onde vamos, aonde queremos chegar... Se não pensarmos nisso, veremos que a técnica não nos ajudará. A Escola de Frankfurt reavaliou a contribuição de Karl Marx, reconhecendo a herança de Hegel e acolhendo a influência de Freud. Com filósofos como Horkheimer e Adorno (ambos da primeira geração), e depois Erich Fromm e Herbert Marcuse (ver biografia no Capítulo VI), a Escola de Frankfurt se valeu da crítica marxista ao capitalismo para interpretar fenômenos contemporâneos, como a sociedade de massa, o totalitarismo do fascismo e do nazismo e a indústria cultural. Nessa releitura, mesclada com a psicanálise freudiana, o marxismo não foi mais visto como uma filosofia totalizante e fechada, mas como um instrumental crítico adaptável às novas circunstâncias sociais.

Interdisciplinaridade

United Artists Corporation

Arte

Tempos Modernos, de 1936, de Charles Chaplin, mostra um homem simples (o “vagabundo” chapliniano) que vai trabalhar em uma fábrica, sofre na linha de produção e, quando participa de um experimento numa máquina automática, cria uma grande confusão, o que leva o chefe a pensar que ele enlouqueceu. O operário é internado e quando sai do manicômio é confundido com um comunista por acenar com uma bandeira vermelha e segue em frente com suas atribulações. O filme representa algumas das consequências da tecnologia nas fábricas: desumanização no trabalho, medo do desemprego, a alienação frente às novidades e tecnologias, entre outras.

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Espiritualidade A religião e o conhecimento Epicuro afirmava que a religião “é filha do medo diante do mundo e que todo conhecimento advindo dela é fábula e superstição”. Essa é uma tese que esteve muito presente no Ocidente em diferentes momentos históricos e contextos, mas que reflete uma tensão que nasceu no mundo ocidental, mais especificamente entre os gregos: A fé ou a razão deve ser instrumento do conhecimento? Muitas sociedades pensaram que a fé poderia ser um instrumento do saber e uma fonte de conhecimento por nos conectar, por nos religar às verdades divinas do mundo. A fé nos daria uma intuição da verdade divina ou Deus que nos revelaria a verdade por meio da fé. Na Grécia, a Filosofia e a Ciência nasceram com discursos de que a razão seria o instrumento mais adequado na busca do conhecimento, porque somente a razão poderia argumentar logicamente sobre as coisas e a religião seria mito, sem fundamento. Houve certa ruptura entre a razão e a fé, o que não ocorreu nas culturas orientais. A separação entre essas duas esferas ocorreu da seguinte maneira: de um lado, as religiões entendendo que a verdade nos é dada apenas pela fé em uma revelação divina, não dependendo do trabalho de conhecimento realizado pelo intelecto e pela vontade; de outro, o reconhecimento de um único sujeito do conhecimento: a razão humana apartada de qualquer elemento de religiosidade. Com o decorrer do tempo, os temas religiosos e filosóficos foram os mesmos; a maneira de buscar e de chegar à verdade é que foram mudando. Para os religiosos, Deus seria um dado de fé, uma questão de sentir e acreditar; para os filósofos, seria preciso provar Deus e argumentar logicamente a favor da sua existência. Vários filósofos admitiram ao longo do tempo que o conhecimento religioso não era compatível com qualquer conhecimento filosófico, científico e racional. No iluminismo, Condorcet disse que a religião não poderia proporcionar um conhecimento seguro das coisas, pois era um conjunto de ilusões. Marx e Engels também consideravam qualquer tipo de conhecimento advindo da religião como ilusório, nada mais do que criações irreais da mente humana. No século XIX, muitas correntes admitiam que apenas a Ciência, com seu rigor metódico e sua objetividade, estaria apta a chegar ao conhecimento verdadeiro. O conhecimento religioso não estaria embasado em uma concepção científica da realidade, portanto era pura especulação, pertencente ao campo da imaginação. Outros filósofos entenderam que era possível reconciliar Ciência, Filosofia e religião, ou racionalidade e fé. Agostinho, Pedro Abelardo e Tomás de Aquino fizeram esforços no sentido de tentar mostrar a possibilidade de junção entre a razão e a fé. Toda a escolástica medieval pretendia isso. Abelardo, porém, como um precursor do racionalismo, dizia que em todas 103


as posições controvertidas da teologia e da fé devemos recorrer à razão em última instância. A atividade racional deve estar em diálogo com a fé revelada. Na modernidade, em Hegel, por exemplo, o Espírito ou Deus faz parte da natureza e encarna na História. A história da humanidade seria a própria história do Espírito. Filosofia e religião não estariam opostas, mas caminhando juntas para captar a manifestação de Deus. No século XIX, Allan Kardec, fundador do espiritismo, disse a mesma coisa, mas em sentido diferente. Envolvido nessa discussão e quase nunca citado nesses embates – pois o espiritismo se tornou apenas uma religião, deixando de lado os aspectos filosóficos que Kardec lhe dava –, procura colocar o problema do espírito e de Deus em bases filosóficas, científicas e racionais. Admitindo a possibilidade de pesquisa da existência do espírito por métodos experimentais – por meio dos fenômenos chamados mediúnicos em que os espíritos supostamente se manifestam através de médiuns –, o mundo espiritual perderia seu caráter de sobrenatural ou de pura especulação filosófica. Para o filósofo brasileiro J. Herculano Pires, Kardec aboliu as categorias do sobrenatural, do mistério, do incompreensível, tão comuns e aceitas pelos seres humanos na relação com Deus e com o mundo espiritual, e diz ser possível racionalizar a fé e a fé iluminar a razão. É interessante notar que, no século XX, também houve tentativas de reconciliar razão e fé e muitos desses pensadores colocaram em debate o próprio limite do conhecimento científico. Para tais pensadores, a Ciência não é a única com o poder de explicar a realidade e produzir conhecimento. A crença na capacidade de a Ciência compreender a totalidade do real é artigo de fé. Essas críticas abriam espaço para uma separação menos drástica entre razão e fé. Pensadores como William James , Henri Bergson e Edmund Husserl desmitificaram a louvada infalibilidade da razão científica e da objetividade. Para eles, o mundo da realidade é muito mais amplo do que o mundo acessível à pesquisa científica. É preciso fugir dos reducionismos no entendimento do real. Husserl afirmava que a ciência objetiva tinha desEdmund Husserl (1859-1938) Filósofo alemão de família judaica, dedicou-se à lógica, à Matemática e à Filosofia. Em 1900, publicou Investigações lógicas e, em 1913, Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica. Ambos os livros mudaram o panorama da Filosofia do século XX. Pode-se dizer que o centro de sua filosofia é uma problematização da atividade de conhecer e do conhecimento científico. A ciência fenomenológica procurou romper com os postulados racionalistas e empiristas. Segundo Husserl, ao contrário do que imaginavam os racionalistas e os positivistas, não é possível explicar as coisas e seus fenômenos mediante construções formais e abstratas. Não existe consciência pura, pois toda consciência é consciência de alguma coisa. Nesse caso, a fenomenologia critica as ciências empíricas, calcadas em uma visão demasiadamente objetiva do mundo, pois na ciência fenomenológica deve-se aprender o fenômeno como ele se apresenta à consciência, sem fragmentá-lo, apreendendo-o na sua inteireza. Essas teses influenciaram Heidegger – que foi aluno de Husserl –, Scheler, Sartre, Merleau-Ponty, Derrida e Deleuze, entre tantos outros.

Fenomenologia A fenomenologia, método filosófico proposto por Husserl, pretende deixar de lado os conhecimentos e certezas que supomos possuir sobre as coisas para apreender o que é imediato à consciência. Com isso, esta busca olhar em primeiro lugar para si mesma, pois é a primeira evidência de sua existência. Trata-se de romper o dualismo mente-corpo e propor uma apreensão intuitiva, imediata e global das coisas.

William James (1842-1910) Filósofo, médico e psicólogo norte-americano, foi o fundador do pragmatismo, que procurou romper com filosofias abstratas – consideradas insuficientes e mal formuladas – e com os sistemas dogmáticos fechados e absolutos. Dedicou-se a entender as coisas a partir da experiência concreta. Para o pragmatismo, as ideias não valem por si mesmas, mas apenas pela sua capacidade de gerar uma ação real. Sua obra Os princípios da Psicologia é considerada um clássico.

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Museu Nacional de História Natural, Paris, França.

prezado demais o conhecimento intuitivo das coisas e que na sociedade europeia houve o triunfo do conhecimento lógico-matemático, com esquecimento das experiências vividas pelas pessoas como fonte de saber. Bergson, nesse sentido, constituiu uma filosofia em que a intuição ganha lugar de destaque como forma de apreensão do ser. A razão é um tipo de inteligência que fragmenta o real, porque o fraciona, analisa, disseca. A intuição, que é a apreensão imediata do espírito, é uma forma de acesso à realidade muito mais completa e una. Para exprimir os dados da inteligência, apreendemos a realidade em conceitos; para exprimir os dados da intuição, usamos a imagem poética.

Pierre Teilhard Chardin (sentado à mesa, de preto), religioso e paleontólogo francês em um laboratório, em 1926.

Pierre Teilhard Chardin (1881-1955) Padre jesuíta, filósofo, teólogo e paleontólogo francês. Fez uma síntese entre o evolucionismo biológico e o criacionismo cristão, em uma conciliação entre Ciência e fé.

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Tanto Bergson como James concordavam com Kardec na oportunidade da pesquisa científica da alma. Bergson, nas últimas páginas de As duas fontes da moral e da religião, aponta para a necessidade do desenvolvimento da “ciência psíquica”. Proclama que, somente através de “uma visão do além em uma experiência científica ampliada” que se ocupa das “percepções anormais”, se poderá alcançar a certeza científica da imortalidade da alma e com isso se obter uma base sólida para a solução dos problemas morais da humanidade. Sob a influência de Bergson, que pratica uma forma de evolucionismo espiritualista, temos também no século XX a figura do teólogo, filósofo e paleontólogo Pierre Teilhard de Chardin . Pesquisando cientificamente os dados da evolução biológica, ele unifica a visão da evolução com a ideia de Deus, ou seja, rompe com o conflito, até hoje existente, entre criacionismo e evolucionismo, porque coloca Deus como autor da lei da evolução.


Museu Rodin, Paris, França

Em todas essas contribuições, aparece a ideia de que o real pode ser captado pela intuição, pela fé, pela razão, pela Ciência, pela arte, pela Filosofia, pela religião. Não há necessariamente oposição, mas há diferentes maneiras de se relacionar com o mundo e conhecê-lo. Utilizar apenas uma via e dizer que somente ela é o caminho seria reduzir demais a possibilidade das descobertas. Então, para esses autores, razão e fé, Ciência e religião não são opostas; são apenas maneiras, atitudes da consciência para conhecer e captar a complexidade do real.

O Pensador, de Auguste Rodin, 1902.

Criacionismo Doutrina baseada no Gênese bíblico, segundo a qual todos os seres vivos foram criados por Deus e se mantêm biologicamente imutáveis. Segundo os criacionistas, as pessoas têm as almas criadas no momento em que são concebidas. Essa doutrina é totalmente contrária à teoria da evolução das espécies.

Evolucionismo Trata-se da teoria proposta pelo naturalista inglês Charles Darwin, ou desenvolvida a partir de suas ideias, que afirma serem todas as espécies animais e vegetais formadas por processos de evolução e diferenciação a partir de uma origem comum, por meio de mutações aleatórias que favoreceram a sobrevivência de seus portadores.

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Arquivo

Texto original

O filósofo, René Descartes

Discurso do método (4ª parte) René Descartes

[...] Havia bastante tempo observara, no que concerne aos costumes, que é às vezes preciso seguir opiniões, as quais sabemos serem muito duvidosas, como se não admitissem dúvidas [...]; porém, por desejar então dedicar-me apenas à pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável. Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis presumir que não existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, por existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se referem às mais simples noções de Geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, achando que estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. 107

E, enfim, considerando que quaisquer pensamentos que nos ocorrem quando estamos acordados nos podem também ocorrer enquanto dormimos, sem que exista nenhum nesse caso que seja correto, decidi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais corretas do que as ilusões de meus sonhos. Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo em que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que essa verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que procurava. Mais tarde, ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse existido; compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo, e, também, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que esse nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é. Depois disso, considerei, o que era necessário a uma proposição para ser verdadeira e correta, pois, já encontrara uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E ao perceber que nada há no eu


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penso, logo existo, que me dê a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, concluí que poderia tomar como regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade de notar bem quais são as que concebemos distintamente. Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu duvidava e, que, por conseguinte meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o conhecer é perfeição maior que o duvidar, decidi procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e descobri, com evidência, que devia ser alguma natureza que fosse realmente mais perfeita. No que se refere aos pensamentos que eu formulava sobre muitas outras coisas fora de mim, como a respeito do céu, da Terra, da luz, do calor e de mil outras, não me era tão difícil saber de onde vinham, porque, não notando neles nada que me parecesse torná-los superiores a mim, podia julgar, que se fossem verdadeiros, seriam dependências de minha natureza, na medida em que esta possuía alguma perfeição; e senão o eram, que eu os formulava a partir do nada, ou seja, que existiam em mim pelo que eu possuía de falho. Mas não podia ocorrer o mesmo com a ideia de um ser mais perfeito do que o meu; pois fazê-la sair do nada era evidentemente impossível; e visto que não menos repulsiva a ideia de que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito, do que a de admitir que do nada se origina alguma coisa, eu não podia tampouco de mim próprio. De maneira que restava somente que tivesse colocada em mim por uma natureza que fosse de fato mais perfeita que a minha, e que possuísse todas as perfeições de que eu poderia ter alguma ideia, ou seja, para dizer numa única palavra, que fosse Deus. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 61-64.

John Locke, retratado por Gottfried Kneller. (1632-1704)

Ensaio acerca do entendimento humano (introdução) John Locke

1. Investigação do entendimento agradável e útil. Desde que o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis e dá-lhe toda vantagem e domínio que tem sobre eles, consiste certamente num tópico, ainda que por sua nobreza, merecedor do nosso trabalho de investigá-lo. O entendimento, como o olho que nos faz ver e perceber todas as outras coisas, não se observa a si mesmo; requer arte e esforço situá-lo à distância e fazê-lo seu próprio objeto. Quaisquer que sejam as dificuldades no caminho desta investigação, por mais que permaneçamos na escuridão sobre nós mesmos, estou seguro que toda a luz que possamos lançar sobre nossas mentes, todo conhecimento que possamos adquirir de nosso entendimento, não será apenas muito agradável, mas nos trará grande vantagem ao orientar nossos pensamentos na busca de outras coisas. 2. Desígnio. Sendo, portanto, meu propósito investigar a origem, certeza e extensão do conhecimento humano, juntamente com as bases e graus da crença, opinião e assentimento, não me ocuparei agora com o exame físico da mente nem me inquietarei em examinar em que consiste a sua essência; nem por quais movimentos de nossos espíritos ou alterações de nossos corpos chegamos a ter alguma sensação, mediante nossos órgãos, ou quaisquer ideias em 108


nossos entendimentos; e se em sua formação, algumas daquelas ideias ou todas dependem ou não da matéria. Embora tais especulações sejam curiosas e divertidas, rejeitá-las-ei por estarem fora do caminho no qual estou agora empenhado. Ao meu presente propósito será suficiente considerar as faculdades discernentes do homem, e como elas são empregadas sobre os objetos que lhe dizem respeito. E imaginarei que não terei divagado em pensamentos surgidos nessa ocasião se, mediante esse simples método histórico, puder dar algum relato, nossos entendimentos alcançam as noções das coisas que possuímos e podemos estabelecer algumas medidas de certeza e nosso conhecimento ou as bases dessas persuasões encontradas entre os homens, tão variados, diferentes e inteiramente contraditórias. E, ademais, certificado algum lugar ou outro com tal segurança e confiança para quem tome em conta as opiniões da humanidade, observa a sua posição e, ao mesmo tempo, considera o afeto e a devoção com os quais elas são enlaçadas, a resolução e a avidez por meio das quais elas serão mantidas, há talvez razão para suspeitar que não há de modo algum tal coisa como a verdade, ou que a humanidade não tem meios suficientes para alcançar dela um conhecimento certo. 3. Método. Vale a pena, portanto, pesquisar os limites entre a opinião e o conhecimento, e examinar por quais medidas devemos regular nosso assentimento e moderar nossas persuasões a respeito das coisas de que não temos conhecimento certo. Com vistas a isso, seguirei o seguinte método:

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Primeiro, investigarei a origem daquelas ideias, noções, ou qualquer outra coisa que lhe agrade denominar, que o homem observa e é consciente de que as tem em sua mente e o meio pelo qual o entendimento chega a ser delas provido. Segundo, tentarei mostrar que conhecimento e entendimento ele tem dessas ideias, e a certeza, evidência e extensão delas.

Terceiro, farei alguma investigação acerca da natureza e fundamentos da fé ou opinião; entendo isso como o assentimento que damos para qualquer proposição como verdadeira, ou dessas verdades, de que ainda não temos conhecimento certo. Teremos assim, as razões e graus de assentimento.

4. É útil saber a extensão de nossa compreensão. Se por essa investigação acerca da natureza do entendimento puder descobrir seus poderes, até onde penetram, para que as coisas estejam em algum grau ajustadas, e onde nos são deficientes, suponho que isso pode servir para persuadir a ocupada mente dos homens e usar mais cautela quando se envolve em coisas que excedem a sua compreensão, quando o assunto é muito extenso para suas forças e permanecer em silenciosa ignorância acerca dessas coisas que o exame revelou estarem fora do alcance de nossas capacidades. Não seríamos tão precipitados, devido à presunção de um conhecimento universal a ponto de levantarmos e aos outros com disputas sobre coisas para as quais nossos entendimentos não são adequados e das quais não podemos formar em nossas mentes nenhuma percepção clara e distinta, ou de que (como tem talvez acontecido com muita frequência) não temos de modo algum nenhuma noção. Se pudermos descobrir até onde o entendimento pode se estender, até onde suas faculdades podem alcançar a certeza, e em quais casos ele pode apenas julgar e adivinhar, saberemos como nos contentar com o que é alcançável por nós nessa situação. LOCKE, John. Locke. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 29-30. (Os pensadores).


Para estudar os textos:

Interdisciplinaridade

Arte

leia os verbetes referentes aos autores Descartes e Locke; anote no caderno todas as palavras que você desconhece e procure-as no dicionário; entenda os textos parágrafo por parágrafo, relendo-os se for necessário, para a compreensão integral do pensamento de cada autor; • se houver algum conceito ou trecho que lhe pareça particularmente difícil, peça ajuda a seu professor ou consulte um dicionário de Filosofia; • escolha o texto de que mais gostou e escreva um comentário de 5 linhas sobre ele. Na pág. 103 há uma imagem do filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin, para ilustrar as novas condições do trabalho no início do século XX. Um outro filme também mostra, em época mais recente, a situação dos operários: A classe operária vai ao paraíso, de Elio Petri, de 1971, que trata das condições de trabalho em uma fábrica italiana nos anos 1970 e a alienação imposta aos trabalhadores. O filme está disponível em sites da internet. Baseando-se nos trechos do texto Discurso do método, de René Descartes, no Ensaio acerca do entendimento humano, de John Locke (pág. 109), e no texto A ciência aplicada e o racionalismo técnico, na pág. 101, faça um paralelo com o assunto do filme. Euro International Film

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Cena do filme A classe operaria vai ao paraiso

No filme A classe operária vai ao paraíso, de 1971, de Elio Petri, fica exposta a crise e a distância entre a elite e a classe trabalhadora a partir da rotina de uma fábrica. A obra aborda também a alienação em que vivem os operários por causa da organização no trabalho.

No filme de Petri é narrada a trajetória de Lulu, um operário-padrão de uma fábrica, odiado pelos colegas porque, como é um excelente trabalhador, dita a produtividade para os outros, que se revoltam pelo aumento de trabalho e a baixa remuneração. Quando sofre um acidente e perde um dedo, Lulu começa a perceber melhor a realidade, a se humanizar, interagir com os colegas e até apoia uma greve liderada pelo sindicato dos trabalhadores. Ele é demitido e repensa sua vida, o consumismo que o envolve e a alienação a que está relegado com seus colegas. O filme mostra também a agitação estudantil do fim da década de 1960 e início dos anos 1970 e toda a discussão política e filosófica sobre tudo o que envolve a produção, os trabalhadores e a sociedade. A sétima arte discutiu em outras obras a situação dos trabalhadores. Filmes como Norma Rae (1979), Mimi, o metalúrgico (1972), A árvore dos tamancos (1978) e Eles não usam black-tie (1982), abordam, de diferentes maneiras, a vida sofrida de trabalhadores que, em muitos casos, se confrontam com injustiças. 110


Atividades Lanche filosófico

Não escreva n

o livro!

Interdisciplinaridade

Ciências Naturais

Leia o texto a seguir que, em linhas gerais, tem relação com o que foi abordado no capítulo, desde a discussão quanto ao que é científico, sobre a parábola dos pescadores, até as discussões sobre as verdades essenciais da vida e também no que se refere à educação. Isso porque a questão do meio ambiente está, desde sempre, diretamente ligada à qualidade de vida de todas as pessoas.

Século XX: a ecologização das sociedades Regis de Morais

[...] No século [XIX] tivemos predominância social de um segmento de euforia progressista e de primeira fúria produtivista da industrialização. Porém o século XX foi seriamente marcado por grandes decepções humanas com os resultados dos avanços tecnocientíficos; o número de críticos de tais avanços chegou mesmo a confundir a opinião pública, embora houvesse um número importante de autores a cantar as glórias e promessas dos progressos científicos e tecnológicos. Tudo isso anotamos para evidenciar que preocupações ambientais não são invenções do século recém-terminado. No entanto, uma análise objetiva nos torna claro o fato de que a ecologização das sociedades é um fenômeno que se desenvolve dos anos 1970 em diante. [...] Ora, no ano de 1962, uma obra causava – por sua real importância – grande impacto no mundo leitor. Era o livro de Rachel Carson intitulado Silent spring, que examinava o uso de pesticidas na agricultura, disto derivando todo o prejuízo que daí adviria para os ecossistemas e para a saúde humana. [...] Em 1973, acontece a primeira crise do petróleo; o mundo desperta para o fato de que os combustíveis fósseis têm sua vida contada, atirando-se resolutamente na direção da energia nuclear. E será o próprio combate à energia atômica que irá dando identidade mais nítida aos movimentos ecológicos. Antes, no ano de 1972, dois acontecimentos já tinham sido muito marcantes, o primeiro, em Estocolmo, a “Primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente”, da qual a proposta de educação ambiental sairia fortalecida. [...] No mesmo ano, o Massachusetts Institute of Technology elabora o relatório Meadows encomendado pelo Clube de Roma; tal relatório, talvez um tanto apocalíptico, submetido a comentário dos grandes especialistas de diversas áreas do saber, transformou-se em algo muito assustador na década de 1970 [...]. Hoje podemos dizer que as preocupações ecológicas fazem parte das principais pautas de conferências internacionais, [...] No Brasil, o ambientalismo em geral e a educação ecológica conquistaram bons espaços [...]. No presente momento, isto em todo o mundo, a temática ecológica é vista como nuclear e exigente de urgência. Todavia, no Brasil é ainda enorme o trabalho que se tem pela frente para a devida sensibilização dos meios educacionais, ainda demasiados submersos em tecnoburocracias reducionistas. [...] O cientista e pensador norte americano Ken Wilber, em Sexo, ecologia e espiritualidade, [escreve]: “Este é um mundo estranho. Ao que parece, há quinze bilhões de anos não existia, com precisão, nada em absoluto. E então, em menos de um átimo de segundo, o Universo material irrompeu na existência. 111


Mais estranho ainda é que a matéria física produzida não resultou ser meramente uma desordem aleatória e caótica, senão que se organizou de formas cada vez mais intrincadas e complexas, tão complexas que muitos milhões de anos depois algumas delas encontraram a forma de reproduzir-se e, assim, da matéria emergiu a vida. Ainda mais estranho: estas formas de vida não se contentaram aparentemente em reproduzir-se, mas começaram uma longa evolução que finalmente lhes permitiria representar-se, criar símbolos, conceitos, e assim da vida surgiu a mente. Esse processo evolutivo, de todo modo, parece haver sido impulsionado incrivelmente desde a matéria bruta até a vida e a mente. Mas o que é ainda muito mais estranho é que faz uns poucos anos, em um pequeno e indiferente planeta de uma estrela insignificante, a evolução tornou-se consciente de si mesma. E justo ao mesmo tempo, os mesmos mecanismos que haviam permitido que a evolução se fizesse consciente de si mesma estavam maquinando a sua própria destruição. E isto era o mais estranho de tudo”. MORAIS, Regis de. Educação, mídia e meio ambiente. Campinas: Alínea, 2004. p. 22-31.

Para complementar seus estudos, faça uma pesquisa sobre o tema Ecologia e também confeccione um mapa conceitual sobre os temas estudados. White e Gunstone [...] (1997) propõem uma sequência de etapas que auxiliam a construção de um mapa conceitual:

Mapa conceitual Mapa conceitual é uma representação gráfica, um esquema, no qual são estruturados conceitos e suas relações, tendo por objetivo, de forma geral, organizar e representar o conhecimento

1. Selecione um tópico (tema principal). 2. Escreva, cada um em um cartão, os conceitos principais que você conhece sobre o tópico selecionado. 3. Revise os cartões, separando aqueles conceitos que você não entendeu. Também coloque de lado aqueles que não estão relacionados com qualquer outro termo. Os cartões restantes são aqueles que serão usados na construção do mapa. 4. Organize os cartões de forma que os termos relacionados fiquem perto uns dos outros. 5. Cole os cartões em uma folha de papel tão logo você esteja satisfeito com o arranjo. Deixe um pequeno espaço para as linhas que você irá traçar. 6. Desenhe linhas entre os termos que você considera que estão relacionados. 7. Escreva sobre cada linha a natureza da relação entre os termos. 8. Se você deixou cartões separados, verifique se alguns deles ajustam-se ao mapa conceitual que você construiu. Se sim, assegure-se de adicionar as linhas e relações entre esses novos itens. (Disponível em: <http://penta.ufrgs.br/~luis/Ativ2/mapas_mara.html>. Acesso em: 28 nov. 2012. Adaptado.)

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Procure saber...

Earl D. Walker / Shutterstock

O meio ambiente está, cada vez mais, no centro das discussões. As pessoas comuns participam da conscientização quanto à ecologia ao reciclar e economizar energia e água, entre outras atitudes fundamentais para o desenvolvimento sem prejuízo da vida em comunidade. A sustentabilidade é algo que até rende dividendos para as empresas, quando elas aderem ao programa de troca de carbono, economizando energia elétrica e priorizando o crescimento sustentável. Uma indústria brasileira de qualquer setor que implemente um projeto que realmente reduz a emissão de gases causadores do efeito estufa no processo de produção pode obter financiamento de corporações sediadas nos países mais industrializados oferecendo, como contrapartida, os créditos de carbono gerados internamente por meio desse processo.

Imagem de milho geneticamente modificado.

O potencial desse mercado pode se estender a projetos para a geração de energias renováveis – solar, eólica e de biomassa – ou a redução do consumo de combustíveis poluentes com a melhoria da eficiência energética em grandes fábricas. Sabe-se que nem sempre os cientistas têm tido ética para conhecer, explorar e produzir. Historicamente, alguns deles têm exposto populações inteiras a perigos e ambientes físicos a riscos irreparáveis e a desastres catastróficos. Assim, há problemas de ordem moral a serem discutidos no campo da Ciência. Reúna-se com dois ou três colegas e realizem uma pesquisa, em livros especializados ou na internet, procurando responder a duas questões: 1) Que responsabilidade moral se deve ter no desenvolvimento de pesquisas científicas? 2) Em que ponto estão os limites morais da Ciência e da pesquisa? Os grupos formados na turma devem se dividir de forma que fiquem responsáveis por pesquisar áreas diferentes, como: • genética; • ciência e as armas de guerra; • ciência e a Física Nuclear. Depois disso, exponham o que descobriram para o restante da classe.

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Capítulo

5

Certo e errado, bem e mal existem? Arquivo Folha de S.Paulo

Para começar

Guimarães Rosa, em Minas Gerais, no local onde atualmente fica o Parque Nacional Grande Sertão ­Veredas, nome que o homenageia, assim como a sua obra. Rosa é um dos nossos maiores escritores, que mostrou o sertão árido e traçou com detalhes poéticos o perfil do povo brasileiro.

O caminho estreito para a coisa certa Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma de um caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e, essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e

saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto: mas, fora dessa consequência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o Beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado.

GUIMARÃES ROSA, João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

O trecho anterior foi extraído do livro Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, um marco na literatura brasileira, que tem um estilo que reinventa com muito experimentalismo a linguagem regionalista. Nesta obra-prima, a palavra ultrapassa o seu limite, como se valesse por si mesma, acima do que o que está sendo narrado. No material destacado, o personagem Riobaldo discorre, com um linguajar rico e característico, sobre os rumos da vida.


Ética e moral Não conseguimos ficar indiferentes a certas ações, gestos ou atitudes. Um homem forte agredindo um mais frágil, por exemplo. Diante de uma cena como essa ficamos chocados, revoltados, indignados. Qual seria a razão de termos esses sentimentos? Por que nos orgulhamos de fazer algumas coisas e nos envergonhamos de ter feito outras? É possível dizer que algo é certo ou errado? Pode-se sempre se dizer com facilidade o que é bem e o mal? Ou a classificação de bem e mal depende de um ponto de vista, de uma situação, do contexto cultural de uma sociedade? Essas questões fazem parte do plano da ética. Mas, antes de procurarmos respondê-las, temos de definir alguns termos. Ao longo do capítulo, vamos tratar de ações e valores morais e, ao mesmo tempo, de ética. Moral e ética são termos utilizados tanto pelos autores de que trataremos como em nosso dia a dia. Podemos dizer que uma pessoa está agindo sem ética, ou que seu comportamento carece de moralidade. Mas ética e moral são a mesma coisa? Pesquisando a etimologia dessas palavras, elas realmente têm o mesmo significado: “moral” se originou do latim mores, e “ética”, do grego ethos, ambos os termos significam “hábito”, “costume”. Assim, alguns pensadores usam-nas como sinônimos, enquanto outros fazem distinção entre elas. Para os que diferenciam os dois conceitos, a moral é composta por normas que pretendem regular as ações concretas do ser humano; enquanto a ética é o ramo da Filosofia que estuda e reflete acerca dessas normas morais, o fundamento das ações morais, a necessidade dos valores, quais valores e regras são importantes. Para esses, a ética seria a reflexão teórica, enquanto a moral seria a ação concreta. Nunca houve, em toda a História, uma sociedade, uma comunidade ou um grupo que não tivesse algum tipo de código moral. Onde há duas pessoas, é preciso haver princípios, regras ou acordos que permitam a convivência entre elas. Entretanto, quem estabelece essas regras? São estabelecidas entre as partes ou impostas pelo mais forte? Ou será que não são simplesmente regras, mas princípios imanentes do ser humano, naturais, dados na sua consciência? É o que examinaremos, invocando as mais diversas posições filosóficas. Para entendermos melhor o que é uma ação moral, pensemos que há vários tipos de ações humanas: há as mecânicas, como dormir, andar, digerir ou respirar, que ocorrem de forma natural e necessária; e há ações que envolvem escolha (O que devo fazer? Quais são as consequências daquilo que faço? Minha ação é boa ou má? Qual decisão é a melhor?), sobre as quais temos liberdade e responsabilidade. Essas últimas são as ações morais. E uma questão problemática tentar definir se têm origem instintiva, emocional, racional ou social – ao longo da História, muitos pensadores se preocuparam com esse tema. 115


The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA

Sócrates e Jesus

A morte de Sócrates, de Jacques Louis David, 1787. A pintura revela a atitude do pensador com a certeza de que sua morte será vista como um motivo de vergonha para Atenas. Na imagem, ele aparece cercado por seus amigos, discípulos e sua esposa, Xantipa (à esquerda), que é impedida de ver a cena.

Há pessoas que propõem ideias, porém nunca as vivenciam. Você já deve ter presenciado indivíduos que fazem discursos fervorosos, mas nunca os colocam em prática. Há filósofos, por exemplo, que escrevem, comunicam suas ideias, mas, no plano pragmático, retraem-se, pouco realizam, embora suas doutrinas possam influenciar muito a História. Há aqueles, no entanto, que fazem de sua existência o reflexo de suas convicções. Algumas personalidades marcaram o pensamento moral ocidental, não só por suas ideias revolucionárias, mas, sobretudo, por sua coragem para colocá-las em prática publicamente. Muitos transmitiram seus ensinamentos apenas oralmente a discípulos, e estes, posteriormente, narraram suas vidas e suas ideias. Cada um, em sua época e em seu contexto, representou posturas existenciais muito originais e instigantes, a ponto de não podermos discutir qualquer coisa a respeito de ética sem mencioná-los, pois marcaram a consciência ocidental. Como já vimos, Sócrates se contrapôs aos sofistas e buscou por uma verdade moral. Com seu imperativo “Conhece-te a ti mesmo”, procurou fazer com seus interlocutores o processo “maiêutico” ou parto – no caso, um parto espiritual –, em que pretendia trazer à luz a divindade escondida da alma humana. Esse método de filosofar socrático (ao mesmo tempo um método pedagógico) pressupõe um conceito básico: o de que todo ser humano tem algo de divino, cujo despertar é possível e desejável para que se alcance a felicidade. Então, a felicidade depende justamente disso – de o ser humano atingir em si mesmo essa parte essencial, profunda, e trazê-la à tona da consciência, vivenciá-la em seus valores de justiça, piedade, coragem e re116


Nicola, Ubado. Antologia Ilustrada da Filosofia

tidão. A única e possível felicidade é a do ser realizado moralmente, a do ser justo, dentro de seus padrões morais, de sua definição de justiça, com a consciência tranquila. A atitude de Sócrates era coerente em todos os sentidos; ele, por exemplo, dizia que os bens terrenos eram passageiros e não os buscava: ao contrário dos sofistas, que cobravam altas somas por seu ensino, ele nada cobrava, pois considerava seu filosofar uma espécie de missão, inspirada pelo seu daimon (uma voz que o guiava, não se sabe se um deus, um espírito, a voz Muitas vezes, Sócrates da ­consciência ou uma simbologia – essa é descreveu a feiura do seu corpo, não para se lamenuma das questões controvertidas entre os tar, mas para demonstrar historiadores da Filosofia). Coerente tama independência do espírito sobre o corpo. bém foi sua atitude diante da morte, pois, condenado pelos onze magistrados de Atenas a beber cicuta por praticar seu ensino, não aceitou a fuga nem renegou seus princípios, acolhendo a sentença com serenidade. Sócrates foi amado e aclamado por seus discípulos e visto como uma pessoa de virtudes excepcionais – coragem, retidão, lealdade, desprendimento dos próprios interesses, dedicação aos alunos, aos amigos e à família. Mas sua contribuição mais profunda do ponto de vista filosófico foi o fato de indicar, com sua proposta, confiança no ser humano como capaz de ser bom e nobre, bastando para isso um despertar da consciência moral, um ato pedagógico amoroso e racional de um mestre, para ajudá-lo a encontrar sua divindade interior. Essa pressuposição socrática parte da própria constatação de ter encontrado em si mesmo essa consciência e, ao vivenciá-la, experimentar paz de espírito e força moral. Ao mesmo tempo, trata-se de uma pressuposição altamente otimista e democrática em relação a todos os seres humanos, pois, segundo ele, todos podem, se quiserem e se forem para isso educados, alcançar esse despertar, que passa necessariamente pela razão, que é universal. No contexto da religião judaica, havia a oposição à moral formalista dos fariseus, sacerdotes judeus que ditavam regras para o comportamento exterior, mas, segundo alguns, não se purificavam por dentro. Com isso, usava-se como exemplo uma moralidade que vem de dentro, de um renascer do ser humano, no reconhecimento de sua filiação divina. Seus ensinamentos também revelavam confiança na capacidade do ser humano de transcender a si mesmo e atingir a perfeição moral, como se percebe em algumas frases: “O reino de Deus está em vós”, “Sede perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito”. Dentro dessa concepção, predominavam os princípios do amor ao próximo, do perdão e da fraternidade entre todas as criaturas. 117


Le Vetrina delle Civilita: Gil Antichi Greci, Itália

É preciso considerar o que era a moral do mundo greco-romano e a moral judaica para entendermos a revolução que tanto Sócrates quanto a religiosidade cristã promoveram em seus respectivos tempos. Apesar das diferenças entre um e outro, há traços comuns em seus posicionamentos existenciais.

Ilustração retratando escravas e suas donas na Grécia antiga.

O mundo greco-romano era essencialmente baseado na desigualdade: cidadãos e bárbaros, homens e mulheres, senhores e escravos, adultos e crianças eram seres humanos de categorias diferentes. Os bárbaros, os escravos, as mulheres e as crianças eram considerados inferiores. Não havia um conceito de igualdade. Entre os romanos, por exemplo, o pai de família (pater) tinha o direito legal de matar os filhos e a própria esposa se estes desobedecessem à sua autoridade. Entre os judeus, imperava a noção de que eles eram o povo eleito e todos os outros povos, os gentios, eram “impuros”. Além disso, tanto entre pagãos quanto entre judeus, a regra era a do “olho por olho, dente por dente”: a vingança, a punição sangrenta para lavar a honra eram considerados atos de coragem necessária, e o perdão era visto como fraqueza e covardia. Nessa fase histórica, a sociedade grega era dividida entre: – cidadãos (homens apenas, pois mulheres e crianças não eram parte do grupo social dos cidadãos). – metecos – estrangeiros que viviam no país. – escravos – a maior parte da população da cidade, considerados propriedade dos seus senhores. Sócrates, porém, coloca abaixo a moral grega em vários momentos: no livro Menon, de Platão, trava diálogo sobre Geometria com um escravo; em uma passagem de O banquete, invoca uma mulher, a sacerdotisa Diotima, dizendo que aprendera com ela o que era o amor; e afirma que era preferível sofrer uma injustiça a cometê-la. 118


Capele Brancacci, Roma, Itália

A expulsão de Adão e Eva do Éden, de Mosaccio, 1427, representando uma das consequências do “pecado original”, citado no Antigo Testamento. A expressão pecado original, um dogma cristão, uma referência à inata imperfeição humana, porque, segundo a Bíblia, mesmo advertidos por Deus que não deveriam provar do fruto proibido, Adão e Eva, instigados pela serpente, comeram a maçã e foram expulsos do paraíso. [...]

O cristianismo, com a figura de Jesus também subverte a moral de sua época, judaica e do Império Romano, exaltando o perdão, quando ele aconselha a amar os próprios inimigos, quando conversa igualmente com mulheres, crianças, escravos ou senhores, romanos ou judeus. Com Sócrates, e depois vivenciada e aprofundada por pelo cristianismo, nascia no Ocidente o que se pode chamar de concepção clássica da ética, presente em Platão, Aristóteles, nos neoplatônicos, nos filósofos cristãos e em tantos outros. Essa concepção pode ser resumida da seguinte forma: o ser humano tem uma natureza moral e a realização das virtudes é o cumprimento dessa natureza; ao cumprir essa natureza, alcança-se a felicidade. Assim, o comportamento ético não é o cumprimento de regras externas, mas o despertar de princípios imanentes nos seres humanos. Isso quer dizer que as regras morais não são externas ao ser humano, não lhe são impostas de fora, mas são uma consequência direta de sua própria natureza. É verdade que, na teologia católica e depois na protestante (que já desponta nas epístolas de Paulo de Tarso), a ideia do “pecado original” vem a se contrapor a essa concepção, que sempre será contraditória: temos uma natureza moral, propensa ao bem, porque acredita-se que os homens são herdeiros de Deus, mas têm uma natureza manchada pelo pecado, porque também se analisa que existe a herança de Adão. Mas mesmo em Agostinho, um dos pais da Igreja católica e forte defensor deste dogma, que tanto enfatizou a herança do pecado, há a ideia mestra da ética clássica – em A verdadeira religião, afirma: “Não é da natureza da alma o vício. É, sim, contra a sua natureza”. E em São Tomás de Aquino, que também aceita plenamente o dogma do pecado original, permanece o forte apelo da ética aristotélica, herdeira de Sócrates que apregoava: “homem, torna-te aquilo que és”.

Destaque As revoluções socrática e cristã Muitos estudiosos da história das ideias no Ocidente analisaram as respectivas contribuições de Sócrates e do cristianismo:

Sócrates estava, de fato, minando a moralidade da repressão social – aquela moralidade de obediência à autoridade e de conformidade aos costumes, que 119


tem unificado grupos humanos de qualquer tamanho, desde a família até a nação, e permeado toda a história da raça humana. Ou melhor, ele estava indo além da moralidade de repressão e proibição para um tipo diferente de moralidade, da mesma forma que o sermão da montanha foi além das leis proclamadas pelo Sinai. O princípio desta nova moral encontra-se na própria alma. Ela pode ser chamada de moralidade da inspiração para a perfeição espiritual. Se a perfeição espiritual for considerada como sendo a finalidade da vida e o segredo da felicidade, e se toda alma humana puder ver sua própria bondade, então a ação não pode ser regulada por nenhuma imposição externa de um código de regras. Se tais regras são válidas para qualquer caso real é uma questão que pode ser decidida somente pelo veredicto sincero e imparcial do sujeito. CORNFORD, Francis MacDonald. Antes e depois de Sócrates. São Paulo: Princípio,1994. p. 40.

O advento do cristianismo operou uma profunda revolução cultural no mundo antigo, talvez a mais profunda que o mundo ocidental tenha conhecido na sua história. Uma revolução da mentalidade, antes mesmo que da cultura e das instituições sociais e, depois, políticas também. Trata-se da afirmação de um novo “tipo” de homem (igualitário, solidário, caracterizado pela virtude da humildade, do amor universal, da dedicação pessoal, como ainda pela castidade e pela pobreza), que do âmbito religioso vem modelar toda a visão da sociedade e também os comportamentos coletivos, reinventando a família (baseada no amor e não apenas e sobretudo na autoridade e no domínio), o mundo do trabalho (abolindo qualquer desprezo pelos trabalhos “baixos”, manuais, e colocando num plano de colaboração recíproca os patrões e os escravos, os serviçais, os empregadores e os dependentes) e o da política que deve inspirar-se nos valores ético-sociais de igualdade e solidariedade), devendo ver o soberano agir como um pai e um guia do povo, para dar vida a uma res publica christiana. [...] Tudo isso vem estabelecer uma nítida ruptura em relação ao mundo antigo, sua mentalidade, sua organização social, sua política e sua cultura. Novos valores – que são geralmente o inverso dos clássicos: a humildade diante do poder, a paz diante da força etc. – se difundem e se colocam no centro de um novo modelo antropológico, cultural e social; são, propriamente, os valores negativos do mundo antigo que são colocados no centro: a fraqueza, a tolerância, a compaixão. Na sociedade valem sobretudo os vínculos espirituais entre iguais e não as relações hierárquicas, assimétricas, de domínio e de imposição ou as identidades étnicas e locais, superadas aqui na universalidade da mensagem. Até mesmo a relação entre classes e grupos sociais sofre uma revolução mediante o apelo à igualdade e à solidariedade. CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999. p.121-122.

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A face oriental A felicidade segundo o budismo

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Dalai Lama é o líder espiritual dos budistas e vive exilado em Dha-ramsala, na Índia, desde 1959, quando a China invadiu o Tibet e ele teve de se refugiar com milhares de seguidores no país vizinho.

Um dos artistas que pensou profundamente e atuou em relação a tornar o mundo melhor, que pedia: “give peace a chance” (dê uma chance à paz), foi John Lennon. Na música Imagine ele sonha com um mundo sem fronteiras, sem céu, sem inferno nem religião também. Um mundo sem fome, ganância nem nada pelo que lutar, em que as pessoas viveriam em paz. Lennon foi um pacifista, ativista político, um gênio na música que, mesmo assassinado de forma brutal, deixou um legado de busca pela ética e solidariedade no convívio social.

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O que você acha necessário para ser feliz? Possuir bens materiais? Realizar prazeres do corpo? Ou se desprender de bens e se abster de prazeres? Nossa sociedade, hoje, dificilmente aceitaria a ideia de que a felicidade tenha alguma relação com renúncia. Isso porque, do ponto de vista cultural, entendemos como feliz o indivíduo que cumpre um ideal de vida, realiza conquistas e tem poder aquisitivo para adquirir o bem que desejar, e não aquele que se abstém de ter tudo isso. Mas nem todas as sociedades pensam assim. Os budistas, por exemplo, têm uma perspectiva diferente. O Dalai Lama, líder do budismo tibetano, mundialmente conhecido por sua luta pela paz mundial e por seu apelo aos direitos humanos, diz que no budismo o principal objetivo da vida é perseguir a felicidade, independentemente de qualquer religião. Mas ele alerta que muitas pessoas no mundo atual têm fixado a felicidade nos prazeres do corpo ou nos prazeres do poder. Quem busca a felicidade nessas coisas jamais poderá alcançá-la, pois esse prazer é momentâneo. Ora posso ter o poder, ora posso perdê-lo. Assim, quando tenho o poder que causa prazer, sou feliz; quando o perco, sou infeliz. O mesmo pode acontecer com os outros prazeres. Para atingir a felicidade, segundo o Dalai Lama, não podemos simplesmente acatar os costumes e hábitos do mundo contemporâneo, que coloca nessas coisas o objetivo da vida. Em vez disso, atingimos a felicidade duradoura quando chegamos ao estágio de libertação do sofrimento. A verdadeira felicidade está relacionada a um estado íntimo da mente e do coração. Os budistas consideram que para atingirmos o estado de iluminação moral também precisamos renunciar a algumas ações não morais: 1) renunciar à violência, exercendo bondade e compaixão com todos os seres viventes; 2) renunciar a qualquer espécie de roubo; 3) renunciar à calúnia e a qualquer atitude que crie a discórdia; em vez disso, buscar reconciliar e aproximar os que estão em desacordo; 4) renunciar à dureza de coração ao julgar as coisas e falar com amor e doçura; 5) renunciar às palavras frívolas; 6) pensar e falar com bom senso e discernimento. Diversas outras religiões e organizações sociais também contribuem, cada qual à sua maneira, para reduzir a miséria e o sofrimento no mundo.

A ética das virtudes

Interdisciplinaridade

Arte

Dificilmente associamos virtude moral e política. Isso porque, em geral, aceitamos, de forma equivocada, a ideia de que a política é uma atividade reservada apenas aos políticos (vereadores, prefeitos, governadores, deputados, senadores etc.). É comum associarmos política ao uso imoral do dinheiro público.


No entanto, entre os gregos, e em especial no pensamento de Aristóteles, o homem só se torna efetivamente moral no domínio da participação política, a qual diz respeito a todo e qualquer cidadão. Aristóteles herdou de Sócrates e Platão a ideia de uma natureza moral do ser humano. Entretanto, inverteu o processo maiêutico de Sócrates, por meio do qual a pessoa se torna consciente de sua divindade interior e passa a agir com discernimento do bem. Para Aristóteles, a virtude é um hábito que se forma a partir da ação. É agindo virtuosamente que nos tornamos virtuosos, isso porque temos a potencialidade de sermos virtuosos. Em Aristóteles, em Platão e em todo o pensamento grego em geral, o agir virtuosamente está em conexão com o ser político que todo ser humano é: é na pólis, na comunidade política, que o indivíduo exercita suas virtudes e pode torná-las úteis à sociedade. Ao contrário, portanto, de nossa sociedade atual – em que se afirma e se vê que a política está dissociada da ética –, para Aristóteles uma depende da outra. Diz Aristóteles em Ética a Nicômaco, obra que escreveu para seu filho:

Museu de Belas Artes de Sevilha, Espanha

[...] em relação a todas as faculdades que nos vêm por natureza recebemos primeiro a potencialidade, e, somente mais tarde, exibimos a atividade (isto é claro no caso dos sentidos, pois não foi por ver repetidamente ou repetidamente ouvir que adquirimos esses sentidos; ao contrário, já os tínhamos antes de começar a usufruí-los, e não passamos a tê-los por usufruí-los); quanto às várias formas de excelência moral, todavia, adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado, tal como fazemos com as artes. As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo – por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente. Essa asserção é confirmada pelo que acontece nas cidades, pois os legisladores formam os cidadãos habituando-os a fazerem o bem; esta é a intenção de todos os legisladores; os que não a põem corretamente em prática falham em seu objetivo, e é sob este aspecto que a boa constituição difere da má. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UnB, 1999.

A trilha de Platão, de Aristóteles e, depois, de Tomás de Aquino, sugere que existem quatro virtudes essenciais (chamadas posteriormente de cardeais) que o ser humano precisa atingir para realizar-se moralmente:

O Triunfo de São Tomás de Aquino, de Francisco de Zurbarán, 1631.

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a justiça – que é dar a cada um o que é devido; a temperança – que é a moderação dos apetites (não comer demais, não beber em excesso, por exemplo); • a coragem ou fortaleza – que é a capacidade de enfrentar os riscos e perigos controlando o medo; • a prudência – que é o discernimento do justo e do injusto, do bem e do mal. Os cristãos acrescentarão as chamadas “virtudes teologais”, que são as três que aparecem na epístola aos Coríntios do apóstolo Paulo: a fé, a esperança e a caridade. (ver capítulo 12) • •

Destaque A prudência, segundo São Tomás de Aquino Para Luiz Jean Lauand, um dos maiores especialistas em São Tomás de Aquino no Brasil, o sentido antigo e real da palavra “prudência” não é o mesmo que conhecemos hoje (a cautela ou ação calculada e até calculista). Segundo Lauand, “a prudentia é a virtude da inteligência, mas da inteligência do concreto: a prudentia não é a inteligência que versa sobre teoremas ou princípios abstratos ou genéricos. Ela olha para ‘o tabuleiro de xadrez’ da situação presente, sobre o qual se dão nossas decisões concretas, e sabe discernir o ‘lance’ certo, moralmente bom. E o critério para esse discernimento do bem é a realidade!”. Assim explica o próprio Tomás de Aquino:

Questão 47, artigo 7 – É próprio da prudência encontrar o meio das virtudes morais. O fim de qualquer virtude moral é precisamente o de configurar-se pela reta razão e, assim, a temperança busca que o homem não se afaste da razão por causa das concupiscências; já a fortaleza busca o não afastamento do reto juízo por ação do medo ou da audácia. E esse fim é estabelecido para o homem pela razão natural, que dita ao homem agir sempre de acordo com ela. Mas determinar o modo pelo qual, em cada caso, se atinja esse meio da razão, isto é o que compete à prudência. […] Prudência [...] é a reta razão aplicada ao agir. AQUINO, Tomás de. A prudência: a virtude da decisão certa. Trad. Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.12.

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Galleria dell’Academia, Veneza, Itália

A ética de Espinosa

A tempestade, de Aldo Giorgini, 1508. Ao fundo da pintura, uma tormenta se forma no horizonte. No passado, a natureza era vista mais como mistério do que como refúgio de paz.

AFP

Um dos livros mais célebres da Filosofia moral é o de Espinosa: Ética. As raízes das questões éticas do filósofo se encontram na sua concepção de Deus e de natureza humana. O maior problema do qual esse filósofo se ocupou foi Deus e a substância, tanto que inicia Ética com a questão do ser e da divindade. Nessa obra, Espinosa identifica Deus com a natureza; a natureza é um modo de Deus e é determinada por Ele. Nada pode ser concebido sem Deus, e o próprio ser humano é um ser natural e determinado por Ele. Na estrutura básica desse ser humano estão os desejos e as paixões como forças naturais. Esses não são sentimentos negativos, não nascem de más tendências ou de alguma espécie de fraqueza; pelo contrário, são capacidades e potências da natureza humana. Para Espinosa, as noções tradicionais da ética, relacionadas ao “bem” e ao “mal”, ao “vício” e à “virtude”, falharam inteiramente na tentativa de categorizar a moralidade humana por não compreenderem a verdadeira natureza das paixões. O principal erro dos sistemas éticos foi o de ver os desejos e as paixões como negativos, não lhes atribuindo o papel essencial que eles têm nas ações morais humanas. Segundo o filósofo, o instinto humano mais essencial é o da autopreservação, fundamento único da virtude. Ao sustentar essa tese, estava propondo um novo tipo de moralidade humana, em declarado desacordo e crítica aos vários sistemas que viam as paixões humanas como fonte de imoralidade. O ser humano quer preservar seu ser eternamente e sua função é se tornar consciente desse desejo, que se expressa na mente humana como vontade e, no corpo, como apetite. Desse desejo básico brotam todas as outras paixões. Torna-se clara a mensagem de Espinosa: existe um egoísmo natural e autoconservador no ser humano, que não é contrário à razão. Para o filósofo, é natural que a razão permita que cada um ame a si mesmo e procure o que lhe for melhor. O fundamento do “bem” e do “mal” é o instinto de autopreservação. Nenhuma realidade natural é imperfeita ou má, pois toda realidade natural é Deus. Na verdade, uma coisa é boa quando nos leva ao conhecimento do que é útil para nossa existência e é má quando nos impede de saber o que é útil. O grande mal, na concepção de Espinosa, é que os sistemas morais têm se baseado na fraqueza humana e ensinado ao ser humano a ser o que ele não é. Isso porque, para o filósofo, a virtude não tem base no desprendimento, mas no manter-se a si mesmo. Os verdadeiros e autênticos valores são somente os que elevam o ser humano, ou seja, aqueles que o tornam potente. Espinosa, prenunciando Nietzsche, critica os sistemas baseados na humildade, pois estão calcados na fraqueza humana. Espinosa centrou quase toda a atenção de sua obra Ética nos valores que elevam

Retrato de Espinosa.

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a capacidade e o poder da humanidade. E o que verdadeiramente eleva o ser humano? Segundo ele, é o respeito pela sua dignidade. Espinosa também elabora uma crítica ao ódio e às coisas que rebaixam a dignidade. As relações humanas precisam gerar o amor que extingue o ódio e o desprezo mútuo. Pode parecer um paradoxo o fato de ele afirmar, por um lado, que o homem virtuoso busca o útil a si mesmo e, por outro lado, que o amor deve vencer o desprezo de uma pessoa pela outra. Mas o fato de o ser humano querer se autopreservar não significava para Espinosa anulação do outro ser humano, ele não defende um egoísmo agressivo em relação ao outro (e, nesse ponto, como veremos, está em desacordo com Nietzsche). A chave para entender Espinosa é o papel que a razão exerce em sua teoria. Ele atribui à razão uma função essencial, não como fonte de moralidade, mas como guia na busca da virtude. Quando os seres humanos seguem a sua razão, chegam ao que é útil para si e, ao mesmo tempo, ao que é útil para todos os seres humanos. O que é útil a um indivíduo é útil a todos os outros, pois todos são seres naturais, possuindo a mesma natureza e as mesmas necessidades. Por natureza, todos os humanos se destinam ao bem. Ele diz que, quando um homem quer algo de bom para si, quer necessariamente para os outros. As paixões são entendidas, em Espinosa, como forças propulsoras, que elevam o ser humano. A razão precisa da paixão e vice e versa; no entanto, as paixões são péssimas guias, e devem ser guiadas pela razão. O objetivo é aprender a governar o próprio eu para vencer o desejo desinformado e se tornar virtuoso. A liberdade humana está justamente em aprender a governar os instintos naturais, conhecê-los e ter uma visão clara. Assim, o ser humano reconhece o curso natural das coisas. Espinosa reconhece que a humanidade não tem liberdade para determinar as suas paixões, que são determinadas pela natureza, mas tem a capacidade de compreendê-las, controlá-las e guiá-las. Por conseguinte, o conhecimento é fundamental, porque confere liberdade às pessoas. O conhecimento devidamente guiado nos levará ao conhecimento da substância infinita da qual fazemos parte – Deus ou a natureza –, e assim reconheceremos a necessidade do curso natural das coisas. Nosso maior bem é reconhecer nossa união com a natureza. Essa visão é o ponto máximo da ética para Espinosa, que ele chama de “amor intelectual” a Deus.

A moral do dever em Kant Será que moralidade tem algo a ver com liberdade? Todos nós temos um corpo e, querendo ou não, estamos submetidos às leis da natureza. Nesse sentido, não somos inteiramente livres. Mas será que não temos nenhum poder de escolha? Será que nossas ações já estão previamente determinadas por algo ou alguém? E o prazer? Acaso o ser moral sempre 125


busca aquilo que lhe dá prazer? Vamos conhecer o que Immanuel Kant pensava sobre esses dilemas morais. Ao reduzir o alcance da razão para chegar ao ser das coisas, como vimos anteriormente, Kant preocupou-se em formular uma ética, pois havia abalado fundamentos tradicionais: Deus e a alma. Sua questão fundamental era: O que devo fazer do ponto de vista da ação moral? E seu objetivo principal foi retirar a moral de especulações vazias. No livro Fundamentos da metafísica dos costumes, Kant se defronta de forma sistemática com esses problemas. em Crítica da razão prática e Metafísica dos costumes, o filósofo procura entender em que consiste a aplicação de princípios morais. Logo de início, Kant mostra que um dos pilares da ética é a razão humana. Com isso, o filósofo está se opondo frontalmente ao pensamento de Rousseau de que a moral é inata no coração e na consciência. Kant não aceita a ideia de bondade natural de Rousseau, que remetia àquela concepção de Sócrates e até do cristianismo. No entanto, depois de ter proposto os limites da razão pura (a que não tem interferência da experiência, conforme vimos no capítulo 4), ele fala de uma razão prática à qual pertencem as questões que envolvem a ética. Kant chamava de razão prática o raciocínio que procura chegar a uma conclusão sobre o que fazer, qual a melhor forma de agir, além de como validar uma ação ética (semelhante à prudência abordada por Tomás de Aquino). O filósofo afirmava que, por natureza, os seres humanos são egoístas, agressivos, ambiciosos, desejosos de prazeres insaciáveis, isso porque somos seres naturais, feitos de impulsos e desejos. Mas, para ele, essas paixões não eram positivas como em Espinosa. O único caminho para a ética seria, pois, a razão. Marcado pelo pensamento protestante do pecado original, embora afastando sua filosofia do dogmatismo religioso, Kant preserva conceitos dessa teologia. Ele se refere assim a um “mal radical”, no sentido de um “mal enraizado” no ser humano. Rousseau, cujas obras influenciaram Kant, já havia se contraposto a toda e qualquer herança do rígido protestantismo calvinista, encarando o homem como um ser naturalmente bom – em Emílio, anuncia que “Tudo é bom, saindo das mãos do Autor das coisas, tudo degenera nas mãos do ser humano”. Para Kant, o outro fundamento da ética é o fato de que, no campo da moralidade, somos seres livres. A razão nos garante a liberdade, pois se o ser humano fosse um ser apenas natural ele seria produto da natureza, determinado pelas leis naturais. É, pois, a capacidade de raciocinar que o diferencia do natural. No campo da ação moral, o ser humano não está submetido de forma determinada às leis da natureza, graças à sua razão, que lhe possibilita escolher e escapar ao determinismo. A razão garante a liberdade necessária para a ação ética. Essa ideia é contrária a Espinosa, que acreditava que agir eticamente era reconhecer um determinismo natural em nós. Kant, ao contrário, acreditava que toda ética deve ser autônoma, no sentido de ser uma lei ditada pela consciência. É a consciência racional e 126


Gravura do filósofo alemão Immanuel Kant.

Coleção particular

Coleção Roger-Viollet

livre do ser humano que determina como ele deve agir, e para uma ação ser moral, nada deve coagi-lo externamente. Mas que tipo de lei a razão pode nos impor? O filósofo centrou sua resposta em um antagonismo ético. Primeiro propõe a seguinte questão: A ação moral humana deve se basear no prazer ou no dever? E responde afirmando que o único móvel da ação moral é o dever. A moralidade humana, para ser segura, deve ter um caráter de dever, não podendo ser baseada em nenhuma espécie de prazer ou inclinação, pois assim permaneceria fora do alcance de todos os seres humanos, quando uns podem ter prazer e outros, não. O mesmo se dá com as inclinações: o sentimento de amizade, por exemplo, poderia me levar a ajudar um amigo, mas o sentimento de ódio me impediria de ajudar um inimigo necessitado. Ao contrário das inclinações e do prazer, o respeito ao dever é que pode se tornar universal. O dever tem um fundamento racional e o prazer tem um fundamento emocional. A vontade e o querer racional sustentam o dever moral. Devemos agir de forma correta, porque sabemos que é nosso dever agir dessa forma.

Cárcere imaginário, de Giovanni Battista Piranesi, 1761. O conceito de limite e a metáfora jurídica de Kant permitem uma comparação com a obra acima, de Piranesi, seu contemporâneo.

Kant acredita que a vontade humana pode estar sujeita a más tendências, podendo desviar o ser humano de seus objetivos e propósitos; assim, é preciso que a consciência imponha regras de conduta de caráter imperativo, absoluto, categórico. A razão deve estabelecer princípios absolutos e incondicionais a que devemos obedecer. Os princípios de que o filósofo fala são leis universais que devem ser aceitas por seres racionais. A moral é um sistema de imperativos categóricos: mandamentos que levam a uma ação moralmente correta. Assim, Kant dizia que existe um crivo para as ações éticas, a fim de julgar sua validade: “Age de modo que sua ação possa servir a todos os seres 127


humanos, que sua ação possa ser considerada uma norma universal”. Esse seria o princípio supremo da ética kantiana. Devemos agir como se nossa ação não servisse apenas para nós, mas para toda a humanidade. Podemos dar, como exemplo dessa concepção, a máxima cristã: “Faça aos outros o que gostaria que fizessem a ti”; ou mesmo um conselho como “Nunca se deve matar alguém” – tais afirmativas passam pelos critérios estabelecidos por Kant, e podem ser válidas para todos os seres humanos. Frases como “Enriqueça explorando os outros” e “Roube para obter tudo o que deseja” são contrárias a essa concepção, pois não são universalizáveis e podem gerar o caos. Essa moral kantiana está ligada à sua concepção do “mal radical” presente no ser humano, porque, se para Sócrates ou Rousseau, por exemplo, a razão pode exercer um papel importante na escolha ética, essa razão estará de acordo com o sentimento íntimo de nossa natureza divina. Ou seja, para Kant, há uma discórdia interna entre sentimento e razão – para Sócrates e Rousseau, há harmonia quando se descobre o ser divino da alma.

A ética do útil Aceitamos facilmente, nos dias de hoje, a ideia de que o ser humano só age em proveito próprio. No fim das contas, cada qual só estaria interessado em seu próprio bem-estar, dizem os defensores desse ponto de vista. Mas será que nosso bem-estar pode ser alcançado de forma absolutamente independente do todo? Será que a utilidade é apenas uma questão de escolha individual ou ela também inclui a presença dos outros, de tal forma que o útil é sempre útil para todos? Os utilitaristas, cujos princípios conheceremos a seguir, pensaram muito nessas questões e abriram um caminho importante para a reflexão no campo da moral. A ética utilitarista foi defendida pela primeira vez no Ocidente pelo grego Epicuro, que a transmitiu a seus discípulos. Ele colocava a ética no lugar supremo de sua filosofia, acima da física e da metafísica, e criticava o aspecto abstrato dos sistemas de Platão e Aristóteles. Entendia que as ações humanas deveriam buscar o máximo de prazer e evitar a dor. Mas não se trata do prazer sensualista, como muitos imaginaram. Para Epicuro, o prazer coincide com o bem; assim, o ser humano que consegue evitar a dor e viver prazerosamente chega a uma felicidade possível. Toda ação é movida por prazer, diz Epicuro. O prazer não está em condições externas: a felicidade é íntima e subjetiva. Epicuro elege três pontos para se alcançar a felicidade: 1) ausência de dor; 2) moderação dos sentimentos e dos desejos; 3) o saber viver dentro dos limites naturais. Embora a ética de Epicuro seja individualista, ele afirma ser necessário que o indivíduo procure contribuir com todos, evitando prejudicar os outros. Mas ele não pensa, como Platão e Aristóteles, que a ação ética só faz sentido dentro do clima da pólis grega e na relação com os demais. Tanto assim que, para se realizar como ser ético, o filósofo se retira da sociedade e vai viver com seus discípulos em um subúrbio de Atenas. 128


Coleção Roger Viollet crédito obra

Busto de Epicuro.

John Stuart Mill, filósofo e economista inglês, em fotografia de George F. Watts, 1873.

Muitos pensadores adotaram esse sistema elaborado por Epicuro ao longo da História. Ele aparece, por exemplo, nas teses utilitaristas de David Hume, para quem a moral era uma questão da mais alta importância. Hume diz que não é possível dizer que a razão é a fonte da moralidade porque na essência dos seres humanos estão as paixões e os sentimentos, e não a razão. As paixões e os sentimentos derivam basicamente das sensações de prazer e de dor. Os seres humanos só conseguem ser virtuosos moralmente por terem a capacidade de “sentir” um tipo específico de satisfação ao contemplarem ou perceberem certa qualidade. Assim, existe uma conexão entre sentimentos, percepção e virtude. Uma determinada qualidade nos causa a sensação de prazer e, desse modo, torna-se uma virtude para nós. Dependendo do prazer que temos, aprovamos ou reprovamos algo. Podemos utilizar o mesmo raciocínio para o que não é bom: as coisas que nos causam dor nos dão uma sensação que nos desagrada, tornando-se sem valor. Ou seja, o sentimento moral tem origem na sensação de prazer ou dor. O filósofo elege o sentimento de simpatia como aquele capaz de gerar o principal prazer no ser humano. A simpatia é um sentimento natural nas pessoas que pode servir de princípio a todas as ações. Devemos medir a utilidade das coisas por esse sentimento. O utilitarismo de Hume não está ligado apenas a uma noção individual, isto é, deve se estender ao que é útil a todos. Deve-se pensar em tudo o que seja útil para todas as pessoas. O sentimento de simpatia por todos nos causa um sentimento de prazer e desperta nossa boa vontade. Ideias semelhantes seriam depois retomadas pelo inglês John Stuart Mill , na obra Utilitarismo. Como Hume, Mill considerava limitada a explicação de que os seres humanos tivessem uma faculdade racional que pudesse determinar ou descobrir o que é certo e o que é errado. Realiza, assim, uma crítica às pretensões de Kant e dos kantianos em creditar à razão a capacidade de determinar princípios morais a priori, que determinariam a ação moral. John Stuart Mill (1806-1873) Era filho de James Mill, um dos fundadores da filosofia utilitarista, que o educou para que se tornasse um grande intelectual e defensor da causa utilitarista. John Stuart Mill concentrou-se no problema de como conciliar a liberdade individual com a liberdade do outro. Na sua principal teoria, o direito de cada um escolher seu destino é sagrado, só anulado quando sua ação pode prejudicar o outro. A liberdade do outro não deve ser apenas tolerada, mas defendida, pois é motivo de progresso humano. Ele defendeu também o direito das mulheres à participação social e política.

Mill cria uma hierarquia dos prazeres (como Epicuro havia criado). Em sua concepção, os prazeres teriam duas categorias básicas: prazeres inferiores, sensuais, ligados ao corpo, aos sentidos, às sensações; e prazeres superiores, ligados ao intelecto, aos sentimentos nobres e à moral. Mill diz 129


que há prazeres mais desejáveis do que outros. Isso porque, ao contrário dos animais, o ser humano possui faculdades superiores, e não é qualquer prazer que satisfaz essas faculdades. Diante de dois prazeres que possa experimentar, escolhe quase sempre os que atingem suas faculdades superiores. No entanto, Mill diz que para tal escolha é preciso que o indivíduo se autoconheça, tenha consciência de si próprio e pratique a introspecção, para estar bem preparado na hora de optar. Mas o motivo de uma ação ética não precisa ser o dever. Não importa o que a motiva, o sentimento de compaixão, o amor ou a esperança. O que importa verdadeiramente é se a ação amenizou a dor e gerou prazer. Se eu salvo a vida de alguém, não interessa o que me motivou, e sim a consequência do meu ato. A ação para Mill deve gerar o bem da maioria. Uma vida egoísta e com falta de desenvolvimento intelectual é o principal problema, segundo Mill, para tornar a vida infeliz. A vida oferece muitas oportunidades de o sujeito se interessar pelo bem público e comum e utilizar suas capacidades para o bem da humanidade. O sacrifício é sempre muito benéfico quando aumenta a soma da felicidade humana. Mill afirma que o exemplo máximo da ética utilitarista estaria na figura de Jesus. Suas palavras “fazei aos outros o que gostaria que os outros vos fizessem” e “ama o teu próximo como a ti mesmo” seriam as fórmulas máximas do utilitarismo.

A inversão dos valores em NietzschE Até aqui temos reconhecido a importância e a necessidade da moral na vida humana. Mas será que preferir o bem ao mal é sempre a melhor saída? Será que o que chamamos de bem representa o que há de mais “engrandecedor” para o homem? Alguns intérpretes de Nietzsche afirmam que, quando deparou com Cálicles, figura quase selvagem citada no livro Górgias, de Platão, identificou-se inteiramente com ele. Segundo o livro, no meio da discussão entre Sócrates e Górgias, Cálicles irrompe agressivamente e demonstra uma visão demolidora dos valores morais. Possuído, em sua filosofia, dessa mesma “raiva”, Nietzsche foi chamado de “o filósofo do martelo”. Ele queria justamente voltar àqueles valores greco-romanos, pré-cristãos, criticados por Sócrates e Jesus. O pressuposto básico de sua filosofia é a “morte” de Deus, anunciada no livro A Gaia ciência. Trata-se de uma morte simbólica, uma morte cultural, um dos acontecimentos modernos de maior eloquência e grandiosidade, pois nos libertaria de certos conceitos que nos aprisionavam o pensamento, e inauguraria uma nova época na História. Para enfrentar a tradição ocidental, a ingênua crença em Deus deveria acabar. Nietzsche entendia que toda a estrutura do conhecimento, da moralidade e dos costumes estava impregnada de uma velha crença em Deus e sua morte abriria espaço para a construção de uma nova cultura. 130


Arquivo

A dança dionisíaca. Nietzsche considerava Dionísio (deus do vinho, na mitologia grega) como símbolo da vida, e Apolo (deus da música, da poesia, da profecia e da agricultura) símbolo da morte.

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Com isso, Nietzsche pretendia novos valores humanos. Escreveu vários livros em que elabora um questionamento das origens da moral na História. Afirmava que as ações humanas não podem ser medidas pelos velhos e arcaicos valores de “bem” e “mal”, de “certo” e “errado”, de “pecado” e “virtude”. Os valores do Ocidente teriam se estruturado pela imposição de Sócrates e de Jesus, que deveriam ser combatidos para que pudéssemos fazer surgir uma nova moralidade. O ponto de partida de Nietzsche é justamente o pensamento grego, anterior à filosofia de Sócrates e ao cristianismo, abrindo guerra contra essas duas propostas. Para Nietzsche, a filosofia de Sócrates, ao instaurar o primado da razão, do autodomínio e da lógica, tinha se colocado contra aquilo que os seres humanos têm de mais essencial em sua natureza: o poder vital, força que se encontrava na cultura grega pré-socrática de forma esplêndida, na dança, na guerra, na embriaguez… O pensamento socrático reprimiu aquilo que era visceral na vida grega: o desejo de vida e de poder. Sócrates racionalizou e intelectualizou o poder vital da humanidade grega e essa moral racionalista tornou-se repressora ao ser humano. O cristianismo, que Nietzsche chamava de “platonismo das massas”, teria seguido a mesma linha, reprimindo as forças vitais, o desejo de poder e as verdadeiras capacidades humanas. Tanto a doutrina socrática como a doutrina cristã eram contrárias à natureza humana. Em seu livro O anticristo, Nietzsche apresenta teses contra o cristianismo, dizendo que se trata da “religião dos fracos”. Segundo o filósofo, o centro da religião cristã é a compaixão, a submissão, a humildade, o sacrifício, ou seja, sentimentos que caracterizam os seres humanos como moralmente fracos, o que seria antinatural. A compaixão obstrui o desenvolvimento humano, pois dificulta o que é essencial na vida: a seleção natural. A compaixão protege os fracos e não favorece os fortes. Para Nietzsche, portanto, a lei do mais forte é o natural, e compaixão e bondade para com os fracos é covardia. Do mesmo modo que negava os valores cristãos, também não defendia as pretensões socialistas de igualdade entre as pessoas, pois estas, para ele, não eram iguais: algumas eram mais fortes e deveriam dominar. A cultura do seu tempo seria decadente justamente por se basear no pensamento judaico-socrático-cristão. O pensamento socrático-cristão havia gerado uma moral antinatural, havia imposto um artificialismo, feito do ser humano algo que ele não é, no seu essencial; e o cristianismo pregava a moral da “ovelha de rebanho”, da submissão e fraqueza. Para ele, bondade, compaixão e solidariedade eram atos de covardia – exatamente a crítica que um grego ou um romano faziam aos valores dos primeiros cristãos. A força, a bravura, a coragem, a honra e, assim, a agressividade e o poder seriam os valores naturais dos seres humanos. A modernidade, com


seus ideais de igualdade, liberdade, justiça e democracia, era filha dessa alteração cristã na hierarquia dos valores. O objetivo da moral dos fracos era claro para Nietzsche: submeter os fortes e os guerreiros. Para ele, por trás de toda moralidade ocidental estavam o sentimento ressentido do fraco contra o forte e a vontade secreta de as classes fracas submeterem as fortes. Portanto, conclui-se que o Nietzsche sustenta que, por trás de toda ideia de “bem” e de “mal” construída no Ocidente, existe uma vontade velada das classes inferiores de dominar as classes superiores. O conflito entre os fracos e os fortes marca a história do pensamento ocidental. O filósofo afirma que o único instrumento de que os fracos poderiam lançar mão para dominar os fortes seria a moral. Somente na moral, o fraco pode realizar seu desejo de poder. A intenção de Nietzsche era lutar contra os aspectos racionalizadores da vida moderna, que chama de aspectos apolíneos, e retomar os aspectos irracionais, que chama de aspectos dionisíacos. Era preciso entender esse processo, criticá-lo e recuperar o aspecto vencido e silenciado. Alguns críticos identificam nos valores exaltados por Nietzsche, no que ele chamou de “super-homem”, um homem agressivo, cruel, orgulhoso e egoísta, o protótipo do nazista. Hitler, de fato, foi leitor de Nietzsche, mas é bastante discutível até onde ou de que forma as obras do filósofo influenciaram as ações impiedosas e catastróficas do líder nazista. Podemos refletir se esse ser humano que acredita apenas na lei do mais forte e em sua vontade de poder, despreza o fraco e se insurge contra a igualdade fraterna entre todos (o super-homem nietzschiano) não é também aquele do capitalismo em que vivemos, individualista, despreocupado com o bem-estar do outro e considerando a exploração como natural. A crítica de Nietzsche à modernidade ocidental repercute até os dias de hoje. A temática do filósofo alemão tornou-se influente e ganhou espaço nas discussões da Filosofia contemporânea de tal forma que pensadores de nossos dias entenderam seus postulados como paradigmáticos, verdadeiros modelos de entendimento do pensamento ocidental. É a partir de Nietzsche que podemos compreender o filósofo Martin Heidegger ou as bases da teoria de Sigmund Freud ou realizar a leitura das obras do francês Michel Foucault . Michel Foucault (1926-1984) Filósofo francês, suas primeiras obras foram caracterizadas como estruturalistas. Depois, foi visto como pós-moderno (contra sua própria conceituação). Foucault fez uma leitura crítica original em relação ao poder na sociedade, não o centralizando apenas no Estado, mas observando que ele está entranhado em todas as relações sociais. Estudou as forças repressivas da sociedade na escola, nos hospitais psiquiátricos e na história da sexualidade. Entre as suas obras, estão: A palavra e as coisas, Vigiar e punir e História da sexualidade.

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Destaque Nietzsche e o nazismo Leia o texto a seguir, extraído do blog de Luis Rodrigues, professor de Filosofia em Portugal e autor de vários livros de ensino de Filosofia.

Em 4 de novembro de 1933, o jornal francês Le Temps (antepassado do Le Monde) publicava a seguinte notícia: “Antes de abandonar a cidade de Weimar para se dirigir a Essen, o chanceler Hitler visitou a senhora Elisabeth Foerster-Nietzsche, irmã do célebre filósofo falecido em 1900. A idosa senhora ofereceu-lhe um sabre que pertencera ao seu irmão e conduziu-o numa visita aos arquivos de Nietzsche. Empunhando o sabre que fora de Nietzsche, Hitler caminhou por entre a multidão no meio de estridentes aclamações.” De um filósofo que afirmou, entre outras coisas, que todos os antissemitas deviam receber ordem de fuzilamento, que chegava ao ponto de escrever “Que bênção é um judeu no meio de alemães”, que manifestava a sua enorme admiração pelo povo judaico, que desprezava o militarismo alemão e se mantinha aristocraticamente distante dos movimentos de massas (como o viria a ser o nazismo), parecerá desconcertante saber que foi utilizado pela propaganda nazi. “A luta contra os judeus sempre foi o sinal de uma natureza baixa, invejosa e cobarde: aquele que nela participa hoje partilha em grande parte a mentalidade da populaça, da gentalha.” [Citado em Eric Blondel, Nietzsche: Le cinquième évangile? p. 39.] “Os judeus são sem dúvida a raça mais vigorosa, a mais resistente, a mais pura que existe atualmente na Europa; sabem impor-se mesmo nas piores condições, e melhor do que nas melhores, graças a certas virtudes que agora se quereria transformar em vícios, graças sobretudo a uma fé obstinada que não tem que corar perante as ‘ideias modernas’; quando se transformam, fazem-no, como o Império Russo nas suas conquistas, como um Império que não nasceu ontem e que tem todo o tempo à sua frente – isto é, ‘o mais lentamente possível’. O pensador que se sente responsável pelo futuro da Europa deverá, nos planos que esboça para esse futuro, contar com os Judeus e os Russos como os dois fatores mais seguros e mais prováveis desse grande jogo, do grande conflito de forças.” [Nietzsche, Para além do bem e do mal, § 251.] Esta situação aparentemente absurda torna-se compreensível se soubermos que o pensamento de Nietzsche foi vítima de uma falsificação cuja autora foi a sua irmã. Elisabeth, de quem Nietzsche dizia ser uma razão suficiente para 133


detestar viver, casara com um certo B. Foerster, teórico do antissemitismo racista, e partilhava as ideias do marido. A partir de 1895, fase em que ­Nietzsche já estava afundado na loucura, Elisabeth adquirira todos os direitos sobre os manuscritos do irmão. Fabricou uma obra a que deu o nome de Vontade de poder e, em função desse título, utilizou fragmentos dos cadernos escritos por Nietzsche. Escolheu uns, afastou outros e, além disso, tinha o perigoso hábito de guardar e conservar fragmentos que o irmão rejeitara ou riscara. Retirou muitas frases do seu contexto e fez crer que Nietzsche seria partidário do antissemitismo racista. Ora, na verdade, o antissemitismo de Nietzsche situa-se no plano religioso – ataca a moral da religião judaica, “moral de escravos”. Essa deplorável falsificação faz com que Nietzsche não seja responsável pela Vontade de poder, obra que curiosamente o tornou célebre, e tanto assim é que, na recente edição das suas obras completas, ela não figura. Contudo, se é verdade que Nietzsche foi vítima de uma falsificação, cabe perguntar se é uma vítima absolutamente inocente. Podemos supor que Nietzsche detestaria o nazismo e a ele se oporia se vivesse sob o regime hitleriano, mas não devemos omitir certos textos ou passagens de sua obra – e não são assim tão poucos – que, mesmo sem a intervenção da sua irmã, poderiam propiciar a sua utilização propagandística por parte dos nazis. Encontramos em obras como Para além do bem e do mal as seguintes afirmações: “É preciso preparar grandes experiências coletivas de disciplina e de seleção”, para lutar “contra a tendência democrática, forma degenerada de organização política, forma decadente e diminuída de humanidade”. Refere-se nessa obra à necessidade de chefes cuja missão seria a transmutação dos valores, a criação a golpes de martelo de corações duros e impiedosos. Tais palavras seriam melodiosas para quem, como Hitler, só lia e retinha o que lhe interessava ou, melhor dizendo, o que poderia reforçar as suas convicções. A feroz postura antidemocrática, a rejeição da democracia como “princípio de dissolução e de decadência”, a valorização do guerreiro, da humanidade dita superior, atraíram a simpatia de quem, porventura, Nietzsche detestaria. E que pensar da atração irresistível que os textos que se seguem porventura exerciam na atuação política do nacional-socialismo? Nietzsche, doente, sendo ­assistido por sua irmã, Elisabeth.

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“Viver é essencialmente despojar, ferir, violentar o fraco e o estrangeiro, oprimi-lo, impor-lhe duramente as nossas próprias formas, assimilá-lo, ou pelo menos (é a solução mais doce) explorá-lo.” Desprezando qualquer fraqueza sentimental, o instinto aristocrático e superior deve aceitar “sacrificar com um coração leve um grande número de pessoas que deverão ser, no seu próprio interesse, humilhadas e reduzidas ao estado de seres mutilados, de escravos, de instrumentos”. RODRIGUES, Luís. Nietzsche e o Nazismo. Disponível em: <http://lrsr1.blogspot.com.br/2011/07/nietzsche-e-o-nazismo.html>. Acesso em: 11 nov. 2012.

A filósofa Hannah Arendt cunhou a expressão “a banalidade do mal” para explicar por que os grandes crimes da humanidade não foram cometidos apenas por monstros, mas também por pessoas comuns que aceitavam cumprir todo tipo de ordens superiores. Muitos acreditavam realmente estar fazendo a coisa certa.

O relativismo moral

John Dewey (1859-1952) Filósofo e pedagogo norteamericano, escreveu sobre arte, religião, moral, teoria do conhecimento, Psicologia, política, Filosofia e Educação. Seu interesse por pedagogia nasceu da observação de que as escolas, em geral, não haviam incorporado as descobertas da Psicologia, nem acompanhado os avanços políticos e sociais. Foi um dos fundadores da escola filosófica de Pragmatismo, ao lado de Charles Sanders Peirce e William James, defendendo que as ideias ensinadas na escola devem se voltar para resolver problemas do cotidiano.

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Você provavelmente já deve ter entrado em conflito com seus pais ou outras pessoas mais velhas por questões morais. Isso aconteceu porque que eles defendiam valores que para você já estão ultrapassados. O fato é que algumas pessoas parecem não notar que os valores morais variam com o tempo e lugar. Mas será que tudo é relativo quando se pensa em moral? Ou será que existem valores que não variam com as circunstâncias histórico-sociais? Alguns pensadores de uma corrente chamada de relativista defendem que é impossível separar o indivíduo do contexto e das circunstâncias histórico-sociais em que ele está inserido e que a moral só pode ser entendida nessa relação. Todos os valores morais são históricos e sociais, ou seja, não existem valores absolutos, como pensavam Sócrates ou Kant. Basta pensarmos o quanto as ideias morais mudaram ao longo da História, o quanto são diferentes dentro das sociedades e dos diversos grupos para constatarmos isso. A moral, nesse caso, seria apenas um conjunto de valores ou regras adotadas por uma sociedade em particular, em dado momento histórico. O filósofo (e educador) americano John Dewey , representante da corrente relativista, afirmava que os valores morais são como nuvens que mudam ao sabor dos ventos, dada sua instabilidade. Para ele, toda estrutura moral está vinculada às condições históricas em que surgiram e foram criadas. Os valores mudam de acordo com as exigências históricas, culturais, sociais e econômicas. Para os muitos adeptos dessa corrente, os valores morais só podem ser avaliados como verdadeiros ou falsos dentro do contexto da sociedade em que foram produzidos. Como todos os valores são relativos, nunca devemos julgar os hábitos de outras sociedades ou interferir neles.


A imagem ambígua ajuda a entender o relativismo. É possível enxergar na figura tanto um músico tocando saxofone como um rosto de mulher, dependendo de como se olha.

Notimex/AFP

Você já deve ter ouvido uma máxima que diz: “É conversando que a gente se entende”. De fato, é por meio do diálogo que podemos mediar conflitos em que aparecem diferentes interesses, diferentes perspectivas. E é tendo a comunicação como base que se funda a proposta ética de alguns pensadores contemporâneos, dentre os quais se destaca Jürgen Habermas . No mundo contemporâneo, surge uma corrente que procura uma solução para o relativismo. Já que vivemos em um mundo de valores históricos e sociais – de verdades morais relativas a grupos, a sociedades e a períodos históricos determinados –, o ser humano não é capaz de cumprir um mandado da sua consciência, de determinar previamente o que deve fazer em sua razão e com isso atingir o interesse comum a todos os seres humanos. Os interesses dos indivíduos em uma sociedade não são os mesmos e, muitas vezes, chegam a ser opostos e conflitantes. Uma vez que reconhecemos essa problemática e que muitos conflitos na História têm sido intransponíveis, como resolvê-la? Dessa perspectiva, pode-se chegar à conclusão de que a ética não pode brotar do indivíduo, mas do diálogo, da argumentação racional, do consenso dos indivíduos em cada grupo ou sociedade em defesa de suas posições. Os indivíduos e os grupos devem, em conjunto, ter uma ação comunicativa com intuito de refletir e justificar a melhor ação moral. O diálogo e a razão ajudam a administrar os conflitos e colocar em acordo os interesses antagônicos. Habermas, representante dessa corrente, diz que a universalidade moral só poderia ser produto de um acordo baseado no diálogo e no consenso. Os grupos devem ter disponibilidade para realizar uma ação comunicativa, decidir, justificar e entrar em acordo, reconhecendo as normas que devem ser aceitas universalmente.

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Ética da comunicação

Jürgen Habermas (1929) Filósofo alemão herdeiro da Escola de Frankfurt, é visto como o último grande racionalista. Para ele, a onda de irracionalismo que se apossou do século XX foi despropositada, pois o projeto racionalista-iluminista da modernidade ainda não havia sido concluído. O problema, de acordo com sua filosofia, é que a razão moderna ficou presa à lógica instrumental: uma razão que domina, que é usada a serviço de interesses de pessoas ou grupos. Esse tipo de racionalidade custou caro ao Ocidente, pois os valores e os interesses gerais se deterioram por nos preocuparmos demasiadamente com os interesses particulares e com a esfera do domínio. Para Habermas, seria importante preservarmos parte do progresso social e político conquistado pelo Iluminismo, incentivando uma ação que desenvolvesse e fortalecesse uma melhor comunicação entre as pessoas, privilegiando os interesses coletivos, e não individuais. O pensador chama a isso de ação comunicativa: uma comunicação livre, racional, crítica e preocupada com o interesse de todos. Entre suas principais obras, estão Técnica e Ciência como ideologia, Entre a Filosofia e a Ciência: o marxismo como crítica e Teoria da ação comunicativa.

Jürgen Habermas.

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A volta do universal em Max Scheler

Filósofo alemão de grande importância para a Filosofia sociológica, partidário da fenomenologia, com influência de Edmund Husserl e de Henri Bergson. Para Scheler, a Filosofia tinha o papel de captar a essência dos valores humanos. O ser humano deve estar aberto ao mundo a fim de poder intuir esses valores pelo sentimento da vida. O indivíduo tem essa capacidade de intuir os valores e a divindade presentes na vida, pois ele próprio é a expressão do que é divino.

Apesar de o século XX ter uma tendência predominante ao relativismo ou à volta de valores pré-cristãos (como no caso da herança nietzschiana), há filósofos que continuam defendendo uma possibilidade de ética universal intrínseca ao ser humano – e não produto de um consenso, como na ética comunicativa. É o caso de Max Scheler . Considerado um dos maiores filósofos do século XX, Scheler estruturou seu pensamento moral em uma crítica rigorosa à ética do dever kantiano. Para ele, o imperativo categórico de Kant era extremamente racionalista, formal e arbitrário, anulando a alegria e a plenitude da vida. Se na teoria de Kant se supõe que o dever é o fundamento da ética, para Scheler, a ética deve ter por base o valor, que impregna todas as coisas. Os valores são qualidades absolutas e essenciais das coisas; nesse sentido, as coisas são fatos, os valores são a essência. Por exemplo, o valor de um quadro é sua beleza – ele só é um bem por possuir o valor da beleza. Da mesma forma, uma máquina só é um bem por ter o valor da utilidade. Na filosofia de Scheler, existe uma lei moral universal que está dentro do ser humano. A consciência moral é fruto do universo dos valores que circundam o ser humano que, ao descobrir e reconhecer esse universo, forma seus valores. Não é a razão que descobre esses valores nas coisas, mas uma intuição emocional. Os valores só podem ser captados por essa intuição, que é inata, e não pela ação do intelecto. Pode ser que os seres humanos se tornem insensíveis a certos valores por não saberem como captá-los e descobri-los. Mas essa capacidade seria um instrumento que nos proporcionaria distinguir, captar o valor do ser e a hierarquia de valores existentes. O filósofo diz que a escala de valores seria composta basicamente de cinco categorias: 1) sensoriais, como alegria, dor, prazer; 2) de utilidade, o que é útil, abundante, escasso; 3) vitais, o que é fraco, forte, sadio; 4) culturais, o estético, o ético, o verdadeiro; 5) religiosos, o sagrado e o profano. Esses são os valores que o ser humano pode captar por meio da intuição sentimental, desde que esteja aberto ao mundo e à vida.

Ética e ação

Representação de Buda.

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Max Scheler (1874-1928)


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O líder político americano Martin Luther King.

Detalhe de uma ­imagerm de Jesus Cristo.

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Não é difícil sustentar posições éticas no plano do discurso, e sim colocá-las em prática no seio de uma sociedade que, muitas vezes, se mostra resistente a mudanças profundas em sua estrutura. Nesse sentido, alguns pensadores fizeram questão de sublinhar a necessidade de os intelectuais assumirem suas responsabilidades em relação à coletividade e jamais dissociar ética da ação social e política. O pensador Karl Marx escreveu, em suas Teses sobre Feuerbach, que os filósofos tinham passado muito tempo interpretando e estudando o mundo sem procurar transformá-lo. Os intelectuais têm sido muito criticados por ficarem apenas especulando e criando teorias sem se preocuparem com a ação.

O filósofo Karl Marx.

No Ocidente e no Oriente, porém, muitos homens e mulheres entenderam que ética ou moral só teria sentido se o ser humano assumisse sua responsabilidade em relação à coletividade e trabalhasse por um mundo melhor. Com nada se contribui escrever livros analisando o mundo e manter-se inerte, sem partir para a ação. Figuras como, Buda, Jesus, Sócrates, Francisco de Assis, Madre Teresa de Calcutá, Mahatma Gandhi, Albert Schweitzer e Martin Luther King fizeram de suas existências exemplos de dedicação ao próximo. 138


Alguns pensadores do século XX, secundando a crítica de Marx, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, reprovaram os muitos intelectuais que se limitavam a pensar e analisar sem agir e sem assumir responsabilidades de atuar no mundo. O filósofo francês Jean-Paul Sartre pode ser citado como um exemplo de pensador que exerceu esse tipo de crítica. Para ele, o ser humano deve assumir suas responsabilidades e adotar um determinado tipo de conduta real, e a responsabilidade é a base da moralidade. O filósofo francês fez parte de várias ações sociais, foi um crítico mordaz do sistema capitalista e atuou politicamente no sentido de transformálo. Participou de movimentos em prol de várias causas, como a dos trabalhadores, a das mulheres e a dos oprimidos. Outro filósofo do século XX que pensava assim foi Bertrand Russell, que defendeu que toda moralidade deve estar ligada ao mundo real. Assim como Sartre, ele foi um crítico do sistema capitalista e também dos regimes totalitários. Dedicou-se incansavelmente a causas sociais, ecológicas e pacifistas. Russell dedicou sua vida à construção de um mundo no qual a crueldade desse lugar a relações de afeto e altruísmo. No século passado, destacaram-se Madre Teresa de Calcutá, Mahatma Gandhi e Martin Luther King como exemplos de pessoas que dedicaram suas vidas à construção de um mundo mais humanitário e sem violência. Essas três personalidades desafiaram poderes, governos e impérios (no caso de Gandhi, o império britânico) para salvar muitas vidas. No Brasil, também houve intelectuais que dedicaram suas vidas a causas humanitárias. Podemos citar a figura de Herbert de Souza, conhecido como Betinho, sociólogo que escreveu muitos livros, mas, acima de tudo, dedicou-se a diminuir o sofrimento das pessoas. Trabalhou para construir uma sociedade com menos pobreza, para minimizar a exploração de um ser humano pelo outro, para erradicar a violência e o analfabetismo, para moralizar a política e pelos direitos humanos.

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Texto original A voz da consciência Jean-Jacques Rousseau

D

epois de ter assim a impressão dos objetos sensíveis e do sentimento interior que me leva a julgar as causas segundo minhas luzes naturais, deduzidas as principais verdades que me importava conhecer, resta-me procurar quais máximas devo tirar daí para minha conduta, e quais regras devo me prescrever para cumprir minha destinação sobre a terra, segundo a intenção daquele que aqui me pôs. Seguindo sempre meu método, não extraio essas regras de princípios de uma filosofia superior, mas eu as encontro no fundo do meu coração, escritas pela natureza em caracteres que não se apagam. Tenho apenas de me consultar sobre o que quero fazer: tudo o que sinto ser bem é bem, tudo o que sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuístas é a consciência, e somente quando mercadejamos com ela é que fazemos apelo às sutilezas do raciocínio. O primeiro de todos os nossos cuidados é o de si mesmo; no entanto, quantas vezes a voz interior nos diz que fazendo o nosso bem à custa de alguém, estamos fazendo mal?! Cremos seguir o impulso da natureza e nós lhe resistimos: escutando o que ela diz aos nossos sentidos, desprezamos o que diz aos nossos corações; o ser ativo obedece, o ser passivo comanda. A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo. É surpreendente que muitas vezes essas duas linguagens se contradizem, e então a qual devemos dar ouvidos? Muito frequentemente, a razão nos engana […], mas a consciência não engana jamais, ela é o verdadeiro guia do ser humano; ela é

para a alma o que o instinto é para o corpo; quem obedece à natureza não teme se desviar. […] Toda moralidade de nossas ações está no julgamento que trazemos em nós mesmos. Se é verdade que o bem seja o bem, ele deve estar no fundo de nossos corações, como em nossas obras; a primeira recompensa da justiça é sentir que a praticamos. Se a bondade moral é conforme a nossa natureza, o ser humano não será são de espírito, nem bem constituído, se não for bom. Se ela não for conforme a natureza e o ser humano for naturalmente mau, ele não pode deixar de ser sem se corromper, e a bondade nele é um vício contra a natureza. Feito para prejudicar seu semelhante como o lobo para degolar sua presa, o ser humano seria um animal tão depravado quando um lobo compassivo, e apenas a virtude nos daria remorsos. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Émile. Paris: Gallimard, 1969. (Tradução livre dos autores.)

Uma aristocracia sã Friedrich Nietzsche

[...] O essencial de uma aristocracia boa e sã, porém, é ela não se sentir como função (quer seja de realeza, quer da comunidade), mas como sentido e suprema justificação destas, é ela aceitar, por isso, e com a consciência tranquila, o sacrifício de inúmeros homens que, por amor dela, têm de ser oprimidos e reduzidos a homens incompletos, a escravos, a instrumentos. A sua fé básica deve, precisamente, ser a de que a sociedade não devia existir por amor da sociedade, mas apenas como alicerces e andaimes sobre os quais um tipo de seres de elite se consiga erguer até a sua missão superior e, também, a uma existência superior, em geral; comparável com aquelas plantas trepadeiras, ávidas do sol, em Java – chamam-lhe “cipó matador” –, que envol140


vem com os seus braços um carvalho durante tanto tempo e tantas vezes até que, por fim, muito acima dele, mas nele apoiadas, possam alargar a sua copa em plena luz, patentear a sua felicidade. Abster-se reciprocamente de ofensas, da violência, da exploração, adaptar a sua vontade à do outro: tal coisa pode, num certo sentido grosseiro, tornar-se bom costume entre indivíduos, se existirem condições para tal (ou seja, de fato, semelhança em quantidade de força e escalas de valores e o fato de pertencerem a um só organismo). Logo, porém, que se quisesse alargar este princípio, concebendo-o até como princípio fundamental da sociedade, revelar-se-ia imediatamente como aquilo que é: vontade de negação da vida, princípio de dissolução e de decadência. Aqui é preciso pensar-se bem profundamente e defenderse de toda a fraqueza senti­mentalista. A própria vida é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição daquilo que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, in­corporação e pelo menos, na melhor das hipóteses, exploração – mas para que empregar palavras a que, desde há muito, se deu uma intenção difamadora? Também aquele organismo dentro do qual, conforme acima se admitiu, os indivíduos se tratam como iguais – e tal se dá em toda a aristocracia sã – tem de fazer, no caso de ser um organismo vivo e não moribundo, contra outros organismos, tudo o que os indivíduos dentro dele se abstêm de fazer entre si: terá de ser a vontade de poder personificada, quererá crescer, expandir-se, atrair a si, obter preponderância, não por qualquer moralidade ou imoralidade, mas porque vive e porque a vida é vontade de poder. Em ponto algum, porém, a consciência vulgar dos europeus é mais resistente ao esclarecimento do que neste: por toda a parte, até sob disfarces científicos, entusiasmam-se por estados futuros da sociedade aos quais faltará o “caráter 141

explorador” – isso soa aos meus ouvidos como se se prometesse inventar uma vida destituída de todas as funções orgânicas. A “exploração” não faz parte de uma sociedade corrupta ou imperfeita e primitiva: pertence à essência do que é vivo como função orgânica básica; é uma consequência da verdadeira vontade de poder que é justamente a vontade da vida. NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. Lisboa: Guimarães, 1982. p.188-190.

Para estudar os textos: • •

• •

Anote no caderno todas as palavras que você desconhece e procure-as no dicionário. Entenda os textos parágrafo por parágrafo, relendo-os se for necessário, para a compreensão integral do pensamento de cada autor. Se houver algum conceito ou trecho que lhe pareça particularmente difícil, peça ajuda a seu professor ou consulte um dicionário de Filosofia. Argumente com qual texto concorda mais e discuta com os colegas. Pesquise a biografia de Mahatma Gandhi, que pregava a não violência e conseguiu expulsar o império britânico da Índia; a de Martin Luther King, que mobilizou os negros americanos e, com a resistência pacífica, levou a importantes avanços sociais para essa minoria nos EUA; e Madre Teresa de Calcutá, que inspirou tantas pessoas a lutar pelos miseráveis de todo o mundo. Avalie em que as atitudes dessas personalidades estão re-


Atividades

Não escreva n

o livro!

Interdisciplinaridade lacionadas com os dois textos e converse com os colegas sobre isso.

Cinema pensante

Arte

Assista ao filme Gladiador (Gladiator), 2000, do diretor Ridley Scott, com Russell Crowe, Joaquin ­ hoenix e outros. P Trata-se da história de um general do exército romano, Maximus, que se torna escravo e gladiador do Império Romano – ele era o preferido do imperador Marcus Aurélio para substituí-lo no trono e isso desperta a ira do filho do imperador, Commodus. Este mata seu pai, assume a coroa e ordena a morte de Maximus, que consegue fugir e passa a assumir outra identidade. O filme se passa em torno do ano 180, no Império Romano, quando os cristãos eram numerosos e morriam nos espetáculos da arena. O filme, em especial, exalta os valores do general romano. • Faça uma correlação entre a moral de Nietzsche e os valores destacados no filme. • Compare os valores destacados nos filmes Gladiador e A Queda (veja o texto a seguir) e os da sociedade atual. Assista ao filme A queda – as últimas horas de Hitler, de Oliver Hirschbiegel. No longa, Traudi Jung, secretária de Hitler, narra os últimos dias da vida do Führer em seu bunker em Berlim, no fim da Segunda Guerra Mundial. O ditador está com os seguidores mais próximos e demais funcionários acompanhando o avanço dos aliados, quando Berlim está para ser tomada. Pesquise a história do livro Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, em especial quanto ao personagem Riobaldo e às referências que ele faz quanto a um “pacto” com o diabo. Verifique se há um paralelo entre este aspecto da monumental obra de Guimarães e o conteúdo deste capítulo. Um dos trechos da obra: •

“De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bemquerer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina... Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma... invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, não tem a obediência legal. Posso vender essas boas terras, daí de entre as Veredas-Quatro – que são dum senhor Almirante, que reside na capital federal? Posso algum!? Então, se um menino menino é, e por isso não se autoriza de negociar... E a gente, isso sei, às vezes é só feito menino. Mal que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos – tudo corre e chega tão ligeiro –; será que se há lume de responsabilidades? Se sonha; já se fez... Dei rapadura ao jumento! Ahã. Pois. Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível. O senhor não acha?” ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1994.

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Disponível em: http://stoa.usp.br/carloshgn/files/-1/20292/GrandeSertoVeredasGuimaresRosa.pdf Interdisciplinaridade

Lanche filosófico • • •

Arte

Junte-se a um colega e leiam o trecho transcrito a seguir de uma obra da autora francesa Jacqueline Russ. Após a leitura, discutam, levando em consideração a seguinte proposição: Como propor uma ética hoje? Ouça a música Imagine, de John Lennon e faça uma relação com o texto de Jacqueline Russ e com a conclusão a que você chegou sobre os filmes citados. Essas obras têm algo em comum?

Vivemos em um momento em que as referências tradicionais desapareceram, em que não sabemos mais exatamente quais podem ser os fundamentos possíveis de uma teoria ética. O que é que, hoje, nos permite dizer que uma lei é justa? Nós o ignoramos. É num vazio absoluto que a ética contemporânea se cria. RUSS, Jacqueline. O pensamento ético contemporâneo. São Paulo: Paulus, 1999.

Para ler mais Leia o livro O pensamento ético contemporâneo de Jacqueline Russ da Editora Paulus, 1999, para melhor compreender a crise ética contemporânea.

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Capítulo

6

O ser humano em foco

Accademia di Belle Arte, Florença, Itália

Para começar

A escultura Davi (1501-1504), de Michelangelo é uma celebração da perfeição física do corpo humano, uma celebração do homem em si – própria do período renascentista. Nessa fase histórica, nos séculos XIV e XVI, houve o movimento artístico, filosófico e científico, iniciado na Itália, que pregava a volta aos ideais da antiguidade greco-latina, em especial a valorização do ser humano.

Singular e universal Cada ser humano tem traços físicos específicos, que o distingue dos demais, e maneiras de ser e de pensar próprios. Mas será que há algo em comum entre os seres humanos? Será que há algo que todos possuem, independentemente das diferenças? Essa é uma questão que ocupou e que tem ocupado a reflexão de muitos filósofos, e vamos também, agora, refletir sobre ela. O que é o homem? Essa é uma das principais questões a que se dedica a Filosofia. Mas que homem? O homem enquanto ser humano, importa se homem ou mulher, se negro ou branco,

se chinês ou brasileiro, se medieval ou contemporâneo? Existe mesmo um ser humano enquanto ser humano, uma universalidade humana? Ou fragmenta-se segundo sua condição, seu contexto, seu gênero, seu momento histórico? A própria questão sobre o que é o ser humano já se torna problemática. Porque, se alguns filósofos definem conceitos ou encontram algum tipo de resposta, outros abolem qualquer possível resposta universal, única, precisa ou verdadeira. A questão se põe enquanto conceito universal – existe uma “natureza humana”? Essa

natureza é apenas biológica ou pode ser igualmente espiritual? Ou, ainda, o ser humano é apenas fruto de seu meio, ou seja, é predominantemente o que a sociedade faz dele? Ou apenas cada ser humano é, em sua singularidade, único, irrepetível, radicalmente diferente do outro? Ou, ainda, é possível conjugar um conceito universal de ser humano com uma ideia de singularidade de cada um? Para tais questões, como em todas as outras que estudamos e estudaremos neste livro, há reflexões opostas, que vamos apalpar nos traços mais significativos da história da Filosofia. Texto produzido pelos autores.

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O humanismo

Museu de Londres, Inglaterra

O que seria humanismo? Pode ser visto como um termo histórico específico ou como uma tendência filosófica mais ampla. Como movimento histórico, ele se insere no período do Renascimento, com base na cultura greco-romana. O movimento intelectual valorizava o saber crítico voltado para um maior conhecimento do ser humano e uma cultura capaz de desenvolver as potencialidades da condição humana. No sentido filosófico, o humanismo coloca o ser humano em primeiro lugar, medindo todo o restante, também a natureza, segundo as suas necessidades, características e interesses. O humanismo, nesse sentido, é uma manifestação dos séculos XV e XVI, com literatos e filósofos que exaltaram a “naturalidade” do ser humano, como corpo e alma, como possibilidade de fruição agradável da vida. Entre essas personalidades, estão o poeta italiano Francisco Petrarca, o pensador italiano Pico della Mirandola, o espanhol Juan Luís Vives e o holandês Erasmo de Rotterdam . Os pensadores humanistas daqueles séculos desviaram o foco de Deus para o ser humano, mas não eram necessariamente ateus. Aliás, a dignidade humana ficava fundamentada, segundo alguns, pela herança divina na criatura. Erasmo de Rotterdam (1466-1536) Escritor, tradutor, teólogo e filósofo humanista holandês atuante durante o Renascimento, cuja obra, de grande beleza e graça literária, teve vasta influência nesse período. Seus livros O elogio da loucura e A guerra e a queixa da paz foram poderosas críticas ao contexto de guerras religiosas e ao clima de intolerância europeia. Suas obras foram um chamamento à razão humana e ao espírito de fraternidade entre as pessoas.

Erasmo, de Hans ­Holbein, “o Jovem”, 1523. As flores, quase sempre presentes nos retratos de Erasmo, aludem à paixão do filósofo humanista pela natureza.

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Outra maneira de se interpretar o conceito de humanismo – até hoje válido como uma tendência de pensamento filosófico, social e educacional – é entendê-lo como toda e qualquer forma de ver o mundo e de propor ações práticas em que o ser humano seja considerado como um fim em si mesmo e não como meio; em que seja valorizado, respeitado e engrandecido como senhor de sua liberdade, de sua autonomia e capaz de se emancipar de poderes e submissões; em que faça uma ideia de si mesmo, tenha um projeto para sua existência e alcance sentido e força na realização de si. Nesse sentido, Sartre considerava o existencialismo, conceito que ele criou, como um humanismo, assim como o marxismo também pode ser visto como uma espécie de humanismo. Temos ainda dentro dessa corrente a linha humanista da Psicologia, com Carl Rogers e Erich Fromm.


Stanpleton Collection, Corbis

Destaque A dignidade do ser humano O humanista italiano Pico della Mirandola, neoplatônico e inspirado nas tradições grega, cristã, árabe e judaica, descreve com perfeição o espírito do humanismo renascentista, com seu discurso de admiração do ser humano, que aparece no final, depois dos outros elementos da natureza, na sucessão das coisas do Universo. Alguns aspectos gerais do humanismo no texto de Mirandola:

Li nos escritos dos árabes, venerandos padres, que, interrogado Abdala Sarraceno sobre qual fosse a seus olhos o espetáculo mais maravilhoso neste cenário do mundo, tinha respondido que nada via de mais admirável do que o homem. Com esta sentença concorda aquela famosa de Hermes: “Grande milagre, ó Asclépio, é o homem”.

Pico della Mirandola, por autor desconhecido.

Ora, enquanto meditava acerca do significado destas afirmações, não me satisfaziam de todo as múltiplas razões que são aduzidas habitualmente por muitos a propósito da grandeza da natureza humana: ser o homem vínculo das criaturas, familiar com as superiores, soberano das inferiores; pela agudeza dos sentidos, pelo poder indagador da razão e pela luz do intelecto, ser intérprete da natureza; intermédio entre o tempo e a eternidade […]. Finalmente, pareceu-me ter compreendido por que razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados e digno, por isso, de toda a admiração, e qual enfim a condição que lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não só pelas bestas, mas também pelos astros e até pelos espíritos supramundanos. […] [...] Ao homem nascente o Pai conferiu sementes de toda a espécie e germes de toda a vida, e segundo a maneira de cada um os cultivar, assim estes nele crescerão e darão os seus frutos. Se vegetais, tornar-se-á planta. Se sensíveis, será besta. Se racionais, elevar-se-á a animal celeste. Se intelectuais, será anjo e filho de Deus, e se, não contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no centro da sua unidade, tornado espírito uno com Deus […], aquele que foi posto sobre todas as coisas estará sobre todas as coisas. DELLA MIRANDOLA, Giovanni Pico. Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa: Edições 70, 1989. p. 49-53.

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Destaque Questões de gênero

Simone de Beauvoir (1908-1986)

Coleção Roger-Viollet/AFP

Filósofa existencialista e atuante feminista francesa, criticando valores burgueses de família e casamento. Escreveu sobre a história da mulher na obra O segundo sexo, e denunciou o problema do idoso na sociedade contemporânea em A velhice. Também publicou diversos romances e livros autobiográficos. Foi companheira de JeanPaul Sartre.

Em O segundo sexo, a filósofa Simone de Beauvoir considera inaceitável a subordinação feminina às regras sociais ditadas pelo universo masculino.

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A função natural da mulher é casar, cuidar da casa, dos filhos e do marido. O homem nasceu para trabalhar e prover o sustento de sua família. Essas e outras ideias já foram inquestionáveis, mas passaram a ser revistas, sendo então chamadas de questões de gênero. Mas de que tratam exatamente essas questões? E em que medida elas lançam um novo olhar sobre os papéis do homem e da mulher na sociedade? Nas línguas latinas, quando se fala de “ser humano”, geralmente se usa o termo “homem”, isto é, a mesma palavra que designa os seres humanos do sexo masculino. Isso, evidentemente, provém da herança cultural machista que marca a nossa civilização, em que a maior parte do pensamento foi construído por homens, no sentido estrito da palavra. Por isso, alguns pesquisadores e autores criticam o uso desse termo quando se quer se referir à humanidade. O alemão, por exemplo, é uma língua que não traz essa ambiguidade: Man (homem) só é usado para representantes do sexo masculino e Mensch (ser humano) para designar representantes da espécie humana. A questão de gênero, entretanto, é uma discussão importante a partir da Filosofia do século XX, justamente porque algumas mulheres despontaram como pensadoras. Em 1949, a filósofa francesa Simone de Beauvoir lançou o livro O segundo sexo, que influenciou profundamente as reflexões feministas do século. Segundo Beauvoir, não existe uma “natureza feminina” diferente da “natureza masculina”, como muitos pensadores defenderam ao longo dos séculos, colocando uma diferença radical entre homem e mulher. Ela questiona o mito do “eterno feminino”, para afirmar uma interpretação revolucionária: que a pessoa aprende a se tornar mulher pela educação, ou seja, os papéis sociais atribuídos à mulher não têm relação com sua constituição biológica, mas são criados socialmente. Isso quer dizer que, do ponto de vista biológico, nada impede que uma mulher possa assumir papéis e funções que socialmente são atribuídas ao homem. E nada impede também que um homem assuma papéis e funções que uma sociedade entende que são exclusivas da mulher. Durante muitos séculos, o ato de filosofar pertenceu quase exclusivamente aos homens e, muitas vezes, a visão masculina em relação à mulher foi extremamente depreciativa. Aristóteles, por exemplo, viveu na sociedade grega onde as mulheres não tinham nenhum direito de cidadania e, para ele, a mulher não possuía integralmente a alma racional. Seu mestre, Platão, atribuiu às mulheres a capacidade de filosofar em sua obra A República; todavia, no mesmo livro, ao citar sua teoria da transmigração das almas, considerava um castigo divino a alma de um homem reencarnar em um corpo de mulher. A partir do advento do cristianismo, a visão a respeito da figura feminina mudou, mas ainda assim permaneceu marcada por aspectos negativos. Ao


Hannah Arendt (1906-1975) Nascida em uma família judia na Alemanha, refletiu sobre os valores morais presentes em uma determinada comunidade política e que levam os cidadãos a agir. Foi aluna de Martin Heidegger, com quem manteve relacionamento amoroso até o final da vida. Estudou as condições sob as quais nasceram os regimes totalitários do nazismo e do stalinismo, pelos quais responsabilizava a sociedade de massa e a expansão do imperialismo capitalista. Destacam-se, dentre suas obras, As origens do totalitarismo e Eichmann em Jerusalém.

Coleção Roger-Viollet/AFP

mesmo tempo em que foi julgada responsável pela origem do pecado na humanidade (com o dogma do pecado original de Adão e Eva – ver o capítulo V) e muitas vezes considerada fonte de tentação para o homem, também passou a ser mais valorizada em sua função de mãe e esposa, sendo então reconhecida como alma que podia atingir a “salvação” tanto quanto o homem. No entanto, ainda permaneceu durante séculos submetida a um regime em que pouca educação lhe foi facultada e quase nenhuma possibilidade de participação política e social lhe foi dada – a não ser no que se refere às grandes rainhas da História, o que já foi um avanço, pois na Antiguidade não houve mulheres ocupando governos, nem despontando na política grega, nem no Império Romano. A partir do Iluminismo, com a busca da emancipação humana, a mulher começou a ser incluída no discurso de liberdade que os homens proclamavam. Mas apenas a partir do século XIX é que observamos um início real de participação intelectual e social da mulher. Intelectuais como Georges Sand ou Rosa Luxemburgo, militantes como Louise Michel e Emmeline Pankhurst, e as afro-americanas Sojourner Truth e Harriet Tubman lutaram pela participação feminina na sociedade e pela afirmação das suas capacidades. Os movimentos anarquistas, marxistas e, mais recentemente, os dos direitos humanos, foram cenários importantes dessa luta. A mais avançada legislação em relação à mulher na História até então foi feita por Alexandra Kollontai (1872-1952), revolucionária russa atuante no governo de Lênin, imediatamente após a Revolução Russa de 1917. (Mais tarde, esse avanço sofreu recuos no governo de Stalin.) No século XX, finalmente, a mulher começou de fato a se emancipar e atualmente o discurso filosófico não pode mais existir apenas dentro do referencial masculino. Simone de Beauvoir, Simone Weil , Hannah Arendt e outras deram contribuições importantes ao pensamento humano. Hoje, há uma área da Filosofia que se preocupa com as questões de gênero. Nesse caso, gênero se refere às diferenças construídas socialmente entre homens e mulheres e às relações de poder desigual que resultam disso. Indica-se com esse conceito que as diferenças entre homens e mulheres não são um resultado necessário da diferença biológica entre os sexos, mas um produto social. Há vários anos, o termo gênero tem sido usado dessa forma nos documentos oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU).

Ilustração da ­intelectual George Sand vestida com roupas masculinas, com as quais frequentava a boemia francesa.

Simone Weil (1909-1943) Filósofa e escritora francesa de origem judaica, teve uma vida de militância política. Morreu em uma greve de fome em um protesto contra as condições dos prisioneiros de guerra na França ocupada durante a Segunda Guerra Mundial. Crítica do sistema capitalista, com influência marxista e anarquista, Simone trabalhou como operária em uma fábrica da Renault, para partilhar da pobreza dos operários. Converteu-se ao catolicismo e escreveu obras místicas.

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Museu do Louvre, Paris, França

O ser humano: um ser de matéria

Demócrito, porAntoine Coypel, 1692. Óleo sobre tela.

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Somos seres puramente físicos ou temos um lado espiritual que escapa ao domínio da matéria? Somos apenas um emaranhado de processos físico-químicos ou temos uma alma imaterial? Colocada de diferentes formas ao longo da história da filosofia, a questão a respeito da natureza humana tem sido objeto de intensa reflexão por parte dos filósofos. A tese atomista surgiu entre os últimos pré-socráticos que, cronologicamente, viveram na mesma época de Sócrates e Platão, no século V a.C. Pode-se dizer que essa corrente se iniciou com os gregos Leucipo e Demócrito, ao defenderem a ideia de que qualquer coisa, inclusive o ser humano, era um conjunto de átomos resultantes de forças da natureza. A concepção desses filósofos se desvinculava totalmente das explicações religiosas de seu tempo: o ser humano seria um ser puramente físico. Eles partiram da ideia especulativa de que tudo o que existia era composto de átomos – partículas indivisíveis – que, mediante choques e movimentos, iam se acoplando uns aos outros e formando tudo o que conhecemos. Os seres humanos, os deuses, as almas teriam estruturas atômicas. As almas seriam compostas de átomos muito sutis, imperceptíveis aos olhos, mas com uma estrutura atômica e material. Os pensadores atomistas não aceitavam a tese de uma alma imaterial e imortal. O homem, fosse no corpo, fosse na alma, era um conjunto de matéria atômica. A corrente atomista teve grande impacto na cultura grega e mesmo no pensamento posterior. A filosofia epicurista também foi representante dessa concepção, que influenciou teóricos renascentistas, pensadores dos séculos XVIII e XIX e, de certa forma, continua presente até hoje. Na atualidade, existem muitos defensores de que o ser humano nada mais é que um conjunto de células, assim como os outros seres vivos, e que mesmo os processos mentais podem ser explicados como resultado de processos químicos. O ser é um composto de células e sua conduta é resultado de uma complexidade de processos mecânicos, físicos e químicos. Atomistas mais contemporâneos defendem a tese de que o homem não pode ser reduzido apenas a um complexo físico-químico. O ser humano é um biossistema que tem por base o sistema nervoso central: um ser complexo, com uma riqueza de elementos e estruturas interdependentes entre si, composto de moléculas, campos e redes neuronais de interação. Nesse caso, o sistema nervoso e o cérebro são estruturas complexas que evoluíram até formar um psiquismo humano que produziu os comportamentos novos do animal humano. Somos seres de complexa biologia. Charles Darwin, no século XIX, foi precursor dessa tese e seus herdeiros contemporâneos defendem essas ideias.


O ser humano: um ser espiritual Os sofistas já tinham se preocupado com a problemática do ser humano, mas Sócrates foi o primeiro filósofo grego a se aprofundar nessa problemática, buscando uma resposta à questão: O que é o ser humano? Nesse sentido, podemos considerar tanto os sofistas quanto Sócrates como humanistas. Dentre os sofistas, destaca-se Protágoras, com a célebre frase “O homem é a medida de todas as coisas”. Os naturalistas (chamados de pré-socráticos) procuraram saber o que era a natureza e o fundamento das coisas naturais. Sócrates, seguindo uma orientação até então nova, se pergunta qual seria a natureza humana, buscando a interioridade, a consciência de si, a possibilidade de o ser humano pensar a si mesmo. Na problemática do ser humano, é difícil diferenciar as ideias de Sócrates das que lhe foram atribuídas por Platão, porque tudo (ou quase tudo) o que sabemos sobre Sócrates e seu pensamentonos foi transmitido por intermédio de diálogos platônicos, além de relatos feitos por Xenofonte e Aristófanes. Xenofonte (c. 427-355 a.C.) Foi um dos principais discípulos de Sócrates. Como historiador, fez análises e relatos do caráter dos grandes líderes e personalidades antigas. Os referentes a Sócrates são considerados importantes para entender a personalidade do filósofo. Escreveu também sobre a expedição grega, chamada de Anábase, relatos que se tornaram famosos, assim como sua obra Helênicas, sobre o século IV a.C.

No entanto, ainda assim, temos relativa clareza a respeito da prática filosófica socrática e de sua visão do humano.

A perspectiva socrática Sócrates, em sua prática filosófica, pode ser caracterizado inicialmente como alguém que pergunta. No entanto, o ato de perguntar e de questionar seu interlocutor está ligado a uma finalidade específica: o parto das almas (maiêutica). Esse é o grande objetivo da prática filosófica proposta por Sócrates aos seus interlocutores. Mas em que consiste exatamente esse parto? O parto socrático se dava por intermédio do diálogo, do debate. É através do exercício do questionamento, que o filósofo pretende levar seus interlocutores (discípulos, concidadãos e adversários) a chegarem à conclusão de que nada sabem. Essa é, portanto, uma parte importante do trabalho do parto: levar o outro a sair da ilusória posição de sábio e a reconhecer sua ignorância. A partir desse instante é que, de acordo com Sócrates, o homem pode se dedicar verdadeiramente ao que há de mais elevado: o conhecimento de si, isto é, o conhecimento de sua alma, daquilo que ele é, pensa e ama. 150


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Segundo Sócrates, o que há de mais elevado para o homem é dedicar-se ao conhecimento de sua alma. De acordo com Platão, pela alma o ser humano é transcedente, pelo corpo, é cheio de desejos e paixões.

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Platão desenvolve essa proposta dizendo que o corpo nada mais é do que o receptáculo da alma, seu instrumento. A alma usa o corpo, se serve dele, mas é ela que nos faz seres humanos. A vida do corpo depende da alma. Disso, Sócrates, secundado por Platão, extrai consequências ético-pedagógicas. Enquanto os gregos da época gastavam boa parte do tempo educando o corpo e viviam atrás de riquezas e poder, o filósofo alertava que se a alma é a essência do ser humano, nossos principais cuidados devem ser com ela. Para ele, e vemos isso em seu ato pedagógico da maiêutica, a principal preocupação do ser humano não deveria ser nem com a beleza do corpo, nem com a busca de poder e riqueza, mas com o cuidado e a educação da alma. O próprio filósofo dizia que a tarefa principal do ser humano era conhecer a si mesmo e, com isso, queria dizer que cada pessoa deveria conhecer sua alma para poder educá-la. Dando prosseguimento ao pensamento de seu mestre, Platão argumenta a favor da realidade da alma, da sua imortalidade e da sua volta à Terra. Esse ciclo da vida espiritual é um conceito fundamental na teoria socrático-platônica. Em síntese, podemos dizer que, para Platão, somos seres dotados de corpo e alma, sendo que apenas o corpo está sujeito à morte, enquanto a alma é imortal e dá a nossa identidade. Portanto, nossas capacidades se radicam na alma e não no corpo. A alma é capaz de raciocinar, de refletir, de chegar à verdade, de distinguir o bem do mal. Mas, em Diálogos, Platão introduz uma nova concepção, pois neles o corpo aparece como “cárcere” da alma, e corpo e a alma aparecem em oposição. A alma, presa ao corpo, cumpre uma espécie de pena. O corpo oferece obstáculos que perturbam nossa capacidade de ver as coisas como são; é motivo de corrupção e uma espécie de alienação de nossa essência espiritual. Assim, em Platão, pela alma o ser humano é um ser transcendente, dotado de identidade e da capacidade de ser bom, de chegar à verdade e ao belo por meio da razão e dos nobres sentimentos, como o amor. E, pelo corpo, é um ser de desejos e paixões. Na vitória da alma sobre o corpo, o ser humano é capaz de se conhecer, se autocontrolar e se autoeducar. Em suas últimas obras, porém, como A República, essa visão pessimista do corpo é atenuada. Influenciado pelas teorias platônicas, mas já com o impacto do cristianismo, Santo Agostinho, no século IV da Era Cristã, diz que guardamos na alma uma lembrança de nossa origem divina, mas essa lembrança está obstruída pelo chamado pecado original (ver capítulo 5). Bem mais tarde, São Tomás de Aquino, fazendo uma síntese entre o pensamento aristotélico e o pensamento cristão, diz que o ser humano é, ao mesmo tempo, corpo e alma – ambos formam uma substância. A morte é uma ruptura dessa substância. Assim, ele introduz outro dogma cristão: o da ressurreição da carne – para reassumir a sua integridade substancial, a alma deve estar reunida a seu próprio corpo, embora se trate de um corpo transformado.


Assim, temos que, para uma teoria como a de Platão, em que a identidade do ser está na alma, encaixa-se perfeitamente a ideia da reencarnação: transmigração das almas por diferentes vidas corpóreas, ideia essa presente em tradições gregas, como a órfica e a pitagórica, e em diversas tradições orientais, como a budista e a hindu. E, para uma teoria como a tomista, em que a identidade do ser é corpo e alma, ajusta-se a ideia da ressurreição do corpo, presente nas tradições judaico-cristã e islâmica.

Séculos depois, em plena era do racionalismo, outro filósofo que se alinha na perspectiva do ser espiritual é Descartes, já citado anteriormente. Depois de reconhecer sua própria existência, ele formula uma pergunta essencial para nossa discussão: Quem sou eu? Segundo o filósofo, para responder a essa dúvida cética, poderia supor que nem mesmo corpo tivesse, ou que o mundo não existisse, mas não poderia deixar de reconhecer que pensava, pois conseguia duvidar de todas essas coisas. Assim, ele conclui que era uma substância pensante e que para ser essa substância não dependia de nenhum lugar ou de nada material. Desse modo, Descartes entendeu que o que dava identidade ao seu eu era a alma pensante, e assim formulou a frase: Penso, logo existo. Para Descartes, a alma se localizaria em uma pequena glândula denominada pineal no meio do cérebro, de onde irradiaria, por meio do sangue e dos nervos, os comandos para todo o corpo. Para ele, a alma, de origem divina, não é produto do corpo; ao contrário, tem o comando da parte física. O corpo aparece como uma instância diferente da alma, pois a alma é uma substância distinta da substância do corpo, embora haja uma interação entre ambos. Como em Platão, a relação entre o corpo e a alma nem sempre é amistosa. Segundo Descartes, o corpo produz sensações, emoções e desejos animais que são percebidos e sentidos pela alma. No entanto, para ele, a vontade da alma pode vencer os instintos animais pela ação controladora da razão. As verdadeiras molas mestras das ações do ser humano podem ser guiadas pela racionalidade, e o pensamento pode exercer um controle sobre os apetites gerados pelo corpo. A razão pode se tornar consciente, avaliar, julgar, aceitando ou negando determinados impulsos gerados pelo corpo. Os intérpretes da sua filosofia chamaram essa tese de “dualista”, porque separa corpo e alma.

Museu Nacional de Nápoles, Itália

A perspectiva cartesiana

Escultura de homem sentado, período neolítico (cerca de 4 mil a.C.). Desde tempos remotos, escultores retratam o ser humano pensando.

O ser humano natural, histórico, social e político Somos o produto do meio no qual vivemos ou o que nos define como seres humanos independe das circunstâncias históricas, sociais e políticas? No seio do movimento iluminista, que se deu no século XVIII, duas concepções antagônicas dividiram as atenções e procuraram estruturar uma 152


resposta à pergunta sobre o que é o ser humano. Para os pensadores desse período, nem todos os problemas envolvendo essa questão estavam resolvidos.

W. Dugdale, Londres, Inglaterra.

De um lado, foi retomada a tese dos materialistas gregos e colocada em nova roupagem filosófica. Vários filósofos considerados iluministas defenderam a ideia materialista ou naturalista de que a matéria estática (Voltaire ) ou em movimento (Denis Diderot ) é o único elemento constitutivo do Universo. Diderot chega a afirmar que a realidade física está em contínuo movimento e desenvolvimento, tendo origem em si mesma e que, mesmo apresentando certa ordem, nada justificaria a existência de uma Inteligência Suprema. François Marie Arouet Voltaire (1694-1778) Foi um dos mais famosos iluministas franceses. Possuía grande clareza e talento para divulgar as ideias filosóficas iluministas, apesar de nem sempre ter sido considerado profundo ou original. Voltaire exaltou a razão e a Ciência, adotando o ponto de vista empirista, do conhecimento derivado da experiência. Elaborou uma poderosa crítica à religião instituída, assumindo uma posição anticlerical e atacando a intolerância religiosa. Um de seus pontos fortes foi a sua filosofia da tolerância. As suas duas obras mais importantes são Cândido, que contribuiu para a propagação do Iluminismo, e o Tratado de tolerância, uma exaltação da tolerância religiosa entre os povos. Retrato de Voltaire à mesa de trabalho. Ainda em vida, o filósofo alcançou imensa notoriedade como fundador do movimento iluminista.

Thomas Reid (1710-1796) Filósofo iluminista da escola escocesa do senso comum. Criticou Hume pelo seu ceticismo exacerbado. Defendeu, em sua filosofia, que o único caminho para se conhecer a obra da natureza é o da observação e o da experiência, extraindo-se regras gerais desse processo. Para ele, essa seria a única maneira de se observar com humildade a obra de Deus, sem querer acrescentar nada às informações que observamos.

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Denis Diderot (1713-1784) Filósofo e escritor iluminista francês. Foi, ao lado de D’Alembert, o principal organizador da Enciclopédia, obra que pretendia reunir todo o conhecimento da época e divulgar os ideais iluministas de liberdade e igualdade.

Segundo Diderot, esse teria sido um dos erros de Descartes, que havia se equivocado ao defender que o ser humano, com sua vida mental, era fruto de uma alma divina nele presente. Para ele, a natureza tem uma força imutável, eterna e indestrutível. Tais forças se desenvolvem em um movimento constante. O ser humano é um ser racional e de sentidos, mas não por paternidade divina e sim por ser filho da natureza. No entanto, o ser humano não seria fruto de processos materiais apenas orgânicos, e os sentimentos e o pensamento não podem ser atribuídos a um mero processo químico e biológico. O homem é um ser natural dotado de capacidades naturais, mas seu desenvolvimento é fruto de suas relações com o mundo, com a vida, com sua educação, com tudo aquilo que o circunda. Seu caráter e suas características dependem de suas circunstâncias, pois elas modificam o ser humano natural e o condicionam. O pensador inglês Thomas Reid chegou a uma posição semelhante: para ele, o ser humano é um animal que produz cultura. Assim, desenvolveu a ideia de que o ser humano é um ser natural que possui muitas capacidades interiorizadas em germes pela natureza, mas é a cultura e o


exercício que vão fazer com que essas capacidades desabrochem. Caso a cultura, a educação, o modo de vida não ajudem a desenvolver essas capacidades, permaneceremos em estado selvagem. Julien Offray de La Mettrie é outro pensador com características iluministas que critica a concepção de que a essência do ser humano é a alma, como haviam defendido Platão e Descartes. Segundo ele, nenhum desses grandes autores conseguiu provar com argumentos satisfatórios a existência da alma no ser humano e afirma que seria impossível conhecer de forma profunda a natureza da alma e ela só poderia ser separada do corpo por abstração da mente, pois se assemelha à matéria. Defende que o indivíduo é uma máquina tão complexa que é difícil defini-la de forma clara e com uma resposta simples. Temos de recorrer à experiência e à observação, e não construir uma resposta com palavras abstratas e vazias. Julien Offray de La Mettrie (1709-1751) Médico e filósofo francês iluminista, foi o primeiro a formular uma teoria inteiramente materialista do ser humano no pensamento moderno, considerando o corpo uma máquina.

Para Mettrie, o corpo é uma máquina que carrega as forças do seu movimento. As faculdades humanas não se concentram na alma, mas sim no corpo e no cérebro. Essa máquina é inteligente e racional, e a alma, nesse caso, é uma palavra vazia, destituída de sentido e de concretude. Os seres humanos se consideravam como uma alma, pois confundiam alma com as capacidades humanas, como a inteligência, os sentimentos e o pensar. Na verdade, os humanos nada mais são do que máquinas naturais inteligentes. De outro lado, houve uma reação a essas concepções: iluministas como Etienne Bonnot de Condillac e Rousseau guardaram concepções de humanidade e de mundo em que a alma e Deus estavam presentes. Os dois pensadores acreditavam que o ser humano era um ser composto de corpo e alma, sendo a alma distinta do corpo. Defenderam que essa alma que dá características ao ser humano é imortal e que era possível demonstrar a existência de Deus. Embora, para Rousseau, o ser humano seja um ser social e político por natureza, também é um ser divino. Aliás, já Aristóteles, na Grécia antiga, definia o ser humano como um animal político e social por natureza. Segundo ele, a natureza teria colocado em todos um instinto social. O ser humano é o melhor dos animais quando vive sob uma lei justa e um Estado de bem-estar, mas é o pior dos animais quando apartado dessa situação ideal.

Etienne Bonnot de Condillac (1715-1780) Filósofo francês iluminista, abade de Mureaux. Sua tese principal foi a do sensualismo, defendida no Tratado das sensações, de que as ideias vêm por meio dos sentidos.

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Filosofia no Brasil No final do século XVIII e início do XIX, o brasileiro Mariano José Pereira da Fonseca (1773-1848), Marquês de Maricá, escreveu uma obra de Filosofia moral no estilo sincopado de pensamentos soltos. No livro Máximas, pensamentos e reflexões, publicado em 1839, o marquês se revela fruto de seu tempo, com admiração humanista pelas pessoas, adepto de sua autonomia, crente na capacidade de progresso humano. Como bom brasileiro, herdeiro da tradição cristã, guarda forte religiosidade. Leia a seguir alguns de seus 4 188 aforismos:

1 266 – A inteligência humana derivada da divina contém alguma coisa da faculdade criadora e produtiva da sua origem, o que se manifesta nas obras inumeráveis dos homens, destinadas ao seu uso, cômodo, recreação e defesa. 3 134 – As noções do infinito, eternidade e intensidade, da imortalidade da alma e de uma vida futura com as transcendentes da infinita sabedoria, poder e bondade de Deus, autor e criador de tudo, provam demonstrativamente que a nossa vida não se limita à curta existência neste mundo, mas que terá de prolongar-se pela eternidade com variados corpos em inumeráveis mundos, crescendo a nossa inteligência progressivamente em ciência, virtude, amor, gratidão e admiração de Deus, e consequentemente em uma bem-aventurança tal que não é possível qualificar nem compreender [...]. 3 135 – O material e sensual é o invólucro ou estojo do racional e espiritual: o espírito é a substância ativa e inteligente, o corpo, o instrumento ou maquinismo executor e condutor da sua ação e inteligência. 3 786 – Os animais devem tudo à natureza, os homens, muito à sociedade. 3 823 – O homem é o animal vivente que goza muito mais que qualquer outro, sofrendo aliás em maior escala e de variados modos. 3 865 – A matéria não é menos misteriosa e incompreensível do que a inteligência, ambas porém se combinam, harmonizam e constituem o Universo. 3 872 – Tudo na natureza é objeto de admiração e pasmo, mas sobretudo o desenvolvimento progressivo do gênero humano no teatro deste mundo. 3 877 – Deus ab aeterno é criador, nunca deixou nem deixará de ser tal; na imensidade do espaço, uns mundos se extinguem, outros se formam sempre diversos na sua estrutura e habitantes: o Universo se renova constantemente por partes com variedade e novidade [...]. 155


MARQUÊS DE MARICÁ (Mariano J. P. Fonseca). Máximas, pensamentos e reflexões. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do? select_action=&co_obra=2049>. Acesso em: 25 nov. 2012.

O ser humano é feito pela História e faz a História

Interdisciplinaridade

História

The Phillips Collection

Para os pensadores Marx e Engels, para falar sobre o homem, é preciso deixar de lado as especulações abstratas e voltar-se para suas condições concretas. Não olhar para as reais condições históricas e sociais significa optar pela ideologia, criar um sistema de valores e teorias organizados como uma corrente de pensamento a ser usada como instrumento de luta política que pode favorecer a um grupo, no caso do marxismo, a classe proletária. E é adotando essa perspectiva que esses pensadores pretendem elaborar uma filosofia da ação, isto é, uma filosofia que promova uma modificação radical na estrutura da sociedade capitalista. Há grandes semelhanças e grandes diferenças entre o pensamento de Marx e Engels e o de escritores e pensadores dos séculos XVIII e XIX. Não se pode deixar de reconhecer que, de certa forma, Marx e Engels, como outros do seu tempo, foram muito influenciados pelas teses iluministas. Mas construíram, por sua vez, um pensamento que também exerceu grande influência na Filosofia e na problemática do ser humano. Segundo os dois pensadores, ao longo dos séculos, as teorias revelaram diferentes concepções, mas a maioria delas não considerou o que o ser humano tem de essencial: sua capacidade de produção. O ponto de partida de Marx e Engels é a importância que atribuem à capacidade produtiva do ser humano, que, ao estabelecer relações com o mundo e com o meio ambiente, cria mecanismos necessários para sobreviver. A força produtiva humana é a mãe da História e a essência da humanidade. Para eles, ao longo do tempo, a humanidade fez falsas representações de si mesma. E essas representações sempre estiveram intrinsecamente ligadas à ideia de Deus ou de alguma espécie de natureza humana estática. Os seres humanos criaram tais imagens dogmáticas e fantasiosas e acabaram escravos delas. Em seus escritos, defendem a concepção de que seria importante libertar os homens de ideias imaginárias e fantasiosas para se chegar a um pensamento que correspondesse à verdadeira essência humana. A obra O levante, de Honoré Daumier, c. 1860, mostra pessoas, provavelmente do séc. XIX, se manifestando, em uma realidade que as massacra e na qual elas precisam sobreviver.

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Ubaldo Nicola

Hegel e a águia, o símbolo da nação alemã.

Na imagem, anarquistas marcham durante a Guerra Civil espanhola. Vários grupos de resistência, como este, atuando na realidade concreta, tiveram papel importante na luta contra o ditador Francisco Franco e o fascismo. Apesar disso, o general Franco, que estava do lado que venceu a Guerra Civil espanhola – após os militares derrubarem um governo legalmente eleito –, se manteve no poder de forma ditatorial até sua morte, em 1975.

Na realidade, Marx e Engels traçam uma crítica aos pensadores do seu tempo, aos cientistas naturais e, especificamente, aos filósofos alemães. Na opinião de ambos, a Filosofia ainda continuava muito condicionada aos postulados de Hegel, com todos os prejuízos do sistema especulativo e ­teológico que este propunha. Eles dedicam muita atenção em seus trabalhos à leitura crítica de Hegel que, segundo eles, havia esquecido o ser humano real e criado um amontoado de representações imaginárias. Rejeitam a dependência de muitos sistemas filosóficos ao sistema hegeliano e defendem, por outro lado, que os cientistas naturais que explicavam o ser humano de forma materialista erravam quando atribuíam todos os fenômenos mentais, sentimentos e capacidades humanas ao resultado de processos apenas materiais, corporais e orgânicos. Assim, esqueciam de que, além de naturais, os humanos são seres sociais e históricos. A ideia do homem não pode ser calcada na concepção de um ser ideal, estático e abstrato, mas de um ser real e ativo. Para entender o que é o ser humano, as especulações teológicas vazias de nada adiantariam; seria preciso considerá-lo em sua realidade concreta, tentando compreender a existência dele na História e, ao mesmo tempo, entender a História como uma realidade feita pela humanidade por meio de sua produção, de sua atividade, 157

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Marx e Engels consideravam que Hegel havia esquecido o ser humano real e criado uma série de representações imaginárias. Segundo eles, os seres humanos, além de naturais, são sociais, pois agem de forma a interferir na História.


do seu trabalho e de sua ação na sociedade. Podemos dizer que a estrutura básica da natureza humana é sua tendência à produção e à ação. A vida e a História se modificam por meio da ação humana. A ação humana vai transformando continuamente a realidade e, ao transformar as circunstâncias, modifica o próprio ser humano. Segundo eles, o ser humano somente seria entendido se analisado na produção de suas condições materiais de existência, nas relações exteriores que estabelece com a natureza e com seu semelhante. Assim, é pela produção dos meios materiais de vida que os homens se distinguem dos animais e produzem História. Portanto, a essência humana reside na sua realização histórica, e não na consciência ou em uma interioridade abstrata, como pensavam os idealistas ou os materialistas metafísicos. Na teoria de Marx, essência e consciência não são dados da natureza humana nem atributos divinos, mas são produzidas nas relações de produção, que são relações dos seres humanos entre si e com a natureza. O conjunto de pensamentos do homem – no campo filosófico, religioso, jurídico, moral ou científico – é determinado pela base material de trabalho, de produção e das relações sociais. Assim, das relações materiais, da atividade humana e do seu modo de produzir os bens materiais nascem as relações espirituais, a religião, a política, o direito etc. E só se modificam conforme se modificam as primeiras. Entretanto, seria um erro considerar que essas condições são sempre as mesmas, pois essas determinações materiais se modificam conforme as mudanças nos modos de trabalho e de produção, transformando-se de acordo com o tempo ou o lugar. A consciência dos seres humanos e a História são guiadas pelas condições materiais nas quais eles vivem. Dessa forma, ao mesmo tempo em que o homem modifica o ambiente, ele é modificado pelo meio. Em síntese, sobre essa questão, os postulados marxistas podem ser resumidos da seguinte forma: não existe uma essência humana geral e comum; o ser humano é sempre historicamente condicionado pelas relações que estabelece com os outros homens, com a natureza e pelas exigências do trabalho produtivo. Essas relações materiais condicionam as ideias, a consciência e o indivíduo humano; condicionam os indivíduos, mas ao mesmo tempo são condicionadas por ele. O ser humano é, sobretudo, um ser histórico, político e social.

O ser humano: um ser simbólico O simples fechar de uma porta pode simbolizar muito mais que apenas um gesto bastante trivial. Fechar a porta diante do pedido de um amigo, por exemplo, pode ser considerado um ato de egoísmo ou traição. Em outro contexto, fechar a porta pode simbolizar preocupação ou precaução diante da violência das grandes cidades. Esse e outros gestos aparentemente banais são sempre simbólicos. Assim, de acordo com alguns autores, o que acontece é que os homens não se relacionam com a realidade imediata física, mas apenas com a realidade simbólica. 158


Para o filósofo alemão neokantiano Ernst Cassirer , a mera definição dada pelos filósofos gregos, como Aristóteles, de que o ser humano é um animal social e racional não dava conta de explicar a complexidade desse ser. Ele é o único animal que possui a capacidade de criar um sistema simbólico, e, com isso, criar cultura. O pensamento e o comportamento simbólicos são o que existe de mais característico no homem que criou um universo de símbolos à sua volta e vive de acordo com ele. A criação dos símbolos permitiu ao ser humano entender, interpretar, organizar, sintetizar e comunicar suas experiências.

Neokantiano Filósofos que retomaram a filosofia de Kant no século XX.

Ernst Cassirer (1874-1945) Filósofo alemão da corrente neokantiana. Foi obrigado a fugir da Alemanha por causa do regime nazista, tornando-se mais tarde professor da Universidade de Yale (EUA). Obras como Filosofia das obras simbólicas, Ensaio sobre o homem, Linguagem e mito e Mito e Estado mostram o trabalho de Cassirer no campo da análise da linguagem e das formas simbólicas, presentes na cultura e no conhecimento.

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Na verdade, diferentemente dos animais, não vivemos apenas em um ambiente físico: criamos uma nova realidade, a simbólica. Em seu livro Ensaio sobre o homem, Cassirer mostra como o mito, a religião, a linguagem, a Arte, a Filosofia e a Ciência são partes integrantes desse universo construído pela humanidade. Construímos e vivemos em uma espécie de malha simbólica e nos movemos por entre essa malha. Ela é inseparável da vida e das experiências humanas. Cassirer diz que os seres humanos cercaram- -se de formas de linguagem, de símbolos religiosos e míticos, de modo que nada com que se relacionem e conheçam pode ser de forma pura; tudo é mediado pelos símbolos, todas as nossas relações com o mundo e com os outros seres humanos também. Nesse sentido, os homens construíram um mundo próprio. Ninguém vive diretamente ligado à realidade física: nossa leitura da realidade passa pelo mundo dos símbolos.

Dom Quixote e Sancho Pança, de ­Honoré Daumier, 1840. Para muitos pensadores, Dom Quixote personificou o universo simbólico criado pelo ser humano.

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O ser humano: um ser de desejos

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Somos seres dotados de desejos. Mas será que todos os nossos desejos são conscientes? Será que temos clareza a respeito de tudo o que, de fato, desejamos? Essa suspeita sobre a natureza e o alcance de nossos desejos começou a ser lançada no século XIX por alguns filósofos, e foi desenvolvida por vários pensadores ao longo do século XX, dentre os quais destacamos Freud. Vamos ver o que eles disseram a respeito disso. Já vimos que Espinosa disse que o ser humano, em sua essência, é um ser de desejos. Seu desejo básico é a tendência de ser sempre. O homem quer ser sempre, tem vontade de eternidade. Desejar ser sempre e ter vontade de saber o que deseja: eis o que é o ser humano para Espinosa. Mas, no século XIX, dois autores alemães desencadearam uma ideia de homem-desejo, homem-vontade de poder, homem-forças instintivas e irracionais. Um deles, já bastante abordado aqui, é Friedrich Nietzsche. E o outro é Arthur Schopenhauer . Arthur Schopenhauer (1788-1860) Filósofo que possui uma clareza que poucos filósofos alemães de seu tempo alcançaram. Sua obra constituiu-se como uma crítica do racionalismo iluminista e, ao mesmo tempo, à filosofia de Hegel. Formulou a tese de que todo objeto a ser conhecido é sempre condicionado pelo sujeito que o conhece e, por isso, é sempre a representação desse sujeito. Para ele, a realidade em si é impenetrável ao conhecimento humano, e os seres humanos só podem criar representações, que encobrem a realidade e criam ilusões. Mas, independentemente das percepções ilusórias do indivíduo, existe o que realmente é, e, para ele, o que é na vida é a vontade. Todas as ações e buscas de conhecimento têm na base a vontade. Desejar e agir são a mesma coisa. Essa vontade que abrange tudo é uma força poderosa e cega que está presente na vida e nos seres humanos. Sua obra mais importante é O mundo como vontade e representação. Arthur Schopenhauer

O conceito de ser humano racional e de intelecto consciente não convencia Schopenhauer. Para ele, a consciência, a racionalidade e o intelecto são simples superfícies de nossa mente, apenas uma espécie de crosta, mas era preciso descobrir e mergulhar naquilo que estava além dessa superfície. Ele achava que, por trás do pensamento consciente da humanidade, as verdadeiras molas mestras das ações humanas são inconscientes. Segundo ele, elas têm suas raízes em uma vontade inconsciente que age e guia a consciência. O ser humano é força vital, desejo espontâneo, vontade de querer. Segundo Schopenhauer, nós encontramos motivos para as coisas que queremos, racionalizamos nossos desejos. Podemos nos iludir de que é o intelecto que dirige a vontade, mas essa é uma falsa noção: é nossa vontade que dirige o intelecto. Em sua opinião, os seres humanos elaboram filosofias e teologias para justificar seus desejos mais profundos. Por isso, o homem 160


Coleção Roger-Viollet/AFP

Caricatura de Freud, na visão de T. Pericoli.

é um animal metafísico. Os outros animais desejam sem criar pensamentos abstratos que os justifiquem, mas o humano é um ser de instintos que, na maioria das vezes, desconhece a essência do seu próprio ser. Schopenhauer diz que o que motiva o pensamento e as ações humanas são seus desejos instintivos. A verdadeira essência dos humanos é sua vontade, que é o único elemento imutável e permanente na natureza humana. O próprio caráter humano é fruto da vontade, e não do intelecto. O corpo humano, na filosofia de Schopenhauer, aparece como instrumento por meio do qual a vontade se manifestaria. Afirma que o corpo não passa de vontade humana objetivada e apresenta os exemplos: a garganta, os dentes, os intestinos são a necessidade de comer, a fome objetivada; os órgãos reprodutores seriam os desejos sexuais objetivados. Todas as partes do corpo correspondem inteiramente aos desejos humanos. A essência do homem é a vontade de viver, viver em plenitude. E, como consequência desse instinto básico, nasce outro instinto, que é a vontade de se reproduzir. O homem, portanto, pode ser definido como ser de vontades, necessidades e desejos, sendo dois instintos supremos: o de viver e o de reproduzir-se. No fundo, defende Schopenhauer, conhecemos os humanos em seu estado de domesticação social, mas essa é sua superfície – o que ele é, no seu estado natural, é ferocidade e selvageria. Nietzsche, que teve grande influência de Schopenhauer, queria justamente desmascarar a construção moral racional, cristã, ocidental, que haveria soterrado o instinto de vida e a vontade de poder, que, segundo ele, são próprios do ser humano. Sigmund Freud revela afinidades com o pensamento de Schopenhauer e Nietzsche com uma teoria a respeito da psique humana e uma proposta de terapia. Segundo ele – e suas ideias tiveram enorme repercussão no século XX –, o ser humano teria um inconsciente que impulsiona suas ações sem que ele se aperceba. O inconsciente, para Freud, se divide em três instâncias: • o id: esfera dos instintos ou impulsos fundamentais, Eros e Thanatos (instinto sexual e instinto de morte). Essa base instintiva, que é desejo de prazer e desejo de morte, não poderia ser liberada completamente, pois criaria o caos social; • o superego: por meio dos mecanismos de repressão, dados pela educação, o ser humano cria um arcabouço de princípios éticos para controlar a parte instintiva; • o ego: intermediário entre o id e o superego, é o que tem de administrar o conflito entre os instintos básicos e a moral social. Sigmund Freud (1856-1939) Médico austríaco, criador da Psicanálise, fez uma forma de abordagem terapêutica da mente humana, considerando-a em seus aspectos do inconsciente e das pulsões instintivas. Algumas de suas obras são Psicologia da vida cotidiana, Totem e tabu, A interpretação dos sonhos e O ego e o id.

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Desse conflito nascem as neuroses, pois o ser humano nunca poderá encontrar felicidade, já que a vida social requer a repressão de seus desejos. A vida em civilização nasce da necessidade de o ser humano contrariar e sufocar seus instintos fundamentais. Vale lembrar que essa ideia, apresentada por Freud em sua obra Mal-estar da civilização já estava presente em Nietzsche, que de uma forma bastante categórica descreveu o homem civilizado como um sujeito adoecido em função do sufocamento de seus instintos fundamentais. Durante o século XX, houve continuadores do pensamento de Freud, como Wilhelm Reich e Herbert Marcuse , que discordam dessa necessidade de repressão. Ao contrário, consideram que é preciso liberar a libido – essa força sexual humana – sem tabus ou repressões. Essas ideias influenciaram o movimento de liberação sexual que passou a ocorrer a partir da década de 1960. Wilhelm Reich (1897-1957) Filósofo e psicanalista austríaco radicado nos Estados Unidos. Seguiu algumas ideias de Freud no que diz respeito à importância da sexualidade na psique humana, mas analisava também a problemática das relações de poder como fonte das neuroses. Pregava a necessidade de se desbloquear a energia sexual para permitir o orgasmo. Suas opiniões inovadoras a respeito da sexualidade resultaram em distorções de seu trabalho e despertaram ataques difamatórios. Em 1957, é condenado a dois anos de prisão, sendo a publicação de suas obras proibidas. Ainda assim ele continua escrevendo na prisão, onde morre no mesmo ano, vítima de ataque cardíaco. Entre suas obras, estão A função do orgasmo, Materialismo dialético e psicanálise, Análise do caráter e Psicologia de massas do fascismo.

Herbert Marcuse (1898-1979) Filósofo e sociólogo alemão radicado nos Estados Unidos, pertenceu à Escola de Frankfurt. Recebeu influência de Marx e de Freud, e foi um crítico da sociedade de consumo. Mostrou que mecanismos de repressão individual e sexual continuam presentes, mesmo em uma sociedade supostamente livre. Suas principais obras são Razão e revolução, Eros e civilização, O homem unidimensional e O fim da utopia.

Cem anos antes de Freud apresentar suas ideias, o educador e pensador suíço Johann Heinrich Pestalozzi, já mencionado em capítulo anterior, formulou uma teoria semelhante à de Freud, mas com outros desdobramentos. Ele também considera que o ser humano tem uma base instintiva – o estado natural – e um arcabouço repressivo gerado pela educação – o estado social (o que seria o superego em Freud). Pestalozzi admitia que esse conflito entre o estado natural e o estado social gerava doenças psíquicas, e ainda mais: guerras, violências e crueldades. Entretanto, se para Freud teríamos de aprender a conviver com esse conflito interno, administrando-o racionalmente, para Pestalozzi havia outra solução. Para ele, existiria outra dimensão no ser humano, ausente em Freud, que é o estado moral. Ou seja, temos dentro de nós uma dimensão 162


espiritual, divina, e se a despertarmos, por meio da educação, como propunha Sócrates, então, nem seremos escravos dos instintos nem resignados em relação às regras sociais. Seremos livres, porque nos realizaremos como seres morais e espirituais. O estado natural e o estado social não serão descartados ou reprimidos, mas reaproveitados de maneira criativa e positiva.

O estruturalismo como anti-humanismo Temos liberdade de escolha para optar pelo que queremos e o que não queremos ser. Mas será que essa ideia de liberdade é real? Alguns estudiosos afirmam que existem elementos estruturais da realidade humana que eliminam ou restringem a liberdade humana – tais ideias compõem a corrente estruturalista (e depois as pós-estruturalistas no século XX) e dedicaram suas críticas à ideia de um homem com capacidades de racionalidade, emancipação, liberdade, consciências, se opondo, dessa forma, ao humanismo. Para os estruturalistas, as pesquisas científicas e as descobertas sobre o ser humano demonstravam haver estruturas na realidade e no inconsciente que atuavam no ser humano e que o determinavam. Um dos grandes estruturalistas, o antropólogo Claude Lévi-Strauss reconhecia que certos tabus – como o tabu do incesto – eram estruturas universais em todas as culturas e determinavam o comportamento humano. Estruturas dessa espécie, atuando inconscientemente no homem, tirariam sua liberdade e sua força de ação. Claude Lévi-Strauss (1908-2009) Antropólogo, etnólogo e filósofo francês. Ao estudar mitos e rituais, identificou pontos comuns a diversas culturas e buscou semelhanças estruturais entre elas. Tornou-se um dos maiores nomes da linha estruturalista da antropologia social – para ele o ser humano não é um habitante privilegiado do mundo, mas apenas uma espécie passageira que deixará traços de sua existência quando estiver extinta. Esteve no Brasil como professor de Sociologia na recém-fundada Universidade de São Paulo (USP) e em viagens, tendo visitado algumas tribos indígenas brasileiras. Entre suas obras, estãoTristes trópicos, Antropologia estrutural, O pensamento selvagem e Mitológicas.

A principal polêmica do estruturalismo foi com o humanismo de linha existencialista (que veremos no capítulo 7), que atribui um papel importante ao ser humano na construção da História e de sua liberdade. As correntes científicas, segundo os estruturalistas, teriam mostrado que essa ideia é ilusória e não teria mais como ser sustentada, pois eram construções ideais, sem conexão com a realidade. O humanismo exalta o ser humano, mas não o explica. O estruturalismo explica o homem por meio das complexas estruturas linguísticas, econômicas, sociais, inconsciente-psicológicas, físico-químico-biológicas, valorativas, culturais que o guiam e escapam totalmente de seu controle racional e consciente. Nesse sentido, o ser humano é condicionado por 163


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todos esses elementos complexos, não é livre conscientemente para determinar e ditar seus próprios rumos, pois existem normas, um conjunto de leis ou estruturas que está muito acima de sua vontade autônoma e governam os fenômenos humanos. Assim, o homem perde seu lugar privilegiado no tempo e no espaço, deve assumir que é movido por forças que estão infinitamente acima das suas e o que lhe resta é poder escolher entre um oceano de possibilidades estruturais. Os autores que adotaram postulados semelhantes a esses, independentemente se aceitaram a classificação de estruturalista ou não, foram Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault, Jacques Lacan e Louis ­Althusser . ­Foucault cita que, nos tempos contemporâneos, mais do que diante da ausência de Deus, o homem está diante da ausência do próprio homem.

Os psicanalistas Françoise Dolto e Jacques Lacan, em Estolcomo, em 1963.

Jacques Lacan (1901-1981)

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Representante da psicanálise francesa, seu esforço foi reinterpretar Freud, estudando o significado do inconsciente para o pensamento humano. De acordo com sua teoria, todo o conjunto de pensamentos, conceitos, categorias e símbolos presentes na linguagem humana se origina no inconsciente. A racionalidade não é algo objetivo e límpido, pois também é fruto da obscuridade do inconsciente. Desse modo, o inconsciente é estruturado como linguagem. Lacan tornou-se um pensador exaltado no movimento da pós-modernidade. Disseminou suas ideias primordialmente de forma oral, por meio de seminários e conferências, que foram posteriormente publicados em coletâneas denominadas Escritos e O seminário.

Louis Althusser (1918-1990) Filósofo francês de origem argelina. O cerne de seu pensamento girou em torno dos conceitos marxistas de ideologia, luta de classes, revolução, História e materialismo dialético. Uma de suas principais obras foi A favor de Marx. Recebeu também influência das teorias de Freud. Considerado um dos principais nomes do estruturalismo, sendo sua principal tese o anti-humanismo teórico, analisando o processo social como fenômeno objetivo, e não como o resultado da vontade de um sujeito.

O filósofo francês Louis Althusser, em 1978

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Texto original A ideologia alemã, em especial, a Filosofia alemã Karl Marx e Friedrich Engels

s premissas de que partimos não constituem bases arbitrárias, nem dogmas; são antes bases reais de que só é possível abstrair no âmbito da imaginação. As nossas premissas são os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de existência, quer se trate daquelas que encontrou já elaboradas quando do seu aparecimento, quer das que ele próprio criou. Estas bases são portanto verificáveis por vias puramente empíricas.

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A primeira condição de toda a História humana é evidentemente a existência de seres humanos vivos. O primeiro estado real que encontramos é então constituído pela complexidade corporal desses indivíduos e as relações a que ela obriga com o resto da natureza. [...] Toda a historiografia deve necessariamente partir dessas bases naturais e da sua modificação provocada pelos homens no decurso da História. [...] Pode-se referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém, esta distinção só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é consequência da sua organização corporal. Ao produzirem os seus meios de existência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material. [...] O que são coincide portanto com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como com a forma como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção. [...] A produção de ideias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e inti165

mamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens surge aqui como emanação direta do seu comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual quando esta se apresenta na linguagem das leis, política, moral, religião, metafísica etc., de um povo. São os homens que produzem as suas representações, as suas ideias etc., mas os homens reais, atuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhe corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar. A consciência nunca pode ser mais do que o Ser consciente e o Ser dos homens é o seu processo da vida real. [...] Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. [...] Devemos lembrar a existência de um primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, a saber, que os homens devem estar em condições de poder viver a fim de fazer História. Mas, para viver, é necessário antes de mais nada beber, comer, ter um teto onde se abrigar, vestir-se etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios que permitem satisfazer as necessidades, a produção da própria vida material [...]. O segundo ponto a considerar é que uma vez satisfeita a primeira necessidade, a ação de a satisfazer e o instrumento utilizado para tal conduzem a novas necessidades e essa produção de novas necessidades constitui o primeiro fato histórico. [...] O terceiro aspecto que intervém diretamente no desenvolvimento histórico é o fato de os homens, que em cada dia renovam a sua própria vida, criarem outros homens. Reproduzirem-se; é a relação entre o homem e a mulher, os pais e os filhos, a família. [...] A consciência é, pois, um produto social e continuará a sê-lo enquanto houver homens. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Lisboa: Presença, s/d. p. 18-19 e 25-26.


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A imagem mostra mulheres atuando na realidade de seu tempo, década de 1960, participando de manifestação por salários iguais aos dos homens. Como consta no texto de Marx e Engels, para viver é preciso comer, beber, ter moradia. Na teia emaranhada da experiência humana, citada por Cassirer, a consciência dos direitos é um ato de coragem.

Uma chave para a natureza do ser humano: o símbolo Ernst Cassirer

Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se encontram em todas as espécies animais, encontramos no ser humano um terceiro elo, que podemos descrever como o sistema simbólico. Essa nova aquisição transforma toda a vida humana. Em confronto com os outros animais, o ser humano não vive apenas numa realidade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova dimensão da realidade. Existe uma diferença inequívoca entre as reações orgânicas e as respostas humanas. No primeiro caso, a resposta dada a um estímulo exterior é direta e imediata; no segundo, a resposta é diferida. É interrompida e retardada por um lento e complicado processo de pensamento. À primeira vista, esse atraso pode parecer uma vantagem, muito discutível. Inúmeros filósofos lançaram advertências contra esse pretenso progresso. […] Entretanto, não existe remédio contra essa inversão da ordem natural. O ser humano não pode fugir à própria consecução. Não pode deixar de adotar as condições da própria vida. Já não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste universo. São

os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência humana. Todo o progresso humano no pensamento e na experiência aperfeiçoa e fortalece esta rede. Já não é dado ao ser humano enfrentar imediatamente a realidade; não pode vê-la, por assim dizer, face a face. A realidade física parece retroceder proporcionalmente, à medida que avança a atividade simbólica do ser humano. Em lugar de lidar com as próprias coisas, o ser humano, em certo sentido, está constantemente conversando consigo mesmo. Envolveu-se de tal maneira em formas linguísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou em ritos religiosos, que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão pela interposição desse meio artificial. Tanto na esfera teórica quanto na prática, a situação é a mesma. Nem mesmo nesta última vive o ser humano num mundo de fatos indisputáveis, ou de acordo com suas necessidades e desejos imediatos. Vive antes no meio de emoções imaginárias, entre esperanças e temores, ilusões e desilusões, em seus sonhos e fantasias. “O que perturba e alarma o homem”, diz Epiteto, “não são as coisas, são suas opiniões e fantasias a respeito das coisas.” Do ponto de vista a que acabamos de chegar, podemos corrigir e ampliar a definição clássica do ser humano. A despeito de todos os esfor166


ços do irracionalismo moderno, a definição do ser humano como animal rationale não perdeu sua força. A racionalidade, com efeito, é uma característica inerente a todas as atividades humanas. A própria mitologia não é, pura e simplesmente, um conjunto vulgar de superstições ou de grosseiras ilusões. Não é puramente caótica, pois possui forma sistemática ou conceitual. Mas, por outro lado, fora impossível caracterizar como racional a estrutura do mito. A linguagem foi frequentemente identificada com a razão, ou com a própria origem da razão. Mas é fácil ver que esta concepção não consegue abarcar todo o campo. É uma pars pro toto; oferece-nos uma parte pelo todo. Pois lado a lado com a linguagem conceitual há a linguagem emocional; lado a lado com a linguagem lógica ou científica há a linguagem da imaginação poética. Em primeiro lugar, a linguagem não expressa pensamentos nem ideias, mas sentimentos e afeições. […] Razão é um termo muito pouco adequado para abranger as formas da vida cultural do ser humano em toda a sua riqueza e variedade. Mas todas essas formas são simbólicas. Portanto, em lugar de definir o ser humano como um animal rationale, deveríamos defini-lo como um animal symbolicum. Deste

Atividades Cinema pensante

modo, podemos designar sua diferença específica, e podemos compreender o novo caminho aberto ao ser humano: o da civilização. CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica. São Paulo: Mestre Jou, 1977. p. 49-59.

Para estudar os textos: • •

Leia os verbetes referentes aos autores Marx, Engels e Cassirer. Anote no caderno todas as palavras que você desconhece e procure-as no dicionário. Entenda os textos parágrafo por parágrafo, relendo-os se for necessário, para a compreensão integral do pensamento de cada autor. Se houver algum conceito ou trecho que lhe pareça particularmente difícil, peça ajuda a seu professor ou consulte um dicionário de Filosofia. Compare as concepções de ser humano dos dois textos. Há algo em comum entre eles? O que há de diferente?

Não escreva n

o livro!

Interdisciplinaridade

Arte

Filme: Efeito borboleta (The butterfly effect), 2004. Direção de Eric Bress e J. Mackye Gruber. Rapaz descobre sua capacidade de voltar no tempo por meio de suas lembranças. Ao utilizar esse poder para ficar com a garota por quem é apaixonado, insere um problema no presente. Assim, entra em um ciclo de viagens no tempo, pois cada vez que retorna ao passado para corrigir um problema, um novo surge e algo ruim acontece às pessoas que conhece. • Assista ao e filme faça uma resenha sobre ele, verificando se há uma relação temática com o capítulo estudado. [...] • Pesquise sobre o filme Wall Street: o dinheiro nunca dorme, de Oliver Stone, de 2010, e faça um paralelo com o texto de Erich Fromm, Ter ou ser, da pág. 171. Fromm avalia se há alternativa entre 167


o anseio por posses e o desenvolvimento como ser humano. No filme, uma continuação de Wall Street, poder e cobiça, de 1987, é retomada a história de um investidor do mercado financeiro sem escrúpulos – e um símbolo da ganância pelo dinheiro e poder – que, trabalhando com um jovem idealista, tenta retomar seu império após sair da prisão.

Lanche filosófico Leia os trechos a seguir, escritos por Erich Fromm (1900-1980), psicólogo humanista. Depois, forme um grupo com dois ou três colegas e discutam, com base nas seguintes ponderações: • de acordo com o que foi estudado neste capítulo, que sentido Fromm dá ao termo ser? • como você entende essa polaridade entre ser e ter, descrita por Fromm? • você concorda com a predominância do ter no mundo atual? Como romper com isso?

Ter ou ser? A alternativa ter contra ser não fala imediatamente ao senso comum. Ao que tudo indica, ter é uma função normal da nossa vida: a fim de viver nós devemos ter coisas. Além do mais, devemos ter coisas a fim de desfrutá-las. Numa cultura em que a meta suprema é ter – e ter cada vez mais – e na qual se pode falar de alguém como “valendo um milhão de dólares”. Como poderá haver alternativa entre ter e ser? Pelo contrário, tem-se a impressão de que a própria essência de ser é ter: de que se alguém nada tem, não é. Contudo, os grandes mestres da vida fizeram da alternativa entre ter e ser a questão central de seus respectivos sistemas. Buda ensina que, para chegarmos ao mais elevado estágio do desenvolvimento humano, não devemos ansiar pelas posses. Jesus ensina: “pois quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa, esse a salvará.[...] Mestre Eckhart ensinava que ter nada e tornar-se aberto e “vazio” e não colocar o eu no centro é a condição para conseguir riqueza e robustez espiritual. Marx ensinava que o luxo é tanto um mal como a miséria, e que nosso ideal deve consistir em ser muito, e não ter muito. [...] Por muitos anos fiquei profundamente impressionado por essa distinção e me empenhei na procura de uma base empírica no estudo prático de indivíduos e grupos pelo método psicanalítico. O que vi em todos esses anos levou-me a concluir que essa distinção juntamente com aquela entre amor da vida e amor dos mortos representa o mais crucial problema da existência; que os dados empíricos antropológicos e psicanalíticos tendem a demonstrar que ter e ser são dois modos fundamentais de experiências, cujas respectivas forças determinam as diferenças entre os caracteres dos indivíduos e vários tipos de caráter social. […]

A natureza do ter A natureza do modo ter de existência decorre da natureza da propriedade privada. Nesse modo de existência, tudo o que importa é minha aquisição de propriedade e meu irrestrito direito de manter o adquirido. O modo ter exclui todos os demais; ele não exige qualquer esforço a mais de minha parte para manter minha propriedade ou para fazer uso produtivo dela. [...] A oração “eu tenho algo” exprime a relação entre o sujeito eu (ou ele, nós, vocês, eles) e o objeto. Implica que o sujeito é permanente e que o objeto é permanente. Mas haverá permanência no sujeito? Ou 168


no objeto? Sei que um dia morrerei; posso perder a posição social que me garante a posse de alguma coisa. O objeto também é transitório: pode ser destruído, pode perder-se, pode depreciar-se. Falar de posse de alguma coisa permanentemente é confiar na ilusão de uma substância permanente e indestrutível. Se tenho a impressão de ter tudo, na realidade nada tenho, visto que ter, possuir, controlar um objeto, não passa de um momento efêmero no processo da vida. […] No modo ter, não há relação viva entre mim e o que tenho. A coisa e eu convertemo-nos em coisas, e eu a tenho porque tenho o poder de fazê-la minha. Mas há também uma relação inversa: ela tem a mim, porque meu sentido de identidade, isto é, de lucidez, repousa em meu possuí-la (e tantas coisas quantas possível). O modo ter de existência não se estabelece por um processo vivo e criativo entre o sujeito e o objeto; ele transforma em coisas tanto o sujeito como o objeto. A relação é de inércia e não de vida. […]

O ser ativo O modo ser tem como requisito a independência, a liberdade e a presença de razão crítica. Sua característica fundamental é a de ser ativo, não no sentido de atividade externa, de estar atarefado, mas no sentido de atividade íntima, de emprego criativo dos poderes humanos. Ser ativo significa manifestar as faculdades e talentos no acervo de dotes humanos de que todo ser humano é dotado, embora em graus variáveis. Significa renovar-se, evoluir, dar de si, amar, ultrapassar a prisão do próprio eu isolado, estar interessado, desejar, dar. Contudo, nenhuma dessas experiências pode ser completamente expressa em palavras. As palavras são vasos cheios de experiência que transbordam do recipiente. As palavras designam a experiência; não constituem a experiência. No momento em que exprimo o que vivenciei exclusivamente em pensamento e palavras, a experiência se foi; secou, está morta, é um mero pensamento. Por conseguinte, o ser é indefinível em palavras e só comunicável pela comunhão da minha experiência. Na estrutura do ter, a palavra inerte domina; na estrutura do ser, domina a experiência viva e inefável. Evidentemente, no modo ser há também um pensar que é vivo e criativo. [...] Só na medida em que diminui o modo ter, isto é, o não ser – deixando de encontrar segurança e identidade pelo apego ao que temos, repousando nele, agarrando-nos ao nosso eu e nossas posses – pode surgir o modo ser. “Ser” exige renúncia da egocentricidade e do egoísmo, ou, nas palavras frequentemente empregadas pelos místicos, tornando-os “vazios”, “pobres”. Mas a maioria das pessoas acha muito difícil renunciar à tendência a ter. Qualquer tentativa no sentido dessa renúncia suscita intensa ansiedade e sentimento de perda de toda segurança, como o jogar-se no mar sem saber nadar. Essas pessoas não sabem que, ao desfazer-se das muletas da propriedade, podem começar a utilizar suas próprias forças e andar por si mesmas. O que as mantém atadas é a ilusão de que não poderiam andar por si mesmas, e que entrariam em colapso se não estivessem amparadas pelo que possuem. FROMM, Erich. Ter ou ser? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. p. 35, 87 e 97.

Produção de arte Escreva um texto poético retratando sua concepção de ser humano.

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Para ler mais Sugerimos que você leia duas obras que apresentam imagens diferentes de Sócrates: XENOFONTE. Banquete-apologia de Sócrates. São Paulo: Annablume, 2011.


Capítulo

7

Se eu vivo, logo existo?

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Para começar

Às vezes, a sensação de individualidade é maior, busca-se sondar o mundo, mas em outros momentos valoriza-se o que há de coletivo em cada um.

L’homme Borné dans sa nature, infini dans ses vœux, L’homme est un dieu tombé qui se souvient des cieux; Soit déshérité de son antique gloire, De ses destins perdus il garde la mémoire; Soit que de ses désirs l’immense profondeur Lui présage de loin sa future grandeur: Imparfait ou déchu, l’homme est le grand

O homem mystère. Dans la prison des sens enchaîné sur la terre, Esclave, il sent un cœur né pour la liberté; Malheureux, il aspire à la félicité; Il veut sonder le monde, et son œil est débile; Il veut aimer toujours: ce qu’il aime est fragile!

Limitado de fato, deseja o infinito O homem – deus caído, que os céus lembra aflito! Se é que foi deserdado de uma antiga glória De um destino perdido ele guarda a memória! Se é que a profundidade desses seus desejos De grandezas futuras já são os lampejos, Imperfeito ou

caído, que mistério é o homem!

Na prisão dos

sentidos carnais

que o consomem, Escravo, sente

em si, o dom da liberdade,

Infeliz, quer, porém, total felicidade!

Busca sondar o

mundo e não tem olho hábil!

Ele quer amar

sempre e o que

ama é tão frágil!

LAMARTINE, Alphonse de. Méditations. Paris: Lattès, 1987. p. 17. (Tradução livre dos autores.)

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Viver e existir Em determinados momentos, temos a sensação de que somos únicos e nossa individualidade fica em evidência. Em outros, essa dimensão se perde, e sentimos que somos profundamente semelhantes aos outros e valorizamos aquilo que há de coletivo em nós. As plantas vivem, os animais vivem, mas não têm consciência, não têm liberdade e, sobretudo, não têm individualidade. Um cão é muito mais semelhante a outro cão do que um ser humano a outro ser humano. Os seres humanos pertencem à mesma espécie, mas cada um possui um universo único e complexo, às vezes, com grande sensação de isolamento, com profunda angústia, diante de múltiplas escolhas para cumprir um destino. Os seres humanos pertencem à mesma espécie, Durante o século XIX, a Filosofia havia se tornado mas cada um possui um universo único e complepanteísta (uma concepção em que a alma se desmanxo, às vezes com grande sensação de angústia diante das escolhas para cumprir um destino. Um cha no todo) e coletivista (que defende que o indivíduo, cão é muito mais semelhante a outro cão do que quando integrado ao todo social, perde o valor). um ser humano a outro ser humano. Durante o século XIX, surgiram grandes sistemas filosóficos nos quais os conceitos preponderantes eram o Espírito absoluto (como em Fichte e Hegel – ver biografias no capítulo 2), a humanidade (como em Comte – ver biografia no capítulo 3) e as forças produtivas da História às quais o ser humano era condicionado (como em Marx – ver biografia no capítulo 2). Esses sistemas observam que o ser humano perdera Sören Kierkegaard sua subjetividade, sua interioridade, parecendo agora uma peça de encai(1813-1855) xe, um elemento integrado em um todo – fosse esse todo Deus, a humaniPensador dinamarquês dade ou a sociedade. Dessa forma, passa-se a questionar onde estaria a de origem protestante, recebeu influência do individualidade, onde ficaria o eu para cada ser humano. idealismo alemão, mas Também se observa que a ênfase dada ao discurso científico, como ao mesmo tempo foi um um conhecimento neutro, objetivo e do mundo externo – com a consequende seus críticos mais implacáveis. Desenvolveu a te rejeição de emoções e visões pessoais –, afastou o ser humano dele concepção de que o ser próprio. humano é um ser angustiado em sua existência Em resposta a essa exclusão da dimensão existencial e subjetiva do por ter sido marcado pelo campo da reflexão filosófica, três pensadores diferentes entre si prenun“pecado original”. Para ele, a existência humana ciaram uma volta ao singular, ao indivíduo interior, à subjetividade, que se é marcada pelo temporal afirmaria depois no século XX: Schopenhauer (ver biografia no capítulo VI), e pelo Eterno. O ser hucom simpatia pelo budismo, Sören Kierkegaard , um cristão; e Nietzsche mano é um ser concreto, em devir, em movimento (ver biografia no capítulo 3), um ateu. Esses três autores anunciaram os e mergulhado na angústia temas e o tom da Filosofia desde então, assumindo uma postura que pode se sentir sozinho. Assim, a solução é voltar-se demos chamar de existencial, de pensar a Filosofia a partir do ser humano, para o Eterno. Escreveu, de sua interioridade. entre outras obras, O conceito de angústia, A É verdade que Sócrates, Santo Agostinho e Rousseau já haviam feito alternativa e Migalhas fiisso. Mas todos eles davam um grande valor à razão como fator central losóficas. do homem. Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche podem ser considera171


dos irracionalistas, pois não veem racionalidade nem no mundo nem em si mesmos e reconhecem que os afetos e impulsos ocupam um papel fundamental na vida do homem. Com essa reflexão, em uma abordagem assistemática, esses filósofos se opõem a sistemas muito organizados e racionais de pensamento. Alguns temas presentes em suas filosofias se projetarão fortemente no século XX: a liberdade, a angústia e o ser humano diante de si mesmo.

Como você entende a vida: um presente que lhe foi dado, uma dádiva divina, ou um peso a ser carregado? Você conhece alguém que observe a vida e o mundo de forma absolutamente pessimista, como um mal? Vamos ver a seguir como se caracteriza o pessimismo no campo da Filosofia. O filósofo alemão Schopenhauer construiu um sistema de pensamento original, distante das outras filosofias que o cercavam e, por isso, manteve intensas discordâncias com os filósofos idealistas e kantianos do seu tempo. Ele via os filósofos construírem concepções da vida e do mundo como otimistas demais e, a seu ver, distantes da realidade. A tese sustentada por Leibniz de que Deus ordenou tudo da melhor forma possível era, para ele, absurda, um contrassenso. Dessa forma, sua filosofia é caracterizada por uma agressividade pessimista diante da existência humana. Sua originalidade está em uma de suas teses centrais: o mundo e a vida são sofrimento. O mundo e a vida para Schopenhauer têm por base a vontade; a vontade é necessidade e uma necessidade insaciável, porque pretende ter sempre muito mais do que pode. A vontade é cega, plena de desejos agressivos e jamais satisfeitos. Os desejos e as vontades são infinitos no ser humano, na vida e na natureza, mas o que podemos realizar e alcançar são coisas mínimas diante de um universo de necessidades. Segundo Schopenhauer, geralmente temos um desejo satisfeito para uma infinidade de desejos insatisfeitos. Ele compara essa situação com a de um mendigo: recebe da vida esmolas que o mantêm vivo para que a miséria seja prolongada. Nesse sentido, a essência da vida e do mundo é o conflito, a dor, a luta constante. A dor é originária das necessidades da vida e o mundo está pleno dela e, diante disso, nossa receptividade para a dor é imensa e para o prazer é pequena. Dessa forma, a infelicidade constitui a regra no mundo. Desastre da guerra, quadro n. 39, de Francisco Goya, 1808. Essa obra representa a dor do ser humano.

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Museu do Prado, Madri, Espanha

Os pessimistas: a existência como um mal


Museu do Prado, Madri, Espanha

De acordo com Schopenhauer, o sofrer está ligado diretamente à necessidade de algo, mas quando essa necessidade é satisfeita, ela não traz uma satisfação durável, porque logo aparece uma nova necessidade. Esse ciclo não tem fim na natureza, porque sempre tendemos ao ponto de partida com novas necessidades. A natureza tem por essência a vontade constante e inconsciente, sem objetivo e sem descanso. Os animais e os homens, por serem seres naturais, partilham da mesma vontade de viver. Mas, na medida em que o ser é mais inteligente e sensível, o tormento cresce; portanto, no ser humano, as dores são mais intensas do que nos animais. Mesmo que o ser humano levasse uma vida de prazeres plenos, isso não resolveria, pois o prazer está sempre acompanhado, em menor ou maior grau, da dor. Ainda que satisfizesse momentaneamente suas necessidades e essa sensação perdurasse, apareceria um inimigo ainda pior: o tédio. As pessoas não suportam o tédio e procurariam novamente distração, novas necessidades e, com isso, caem sempre no sofrimento. Segundo Schopenhauer, mesmo que fosse criada uma sociedade utópica de tipo socialista ou de qualquer outra espécie, inúmeros males restariam, porque alguns deles, como a luta, são inseparáveis da existência. Caso todos os males conseguissem ser eliminados e a luta pela existência acabasse de uma vez, o tédio se tornaria mais insuportável do que a dor. A vida, assim, oscila entre a dor e o tédio. Pode-se ver isso até nos textos sagrados: o ser humano transformou seus sofrimentos e tormentos na visão do inferno, e o que restou para o céu? Apenas o tédio. Para o filósofo alemão, Dante tirou desse mundo a matéria-prima para construir seu inferno. Mas, quando ele teve de descrever o céu e suas bem-aventuranças, enfrentou grandes dificuldades, pois o mundo não fornece material para isso. Os seres humanos vivem abandonados a si mesmos, na incerteza profunda do que acontecerá, ansiosos e medrosos das coisas, cercados de ameaças terríveis. A vida e a realidade do mundo, para o filósofo, constituem a luta contínua pela existência, com a certeza de que no final seremos vencidos. O filósofo descreve os seres humanos como um bando de carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro afia a faca e escolhe um ou outro com os olhos. O destino sempre nos prepara doenças, empobrecimento, perseguições, morte. O único consolo que temos é observar os outros, que muitas vezes são mais infelizes do que nós. Até mesmo aquele que consegue passar pela vida de forma tranquila, encontrará no fim de sua jornada a morte. O tempo é como um algoz que não dá tréguas: persegue a todos, somente deixa livre o que se entregou ao tédio da existência.

Morte caçando o rebanho dos mortais, de Francisco Goya, 1896. Os traços dos rostos das pessoas representadas nessa obra lembram os de caveiras, o que remete, antecipando, ao destino de todos os seres humanos.

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Schopenhauer vê o otimismo diante da vida como uma zombaria amarga das desgraças humanas e afirma que trabalho, aflição, esforço e necessidade constituem a vida da maior parte dos seres humanos. Para exemplificar, ele cita uma realidade bastante comum em sua época: bastava entrar em uma fábrica para presenciar a quantidade de crianças de 5 anos trabalhando de 10 a 14 horas por dia; essas, se não morressem, trabalhariam ali, daquela forma, por longos anos a fio – um preço muito alto a ser pago pelo prazer de respirar. Schopenhauer ainda lembra que o planeta é habitado por forças naturais muito mais poderosas do que o ser humano, e seria bem provável que, por um acidente qualquer, tais forças se libertassem e destruíssem a crosta terrestre e tudo o que nela existisse. Tal fato não é estranho ao nosso planeta nem aos seres humanos: isso já aconteceu muitas vezes e muito provavelmente acontecerá novamente. Exemplos disso são terremotos, tsunamis, erupções entre outros eventos destrutivos provocados pela natureza. O filósofo diz que o mundo pode ser comparado ao inferno: os humanos são, de um lado, almas danadas e, de outro, os próprios demônios. Quando vemos o ser humano em estado de civilização, de verniz social, pode parecer um anjo, pois foi domesticado. Basta que alguns recebam um pouco mais de poder para observarmos sua essência feroz e animalesca. É o único animal que faz sofrer pelo prazer de ver sofrer. A História mostra que a vida dos povos nada mais é do que guerras, destruição e revoltas, e a paz sempre foi algo passageiro. De acordo com Schopenhauer, o progresso e a racionalidade defendidos por Hegel como base da História é uma ilusão mentirosa. Enquanto estivermos tomados de desejos e vontades irrefreáveis, enquanto nos entregarmos aos nossos desejos, não poderemos nos libertar da dor. No entanto, para o filósofo é possível amenizar a dor e, até certo ponto, nos libertarmos dela sem cairmos no tédio. Para isso, precisamos nos libertar do ciclo incansável e interminável das necessidades, deixarmos o querer, anularmos a vontade e o eu. Há pelo menos três caminhos que Schopenhauer aponta para essa anulação do eu. O primeiro caminho, que separa a pessoa dos seus desejos e vontades, é a experiência artística ou estética. Nesse tipo de vivência, as pessoas esquecem-se dos seus eus e vencem suas vontades para mergulhar em uma visão estética, em que conseguem escapar do mundo, sair do tempo, subtrair-se da realidade e entrar como que em uma outra dimensão. Dessa forma, podem se esquecer de si e de sua dor. O filósofo explica que, ao mergulhar na arte, o ser humano entra em um estado de pura contemplação, libertando-se por um instante dos males da existência. Dentre as artes, a mais libertadora é a música, por ser uma experiência mais profunda e duradoura. A arte proporciona ao ser humano libertação rara e momentânea. O segundo caminho traçado por Schopenhauer parte do reconhecimento de que todos os seres humanos devem se sentir tocados pela vida 174


dos outros. Participamos das mesmas dores e da mesma existência. Portanto, vencemos nossa vontade ao criarmos relacionamentos de amor e bondade desinteressada com os semelhantes que levam o mesmo fardo e enfrentam a mesma tragicidade da existência. O sentimento de compaixão pelo outro deve ser natural, pois sentimos afinidade e simpatia diante das dores que nos ligam.

E o terceiro caminho seria negarmos nossa vontade tendo uma vida voluntariamente asceta, com poucas necessidades, sem desejos de poder ou riquezas, assumindo voluntariamente a pobreza. Para isso, devemos quebrar o vínculo com tudo o que nos coloca em contato com a vida, anulando a vontade de reproduzir e vencendo a vontade de viver. Para Schopenhauer, esse seria o estado mais duradouro de afastamento da dor. Nietzsche, pensador que em alguns aspectos se mostra um continuador da filosofia de Schopenhauer, será um crítico feroz desse princípio de anulação da vontade. Esse desejo do nada, dirá Nietzsche, só poderia surgir da cabeça de uma pessoa fraca, que encara a existência como um fardo e não como um campo aberto de experimentações.

Uma vida sem angústia Todos nós podemos viver momentos e fases de inquietação e de angústia. Mas há filósofos que observam que a angústia é parte fundamental do ser humano, de tal forma que ser homem significa estar mergulhado na angústia ou dela querendo sair. Segundo alguns pensadores, uma das formas de tentarmos escapar das angústias humanas é encontrar Deus. O que você pensa sobre essa possibilidade? Já a experimentou? Vejamos o que nos diz o filósofo Kierkegaard. O filósofo dinamarquês cristão-protestante Sören Kierkegaard foi uma figura única em seu tempo. Temperamento melancólico e rebelde, defendeu como chave para amenizar a angústia do ser o encontro com Deus. Para ele, o ser humano é uma síntese de finito e infinito, de temporal e eterno, de liberdade e necessidade. Ao contrário dos animais, que são seres determinados na sua essência por aquilo a que a natureza os destina, os seres humanos têm a liberdade de escolher. A existência é o reino da liberdade e da mudança. Diferentemente do que pensava Schopenhauer, entendia que a vida e o ser humano não são escravos da necessidade, mas vivem no reino das possibilidades. Contudo, para Kierkegaard, isso coloca o ser humano diante de uma questão difícil, pois estar diante de possibilidades não é algo tranquilo. Não se pode explicar a vida se não reconhecemos as duas dimensões mais profundas da existência: a do possível e a da liberdade. Nesse terreno, tudo pode ser. Não determinado a nada, o ser humano pode escolher, deixar de escolher, escolher salvar-se, escolher perder-se. Diante desse mar de possibilidades de escolha, sente-se angustiado. A angústia é parte intrínseca da vida, ela é o sentimento do possível, sabe-se que tudo pode acontecer 175


na nossa escolha e que elas podem ser mais terríveis do que qualquer realidade. Em um esquema como esse, podemos dizer que somos as nossas escolhas e nossa existência ganha um sentido ou outro quando é preenchida por aquilo que escolhemos. A existência humana é um projeto inacabado.

Nenhum ser humano está livre dessa angústia existencial; há sempre uma inquietação, um receio de algo, um medo do futuro. A angústia está ligada ao futuro, já que a possibilidade e a liberdade existem em relação às possibilidades que o futuro traz. É raro haver alguém que não esteja angustiado. O ser humano vive no seguinte dilema: se é pecador, vive diante da angústia da possibilidade de se arrepender; se consegue se libertar do pecado, vive a angústia de não cair nele novamente. Segundo Kierkegaard, mesmo que a pessoa se desencante das ilusões do mundo e adquira mais consciência do sentido da sua existência, pode ser que não se liberte da angústia. Pode ocorrer que a consciência a leve a uma angústia ainda maior. Para o filósofo, nenhum inimigo sabe atacar com tanta perspicácia como a angústia, nenhum juiz sabe examinar de forma tão profunda o nosso eu, pois nada escapa aos seus olhos atentos. Pode acontecer de a angústia nos levar a situações difíceis, para as quais não encontramos solução e a sentimentos pessimistas, mas o caminho não é fugir. Não podemos ficar abalados com a angústia, temos de deixá-la tomar a nossa alma, sondar o fundo do nosso eu, permitir que vença todos os pensamentos mesquinhos. A angústia, nessa concepção, seria um instrumento utilizado por Deus para descer ao fundo das nossas almas à caça daquilo que temos de melhor e, em posse disso, nos ajuda a entender quais devem ser as nossas melhores escolhas. Kierkegaard diz que a angústia é típica na relação do homem com o mundo, porém outra angústia: a do ser humano em relação a si mesmo, com seu mundo interno. O sentimento que perpassa essa outra relação é o desespero. O desespero é uma espécie de culpa do homem que não se aceita como é, em sua profundidade. Dessa forma, comete muitos mal-entendidos consigo mesmo: ora se coloca como senhor da situação, como um Deus, ora distrai-se de si mesmo. Sentindo que não consegue ser dono de si, surge o desespero. Nada no mundo é mais terrível do que essa angústia interior, nem tormentos, nem tribulações, nem pobreza, nem doenças, nem a morte. Para vencer esses dois sentimentos – desespero e angústia –, o ser humano precisa mergulhar fundo dentro de si mesmo e entender que está profundamente relacionado a Deus. O desespero surge quando não queremos aceitar o fato de estarmos nas mãos Dele. O desesperado está doente e vive a morte do seu verdadeiro eu por se afastar da única fonte da vida. Kierkegaard diz que não basta aos seres humanos autoconhecimento, como pensava Sócrates. É preciso ter fé, e a fé é o amor que nos aproxima de Deus. O crer é muito mais profundo do que a razão; a razão não é capaz de nos levar a Deus nem de prová-lo. 176


A existência autêntica é aquela que se abre para Deus, que sabe escolher os caminhos que levam a Ele. Precisamos estar disponíveis para o Seu amor. Essa fé em Deus, essa vontade de estar ao Seu lado leva o ser humano a ficar em conflito com este mundo. Segundo Kierkegaard, a fé é a mola da História, pois o homem, nesse estado, não se entrega às coisas do mundo, entrega-se às coisas de Deus. O que o eleva verdadeiramente a Deus é o desprendimento do mundo e das coisas mesquinhas da vida. Ao atingir tal estágio, chega-se à maturidade para a vida eterna.

O ideal de vida dionisíaca Nietzsche anuncia a morte de Deus. Deus, então, pode morrer? Qual seria o sentido dessa morte? Quais as consequências dessa morte para nossa existência? Ao contrário de Kierkegaard, que focaliza a solução da angústia existencial no salto da fé, quando o ser humano se entrega a Deus, Nietzsche, cuja filosofia já vimos em capítulos anteriores, anuncia a morte de Deus como necessidade para uma vida assumida como senhora de si. Ele chama essa vida de dionisíaca, lembrando o deus grego Dionísio, deus do vinho, da embriaguez, da alegria e da vitalidade. Nietzsche se opõe duramente às correntes que defendiam ideias como igualdade, humanitarismo e democracia. Para descrever a existência, ele afirma que no mundo não há nenhuma providência divina que dirige a vida, não há estruturas de valores universais preestabelecidas, não existe nenhuma racionalidade ou ordem. Não há um sentido predeterminado para a existência do ser humano e para a vida. Nietzsche quer demonstrar que sistemas que aceitam ideias desse tipo iludem o ser humano e são anuladores do poder da vida. Para o filósofo, a vida é dionisíaca por excelência. Com isso, queria dizer que a vida é aquilo que o ser humano tem de essencial: energia vital, poder, intelecto e orgulho. A vontade de poder é o que caracteriza a existência; o ser humano tende a se superar, buscar algo de nobre e de superior. Para ele, a tendência do ser humano é o estado de “super-homem”, aquele que, segundo seu pensamento, teria ultrapassado a moral cristã, aquele que aceitaria a existência sem a presença de nenhuma instância superior. A vida está impregnada de força, de vitalidade, de impulso, de vontade de domínio, e isso é bom. Segundo Nietzsche, os humanos foram, durante milênios, iludidos com mentiras sobre a natureza da vida e do mundo, e construiu-se um mundo de submissão, de bondade fraca, de valores antivida. As individualidades devem ser poderosas, nobres, superiores em vitalidade, e não degeneradas e fracas. A vida não é decadência e fraqueza. O que importa verdadeiramente é a força vital. Para Nietzsche, a raiz do mal está na valorização dos aspectos fracos e enfermiços do ser humano. Contra esses aspectos é que o filósofo deve lutar. O ser humano é um ser pujante e, assim como a vida, deve ser corajoso, forte, cavalheiro e generoso, mas isso inclui para ele também o que o cristianismo considera antivalores: agressividade e egoísmo. 177


Feitosa, Charles. Explicando a filosofia com arte

Pode-se dizer que Nietzsche considera que a vida e a existência são essencialmente um misto de beleza, liberdade, contradição, êxtase, extravagância, embriaguez, força bruta e crueldade. O filósofo pretendeu mostrar que a vida era superabundante de força vital, de irracionalidade, de destrutividade e que, no entanto, é preciso dirigir essas forças vitais para poder transformar o mundo em arte e a vida em beleza.

Desenho do artista pop Keith Haring (1958-1990). Segundo Charles Feitosa, em Explicando a Filosofia com arte, “o amor é como uma grande festa em que cada um dança do seu próprio jeito uma música comum a todos. Se entendermos o amor como uma forma de respeito e atenção para com o diferente na sua diferença, seja outra pessoa, cultura, religião ou estilo de vida, por que não deixar que a Filosofia se assuma como um tipo especial de amor?”.

A Arte como criação do espírito Você acha que ser artista é sinônimo de ser uma celebridade? No campo da Filosofia, o homem que, de fato, está voltado para a arte nada tem a ver com essas figuras que ganham destaque na grande mídia e que só estão interessados na autopromoção. A arte, no sentido pleno da palavra, deve ser pensada como criação do espírito e como procura pela transcendência. A ênfase dada à arte por Schopenhauer e Nietzsche está dentro de uma forte tradição da Filosofia alemã, que, antes de ambos, tinha se dedicado longamente a discutir o que é arte e sua relação com o ser humano, com a História, com a realidade. Entre os antigos gregos, a arte nunca foi vista como “criação”. Hoje, é tão óbvio relacionar arte com criatividade (uma palavra recente no dicionário), que nos parece estranho não concebê-la assim. Mas Aristóteles, por exemplo, considerava a arte como imitação da natureza e como catarse, que faria com que o ser humano se libertasse de sentimentos e comportamentos negativos, transformando-os em arte. 178

Interdisciplinaridade

Arte


Mas foi no idealismo alemão de Hegel, na filosofia romântica de Schelling (ver biografia no capítulo 2), dos irmãos August Schlegel e Friedrich Schlegel e do poeta Friedrich von Schiller , que a arte começou a ser tratada como uma criação do espírito. Aliás, a palavra “estética” – que se tornou depois um ramo da Filosofia, o que estuda a arte e o belo – foi criada no século XV2I pelo filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten . Depois dele, os idealistas e os românticos se dedicaram a tratar a arte como a forma mais livre e poderosa de criação do espírito. Devemos nos lembrar, porém, de que esse espírito a que se refere não é a alma de cada indivíduo, como na tradição cristã, mas o Espírito absoluto – que perpassa o Universo e a História. Uma obra que reflete bem o caráter de busca de ideais nobres e de transcendência humana por meio da arte é o livro A educação estética do homem, de Schiller. Nessa obra, o filósofo procura mostrar a arte como um meio de criação, atuação e elevação do ser humano. Menos comprometido com as ideias de Espírito absoluto, que tende a perder de vista o indivíduo, Schiller entende que o artista tem a missão de alcançar virtude e nobreza espiritual, de atingir as mais altas esferas de pensamento por intermédio de sua arte. Ele diz que o artista deve se preservar da corrupção de sua época e lançar seu ideal “silenciosamente no tempo infinito”.

August Wilhelm von Schlegel (1767-1845) e Friedrich von Schlegel (1772-1829) Os dois irmãos filósofos lançaram o Atheneum, principal órgão do romantismo alemão.

Friedrich von Schiller, (1659-1805) Poeta e filósofo alemão, fez reflexões sobre estética e ética. Entre suas obras está A educação estética do homem.

Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) Filósofo alemão que introduziu o termo estética na Filosofia e formulou teorias sobre a arte.

Vocações Interdisciplinaridade

Capela Sistina, Vaticano, Itália

Arte

Prisca, a Sibila Eritreia, de Michelangelo, 1508-1512.

Qual é o papel da arte na atualidade? Ser artista é uma possibilidade de profissão? Ou é uma maneira de estar no mundo e enxergar a existência? Qualquer pessoa pode ter uma experiência estética? Qualquer pessoa pode produzir arte, ou é algo apenas para privilegiados com talentos especiais? O conceito de arte variou muito na História e não foram poucos os que refletiram sobre o papel do artista na sociedade. A arte já foi utilizada como uma forma de eternizar beleza e como busca da transcendência do ser humano em direção ao infinito. Exemplos disso são construções como as pirâmides egípcias ou uma catedral gótica. Porém, tais construções representam uma busca coletiva de eternizar feitos humanos a serviço do Estado (dos faraós, no caso das pirâmides) ou da Igreja (no caso das catedrais), sem destacar um artista individualmente, uma vez que desconhecemos quem foram os verdadeiros idealizadores – arquitetos, engenheiros, escultores, artistas plásticos, entre outros – desses monumentos. 179


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Ufizzi, Fiorença, Itália Shutterstock

São Jorge e o dragão, de Rafael, 1504-1506.

Pirâmides do Egito.

Museu do Louvre, Paris, França

Apenas no Renascimento se firma na história do Ocidente, retomando a postura dos gregos, a ideia do artista-indivíduo, aquele ser com talentos e poder para criar e representar a beleza. Artistas plásticos como os extraordinários italianos Michelangelo, Rafael e Da Vinci iluminam a história da cultura com suas obras (observe algumas pinturas nesta página e na página anterior), assim como grandes escritores, como Dante, Petrarca, Camões e Shakespeare (sendo este último considerado o maior autor de todos os tempos) – se destacaram com sua genialidade na Literatura. No campo da música, em um período posterior ao Renascimento, gênios como Bach, Mozart e Beethoven também traduzem “artista” como um ser fora do comum, capaz de representar a beleza com criatividade incomum. No século XIX, o Romantismo vem a reforçar ainda mais essa aura do gênio artístico, muitas vezes incompreendido em sua singularidade, despontando por estar fora das convenções sociais, considerado maldito, atormentado, como o poeta Lord Byron, o compositor Fréderic Chopin, a escritora Georges Sand, ou os poetas Castro Alves e Álvares de Azevedo. Mas é nesse século que nasce uma concepção de artista que se faria muito presente no século XX: a do artista militante social, aquele que engaja sua arte em um projeto de mudar o mundo, que luta pela abolição da miséria, pelo direito de liberdade, e critica as estruturas injustas da sociedade. Três das grandes personalidades do século XIX nesse sentido foram: Victor Hugo, com sua obra Os miseráveis, que critica o sistema penitenciário e as injustiças sociais de sua época; Émile Zola, com Germinal, que destaca a situação do trabalho em uma mina de carvão na França de sua época; e Leon Tolstoi, com seus livros sobre anarquismo cristão e o romance Ressurreição, no qual critica as prisões e o sistema político da Rússia czarista. Passado o tempo, no século XX esse papel seria assumido por artistas de esquerda, como o poeta chileno Pablo Neruda, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht e cineastas como Carlos Saura, crítico da ditadura de Franco na Espanha, e Glauber Rocha, que fez uma leitura crítica da realidade social brasileira. No campo da música, a arte do século XX também se mostrou bastante combativa. Um exemplo disso pode ser encontrado na música de protesto produzida ao longo dos anos de ditadura em vários países da América Latina. Logo, a indústria cultural e a comercialização da arte em grande escala (a arte massificada ainda é arte?) tornam a obra efêmera e o artista torna-se proeminente temporariamente, para logo mergulhar novamente no quase anonimato. Os conceitos tradicionais de beleza são rompidos pelo Modernismo no início do século XX, enquanto os de militância social se perderam na segunda metade do mesmo século, após a queda das utopias sociais (tema sobre o qual trataremos no capítulo 10). Algumas questões sobre a arte se impõem hoje: O que é ser artista no século XXI? Será que a censura, tão presente na época da ditadura militar brasileira, deixou realmente de atuar na sociedade? Em alguns veículos

Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, 1503.


de comunicação de massa é possível notar uma atitude de distorção de notícias e de assuntos de interesse público – não seria essa uma forma de censura velada? O fato é que um dos grandes perigos atuais da arte é a transformação da produção artística em mais um produto mercadológico esvaziado de conteúdo cultural. Na atualidade, pode-se dizer que não há mais estruturas estéticas obrigatórias, não há mais tantos artistas que despontem como geniais ou como malditos como outrora. De certa forma, pode-se até considerar que não há quase mais nada a buscar de belo, nem de revolucionário, já que todas as revoluções foram feitas. Ainda assim, claro, a arte contêmporânea tem mais liberdade, em vários âmbitos, como o cinema, o grafite, e rap. O desafio agora é encontrar novos caminhos para a arte, novas formas de crítica e de fomento ao pensamento. É preciso retomar a ideia de que a arte não se limita a ser um objeto de consumo, mas se trata de uma produção que vem a lembrar aos homens de que a vida não é algo banal. É preciso que se possa viver da arte, mas sem excessivas concessões, para que ela se torne de novo arte – original, livre e com uma possibilidade de mudar as coisas.

A existência pelo prisma judaico-cristão Gabriel Marcel (1889-1973) Foi o primeiro representante do existencialismo na França, atuando como filósofo e autor de peças teatrais. Sua concepção de existência teve grande influência do cristianismo. Por isso, seu pensamento foi chamado de existencialismo cristão, embora rejeitasse esse título.

Emmanuel Mounier (1905-1950) Filósofo francês, fundador do personalismo cristão, recebeu influência de Gabriel Marcel, centrando seu pensamento na pessoa humana, plena de dignidade e não sujeita a definições. Defensor da liberdade, efetuou uma militância contra os sistemas totalitários do século XX.

O existencialismo e a fenomenologia Será que faz sentido pensar em um eu que esteja totalmente desvinculado do outro? O que pensamos sobre nós mesmos é produto de nossa própria percepção, ou é o efeito da relação com o outro, dos diálogos e encontros que estabelecemos com o outro? Essa questão foi bastante discutida por alguns pensadores cristãos que refletiram sobre a condição humana. No começo do século XX, surgiram pensadores que se preocuparam com o tema da existência com forte inspiração da corrente judaico-cristã. Eles formaram o que se chama de “existencialismo cristão”, mais tarde redefinido como “personalismo”. Destes, destacam-se Gabriel Marcel e Emmanuel Mounier . Fora do campo cristão propriamente dito, no âmbito judaico, destaca-se Martin Buber (ver biografia no capítulo 3). Gabriel Marcel, dramaturgo e músico, demonstrou interesse pela Filosofia a partir de uma experiência de vida que o marcou profundamente. Como voluntário da Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial, era incumbido de comunicar às famílias a morte de soldados. Em contato com a dor e a ausência provocadas pela morte, passou a refletir sobre essa problemática humana, chegando mesmo a formular a ideia de que poderíamos sentir a presença dos que se foram e estar em comunhão com eles. Tanto para Marcel quanto para Mounier, a pessoa humana jamais poderia ser redutível a uma definição. O que se define é um objeto e o ser humano é sempre sujeito, interioridade, mistério... É uma singularidade tão 181


Coleção Roger-Viollet/AFP

rica, complexa e pessoal que não se pode delimitá-la. Toda a Filosofia, tudo o que fazemos no mundo deve ter como centro a pessoa. Marcel criticava a sociedade em que a técnica, a ciência e o objetivismo haviam esvaziado a capacidade de o ser humano se sentir e sentir o outro. A grande questão que se põe para esses autores é que a pessoa se faz em diálogo com o outro. A relação eu-tu, o respeito, o amor, a comunhão entre as pessoas é que pode resgatar o ser humano para si mesmo e estabelecer um mundo mais humanitário. E, por meio da relação com o próximo, chegamos à relação mais profunda e plena que podemos ter, que é a relação com Deus. O filósofo austríaco Martin Buber segue essa mesma linha de colocar toda a problemática humana na relação eu-tu. Segundo ele, fazemo-nos objetos uns dos outros quando estabelecemos uma relação eu-isto. O outro se torna instrumento, meio para atingirmos fins pessoais, egoístas. Na relação eu-tu, ao contrário, são dois seres inteiros que se comunicam. Quando em nossas relações conseguirmos manter a predominância do eu-tu, estaremos no caminho da felicidade.

A existência autêntica Qual a diferença entre o ser humano e as coisas do mundo, como, por exemplo, uma pedra? A pedra e o ser humano estão presentes no mundo, mas a presença de cada um tem características distintas? O que há de único no ser humano? Você tem alguns projetos, não tem? E nesse sentido você pode pensar em ser algo que ainda não é. Mas e a pedra? E as coisas? Elas têm essa possibilidade? Essas e outras perguntas relativas à existência foram feitas por ­Heidegger, pensador alemão que tem uma perspectiva bem diferente do existencialismo cristão. Heidegger (ver biografia no capítulo 3) se insere na tradição de ­Nietzsche. Aliás, foi Heidegger quem trouxe as ideias de Nietzsche para a Filosofia contemporânea. Seu ponto de partida é mostrar que o caminho crucial da Filosofia começa na existência concreta dos seres humanos. O imediato antecessor de Heidegger foi Edmund Husserl (ver biografia no capítulo 4), o criador da fenomenologia. Mas a abordagem pouco convencional de Heidegger carrega uma dimensão crítica com relação à forma como a Filosofia ocidental tem encarado o ser humano: como um objeto, uma simples presença no mundo. O modo de ser do humano é o de interrogar-se a si mesmo, refletir sobre seu próprio eu, propor a pergunta sobre o sentido de sua existência. Temos a possibilidade de ser e de buscar. O ser está sempre em uma situação e em relação ativa com ela. Heidegger chama isso de ser aí. O ser aí tem por essência a sua existência. As características da existência do ser aí são diferentes das características de uma coisa simplesmente presente. 182

Martin Buber, filósofo alemão, em 1928.


Uma coisa simplesmente presente é uma pedra, as estrelas, as nuvens... Sua argumentação deve ser compreendida no sentido de que o ser humano não é uma simples presença no mundo, mas é um ser com existência mais profunda, pois existe de forma interior e pessoal.

Dessa forma, o ser aí é sempre aquilo que pode ser: o ser pleno de possibilidades. Podemos dizer que, para Heidegger, o ser humano está em uma constante procura de ir além de si mesmo. Cada indivíduo é um ser com possibilidades de atuar, tem o poder da escolha, pode escolher conquistar ou perder. A existência é sempre um poder ser, é um devir permanente. O filósofo afirma com clareza que o humano é um ser transcendente, pois consegue se projetar e se superar. Mas não vê essa transcendência no sentido espiritual do termo. Transcender é objetivar-se, ser aquilo que ainda não se é. Podemos dizer que desse ponto de vista o ser humano é um projeto. O homem como ser de possibilidades só pode realizá-las no mundo. Portanto, ele é um “ser-no-mundo” e com o mundo. Segundo Heidegger, não poderíamos supor que o ser humano pode se projetar além das fronteiras do mundo. O mundo e o homem estão um para o outro de modo inseparável. Sua intenção é dizer que os seres humanos se projetam no mundo imersos em um conjunto de condições políticas, geográficas, históricas, sociais, culturais, econômicas e naturais. Heidegger interpreta o mundo não como algo a ser contemplado, mas como um instrumento nas mãos humanas. O mundo é um conjunto de coisas úteis, para que os seres humanos as usem a fim de se projetar, e a capacidade humana de poder ser faz do mundo objeto de suas ações. Portanto, o filósofo propõe que o ser humano é um ser ativo no mundo. A vida é atividade, porque as pessoas, na realização de seus projetos, utilizam as coisas mundanas. Mas, se o mundo é objeto das ações humanas, deve ser cuidado pela humanidade. O cuidar do mundo e dos seus utensílios é essencial para que o ser humano cumpra seu projeto. O que existe de mais essencial na relação humano-mundo não é o conhecer ou o dominar, mas o cuidar. A capacidade de transcendência humana está ligada à liberdade, ou seja, à escolha que o ser humano faz. Para Heidegger, o poder de ser das pessoas só existe na dimensão do ser livre. O filósofo estudou as condições dessa liberdade, dizendo que a liberdade do ser humano não é irrestrita. Determinada pelas coisas do mundo, a ação humana acontece dentro de uma realidade que limita suas possibilidades. Não somos seres acabados, podemos nos construir. Heidegger diz que, da mesma forma que a existência humana está atrelada ao mundo, está também ligada a outras existências humanas. Sou um ser com o mundo e um ser com os outros seres. A existência é uma abertura para outros eus. Com essa nova dimensão, a existência só se realiza na medida em que cuida dos outros eus. O filósofo procura mostrar que essa é a relação fundamental entre as pessoas. 183


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Nesse sentido, Heidegger nos diz que há dois modos de existência, de estar no mundo: a existência inautêntica e a existência autêntica. A existência inautêntica seria aquela em que o ser humano existe de forma a se perder em seu cotidiano e cair em uma existência destituída de sentido. Com isso, ocorre uma banalização da vida e da existência; nela, o indivíduo se torna anônimo e tudo se esvazia. As preocupações em demasia com as coisas do dia a dia, com as trivialidades do cotidiano, alienam o ser humano de si mesmo e, assim, ele escolhe não ser o que ele é, e foge do sentido pleno de sua existência. Mas é possível transcender toda a banalidade da vida cotidiana e encontrar a si mesmo. Nesse plano estaria a existência que Heidegger chama de autêntica. Embora ele tenha se inspirado na filosofia de Kierkegaard, o ser autêntico para Heidegger é diferente daquele do filósofo dinamarquês. O homem deve buscar a plenitude do seu ser e se autoconhecer a fim de fugir das pequenezas do cotidiano.

Ao entrar em contato com a plenitude do seu ser, ele se depara com o sentimento de angústia. A angústia é um estado onipresente, está em todo lugar, e a existência autêntica não escapa desse sentimento. Nesse estado, o ser que mergulha fundo ao tentar descobrir o sentido da existência descobre a perspectiva do nada. Descobre-se como ser para a morte e não pode deixar de morrer, apesar de todos os projetos. A existência autêntica se completa na morte. Diante dessa descoberta, o ser humano pode cair novamente na existência inautêntica, refugiando-se em seu cotidiano, esquecendo-se do que verdadeiramente é. Por outro lado, pode enfrentar a dimensão profunda do seu ser com coragem. Há para o ser humano a possibilidade de superar a angústia, transcendendo a si mesmo e ao mundo. Ao assumir essa perspectiva, poderemos escolher e compreender as coisas com autenticidade. Nosso ser autêntico se revela quando assumimos livremente essa condição. Devemos compreender que, enquanto pudermos ser, jamais ultrapassaremos a possibilidade de morrer. O sentido mais profundo da existência é o viver para a morte. 184

Para Heidegger, na existência inautêntica, o indíviduo se torna anônimo e tudo se esvazia.


Certos filósofos gregos já tinham antecipado essa conclusão da filosofia de Heidegger, reconhecendo que o ser humano é um ser para a morte. Mas o pensador alemão vai além, dizendo que devemos assumir isso de forma livre, reconhecendo nossa temporalidade e finitude. A impossibilidade da existência permanente nos descortina aquilo que há de mais profundo na vida. A existência autêntica é a que aceita isso. A voz da consciência nos convoca à aceitação da própria impossibilidade de existir sempre, nos mostra a possibilidade do insuperável, do aniquilamento do ser. Heidegger diz que a existência banal tem medo da morte, tem medo da angústia. O medo é fruto da existência inautêntica, que busca se refugiar no mundo, ocultando o verdadeiro sentido da vida. A angústia não deve ser banalizada em medo; a angústia deve ser enfrentada com tranquilidade, indiferença, o ser aí é seguro de si. A consciência do não ser nos deixa angustiados. No entanto, o ser humano autêntico age diante da angústia com indiferença. Toma seu destino nas mãos de forma consciente e procura realizar seu projeto de ser inacabado e transcendente.

A existência e a liberdade Em nosso dia a dia, podemos observar pessoas que reclamam de falta de liberdade – no trabalho, dentro de sua própria família, nas relações humanas de uma forma geral. Mas será que todas as pessoas estão, de fato, dispostas a se assumir como ser livre? Podemos imaginar que o ser livre é aquele que pode fazer tudo que deseja, irrefreadamente. Será que a Filosofia aprova esse tipo de liberdade? Vejamos o que Sartre tem a nos dizer sobre esse tema. Jean-Paul Sartre (ver biografia no capítulo 3) foi um dos filósofos franceses mais aclamados do século XX. Ele criou uma filosofia que viria a ser muito influente e cujo principal empenho era o de observar e pensar o indivíduo a partir de sua experiência concreta no mundo. Seu objetivo era escapar daquelas doutrinas otimistas do século XIX, como o marxismo, o idealismo e o positivismo, que, de forma abstrata e irreal, diziam ter captado a realidade e o sentido da vida. O que interessava a Sartre era o estudo do homem em sua singularidade e em sua existência real. Sartre defendeu a ideia de que a existência humana é anterior à sua essência (termo que emprestou de Heidegger). Isso significa que não existe nenhuma espécie de natureza humana, nem natural nem divina. A essência do ser não é dada nem fixa. O que o homem é não é anterior à sua existência, à sua vida concreta, ao ato de existir no mundo. Por isso, a filosofia de Sartre foi chamada de existencialista, título que ele aceitou. Tanto no caso dos que defendem Deus como artífice quanto no caso dos que acreditam que a essência do ser humano vem da natureza, existe uma ideia de essência humana encontrada em todos os homens. Os seres particulares e individuais são frutos de um conceito universal de ser humano. Para correntes como essas, em essência, todos os homens possuem características e capacidades semelhantes. 185


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O existencialismo de Sartre é uma crítica a esses dois tipos de pensamento. O ser humano é lançado no mundo, surge e se descobre e só posteriormente se define. É impossível qualquer definição do ser antes de ele existir pelo simples fato de que quando o ser surge, ele não é nada. Assim, defende Sartre, o ser humano é um projeto que se faz com plena liberdade e responsabilidade por si mesmo.

Sartre utilizou o teatro e a literatura como veículos para difundir suas ideias existencialistas. Na foto, uma montagem de 1952 de As moscas, peça na qual critica a ocupação nazista na França.

A questão da escolha Você já observou que toda escolha envolve um sentimento angustiante? E que toda escolha vem acompanhada de uma perda? Sartre considera que a responsabilidade do indivíduo não é só por si mesmo: suas ações possuem uma dimensão que está além de sua individualidade. Assim, toda ação e escolha do ser individual afetam outros seres e, dessa forma, somos responsáveis por todos. Ninguém é uma ilha e a responsabilidade de cada um é enorme, porque envolve toda a humanidade. A ação humana é dotada da dimensão da liberdade e sua liberdade é irrestrita, podendo inclusive mudar seu projeto existencial quando bem entender. Estamos sempre diante de um universo de escolhas. Acontece que esse mundo de liberdade e possibilidades nos causa angústia. Para Sartre, o ser humano é um ser angustiado, pois se dá conta de que, além de escolher, ele é legislador de suas escolhas e essas escolhas envolvem não apenas o seu ser, mas toda a humanidade. Esse sentimento de total e profunda responsabilidade angustia o indivíduo. A liberdade e a responsabilidade pesam sobre nós, porque se assumimos que Deus não existe, tudo é permitido. Portanto, não existe padrão de comportamento e valores absolutos, não temos nada acima de nós que 186


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determine qualquer coisa, estamos sozinhos e sem desculpas. O ser humano é um ser abandonado e condenado a ser livre. Abandonado, porque Deus não existe, e condenado à liberdade porque é responsável por tudo o que escolhe. Daí advém outro sentimento que é o de desespero, pois, ao escolher, o ser humano está diante de uma infinidade de probabilidades. Na ação de escolher, ele reconhece que sua escolha não determina o que irá ocorrer, ou seja, o acontecimento futuro é indeterminado, pois não existe nenhum desígnio por trás de tal ação que garanta o sucesso ou o fracasso dela. Diante disso, o ser não pode se anular e ficar passivo, mas deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para escolher bem e realizar o seu projeto. A vida humana nada mais é do que a realização do seu projeto; nada mais é do que o conjunto dos seus atos. Na opinião de Sartre, o ser humano sempre procura ser Deus, desejando ser mais do que ele é. O existencialismo, no fundo, é uma doutrina otimista, pois é uma filosofia da ação por excelência. O ser humano é o próprio legislador, e não Deus. E decide sempre sozinho e se projeta sempre além de si mesmo. Por outro lado, a filosofia de Sartre considera a existência como algo vazio, destituído de verdadeiro sentido. A humanidade está no mundo por estar e poderia não ter existido. Quando o ser percebe que tudo é gratuito, que tudo é transitório e finito, que tudo é inútil, a vida se torna uma aventura absurda. E, então, o existencialismo sartriano se carrega de pessimismo. Só que Sartre também se deixou influenciar pelas ideias marxistas de transformação social, então, esse seu pessimismo foi contrabalançado pela sua militância política de esquerda e a crença na modificação da sociedade.

A liberdade condicionada Maurice Merleau-Ponty, em foto da década de 1950.

Merleau-Ponty, Maurice (1908-1961) Filósofo francês, continuador da fenomenologia de Husserl, foi também considerado existencialista. Para ele, a fenomenologia é um recolocar da essência na existência, uma tentativa de o homem voltar-se para sua consciência e experiência, independentemente dos fatos naturais, postos no mundo externo.

Maurice Merleau-Ponty , assim como Heidegger e Sartre, considerou a concretude da existência do ser no mundo, e as relações entre sua consciência e o mundo. Defendeu, como os existencialistas, que a existência do ser humano precede a sua essência. O ser humano é um ser aberto para o mundo, está no mundo e é no mundo que ele se conhece. Esse é o sentido mais profundo da existência. Quando o ser humano entra em contato consigo mesmo, percebe que é um ser voltado para o mundo, que não existe nenhuma verdade interior em si. No entanto, Merleau-Ponty afirma que o ser humano é um ser para si e para os outros. A subjetividade humana interage com as outras subjetividades e, portanto, a vida é intersubjetividade. O ser humano se realiza a partir de suas experiências no mundo e também a partir das experiências dos outros que interferem nas suas. Estamos no mundo. Nossa experiência alimenta o mundo e é alimentada por ele. Formamos com o mundo uma espécie de sistema orgânico integrado. No entanto, a relação do ser humano com o mundo é livre e ele pode escolher. Mas Merleau-Ponty polemiza com Sartre dizendo que nos187


sas escolhas não são totalmente livres. Por outro lado, não somos seres totalmente determinados por estruturas econômicas, políticas, culturais e psicológicas, como pensavam os estruturalistas. Nossa liberdade de escolher e nossa capacidade de transcender são condicionadas.

Para Merleau-Ponty, não existe determinismo nem liberdade total. Pode-se dizer, de acordo com o filósofo, que escolhemos o que queremos no mundo e ao mesmo tempo o mundo nos escolhe. Existe liberdade de escolha, mas essa liberdade tem suas limitações, pois somos seres condicionados pela História e pelas condições psicológicas. Estamos abertos ao mundo e misturados com as condições que o mundo nos proporciona. Entenderemos melhor a vida e a existência se conseguirmos compreender o equilíbrio entre essas duas dimensões existenciais.

A fenomenologia de Husserl Antes dos existencialistas, o filósofo alemão Edmund Husserl (ver biografia no Capítulo IV), criador da fenomenologia, preparou o terreno de Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty. Aliás, este último ora é considerado como fenomenologista, ora como existencialista, e Heidegger foi aluno de fato de Husserl. A fenomenologia foi um movimento filosófico que fez a Filosofia se voltar para o estudo da consciência. O pensador deve realizar aquilo que Husserl chama de époche, que é uma suspensão de toda realidade à volta para olhar para a consciência, não apenas como única realidade, mas como fonte de todas as realidades. Explica Nicola Abbagnano, existencialista italiano:

A fenomenologia – no sentido específico em que esta palavra é empregada para designar uma corrente da Filosofia contemporânea – concebe e exerce a Filosofia como análise da consciência na sua intencionalidade. Dado que a consciência é intencionalidade, pela simples razão de ser sempre consciência de alguma coisa, a sua análise é a análise de todos os modos possíveis como uma coisa pode ser um dado para a consciência (no sentido do percebido, pensado, recordado, simbolizado, amado, desejado etc.) e, portanto, de todos os tipos de sentido ou de validade que podem ser reconhecidos aos objetos de consciência. [...] ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Lisboa: Presença, 1993. v. XIV. p. 75.

Husserl, um tanto cartesianamente, afirma de modo absoluto a realidade da consciência. Enquanto apenas presumimos a realidade das coisas, o fato de que somos, de que vivemos (o “penso, logo existo” de Descartes) é completamente real. O que se anuncia de existencial na filosofia de Husserl é a volta do ser humano para si mesmo. Mas ele é antes um idealista e não vai até essa afirmação posterior do existencialismo do ser e do nada. Também não se apresentam em sua filosofia a angústia e o problema da liberdade. 188


O existencialismo é um humanismo Jean-Paul Sartre

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ostaria de defender, aqui, o existencialismo de uma série de críticas que lhe foram feitas.

Em primeiro lugar, acusaram-no de incitar as pessoas a permanecerem no imobilismo do desespero; todos os caminhos estando vedados, seria necessário concluir que a ação é totalmente impossível neste mundo; tal consideração desembocaria, portanto, numa filosofia contemplativa – o que, aliás, nos reconduz a uma filosofia burguesa, visto que a contemplação é um luxo. São estas, fundamentalmente, as críticas dos comunistas. Por outro lado, acusaram-nos de enfatizar a ignomínia humana, de sublinhar o sórdido, o equívoco, o viscoso, e de negligenciar certo número de belezas radiosas, o lado luminoso da natureza humana; por exemplo, segundo a senhorita Mercier, crítica católica, esquecemos o sorriso da criança. Uns e outros nos acusam de haver negado a solidariedade humana, de considerar que o homem vive isolado; segundo os comunistas, isso se deve, em grande parte, ao fato de nós partirmos da pura subjetividade, ou seja, do penso cartesiano, ou seja, ainda, do momento em que o homem se apreende em sua solidão – o que me tornaria incapaz de retornar, em seguida, à solidariedade com os homens que existem fora de mim e que eu não posso alcançar no cogito. Na perspectiva cristã, somos acusados de negar a realidade e a seriedade dos empreendimentos humanos, já que, suprimindo os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade, resta apenas a pura gratuidade; cada qual pode fazer o

que quiser, sendo incapaz, a partir de seu ponto de vista, de condenar os pontos de vista e os atos alheios. Tais são as várias acusações a que procuro hoje responder e a razão que me levou a intitular esta pequena exposição de: “O existencialismo é um humanismo”. Muitos poderão estranhar que falemos aqui de humanismo. Tentaremos explicitar em que sentido o entendemos. De qualquer modo, o que podemos desde já afirmar é que concebemos o existencialismo como uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana. A crítica básica que nos fazem é, como se sabe, de enfatizarmos o lado negativo da vida humana. Contaram-me, recentemente, o caso de uma senhora que, tendo deixado escapar, por nervosismo, uma palavra vulgar, se desculpou dizendo: “acho que estou ficando existencialista”. […] A maioria das pessoas que utilizam esse termo ficaria bastante embaraçada se tivesse de justificá-lo: hoje em dia a palavra está na moda e qualquer um afirma sem hesitação que tal músico ou tal pintor é existencialista. Um cronista de Clartés assina o Existencialista. Na verdade, essa palavra assumiu atualmente uma amplitude tal e uma tal extensão que já não significa rigorosamente nada. Está parecendo que, na ausência de uma doutrina de vanguarda análoga ao surrealismo, as pessoas, ávidas de escândalo e de agitação, estão se voltando para esta filosofia, que, aliás, não pode ajudá-las em nada nesse campo; o existencialismo, na realidade, é a doutrina menos escandalosa e mais austera; ela destina-se exclusivamente aos técnicos e aos filósofos. Todavia, pode ser facilmente definida. O que torna as coisas complicadas é a existência de dois tipos de existencialista: por um lado, os cristãos – entre os quais colocarei Jaspers e Gabriel Marcel, de confissão católica – e, por outro, os ateus – entre os quais há que situar Heidegger, assim como os existencialistas franceses e

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eu mesmo. O que eles têm em comum é simplesmente o fato de todos considerarem que a existência precede a essência, ou, se se preferir, que é necessário partir da subjetividade. O que significa isso exatamente? Consideremos um objeto fabricado, como, por exemplo, um livro ou um corta-papel; esse objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou em um conceito; tinha, como referenciais, o conceito de corta-papel assim como determinada técnica de produção, que faz parte do conceito e que, no fundo, é uma receita. Desse modo, o corta-papel é, simultaneamente, um objeto que é produzido de certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida: seria impossível imaginarmos um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que tal objeto iria servir. Podemos assim afirmar que, no caso do corta-papel, a essência – ou seja, o conjunto das técnicas e das qualidades que permitem a sua produção e definição – precede a existência; e, desse modo, também, a presença de tal corta-papel ou de tal livro na minha frente é determinada. Eis aqui uma visão técnica do mundo em função da qual podemos afirmar que a produção precede a existência. Ao concebermos um Deus criador, identificamo-lo, na maioria das vezes, com um artífice superior, e, qualquer que seja a doutrina que considerarmos – quer se trate de uma doutrina como a de Descartes ou como a de Leibniz –, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos o entendimento ou, no mínimo, que o acompanha, e que Deus, quando cria, sabe precisamente o que está criando. Assim, o conceito de homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de corta-papel, no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo determinadas técnicas e em função de determinada concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Desse modo, o homem individual materializa certo conceito que existe na inteligência divina. No século XV2I, o ate-

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ísmo dos filósofos elimina a noção de Deus, porém não suprime a ideia de que a essência precede a existência. Essa é uma ideia que encontramos com frequência: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e mesmo em Kant. O homem possui uma natureza humana; essa natureza humana, que é o conceito humano, pode ser encontrada em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal: o homem. Em Kant, resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem da natureza, tal como o burguês, devem se encaixar na mesma definição, já que possuem as mesmas características básicas. Assim, mais uma vez, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na natureza. O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira estância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade de que nos acusam. Porém, nada mais queremos dizer senão que a dignidade do homem é maior do que a da pedra ou a da mesa. Pois queremos dizer que o ser, antes de mais nada, existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada, aquilo que se projeta num futuro, e que tem consciência de estar se proje-


tando no futuro. De início, o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés do musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que ele projetou ser. [...] SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 3-6.

Breve história da noção de pessoa Emmanuel Mounier

Se só nos cingirmos à Europa, verificaremos que na Antiguidade, e até aos alvores do cristianismo, o sentido da pessoa se mantém embrionário. A cidade e a família absorvem o homem antigo, homem submetido a um destino cego, sem nome, superior aos próprios deuses. A escravatura não choca, nem mesmo os mais elevados espíritos de então. Os filósofos apenas se preocupam com o pensamento impessoal e sua ordem imóvel que rege simultaneamente a natureza e as ideias. A aparição do singular é, de certo modo, uma sombra na natureza e nas consciências. […] No entanto, os gregos tinham um agudo sentido da dignidade do ser humano, que muitas vezes introduzia na sua ordem impassível uma certa ambiguidade. Testemunho do que dizemos é por exemplo o seu gosto pela hospitalidade, o seu culto pelos mortos. Pelo menos uma vez, Sófocles (Édipo em Colona) tenta substituir a ideia de um destino cego pela de uma justiça divina de discernimento dotada. Antígona é a afirmação e o protesto dos que testemunham valores eternos contra o poder. As troianas opõem à ideia da fatalidade da guerra a da responsabilidade dos homens. Aos discursos utilitários dos sofistas, opõe Sócrates o aguilhão da ironia, que, perturbando o interlocutor, o põe em cheque e aos seus conhecimentos. O “conhece-te a ti próprio” é a primeira grande revolução personalista conhecida. Dadas as resistências do meio, só podia ter consequências limitadas. […]

O cristianismo rompe de súbito por entre estas apalpadelas, para se tornar o arauto de uma noção decisiva de pessoa. Nos nossos dias, mal nos podemos aperceber do escândalo formidável que tal noção constituía para o pensamento e para a sensibilidade dos gregos: 1º – Ao passo que a multiplicidade era para estes um mal inadmissível a qualquer espírito, para o cristianismo é um absoluto, afirmando ainda a criação ex nihilo [do nada] e o destino eterno de cada pessoa. O Ser supremo, que por amor os fez existir, não confere unidade ao mundo através da abstração de uma ideia, mas através de uma infinita capacidade para multiplicar indefinidamente esses atos de amor únicos. Não sendo, de forma alguma, uma imperfeição, essa multiplicidade, nascida da superabundância, implica por si mesma a superabundância da infinita troca, no amor processada. Durante muito tempo o escândalo desta multiplicidade das almas chocará contra vestígios da sensibilidade antiga, e vemos um Averroes ter ainda a necessidade de imaginar uma alma comum à espécie humana. 2º – O indivíduo humano deixa de ser o cruzamento de várias participações em mais gerais realidades (matéria, ideais etc.), para ser um todo indissociável, cuja unidade, porque no absoluto assente, precede a multiplicidade. 3º – Acima das pessoas já não reina a tirania abstrata de um Destino, de uma constelação de ideias ou de um pensamento impessoal, indiferentes a destinos individuais, mas um Deus que é ele próprio pessoal, embora de um modo eminente, um Deus que “entregou a sua pessoa” para assumir e transfigurar a condição humana, e que propõe a cada pessoa uma relação única em intimidade, uma participação na sua divindade; um Deus que se não afirma, como pensou o ateísmo moderno (Bakounine, Feuerbach), sobre coisas arrancadas ao homem, mas que antes lhe outorga uma liber191


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dade análoga à sua, pagando-lhe em generosidade o que em generosidade lhe for dado.

Atividades

Não escreva n 4º – O profundo movimento da existência humana o livro! não tende a assimilar-se à generalidade abstrata da natureza ou das ideias, mas a transformar o “coração do próprio coração” (metanoia), para que nele Interdisciplinaridade Arte se introduza e sobre o mundo irradie um reino Lanche filosófico transfigurado. O segredo de nossos corações, onde O texto reproduzido “O existencialismo é um se decide, por opção pessoal, essa transmutação do Universo, é domínio inviolável, que ninguém humanismo”, de Sartre, foi publicado pela primeipode julgar, e que não é conhecido por ninguém, ra vez em 1946. Reúna-se com alguns colegas e procurem na nem pelos anjos, mas somente por Deus. internet a letra da canção “Chiquita bacana”, uma 5º – A esse movimento o homem é livremente chama- marchinha de Carnaval de 1949, de autoria de do. A liberdade é constitutiva da existência criada. Braguinha (João de Barro). Se possível, ouçam a música por meio de alDeus teria podido criar em um momento uma criatura tão perfeita quanto o pudesse ser. Preferiu que gum CD do artista ou busca na web. Encontrem a fosse o homem chamado a amadurecer livremente a referência que o autor faz ao existencialismo. Façam uma pesquisa histórica sobre as déhumanidade e os efeitos da vida divina. O direito de pecar, ou seja, de recusar o seu destino, é essencial ao cadas de 1940 e 1950, em que o existencialismo pleno uso da liberdade. Longe de ser um escândalo, estava em voga na Europa e no Brasil. Procurem textos e imagens. antes seria a sua ausência que alienaria o homem. Discutam como esse clima da época, de que MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. São Paulo: Martins Fontes, 1976. p. 22-25. a marchinha é um exemplo, está presente ou não no texto de Sartre. Discutam, baseados na pesquisa, se o exisPara estudar os textos: tencialismo foi um movimento filosófico e se hoje ainda é uma opção para orientação de vida. • Anote no caderno todas as palavras que você Interdisciplinaridade Produção de arte desconhece e procure-as no dicionário. Arte • Entenda os textos parágrafo por parágrafo, Reúna-se com três ou quatro colegas e elaborelendo-os se for necessário, para a comprerem uma pequena história que retrate um episóensão integral do pensamento dos autores. • Se houver algum conceito ou trecho que lhe dio cotidiano para encená-la em forma de teatro. pareça particularmente difícil, peça ajuda a Essa história deve abordar os temas liberdade, angústia e existência. Criem um roteiro e enceseu professor. • Faça uma breve pesquisa das obras gregas nem para a classe. Depois da apresentação de todos os grupos citadas por Mounier (se possível, leia alguma delas na íntegra) e aprofunde o que o autor da sala, façam uma discussão geral, verificando e comentando as diferenças e semelhanças de quis dizer com as suas referências. • Discuta em grupo, comparando as ideias dos abordagem da temática. Neste capítulo se discute, em alguns momendois autores: o que há de comum e o que há tos, a relação do ser humano com Deus. Na área de radicalmente oposto. 192


da criação poética essa aproximação já foi retratada de várias maneiras, como no caso da música Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil. O compositor recebeu um pedido do cantor Roberto Carlos, que queria uma canção. Como Roberto era religioso, Gil pensou em uma letra cuja ideia seria “falar” com Deus. E o que ele criou não foi uma entidade nítida, clara. Segundo Gil, a música, “mais filosofal do que religiosa, não é necessariamente sobre um Deus, mas sobre a realidade última: o vazio de Deus, o vazio-Deus”. No final, há a sequência de “nadas”, que insinuam os grandes vazios, buracos, mas depois, desponta algo como uma possibilidade de uma saída, apesar de tudo. Leia a letra de Gilberto Gil e faça um paralelo entre ela e os textos do capítulo que abordaram essa temática.

Se eu quiser falar com Deus Gilberto Gil

Se eu quiser falar com Deus Tenho que ficar a sós Tenho que apagar a luz Tenho que calar a voz Tenho que encontrar a paz Tenho que folgar os nós Dos sapatos, da gravata Dos desejos, dos receios Tenho que esquecer a data Tenho que perder a conta Tenho que ter mãos vazias Ter a alma e o corpo nus

Se eu quiser falar com Deus Tenho que aceitar a dor Tenho que comer o pão Que o diabo amassou Tenho que virar um cão Tenho que lamber o chão Dos palácios, dos castelos Suntuosos do meu sonho Tenho que me ver tristonho Tenho que me achar medonho E apesar de um mal tamanho Alegrar meu coração

Se eu quiser falar com Deus Tenho que me aventurar Tenho que subir aos céus Sem cordas pra segurar Tenho que dizer adeus Dar as costas, caminhar Decidido, pela estrada Que ao findar vai dar em nada Nada, nada, nada, nada Nada, nada, nada, nada Nada, nada, nada, nada Do que eu pensava encontrar

Para ler mais Para aprofundar seus conhecimentos, leia as obras de onde foram extraídos os textos citados na seção Texto original: MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Lisboa: Texto & Grafia, 2010. SARTRE, Jean-Paul O existencialismo é um humanismo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

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Capítulo

8

Morrer e DEIXAR DE SER

Luca Giordano Palazzo MediaRiccardi, Florença, Itália

Para começar

Representação da cena do rapto da deusa grega Perséfone.

O mito de Perséfone Perséfone era uma deusa grega belíssima, filha de Zeus, senhor do Olimpo, e Deméter, deusa da fecundidade, da agricultura e das estações. Hades, deus do reino dos mortos, apaixonou-se por Perséfone e a pediu em casamento a Zeus, que lhe deu consentimento, mesmo sem Deméter ser consultada. Hades, no entanto, não perdeu tempo: colocou um lírio na encosta de um abismo quando Perséfone colhia flores em companhia das ninfas, e, quando ela se aproximou, a terra se abriu e Hades a raptou para o mundo infernal, o domínio dos mortos. Deméter ouviu a filha gritar, mas não viu o que lhe tinha 194

acontecido e saiu desesperada à sua procura. Durante nove dias e nove noites, com archotes nas mãos, sem comer, sem beber, sem se banhar ou descansar, Deméter procurou a filha por toda a terra. Até que Hélio, o Sol, que tudo vê, lhe contou o que tinha acontecido. Furiosa, Deméter decidiu não mais voltar ao Olimpo e abdicar de suas funções de deusa até que a filha lhe fosse devolvida. Com o tempo, sem que a deusa da fecundidade exercesse suas funções, a terra começou a ficar seca, não produzindo mais frutos. Zeus lhe enviou mensageiros, pedindo que retomasse seu lugar no Olimpo, mas Deméter não cedeu. Então, vendo que a ordem

das coisas estava ameaçada, Zeus determinou a Hades que devolvesse Perséfone à mãe. Perséfone, entretanto, ou também se apaixonara por Hades ou, ao menos, como havia comido uma semente de romã, que a obrigava a não deixar o reino das sombras. Zeus decidiu, então, que ela passaria seis meses com a mãe e seis com Hades. É por isso que, segundo calendários agrícolas, durante seis meses a terra fica estéril quando Perséfone está no submundo –, e, por seis meses, os solos se cobrem de frutos e flores – quando ela está com a mãe. Dessa forma, o mito explica o ciclo de morte e renascimento da natureza todos os anos. Texto dos autores.


Arquivo

É preciso pensar na morte?

A morte, de Thornsten Kohnhorst. Nesse desenho, a morte é representada como uma sombra que sempre acompanha o ser humano. Philippe Ariès (1914-1984)

FEITOSA, Charles. Explicando a filosofia com arte

Um dos grandes historiadores modernos, Ariès se mostra aberto a ideias e sem preconceitos. Foi um estudioso medievalista da família e da infância. Escreveu vários livros sobre a vida cotidiana das pessoas comuns e fez um brilhante estudo sobre a morte.

O que você pensa a respeito da morte? Consegue aceitá-la como um fato natural, ou ela lhe parece absurda, incompreensível? Na perspectiva de muitos filósofos, pensar na morte é uma tarefa fundamental do ser humano. Curiosamente, dizem esses pensadores, é pensando na morte que podemos pensar nos rumos que pretendemos dar às nossas vidas. Mas qual é exatamente a relação entre vida e morte? E por que pensar na morte? Para quê? Nesse capítulo trataremos dessas e de outras questões relativas à morte. Para muitos, no mundo contemporâneo, a morte se tornou um tabu. Ninguém a menciona, ninguém quer pensar nela e mesmo quando alguém morre, procura-se, muitas vezes, disfarçar que isso aconteceu. Esse é um dos aspectos estudados pelo historiador francês Philippe Ariès em sua obra O homem diante da morte. Para ele, a sociedade atual não quer se defrontar com a problemática da morte e procura escondê-la. O fato de a morte acontecer muitas vezes em hospitais, nas UTIs, longe de familiares e mesmo pessoas conhecidas, o fato de não deixarmos de lado nossos afazeres cotidianos quando alguém morre, de ficarmos constrangidos até mesmo de demonstrar tristeza diante de um acontecimento como esse, tudo isso expressa a recusa de nossa cultura, de nossa sociedade a encarar a morte como um fato natural. Morte no quarto de doente, de Edvard Munch, 1893. Na obra, o artista retrata a dor e o luto causados pela morte de um ente querido.

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A morte deve ser motivo de reflexão? Alguns pensadores acham que a morte é impensável. O filósofo judeu e austríaco Ludwig Wittgenstein diz, por exemplo, em sua obra Tractatus: “a morte não é um acontecimento da vida: não se vive a morte”. Na mesma linha, havia dito Epicuro: “quando estamos nós, a morte não está; e quando a morte está, não estamos nós”. Então, ela não faz parte de nossa experiência. Em toda a História, porém, a morte foi motivo de indagações. Estabeleceram-se, como veremos, inúmeras tentativas de reflexão sobre o assunto, e essas reflexões se entrelaçam com a questão metafísica da vida depois da morte. A morte, portanto, não é uma questão simples, nem é vista de maneira uniforme. Ela nos remete a uma questão limite: está ligada com a imagem que temos de nós mesmos. No que se refere à morte, estamos diante de uma das mais profundas questões de nossa existência e experiência, para a qual podemos entender apenas duas possibilidades (já discutidas por Sócrates em sua defesa diante dos magistrados de Atenas, no livro Apologia de Platão): ou somos seres mortais e a morte é nosso aniquilamento completo e devemos assumir essa finitude, ou somos seres imortais e a morte é porta para outra vida.

A morte como questão cultural A morte, em todas as culturas humanas, nunca foi tratada como um fato corriqueiro, sem grande importância. A ideia de imortalidade e as práticas de culto aos mortos são constantes nas civilizações antigas conhecidas e nas modernas. O sociólogo e filósofo francês Edgar Morin evidencia essa universalidade no estudo que realizou em O homem e a morte. Morin diz que a morte foi questão essencial para todas as culturas humanas. Em geral, o ser humano sempre apresentou cuidado com os mortos em ritos fúnebres, acreditando que a vida continuaria. Segundo o estudioso, não existiu praticamente nenhum grupo, por mais “primitivo” que fosse, que abandonasse seus mortos sem nenhuma espécie de ritual. E embora, pessoalmente, negue a possibilidade de vida pós-morte, Morin se mostra impressionado com a universalidade da crença na sobrevivência da alma em todas as culturas e em todas as épocas. Críticos da ideia da imortalidade consideram que tais crenças vêm da angústia causada pela possibilidade do nada e, não suportando essa perspectiva, são criadas ilusões de transcendência. 196

Arquivo

Muitas vezes a morte é pauta do dia nos noticiários, resultado da violência social, mas não é pensada, sentida, olhada: trata-se apenas de um passatempo chocante, diante do qual os espectadores se detêm por alguns minutos para logo não pensar mais nisso.

Ludwig Wittgenstein (1889-1951) Ludwig Wittgenstein (1889-1951) Filósofo austríaco, cuja obra é dividida por alguns intérpretes em dois momentos: o primeiro, ligado à obra Tratado lógicofilosófico, e o segundo, relacionado às Investigações filosóficas. Ambos os momentos, porém, têm em comum a linguagem, que foi o cerne de sua análise filosófica. Ou seja, ele esvaziou os temas tradicionais da Filosofia para centrá-la na questão da linguagem.

Edgar Morin (1921) Filósofo e sociólogo francês de origem judaica. Acredita que o homem moderno criou um pensamento linear e simplista, quando, na verdade, o cosmo, a vida, o pensamento e tudo o mais são complexos. Assim, devemos considerar todos os aspectos que compõem as coisas e entender como tudo está interligado. De acordo com sua teoria, o ser humano deve criar um pensamento complexo, ligando o objeto ao sujeito e ao seu ambiente. O pensamento complexo deve reconhecer que não existe objeto de conhecimento, o que existe é um sistema multidimensional dos seres e das coisas. Suas principais obras são O Método (coleção de seis volumes), A cabeça bem-feita e Os sete saberes necessários à Educação do futuro.


Para os muitos filósofos que se posicionam a respeito dessa questão, pensar na morte é importante porque, dependendo da concepção que temos dela, nossa filosofia de vida muda radicalmente. Somos seres destinados ao nada ou somos seres projetados na transcendência, para a vida além? O que representa nossa morte, enquanto seres humanos com forte desejo de vida?

Coleção Roger-Viollet/AFP

A Face Oriental

Gravura representando Confúcio (552-479 a.C.), filósofo chinês.

Reverenciar, prestar homenagens aos nossos antepassados, pessoas que já se foram e, em alguns casos, nem chegamos a conhecer é uma atitude recorrente entre os seres humanos. E está no centro dos ensinamentos religiosos de Confúcio. Como mencionado anteriormente, entre as culturas do Oriente não existe uma delimitação clara entre Filosofia e religião. Dentre essas culturas, destaca-se a figura de Confúcio, na China, o mais próximo que houve de um filósofo ocidental. Ele era educador e pensador político, preocupado em estabelecer uma sociedade mais justa e bem organizada, baseada nos valores da honradez e da justiça. Dentro da tradição confucionista – que depois se tornou uma religião de Estado, embora alguns estudiosos afirmem que isso se deu contra as ideias do próprio Confúcio –, uma das atitudes mais enfatizadas como própria do homem virtuoso é o respeito aos antepassados, o culto aos mortos. Essa é, aliás, uma constante em muitas culturas e religiões: o xintoísmo no Japão, os ritos africanos, os ritos antigos do paganismo e mesmo os rituais das Igrejas cristãs – todas enfatizam a necessidade de homenagear os mortos e honrá-los com preces, ritos e, em alguns casos, com oferendas. Confúcio, para disseminar seus ensinamentos, costumava caminhar acompanhado por centenas de discípulos, que registraram os diálogos com o mestre. Leia a seguir trecho que trata da recomendação do culto aos espíritos dos antepassados:

Fan Tch’eu o interrogou sobre a inteligência. O mestre disse: “Tratar o povo com equidade, honrar os espíritos, mas guardar distância, isso pode chamar-se inteligência”. Honrar os espíritos é devotar-se de todo coração a lhes testemunhar seu reconhecimento e a lhes fazer oferendas. Os espíritos, de que se fala aqui, são aqueles aos quais devemos fazer oferendas. Guardar distância não é procurar fazer de certa forma a corte aos espíritos para obter favores. O homem tem regras constantes a observar em todas as suas ações a cada dia de sua vida. Se 197


alguém, guiado pelo seu julgamento, se dedica por completo aos deveres que deve cumprir e às coisas que deve fazer, se honra os espíritos por homenagens sinceras, sem lhes fazer a corte nem solicitar seus favores, a prosperidade e o infortúnio não são mais capazes de atingi-lo; não é isso a inteligência? CONFÚCIO. O livro das explicações e respostas em 20 capítulos. São Paulo: Landy, 2001. p. 56-57.

A alma como identidade humana depois da morte

Dante e Virgílio no Inferno, de Eugène Delacroix, 1822.

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Dante Alighieri (1265-1321) Poeta italiano, romancista, teórico literário, filósofo. Criou o monumental poema épico A divina comédia, um trabalho de literatura medieval.

Homero (c. sec. V2I a.C. ) Poeta grego, criador das obras Odisseia e Ilíada, dois dos maiores clássicos da literatura mundial que retratam a alma grega, dão identidade ao povo dessa região.

Museu do Louvre, Paris, França

O poema Odisseia (provavelmente do século VIII a.C.), de Homero, narra o regresso do herói Ulisses a sua casa, depois de participar da Guerra de Troia. Nessa viagens, ele passa por muitas aventuras, entre elas, desce ao reino dos mortos para consultar o adivinho Tirésias, que já havia falecido. Ao chegar lá, encontra vários companheiros de batalha mortos e se depara com sua mãe, que o informa de que Penélope, sua esposa, continua fiel a ele. Muitos séculos mais tarde, mais precisamente no século XIV d.C., o poeta italiano Dante Alighieri escreve A divina comédia. Nesse poema, com 14 233 versos, Dante narra sua visita ao Inferno, ao Purgatório e ao Paraíso. Em cada um desses lugares, ele é guiado por um personagem: no Inferno e no Purgatório, pelo poeta romano Virgílio, e, no Paraíso, pela sua amada, já morta, Beatriz. Em todos esses reinos, Dante encontra personalidades históricas importantes que falam de suas lembranças da Terra, de seus padecimentos ou de sua felicidade. Nessas duas obras clássicas da literatura ocidental, encontramos, ainda que com visões muito diferentes, uma mesma ideia: a individualidade da alma depois da morte. Entre os gregos, no tempo de Homero , essa individualidade ainda era muito incerta. Os mortos eram sombras fugidias, com a mesma aparência que tinham em vida. Não havia então uma ideia definida dessa imortalidade. Um dos primeiros filósofos a tratar disso foi Pitágoras (ver biografia no capítulo 1), com sua doutrina de transmigração das almas em diversas vidas.


A morte de Sócrates

Sófocles (496-406) Dramaturgo, Sófocles inovou em vários aspectos nas apresentações de peças, com elementos cênicos que estabeleciam mais o “clima” do enredo. Introduziu também um terceiro ator nas peças e é considerado o maior poeta trágico grego. Sua obra-prima é Édipo rei, sobre um homem submetido às fatalidades do destino, que descobre ter matado o pai e casado com a mãe.

Havia predominância da ideia de imortalidade entre os pensadores gregos. Mas é na corrente filosófica socrático-platônica, que essa ideia ganha destaque de forma emblemática: a morte deixa de ser apenas um questionamento especulativo para se tornar uma experiência marcante quando Sócrates é condenado a ela pelos magistrados de Atenas. Seus discípulos o acompanham em sua defesa até o momento final, quando ele bebe a cicuta, conforme a sentença do tribunal. A cada instante e até o último minuto, Sócrates mostra uma serenidade espantosa. É preciso conhecer um pouco a mentalidade grega em torno da morte para entender o impacto que a morte de Sócrates provavelmente teve sobre aqueles que a presenciaram. Entre os rituais fúnebres da época, os parentes do morto saíam pelas ruas, chorando e arrancando os cabelos, para demonstrar sua dor. Era um ato obrigatório de piedade enterrar com todas as honras, preces e ritos a pessoa da família que tinha morrido. Um exemplo desse costume é retratado na tragédia Antígona, de Sófocles : nela se conta que o rei Creonte proíbe o enterro de Polinice, irmão de Antígona, como castigo por ele ter participado de uma revolta contra seu governo. Antígona enfrenta o rei e oferece sua própria vida em sacrifício para que seu irmão possa ser enterrado conforme o costume. Em Fédon, Platão descreve a morte de Sócrates, que recomenda a seus discípulos que não chorem, mostrando indiferença ao que fariam com seu corpo. Essa foi uma maneira inédita de encarar a morte, sem conotação de tragédia. Nesse livro, o tema do diálogo de Sócrates com seus discípulos é justamente a questão da morte e da imortalidade da alma. Nessa conversa, ele se depara com argumentos da filosofia materialista, que estava muito em voga na Grécia, descritos pelos discípulos da seguinte forma: • a matéria é a única realidade; • o corpo e a alma morrem; • somos seres mortais, teremos um fim. Sócrates foi processado pelos magistrados de Atenas porque suas ideias contrariavam o sistema político e social da época. O filósofo não aceitava honrar todos os deuses de Atenas reconhecidos pelo Estado daquela época, o que revoltava os governantes. Considerou-se que ele era um subversivo, que desencaminhava os jovens com suas opiniões. Sócrates dialogava com as pessoas sem fazer distinção de classe social, avaliando apenas as qualidades interiores de quem o procurava. O filósofo era tido como uma ameaça ao modelo que as classes dominantes impunham à população. Foi julgado e condenado a beber cicuta, um veneno extraído de uma planta que tem o mesmo nome. Antes de a sentença ser cumprida, ele fica cercado por amigos e discípulos discutindo o sentido da vida e da morte. 199


A imortalidade da alma A alma é para Platão uma condição essencial, pois sem ela jamais seria possível conhecer o infinito e o invisível. E se as coisas da realidade infinita são eternas e imutáveis, a alma deve ter afinidade com essas coisas e por isso deve ser eterna também. A afinidade da alma é com tudo aquilo que é divino e a afinidade do corpo é com tudo o que é perecível e passageiro. Sócrates, conforme o registro de Platão, argumenta ainda, em defesa da imortalidade da alma, que a realidade é composta de coisas que são contrárias e se excluem mutuamente, e esse é um atributo fundamental de todas as coisas. Como exemplo de contrários que se excluem, cita o quente e o frio: uma coisa não pode ser quente e fria ao mesmo tempo. O mesmo, afirma, se dá com a alma: ela é vida, é o que anima o corpo e dá movimento a este; a morte, sendo contrária à vida, não pode afetar a alma. A alma não pode ser vida e conter em si a morte. 200

The Gallery Collection

Sócrates, no entanto, adverte que a vida e as coisas não poderiam ser explicadas somente sob esse ponto de vista. Ele observa que as respostas dos filósofos naturalistas ou materialistas não comportavam a explicação de todos os problemas e de toda a realidade, pois excluíam a dimensão espiritual do ser. O ponto central invocado pelo filósofo grego é que a posição materialista erra ao querer explicar a realidade apenas pela causa material, sem buscar sua verdadeira causa. De acordo com os escritos de Platão, Sócrates procura demonstrar que, além da realidade material, existe uma espiritual, que seria a verdadeira causa da realidade. A realidade física não é a totalidade das coisas que são, mas a totalidade das coisas que parecem ser. Existem coisas na realidade que não são compreendidas apenas sensivelmente, mas pela razão e pela intuição. Isso porque a ­realidade apresenta dois níveis. O primeiro nível é o perceptível e sensível, e o segundo é o da realidade invisível e inteligível. A realidade física é apreendida pelo corpo, mas somente a alma é capaz de captar o invisível e o inteligível. E, completa, Sócrates, o que há de mais fundamental, tanto no campo do conhecimento como no campo da moral, está no plano do inteligível. E assim, por meio de uma bela discussão com seus discípulos, procura demonstrar logicamente que o ser humano é muito mais do que um ser finito. Com essa obra, Platão deixa claro sua crença na realidade da alma e em sua imortalidade. A prova da alma na filosofia platônica está justamente no fato de que o ser humano é capaz não só de captar as coisas visíveis e materiais, mas também de conhecer as coisas eternas, infinitas, invisíveis. Apenas o corpo não dá essa condição ao ser humano, pois sua capacidade tem limites e só chega a conhecer o que é sensível. Por isso, o ser humano precisa ter uma alma.

A morte de Sócrates, de Charles Alphonse Dufresnoy, c. 1650. Óleo sobre tela.


Portanto, a alma é imortal. O corpo perece porque só tem vida por causa da alma. A estrutura básica da alma é ser para o infinito. O eu do ser humano, na filosofia socrático-platônica, jamais perece. Embora já viesse se desenvolvendo na Grécia, a questão da identidade da pessoa se radicar na alma ganhou dimensões mais consistentes e definidas com Sócrates e Platão, sendo a contribuição central desses pensadores. Platão explica a tranquilidade e humor de Sócrates diante da sentença de morte como algo coerente com sua ideia de imortalidade. Ou seja, Sócrates demonstra sua visão de mundo por meio da própria vivência, o que remete a um de seus ensinamentos fundamentais: a prática da filosofia não está circunscrita ao domínio intelectual, mas afeta nossa vida por inteiro, nossa forma de estar no mundo, nossas escolhas e nossa forma de encarar a vida e a morte.

A morte no cristianismo

Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe, Alemanha

A ideia de identidade da alma individual ficou fortemente marcada no Ocidente por meio do cristianismo. A morte de Jesus Cristo foi ainda mais emblemática do que a de Sócrates, porque se constituiu no testemunho de amor pela humanidade, uma vez que, segundo a doutrina cristã, ele teria morrido para que os pecados humanos fossem perdoados. Nos relatos bíblicos, Jesus tratou diversas vezes da questão da morte em seus ensinamentos, exaltando a permanência da vida. Toda a tradição cristã, que repercutiu em vários âmbitos culturais, como a arte, e na Filosofia, é baseada na crença de que somos indivíduos únicos e que sobreviveremos à morte. Apesar desse lado otimista do cristianismo, a influência da Igreja católica e, depois, das Igrejas protestantes colaboraram também para nutrir o medo da morte, principalmente com a ameaça constante do Inferno (com todo o cortejo de demônios, fogo, tortura, como se anunciou durante séculos), embora sempre houvesse a esperança do Céu e da felicidade eterna. Durante a Idade Média, a morte era personificada como uma caveira e aparecia constantemente em pinturas, esculturas e textos escritos. Com isso, ela servia para lembrar à humanidade que a vida é curta, que é preciso sempre estar pronto para morrer, estar sempre com a consciência tranquila e quite com as obrigações diante da Igreja, para não ser pego de surpresa e ir parar no inferno. O cavaleiro, a morte e o diabo, de Albrecht Dürer, de 1513. Trata-se de uma alegoria do cristão que, como um soldado, ruma para sua pátria celestial ameaçado pelas forças do mal.

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Essa presença aterradora da morte não era, porém, apenas fruto das concepções religiosas da época: era também consequência da situação adversa, das guerras constantes, das epidemias, da peste negra, da precariedade das estruturas básicas de higiene e saneamento. Tudo isso tornava a vida muito frágil e a morte muito presente no dia a dia. Mesmo assim, havia sempre a esperança da salvação. É por isso que muitos pensadores afirmam que a religião não é fruto senão da fragilidade e do desamparo constitutivos do ser humano. O fato é que somos bastante vulneráveis, e a religião, segundo esses autores (­Schopenhauer, por exemplo), seria uma tentativa de lidar com essa situação de absoluta fragilidade, uma tentativa de contornar essa situação de desamparo.

A questão da alma na Filosofia Moderna Fora dos quadros medievais, que estavam sob pleno domínio da Igreja católica, houve inúmeros filósofos no decorrer dos séculos que se posicionaram a favor da imortalidade da alma. Como exemplo, podemos citar Descartes (confira a biografia no capítulo 2). Dentro da base de sua filosofia – Penso, logo existo –, ele se pergunta: Quem eu sou? Ou seja, quem é esse ser pensante? Depois de examinar-se com atenção como um ser pensante, ele podia supor que seu corpo e qualquer outra coisa do mundo era ilusório, projeção de sua mente, mas não podia deixar de reconhecer que existia, pois pensava e duvidava. Dessa forma, compreendeu que era uma substância, cuja essência consiste no pensar e para existir não dependia de qualquer coisa material. Com essa conclusão, o filósofo francês chegou à tese de que o que o faz ser o que é é a sua alma, e não o seu corpo. E essa alma é distinta do corpo. Mesmo que o corpo deixe de ser o que é, a alma não deixaria de ser a totalidade do que ela é. Assim, Descartes responde a sua indagação inicial (O que sou?): Sou uma alma pensante. E atribui à alma a faculdade de ser essencialmente pensamento, a capacidade de pensar é seu atributo básico. A alma não é vida biológica e sim ser pensante. A substância da alma, portanto, é distinta da substância do corpo e sobreviveria à morte física. A morte biológica determina o fim do corpo, mas não do pensamento. O filósofo alemão Leibniz (ver biografia no capítulo 2), embora seja um crítico de Descartes, concorda com a ideia de que a essência do ser humano é a alma. A alma, para ele, é uma espécie de substância composta de mônadas (conforme mencionamos anteriormente no capítulo 2). Deus é a mônada primitiva, criadora das outras mônadas. Para Leibniz, a alma não pode começar senão por meio da criação divina e só pode morrer também por aniquilação divina. A alma é como um espelho do Universo e é indestrutível como o Cosmo. No entanto, a filosofia de Leibniz apresenta dois conceitos de alma. O primeiro conceito se refere à alma dos animais; nesse caso, o termo “alma” significa o princípio da vida. No segundo conceito, alma é entendida como 202


espírito. A alma animal é composta de mônadas e, portanto, indestrutível, imortal. A alma animal é diversa da alma pessoal, pois a alma pessoal é uma substância pensante – capacidade de pensar é a principal diferença entre ambas. A alma humana sabe o que faz e por que faz, tem a capacidade de tecer reflexões e pode descobrir verdades. Segundo Leibniz, o que nos faz imortais não é o fato de nossa alma ser indestrutível, mas o fato de ter memória. É nessa dimensão que somos imortais. Para o filósofo, Deus conserva não somente nossa substância como também a nossa individualidade, ou seja, nossa capacidade de nos reconhecermos depois da morte como individualidades, nossa memória e a constatação do que somos. Os espíritos são os seres mais perfeitos e que melhor exprimem a divindade. Deus é princípio e causa de todas as substâncias e também regente de todas as almas inteligentes. A imortalidade pessoal é própria somente da criatura mais perfeita de Deus: o ser humano.

A alma que se integra ao todo

Zenão de Citium (c. 334-262 a.C.)

Museu Britânico, Londres

Filósofo do período helenístico, nascido na ilha de Chipre, foi fundador do estoicismo, filosofia que teria forte influência nos séculos seguintes e, mais tarde, no Renascimento. (Veja mais detalhes sobre o estoicismo no boxe informação no Capítulo 2I).

Busto de Marco Aurélio (121-180), imperador romano e filósofo estoico.

Seria possível nos livrarmos inteiramente do temor da morte? Qual seria a maneira de alcançar esse fim? A Filosofia pode nos ajudar no sentido de promover um convívio menos amedrontador com a morte? Os estoicos apostam na possibilidade de um convívio sereno com a morte. Vamos conhecer como isso se dá. Outra posição possível diante da morte, menos comum no Ocidente, é a ideia de que temos alma, mas essa alma não tem uma vida individual, uma identidade própria depois da morte. Ela se integra em um todo divino do qual somos uma partícula. Trata-se da posição panteísta. Uma das mais importantes correntes que assumiram essa perspectiva foi o estoicismo, fundado por Zenão de Citium , por volta do século 2I a.C., cujas ideias influenciaram fortemente a história da Filosofia. O estoicismo foi a filosofia predominante entre os romanos, que a herdaram dos gregos. Até hoje há pensadores que revelam certas tendências estoicas. Dentro da filosofia estoica, o mundo é uma ordem perfeita, racional e se identifica com Deus. Os seres humanos se inserem dentro dessa ordem e, se atingirem a sabedoria, poderão reger a si mesmos por essa lei. Os estoicos enfatizam a virtude moral como caminho para atingir a harmonia interna, um estado de impassibilidade: aquilo que chamam de ataraxia. Para isso, é preciso limitar os desejos, levando uma vida ascética, e suprimir as paixões. Essa supressão é uma espécie de libertação das emoções. O estoicismo é extremamente racionalista e defende a submissão de tudo ao domínio da razão. Mesmo a virtude deve ser exercida por dever, e não por gostarmos de fazer o bem. Dentro dessa supressão, o medo da morte, a lamentação, a ansiedade. Tudo é eliminado. O ser humano se torna indiferente àquilo que lhe acontece: na miséria ou na riqueza, na vida ou diante da morte, na doença ou na saúde, nada deve lhe afetar o ânimo. A morte é uma simples volta ao todo e nada tem de apavorante. 203


Além disso, os estoicos defenderam a tese do suicídio como alternativa válida diante de uma situação limite, em que a vida plena não fosse mais possível. Mas nem todos que consideram a morte como uma volta ao todo aceitam essa alternativa. Espinosa (veja biografia no capítulo 2) e os idealistas alemães, como Fichte e Hegel, adotam igualmente a postura panteísta e rejeitam a ideia da identidade do ser individual no além. Notemos que, no caso do idealismo, esse panteísmo tem consequências no plano político: também no mundo terreno, o indivíduo não tem valor intrínseco como indivíduo, mas apenas como parte do todo, no caso, o Estado. Entre os estoicos, houve muitas personalidades famosas, como ­Sêneca , senador romano e preceptor de Nero; Epiteto, um escravo filósofo da mesma época de Nero; e Marco Aurélio, imperador romano que escreveu Meditações, obra de grande importância, na qual tece reflexões morais sobre a vida, a morte e o mundo. O tema da morte é um tema típico do estoicismo.

A problemática do suicídio [...] A questão do suicídio é extremamente complexa, pois envolve aspectos morais, culturais, psicológicos e, também, filosóficos. Nesse momento, vamos tratar apenas das posições filosóficas a respeito da não aceitação do suicídio. Por que esse gesto de dar um ponto final à vida é absolutamente inaceitável para alguns filósofos? Quais são os argumentos utilizados por esses pensadores? Poucos filósofos defendem o direito ao suicídio como ato livre do ser humano. Entre eles, destacam-se Hume (ver biografia no capítulo 2) e ­Sartre (ver biografia no capítulo 3), cujas ideias já tratamos ­anteriormente. Ambos, embora de épocas e de correntes filosóficas diferentes, não admitem nem a existência de Deus, nem de leis morais imanentes ao ser humano, defendendo, portanto, o livre-arbítrio humano. A maioria das correntes filosóficas, entretanto, e quase todas as ­religiões, sempre condenaram o suicídio. Vários argumentos são usados para evidenciar que se trata de um ato inaceitável. Entre vários argumentos, considera-se o suicídio: • fuga da vida que nos foi dada: quem admite a existência de Deus considera esse ato uma infração à vontade divina. Assim pregava Platão, assim pensam os filósofos cristãos; • ato que não realiza o que o suicida realmente quer: Plotino, filósofo neoplatônico do século 2I, considerava que a violência do suicídio não 204

Sêneca (xxx a xxx) xxx


permitia a separação completa do corpo e da alma, causando sofrimento; Schopenhauer achava que o suicida não queria morrer, só não queria mais ter a vida que estava tendo;

não é um direito do cidadão, porque este tem compromissos sociais na comunidade em que vive, ou seja, devemos algo à sociedade que não podemos nos furtar a pagar – é um argumento antigo, existente desde Aristóteles; • ato que pode demonstrar certo egoísmo, uma vez que não se leva em consideração as consequências, a dor que causará aos outros. No mundo contemporâneo, entretanto, mais propenso a tentar compreender as causas psíquicas e mesmo físicas do que julgar moralmente, o suicídio é muito estudado dentro de quadros depressivos. Observa-se que pessoas diagnosticadas com depressão têm maior tendência a cometer suicídio. Portanto, é muito importante que, assim que detectada a doença, ela seja tratada adequadamente.

A morte como fator natural

The Art Archive/Corbis

Somos seres finitos ou a morte é apenas uma passagem para outra forma de vida? Quando nos deparamos com a morte, podemos nos fazer essa pergunta, a fim de tentar dissolver o profundo mal-estar que a acompanha. Diante dessa questão, vários pensadores defendem a radicalidade da finitude. Dizem eles: a morte nada mais é do que um fato biológico sem qualquer outra implicação religiosa. O que você pensa a respeito disso?

D’Holbach, Barão (Paul-Henri Thiry) (c. 1725-1789) Um dos grandes estudiosos das ciências naturais e da tecnologia do século XV2I na França. Escreveu artigos sobre Física, Química, metalurgia e mineralogia na Enciclopédia. Defendeu o Iluminismo, baseando-se em argumentos que construíram uma filosofia materialista e ateia. Produziu muitos escritos contra a religião, dentre os quais o mais famoso é O sistema da natureza.

A morte de Ophelia, de Eugène Delacroix, 1853, inspirada na peça Hamlet, de Shakespeare.

A filosofia iluminista é a primeira na Filosofia moderna a defender o ser humano como ser natural e destinado pelas leis da natureza à finitude. Nela aparece, pela primeira vez, uma formulação sistemática daquilo que os filósofos chamaram de “materialismo ateu”. Diderot, La Mettrie (ver biografias no capítulo 4) e o Barão D’Holbach fazem parte dessa corrente. O materialismo ateu é, para eles, o entendimento de que o humano é um ser da natureza, uma máquina feita de matéria. Segundo esses pensadores, por mais que se quisesse pensar como Descartes e Leibniz que o ser 205


humano era uma alma voltada para a imortalidade – não seria possível demonstrar isso.

Para esses filósofos, o ser humano nada mais é do que obra da natureza e está submetido às suas leis, não podendo se libertar delas. Assim, as pessoas são criaturas físicas, e não espirituais. O ser espiritual é uma projeção das criaturas físicas que se equivocam em suas observações sobre si mesmas e sobre a vida. Para esses iluministas, a ignorância seria o principal fator motivador da construção de teorias e de conceitos sobre Deus, alma e sua imortalidade. A posição de que a morte é apenas um fato biológico, sem nenhuma implicação filosófica, metafísica ou cultural, foi adotada por materialistas dos séculos XIX e XX (muitos dos quais nem se aprofundaram nessa questão, como é o caso de Comte e Marx e de seus seguidores).

O ser para a morte É possível alcançar a felicidade, sabendo que somos destinados à morte? Tendo em vista que a morte é algo que funciona como uma espécie de pano de fundo da nossa existência, a questão que se coloca para muitos filósofos é: Quais as implicações de se reconhecer que somos seres mortais, finitos? A negação da transcendência humana aparece de forma mais sofisticada em Schopenhauer e Heidegger. Um trata do medo da morte, e outro trata da questão da autenticidade. Vamos conhecer agora um pouco mais os argumentos desses autores. Schopenhauer ultrapassa as ideias dos iluministas: para ele, não basta entender que somos mortais, mas compreender que o próprio sentido de toda a vida revela os elementos de uma tragédia, pois é possível perceber que o conjunto da vida nada mais é do que uma série de esperanças, tentativas malsucedidas e fracassos constantes. Uma vida feliz seria impossível, porque somos seres destinados à morte. Para o filósofo, a alegria da juventude, por exemplo, se deve ao fato de que, quando jovens, estamos subindo a montanha da vida e a morte não está em nosso horizonte. A perspectiva da morte se encontra do outro lado da montanha. No entanto, estamos em um ininterrupto caminho para o fim da vida e a cada dia que vivemos nos aproximamos mais da finitude de nosso ser. Para Schopenhauer, até aproximadamente os 35 anos de idade, as pessoas vivem sem pensar exatamente em sua finitude, vivem como se fossem eternas e usam indiscriminadamente sua energia vital. Podem ser comparadas a investidores que vivem de juros do dinheiro: aquilo que gastam hoje recuperam amanhã. Entretanto, depois dessa idade, a visão das coisas começa a se modificar: passam a se assemelhar ao investidor que começa a perder capital, aumentando o cuidado com os gastos, e se tornam mais preocupadas com o que gastar e como gastar. O ser humano que se depara com a calamidade da morte, com a certeza de que a vida acaba e nada resta, torna-se mais preocupado com suas energias. A partir daí surge o medo da morte. 206


Esse medo fez surgir a Filosofia e é a causa das religiões. A humanidade não consegue se conformar com a morte e, portanto, cria mecanismos, filosofias e teologias para escapar psicologicamente dela. A crença na imortalidade é um exemplo do mecanismo usado pelo ser humano para vencer esse medo. Martin Heidegger, conforme vimos no capítulo 7, explora em sua filosofia a questão da existência humana e afirma que o ser humano é um ser que se projeta no mundo e, por isso, é um ser de várias possibilidades. Devemos encarar nossas escolhas como produto das nossas opções, pois podemos escolher uma possibilidade ou outra qualquer. Mas Heidegger toca em um ponto essencial ao afirmar que existe uma única possibilidade que não pode ser evitada: a da morte. A vida não nos dá a opção entre morrer e não morrer. A existência pode ser repleta de situações em que podemos escolher: podemos decidir se nossa vida terá um sentido ou outro, podemos escolher estudar um tema ou outro, praticar uma determinada profissão ou outra, mas não podemos escolher não morrer. Segundo Heidegger, a morte, de certo modo, aniquila todo projeto existencial dos seres humanos. Diante da perspectiva da finitude, as outras possibilidades se tornam impossibilidades, pois a morte não dá ao ser humano nenhuma possibilidade, ela anula todo projeto de existência humana. Em sua opinião, os alicerces da existência residem no fato de que toda a existência é nula. Diante disso, o ser humano pode tomar duas atitudes, e nesse campo ele tem possibilidade de escolha. O primeiro caminho é o da existência inautêntica, que é seguido pela maioria das pessoas, buscando se refugiar e se esconder da angústia de se reconhecerem para a morte. A presença do fim tem levado as pessoas a fugas. Ao tomar contato com a finitude, ao perceber que seu eu será aniquilado, que deixará de ser, o medo se apossa delas. Para não enfrentar esse sentimento de medo, se escondem no mundo, nas trivialidades da vida cotidiana, a fim de escapar de si mesmas e de sua condição mais essencial. Procuram não tomar consciência da luta entre o projeto de existir e a constante presença da morte. O segundo caminho é o melhor, no entender de Heidegger, pois consiste em aceitar a morte como possibilidade e entender que somos “seres para a morte”. O filósofo diz que o ser humano deve se fazer livre para a própria morte e assumir essa possibilidade insuperável. O que ele quer dizer com isso? Quer dizer que o ser humano deve aceitar esse sentido por ele mesmo e admitir que o sentido da existência é o nada, ou seja, ele é um ser projetado para a morte. Assumir isso é essencial, é ter uma atitude corajosa diante da possibilidade de deixar de ser, é assumir a autenticidade da existência. Segundo Heidegger, a voz da nossa consciência nos exorta à aceitação da finitude. Entendendo isso, o ser humano ganha tranquilidade diante da morte. O filósofo francês Jean-Paul Sartre recebeu grande influência de Heidegger, aceitando a ideia de que o sentido mais essencial da existência é 207


o da finitude. Sartre assume em seus textos o ateísmo e a morte do ser e de sua consciência. As pessoas não possuem alma nem natureza humana; nem existe Deus, criador de almas imortais. Ao eliminar a ideia de Deus, desaparece também a ideia de sobrevivência do eu e de imortalidade da alma. Portanto, sua concepção se assemelha à visão de Heidegger de que o ser não tem uma natureza ou uma alma divina imortal, mas é um ser finito e mortal. Segundo Schopenhauer, até aproximadamente os 35 anos, as pessoas vivem sem se preocupar com sua finitude, vivem como se fossem eternas e usam indiscriminadamente sua energia vital.

Provas da sobrevivência

Shim Shinkuma/Folha imagem

A morte pode ser vista como um ponto final da existência, mas também pode ser entendida como um processo existencial vivenciado por todos nós através, por exemplo, do envelhecimento. Envelhecer, de certa forma, é morrer para o que se era antes. E esse movimento é parte do processo existencial do todo ser humano. Essa é a posição sustentada por Max Scheler.

O skatista Bob Burnquist executando a manobra conhecida como dead loop, ou “giro da morte”: se mal executada, ela pode provocar a morte.

O filósofo alemão Max Scheler (ver biografia no capítulo 5) conferiu importância excepcional à problemática da morte em sua filosofia e chegou a conclusões originais e bem diferentes das de Heidegger e Sartre. A teoria do conhecimento da morte é um conceito-chave em suas obras, pois permite entender o que é a morte, qual percepção os seres humanos têm dela e que tipo de certeza têm a seu respeito. Em todos os empreendimentos humanos, a perspectiva da morte condiciona as ações e o sentido da existência das pessoas. Supomos que a certeza diante da morte é resultado de nossa ­experiência exterior. Scheler diz que é muito divulgada a crença de que a morte é algo natural, porque temos a capacidade de observar isso: vemos 208


seres humanos e animais morrerem e isso nos dá a certeza da finitude do ser. Segundo essa constatação, alguém que nunca tivesse notado ou visto outros organismos morrerem jamais teria um saber sobre a morte. Essa ideia tem por base um conceito totalmente empírico da morte.

Scheler dedicou sua atenção a fim de refutar tal concepção. Em sua opinião, mesmo que uma pessoa não tivesse esse tipo de experiência empírica, saberia de qualquer forma que é um ser destinado à morte, mesmo se fosse o único ser vivo sobre a terra. Sua tese é de que o ser humano vivencia a experiência do envelhecimento e se percebe como um ser finito naturalmente. Para Scheler, a certeza de que morremos advém não apenas da observação externa, mas da própria estrutura do existir humano e em cada pequena fase da vida. A ideia desenvolvida por ele é de que nossa consciência das coisas não é formada apenas de percepções externas da vida, mas também de impressões internas. A presença da morte é parte essencial de nossa ­realização como seres humanos: percebemos a morte não apenas no final do processo. A morte pode ser percebida porque ela já está na base de todo o processo de desenvolvimento do ser, de mutabilidade da existência. O próprio processo vital desde o início já contém a morte em germe. A consciência percebe esse desenvolvimento interno do processo vital do ser e se descobre para a morte. Esse desenvolvimento é movimento, é mudança, e conseguimos vivenciá-lo internamente. Scheler chama essa consciência de vivência psíquica. É preciso notar, diz ele, que essa experiência independe da esperança ou do medo da morte, e mesmo do impulso natural de vida e de morte. O filósofo propõe a seguinte situação: imaginemos que um indivíduo não visse lhe aparecer nenhum sinal externo de seu envelhecimento, que ele estivesse como que anestesiado contra as sensações orgânicas de cansaço e adoecimento. Pensemos mesmo que nunca ficasse doente. Será que esse homem teria consciência de sua idade? Não teria consciência de sua idade cronológica, mas, segundo Scheler, saberia que está envelhecendo, porque isso é fruto de sua percepção interna. Esse indivíduo teria um sentimento e uma vivência que se destinam à morte, pois conseguiria intuir a vivência de sua mutabilidade e de sua finitude. Assim, Scheler afirma que a morte não é apenas um elemento empírico e seu conhecimento adquirido a partir da observação, mas ela pertence à esfera da essência de nossa experiência da vida. É próprio da experiência de cada indivíduo. Até esse ponto de sua consideração, Scheler antecipa as teses de Heidegger, pois também acredita que o ser humano é um ser destinado à morte e consegue perceber essa realidade. De certa forma, Heidegger concorda com Scheler ao dizer que a morte é um dado da intuição profunda dos humanos no seu processo de viver e que, se ouvíssemos nossa consciência, saberíamos que nos destinamos à morte. Para os dois pensadores, a morte diz respeito à essência do ser humano. Ocorre que, para Scheler, o ser humano precisa se esquecer de que é um ser para a morte, precisa tirar isso da consciência, senão não consegui209


rá ter nenhuma ação proveitosa em sua vida. Se o pensamento da morte estivesse sempre presente, renunciaríamos à vida e ficaríamos quase que estagnados. Nosso cotidiano ficaria relegado a segundo plano, deixaríamos de agir, não procuraríamos melhorar as condições da vida terrena e isso seria obviamente bastante negativo.

Bettmann/Corbis

A teoria de Scheler opõe-se à de Heidegger na medida em que o próprio fenômeno da morte sugere que devemos pensar na sobrevivência da alma. A ideia da sobrevivência está entrelaçada com a inevitabilidade da morte e do destino dos seres vivos. Não basta dizer de forma arbitrária que somos destinados à morte para que a finitude esteja provada. É preciso, ao contrário, investigar por que na experiência de milhares de seres humanos aparece a crença na sobrevivência e na imortalidade. Scheler procura analisar as possíveis provas da sobrevivência pessoal dos seres humanos, mas não acredita que se possa provar ou negar a sobrevivência da alma ao estilo da Filosofia do século XV2I ou da Ciência do século XX. Ele se distancia da busca por qualquer tipo de prova ou recusa racionalista. Seria problemático dizer que a razão humana é capaz de produzir uma prova ou uma negação de forma cabal da sobrevivência humana. E duvida também de que isso seja necessário; mesmo que fosse possível demonstrar de forma racional que há uma independência essencial da pessoa em relação à vida orgânica e que sua consciência e sua individualidade permaneceriam existindo, seria muito difícil provar de forma

Gravura representando um espírito materializado, feita por W. P. Snuder, em 1874. O espírito de Anne Morgan, supostamente morta havia mais de dois séculos, teria se revelado para um grupo de médiuns espiritualistas, com o nome de Katie King. Para Scheler não se pode provar ou negar a sobrevivência da alma.

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definitiva que uma pessoa não deixaria de existir. No entanto, diz Scheler, se não podemos provar de forma definitiva a sobrevivência da pessoa à morte, não é motivo para que tal teoria seja uma ilusão. Ocorre que a razão não é o melhor instrumento para isso e podemos buscar outros caminhos para entender e verificar se o eu sobrevive. Scheler abre espaço para outra linha de argumentação ao dizer que, da mesma forma que a pessoa experimenta a percepção de ser para a morte, experimenta-se a si mesma como ser sobrevivente. O filósofo diz que a percepção, a intuição e a vivência não deixam de ser elementos filosóficos e, portanto, a Filosofia pode se lançar nessa discussão. De acordo com ele, não há qualquer fundamento filosófico definitivo que nos faça descrer totalmente na possibilidade de sobrevivência do ser humano. Na vida e no existir humano reside um dado intuitivo de sobrevivência, que vem desde os povos primitivos até a época de Kant e Goethe, com ideias mais complexas, e está presente na maioria das pessoas e dos povos. Não vivemos apenas cercados pela presença da morte, vivemos igualmente envolvidos pela presença da sobrevivência. Scheler recorre à mesma linha argumentativa para demonstrar a intuição como fonte da certeza da morte. A vivência psíquica dos seres humanos de todos os tempos, que majoritariamente aceitaram a ideia da sobrevivência, é uma demonstração de que essa crença é muito mais provável do que a finitude. Portanto, Scheler acredita que, na ideia da sobrevivência, há muito mais do que projeções dos medos humanos. O filósofo diz que essa possibilidade é válida na medida em que a própria morte é um dado da vivência psíquica. A humanidade vive diante da morte, assim como vive diante da sobrevivência.

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Texto original A morte de Sócrates Platão

[...] Depois destas palavras de Sócrates, Críton falou: – Então, que ordens nos dás, Sócrates, a estes ou a mim, a respeito de teus filhos ou de qualquer outro assunto? Quanto a nós, essa seria, por amor a ti, nossa tarefa mais importante! – Justamente, Críton, não cesso de falar sobre ela – respondeu – e nada de novo tenho para vos dizer! Vede: cuidai de vós próprios, e de vossa parte então toda tarefa será feita com amor, tanto a mim e aos meus quanto a vós mesmos, ainda que não tenhais assumido esse compromisso. Suponhamos, pelo contrário, que de vós próprios não tomeis cuidado, e que não queirais absolutamente viver em conformidade com o que foi dito tanto hoje como em outras ocasiões. Então, quaisquer que possam ser hoje o número e a força de vossas promessas, nada tereis adiantado! – Poremos todo o nosso coração, naturalmente – disse Críton – em conduzir-nos dessa forma. Mas como haveremos de enterrar-te? – Como quiserdes – respondeu –, isto é, se conseguirdes reter-me a mim, e se eu não vos escapar! – Então riu-se docemente e, voltando-se para nós, disse: – Não há meio, meus amigos, de convencer Críton de que o que eu sou é este Sócrates que se acha presentemente conversando convosco e que regula a ordem de cada um de seus argumentos! Muito ao contrário, está persuadido de que eu sou aquele outro Sócrates cujo cadáver estará daqui a pouco diante de seus olhos; e ei-lo a perguntar como me deve enterrar! E quanto ao que desde há muito venho repetindo – que depois de tomar o veneno não estarei mais junto de vós,

mas me encaminharei para a felicidade que deve ser a dos bem-aventurados – tudo isso, creio, eram para ele vãs palavras, meras consolações que eu procurava dar-vos, ao mesmo tempo que a mim mesmo! Sede, pois, meus fiadores junto a Críton, garantindo-lhe o contrário daquilo que ele afiançou aos juízes. Ele jurou que eu ficaria no meio de vós; vós, porém, afirmai-lhe que não ficarei entre vós quando morrer, mas que partirei, que me irei embora! Este é o único meio de fazer com que esta provação seja mais suportável a Críton, o meio de evitar que, vendo queimar ou enterrar meu corpo, se impressione e pense que estou sofrendo dores inenarráveis, e que no decorrer dos funerais diga estar expondo Sócrates, conduzindo-o à sepultura e enterrando-o! [...] Dito isso, Sócrates pôs-se de pé, e, para banhar-se, passou a outra peça. Críton seguiu-o, fazendo-nos sinal que esperássemos. Ficamos, pois, a conversar e a examinar tudo quanto se havia dito [...]. Verdadeiramente, era para nós como se perdêssemos um pai, e iríamos passar como órfãos o resto de nossa vida! Depois de se ter banhado, trouxeram-lhe seus filhos (tinha dois pequenos e um já grande), e as mulheres de casa também vieram; entretevese com eles em presença de Críton, fazendo-lhes algumas recomendações. Em seguida ordenou que se retirassem e veio para junto de nós. Já o sol estava próximo de recolher-se, pois Sócrates havia passado muito tempo no outro quarto. Ao voltar do banho sentou-se novamente, e a conversa desta vez durou pouco. Apresentou-se então o servidor dos Onze, e, em pé, diante dele disse: – Sócrates, por certo não me darás a mesma razão de queixa que tenho contra os outros! Esses enchem-se de cólera contra mim e me cobrem de imprecações quando os convido a tomar o veneno, porque tal é a ordem dos Magistrados.

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Tu, como tive muitas ocasiões de verificar, és o homem mais generoso, o mais brando e o melhor de todos aqueles que passaram por este lugar. E, muito particularmente hoje, estou convencido de que não será contra mim que sentirás ódio, pois conheces os verdadeiros culpados, mas contra eles. Não ignoras o que vim anunciar-te, adeus! Procura suportar da melhor forma o que é necessário! Ao mesmo tempo pôs-se a chorar e, escondendo a face, retirou-se. Sócrates tendo levantado os olhos para ele: – Adeus! – disse. – Seguirei o teu conselho. Depois, voltando-se para nós: – Quanta gentileza neste homem! Durante toda a minha permanência aqui veio várias vezes ver-me, e até conversar comigo. Excelente homem! E, hoje, quanta generosidade no seu pranto! Pois bem, avante! Obedeçamos-lhe, Críton, e que me tragam o veneno se já está preparado; se não, que o prepare quem o deve preparar! Então disse Críton: – Mas, Sócrates, o sol se não me engano está ainda sobre as montanhas e não se deitou de todo. Ademais, ouvi dizer que outros beberam o veneno só muito tempo depois de haverem recebido a intimação, e após terem comido e bebido bem, e alguns, até, só depois de haverem tido contato com as pessoas que desejaram. Vamos! nada de precipitações; ainda há muito tempo! Ao que Sócrates respondeu: – É muito natural, Críton, que as pessoas de quem falas tenham feito o que dizes, pensando que ganhavam alguma coisa fazendo o que fizeram. Mas, quanto a mim, é natural que eu não faça nada disso, pois penso que tomando o veneno um pouco mais tarde nada ganharei, a não ser, tornar-me para

mim mesmo um objeto de riso, agarrando-me dessa forma à vida e procurando economizá-la quando dela nada mais resta! Mas temos falado demais: vai, obedece, e não me contraries. Assim admoestado, Críton fez sinal a um de seus servidores que se mantinham nas proximidades. Este saiu e retornou daí a poucos instantes, conduzindo consigo aquele que devia administrar o veneno. Este homem o trazia numa taça. Ao vê-lo Sócrates disse: – Então, meu caro! Tu que tens experiência disto, que é preciso que eu faça? – Nada mais – respondeu – do que dar umas voltas caminhando, depois de haver bebido, até que as pernas se tornem pesadas, e em seguida ficar deitado. Desse modo o veneno produzirá seu efeito. Dizendo isso, estendeu a taça a Sócrates. Este a empunhou. Equécrates, conservando toda a sua serenidade, sem um estremecimento, sem uma alteração, nem da cor do rosto, nem dos seus traços. Olhando em direção do homem, um pouco por baixo e perscrutadoramente, como era seu costume, assim falou: – Dize-me, é ou não permitido fazer com esta beberagem uma libação às divindades? – Só sei, Sócrates, que trituramos a cicuta em quantidade suficiente para produzir seu efeito, nada mais. – Entendo. Mas pelo menos há de ser permitido, e é mesmo um dever, dirigir aos deuses uma oração pelo bom êxito desta mudança de residência, daqui para além. É esta minha prece; assim seja! E em seguida, sem sobressaltos, sem relutar nem dar mostras de desagrado, bebeu até o fundo. 213


Texto original

Nesse momento nós, que então conseguíamos com muito esforço reter o pranto, ao vermos que estava bebendo, que já havia bebido, não nos contivemos mais. Foi mais forte do que eu. As lágrimas me jorraram em ondas, embora, com a face velada, estivesse chorando apenas a minha infelicidade – pois, está claro, não podia chorar de pena de Sócrates! Sim, a infelicidade de ficar privado de um tal companheiro! De resto, incapaz, muito antes de mim, de conter seus soluços, Críton se havia levantado para sair. E Apolodoro, que mesmo antes não cessara um instante de chorar, se pôs então, como lhe era natural, a lançar tais rugidos de dor e de cólera, que todos os que o ouviram sentiram-se comovidos, salvo, é verdade, o próprio Sócrates:

– Assim farei – respondeu Críton. – Mas vê se não tens mais nada para dizer-nos. A pergunta de Críton ficou sem resposta. Ao cabo de breve instante, Sócrates fez um movimento. O homem então o descobriu. Seu olhar estava fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou a boca e os olhos. Tal foi, Equécrates, o fim de nosso companheiro. O homem de quem podemos bendizer que, entre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, era o melhor, o mais sábio e o mais justo.

Ria Novosti

PLATÃO. Fédon. São Paulo: Nova Cultural, 1983. p. 123-125. (Os pensadores).

– Que estais fazendo? – exclamou. – Que gente incompreensível! Se mandei as mulheres embora, foi sobretudo para evitar semelhante cena, pois, segundo me ensinaram, é com belas palavras que se deve morrer. Acalmai-vos, vamos! dominai-vos! Ao ouvir esta linguagem, ficamos envergonhados e contivemos as lágrimas. Quanto a Sócrates, pôs-se a dar umas voltas no quarto, até que declarou sentir pesadas as pernas. Deitou-se então de costas, assim como lhe havia recomendado o homem. Ao mesmo tempo, este, aplicando as mãos aos pés e às pernas, examinava-o por intervalos. Em seguida, tendo apertado fortemente o pé, perguntou se o sentia. Sócrates disse que não. Depois disso recomeçou no tornozelo, e, subindo aos poucos, nos fez ver que Sócrates começava a ficar frio e a enrijecer-se. Continuando a apalpá-lo declarou-nos que quando aquilo chegasse até o coração, Sócrates ir-se-ia. Sócrates já se tinha tornado rijo e frio em quase toda a região inferior do ventre, quando descobriu sua face, que havia velado, e disse estas palavras, as derradeiras que pronunciou:

Sócrates, do escultor russo Stepan Erzya, 1940.

Para estudar o texto: •

– Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa dívida. 214

Leia o texto com atenção, procurando observar quantas personalidades fazem parte desse episódio. Forme um grupo com seus colegas de acordo com a quantidade de personalidades do episódio, e leiam o texto para a classe, dramatizando-o. Redija um texto procurando descrever suas impressões com a leitura do relato da morte de Sócrates.


Atividades

o livro!

Interdisciplinaridade

O sétimo selo (Det Sjunde inseglet), Suécia, 1957. Direção de Ingmar Bergman. Na Idade Média, depois das Cruzadas, um cavaleiro retorna o seu país, mas o encontra devastado pela peste negra. Com isso, revolta-se contra Deus e reflete sobre o significado da vida. Surge então, personificada, a Morte querendo levá-lo. O cavaleiro convida-a para um jogo de xadrez, para que se decida se ele irá com ela ou não. A Morte aceita o desafio, convencida de Cena do filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman, 1957. Durante todo que não perde nunca. o filme, o personagem de Max von Sydow (à esquerda) joga xadrez • Assista ao filme. Depois, discuta com a Morte. com seus colegas como a Morte é retratada. • Assista ao filme Orfeu Negro (também chamado de Orfeu do Carnaval), baseado na peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, o filme é uma produção franco-brasileira dirigida por Marcel Camus, que conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1959, assim como o Globo de Ouro na mesma categoria, além da Palma de Ouro do festival de Cannes. A trama remete ao assunto inicial do capítulo, o mito de Perséfone, pois é a história do mito de Orfeu adaptado poeticamente à cidade do Rio de Janeiro dos anos 1950. Na trama, Eurídice (Marpessa Dawn) chega à cidade durante o Carnaval carioca e se hospeda em um morro. Quando a conhece, Orfeu (Breno Mello), um condutor de bonde, logo se apaixona por ela, que corresponde. Mas há um personagem sombrio, fantasiado de Morte, que persegue a jovem e faz com que o rapaz tente protegê-la. Houve uma versão mais recente da história, em 1999, de Cacá Diegues, em que o personagem Orfeu é um compositor popular de uma escola de samba. • Após assistir ao filme, converse com os seus colegas sobre o quanto ele tem a ver com o tema do capítulo e com o filme O Sétimo Selo. O filme tem trilha sonora com músicas de Vinicius de Moraes e mostra o Rio de Janeiro de uma forma especial, lírica e poética.

Legenda

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Photos 12

Arte

credito

Cinema pensante

Não escreva n


A mídia Texto em pautaoriginal Leia a matéria a seguir. Depois, discuta em sala com seus colegas sobre o tema tratado: a possibilidade de a ciência evidenciar a sobrevivência da alma. O que você pensa a respeito?

Os avanços da ciência da alma

Interdisciplinaridade

Psicologia

Denise Paraná

Estávamos no mês de julho de 2008. Na Rua 34 da cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos, num quarto do Hotel Penn Tower, um grupo seleto de pesquisadores e médiuns preparava-se para algo inédito. Durante dez dias, dez médiuns brasileiros se colocariam à disposição de uma equipe de cientistas do Brasil e dos EUA, que usaria as mais modernas técnicas científicas para investigar a controversa experiência de comunicação com os mortos. Eram médiuns psicógrafos, pessoas que se identificavam como capazes de receber mensagens escritas ditadas por espíritos, seres situados além da palpável matéria que a ciência tão bem reconhece. O cérebro dos médiuns seria vasculhado por equipamentos de alta tecnologia durante o transe mediúnico e fora dele. Os resultados seriam comparados. Como jornalista, fui convidada a acompanhar o experimento. Estava ali, cercada de um grupo de pessoas que acreditam ser capazes de construir pontes com o mundo invisível. Seriam eles, de fato, capazes de tal engenharia? A produção de exames de neuroimagem (conhecidos como tomografia por emissão de pósitrons) com médiuns psicógrafos em transe é uma experiência pioneira no mundo. Os cientistas Julio Peres, Alexander Moreira-Almeida, Leonardo Caixeta, Frederico Leão e Andrew Newberg, responsáveis pela pesquisa, garantiam o uso de critérios rigorosamente científicos. Punham em jogo o peso e o aval de suas instituições. Eles pertencem às faculdades de medicina da Universidade de São Paulo, da Universidade Federal de Juiz de Fora, da Universidade Federal de Goiás e da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia. Principal autor do estudo, o psicólogo clínico e neurocientista Julio Peres, pesquisador do Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (Proser), do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, acalentava a ideia de que a experiência espiritual pudesse ser estudada por meio da neuroimagem. Em frente ao Q. G. dos médiuns no Hotel Penn Tower, o laboratório de pesquisas do Hospital da Universidade da Pensilvânia estava pronto. Lá, o cientista Andrew Newberg e sua equipe aguardavam ansiosos. Médico, diretor de Pesquisa do Jefferson-Myrna Brind Centro de Medicina Integrativa e especialista em neuroimagem de experiências religiosas, Newberg é autor de vários livros, com títulos como Biologia da crença e Princípios de neuroteologia. Suas pesquisas são consideradas uma referência mundial na área. […] “É conhecido o fato de experiências religiosas afetarem a atividade cerebral. Mas a resposta cerebral à mediunidade, a prática de supostamente estar em comunicação com ou sob o controle do espírito de uma pessoa morta, até então nunca tinha sido investigada”, diz Newberg. Os cientistas queriam investigar se havia alterações específicas na atividade cerebral durante a psicografia. Se houvesse, quais seriam? Os dez médiuns, quatro homens e seis mulheres, participavam do experimento voluntariamente. Foram selecionados no Brasil por meio de uma longa triagem. Entre os pré-requisitos, tinham de ser destros, saudáveis, não ter nenhum tipo de transtorno mental e não usar medicações psiquiátricas. Metade dos voluntários dizia carregar décadas de experiência no “intercâmbio espiritual”. Outros, menos experientes, apenas alguns anos. […] 216


Numa sala com aviso de perigo, alta radiação, começaram os exames. Por meio do método conhecido pela sigla Spect (Single Photon Emission Computed Tomography, ou Tomografia Computadorizada de Emissão de Fóton Único), mapeou-se a atividade do cérebro por meio do fluxo sanguíneo de cada um dos médiuns durante o transe da psicografia. Como tarefa de controle, o mesmo mapeamento foi realizado novamente, desta vez durante a escrita de um texto original de própria autoria do médium, uma redação sem transe e sem a “cola espiritual”. Os autores do estudo partiam da seguinte hipótese: uma vez que tanto a psicografia como as outras escritas dos médiuns são textos planejados e inteligíveis, as áreas do cérebro associadas à criatividade e ao planejamento seriam recrutadas igualmente nas duas condições. Mas não foi o que aconteceu. Quando o mapeamento cerebral das duas atividades foi comparado, os resultados causaram espanto. Surpreendentemente, durante a psicografia os cérebros ativaram menos as áreas relacionadas ao planejamento e à criatividade, embora tenham sido produzidos textos mais complexos do que aqueles escritos sem “interferência espiritual”. Para os cientistas, isso seria compatível com a hipótese que os médiuns defendem: a autoria das psicografias não seria deles, mas dos espíritos comunicantes. Os médiuns mais experientes tiveram menor atividade cerebral durante a psicografia, quando comparada à escrita dos outros textos. Isso ocorreu apesar de a estrutura narrativa ser mais complexa nas psicografias que nos outros textos, no que diz respeito a questões gramaticais, como o uso de sujeito, verbo, predicado, capacidade de produzir texto legível, compreensível etc. Apesar de haver várias semelhanças entre a ativação cerebral dos médiuns estudados e pacientes esquizofrênicos, os resultados deixaram claro também que aqueles voluntários não tinham esquizofrenia ou qualquer outra doença mental. Os cientistas afirmam que a descoberta de ativação da mesma área cerebral sublinha a importância de mais pesquisas para distinguir entre a dissociação (processo em que as ações e os comportamentos fogem da consciência) patológica e não patológica. Entre o que é e o que não é doença, quando alguém se diz tocado por outra entidade. Os médiuns estudados relataram ilusões aparentes, alucinações auditivas, alterações de personalidade e, ainda assim, foram capazes de usar suas experiências mediúnicas para tentar ajudar os outros. Pode haver, portanto, formas saudáveis de dissociação. Uma das conclusões a que os cientistas chegaram é que a mediunidade envolve um tipo de dissociação não patológica, ou não doentia. A mediunidade pode ser uma expressão comum à natureza humana. Essas conclusões […] foram divulgadas na revista científica americana Plos One. O estudo Neuroimagem durante o estado de transe: uma contribuição ao estudo da dissociação tem acesso gratuito […] no endereço eletrônico: <dx.plos.org/10.1371/journal. pone.0049360>. […] A ciência pode desvendar a natureza da alma? “Se eu pudesse recomeçar minha vida, deixaria de lado tudo o que fiz, para estudar a paranormalidade.” Essa confissão de Sigmund Freud a seu biógrafo oficial, Ernest Jones, marca um dos capítulos pouco conhecidos da história do pensamento humano. Pouca gente sabe também que muitas das teorias reconhecidas hoje pela ciência sobre o inconsciente e a histeria baseiam-se em trabalhos de pesquisadores que se dedicaram ao estudo da mediunidade. Talvez menos gente saiba que Marie Curie, a primeira cientista a ganhar dois prêmios Nobel, e seu marido, Pierre Curie, também Nobel, dedicaram espaço em suas atribuladas agendas ao estudo de médiuns. No Instituto de Metapsíquica em Paris, no início do século passado, Madame Curie inquiriu com seus assombrados olhos azuis a médium de efeitos físicos Eusapia Palladino. O casal Curie supôs que os segredos da radioatividade poderiam ser revelados por meio de uma fonte de energia espiritual. Quem seria capaz de imaginar isso hoje? 217


Texto original

Outros cientistas laureados com o Nobel consagraram parte de sua vida buscando respostas para os mistérios da alma e a possibilidade de comunicação com os mortos. Pesquisas que hoje seriam consideradas assombrosas, como materialização de espíritos, movimentação de objetos à distância, levitação etc., foram realizadas na passagem entre os séculos XIX e XX. Houve forte oposição materialista. Experimentos frustrados e a comprovação de fraude de alguns médiuns lançaram um manto de ceticismo e silêncio sobre o tema. Essa linha de pesquisa entrou em crise. Experimentos com mediunidade aos poucos se tornaram uma mácula nos currículos oficiais dos eminentes cientistas. E a ciência moderna acabou por condenar ao esquecimento inúmeras pesquisas científicas sobre o assunto, algumas rigorosas. Enquanto o cinema, a TV e a literatura cada vez se apropriam mais das questões do espírito, a ciência dominante tem torcido o nariz e deixado essas reflexões fora de seu campo. […] Atuais referências no estudo científico de fenômenos tidos como espirituais, cientistas como Robert Cloninger, Mario Beauregard, Erlendur Haraldsson, Stuart Hameroff e Peter Fenwick aplaudem a iniciativa de Julio Peres em seu estudo. Esse neurocientista brasileiro, que tem colhido apoio em seus pares, afirma que seus achados “compõem um conjunto de dados interessantes para a compreensão da mente e merecem futuras investigações, tanto em termos de replicação como de hipóteses explicativas”. Outro coautor do estudo, o psiquiatra Frederico Camelo Leão, coordenador do Proser, defende mais estudos acerca das experiências tidas como espirituais. “O impacto das pesquisas despertará a comunidade científica para como esse desafio tem sido negligenciado”, diz. O pesquisador Alexander Moreira-Almeida, coautor do estudo e diretor do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Universidade Federal de Juiz de Fora, é o principal responsável por colocar o Brasil em destaque nessa área no cenário internacional. Moreira-Almeida recebeu o Prêmio Top Ten Cited, como o primeiro autor do artigo mais citado na Revista Brasileira de Psiquiatria, com Francisco Lotufo Neto e Harold G Koenig. É editor do livro Exploring frontiers of the mind-brain relantionship (Explorando as fronteiras da relação mente-cérebro, em tradução livre), pela reputada editora científica Springer. Ele afirma que a alma, ou como prefere dizer, a personalidade ou a mente, está intimamente ligada ao cérebro, mas pode ser algo além dele. Para esse psiquiatra fluminense, pesquisas sobre experiências espirituais, como a mediunidade, são importantes para entendermos a mente e testarmos a hipótese materialista de que a personalidade seja um simples produto do cérebro. Moreira-Almeida lembra que Galileu e Darwin só puderam revolucionar a ciência porque passaram a analisar fenômenos que antes não eram considerados. “O materialismo é uma hipótese, não é ainda um fato cientificamente comprovado, como muitos acreditam”, diz Moreira-Almeida. Apesar de todos os avanços da ciência materialista, a humanidade continua aceitando as dimensões espirituais. Dados do World Values Survey revelam que a maioria da população mundial acredita na vida após a morte. Em todo o planeta, um número expressivo de pessoas declara ter se sentido em contato com mortos: são 24% dos franceses, 34% dos italianos, 26% dos britânicos, 30% dos americanos e 28% dos alemães. Não há dúvida de que o materialismo científico foi instrumento de enorme progresso para a humanidade. A dúvida é se ele, sozinho, seria capaz de explicar toda a experiência humana. Para a maioria da população, a visão materialista parece deixar um vazio atrás de si. Na busca de respostas para nossas principais questões, muitos assinariam embaixo da frase de Albert Einstein: o homem que não tem os olhos abertos para o mistério passará pela vida sem ver nada. PARANÁ, Denise. Os avanços da ciência da alma. Revista Época, 19 nov. 2012. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/vida/noticia/2012/11/os-avancos-da-ciencia-da-alma.html>. Acesso em: jan. 2013.

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Não escreva n

o livro!

Lanche filosófico Forme um grupo com seus colegas e leiam o poema de Fernando Pessoa transcrito a seguir. ­Depois, discutam e respondam: • De que corrente filosófica os versos do poema mais se aproximam? • Que conclusão se destaca no poema? • Você concorda com essa conclusão? Por quê?

A morte chega cedo A morte chega cedo, Pois breve é toda vida O instante é o arremedo De uma coisa perdida. O amor foi começado, O ideal não acabou, E quem tenha alcançado Não sabe o que alcançou. E tudo isto a morte Risca por não estar certo No caderno da sorte Que Deus deixou aberto. PESSOA, Fernando. Cancioneiro – obra poética V. Porto Alegre: L&PM, 2007.

Para ler mais Se quiser aprofundar seus conhecimentos sobre o tema estudado neste capítulo, leia: INCONTRI, Dora; SANTOS, Franklin Santana (Org.). A arte de morrer: visões plurais. Bragança Paulista: Comenius, 2007. Trata-se de uma coletânea de artigos de médicos, psicólogos, filósofos, religiosos e antropólogos, entre outros profissionais, que descrevem sua perspectiva com relação à morte.

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Capítulo

9 Pinacoteca de Munique, Alemanha

O poder: um mal necessário? Para começar Segundo a mitologia grega, Prometeu foi punido por Zeus por dar aos homens o domínio do fogo. O mito trata, na verdade, da vontade humana de superar suas limitações e alcançar poderes divinos.

Mito de Prometeu “[...] existiam somente os deuses e não havia ainda as raças mortais. Quando chegou, então, o momento destinado ao seu nascimento, os deuses modelaram-nas, no interior da terra [...]. Quando estavam prontas para serem conduzidas à luz do dia, os deuses encarregaram Prometeu e Epimeteu de as organizar e de atribuir a cada uma capacidades que as distinguissem. Epimeteu pediu, então, a Prometeu que o deixasse fazer essa distribuição. [...] E assim, depois de ter o convencido, começou: atribuiu força aos que não tornara rápidos e dotou de rapidez os mais fracos; armou uns e para aqueles que dera a natureza sem armas inventou qualquer outro meio que assegurasse a

sua sobrevivência; àqueles que contemplou com a pequenez, deu-lhes a possibilidade de fugirem voando ou por uma habitação subterrânea, e aos que fez grande em tamanho salvou-os com essa mesma atribuição.[...] Deste modo, Epimeteu – que não era lá muito esperto – esqueceu-se que gastara todas as qualidades com os animais irracionais; fora desta organização, restava-lhe ainda a raça dos homens e sentia-se embaraçado quanto ao que fazer. Estava ele nesta aflição, quando chega Prometeu para inspecionar a distribuição e vê que, enquanto as outras espécies estão convenientemente providas de tudo quanto necessitam,

o homem está nu, descalço, sem abrigo e sem defesa. [...] Sem encontrar qualquer outra solução para assegurar a sobrevivência do homem, Prometeu roubou a sabedoria artística de Hefesto e Atena, juntamente com o fogo – porque sem o fogo era-lhe impossível possuí-la ou torná-la útil – e assim, ofereceu-a ao homem. [...] entrara, sem ser visto, na sala partilhada por Hefesto e Atena, na qual ambos dedicavam às suas artes, e roubara a arte do fogo a Hefesto e as outras artes a Atena, para as dar ao homem, que delas retirou os meios necessários à vida. Mas, no fim, por culpa de Epimeteu – é o que dizem –, a justiça perseguiu Prometeu por causa desse roubo.”

PLATÃO. Protágoras. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999. p. 92-93.

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Deuses e seres humanos em busca do poder O que significa ter poder? Poder, força e riqueza são as mesmas coisas? O exercício do poder político pode ser marcado pela descrença, quando muitas vezes se pode associar tal poder com abuso e corrupção. Mas por meio do poder, como o Judiciário, pode abrir caminhos para o estabelecimento de relações humanas mais justas. Afinal, o poder é necessário ou dispensável? Essas são algumas questões que serão abordadas ao longo deste capítulo. Para começar, vamos nos voltar para o terreno da mitologia grega. Por meio de uma breve investigação mitológica, iremos notar que o poder pode ser inicialmente entendido como “capacidade humana para lidar com a natureza”. A mitologia grega, como tantas outras, partia de uma disputa de poderes entre os deuses: Zeus destronou seu pai, Cronos, que havia destronado Urano. Depois, envolveu-se em outra disputa, desta vez com Prometeu, por causa do poder que este concedeu aos seres humanos ao roubar o fogo do monte Olimpo. Zeus o condenou a ficar eternamente preso a um rochedo, onde uma águia vinha diariamente para lhe comer o fígado, pois este, após ser comido, se regenerava para ser devorado novamente. Esse foi o castigo por ousar dar ao ser humano um poder que só pertencia aos deuses. O mito de Prometeu foi narrado pelo poeta e camponês Hesíodo e por Ésquilo, escritor de peças do teatro, e expressa o poder da inteligência humana, capaz de manejar o fogo e dominar a natureza. O fogo é símbolo de poder e com ele os seres humanos puderam se proteger, criar e controlar. Em certa medida, o poder representado pelo fogo igualava os humanos aos deuses, pois segundo a mitologia grega, o fogo era monopólio dos deuses. Nesse sentido, o poder pode ser entendido como a capacidade de o homem atuar sobre as circunstâncias e manipular a natureza. Mas o poder é também a prerrogativa de grupos ou indivíduos de influenciar, condicionar, determinar o comportamento de outros grupos ou indivíduos. O ser humano é incapaz de viver de forma isolada: associa-se por natureza. Desde as épocas mais remotas, vêmo-lo em interação com outros. Mesmo os nômades mais primitivos andavam em bandos. E essas associações sempre apresentaram lideranças. Como são constituídas essas lideranças, que com o tempo se institucionalizam, e se esses poderes são justos ou mesmo necessários, são questões para refletir. Rousseau, por exemplo, no Discurso sobre a origem da desigualdade, indica que as desigualdades entre os seres humanos – entre aqueles que mandam e aqueles que obedecem, entre aqueles que têm mais e aqueles que têm menos, entre senhores e escravos – nasceram quando um ser humano foi suficientemente ousado para cercar um pedaço de terra e dizer que era sua propriedade, encontrando outros homens suficientemente tolos para aceitar esse fato. Assim, para Rousseau, o poder nasce da instituição da propriedade, justamente porque entre os seres primitivos, os 221


“bons selvagens”, havia uma igualdade natural e ausência de poder político instituído.

Dida Sampaio/STF Sessão/Agência Estado

Mas há filósofos que pensam de forma diferente. O fato é que a questão do poder tem sido objeto de reflexão de grandes pensadores como um dos aspectos principais da chamada filosofia política. Será o poder algo natural ou dado pelos deuses – ou por Deus? Será algo que um ser humano toma sobre o outro ou existe uma concordância entre todos os participantes de uma sociedade organizada, em torno de um poder estabelecido? Há poderes justos e poderes injustos? Há poderes aceitáveis e outros inaceitáveis? Ou todo e qualquer poder de um ser humano sobre outro ser humano deve ser questionado e combatido? Se os próprios deuses são vistos como conquistadores do poder, ou se mesmo o Deus judaico-cristão possui o Poder Supremo do Universo, não é natural que o ser humano também deseje o poder? Ou são os homens que emprestam aos deuses essa ânsia de poder?

A filosofia política grega Entre os filósofos que se dedicaram à questão do poder estão Platão e Aristóteles. É preciso considerar inicialmente que suas reflexões a respeito do poder estão profundamente marcadas pela experiência grega da pólis. Segundo Aristóteles, o poder político transforma a sociedade humana em algo distinto de uma colmeia de abelhas ou de um rebanho de gado. O poder político inaugura o reino do humano, com leis e símbolos que transcendem o mundo animal. O filósofo diz que as sociedades sempre tiveram poderes políticos ou governos. Nas sociedades primitivas, por exemplo, ainda que não houvesse a presença do Estado, nem hierarquias permanentes ou a divisão clássica entre governantes e governados, encontrava-se a presença de chefes, detentores de poderes políticos. Em toda sociedade, de qualquer complexidade, existem governos com normas e funções militares, comunitárias e civis. Nas sociedades primitivas, o chefe era aquele que se destacava em alguma atividade específica, como a guerra ou a caça. Suas estruturas e suas instituições estiveram sempre associadas a heróis fundadores, deuses poderosos ou animais míticos. Por isso, os participantes desse tipo de sociedade estiveram sempre subjugados pelo poder dos deuses e de seres míticos. Com o surgimento das primeiras formas de Estado, o poder passou a ser exercido por chefes de Estado, reis e imperadores. O poder dos deuses nas antigas sociedades estatais, como a grega, por exemplo, não desapareceu. Os deuses concediam o poder para que o homem pudesse exercê-lo, tornando-se representante do poder divino. Com o tempo, o conhecimento e o domínio sobre a natureza, o poder deixou de vir diretamente dos deuses e a natureza passou a ser sua fonte; de sagrado passou a ser natural. As decisões começaram a ser tomadas por cidadãos e surgiu a ideia de que o poder emana dos seres humanos e de sua organização. 222

Joaquim Barbosa, o primeiro negro a ocupar o cargo de presidente do Supremo Tribunal Federal no Brasil. Com o tempo, o poder passou de sagrado a natural, começou a ser exercido por chefes de estado, reis e imperadores. E surgiu a noção de Justiça, que garantia a vida em comunidade.


Greci, Gli Antichi - La vetrina della civilitá

O primeiro povo a ter essa concepção vivia na Grécia. Por suas condições geográficas, os gregos estavam divididos em pequenas cidades-estados, as chamadas pólis – de onde vem, aliás, a palavra “política”. A fonte da autoridade para um grego era a pólis, ou seja, a própria comunidade. Assim, a política na Grécia saiu das mãos dos deuses e passou às mãos dos seres humanos. Na pólis, a política se secularizou. Em muitas dessas cidades, surgiu a ideia de que a pólis era composta por cidadãos e que todos eram iguais perante a lei. As sociedades gregas possuíam leis escritas, dispositivos, normas e claras noções de justiça, que garantiam a vida em comunidade. Na pólis grega, os cidadãos tinham uma série de direitos: direito à propriedade, direito de casar, direito a participar de cultos, direitos políticos e jurídicos. A discussão intensa entre os gregos, em relação às regras do jogo político, deu início àquilo a que chamamos de teoria política.

Escravos na Grécia, século V a.C. Ilustração de Giovanni Caselli.

No entanto, a sociedade grega não reconhecia o direito de todos à cidadania. Das assembleias e das decisões políticas só participavam homens livres. Os escravos não tinham direito civil e as mulheres tinham direitos bem reduzidos em algumas cidades-Estado. O poder não vinha mais dos deuses, mas da natureza e, segundo os gregos, por natureza, o escravo pertencia a uma ordem inferior, assim como não havia igualdade natural entre homens e mulheres. Aliás, a ideia de igualdade era desconhecida no mundo antigo. Embora muito deficitária perante os conceitos atuais de igualdade e direitos à cidadania, a Grécia fez a primeira experiência democrática da história da humanidade. Porém, o governo democrático grego, mais especificamente o ateniense, foi responsável pela morte de Sócrates; por isso, Platão foi seu crítico feroz. Ele identificou no jogo político pela conquista do poder, que se dá na democracia, a presença de paixões e vícios morais que desqualificariam o indivíduo para o exercício justo do poder. Em A República, Platão afirma que aquele que não quer governar deveria governar, no caso os filósofos, 223


pois quem quer o poder já se mostra ambicioso e usa de todos os meios para obtê-lo. O desejo de poder em si demonstraria o interesse pessoal e a ojeriza ao poder demonstraria o desinteresse; o filósofo desinteressado pelo poder poderia encará-lo como um encargo, um dever.

Será que o homem é naturalmente dado ao convívio social com os outros homens? Ou será que ele é um grande egoísta que, em sua essência, só quer se aproveitar do outro? Muitas são as imagens que os filósofos elaboraram acerca do homem. No retrato descrito por Aristóteles, o ser humano aparece como um “animal político”. Vamos ver a seguir como é esse ponto de vista. Aristóteles marcou um dos principais momentos do pensamento político no mundo grego. Seu livro A política exerceu influência em sua época, em discussões políticas posteriores e até hoje, quando começamos a estudar o assunto, temos de examinar suas considerações. Aristóteles apoiou sua obra em pesquisas documentais sobre as constituições, as formas políticas e os modelos econômicos das cidades gregas. Em sua obra, o filósofo parte do princípio segundo o qual nenhum ser humano pode subsistir sozinho, pois não basta a si mesmo. Faz parte da natureza do homem associar-se a outros humanos, estabelecendo relações de poder. Por isso, ele conclui que o homem é um ser social e político por natureza. Essa necessidade que o ser humano tem de se relacionar com os outros é o fundamento da sociedade. O desejo mais natural nos humanos é perpetuar a espécie e somente na relação com os demais a espécie pode se preservar. A união entre o homem e a mulher é fundamental para que isso ocorra e, portanto, a relação entre os sexos é a base da sociedade. Temos aqui a ideia de que a família é o núcleo fundador e principal da vida em sociedade.

Uma família, do pintor e escultor colombiano Fernando Botero, de 1989.

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Museu Nacional do México

O ser humano como animal político


As teorias aristotélicas se contrapõem às dos sofistas, que afirmavam que a cidade e a sociedade são sustentadas por convenções. Aristóteles, pelo contrário, procura demonstrar que a sociedade é algo natural e não mera convenção e artificialismo. Como viver em comunidade é uma necessidade natural dos seres humanos, diz ele, é preciso proteger a sociedade e resguardá-la. A família é uma associação natural estabelecida para suprir as necessidades diárias dos homens, para assegurar suas vidas e protegê-las. A junção de várias famílias em uma unidade social formaram os primeiros núcleos sociais: as aldeias. Para Aristóteles, a união de várias aldeias em uma única comunidade autossuficiente formaram a cidade, ou a pólis. Ele se propõe a mostrar que essa organização é o tipo ideal de vida em comunidade por configurar-se como autossuficiente. Aristóteles enfatiza a necessidade de governar essas formas sociais. O Estado nasce para assegurar a existência comunitária e sua principal função é a de zelar pelo bem viver dos cidadãos. Portanto, trata-se de uma instituição natural, surgida a partir da necessidade de os seres humanos viverem em sociedade, tornando-se imprescindível. Como a meta do Estado é proporcionar a boa vida aos seus cidadãos, sua importância é maior do que a da família e do que a de um indivíduo. Aristóteles argumenta dizendo que o todo da comunidade é mais importante do que as pequenas partes. O exemplo que utiliza é o do corpo humano. Se separarmos do corpo os pés ou as mãos, eles não serão mais pés ou mãos, e o corpo continuaria existindo. O mesmo se dá com o indivíduo. O indivíduo isolado da sociedade não é autossuficiente, para existir precisa estar sempre ligado ao conjunto. O Estado tem, portanto, três funções essenciais: legislar; cuidar das relações sociais de seus cidadãos; e proporcionar educação à comunidade. O Estado é um conjunto de cidadãos que podem exercer funções judiciais e cargos políticos. Segundo ele, homens livres e iguais podem exercer o poder. Entretanto, no Estado aristotélico, seguindo o modelo vigente da sociedade grega de então, nem todos os indivíduos são categorizados como cidadãos como mencionado anteriormente, as mulheres e os escravos formavam uma parcela grande da sociedade que estava excluída de direitos de cidadania. Nesse Estado, os trabalhos inferiores da base econômica estavam destinados aos escravos. Algumas pessoas, na opinião de Aristóteles, nascem para servir. O escravo é propriedade, pois pertence a outros homens por natureza. Em certa medida, a base econômica do Estado aristotélico está fincada na escravidão. Além dos escravos, os cidadãos possuem outros tipos de propriedade. A propriedade privada e produtora é outra forma indispensável à vida humana, pois se o objetivo é o bem viver, nenhum cidadão pode viver sem ter ferramentas para isso: o escravo e a propriedade privada seriam esses meios. Aristóteles se preocupou igualmente em discutir o tamanho do Estado que, para cumprir sua função, não poderia 225


ser muito grande, lembrando que era uma cidade-estado, portanto não tinha grandes proporções. Assim, o filósofo acentua a importância de uma cidade-estado que tenha uma justa medida em termos de quantidade de cidadãos para garantir bem-estar a todos. Aristóteles também apresenta um importante estudo sobre as formas de poder político, destacando três delas: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Seja qual for a forma de governo adotada, os governantes devem sempre governar com base no interesse geral: a vontade geral do povo deve ser a finalidade do governante, ou seja, a ética deve estar indissoluvelmente ligada à política. O filósofo diz que a monarquia ou a aristocracia poderiam ser excelentes formas de governo quando uma família ou um indivíduo são pessoas notáveis e possuem uma virtude superior à dos outros membros. Mas, como essas circunstâncias são raras, o melhor governo é a democracia. Nesse caso, é o conjunto dos homens que governa, já que eles pensam e decidem melhor coletivamente. Esse modelo é mais seguro e mais estável. É sempre perigoso que o poder esteja nas mãos de poucos homens, pois esses podem usá-lo em causa própria. Isso porque quando o ser humano pensa apenas em si ou em um grupo social específico, quando seu interesse pessoal prevalece sobre o coletivo, os governos se degeneram e acabam por cair em tiranias. Aristóteles diz que precisamos evitar que os governos se degenerem, para que o bem comum seja preservado e seja o objetivo máximo de todos os governos.

Academia de Ciências, Lisboa, Portugal

Quando o poder se torna teocrático

Alfonso I, rei de Aragon, pintura anônima, de 1344. A monarquia foi a forma de poder característica da sociedade medieval em toda a Europa.

O homem se serve de diferentes meios para garantir e justificar o exercício do poder. Um professor, por exemplo, diante de uma classe escolar, pode tentar justificar seu poder sobre os alunos, alegando suas competências e habilidades para ocupar sua posição. Na história da humanidade, em diferentes períodos históricos, os homens acreditaram que as competências e habilidades para o exercício do poder tinham uma origem divina. 226


Biblioteca Nacional, Paris, França

Na Epístola aos romanos, do Novo Testamento, o apóstolo Paulo escreve: “todo homem se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus” (13:1-2). Nesse trecho baseia-se a filosofia política do cristianismo, que predominou durante toda a Idade Média, sendo usada como justificativa para o poder dos reis e do papado. A ideia de toda autoridade como proveniente de Deus é adotada por Santo Agostinho em sua obra A cidade de Deus, na qual ele considera que estamos submetidos ao poder de outros homens, como punição pelo original (vale lembrar que esse dogma é o forte fundamen to de toda teologia da Igreja católica e depois, também, da Igreja protestante). Já Tomás de Aquino, em sua síntese com a filosofia aristotélica, deriva a vida em sociedade e a instituição dos poderes como fatos naturais e não como consequência do pecado. Para ele, o ser humano tem a liberdade e o dever de organizar da melhor forma a sociedade; entretanto, essa organização deve estar de acordo com as leis naturais – que, para ele, são leis divinas. Para o pensamento medieval, representado por Aquino, há uma unidade universal e natural derivada da legislação divina. Deus criou o mundo com leis e as leis humanas devem procurar seguir essas leis divinas, que são leis de justiça.

Ilustração do senhor de Joinville, do final do século XI, representando Deus entregando as chaves de São Pedro, símbolo do poder espiritual, ao papa, e uma espada, símbolo do poder temporal, ao imperador.

O poder dos príncipes, dos reis, das autoridades temporais (aquelas que não são religiosas) deve ser regulado por essas leis divinas, diante das quais os mais poderosos impérios devem se inclinar. Entretanto, para Tomás de Aquino e outros autores medievais, a ordem divina está representada na Terra pela Igreja, sobretudo na instituição do papado, então a autoridade dos reis está subordinada à autoridade da Igreja. Nesse sentido, durante a Idade Média, deu-se historicamente essa configuração em que as monarquias e os impérios tinham de ser referendados e podiam até ser derrubados pela autoridade do papa. 227


Mais do que isso, Tomás de Aquino considera legítimo ao povo o direito de se revoltar caso os príncipes fossem usurpadores e estivessem em estado de “excomunhão” (excluídos da Igreja católica, por ordem papal). Em certo trecho da obra Suma teológica, porém, ele acrescenta algo a mais, em direção ao que mais tarde seria chamado de desobediência civil: “se os governantes não têm título justo para governar, mas que o hajam usurpado, ou se ordenam que se executem ações que são injustas, seus súditos não estão obrigados a lhes obedecer”. Já quase no final da Idade Média, no século XIV, temos uma figura de grande destaque dentro da própria Igreja católica, que coloca em questão a legitimidade da autoridade política do papa: o filósofo e teólogo inglês franciscano Guilherme Ockham (veja sua biografia no capítulo 2). Para ele, o papa deve ter apenas uma autoridade espiritual e não exercer governo sobre os povos e sobre os governantes do mundo. Assim, Ockham prenuncia a posição do reformador Martinho Lutero, que contestou a autoridade papal, fundando o movimento das Igrejas reformadas. Lutero teoriza a separação definitiva entre Igreja e Estado, anunciando o Estado moderno. Já outro reformador, João Calvino, contemporâneo de Lutero, estabeleceu ele próprio um governo teocrático em Genebra, onde reuniu sob sua autoridade o poder político e o religioso. No mundo contemporâneo, alguns Estados muçulmanos mantêm o sistema teocrático da não separação da religião e do Estado. Nessa configuração de poder, não há liberdade religiosa nem liberdade política. Em uma teoria totalmente diferente, já que desvinculada de qualquer instituição religiosa, o filósofo alemão Hegel também revela algo de teocrático em sua concepção de Estado. Como já vimos, o Espírito Absoluto que perpassa a História se encarna no Estado, que está, portanto, divinizado, e o valor de cada indivíduo se perde no poder absoluto de um governo totalitário.

O poder como resultado de um contrato social Você já estabeleceu um acordo ou contrato com alguém? Os contratos, formais ou não, fazem parte de nossa vida cotidiana. No mundo afetivo, no mundo profissional, no campo do direito, nas relações humanas, de uma forma geral, os contratos aparecem quando estabelecemos limites do que podemos ou não fazer, do que deve ou não ser aceito ou permitido. Há filósofos que entendem que o Estado nada mais é do que o resultado de um contrato estabelecido dentro de determinadas condições. Como vimos, há reflexões sobre o poder como derivado da divindade e como derivado da natureza das coisas. Existe ainda uma terceira ideia, que aparece ainda na Grécia antiga com os sofistas e com os epicuristas, mas só se torna preponderante a partir do Renascimento: é a de que o poder nasce de um contrato ou de um pacto social, ou seja, de uma conven228


ção entre os homens, que o aceitam para viverem em sociedade. Dentro dessa concepção, entretanto, existem várias teorias diferentes, desde as mais totalitárias, que aceitam um Estado absolutista, até as mais liberais, que pregam um Estado com atuação bem reduzida. Nesse sentido, pode-se fazer uma correlação: quanto mais pessimista a visão de ser humano, mais pode-se tender para um Estado tirânico; quanto mais otimista, mais se acredita na liberdade.

O contrato em Hobbes Se você pensa que os homens são naturalmente egoístas e só estão realmente interessados na realização de seus desejos, você compartilha da visão hobbesiana sobre o poder. O pensador inglês Thomas Hobbes apresenta uma posição de que as relações sociais e as relações de poder nunca são tranquilas, pois os homens possuem interesses distintos, antagônicos e estão em constantes disputas para defender seus interesses. Observa que, em todas as épocas, e em diferentes sociedades, os homens sempre procuram influenciar, condicionar e determinar outros homens. Por isso, todas as sociedades necessitam de instituições para administrar e impedir que esses interesses e conflitos as destruam. Thomas Hobbes (1588-1679) Filósofo inglês, de grande importância no pensamento político até hoje. O contato com cientistas de sua época – como Galileu Galilei – influenciaram decisivamente a formação de suas ideias filosóficas,que refletem tanto questões a respeito da aplicação das leis da mecânica como relacionadas a questões morais, sociais e políticas. De acordo com seu pensamento, o ser humano em estado natural é antissocial por natureza e só se move por desejo ou medo, sua verdadeira natureza é fundada no egoísmo e na luta pela sobrevivência. Para os homens tomados em estado natural, portanto, não há justiça, verdade ou razão, o que existe somente no plano da linguagem e das convenções artificiais das sociedades humanas. Assim, é preciso que exista um Estado com grandes poderes para regular as disputas naturais humanas e proporcionar melhores condições de vida. Entre suas obras, estão: Elementos da lei natural e política, Leviatã e Elementos de Filosofia.

Segundo sua teoria, cada ser humano é um indivíduo completamente independente dos demais. O indivíduo no seu estado natural é um animal que luta por sua conservação, e seu instinto o leva sempre a defender-se, apropriando-se do que precisa. A natureza não impõe limites para seus desejos e para sua autoconservação. Dominado por seus impulsos e desejos, ele entra em conflito com os outros seres humanos, o que leva à predominância de um sobre o outro. O conflito, portanto, faz parte do estado natural dos seres humanos. O estado natural é o de guerra. Dessa ideia nasce a famosa frase de Hobbes: “O homem é lobo do próprio homem”. Nesse contexto, é preciso que exista um poder superior que controle os indivíduos, que os domine, que seja regulador de suas ações. Nesse ponto, Hobbes 229


é absolutamente contrário a Aristóteles, criticando a posição clássica de que o ser humano é um animal político por natureza, feito para viver em comunidade.

Coleção Roger-Viollet/AFP

Hobbes também faz uma crítica à sociedade medieval, que defendia o poder como direito divino. Ele retoma, então, os gregos e a ideia do poder humano. Para ele, esse poder deve ser secular, ou seja, fora dos domínios da religião. E, para vencer o estado de guerra permanente dos seres humanos, é imprescindível estabelecer um contrato social. Os indivíduos devem reunir seus direitos e seu poder e os transferir a uma autoridade soberana. Assim, o indivíduo fica livre de perecer, pois esse poder soberano tem a função de estabelecer a paz, a ordem e a cooperação entre as pessoas da sociedade. O contrato social é, portanto, a saída mais racionalmente viável para que os seres humanos estabeleçam o Estado e conquistem a segurança para viver. Esse Estado, porém, deve ser forte, um poder absoluto ao qual todos os súditos devem se submeter, restando pouco espaço para a liberdade individual. É o Estado descrito em Leviatã, título do livro de Hobbes, em que ele expõe sua teoria política.

Gravura do século XVII, feita por Abraham Bosse, para a obra Leviatã, de Thomas Hobbes.

O contrato em Locke Um pensador partidário do contrato social, mas que chega a conclusões muito distintas de Hobbes é John Locke (veja sua biografia no capítulo 2) no século XV2. Otimista em relação à natureza humana, ele acredita muito mais na liberdade individual, afirmando que o estado natural dos homens é a busca da felicidade e do bem-estar. Nesse estado, as ações humanas são motivadas pela necessidade de um bem ausente. O ser humano só chega à satisfação ao alcançar o bem que deseja. No entanto, para Locke, os homens não têm direitos e liberdade ilimitada no estado natural, como pensava Hobbes. Sendo todos iguais por natureza, todos têm naturalmente direitos iguais e, portanto, limites naturais determinados pela relação com a liberdade do próximo. Nenhum indivíduo tem o direito de prejudicar o outro em sua vida, em sua liberdade e em suas propriedades. 230


Simon Plesten jak/Folhapress

Para Locke, o poder político não tem origem divina e a monarquia europeia não estava assentada em um direito dado por Deus. A sociedade e o Estado nascem do direito natural de todos os seres humanos e da sua capacidade racional, como pensava Aristóteles. O ser humano possui direitos conferidos pela natureza, como direito à vida, à liberdade e à propriedade. A razão é o fundamento do Estado, e não o instinto de preservação propagado por Hobbes. O acordo social – ou o contrato social – não ocorre porque os homens são lobos uns dos outros, mas porque faz parte de sua natureza unir-se para viver em comunidade. Por esse contrato, os ­indivíduos devem obedecer aos poderes que governam a sociedade e, por isso, o Estado surge para proteger os cidadãos. O poder dos que governam não deve ser ilimitado e absoluto, uma vez que os seres humanos são iguais e livres por natureza e o Estado deve respeitar seus direitos, não devendo regular autoritariamente as vidas humanas, devendo ao invés disso resguardar suas liberdades. A função do Estado é mínima na regulação da vida civil e os seres humanos devem se relacionar livremente por seus próprios critérios. Locke propõe que o poder do Estado seja dividido em três: o legislativo, o executivo e o federativo. Pelo primeiro poder, cabe ao Estado fazer leis; pelo segundo poder, deve fazer com que essas leis sejam cumpridas; e, pelo terceiro, ele se relaciona com outros Estados, em tempos de guerra ou de paz. Se o Estado não servir a seus cidadãos, o povo tem o poder de modificar as leis e mudar os governantes. Portanto, o povo pode controlar e fiscalizar o poder estatal e se rebelar contra ele.

Em 2012, milhares de professores manifestaram-se em vários estados, como em São Paulo, contra os baixos salários, o desemprego e as péssimas condições de vida da população brasileira.

Do ponto de vista religioso, o Estado pensado por Locke não deve cuidar de questões dessa natureza nem interferir nelas. O Estado não tem o direito de impor nenhum tipo de fé, mas deve ter respeito às diversas religiões ou à ausência delas e garantir que a convivência entre seus fiéis seja pacífica. 231


O pensamento de Locke, retomado posteriormente por diversos autores, é característico do que passou a ser conhecido como liberalismo, sistema ainda vigente na maior parte dos países ocidentais. John Stuart Mill (ver biografia no capítulo 5), por exemplo, reforça essas ideias no século XIX para discutir mais profundamente a liberdade social, incluindo nela a participação das mulheres e o respeito às minorias – temas bastante atuais. A ideia básica do liberalismo – nascida no momento de ascensão da burguesia, quando o direito de propriedade deveria ser garantido à classe burguesa – é a de que, sendo o ser humano naturalmente bom, o Estado deve interferir pouco, proporcionando, sobretudo, grande liberdade econômica, já que a sociedade naturalmente se amoldaria com justiça e prosperidade para todos. Outros autores também elaboraram teorias sobre como deveria ser o funcionamento do Estado. Em geral, quanto maior é a crença no liberalismo, menor é o papel que se atribui ao Estado, sendo que alguns teóricos chegaram à ideia de um Estado mínimo, tema que será tratado mais adiante. Por outro lado, há também algumas propostas de transformá-lo em uma instância protetora da igualdade e dos direitos de todos.

Liberalismo A teoria do liberalismo surge com o fortalecimento do capitalismo sobre o mercantilismo, tendo como ponto principal a emancipação da economia em relação a todas as doutrinas alheias a ela. A ideia central era de que as atividades comerciais e industriais deveriam ter liberdade total para levarem ao acúmulo do capital. O principal teórico do liberalismo econômico foi o filósofo escocês Adam Smith, que considerava que a prosperidade econômica viria por meio do trabalho livre, sem a interferência do Estado, regulado pelo próprio mercado. Os liberais defendem, sobretudo, a lei da oferta e da procura e a livre concorrência.

O contrato em Montesquieu Essa é a linha do pensador francês Charles de Montesquieu , já no século XV2I. Fecundo escritor e homem erudito, escreveu sobre variados temas: literários, científicos e filosóficos. Mas o seu maior interesse estava nos assuntos políticos. Sua obra O espírito das leis parte da ideia de que, para se obter o conhecimento das leis políticas e da vida social, os seres humanos não podem estudar apenas em livros, trancados em seus gabinetes e criando teorias abstratas desconectadas com a realidade. Era preciso que os estudiosos buscassem o conhecimento por meio da observação direta, pois a origem do conhecimento social e político provinha da experiência. Segundo Montesquieu, os seres humanos são governados por muitas coisas, entre elas o clima, as religiões, as leis, o Estado e a História. Todos esses fatores contribuem para a regulação da vida humana em sociedade e interferem nas leis particulares de cada país e de cada povo. Assim, dificilmente as leis de um país podem ser utilizadas por outro. 232

Charles de Montesquieu (1689-1755) Filósofo, político e escritor francês, um dos grandes pensadores do Iluminismo. Desenvolveu grandes trabalhos sobre política, principalmente, criticando o governo absolutista e propondo um novo modelo de governo, defendendo aspectos democráticos de governo e o respeito às leis. Além de colaborar com a Enciclopédia (organizada por Diderot e D’Alembert), suas principais obras são: Cartas Persas, O Espírito das Leis e Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência.


Em termos gerais, Montesquieu distingue três tipos de governo: o republicano, o monárquico e o despótico. O governo republicano é aquele em que o povo tem o poder soberano. O monárquico é aquele em que só um governa, mas com bases em leis fixas. O governo despótico também é aquele em que um só governa, mas sem estar submetido às leis, permitindo que as decisões sejam tomadas de acordo com a vontade e o interesse do governante. Cada uma das formas de governo tem pressupostos para funcionar. Nos governos monárquicos, o princípio de regulação é a lei e a força concentrada nas mãos do governante; nele, os cidadãos precisam ter honra. O governo despótico segue o mesmo princípio: o governante centraliza a força e a lei, mas com base na violência e no medo. Já o governo republicano pressupõe que os cidadãos tenham virtudes, pois se o poder deve ser coletivo, todos devem exercê-lo virtuosamente. Em um governo republicano e democrata é preciso que se entenda que o princípio da igualdade entre seus cidadãos não é absoluto. Quando os comandados, nesse tipo de governo, se sentem em pé de igualdade com quem escolheram para governar, inicia-se um processo de deterioração, já que o princípio da democracia e do ­republicanismo deixa de ser respeitado. A democracia está assentada nas bases do saber governar e do saber ser governado. Deve-se saber obedecer e comandar, mesmo que todos sejam igualmente cidadãos. Dentro do sistema republicano e democrático, a liberdade não pode ser extrema, senão o sistema está arruinado. Montesquieu defende um Estado de direitos. Diante do Estado, o cidadão deve ter direitos e deveres. Desse modo, a liberdade política dos indivíduos não consiste em fazer o que se quer, porque existem leis e são elas que regulam as ações. A liberdade, no Estado de Montesquieu, é o direito de fazer tudo o que a lei permite. A originalidade do pensador francês foi defender que em um Estado os poderes deveriam se controlar mutuamente. Para ele, o Estado tem três tipos de poder: o legislativo, o executivo e o judiciário. O primeiro permite ao príncipe ou ao magistrado fazer as leis, que podem ter duração limitada ou ilimitada, além de corrigi-las e revogá-las. O segundo poder executa as leis no âmbito público; é este poder que deve lidar com questões políticas envolvendo outros países. Ao terceiro poder cabe punir os delitos e julgar as causas entre os cidadãos privados. Com essas atribuições, a liberdade e a segurança do cidadão estão garantidas pelo Estado. Esses três poderes precisam estar separados, em mãos diferentes; caso contrário, o equilíbrio de forças políticas está comprometido e o Estado não cumpre seu papel. O Estado estaria completamente falido caso os três poderes fossem controlados por um príncipe, por um grupo de governantes e mesmo pelo povo, pois o controle total dos poderes levaria ao despotismo brutal. A proposta de Montesquieu é ainda hoje adotada pelos países democráticos, em uma tentativa de que cada poder controle o outro, não permitindo que se estabeleça a tirania de nenhum deles. 233


Depois de Montesquieu, surge outra posição original em relação à análise do Estado, da sociedade e do ser humano: a formulada por Jean-Jacques Rousseau. Para ele, a natureza original do ser humano é boa; entretanto, ela se apresenta degenerada justamente por uma organização social que estimula os aspectos negativos dos indivíduos, tais como o egoísmo, o orgulho, a sensualidade, entre outros. As instituições sociais estão carregadas desses vícios e o ser humano, por sua vez, se vê acorrentado por elas. O que Rousseau propõe é uma volta à natureza para o estabelecimento de uma nova ordem social. Entretanto, essa volta não é, como alguns críticos erroneamente interpretaram, um regresso à vida selvagem, mas um retorno àquilo que constitui a natureza do ser humano: sua consciência moral, sua retidão racional, a libertação dos vícios e do artificialismo da vida civilizada. Existe sim, no pensamento de Rousseau, um aspecto de volta à simplicidade de uma vida em contato maior com a natureza. No entanto, o principal em sua teoria é a ideia de um retorno do ser humano a si mesmo. A natureza humana tem dois instintos positivos básicos, sobre os quais pode ser fundada uma sociedade justa, que se encontram, porém, desvirtuados na sociedade tal como ela é: o “amor de si” (uma espécie de instinto de conservação e desejo inato de felicidade), que na sociedade “corrompida” degenera em amor-próprio (vaidade, orgulho); e a piedade (que é uma inclinação natural pelo outro ser humano). Voltar a essa natureza é possível, para Rousseau, por meio de uma educação que permita o desabrochar das qualidades originárias do ser e pelo estabelecimento de um novo pacto social. Na obra O contrato social, Rousseau propõe uma nova sociedade, na qual cada um abdicará de sua liberdade natural para usufruir de uma liberdade social. A lei e as regras sociais são dadas pela vontade geral – que não é a soma das vontades particulares, mas consequência do fato de todos estarem em contato com sua natureza divina, desejando uma sociedade comum de fraternidade e de justiça. Essa vontade geral é um conceito polêmico em Rousseau porque alguns intérpretes consideraram-no como o germe de um Estado totalitário, já que indicaria que o cidadão deveria se submeter inteiramente a essa vontade. Entretanto, o filósofo explica que essa obediência é a si mesmo. Seu pressuposto é de que todos os seres humanos têm uma consciência moral, que é a presença divina na criatura. Ao acessar essa consciência por meio da educação, todos saberão o que é o bem e concordarão com uma só lei. É assim que constitui a vontade geral.

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crédito obra

O contrato em Rousseau

Nesta obra, Rousseau propõe, entre outros pontos, uma nova sociedade, em que cada um abdicará de sua liberdade natural para usufruir de uma liberdade social, dadas pela decisão das pessoas em geral.


Destaque

Bettmann/Corbis

O príncipe, de Maquiavel

Retrato de Nicolau Maquiavel (1469-1527), feito por Santi di Tito, no século XVI. Maquiavel, poeta e pensador renascentista italiano, foi considerado fundador da ciência política, com sua polêmica obra O príncipe, na qual desvincula a política da ética.

Um dos livros mais polêmicos da história da filosofia política é O príncipe, do pensador italiano Nicolau Maquiavel. Um século e meio antes de Leviatã, de Hobbes, Maquiavel defende um governo absolutista. O livro pretende dar as diretrizes para a tomada e a manutenção do poder de um indivíduo dotado de habilidades políticas extraordinárias, sem nenhuma dimensão ética. Ao contrário: a astúcia, a crueldade e a capacidade de manipulação das circunstâncias são apontadas por Maquiavel como virtudes próprias de um príncipe poderoso. Com uma visão muito negativa da natureza do ser humano, Maquiavel defende que o príncipe governador de uma sociedade deve ser mais temido do que amado e manter o poder à força das armas e do cálculo frio. As interpretações a respeito desse livro variam. Alguns consideram que Maquiavel queria fazer uma crítica à autoridade despótica dos príncipes de sua época. Outros apontam que a instabilidade política em que a Itália estava mergulhada, em constantes guerras entre as cidades, fazia com que Maquiavel desejasse acima de tudo um governo centralizador do poder que, mesmo à custa da violência e da astúcia, pacificasse o país. Há ainda analistas, porém, que consideram O príncipe um manual de como fazer política sem escrúpulos, cumprindo o ditado que se tornou famoso: os fins justificam os meios. Essa interpretação apoia-se no fato de Maquiavel eleger como modelo de príncipe uma das figuras mais cruéis da História: César Bórgia, que certa vez convocou inimigos e também amigos para um jantar e envenenou-os, matando a todos. Tal atitude seria condizente com as propostas de Maquiavel.

Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se avizinha, porém, revoltam-se. E o príncipe que confiou inteiramente em suas palavras, encontrando-se destituído de outros meios de defesa, está perdido: as amizades que se adquirem por dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma, são compradas mas com elas não se pode contar e, no momento oportuno, não se torna possível utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por um vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em cada oportunidade que a eles convenha; mas o temor é mantido pelo receio de castigo que jamais se abandona. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Disponível em: <http://www.antropologia.xpg.com.br/maquiav19.html>. Acesso em: 23 nov. 2012.

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Seja qual for a interpretação sobre esse livro, é fato que ele inspirou muitos poderosos e continua como livro de cabeceira dos que desejam conquistar e manter o poder.

Viva a anarquia!

Caricatura em litografia de Pierre-Joseph Proudhon, de 1848. Nela se vê o teórico francês destruindo o que simboliza a propriedade.

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Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) Filho de camponeses, Proudhon foi autodidata e publicou diversos livros, entre eles O que é a propriedade, e se tornou o pensador considerado o pai do anarquismo, da economia política socialista (chegou a prever os perigos do socialismo autoritário) e do mutualismo.

Coleção Roger-Viollet/AFP

Quando pais, por exemplo, reclamam da bagunça do quarto do filho, muitas vezes mencionam que aquilo é uma “anarquia generalizada”. Na atualidade, a palavra “anarquia” acabou assumindo vários sentidos, como esse, que a associa à ideia de baderna, de ausência de ordem. No entanto, no contexto da filosofia política, anarquia pode assumir outro sentido; um sentido que vem associado a uma crítica radical do Estado na sociedade capitalista. O anarquismo surgiu no século XIX e ainda conta com muitos partidários no mundo contemporâneo. Essa corrente faz uma crítica radical à instituição do Estado, preconizando uma sociedade sem poderes estabelecidos, na qual as pessoas se organizem livremente com base em vínculos de solidariedade e cooperação, sem necessidade de um poder coercitivo. O anarquismo tem antecedentes antigos, com William Godwin, na Inglaterra do século XV2I. Segundo o anarquista canadense George Woodcock, um dos germes do movimento pode ter se originado entre os cristãos que, ao longo da História, se rebelaram contra o poder da Igreja e buscaram um Reino de Deus, livre e igualitário, sobre a Terra. Um possível antecessor seria o movimento valdense, um grupo na Idade Média que rejeitava os poderes estabelecidos. A palavra “anarquismo”, porém,nasce com o francês Pierre-Joseph Proudhon . Os grandes pensadores anarquistas despontaram no século XIX, sobretudo na França, Rússia e Itália. Entre eles, destacam-se Bakunin, Kropotkin, Tolstoi e Errico Malatesta. A grande percepção dos anarquistas, comum a todos eles, é a de que o Estado funciona na base da coerção, ou seja, usa métodos de violência e de repressão para manter a ordem estabelecida, já que não existe Estado sem polícia e exército. Além disso, eles defendem que os governos estão a serviço da propriedade privada: o Estado está aí para defender os ricos e os poderosos. Raramente defende os fracos, o que se explica historicamente pelo fato de o Estado moderno ter nascido justamente com a ascensão da burguesia.


Para os anarquistas, não há motivo para a existência de representantes que decidam por nós, que comandem nossa vida. Podemos nos associar livremente e tomar decisões coletivas, fazendo desaparecer a ideia de nação e pátria. (Um dos slogans do movimento anarquista no Brasil, no começo do século XX, era “nem pátria, nem patrão”.) Há quem diga que o anarquismo é uma forma mais radical de liberalismo, pois leva ao extremo o princípio da liberdade individual. É certo que o pensamento anarquista é radicalmente a favor da liberdade; aliás, é também por isso chamado de libertário. Entretanto, trata-se de uma proposta muito diferente da liberal, porque a liberdade proposta pelo liberalismo se funda no pressuposto da propriedade privada e, na prática, na sociedade liberal, os que não têm propriedade não são livres. O fato de um trabalhador ter de vender seu dia e sua hora de trabalho ao preço que o patrão quiser, para fazer o serviço que lhe for ordenado, sem ter acesso ao produto, demonstra que a sociedade baseada na posse do capital não é uma sociedade livre. Só são livres os que têm dinheiro. O anarquismo, assim como o socialismo, é uma forma radical de crítica à sociedade capitalista; por isso, opõe-se ao liberalismo, que é a ideologia desse sistema. A diferença entre anarquistas e socialistas é que os socialistas preconizam que a mudança da sociedade pode se fazer por meio de um Estado socialista, que imponha a igualdade, como foi tentado na União Soviética e na China. Para os anarquistas, entretanto, essa seria uma solução autoritária e ineficaz. Convencidos de que podem abolir o Estado e formar grupos de autogestão (as cooperativas, uma forma de gestão hoje muito presente no mundo, são uma invenção anarquista), eles não aceitam nenhum tipo de poder acima de todos. No século XIX, muitos pregavam a revolução e a ação violenta individual como caminhos para uma sociedade anarquista. Dois anarquistas muito originais se destacaram: um na Rússia, Leon Tolstoi, e outro nos Estados Unidos, Henry David Thoreau. Ambos criaram um método de ação libertária, não violenta, que viria a ser usado no século XX pelos líderes pacifistas Mahatma Gandhi e Martin Luther King. Thoreau, que foi influenciado por Rousseau e influenciou Tolstoi, pregou e praticou uma volta à vida simples, no meio da natureza, descrita em seu livro Walden, ou a vida nos bosques. Ele também influenciou Tolstoi com a obra Desobediência civil, de sua autoria. Para Thoreau, o único lugar em que um indivíduo justo poderia viver sob um governo injusto era na cadeia. Compete ao ser humano desobedecer e resistir às leis injustas e não compactuar com elas, mesmo se com isso sofra prisão ou morte. A partir da leitura de Thoreau e do Evangelho de Jesus, Tolstoi chegou à sua tese da não violência. Considerava que os Estados do mundo cristão estavam em oposição flagrante aos ensinos de Jesus, que eram mandamentos de amor e tolerância entre os seres humanos. A partir do momento em que o aparelho do Estado precisa de armas, prisões e mortes para se estabelecer, existir e se manter, ele é imoral e anticristão, pois está apoia237


do na violência. A obrigação do ser humano moral é resistir, não cooperar com esse Estado, recusar-se a cumprir suas leis injustas, mas sem usar violência. Foi dessa maneira que Gandhi lutou pela libertação da Índia, inspirado pelas teses de Tolstoi; e que Luther King lutou contra o racismo nos Estados Unidos, seguindo as pegadas de Gandhi.

O (neo)liberalismo do século XX Apesar das críticas socialistas e anarquistas, o liberalismo saiu triunfante, sobretudo depois da queda do sistema soviético. Essas críticas elaboradas no século XIX continuam pertinentes no século XXI, já que o contingente de excluídos do sistema capitalista globalizado demonstra que ele não é eficaz para resolver os problemas sociais. No entanto, o discurso liberal da igualdade não mantém correspondência com a realidade social brasileira; ainda que o artigo quinto da Constituição de 1988 afirme que “todos são iguais perante a lei”,no plano social, isso não corresponde à realidade. Diante dessa problemática, aparecem no século XX outras duas posturas teóricas, ambas nos Estados Unidos: uma é a de John Rawls , tentando amenizar, por meio de medidas paliativas e não de mudanças estruturais no sistema, as consequências das injustiças sociais; e a outra é a ideia do “Estado mínimo”, que assume de maneira radical o liberalismo (o neoliberalismo), sem propor uma solução concreta para os excluídos do sistema.

A proposta de Rawls Na obra Uma teoria da justiça, de1971, Rawls procura colocar sob novas bases a ideia do contrato social. Na sua opinião, seria necessário criar um novo pacto social que de fato garantisse novos esquemas de cooperação entre os seres humanos, assentado sobre dois pilares: a estrutura da sociedade deve estar fundamentada em uma justiça real; e a avaliação dos princípios de justiça social deve estar relacionada à racionalidade e a critérios de evidência. Rawls critica os modelos relativistas e utilitaristas de justiça. Por um lado, as normas de justiça social não dependem do seu contexto ou do período histórico; por outro, não se pode aceitar o sacrifício de um indivíduo sequer em nome da felicidade coletiva. Cada pessoa possui direitos inalienáveis que não podem ser desrespeitados em nome da coletividade social. Ele se baseia na ética kantiana para fundamentar sua tese, tomando emprestada a ideia de que o ser humano existe como fim em si mesmo e não como meio para algo. Assim, o princípio da dignidade da pessoa e o da justiça em relação a cada indivíduo são valores absolutos: estão entrelaçados e é impossível separá-los sem prejuízo. Cada pessoa possui uma inviolabilidade de direitos radicados no princípio ético da dignidade. Para ele, as sociedades estão perdendo a noção de que o princípio da justiça regeria a base da estrutura social. 238

John Rawls (1921-2002) Filósofo norte-americano que se dedicou à Filosofia política e desenvolveu uma teoria de justiça, por meio da qual defende que a liberdade deve ser contrabalançada pela igualdade. Suas obras são: Uma teoria da Justiça, Liberalismo político e O Direito dos povos.


O desafio, segundo Rawls, é julgar os acontecimentos, avaliando a justiça das relações humanas. A justiça pode ser mensurada e sua base social deve partir de um acordo racional entre as pessoas. Nesse caso, a ação justa do indivíduo se dá quando, ao agir, ele considera não somente a si, mas a todos. O novo pacto social deve ser capaz de conciliar o interesse individual e o coletivo; deve emergir de uma concepção de justiça e de cooperação social muito maior do que as que já existiram. O critério egoísta que fundamenta as relações sociais deve ser superado da seguinte maneira: 1) cada pessoa tem direito igual a um sistema adequado de liberdade; 2) todos devem ter chances iguais; 3) os membros menos privilegiados devem ser beneficiados. Esses princípios procedem de um acordo entre indivíduos racionais, livres e independentes. Nas sociedades democráticas, o primeiro princípio é assegurar a liberdade de forma igualitária. A justiça social não se centra mais na igualdade, pois as sociedades que a buscam de forma absoluta são mentirosas e tirânicas, já que não conseguiram chegar a ela em razão da diferença de natureza entre os seres humanos. Sendo assim, sacrificam a liberdade em nome de uma falsa igualdade. As desigualdades sociais podem ser aceitas quando justas, isto é, quando integram o sistema social em que se cuida do bem-estar dos menos favorecidos. As desigualdades, em certos casos, são positivas, pois em alguns momentos os recursos podem estar concentrados nas mãos de quem pode fazer o melhor uso deles e contribuir para melhorar a vida dos menos favorecidos. Para a sociedade ser de fato justa e mais livre, o princípio da solidariedade e da fraternidade deve permeá-la. Somente esses dois valores permitiriam as reparações sociais a fim de que os benefícios estivessem ao alcance de todos. Quando se fala hoje em dia, por exemplo, em cotas nas universidades, essa ideia está dentro da proposta de Rawls de beneficiar os que foram desfavorecidos historicamente para restaurar o princípio da justiça.

O Estado mínimo Robert Nozick (1938-2002) Filósofo político norte-americano, cujos interesses abarcavam várias outras áreas, da filosofia das ciências à metafísica, ou da teoria da racionalidade à filosofia existencial.

Já Robert Nozick foi um dos principais liberais que defenderam, no século XX, a ideia do Estado mínimo. Seu livro Anarquia, Estado e utopia, de 1974, é uma cuidadosa resposta às teorias de Rawls, no qual propõe um liberalismo radical. Para ele, o Estado mínimo, que não interfere na vida dos indivíduos, é o único Estado a ser aceito por não violar os direitos de todos. Ele faz uma crítica ao Estado com preocupações sociais semelhantes às pensadas por Rawls, que, para Nozick, tem uma dimensão utópica irrealizável. Qualquer Estado deve reconhecer que o indivíduo tem a supremacia praticamente absoluta e não pode destruir sua liberdade, pois é necessário que as pessoas tenham direitos individuais resguardados acima de qualquer coisa. Ele reconhece que o único limite aos direitos individuais é o direito dos demais. Não aceita que se sacrifiquem pessoas em favor 239


de outras e, em sua opinião, o principal direito do ser humano é o direito à propriedade, base social de todos os outros direitos. O respeito absoluto a esse direito é típico de toda doutrina liberal.

Os poderes estatais, delegados pelos próprios indivíduos, referem-se à proteção dos direitos dos cidadãos, à resolução de conflitos e ao respeito aos pactos particulares. O fundamento da teoria de que só o Estado mínimo é um Estado legítimo é a própria natureza que, segundo ele, concebe os indivíduos de forma separada. O Estado deve seguir a natureza e proteger a individualidade. A liberdade é o eixo central, entendida como ausência de coerção e, portanto, o Estado não pode coagir ninguém a fazer qualquer coisa, nem mesmo impor uma justiça de melhor distribuição de renda, buscando alguma espécie de igualitarismo econômico ou social, pois isso prejudica os direitos individuais. Para ele, é preciso buscar outra saída para criar sociedades mais justas. A justiça estatal pode estar calcada na ajuda mútua dos seus cidadãos, mas sem se apropriar das coisas de um para dar a outro. Isso seria imoral. A transferência das riquezas deve acontecer por meio de intercâmbio livre entre as pessoas. Nozick diz que é claro que os direitos dos seres humanos foram violados muitas vezes; dessa forma, é correto que as pessoas sejam recompensadas pelo que perderam. O caminho apontado por ele é que se descubra o que elas perderam ao longo da História e se devolva aos seus donos de direito. Caso isso não fosse possível, seria necessário buscar outras de compensá-los. Mas o Estado não tem poder de redistribuir bens; isso deve ficar a cargo dos cidadãos e acontecer de forma livre.

Um militante anarquista contra o império americano

Coleção Roger-Viollet/AFP

O filósofo, linguista e militante político, Noam Chomsky se define como um socialista libertário e usa seu arsenal anarquista para criticar seu país, os Estados Unidos, fazendo não mais apenas a leitura tradicional do anarquismo antiestatal, mas realizando uma crítica antimperialista. Noam Chomsky (1928) Linguista, filósofo e militante político norte-americano. Define-se como socialista libertário, mas também é chamado de anarcossocialista.Tornou-se famoso por pesquisar vários tipos de linguagens formais, procurando entender se poderiam ser capazes de capturar as propriedades-chave das línguas humanas. Desenvolveu um sistema da análise linguística, associado à filosofia, lógica e psicolinguística que revolucionou a linguística tradicional. Entre suas principais obras, estão: As estruturas da sintaxe, Aspectos da teoria sintática e Linguística Cartesiana.

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Noam Chomsky na Universidade da Pensilvânia nos EUA.


Em termos históricos, Chomsky aponta o processo de colonização de países da Ásia, da África e das Américas pela Europa como um verdadeiro desastre. E classifica os EUA como um estado-terrorista, pois, segundo seu conceito, sempre que há matança de população civil, incluindo mulheres e crianças, está havendo atos de terrorismo. Há ainda o agravante de que o terrorismo de Estado – como o praticado pelos norte-americanos no Iraque – é muito mais amplo, atingindo maior número de pessoas e alegando falsas justificativas ideológicas. No trecho apresentado a seguir, Chomsky faz uma revisão histórica do processo de colonização, cujas consequências ainda vivemos.

Não resta dúvida de que o domínio imperial tenha sido um desastre. Veja a Índia, por exemplo. Quando os britânicos chegaram pela primeira vez, Bengala era um dos lugares mais ricos do mundo. Os primeiros mercadores britânicos descreveram-na como um paraíso. Essa é atualmente a área de Bangladesh e Calcutá, um símbolo de desespero e pobreza. Lá havia ricas áreas agrícolas, que produziam um algodão de rara qualidade e também uma indústria avançada para os padrões da época. Para se ter uma ideia, uma firma indiana construiu, durante as guerras napoleônicas, uma das naus para um almirante inglês. Ela não foi construída em uma das fábricas britânicas – era produção dos próprios indianos. Você pode saber o que aconteceu pelos livros de Adam Smith, que tinha escrito sobre o assunto há mais de quinhentos anos. Ele lamentava as privações causadas pelos ingleses em Bengala. Segundo Smith, os ingleses destruíram primeiro a economia agrícola, depois transformaram a “carência em fome coletiva”. Uma maneira de fazer isso foi transformar terras agrícolas em áreas para produção de papoulas (já que o ópio era a única coisa que a Grã-Bretanha podia vender à China). Houve então fome em massa em Bengala. Os britânicos também tentaram destruir o sistema industrial instalado nas regiões da Índia controladas por eles. A partir do século XV2I a Grã-Bretanha impôs duras leis tarifárias para impedir que os produtos industrializados indianos competissem com a produção têxtil dos ingleses. Eles tiveram que enfraquecer e destruir as indústrias têxteis indianas, pois a Índia tinha uma relativa vantagem – utilizava um algodão de melhor qualidade e um sistema industrial, em muitos aspectos, comparável ou superior ao britânico. Os ingleses tiveram sucesso. A Índia fechou suas indústrias e tornou-se uma economia rural. À medida que a Revolução Industrial avançava na Inglaterra, a Índia transformava-se em um país agrário e pobre. […] Não observamos os mesmos efeitos no Canadá e na América do Norte, porque lá eles simplesmente dizimaram a população. Não são apenas os 241


comentaristas “politicamente corretos” de hoje que descrevem esse processo – leia os relatos dos pioneiros. O primeiro secretário de segurança, Henry Knox, disse que “o que estamos fazendo com a população nativa é pior do que os conquistadores espanhóis fizeram no Peru e no México”. Ele disse que futuros historiadores da destruição desses povos – o que hoje chamaríamos de genocídio – iriam pintar esses atos com “cores sombrias”. Isto sempre foi sabido. Muito tempo depois de deixar o poder, John Quincy Adam, mentor intelectual do Manifesto Destino, passou a combater a escravidão e a política de colonização dos indígenas. Ele disse ter sido envolvido, como todos os outros, em um crime de “extermínio” de tais proporções que, sem dúvida, Deus iria puni-los pelos “pecados hediondos”. Na América Latina, o processo foi mais complexo, mas a população nativa foi virtualmente destruída em 150 anos, enquanto africanos eram trazidos como escravos. Isso ajudou a devastar a África, antes mesmo do período colonial; a conquista apenas veio arrastá-la ainda mais para trás. Depois de roubar as colônias – fato indiscutível, como também é indiscutível que isso tenha contribuído para seu próprio desenvolvimento – o Ocidente optou pelos relacionamentos “neocoloniais”, o que significa dominação sem administração direta. O que veio a seguir foi um desastre ainda maior, em linhas gerais. CHOMSKY, Noam. A minoria próspera e a multidão inquieta. Brasília: UnB,1999. p. 84-88.

Será que o poder é algo que está nas mãos apenas dos políticos, dos governantes ou de quem tem muito dinheiro? Será que o poder faz parte das relações humanas de uma forma geral? Diferentes situações, como os encontros que acontecem em uma sala de aula, em uma consulta ao médico ou em uma reunião religiosa, podem estar marcadas por relações de poder? O filósofo francês Michel Foucault (ver boxe biografia no capítulo 6) representou, no século XX, um dos principais pensadores no campo da Filosofia. Pode-se dizer que sua crítica ao poder vai ainda mais longe do que a dos anarquistas do século XIX. Seus escritos provocaram grandes debates por buscar as bases históricas e políticas da dominação e do poder no seio das relações entre as pessoas. O pensador critica as concepções que defendiam existir lugares específicos para o poder, como o local do poder político – que, nas sociedades 242

Coleção Roger-Viollet/AFP

Foucault e as relações de poder

Michel Foucault, em 1983.


Publius Virgilius/Folha Imagem

modernas, é o Estado. As concepções clássicas defendiam que o poder estaria encarnado nos estadistas, enquanto os cidadãos comuns estariam quase esvaziados dele, mas Foucault recusa a ideia de que o poder esteja apenas nas mãos de personagens grandiosos da História. O poder possui vastas ramificações e está entranhado em todas as instâncias da sociedade. Desde o século XVI, uma rede de olhares e controles cobre o mundo. Foucault acredita que o poder segrega, vigia, criminaliza e pune quem se opõe a ele. No entanto, está disseminado nas redes das relações sociais, exercitando-se nos lugares mais simples. Ele não aparece apenas nas sessões políticas do Estado ou das cortes, mas também nos lares, nas escolas, nos hospitais e nos colégios internos. Suas críticas a essas instituições – mostrando como elas disciplinam, dominam e modelam o corpo e a mente das pessoas, padronizando comportamentos, criando modelos prontos de seres humanos – contribuem para repensarmos tais práticas. Suas críticas à escola, por exemplo, são ainda atuais. A escola quer amoldar o corpo e a mente da criança, começando por mantê-la disciplinadamente sentada, imóvel. Adota um sistema de vigilância e punições (que antes eram físicas e agora são simbólicas) submetendo o indivíduo à sua modelação. Desse modo, Foucault crê que o poder não se irradia de uma única cabeça poderosa ou de algumas instituições políticas ou jurídicas: o poder não está só no plano macro, mas também no plano micro, entrelaçado nas relações entre as pessoas comuns. Assim, quem representa o poder não são somente grandes reis ou políticos, como também todas as pessoas em suas vidas e profissões: médicos, professores, burocratas, políticos, policiais, escritores, pais e mães. Para Foucault, o poder não pesa sobre a sociedade: faz parte dela, está do lado de dentro e não do lado de fora. Mas nem sempre é possível perceber a microfísica do poder em suas fontes de emissão, exatamente porque elas estão espalhadas pelo corpo social.

Foto de manifestação, no Rio de Janeiro, em 1995, de um grupo de estudantes, que queimavam sutiãs em frente ao Instituto de Educação contra o veto que proibia as alunas de usarem sutiãs coloridos. Muitas vezes o poder praticado por um líder ou uma instituição vem carregado de moralismo e preconceito.

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Vocações O tema abordado neste capítulo é bastante polêmico. É possível seguir uma carreira política e ser um homem ou uma mulher de bem? A credibilidade dos políticos no Brasil é muito baixa, dada a tradição de corrupção e de impunidade que impera na história do país. Mas a questão é mais profunda do que apenas uma circunstância histórica, que a qualquer momento pode ser modificada. Apesar de observarmos uma tradição de desonestidade, a princípio, nada impede que haja pessoas de bem que não façam adesão a uma conduta antiética. Ao analisarmos vários momentos históricos, observaremos que o poder, na maioria das vezes, foi conquistado e exercido de forma violenta, manipuladora ou transgredindo muitos princípios éticos. Em governos totalitários, como o que ocorreu no Brasil no período de Getúlio Vargas ou da ditadura militar, é comum que eliminem, torturem, exilem, enfim, reprimam, seus opositores. Ou seja, exatamente o que Maquiavel recomendaria. E nos governos democráticos? Será que ocorre essa mesma opressão? Se analisarmos o funcionamento da democracia contemporânea, veremos que ela depende do dinheiro das empresas. Para uma simples campanha de vereador, um candidato tem de mobilizar dinheiro para conseguir votos. Em geral, isso é obtido por meio de trocas e compromissos, e é neste momento que os problemas podem surgir: quando essas trocas e compromissos não obedecem aos limites éticos. Outra necessidade vital para qualquer político é sua projeção na mídia. Se ele não se expuser, não divulgar suas ideias e projetos, por meio de entrevistas, não há como o eleitor conhecê-lo ou mesmo se interessar por suas ideias. A mídia, portanto, é um importantíssimo fator político. A questão é que teríamos de encontrar novas formas de atuação democrática em que o poder econômico e o poder da mídia não fossem os verdadeiros atores políticos… E mais ainda: teríamos que ter políticos, como imaginava Platão: desinteressados do poder – que encarassem o exercício de uma função pública como um serviço prestado à comunidade, como um dever moral, uma missão. Será que devemos pensar em caminhar para um mundo anárquico, se considerarmos a tentação do poder como demasiada para os mortais? Os jovens de hoje é que têm o desafio de repensar tudo isso e encontrar novas soluções para problemas antiquíssimos.

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O homem político (Livro 1 – Capítulos 2-9-10) Aristóteles

[...] é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é, por natureza, um animal político. E aquele que por natureza, e não por mero acidente, não tem Estado, ou é muito mau ou muito bom, ou subumano ou super-humano – como o guerreiro insano condenado, nas palavras de Homero, como “alguém sem família, sem lei, sem lar”; porque uma pessoa assim, por natureza amante da guerra, é um não colaborador, como uma peça isolada em um jogo de damas. É evidente que o homem é um animal mais político do que as abelhas ou qualquer outro ser gregário. A natureza, como se afirma frequentemente, não faz nada em vão, e o homem é o único animal que tem o dom da palavra. E mesmo que a mera voz sirva para nada mais do que uma indicação de prazer ou de dor, e seja encontrada em outros animais (uma vez que a natureza deles inclui apenas a percepção de prazer e dor, a relação entre elas e ao mais do que isso), o poder da palavra tende a expor o conveniente e o inconveniente, assim como o justo e o injusto. Essa é uma característica do ser humano, o único a ter noção de bem e de mal, da justiça e da injustiça. E é a associação de seres que têm opinião comum acerca desses assuntos que faz uma família ou uma cidade. O Estado tem, por natureza, mais importância do que a família e o indivíduo, uma vez que o conjunto é necessariamente mais importante do que as partes. Separam-se do corpo os pés e as mãos e eles não serão mais nem pés nem mãos [...]; destruídos, não terão mais o poder e as funções que os tornavam o que eram. [...] A prova de que o Estado é uma criação da natureza

e tem prioridade sobre o indivíduo é que o indivíduo, quando isolado, não é autossuficiente; no entanto, ele é como parte relacionada com o conjunto. Mas aquele que for incapaz de viver em sociedade, ou que não tiver necessidade disso por ser autossuficiente, será uma besta ou um deus, não uma parte do Estado. Um instinto social é implantado pela natureza em todos os homens, e aquele que primeiro fundou o Estado foi o maior dos benfeitores. Isso porque o homem, quando perfeito, é o melhor dos animais; porém quando apartado da lei e da justiça, é o pior de todos; uma vez que a injustiça armada é a mais perigosa, e que ele é naturalmente equipado com os braços, pode usá-los com inteligência e bondade, mas também para os piores objetivos. É por isso que, se o ser humano não for excelente, será o mais perverso e selvagem dos animais, o mais repleto de luxúria e de gula. Mas a justiça é o vínculo dos homens, nos Estados; porque a administração da justiça, que é a determinação daquilo que é justo, é o princípio da ordem em uma sociedade política. ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p.146-147.

A anarquia Errico Malatesta

A palavra anarquia vem do grego e significa sem governo, estado de um povo que se rege sem autoridade constituída, sem governo. Antes que toda uma categoria de pensadores considerasse tal organização como possível e desejável, antes que ela fosse tomada como objetivo por um partido que é doravante um dos fatores mais importantes das lutas sociais modernas, a palavra anarquia era geralmente tomada no sentido de desordem, confusão; ela ainda é hoje tomada neste sentido pelas massas ignorantes e pelos adversários interessados em ocultar a verdade. Nós não entraremos em digressões filológicas, pois a questão não é em nada filológica, mas 245


histórica. O sentido vulgar da palavra não desconhece sua verdadeira significação etimológica: é seu derivado, devido ao preconceito de que o governo é um órgão necessário da vida social, e que, consequentemente, uma sociedade sem governo deve ser presa de desordem, oscilando entre a onipotência de uns e a cega vingança dos outros.

Mudem a opinião, persuadam o público de que não somente o governo não é necessário, mas que ele é extremamente nocivo, e então a palavra anarquia, justamente porque significa ausência de governo, quererá dizer a todos: ordem natural, harmonia das necessidades e dos interesses de todos, liberdade completa na completa solidariedade. […]

A existência desse preconceito e sua influência sobre a significação que o público deu à palavra anarquia explicam-se facilmente.

O governo, ou, como se diz, o Estado, justiceiro, moderador das lutas sociais, administrador imparcial dos interesses públicos, é uma mentira, uma ilusão, uma utopia jamais realizada e jamais realizável.

Como todos os animais, o homem adaptase, habitua-se às condições nas quais vive, e transmite por hereditariedade os hábitos adquiridos. Nascido e vivendo na escravidão, herdeiro de uma longa linhagem de escravos, o homem, quando começou a pensar, acreditou que a escravidão fosse uma condição essencial da vida: a liberdade pareceu-lhe impossível. É assim que o trabalhador coagido há séculos a esperar trabalho, isto é, o pão, do bel-prazer de um amo, habituado a ver sua vida continuamente à mercê daquele que possui terra e capital, acabou por crer que é o patrão que lhe dá de comer; ingênuo, ele se diz: o que teria para viver se os amos não existissem? […] E, se, aos efeitos naturais do hábito, eu acrescento a educação dada pelo patrão, pelo padre, pelo professor etc., que estão todos interessados em pregar que o governo e os amos são necessários, se incluirmos o juiz e o policial que se esforçam em reduzir ao silêncio aquele que pensa de forma diferente e quer propagar seu pensamento, compreender-se-á de que maneira, no cérebro pouco culto da massa, enraizou-se o preconceito da utilidade, da necessidade do patrão e do governo. […]

Se os interesses dos homens tivessem de ser contrários uns dos outros, se a luta entre os homens fosse uma lei necessária da sociedade humana, se a liberdade de alguns tivesse de ser um limite à liberdade dos outros, então cada um procuraria fazer sempre triunfar seus próprios interesses sobre os outros; cada um tentaria aumentar sua liberdade em prejuízo da liberdade do outro. Se tivesse que existir um governo, não porque ele fosse mais ou menos útil à totalidade dos membros de uma sociedade, mas porque os vencedores desejassem assegurar para si os frutos da vitória, subjugando solidamente os vencidos, e se livrar do peso de estar sempre na defensiva, encarregando de sua defesa homens especialmente treinados na profissão de policial, então a humanidade estaria destinada a perecer ou a se debater eternamente entre a tirania dos vencedores e a rebelião dos vencidos. Felizmente, o futuro da humanidade é mais sorridente, porque a lei que a governa é mais doce. Essa lei é a solidariedade. […]

Assim como se acreditou que o governo era necessário, como se admitiu que sem governo só pode haver desordem e confusão, é natural, é até mesmo lógico que o termo anarquia, que significa ausência de governo, signifique também ausência de ordem. […]

A solidariedade, isto é, a harmonia dos interesses e dos sentimentos, o concurso de cada um ao bem de todos e de todos ao bem de cada um, é o único estado no qual o homem pode explicar sua natureza e atingir o maior desenvolvimento e 246


o maior bem-estar possível. É o objetivo rumo ao qual caminha a evolução humana; é o princípio superior que resolve todos os antagonismos atuais, insolúveis de outra forma, e faz com que a liberdade de cada um não encontre limite, mas complemento, condições necessárias à sua existência na liberdade dos outros. “Nenhum indivíduo”, dizia Mikhail Bakunin, “pode reconhecer sua própria humanidade, nem pode por consequência realizá-la na vida, se não reconhecê-la nos outros e cooperar em sua realização para os outros. Nenhum homem pode se emancipar se, com ele, não emancipar todos os homens que o cercam. Minha liberdade é a liberdade de todos, visto que eu só sou realmente livre, livre não somente na ideia, mas de fato, quando minha liberdade e meu direito encontram sua confirmação e sua sanção na liberdade e no direito de todos os homens, meus iguais”.

Para estudar os textos: • • •

Leia no final do livro os verbetes referentes aos auto­res Aristóteles e Malatesta. Anote no caderno todas as palavras que você desco­nhece e procure-as no dicionário. Entenda os textos parágrafo por parágrafo, relendo-os se for necessário, para a compreensão integral do pensamento de cada autor. Se houver algum conceito ou trecho que lhe pareça particularmente difícil, peça ajuda a seu professor ou consulte um dicionário de Filosofia. Argumente com qual texto concorda mais e discuta com os colegas.

MALATESTA, Errico. A anarquia e outros escritos. São Paulo: Imaginário, 1999. p. 9-12.

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Atividades Texto original Cinema pensante

Não escreva n

o livro!

Interdisciplinaridade

Arte

Imagem Forum

Germinal (Germinal), direção de Claude Berri, com Gérard Depardieu, França, 1993. Filme inspirado no clássico homônimo escrito por Émile Zola no século XIX, considerado livro de cabeceira dos anarquistas da época. Assista ao filme, redija uma resenha do filme e escreva por que você acha que os anarquistas se identificavam com essa história.

Cena do filme Germinal, de 1993. Baseado no livro Germinal, de Zola, mostra a rotina de miséria e exploração dos mineiros de carvão na França

Lanche filosófico Diante do que você estudou neste capítulo e do que se observa no cenário mundial atual, podemos citar, do modo simplificado, como alternativas de sociedade: sociedade capitalista, com o Estado mínimo, em que o poder se concentra nas mãos das grandes corporações – é o que vivemos globalmente hoje; sociedade teocrática, nos moldes medievais – há sociedades muçulmanas no mundo contemporâneo em que isso se dá; sociedade socialista de Estado forte, como foi o caso da União Soviética e de Cuba – modelo praticamente ausente nos dias atuais; sociedade anarquista – que nunca houve, mas com a qual alguns sonham –, baseada na autogestão. • Discutam, na classe, as alternativas acima e pensem em que sentido deveria caminhar o mundo globalizado de hoje. 248


Produção de arte O sonho de um mundo sem poderes e misérias motivou poetas e artistas de todas as épocas. No trecho transcrito a seguir, um dos grandes poetas românticos do século XIX expressa-se nesse sentido. Leia com atenção; depois, redija também uma poesia expressando sua visão de mundo no futuro.

A lenda dos séculos Oui, l’aubes’estlevée. Oh! Cefut tout à coup Commeuneéruption de folieet de joie, Quand, après six mille ansdans la fatale voie, Défaitebrusquementparl’invisible main, La pesanteur, liée au pied du genre humain, Se brisa; cettechaîneétaittoutes les chaînes! Tout s’envoladansl’homme, et les fureurs, les haines, Leschimères, la force évanouieenfin, L’ignoranceetl’erreur, lamisère et lafaim, Le droitdivindesrois, lesfauxdieuxjuifs ou guèbres, Le mensonge, ledol, lesbrumes, lesténèbres, Tombèrentdans la poudre avec l’antique sort Comme le vêtement du bagnedont on sort.

Sim, a aurora nasceu! E foi tão de repente Como um erupção de loucura contente, Quando após seis milênios na via fatal, Desfeito bruscamente por mãos de piedade, O peso atado ao pé de toda a humanidade, Rompeu-se. E assim quebraram-se outras correntes! Tudo fugiu! E os ódios, furores ardentes, As quimeras, a força e a violência sem nome, A ignorância e o erro, a miséria e a fome, O direito dos reis e as falsas divindades, A mentira, as trevas, a dor e as maldades, Tudo tombou no pó, com a sorte de antanho Como se troca a veste ao se sair do banho.

Etc’estainsiquel’èreannoncéeest venue, Cetteèrequ’àtraversletemps, épaissenue, Thalèsapercevait au loin devantsesyeux, E Platonregardaitdanslessphèresdescieux…

Foi assim que chegou a era anunciada, A era que através dos tempos vislumbrada, Tales se apercebeu ao longe atrás dos véus, E Platão a apanhou nas esferas dos céus... HUGO, Victor. La Légende des Siècles. In: Poésie. Paris: Seuil, 1972. (Tradução livre dos autores)

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Capítulo

10

Quem quer um mundo diferente?

Museu do Louvre, Paris

Para começar

A liberdade guiando o povo, de Eugéne Delacroix, 1830.

Uma das mais fortes características da Filosofia ocidental é sua interação dialética com a realidade social. As correntes filosóficas brotam de uma dada condição sociopolítico-econômica, ao mesmo tempo em que pretendem atuar sobre esta realidade, transformando-a. A Filosofia pode ser militante, transformadora e impactante sobre a organização social, as relações humanas e a História. Alguns filósofos se sentem capazes de alterar o rumo das coisas por meio de suas leituras críticas, com propostas de mudança e ideais de justiça. Trata-se de um

pensamento que não apenas se mantém na análise crítica, mas avança na busca utópica de um mundo novo, diferente e mais humano. A Filosofia cumpre, nesses casos, um papel ativo: o de alterar a realidade, e não apenas observá-la, compreendê-la e contemplá-la. No capítulo anterior, tratamos da filosofia política, predominantemente em torno do tema Estado. Neste capítulo, abordaremos essa questão enfatizando os pontos de vista social e econômico, embora a política, a sociedade e a economia façam parte de uma só dinâmica. 250

Texto dos autores.


Europaische Stadtutopien. Ein Historicher, Berlim, 1986

O papel das utopias Você já idealizou um mundo melhor, livre de vários problemas que conhecemos na atualidade? Já imaginou outra sociedade, onde a justiça prevalece e as desigualdades não são tão gritantes? Se você já refletiu sobre algo assim, saiba que deu os primeiros passos no sentido de elaborar um pensamento “utópico”. O termo “utopia” foi usado pela primeira vez como título de um pequeno livro do autor inglês Thomas More (ou Morus, em latim), publicado em 1516. More criou a palavra a partir da junção de dois termos gregos u (“não”) e topos (“lugar”), ou seja, “utopia” significa literalmente “nenhum lugar” ou “lugar nenhum”. Com o livro, uma ficção, o autor pretendeu retratar uma cidade que abrigaria uma sociedade ideal para se viver. Um mundo diIlustração para o livro Utopia, de ferente daquele em que ele vivia, mais aperfeiçoado. ­Thomas More, 1516. O estudo das condições ideais de uma sociedade realizado por More serviu de inspiração a outros pensadores ao longo da História e o termo criado por ele ainda é usado para fazer referência a todo projeto, plano ou descrição de uma sociedade ideal. Não é à toa, por exemplo, que um século depois da publicação de Utopia, dois outros autores escreveram obras utópicas de grande importância no mundo ocidental: A cidade do Sol (1623), de Tomás de Campanella, e Nova Atlântida (1627), de Francis Bacon. Apesar de More ter criado o termo “utopia”, influenciando grandes pensadores, ele não foi o primeiro a descrever e pensar uma sociedade ideal. Essa tendência filosófica tem uma grande tradição no Ocidente. O filósofo Platão, no século V a.C., embora não tenha utilizado esse termo, nos livros A República e Leis descreve um mundo ideal em que problemas e imperfeições da sociedade em que vivia seriam melhorados e superados. A República é uma obra utópica, pois na sociedade que ele prevê as relações sociais alcançariam a justiça, o governo seria o melhor possível, a paz reinaria entre as pessoas e a felicidade seria certa. Platão exerceu grande influência nessa espécie de literatura, servindo de modelo para que outras utopias fossem escritas, inclusive a de More. O objetivo de Platão não era descrever a sociedade tal como ela “era” no seu tempo, mas estabelecer parâmetros de como ela “deveria ser”, e de como o poder “deveria” ser exercido da forma mais justa possível. Sua preocupação maior, portanto, não era descritiva, mas prescritiva. Pode-se dizer que, no mundo ocidental, a partir da influência de Platão e da etimologia criada por More, o caráter utópico passou a ser usado e estudado em muitos setores do pensamento: político, sociológico, filosófico e até mesmo na linguagem cotidiana. Ele pode ter muitas características, presentes em diferentes obras, e possuir sistemas muito diversificados entre si. Mas há fatores comuns em todas as utopias. 251


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Warner Bros Entertainment

Muitas vezes, o pensamento utópico é visto apenas como fruto da imaginação, mas ele é também fruto da capacidade racional do idealizador. A utopia, na verdade, está relacionada ao esforço de determinado pensador em utilizar a razão para romper com a sociedade estabelecida e reordená-la com uma nova organização mais adequada do que a existente. Trata-se de um conceito associado quase sempre a um sentido positivo de mudança, transformação e melhoria das condições de vida. Nesse sentido, é importante dizer que o termo “utopia” não significa necessariamente aquilo que não é alcançável ou realizável – como muitas vezes é entendido no cotidiano –, mas pode designar aquilo que é desejável e, principalmente, aquilo que pode ser realizado. O pensamento utópico nasce a partir de uma determinada sociedade, está entrelaçado com a realidade e é fruto do seu tempo. Nesse sentido, as utopias revelam aspectos fundamentais das condições históricas e sociais nas quais vivem os utopistas. Sem dúvida, os utopistas procuram a mudança, mas utilizando os meios reais para produzi-la. Seus ideais de transformação surgem sempre como uma força motriz de ideias e movimentos no seio das sociedades e na História. Nos momentos de crise e Cena do filme Blade Runner, de Ridley tensão social, a utopia tem servido como base de muitas muScott, de 1982. O filme, que se passa em um futuro sombrio e poluído, danças e até de revoluções. retrata uma visão catastrófica da utoA principal característica do pensamento utópico é não aceipia humana de dominar a natureza. E mostra como alguns projetos utópicos tar as misérias, os sofrimentos e as injustiças como facetas inepodem fugir ao controle. vitáveis da realidade. A sociedade ideal que a utopia vislumbra decorre da insatisfação, de uma vontade de acabar com as desigualdades, as dores e as misérias humanas. Na visão utópica, pode-se evitar tudo isso, pois acredita-se na capacidade dos seres humanos de melhorarem a si mesmos e ao mundo. A utopia tem assim uma função libertadora, pois pretende levar a humanidade a uma ação transformadora diante dos sofrimentos e das injustiças de uma sociedade mal organizada. Sendo assim, a proposta utópica de uma sociedade alternativa não é baseada na mera fantasia da cabeça do pensador, mas está calcada no conhecimento da realidade. Os utopistas conheciam bem as sociedades em que viviam, o que possibilitou selecionarem os aspectos que deveriam ser mudados e os aspectos que poderiam ser conservados. Na verdade, eles têm como objetivo dar uma solução aos problemas que afetam os seres humanos na vida real. Parte-se da própria realidade para melhorá-la. O pensamento utópico pretende ser uma nova proposta e um modelo de ação. Mas os pensadores utópicos nunca propuseram que seus sistemas ficassem apenas no plano das ideias vazias e abstratas. Embora no pensamento utópico a ideia preceda a ação, ela deve servir para transformar o mundo real e mostrar alternativas para essa transformação. Na maioria das vezes, as mudanças pretendidas nesse caso são radicais,


recusando-se aquelas lentas e vagarosas. Há uma ansiedade para que a realidade mude, rompendo com o velho modelo e instaurando um novo, de modo rápido. Um dos papéis relevantes do pensamento utópico é sua dimensão crítica diante dos problemas sociais. O utopismo não aceita a realidade das coisas como imutáveis: estudando-a, busca as causas das deficiências, além das condições e das possibilidades em que as transformações podem ocorrer. O pensamento utópico, em muitos casos, elaborou críticas ricas, profundas e consistentes sobre a realidade social e política. Por isso, o pensamento utópico não pode brotar da cabeça de pessoas conformistas, isso é, que acham que as coisas não podem ser alteradas. Mesmo que em certos casos o pensamento utópico tenha ficado apenas no plano das ideias, ele teve um papel importante na produção de conhecimento social e político. Isso porque produziu conhecimento sobre a realidade, analisando problemas, antecipando soluções e propondo novos caminhos para certas questões da vida humana.

As repúblicas de Platão e de Thomas More É muito comum nos sentirmos frustrados diante de situações que não correspondem às nossas expectativas. A frustração faz parte de nossa experiência de estarmos vivos e de nutrirmos determinados ideais em relação a nós mesmos e em relação ao mundo. Essa decepção, no entanto, pode funcionar como motor para a produção de pensamentos, ideias e reflexões. É esse movimento que, em grande medida, está na base dos pensamentos políticos de Platão e de Thomas More. O livro A República, de Platão, pode ser considerado uma das primeiras obras a inaugurar o gênero utópico. Com ele, surgiu um dos primeiros estudos consistentes sobre a sociedade e a política gregas e é considerado por muitos historiadores da Filosofia, como o alemão Werner Jaeger, a obra-prima do pensamento platônico, por ser um livro de sua maturidade intelectual. A República é a expressão da frustração de Platão com o Estado e com a sociedade de seu tempo, justificando assim, como ponto central de seu pensamento, a criação de um tipo elevado de Estado. O filósofo parte da crítica às estruturas corrompidas da política e da sociedade – que chegaram ao absurdo de condenar Sócrates à morte, que foi o verdadeiro modelo de político e cidadão – e busca uma explicação para esse acontecimento trágico. Em suas reflexões, chega à conclusão de que vivia em um tempo de crise. A saída proposta por ele era remodelar o Estado e a sociedade, introduzindo melhorias em suas estruturas corrompidas e falidas. O Estado verdadeiro deveria se apoiar nos valores da justiça e do bem. A política e a sociedade atenienses haviam se afastado desses valores, e isso ficou claro no episódio em que foi decidida a pena de morte para Sócrates. Para Platão, a arte da política é a arte de curar as almas e torná-las mais virtuosas. Mas os políticos de seu tempo estavam longe 253


de cumprir esse objetivo, pois, em lugar de curar e educar os seres humanos, tornavam as pessoas gananciosas e injustas. Ele julga que o único que possui a capacidade pedagógica de ajudar as pessoas a se tornarem virtuosas é o filósofo e, portanto, este deve ser o verdadeiro político. A remodelação da sociedade e da política, segundo Platão, somente seria possível se o filósofo se tornasse político e vice-versa. Entenda-se, porém, que sua concepção de filósofo é a de um sábio virtuoso, moralmente acima da média.

Em seu clássico, o filósofo-político assumiria a função de organizar as relações sociais e políticas, a fim de levar não apenas um grupo de cidadãos, mas todos eles à verdade, à justiça e à felicidade: essa seria a finalidade mais nobre do Estado. O autor considera que não é possível acabar com o Estado, pois o ser humano é um ser que necessita dos outros para viver e de proteção, mas o Estado assume uma função pedagógica. Para entendermos o Estado ideal para Platão, é importante situar a concepção platônica de alma, pois essas duas ideias estão entrelaçadas, já que ambas funcionam da mesma maneira. A alma humana, segundo ele, pode ser dividida em três partes: a razão, a vontade e o desejo. E, para que o indivíduo alcance a felicidade, ele precisa harmonizar todas elas sob o controle da razão; além disso, essas partes devem ocupar seu lugar correto na estrutura da alma. A razão, porém, é fundamental, pois ela deve exercer o controle sobre as outras partes, guiá-las e governá-las. De acordo com Platão, o Estado ou a pólis deve ter a mesma estrutura. Nesse sentido, apresenta três tipos ou classes de cidadãos: 1) os artesãos, os comerciantes e os agricultores; 2) os militares-guardiães; e 3) os filósofos-governantes. Cada grupo de habitantes dentro do Estado platônico desempenha um papel fundamental para o funcionamento da sociedade. A primeira classe corresponde à parte dos desejos e dos prazeres da alma, sendo considerada a classe inferior, cujo papel é o de produzir riquezas e os meios materiais de subsistência. Para que a sociedade funcione bem, essa classe precisa saber controlar os desejos e os prazeres, seguir a disciplina e se submeter às outras duas classes superiores. A segunda classe é a dos guerreiros, militares e guardas: os homens e mulheres desse grupo têm a força de vontade e a coragem como marca e devem saber ser mansos quando necessário. A função dos guardas é a de vigiar e controlar tanto os problemas internos como os problemas externos à cidade. Por fim, a classe dos filósofos-governantes é a parte racional da sociedade. Essa classe deve amar a cidade e dedicar sua vida a ela. A virtude desse grupo é a busca pela sabedoria, pela verdade e pela justiça. A justiça, em A República, consiste na harmonia que se estabelece entre as três classes e nas suas virtudes. Os filósofos devem guiar e administrar os assuntos do Estado e ser a razão justa e sábia. Os guerreiros devem defender a vida, os bens da República e o cidadão. Os trabalhadores devem produzir o necessário para que o Estado e a sociedade sobrevivam. Platão quer dizer que, para haver justiça, cada grupo deve fazer aquilo que 254


Mary Evans Picture Libray

lhe compete na sociedade. Para isso, ele indica o caminho da educação. A harmonia e o bom funcionamento social seriam alcançados por uma educação adequada a cada classe social.

Imagem da obra Arcádia, de Jacobo Sannazaro, c. 1500. A pintura mostra o guardião, o músico, agricultores e pastores. Para Platão, as classes sociais deveriam estar em harmonia.

Os homens da primeira classe não necessitariam de nenhuma educação especial ou diferenciada: tudo o que eles precisariam saber aprenderiam na prática e no cotidiano da vida. A classe dos guardiães deveria ser educada com o intuito de ter coragem, fortaleza e força física, além de aprenderem ginástica e cultura musical. Com a ginástica, o corpo do guardião seria robustecido e com a música se moldaria a alma. Todos os bens dessa classe seriam comuns, não teriam propriedade sobre bens materiais, terras ou riquezas. Haveria comunhão de homens e mulheres, que não formariam famílias particulares. Nem mesmo os filhos seriam seus, os filhos seriam filhos de todas as pessoas dessa classe. Os filhos deveriam ser retirados dos pais ainda na infância, sem conhecê-los, para receberem educação em local adequado. Platão achava que assim criaria uma noção de família coletiva, onde todos se amariam como pais e irmãos. Há, além disso, um importante fator de rompimento do egoísmo social, pois tudo é de todos. Ninguém poderia dizer “isso é meu” e “isso é seu”. A melhor educação ficaria reservada à classe dos filósofos-governantes. Para se chegar a ser um governante, o percurso e os testes não seriam fáceis; um longo caminho teria de ser percorrido, que poderia durar até cinquenta anos. Preparar os homens para essa função exigiria um processo rígido de seleção. Na escolha de quem iria governar, as observações deveriam ser feitas desde a infância, com o intuito de se verificar quais pessoas possuiriam o mais alto grau de qualidades morais, de vontade de saber e de preocupação com o bem comum. O indivíduo precisaria dar mostras de sua incorruptibilidade e de um grande autodomínio. Essa classe teria reservado o estudo intelectual da Filosofia, da Matemática, da Dialética e 255


de outras ciências importantes. Eram necessários também o conhecimento prático de administração da coisa pública e a realização de tarefas preparatórias na condução do Estado. A educação do filósofo deveria conduzi-lo a contemplar o bem e a verdade, que constituiriam a base de qualquer bom governo.

A utopia em Thomas More Outra obra que se destaca pelas características do pensamento utópico, como já vimos, é Utopia (1516), de Thomas More, um dos principais humanistas do Renascimento. O problema que orienta seu pensamento nessa obra é a questão do Estado e da sociedade ideais, assim como já havia sido para Platão. O livro está dividido em duas partes: 1) a crítica aos aspectos mais negativos da sociedade inglesa do seu tempo; 2) descrição social, política e econômica da ilha de Utopia, que seria a sociedade ideal de More. Na primeira parte, More relata o conteúdo de uma suposta conversa que teve com um amigo, Peter Giles, e um homem culto que havia viajado para muitos lugares do mundo e conhecido diversas culturas, chamado Rafael Hitlodeu. Esse homem, em uma de suas viagens com Amé-

Totalitarismo Modelo de Estado em que não há liberdade individual e o cidadão é completamente submisso à organização política e ao governo instituído.

Coleção Roger-Viollet/AFP

A obra de Platão é utópica, pois o filósofo não se preocupa em fundamentar o nascimento do seu Estado nas condições históricas reais. Embora faça várias referências a leis e a Estados existentes, ele não extrai o conteúdo de sua teoria de nenhuma sociedade existente na época. Seu objetivo é a criação de um Estado mais elevado e, para isso, não se limita a discorrer em como se apresenta a realidade, acreditando que seja possível mudá-la radicalmente e criar novas condições para um Estado verdadeiramente justo. O mais importante, para Platão, não era que esse Estado existisse de fato, mas que cada pessoa vivesse segundo as normas da justiça e do bem dentro da sua própria alma, pois ali seria o melhor local para se construir esse ideal. Aristóteles foi um crítico do comunismo platônico, pois, para ele, a melhor forma de propriedade é a privada, embora essa propriedade tivesse limites. A sociedade comunista destruiria os laços sociais e as ferramentas essenciais para a vida humana ao acabar com a família e com a propriedade, núcleos básicos da vida em comunidade. Outros críticos de Platão, no decorrer dos tempos, notaram o caráter de desigualdade da sociedade descrita em A República e uma formatação totalitária do Estado platônico.

Gravura representando a execução de Thomas More. Ele foi decapitado por recusar-se a reconhecer Henrique VIII como chefe da Igreja inglesa. Em 1935, foi canonizado pela Igreja Católica.

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rico Vespúcio, teria visitado a ilha de Utopia. Provavelmente, esse episódio jamais ocorreu, mas os historiadores afirmam que More escreveu esse livro a partir de conversas reais com Giles, um intelectual e editor que o ajudou a publicar a obra.

National Gallery of Canada

Em Utopia, More descreve os aspectos que considerava negativos na sociedade e na política do mundo em que vivia. Dessa maneira, a obra traz uma dimensão crítica da realidade, característica inerente a todas as propostas utópicas. A sociedade inglesa do século XVI passava por grandes mudanças sociais, políticas e econômicas. Os nobres exploravam o povo econômica e politicamente. As condições de vida dos camponeses eram de sofrimento e miséria. Boa parte da população não tinha alimentação suficiente para viver e recebia baixos salários. Os pobres eram praticamente destituídos de direitos políticos e jurídicos, A ilha de Utopia é revelada por um amigo enquanto a classe dominante concentrava a riqueza e explorava a More, e daí teria vindo a inspiração para os camponeses. Em contrapartida, a república pensada por More o livro, no qual ele descreve os aspectos apresenta como valores máximos a igualdade e a justiça entre que considerava negativos na sociedade e política do mundo ao seu redor. os cidadãos. Desse ponto de vista, a posição do autor se revela como uma forte denúncia da situação de pobreza, desigualdade social e exploração em que vivia a maior parte dos europeus. O ponto de partida de More é uma crítica feita à lei da pena de morte aos pobres que roubavam por fome, o que, na concepção do humanista, era uma injustiça atroz, um atentado contra a dignidade humana. Ele se dispõe a mostrar que a lei estava sempre a favor de quem tinha riqueza e propriedade, prenunciando a crítica anarquista e marxista do século XIX. Segundo o pensador, um homem do povo era morto por um pequeno furto, mas um nobre jamais era acusado por roubar, escorraçar, desapropriar e forçar centenas de camponeses a deixarem suas terras. Os camponeses, então, tudo perdiam e, sem mais possibilidade de sustento, não encontravam nenhum lugar para viver, terminando nas prisões como vagabundos. Dessa forma, procura mostrar a injustiça das relações sociais, em que os mais fortes tudo possuem e os mais fracos são punidos por nada ter.

O vagão de terceira classe, de Honoré Damier, 1862. Nessa obra, vemos os passageiros da classe trabalhadora amontoados, diferentemente do que ocorria nos vagões de viajantes de outras classes, o que desponta para condições de desigualdade.

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A fim de conhecer o verdadeiro problema social, segundo More, é preciso buscar suas raízes no egoísmo e na ganância de certos homens, cujo único objetivo de vida é a obtenção de lucros, buscando assim o enriquecimento por meio da exploração alheia. De acordo com More, o que enriquecia alguns homens e empobrecia a maioria eram a propriedade privada e a ideia do dinheiro como o valor máximo da vida. Dessa forma, não poderia haver justiça e prosperidade para todos enquanto a propriedade privada continuasse a existir. Aquele que concentra as terras em suas mãos obtém a produção das coisas e, assim, as riquezas e o lucro. Aquele que produz quer produzir pelo menor preço e vender pelo preço mais alto possível, o que faz com que a riqueza esteja na mão de uma minoria detentora das terras e da propriedade privada, enquanto o restante sobrevive miseravelmente. Assim, a propriedade divide os seres humanos em duas classes: os ricos e os pobres. Então, ele propôs que os ricos não tivessem mais o monopólio sobre as terras e sobre a produção das coisas e se eliminasse a divisão entre pessoas que trabalhavam e pessoas que não trabalhavam, vivendo à custa dos trabalhadores. Todos deveriam trabalhar de forma igualitária, sem diferenciação. Considera assim que, onde não existisse propriedade, tudo seria de todos e as barreiras entre o que é de um e de outro deixariam de existir. Os cidadãos passariam a viver uma vida de comunhão maior, de maior igualdade e de verdadeira justiça. Nesse sentido, antecipa o socialismo criado três séculos depois, criticando o capitalismo que começava a surgir. Depois de tecer suas críticas aos pontos que proporcionavam a desigualdade entre os seres humanos em sua sociedade, More passa à segunda parte do livro, na qual descreve como seria sua sociedade ideal, por meio da conversa entre More, Rafael e Giles. Rafael conta o que tinha visto na ilha de Utopia: todos os cidadãos são verdadeiramente iguais, e há inclusive igualdade de gêneros, em que homens e mulheres têm os mesmos direitos. Todos os bens são comuns e compartilhados, desaparecendo as diferenças de rendas e de classes sociais. Os trabalhadores em Utopia têm uma jornada de trabalho de apenas seis horas diárias, tendo tempo para o lazer, estudo e outras atividades. Não existem pessoas ociosas, explorando o trabalho das outras. Inclusive, há um revezamento dos trabalhos: de forma equitativa, os habitantes da ilha ora trabalham na agricultura, ora no artesanato, ora em outras funções, de forma que não haja divisões sociais. Cada família recebe os produtos de que precisa para sua manutenção, de acordo com suas necessidades. Em Utopia não existe fome nem falta de habitação, e seus habitantes são pessoas pacifistas, procuram prazeres sadios e respeitam a diversidade cultural. Lá não há guerras religiosas, pois os habitantes do local admitem diferentes tipos de culto e há liberdade de crenças (a única crença condenável em Utopia seria a descrença, com a negação de Deus). O cidadão que, por algum motivo, cometesse crimes graves, perderia a liberdade e se tornaria escravo, tendo que fazer as tarefas mais desagradáveis. A função do Estado é proporcionar bem-estar aos seus cidadãos. 258


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Thomas More.

O pensador se preocupou exclusivamente com uma sociedade mais justa e igualitária, estabelecendo suas linhas fundamentais. Pode-se dizer que More anteviu com lucidez os problemas da sociedade capitalista nascente e elaborou uma crítica certeira às injustiças, explorações e mudanças que traziam esse novo modelo social e econômico. Se prestarmos atenção, veremos que ele criticou os pontos básicos do capitalismo em sua obra: 1) propriedade privada dos meios de produção, em que pessoas individualmente ou reunidas são donas dos meios de produção; 2) a força de trabalho como mercadoria, pois quem não é dono dos meios de produção deve trabalhar em troca de um miserável ganho; 3) a acumulação de riqueza e capital; 4) o princípio de que o dono da propriedade quer produzir pelo menor preço e vender pelo maior preço para gerar o lucro.

O capitalismo industrial e as utopias socialistas

Coleção Roger-Viollet/AFP

Você pode imaginar pessoas que trabalham 16 horas por dia, mas que ganham um salário que não lhe permite comprar muitas roupas, se alimentar adequadamente ou proporcionar a aquisição de uma moradia? Hoje, as condições de trabalho são diferentes, mas ainda encontramos pessoas no Brasil, e em outros lugares do mundo, que são submetidas a essa situação de exploração. No entanto, no século XVIII, a regra geral da situação do trabalhador era essa. No decorrer dos séculos, o capitalismo na Europa ocidental passou por grandes mudanças. A maior delas foi a Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, com a invenção da máquina a vapor e das máquinas destinadas a trabalhar o algodão. Esse acontecimento desencadeou profundas transformações na sociedade, porque a máquina permitiu um assustador aumento de produtividade, a diminuição dos preços, o crescimento do consumo e o aumento dos lucros. As oficinas cederam lugar às fábricas, o novo local de produção.

Indústria têxtil na França, 1886.

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Coleção do Museu de Artes e Ofícios, Paris, França

A Inglaterra se tornou o primeiro e principal país dessas mudanças. Antes da Revolução Industrial, a produção era sobretudo agrícola e artesanal. Os artesãos, tecelões e camponeses formavam as classes sociais produtivas. Havia um bom mercado interno e um lento crescimento da população, sem grande concorrência entre os trabalhadores, que tinham uma boa saúde física. Com o surgimento da máquina, a vida se modificou e as indústrias passaram a concentrar a produção nas grandes cidades, que passaram a abrigar aqueles que representavam as classes produtivas agora como operários nas indústrias. A sociedade passou a ser dividida em novas classes sociais, sendo elas basicamente os camponeses, os proletários e os burgueses. Foi um período de grandes mudanças políticas, econômicas e sociais. Em um prazo de poucas décadas, as cidades industrializadas inglesas chegaram a dobrar ou triplicar o número de habitantes, que acabavam morando em lugares insalubres e sem saneamento básico. Os salários eram tão baixos que não supriam necessidades básicas, sendo que até mesmo mortes por fome tornaram-se comuns. A carga horária de trabalho chegava a 16 horas diárias. A situação das mulheres nas fábricas também era péssima, pois, além de ganharem ainda menos que os homens, corriam risco de abusos sexuais. Segundo alguns historiadores, em certas fábricas, esse tipo de desrespeito realmente acontecia, realizado por patrões que se sentiam no direito para tal. Crianças também trabalhavam nessas condições precárias, sendo tratadas muitas vezes, como escravas. E todos, homens, mulheres e crianças, sofriam deformações físicas operando as máquinas.

Gravura mostra mulher arrastando carga de carvão em túnel de mina, de autor anônimo, Inglaterra, entre 1850 e 1880.

No transcorrer do século XIX, a concorrência entre as nações poderosas tornou-se mais acirrada. Novas transformações econômicas e políticas foram iniciadas em decorrência do avanço do capitalismo e das livres formas de concorrência. Segundo Maurice Dobb, economista britânico marxista do século XX, a expansão desse capitalismo e dos grandes investimentos, fruto de uma rápida acumulação, foi paga com a miséria do trabalhador. Alguns pensadores do século XIX avaliam que a sociedade tinha se tornado mesquinha, corrupta e passou a supervalorizar o poder do dinheiro. 260


Museu de Artes Decorativas, Paris, França

O ser humano ficou em segundo plano. Os burgueses (como eram chamados os donos do capital) estavam preocupados apenas com o lucro e não se importavam se seus operários iriam morrer de fome, pois, de acordo com os críticos, a relação que se estabelecia entre capital e trabalho, entre o industrial e o proletário, não era humana, e sim econômica. Nesse modelo de sociedade, quem tem dinheiro é respeitado e tem poder, enquanto o operário não é visto como ser humano, mas como mercadoria. Assim, num contexto de miséria operária e de prosperidade e acúmulo de capital burguês, se aprofundaram as críticas de Marx e Engels, de socialistas de todos os matizes e do movimento anarquista em relação ao sistema capitalista. E foi também nesse ambiente que surgiu a Sociologia, pretendendo dar respostas e encontrar soluções para os problemas nascidos com a Revolução Industrial – sobre essa ciência veremos mais no tópico adiante.

Gravura representando operários em fábrica de carvão, de Joseph ­Danhauser, 1805.

Crescia entre as classes operárias a repercussão das ideologias revolucionárias respaldadas em correntes socialistas. Embora todas as vertentes centrassem sua crítica no capitalismo, elas tinham diferentes concepções de mundo. Aliás, foi essa riqueza ideológica, essa abundância de sistemas propostos, que caracterizou o século XIX. Pensadores como Saint-Simon, Charles Fourier, Robert Owen, Mikhail Bakunin, Pierre-Joseph Proudhon e Karl Marx tinham teorias diferentes para libertar os oprimidos e transformar a sociedade. Pode-se dizer que esse século foi marcado pelos problemas decorrentes do capitalismo, que causaram fissuras, lutas, conflitos, explo261


ração, injustiças e dificuldades. Mas, ao mesmo tempo, incentivaram o surgimento das esperanças, utopias e reivindicações. Todos os socialistas que antecederam Marx e Engels foram por eles qualificados como utópicos, em contraposição ao socialismo científico que preconizaram. No século XX, entretanto, o próprio pensamento de Marx e Engels foi considerado utópico no que se refere às previsões que faziam para o futuro da sociedade. No entanto, as críticas de ambos ao capitalismo continuam pertinentes.

O socialismo utópico Uma das diferenças entre o que pregava Marx e os socialistas utópicos é que estes consideravam outros fatores dos problemas sociais e previam outras possibilidades de mudança. Robert Owen, por exemplo, aceitava a possibilidade de reforma na indústria por meio da educação e do reconhecimento dos direitos dos trabalhadores (como ele mesmo fez em suas fábricas). Proudhon (ver biografia no capítulo 9) admitia a mudança por meio da autogestão dos meios de produção, com a abolição do Estado. Charles Fourier pregava a formação de comunidades autônomas, comunistas e com relações livres de trabalho, de amor e de organização – eram os chamados falanstérios. O centro do pensamento de Marx e Engels, por sua vez, é a condição material e humana das classes operárias. Os dois pensadores colocam em xeque a natureza do sistema capitalista de produção ao denunciar as condições de vida e a miséria das classes operárias de seu tempo. Para eles, a História teria sido marcada pela exploração de uns pelos outros e pelo conflito entre os grupos humanos. A luta entre opressores e oprimidos é a principal característica das sociedades e, no seio da sociedade capitalista, tal conflito está presente de maneira aguda. A expansão do capitalismo e sua fase de grandes investimentos, resultado de uma rápida acumulação, resultaram na miséria do trabalhador. Marx e Engels descrevem a dramática situação da vida do proletário europeu: a insuficiência de moradias, o desemprego crônico, a miséria, a criminalidade, a delinquência, a prostituição. As cidades em expansão passaram a ser cidades doentes. Os dois analisam o movimento proletário que começava a se organizar: uma nova classe passava a reivindicar seus direitos e a ter força de combate diante da injustiça das classes burguesas. Para eles, o sistema capitalista é inaceitável, pois se baseia na exploração de um ser humano por outro; na propriedade privada, que leva ao acúmulo de capital de uns e à miséria de outros; na separação entre trabalho manual e trabalho intelectual; na desvalorização do ser humano; na troca e na competição desenfreada; no monopólio dos poderosos; e no dinheiro como valor máximo das relações. Na sociedade capitalista, segundo Marx e Engels, o ser humano reduziu-se a mercadoria, a instrumento dos meios de produção, ou seja, instru262


mento das máquinas e escravo do capital. Além da exploração instalada pelos donos dos meios de produção, Marx enxerga uma perversidade ainda maior nesse sistema: a subordinação do trabalhador à máquina. Não é o trabalhador que comanda a máquina, submetendo-a ao seu ritmo, mas o contrário: ele submete seus movimentos a ela. Em outras palavras, o ser humano na sociedade capitalista transformou-se de fim em meio, de pessoa em instrumento de um processo impessoal. Marx e Engels garantem que a sociedade capitalista divide-se cada vez mais em duas classes distintas e antagônicas entre si: a burguesia e o proletariado. A burguesia nada mais é do que a classe dona dos meios de produção e empregadora de assalariados que, além disso, tem o poder político, pois domina inclusive as forças do Estado. O proletariado, ao contrário, é a classe dos assalariados que não têm os meios de produção próprios e são forçados a vender sua mão de obra. Para os dois pensadores, o Estado, na sociedade capitalista, não surgia como representante de toda a sociedade, do povo, mas sim para proteger os donos do capital e legalizar a exploração e a propriedade privada. O Estado se converteu em força especial dos donos do capital para reprimir as massas trabalhadoras. A burguesia não pode dispensá-lo, pois necessita dele para conter o proletariado, reprimindo o trabalhador e mantendo-o afastado da política. Segundo Marx e Engels, a classe burguesa transformou a sociedade de forma profunda. Essa classe criou os grandes centros urbanos; promoveu o aumento das populações das cidades em relação à população do campo; centralizou em suas mãos os meios de produção e a propriedade – e, portanto, o capital; controlou os poderes políticos; subordinou a vontade de todos à sua vontade. Mas os operários poderiam se unir naturalmente para reivindicar seus direitos, se organizar, ganhar consciência de classe e da sua própria missão. Os dois autores indicam o papel histórico da classe operária, que deve se mobilizar para mudar as condições de vida às quais estava submetida. E, mais do que isso, a classe operária pode levar à superação da milenar sociedade dividida em classes sociais. No livro O manifesto comunista, Marx e Engels chegam a afirmar que a vitória do proletariado perante a burguesia seria inevitável e aconteceria logo. Os proletários construiriam então uma sociedade comunista, cujo caminho é apontado pelos autores. Seus antecessores, os socialistas, segundo os dois pensadores, já tinham feito isso e tinham grandes méritos por verem os antagonismos de classes e as contradições e injustiças da sociedade capitalista. No entanto, o principal problema era que resvalaram na utopia, pois souberam fazer a crítica, mas não mostraram os caminhos para sua superação, já que não entenderam as verdadeiras leis do sistema capitalista. Marx e Engels teriam descoberto as leis do capitalismo e, portanto, puderam enxergar seu desenvolvimento e propor as soluções. Em suas obras aparece uma das críticas mais contundentes ao pensamento utópico. 263


Depois do fim da sociedade capitalista, surgiria a sociedade comunista. Mas Marx e Engels não se aprofundam muito em como seria essa sociedade. Mesmo porque ela seria realizada por etapas. A primeira seria a ditadura do proletariado que, no princípio, o colocaria no poder, concentrando todos os instrumentos de produção e o Estado em suas mãos. Isso teria de acontecer de forma violenta, porque os burgueses não aceitariam perder o poder e deixar o controle. Nessa sociedade, ainda haveria divisões sociais e divisões do trabalho. Seria uma fase de transição e, com o tempo, viria a segunda etapa, em que a sociedade burguesa cederia lugar a uma associação livre entre as pessoas, desaparecendo o antagonismo entre as classes. Na sociedade comunista, não haveria mais propriedade privada nem divisão da sociedade em classes distintas e antagônicas. Não haveria exploração nem alienação do trabalho, pois não haveria mais os donos do capital de um lado e os trabalhadores venPôster de propaganda comunista de 1918: O czar, o dendo sua mão de obra do outro. O Estado também padre e o homem rico. desapareceria. Os bens seriam coletivos, as pessoas cuidariam da sua vida social e política, todos viveriam de forma justa e igualitária. A divisão, a exploração, os conflitos entre os seres humanos e os países desapareceriam. De acordo com Marx e Engels, nesse Estado, o ser humano viveria segundo sua verdadeira essência social e livre. Para Marx e Engels, assim como para a maioria dos autores marxistas, o socialismo científico conseguiu entender as leis da sociedade capitalista e o verdadeiro movimento da História, vendo claramente as condições materiais do desenvolvimento social. Com isso, os dois previram o desaparecimento da sociedade capitalista e o surgimento da sociedade comunista. Portanto, é relativo dizer que o pensamento de Marx e Engels era utópico, pois eles realizaram uma crítica muito pertinente da sociedade capitalista. Mas, como descreveram o futuro da sociedade e o advento do comunismo sem que suas previsões se concretizassem, alguns estudiosos questionam o caráter científico dessa ideia de sociedade de igualdade e justiça, interpretando-a como uma utopia.

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Coleção Roger-Viollet /AFP

A sociedade comunista


Sociologia Interdisciplinaridade

Podemos, em relação à realidade, adotar uma postura prescritiva ou descritiva. Quando tentamos descrever a realidade “tal como ela é”, ou ainda, quando tentamos compreender os movimentos da realidade tais como eles se dão, adotamos uma perspectiva descritiva. No entanto, podemos olhar para a realidade, imaginando “como ela deveria ser”. As utopias, por exemplo, nascem dessa perspectiva. E a Sociologia? O que ela é e o que pretende? A Sociologia é uma ciência nascida no seio da Revolução Industrial, em um ambiente cheio de mudanças históricas e intelectuais complexas que atingiram a política, a economia, a religião e a cultura. Nesse contexto, foi elaborada por um grupo de pensadores que queria compreender as novas situações de existência que estavam em curso na sociedade. A Revolução Industrial significou, além da introdução da máquina a vapor e dos sucessivos aperfeiçoamentos dos meios de produção, o surgimento da indústria capitalista e de uma nova fase da sociedade. As condições de vida tinham se modificado profundamente, produzindo fenômenos sociais absolutamente novos, que mereciam ser analisados e entendidos pelas pessoas daquele tempo. A Sociologia surgiu para tentar entender todas essas mudanças de forma científica. Segundo seus iniciadores, ela deveria ser bem articulada como ciência, de forma a evitar fantasias e divagações utópicas, distantes da realidade concreta. Assim, a Sociologia estruturada como ciência também foi, de certa forma, uma reação ao pensamento utópico. Além de ser fruto da Revolução Industrial, ela decorre da construção do pensamento científico que vinha se estruturando na Europa desde o século XVI. Como vimos anteriormente, nesse período, as formas do conhecimento começaram a modificar a explicação racional da vida e a aplicação da observação e da experimentação, ou seja, o método científico começou a ser usado para explicar os fenômenos da natureza, da vida e do ser humano. O predomínio do pensamento científico possibilitou o surgimento da Sociologia como o estudo da sociedade. Florestan Fernandes, um dos principais sociólogos brasileiros, diz que a Sociologia como forma de explicação científica do comportamento social e das condições sociais humanas é um produto do conhecimento moderno. Nesse sentido, vários pensadores ajudaram a estruturar o pensamento sociológico, como Charles Montesquieu, Saint-Simon, Robert Owen, William Thompson, Jeremy Bentham. Mas a Sociologia como disciplina e ciência foi criada mesmo pelo francês Auguste Comte, com a finalidade de compreender as leis sociais, a ação e a vida dos seres humanos diante de uma nova sociedade industrial e tecnológica. Para ele, a sociedade, que tinha passado por duas grandes revoluções, estava desestruturada, confusa e vivendo sem regras. A Sociologia viria cumprir o papel de Coleção Roger-Viollet/AFP

Sociologia

Gravura de Auguste Comte, criador da Sociologia como ciência.

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Bettmann/Corbis

ordenar e organizar a nova sociedade. Mas foi Emile Durkheim, um sociólogo e discípulo de Comte, que contribuiu decisivamente para a estruturação da Sociologia como uma ciência moderna que pudesse captar as leis de associação e dissociação dos seres humanos. Ele pretendia que o conhecimento social estivesse sob uma forma rigorosa e pudesse elaborar teses seguras sobre a sociedade. Durkheim queria que o conhecimento sociológico passasse pelo processo de verificação e comprovação. Assim, a Sociologia possibilitaria ao ser humano conhecer melhor a realidade e agir sobre ela de forma mais acertada, pois o trabalho do sociólogo não é apenas relatar e descrever, mas, antes de tudo, explicar e elaborar conhecimento. Ao contrário do que os defensores do capitalismo afirmam – que a liberdade de mercado produziria a prosperidade para todos Retrato do francês Emile Durkhein

O capitalismo no mundo globalizado Caio Guatelli/Folha Imagem

–, em pleno século XXI, temos dois terços da população mundial em estado de miséria. Diversas causas podem ser apontadas para essa situação; a principal, entretanto, de acordo com os críticos desse sistema, é que se trata de um sistema apoiado na exploração, deixando necessariamente grandes massas excluídas dos benefícios a que teriam direito. Atualmente, com a globalização – que é, segundo dizem alguns, apenas a continuidade da colonização que países euroA imagem mostra um prédio elegante, suntuoso, ao lado de uma peus exerceram sobre países da favela, exemplo das contradições do mundo globalizado. América Latina, África e Oriente –, a exploração se dá em grandes massas supranacionais. As empresas também se tornaram transnacionais, de modo que o mundo se transformou em um só mercado, unificado, do sistema capitalista. Como pagar salários razoáveis, respeitar leis de não agressão ao meio ambiente, 266


manter uma jornada de trabalho mais curta e combater o trabalho infantil diminuem o lucro das grandes corporações (empresas gigantescas integradas por inúmeras outras empresas menores), a produção industrial tem usado um artifício: está se deslocando dos países onde há grandes conquistas trabalhistas, nos quais as leis protegem os direitos humanos e dificultam a exploração escravista dos trabalhadores, para países cujo Estado compactua com a exploração absurda dos trabalhadores.

Por todo o mundo, principalmente no Oriente, sobretudo na China, surgem denúncias de trabalho escravo adulto e infantil, nos quais as pessoas são submetidas a condições subumanas, com salários irrisórios ou mesmo inexistentes. Com isso, os produtos são barateados ao extremo, são lançados no mercado mundial, dando lucros exorbitantes às transnacionais. É como se o mundo tivesse se tornado o quintal das grandes corporações: elas têm o monopólio da produção e procuram o local mais vantajoso para produzir, e, depois, o mais vantajoso para escoar a mercadoria. As transnacionais usam ainda os recursos naturais e humanos de diversos países, totalmente a serviço dos interesses do capital internacional. Elas despejam objetos de consumo, a maior parte baratos e descartáveis, em países que têm condição de compra, enquanto isso reduzem multidões à escravidão e à miséria. Dessa maneira, as críticas feitas pelos socialistas e anarquistas do século XIX permanecem atuais, revelando-se ainda um instrumento de análise útil e eficaz das formas de exploração capitalista. O desafio é encontrar alternativas para um sistema que se impôs no mundo todo e que, para muitos, é o único possível e condizente com a realidade humana. Esse convencimento generalizado de que o capitalismo é o sistema mais benéfico e produtivo é o que Marx chamaria de “mascaramento da realidade por meio da ideologia”. Para ele, ideologia seria um conjunto de ideias do qual a classe dominante se serve para convencer a sociedade dos benefícios dessa dominação.

O pensamento antiutópico do século XX Ficar pensando em como o mundo poderia ser melhor é algo necessário, mas não é suficiente para que o mundo, de fato, se modifique. As utopias podem orientar o homem no sentido de apontar caminhos para mudanças sociais mais radicais. No entanto, as utopias por si mesmas, desvinculadas de uma ação efetiva, são estéreis e ingênuas: não produzem nenhum tipo de melhoria nas condições reais de vida dos homens. É esse raciocínio que está na base da crítica que muitos filósofos e sociólogos fizeram ao pensamento utópico. Pode-se apontar como uma das causas (ou consequências) desse triunfo do capitalismo globalizado aquilo que se tornou conhecido no século XX como “a morte das utopias”. As críticas à utopia se tornaram de fato bastante ácidas no decorrer do século. Algumas delas vieram dos próprios autores 267


marxistas, como Georges Sorel, que viu no pensamento utópico uma ingenuidade e uma estrutura simplista na análise da sociedade. O perigo do utopismo, acredita Sorel, é se tornar algo dogmático, fechado em si mesmo e sem conexão com a realidade. Dessa forma, pode não promover mudanças na marcha da sociedade nem ameaçar o poder estabelecido.

Outro autor de influência marxista no século XX, Max Horkheimer (ver biografia no capítulo 4), da Escola de Frankfurt, esclarece que a utopia desconhece o verdadeiro estado do desenvolvimento histórico e social. Ao basear seu pensamento em algo idealizado e projetado, não consegue entender com exatidão as condições materiais e sociais dos seres humanos. Por isso, o pensamento utópico se revela ingênuo em sua proposta de mudança e transformação, embora Horkheimer reconheça que a utopia tenha um papel interessante do ponto de vista da sua análise crítica. Porém, por mais que estejam fundadas racionalmente, as análises e as propostas utópicas são a expressão dos valores e desejos subjetivos de quem as formula. Nesse sentido, sua realização se torna muitas vezes a imposição da vontade de um sujeito ou de um grupo de pessoas sobre a maioria. Karl Popper (ver biografia no capítulo 4), um dos grandes pensadores liberais do século XX, também faz uma crítica semelhante ao pensamento utópico. Segundo ele, a teoria utópica é muito atraente e convincente, mas, ao mesmo tempo, muito perigosa. O Estado e a sociedade utópicos têm como objetivo direcionar as ações de todos os indivíduos para uma mesma finalidade impositiva. Embora estejam no cerne da utopia, não podem ser demonstrados cientificamente ou por métodos puramente racionais. Para Popper, os fundamentos do pensamento utópico não são científicos, mas verdadeiros artigos de fé. A ingenuidade desse tipo de pensamento estaria na impossibilidade de demonstrá-lo e questioná-lo, constituindo-se, portanto, como um pensamento dogmático e autoritário. Assim, caso alguém não esteja de acordo com os modelos de Estado e sociedade propostos, será forçado a pensar de acordo com eles, pois a utopia não pode ser questionada. Popper diz que existiram basicamente dois tipos de imposições do pensamento utópico: 1) a imposição física, isto é, aqueles que se posicionavam contra a utopia sofriam repressões e ações violentas; 2) a imposição de violência moral, ou seja, os que discordavam do sistema tinham violentadas as suas consciências. Um dos principais alvos da crítica de Popper é o próprio marxismo, que tinha se tornado dogmático e inquestionável. Segundo ele, Marx e Engels queriam impor um modelo social conforme seus desejos e descreveram uma sociedade ideal e perfeita, mas que seria inatingível, pois qualquer perfeição social seria inalcançável por natureza. Os dois, na opinião de Popper, ainda propuseram a insensatez de se sacrificar por essa sociedade irrealizável. O movimento histórico e social jamais pode ter uma finalidade estática. O pensamento de origem marxista perseguiu e procurou destruir todos os outros pensamentos rivais, utilizando de violência para isso. O livro A República, de Platão, também foi criticado por Popper, que destacou que o filósofo grego havia criado um tipo ideal de sociedade com um Estado totalitário. 268


AFP-PHOTO

Coleção Roger-Viollet/AFP

No século XX, surgiu uma literatura que também pode ser considerada antiutópica por descrever de forma pessimista o futuro das sociedades ­tecnológicas e consumistas. Nessas antiutopias, todas as descrições de uma sociedade futurista, herdeira do mundo atual, são quase sempre negativas e pessimistas. As utopias criticavam os problemas sociais e propunham sociedades transformadas para o melhor; de maneira oposta, essas literaturas apresentaram tais problemas, mas prevendo que as pessoas se conformariam com eles e se adaptariam a sociedades autoritárias e perversas sem terem o desejo de mudança. Duas obras muito conhecidas no século XX fizeram sucesso com esse gênero literário: O admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932) e 1984, de George Orwell (obra publicada em 1948). As duas descrevem o mundo submetido a um sistema de repressão e autoritarismo, bem como a um poder totalitário que se servia da Ciência, da técnica e da informação para controlar a vida das pessoas. A engenharia genética, por exemplo, ajudaria a criar diversos tipos de seres humanos, com diferentes qualidades, adaptados a diversos tipos de trabalho e serviço. O ser humano nessas sociedades estaria sujeito a todos os tipos de manipulação e controle e perderia sua individualidade e seus sentimentos. A liberdade praticamente não existiria e os indivíduos não teriam nenhuma condição de se oporem aos sistemas autoritários. A aniquilação das pessoas seria praticamente total, o pensamento seria controlado de forma brutal e ninguém seria capaz de se emancipar. Esse tipo de análise surgiu no contexto dos regimes totalitários que imperavam na Europa na primeira metade do século XX e das tristes experiências das pessoas com esses regimes. Podemos citar as sociedades

Cena do filme 1984, dirigido e escrito por Michael Radford, baseado na obra de George Orwell, de 1984.

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Aldous Huxley, autor, entre outras obras, de Admirável mundo novo, no festival da cidade de Vaison La Romane, França, 1954.


fascistas, nazistas, comunistas e militaristas nas quais o indivíduo valia muito pouco e havia, em muitos casos, perdido a dignidade humana. Esses livros realizaram uma denúncia profunda dessas sociedades, expressando o temor de que a Ciência e a tecnologia fossem usadas como forma de domínio e controle humano e social.

Coleção Roger-Viollet/AFP

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Os autores contestavam que a crença ingênua de que o progresso levaria à emancipação do ser humano, resolvendo todos os seus problemas. Pelo contrário, poderia levar a problemas maiores e mais graves para a vida humana. E, como consequência, poderia ocorrer: a perda quase completa da liberdade e a construção de sociedades absurdamente totalitárias, pois os homens não teriam forças para superar essa situação e cairiam em um grande conformismo.

Coleção Roger-Viollet/AFP

Stalin em Moscou, também na década de 1930.

Hitler discursando na Alemanha, na década de 1930.

Benito Mussolini, em Roma, 1945.

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Claudia Guimarães/FolhaImagem

Texto original

O geógrafo Milton Santos durante um debate em São Paulo, na década de 1990.

A perversidade sistêmica Milton Santos

S

eja qual for o ângulo pelo qual se examinem as situações características do período atual, a realidade pode ser vista como uma fábrica de perversidade. A fome deixa de ser um fato isolado ou ocasional e passa a ser um dado generalizado e permanente. Ela atinge 800 milhões de pessoas espalhadas por todos os continentes, sem exceção. Quando os progressos da medicina e da informação deviam autorizar uma redução substancial dos problemas de saúde, sabemos que 14 milhões de pessoas morrem todos os dias, antes do quinto ano de vida. Dois bilhões de pessoas sobrevivem sem água potável. Nunca na história houve tão grande número de deslocados e refugiados. O fenômeno dos sem-teto, curiosidade na primeira metade do século XIX, hoje é fato banal, presente em todas as grandes cidades do mundo. O desemprego é algo tornado comum. Ao

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mesmo tempo, ficou mais difícil do que antes atribuir educação de qualidade e, mesmo, acabar com o analfabetismo. A pobreza também aumenta. No fim do século XX, havia mais 600 milhões de pobres do que em 1960; e 1,4 bilhão de pessoas ganham menos de um dólar por dia. Tais números podem ser, na verdade, ampliados porque, ainda aqui, os métodos quantitativos da estatística enganam: ser pobre não é apenas ganhar menos do que uma soma arbitrariamente fixada; ser pobre é participar de uma situação estrutural, com uma posição relativa inferior dentro da sociedade como um todo. E essa condição se amplia para um número cada vez maior de pessoas. O fato, porém, é que a pobreza tanto quanto o desemprego agora são considerados como algo “natural”, inerente a seu próprio processo. [...] Vivemos num mundo de exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do modelo neoliberal, que é também criador de insegurança. [...]


Ao nosso ver, a causa essencial da perversidade sistêmica é a instituição, por lei geral da vida social, da competitividade como regra absoluta, uma competitividade que escore sobre todo o edifício social. O outro, seja ele empresa, instituição ou indivíduo, aparece como obstáculo à realização dos fins de cada um e deve ser removido, por isso sendo considerado uma coisa. Decorrem daí a celebração do egoísmo, o alastramento dos narcisismos, a banalização da guerra de todos contra todos, com a utilização de qualquer que seja o meio para obter o fim colimado, isto é, competir e, se possível, vencer. Daí a difusão, também generalizada, do outro subproduto da competitividade, isto é, a corrupção.

que pretende até o fim das especializações de funções, que a simples divisão de trabalho (esse pecado alienador para o marxismo) impõe a qualquer sociedade um pouco menos rudimentar. Na verdade, o igualitarismo real – como o prega, por exemplo, o comunismo – é incompatível com a organização social em geral (mesmo os grupos mais rudimentares têm um chefe) e, principalmente, com a organização totalitária. Numa sociedade liberal, por mais imperfeitamente que esta esteja organizada, se afirma o princípio da igualdade perante a lei e se proclama a ideia – meramente reguladora e não constitutiva – da igualdade de oportunidades. Esses valores se baseiam no reconhecimento da especificidade e singularidade de cada “eu”. Diferentes entre si, caracteriza-os o estatuto comum de liberdade, que justifica o tratamento igual a que cada um faz jus na comunidade.

Esse sistema da perversidade inclui a morte da política, já que a condução do processo político passa a ser atributo das grandes empresas. Junte-se a isso o processo de conformação da opinião pelas mídias, um dado importante no movimento de alienação trazido com a substituição do debate civilizatório pelo discurso único do mercado.

BARROS, Roque Spencer Maciel de. O fenômeno totalitário. São Paulo: Edusp, 1990. p. 721-722.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 58-60.

Para estudar os textos:

Elementos para a elaboração de uma teoria sobre o totalitarismo Roque Spencer Maciel de Barros

[…] se pensarmos na tradição das utopias totalitárias, veremos que a maior parte destas, mesmo no caso de estabelecer funções específicas para os diferentes membros, se caracteriza pelo seu igualitarismo. A “paixão da igualdade” de que falava Tocqueville […] parece mover a maioria das construções utópico-totalitárias, pelo menos no Ocidente moderno, de Morus a Marx, passando pelas diversas versões do socialismo que o marxismo rotulou de utópico, esquecido de seu próprio utopismo igualitário,

• • •

Faça uma breve pesquisa sobre os autores brasileiros dos textos, sua orientação ideológica. Anote no caderno todas as palavras que você desconhece e procure-as no dicionário. Entenda os textos parágrafo por parágrafo, relendo-os se for necessário, para a compreensão integral do pensamento de cada autor. Se houver algum conceito ou trecho que lhe pareça particularmente difícil, peça ajuda a seu professor ou consulte um dicionário de Filosofia. Os dois textos realizam uma crítica. O primeiro critica a sociedade globalizada e o segundo, as propostas utópicas. A partir de que ideias cada um deles faz a sua crítica?

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Atividades Cinema pensante • • • •

Não escreva n

o livro!

Interdisciplinaridade

Arte

A corporação (The Corporation), 2003. Direção de Mark Achbar e Jennifer Abbott. O homem que não vendeu sua alma (A man for all seasons), 1966. Direção de Fred Zinnemann, uma biografia de Thomas More. Horizonte Perdido (Lost Horizon), 1973. Direção de Charles Jarrott. Assista aos filmes e, depois, elabore uma resenha relacionando-os com a temática proposta neste capítulo.

Lanche filosófico Duas alternativas concretas para a sociedade estiveram presentes no século XX: o capitalismo internacional e o marxismo institucionalizado (por exemplo, nos países do Leste Europeu). Parecia só se poderia viver em uma sociedade que comportasse uma das duas hipóteses: liberdade com miséria, injustiças e má distribuição das oportunidades, como é o capitalismo; ou igualitarismo imposto, fechado, como foi o socialismo soviético. • Discuta em classe sobre a possibilidade de conciliar liberdade com igualdade.

A mídia em pauta Leia a notícia a seguir e procure relacioná-la com os temas debatidos no capítulo:

Ipea: 10% mais ricos têm 75% da renda do país e pobres pagam mais impostos BRASÍLIA – Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgada nesta quinta-feira mostrou que o atual sistema tributário do país faz com que os mais pobres paguem mais impostos que os mais ricos. Segundo o levantamento, os 10% mais pobres pagam 32% de sua renda em impostos e contribuições, enquanto os 10% mais ricos pagam só 22%. Já os extremamente pobres entregam 44,5% do que ganham para o Estado. O Ipea mostrou ainda que os 10% mais ricos concentram 75% da riqueza e da renda nacional. JUNGBLUT, Cristiane. A mídia em Pauta. O Globo. 15 maio 2008. Disponível em: <www.oglobo.com.br>. Acesso em: 15 jul. 2008.

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Capítulo

11

Por uma Filosofia do diálogo

Alexandra Day/Corbis

Para começar

Cartão-postal, datado de 1900, representando encontro de Romeu e Julieta.

JULIET: This but thy name that is my enemy; Thou art thyself, though not a Montague. What’s Montague? It is nor hand, nor foot, Nor arm, nor face, nor any other part Belonging to a man. O, be some other name! What’s in a name? that which we call a rose By any other name would smell as sweet; So Romeo would, were he not Romeo call’d, Retain that dear perfection which he owes Without that title: — Romeo, doff thy name; And for that name, which is no part of thee, Take all myself. ROMEO: I take thee at thy word: Call me but love, and I’ll be new baptiz’d; Henceforth I never will be Romeo.

JULIETA: Apenas teu nome é meu inimigo; Serias tu mesmo se não fosses Montecchio. O que é Montecchio? Não é nem mão, nem pé, Nem braço, nem face, e nenhuma outra parte Que pertença a um homem. Oh! Sejas algum outro nome! O que há num nome? O que chamamos de rosa Com qualquer outro nome, teria o mesmo perfume; Assim Romeu, se não te chamasses Romeu, Conservarias esta cara perfeição que possuis Sem este título. – Romeu, despe-te de teu nome; E por este nome, que não é parte de ti, Toma-me inteira. ROMEU: Tomo-te, em teus termos: Chama-me apenas de amor, e serei de novo batizado, Daqui em diante não serei mais Romeu. SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. (Tradução livre dos autores).

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AFP-Photo

O nome da rosa

Pôster do filme O nome da rosa, 1986, direção de Jean-Jacques Annaud, com Sean Connery.

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O pequeno e famoso trecho de Shakespeare nos remete a algumas questões filosóficas. Nele, observa-se que o conflito existente entre as famílias Montecchio e Capuleto, que causa de tragédias e mortes, fica esvaziado de sentido nesse diálogo entre Romeu e Julieta – o amor de um pelo outro os faz enxergar a vacuidade do ódio. Nesse mesmo trecho, ressalta-se o verso que cita que uma rosa “com qualquer outro nome, teria o mesmo perfume”: ao refletir sobre ele, podemos indagar sobre o sentido das palavras, pelas quais muitas vezes os seres humanos matam uns aos outros. O que há em um nome? O que há em uma etnia? O que há em uma verdade preconizada por alguns e rejeitada por outros? E, afinal, o que há em uma religião de tão oposto a outra? O que há em um povo vizinho do outro, habitantes ambos do mesmo planeta? Haverá algo suficiente em cada uma dessas coisas que justifique matar e morrer, perseguir e exilar, proibir e reprimir? No romance O nome da rosa, de 1980, o pensador italiano Umberto Eco – transformado em filme com o mesmo título, protagonizado pelo ator Sean Connery – ressalta essa discussão, situando-a em um mosteiro da Idade Média, mas com uma abordagem muito contemporânea. Eco é um dos expoentes da Semiótica, disciplina que estuda a arte dos sinais ou os sistemas que fazem parte da cultura humana de signos, sendo signo qualquer ente portador de informação. Para essa ciência, todo fenômeno cultural é um sistema de representação, de significação, seja esse fenômeno linguístico, musical, religioso, político ou estético. Ambientado em um momento histórico de grande repressão da liberdade de pensar e de ausência de pluralismo religioso e cultural – a Idade Média –, o romance de Eco discute a questão dos signos como se nossa imagem da realidade fosse apenas uma imagem; como se pudéssemos viajar por um mundo de representações simbólicas, que se concatenam entre si, mas que não correspondem necessariamente a uma realidade concreta. Na sua concepção, a lógica interna das relações dos signos não está na realidade: ela é apenas uma construção humana. Essa maneira de encarar os signos como destituídos de referência a uma racionalidade do real esvazia a linguagem e a Filosofia de qualquer verdade; com isso, acaba radicalmente com qualquer imposição. No final de O nome da rosa, Eco traz uma metáfora reveladora: Guilherme, em conversa com seu discípulo, diz que a verdade é como uma escada, que, depois de nos servir por algum tempo, tem de ser jogada fora. Dessa forma, o autor expõe em seu romance uma questão histórica importante, que teve consequências na Filosofia. Por causa da absolutiza-


ção de certas verdades e das exclusões feitas a quem pensasse ou agisse diferente, chegou-se a acabar com a própria noção de verdade e de valor, enfatizando, em nome das diferenças, a impossibilidade de qualquer ponto de concordância universal. O universal foi tantas vezes arbitrário, tantas vezes imposto, que alguns julgam que é preciso renunciar a qualquer universalidade para vivermos apenas no reino do singular e dos signos. Contestando a existência de verdades fixas e aceitas, cai-se muitas vezes na tendência oposta de esvaziar qualquer conteúdo e possibilidade de verdade, como faziam os sofistas. A Filosofia então se debruça sobre o veículo de comunicação – a linguagem –, e não sobre seu conteúdo. No plano da Filosofia da linguagem, ramo da Filosofia que surgiu já entre os gregos (embora com outro nome), temos no século XX algumas tendências que pretendem reduzir a própria Filosofia apenas a um problema linguístico. [...]

Destaque Um filósofo preocupado com a linguagem Um dos maiores representantes da Filosofia da linguagem foi o austríaco Ludwig Wittgenstein, radicado na Inglaterra. Seu pensamento passou por várias fases, mas uma característica permanente em sua obra é a crítica à Filosofia tradicional e o enfoque no problema da linguagem. Para ele, todos os problemas da Filosofia são apenas linguísticos, deixando de lado os objetos metafísicos, éticos, teológicos e outros, que haviam constituído a busca filosófica em todos os tempos. Em relação à obra, Sobre certeza, publicada postumamente, o Dicionário de Filosofia de Cambridge diz:

As notas finais de Wittgenstein ilustram vivamente a continuidade de suas preocupações básicas por meio de todas as mudanças pelas quais o seu pensamento passou. Pois elas revelam mais uma vez como ele permaneceu cético em relação a todas as teorias filosóficas e como entendeu o seu próprio empreendimento como uma tentativa de minar a necessidade de qualquer uma das teorizações. As considerações de Sobre certeza são evidentemente dirigidas tanto contra os céticos filosóficos como contra aqueles filósofos que querem refutar o ceticismo. Contra os céticos filosóficos, Wittgenstein insiste que existe um conhecimento real, mas que esse conhecimento é sempre disperso e não necessariamente confiável; consiste em coisas que ouvimos e lemos, em que fomos treinados, e nossas modificações dessa herança. […] Mas Sobre certeza 276


também sustenta que é impossível refutar o ceticismo apontando para proposições que são absolutamente certas, como fez Descartes quando declarou “Eu penso, logo existo” indubitável […]. O fato de que tais proposições são consideradas certas, argumenta Wittgenstein, apenas indica que elas exercem uma função normativa, indispensável em nosso jogo de linguagem. Elas são o leito do rio pelo qual flui o pensamento do nosso jogo de linguagem. Não se pode considerar que tais proposições expressem verdades metafísicas. Também aqui a conclusão é que toda a argumentação filosófica precisa chegar a um fim, mas que o fim de tal argumentação não é uma verdade absoluta, evidente por si mesma, e sim certo tipo de prática humana natural. crédito obra

AUDI, Robert (Dir.). Dicionário de filosofia de Cambrigde. São Paulo: Paulus, 2006. p. 999.

Para mostrar como a percepção se relaciona mais com a figura criada em nossa mente do que com o objeto em si, Wittgenstein utilizou uma figura semelhante a esta, na qual o desenho pode ser visto como um pato (à esquerda) ou como um coelho (à direita). A imagem foi baseada no célebre desenho de Josef Jastrow e publicada na revista Fliegende Blätter, em 1892.

O conceito de tolerância Quando nos dispomos a escutar opiniões e pensamentos distintos dos nossos, nos abrimos ao diálogo realmente franco, e conseguimos relativizar, o que é o oposto total do que faz o intolerante. Não é raro observar que o intolerante se utiliza da violência para coagir os que não compartilham da mesma opinião que ele. Os extremos do esvaziamento de verdades, de conceitos e de realismo não impedem que permaneçam nas propostas éticas e nas críticas políticas da Filosofia do século XX conceitos que se pretendem universais e verdadeiros. Relativizar as verdades de cada um, respeitando-se as diferenças, estimula a ter como valores absolutos a liberdade e a tolerância. O princípio da tolerância, presente na cultura ocidental, constitui um dos eixos de sustentação do pensamento moderno e contemporâneo. Esse princípio nasceu no Ocidente europeu como um elemento regulador fundamental nas relações entre pessoas e ideias diferentes. As primeiras 277


Bridgeman Art Library, Londres, Inglaterra

reflexões a respeito da tolerância começaram a surgir na literatura após a Reforma religiosa, pois, com a divisão do mundo cristão entre católicos e protestantes, apareceram vários conflitos e lutas religiosas entre os adeptos dessas duas correntes. Pensadores do século XV e XVI viram a necessidade da construção de um diálogo pacificador entre os cristãos católicos e os reformadores para que houvesse uma convivência pacífica entre as diferentes confissões religiosas.

S. Domingos presidindo o auto de fé, de Pedro Berruguete, 1475. A Inquisição foi instituída pelo papado para reformar ou punir heréticos.

As várias formas de tolerância Embora o conceito de tolerância no Ocidente tenha a sua primeira versão histórica em termos religiosos, essa ideia assumiu diferentes formas ao longo da história do pensamento ocidental. A tolerância passou a ser vista como a coexistência pacífica entre crenças religiosas ou tendências políticas; como respeito às minorias étnicas, raciais, linguísticas (nesse sentido, passou a ser encarada também como a convivência com todos aqueles que consideramos “diferentes”, como os homossexuais, os deficientes etc.); e como respeito do cidadão europeu aos cidadãos não europeus. Desse modo, convém notar que o problema da tolerância assumiu a forma de respeito, por um lado, às crenças e opiniões divergentes e, por outro, àqueles que são diferentes por razões físicas, geográficas, sociais e culturais. 278


Bridgeman Art Library, Londres. Inglaterra

Gabinetto Nazionalle delle Stampe, Roma, Itália.

Litografia representando Giordano Bruno, importante humanista do Renascimento, que defendia uma nova visão do Universo e do ser humano. Por defender essas ideias, foi condenado pela Inquisição a morrer na fogueira.

Obra representando Erasmo de Rotterdam, baseada no retrato de Hans Holbein, o Jovem, 1523. Ele se tornou um dos mais famosos sábios europeus devido à sua vasta produção literária, que inclui uma nova edição filológica do Novo Testamento grego, em 1516.

Duas figuras ligadas por uma grande amizade se juntaram para defender a tolerância na Europa do Renascimento: o holandês Erasmo de Rotterdam (veja biografia no capítulo 7), que anunciava ideias pacifistas e ridicularizava o fanatismo intolerante, e o inglês Thomas More, estudado no Capítulo X. Erasmo escreveu um manifesto em louvor da paz e da tolerância entre os povos, em sua obra A guerra e a queixa da paz. Já More aborda a questão da tolerância em seu livro Utopia, no qual critica os conflitos provocados pelas divergências entre as diferentes religiões. Ao descrever sua sociedade imaginária, o autor atribuiu um importante papel à tolerância religiosa. More reconhece que a melhor forma de relação entre as religiões seria o diálogo racional, polido e sereno. Se alguém quisesse convencer o outro de sua religião deveria tomar como ponto de partida a demonstração racional dos princípios religiosos, mas, caso não conseguisse convencer o outro de suas ideias mediante o diálogo fraterno, jamais deveria utilizar a violência, a força ou qualquer outro tipo de afronta ou perseguição pessoal. Sob muitos aspectos, a ilha Utopia de More era um lugar muito tolerante. No entanto, sua obra não defendia a liberdade pessoal de escolha no tocante a duas posições: 1) as crenças que ensinam a ideia de que não existiam Deus e alma; 2) o uso da violência e da força para convencer os outros de suas ideias. Essas duas posturas não mereceriam respeito e liberdade, já que, segundo o autor, atentavam contra a dignidade humana. É necessário dizer que a defesa da tolerância religiosa e de pensamento feita por More causou duras reações por parte dos partidários da intolerância. Alguns teóricos chegaram a defender a ideia de que a tolerância religiosa era uma “armadilha de Satanás”, que não queria que a verdade prevalecesse. Mas, além de More, outros teóricos de seu tempo realizaram a mesma defesa. 279


Montaigne e Locke: defensores da tolerância Em 1580, o pensador francês Michel de Montaigne escreveu um ensaio com o título Liberdade de consciência no qual afirma que a raiz da intolerância está na convicção de alguém ou de um grupo de possuir a verdade absoluta e todos os outros serem considerados equivocados por pensar de outra maneira. Para ele, a convicção de se possuir a verdade pode ser falsa, pois não se tem a segurança de que se chegou à verdade de fato e muito menos de que ela seja absoluta. Então seria um erro perseguir alguém em nome de uma pretensa verdade. Desse modo, seria perfeitamente possível existirem diferentes denominações religiosas, defendendo ideias diversas e coexistindo pacificamente. Isso quer dizer que, um ser humano tolerante não é aquele que abre mão das convicções pessoais para rapidamente aderir às opiniões alheias. O que, de fato, caracteriza o sujeito tolerante é sua capacidade de conviver, de forma respeitosa, com as diferenças nos planos: religioso, moral e político. Michel de Montaigne (1533-1592) É considerado um dos grandes pensadores do seu tempo. Possui uma obra pouco sistematizada, em forma de ensaios, e não de extensos tratados. Inspirou-se na filosofia dos gregos antigos e deles herdou uma filosofia cética. Diante de uma cultura europeia tão plural e diversificada em valores e ideias, assumiu a posição de que a única certeza que se pode ter é a de que nada sabemos. Segundo ele, o conhecimento humano não é confiável, porque é influenciado por muitos fatores. Sua obra mais importante é Ensaios.

John Locke, nesse sentido, é muito pertinente quando relaciona tolerância à liberdade de pensamento. Cem anos depois da morte de More, Locke também foi considerado um dos maiores teóricos da tolerância. Ele escreveu em latim, no ano de 1689, um ensaio que se tornou um clássico: Epístola sobre a tolerância. A obra foi desenvolvida com o objetivo de mostrar que a sociedade é formada para defender os bens do cidadão, que, para ele, seriam a vida, a liberdade, o bem-estar físico e material. A tolerância era fundamental na vida das pessoas para a preservação da liberdade. Assim, nenhuma instituição ou pessoa teria o direito de suprimir a liberdade de consciência e de pensamento das outras. Nesse caso, a tolerância não implica a renúncia das ideias e convicções por parte de ninguém, mas pressupõe que é preciso respeitar e salvaguardar a liberdade de pensamento de todos como um direito inalienável e, assim, aceitar as divergências tanto religiosas como políticas. Para Locke, as instituições religiosas devem ser reuniões de pessoas livres que buscam servir a Deus de forma espontânea. As pessoas que acreditam em alguma verdade religiosa e querem fazê-la prevalecer, não podem agir por meio da violência. A coação não é um instrumento eficaz para convencer os outros da verdade, e ninguém deve aceitar uma ideia por meio da força, mas apenas por meio da persuasão racional, de conselhos sinceros e da exortação solidária – e, ainda assim, permanece livre para não aceitar. 280


Tanto o Estado como a Igreja devem aceitar o direito de o cidadão ser livre para pensar e julgar por si mesmo. Nenhuma dessas duas instituições teria o direito de perseguir nenhum cidadão em nome da verdade. Locke diz que a verdade tem sido pouco ajudada pelos grandes, pois estes nem sempre a conhecem e querem impô-la a todas as pessoas. O melhor seria se a verdade pudesse se defender sozinha. Ela não necessita da violência para encontrar guarida nos corações humanos, pois convence pela sua própria força de persuasão. Ela pode ser ensinada por meio da razão e da lei, não precisa da espada. Caso a verdade não consiga se esclarecer pela sua própria luz, a força de terceiros não resolverá. A tolerância é desejável, segundo Locke, por sua utilidade social e por resguardar o princípio da liberdade humana. Locke critica a intolerância e o fanatismo em nome do próprio Cristianismo, pois, para ele, o princípio da caridade cristã se opõe a qualquer violência contra o outro. Todavia, assim como More, Locke não reconhece a liberdade completa de consciência, pois nega qualquer tipo de tolerância a quem não acredita em Deus. Na concepção de Locke, se Deus não existisse tudo seria permitido. Por isso, o filósofo é contrário ao direito de os ateus terem liberdade para defender sua crença. Locke diz que os ateus não respeitam pactos, nem juramentos – que são os vínculos da sociedade humana – pois, ao eliminar Deus, derrubam e enfraquecem todas as coisas que garantem a moral. Esse era um posicionamento característico da época, que foi revisto por outros partidários da tolerância.

Os iluministas e a tolerância Será que podemos tolerar toda e qualquer ideia, toda e qualquer prática? Será que todos podem tolerar e conviver civilizadamente com pessoas que, por exemplo, não acreditam em Deus? Quando entramos no terreno religioso a problemática da tolerância se torna bastante complicada, porque esbarra em crenças muito arraigadas no ser humano. Vejamos de que forma os pensadores do século XVIII lidaram com essa questão delicada. No século XVIII, com o Iluminismo, o conceito de tolerância se tornou mais amplo do que nos séculos anteriores. As razões a favor da tolerância foram bem estruturadas pelos pensadores dessa corrente ao reconhecerem que ela deveria ser estendida a todos os sistemas filosóficos e políticos, inclusive aos que negavam a existência de Deus. Muitos iluministas consideravam que as religiões tinham superstições, que são grandes barreiras ao desenvolvimento do progresso e do pensamento verdadeiro. As religiões teriam se tornado obstáculos ao avanço do conhecimento racional e científico e, ao mesmo tempo, se transformaram em poderosos instrumentos de opressão. Nesse sentido, a intolerância também decorreria dos equívocos religiosos. Os autores iluministas acusavam as religiões de ensinar aos seres humanos a concepção de um Deus tirânico e intolerante e, com isso, contribuírem para que as pessoas fossem intolerantes umas com as outras. 281


Biblioteca Nacional, Paris, França

Ilustração representando um café europeu, feita por Erich Lessing, no final do século XVIII. Esses cafés eram locais importantes para a troca de ideias científicas e filosóficas.

Museu do Louvre, Paris, França

Nesse sentido, seria necessário ter coragem para libertar a religião dos seus erros sobrenaturais e renunciar a toda espécie de tirania religiosa. A religião precisaria passar por um processo de racionalização. A razão deveria substituir a superstição como fundamento da religião e de qualquer tipo de conhecimento. O espírito crítico relacionado à religião e à intolerância foi a tônica do pensamento iluminista. O mesmo tom de criticidade se estendia ao pensamento político, filosófico e jurídico. A tolerância e a liberdade de pensamento eram princípios que deveriam imperar em todas as relações humanas.

Pintura simboliza o momento em que Galileu é intimado pela Inquisição. O processo deixou evidente o conflito entre Ciência e Religião.

Pensadores como Holbach, Diderot, D’Alembert, Montesquieu, Rousseau e Voltaire organizaram, no seio do movimento iluminista, críticas e tentativas de racionalização da religiosidade humana. Holbach desenvolve a tese de que a religião deveria reconhecer a independência dos seres humanos quanto às suas crenças e respeitar a liberdade de consciência. Diderot acha que seria fundamental nos libertarmos de Deus para termos maior tolerância, voltando nossas atenções para a natureza e para a razão, 282


Biblioteca Nacional, Paris, França

Retrato de Rousseau em traje típico armênio, em gravura de J. B. Michel, 1765.

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e não para o sobrenatural. D’Alembert propõe a razão como fundamento da tolerância e da relação entre as pessoas. Montesquieu critica a intolerância como fruto do espírito proselitista, que está sempre querendo converter todo mundo, o que é próprio das religiões dominantes. Para ele, a intolerância tinha raízes históricas, começando pelos egípcios, que achavam que a sua religião era a única verdadeira. Esse conceito influenciou os hebreus e depois os cristãos, turvando a razão humana. Voltaire, um dos grandes iluministas, travou uma verdadeira batalha em defesa da tolerância e do pluralismo de ideias. As razões da intolerância religiosa para o filósofo estavam no fato de que a razão humana não tem condições de saber todos os segredos divinos, mas há aqueles que arrogantemente acreditam estar na posse da verdade absoluta e julgam ter o direito de perseguir os que não pensam como eles. Descreve no Dicionário filosófico que o fanatismo e a superstição nascem daquele que não sabe utilizar sua razão e seu bom senso, achando que toda a verdade está ao seu lado e sente-se no direito de ser intolerante. Voltaire diz que a intolerância se tornou uma epidemia e somente poderia ser combatida com as luzes da razão filosófica. O filósofo não culpa a religião em si pela intolerância, mas os equívocos da razão humana em achar que pode saber tudo sobre a divindade e impor uma verdade única a todos os outros. Os grupos humanos não têm o direito de cada um do seu lado dizer: as minhas ideias e as do meu grupo são as únicas verdadeiras e as prediletas de Deus, e as dos outros grupos são odiosas. Na visão de Voltaire, a intolerância é o pior dos males da humanidade e a tolerância, o maior dos benefícios. Ele parte do princípio de que todas as pessoas têm muitas fraquezas e erros, por isso, devem se perdoar mutuamente. O filósofo condena as guerras religiosas entre os cristãos protestantes e católicos, afirmando que a religião cristã deveria ser a mais tolerante do mundo, pois Jesus nunca referendou e praticou nenhum ato intolerante. Segundo Voltaire, é um crime bárbaro pessoas perseguirem outras apenas porque têm visões diferentes das coisas. Com ele, o tema da tolerância se tornou popular, já que seus escritos eram endereçados ao grande público e o autor se esforçava para mobilizar a opinião pública em torno do assunto. A influência de suas ideias nas leis posteriores que passaram a vigorar na França, sobre liberdade de culto e de consciência, foi muito importante. Entre os iluministas, a posição de Jean-Jacques Rousseau é particular. Ele parte do conceito de igualdade essencial com o objetivo de defender a diversidade. Para ele, todos os seres humanos são essencialmente bons e têm uma centelha divina dentro de si. Aquilo que provoca divergência, conflito e diferença é apenas a superfície humana. Quem atentar para aquilo que é essencial, observará uma igualdade básica que garante um elo comum entre todos. No sentido religioso, Rousseau advoga a existência de uma religião natural, que precedia as religiões institucionais históricas. O ser humano teria um sentido inato de reverência pela divindade, do qual as religiões são manifestações específicas. Mas, se nos ativéssemos a essa base comum, não haveria conflitos.


Stuart Mill e a liberdade Será que existe liberdade onde não há divergência? Pode haver liberdade em um ambiente em que as diferenças não sejam reconhecidas e legitimadas? Imagine uma sociedade na qual todos se comportem da mesma forma, pensem da mesma forma, sustentem as mesmas crenças, as mesmas posições políticas – de que forma seria a liberdade nesse caso? Vejamos o que o filósofo Stuart Mill diz sobre essa questão. Stuart Mill escreveu, em 1859, um ensaio teórico com o título Sobre a liberdade, em conjunto com sua esposa, Harriet Taylor Mill, feminista de destaque em sua época. Essa obra ressalta a importância da liberdade individual e do pluralismo de ideias. A defesa principal está em apresentar a importância para o ser humano e para a sociedade de um amplo e variado número de concepções a respeito das coisas. É fundamental que a liberdade humana possa expandir-se em diversas direções sem que seja controlada por outras pessoas ou por governos ditatoriais. Segundo os autores, nem o povo nem o governo têm o direito de exercer coerção sobre a liberdade de cada indivíduo. A diversidade e o contraste são pontos essenciais para a vida em uma determinada sociedade. Mill julga que se constitui como um verdadeiro roubo ao gênero humano impedir alguém de expor suas concepções. Para ele, caso a ideia impedida de ser exposta seja verdadeira, as pessoas foram privadas de trocar o erro pela verdade; caso a ideia barrada seja errônea, as pessoas perderam a oportunidade de perceber de forma mais clara a verdade, em comparação com o erro. Esse é o núcleo do pensamento de Mill: nenhuma ideia ou concepção deve ser impedida de ter espaço para ser defendida e de ter direito a voz, evitando-se dois tipos de silenciamento: 1) os causados por qualquer tipo de tirania advinda dos indivíduos ou dos governos contra a possibilidade de expressão e liberdade de pensamento; 2) os baseados na opinião coletiva e no sentimento dominante, que muitas vezes exclui o outro por meio de mecanismos coercitivos ou manipuladores apenas por discordar da opinião geral. O governo e os seres humanos não são infalíveis, diz Mill; pelo contrário, a História nos mostra a fragilidade das certezas humanas. A intolerância a ideias sábias e nobres foi constante em todas as épocas. Nesse sentido, personalidades eminentes assumiram muitas vezes ideias errôneas e se sentiram no direito de perseguir outras pessoas. As perseguições ocorriam por professarem opiniões elevadas e verdadeiras, mas contrárias às da maioria. Por esse grave equívoco, a sociedade deveria admitir a livre discussão de todos os assuntos, a diversidade de opiniões e o debate livre. Sua tese é a da coexistência livre e pacífica da divergência. Para Mill, mesmo que haja um único indivíduo em condições de questionar determinadas certezas aceitas pela maioria, ele deve ter o direito de defender suas ideias sem ser perseguido. A discussão deve existir sempre e sobre todos os assuntos que ainda possam ser colocados em dúvida. 284


Coleção Mary Evans Picture Library

Deixar de reconhecer que alguém tenha o direito de pensar, apenas porque a maioria o considera equivocado e tolo, constitui crime contra o ser humano e sua liberdade de consciência, pois a maioria não pode ser considerada infalível.

Obra representando Mill e as sufragistas. O pensador era defensor dos direitos das mulheres ao lado de sua esposa, a feminista inglesa Harriet Taylor Mill.

Segundo o pensador inglês, os homens gastaram muito tempo tentando combater as opiniões contrárias, sejam políticas, religiosas, jurídicas etc., sem procurar entender ou valorizar a importância da diversidade de ideias, do livre debate de opiniões e da tolerância em relação ao outro. Para ele, a divergência pode ser importante por dois motivos: 1) muitas vezes, as ideias divergentes podem ser complementares, isto é, cada uma pode estar com parte da verdade e se aproximar mais dela em conjunto do que separadas. Mill utiliza um exemplo interessante, dizendo que as massas muitas vezes têm opiniões verdadeiras, porém, raríssimas vezes conseguem chegar à verdade completa, dominando apenas uma parte. Às vezes, uma parte maior, às vezes uma parte menor, mas sempre uma parte incompleta e distorcida da realidade. As oposições individuais ou de uma parcela herética da sociedade conseguem entrever a parte da verdade que não foi vista pela maioria. O correto, nesse caso, não é uma parte substituir a outra no conflito de ideias divergentes, como acontece na maioria das vezes, mas reuni-las, porque poderão, em conjunto, significar uma verdade mais completa. Mill diz que quando duas ideias complementares entram em choque, a tendência é uma verdade incompleta e parcial substituir a outra verdade incompleta e parcial, mas nesse caso seria mais prudente que uma parte fosse somada à outra, produzindo uma visão mais real. 2) mesmo quando duas ideias são divergentes, é imprescindível que exista a pluralidade. A diversidade de posições é necessária para uma vida sadia em sociedade, pois cada posição pode indicar as falhas e as 285


Coleção Roger-Viollet/AFP

deficiências da posição antagônica, dando à sociedade equilíbrio de ideias e de forças. Segundo Mill, são as oposições que conservam os indivíduos e os grupos sociais dentro dos limites da razão e da sanidade. A vida é, para Mill, um delicado e sadio equilíbrio de contrastes e diferenças que deve ser preservado. Nesse caso, as divergências e as minorias não devem ser apenas toleradas, mas respeitadas, protegidas e encorajadas a se pronunciar e a participar. A verdade só tem a perder com o silêncio dos excluídos, portanto todos merecem a dignidade de serem ouvidos e respeitados em suas opiniões. Nesse sentido, defende também a participação e o direito de voz das mulheres que, historicamente, foram excluídas de qualquer possibilidade de participação, tendo muita influência de sua esposa Harriet Taylor Mill, que foi uma famosa feminista inglesa e a primeira mulher a reivindicar na Inglaterra o voto feminino.

Manifestação pelo direito de voto das mulheres, ocorrida em 5 de julho de 1914, em Paris.

A filosofia do diálogo no século XX Nos séculos XVIII e XIX, os pensadores estiveram empenhados na defesa da liberdade e da tolerância. No século XX, essa discussão ganha outros contornos, outros elementos, em função de uma nova realidade sociopolítica mundial. O século XX teve como traço importante o debate sobre a tolerância e a busca pelo respeito à pluralidade e à diversidade humanas. O projeto de Locke, Stuart Mill, Voltaire e Rousseau, que elaboraram o desenho da sociedade tolerante e do respeito ao outro, não deixou de ter importância fundamental no século XX, pois, mesmo com todo o otimismo dos pensadores dos séculos XVIII e XIX, a intolerância continuava e continua a reinar nas relações humanas; as dificuldades para aceitar a diversidade humana e o pluralismo cultural fizeram parte do contexto dos séculos seguintes até os dias de hoje. 286


Nesse sentido, vários fatores contribuíram para que a Filosofia da tolerância e do diálogo continuasse fundamental no século XX: 1) a internacionalização das relações proporcionada pela rapidez e facilidade de comunicação de um lado ao outro do planeta, o que fez com que se reconhecesse uma interdependência entre todas as partes do mundo; 2) o aprofundamento da descoberta da diversidade e disparidade entre as diversas culturas humanas, apesar de a sociedade capitalista ter promovido uma homogeneização global; 3) o movimento feminista, que passou a buscar o respeito à diversidade da mulher; 4) o movimento negro, que cresceu exigindo espaço e respeito aos afrodescendentes nas Américas; 5) outros movimentos étnicos e regionais que surgiram no mundo em luta pelo respeito à diversidade; 6) o movimento das minorias sexuais, pedindo liberdade e respeito; 7) a oposição às guerras raciais promovidas por grupos racistas no coração das nações europeias; 8) a aversão às sociedades totalitárias estabelecidas nesse século, que em nada respeitavam a liberdade individual e não toleravam a diversidade. Pode-se dizer que a experiência com o diferente foi marcante no final do século XIX e no transcorrer do século XX. Desse modo, as discussões sobre o respeito à diversidade e a necessidade de aceitar o outro foram intensas, e continuam presentes na fase do século XXI. Surgiram duras críticas àqueles que pretendiam ficar fechados em seu campo, excluindo o diferente, eriçados contra o outro. Levantou-se a bandeira de que, diante de tanta diversidade mundial, a tolerância era um dever de todos. É justamente nesse ambiente marcado pela diversidade que a necessidade de tolerância se mostra mais urgente. O fato é que toda essa discussão envolvendo a tolerância não teria razão de ser se os seres humanos não apresentassem diferentes formas de vida, diferentes maneiras de se colocar no mundo. Se todos pensassem da mesma forma, se as sociedades fossem inteiramente homogêneas, a luta pela diversidade não teria lugar.

A luta na diversidade Nas décadas de 1960, 1970 e 1980, os movimentos de reivindicação de direitos aos “diferentes” se proliferaram, pedindo tolerância e respeito à religião, às diversas etnias, à diversidade dos indivíduos, combatendo-se qualquer tipo de exclusão. Nessas décadas, criticaram-se as sociedades despóticas, que não permitiam a tolerância em nenhum sentido, e as sociedades democráticas, que concediam liberdade para um grupo ou uma parte da população, deixando outra parte excluída. Movimentos sociais e teóricos julgavam que todos deveriam ter direitos iguais de coexistência e encontrar um modo de convivência e respeito, por meio da permissão de diferentes modos de vida e de ideias. Herbert Marcuse, um dos representantes da Escola de Frankfurt e um dos principais pensadores do século XX (ver sua biografia no Capítulo 6), afirma que a repressão é uma das características mais marcantes das sociedades ocidentais. As sociedades industrializadas e tecnológicas de287


Na opinião de Marcuse, as sociedades industriais e tecnológicas do século XX mostraram a tendência de se organizar e acabar com qualquer espécie de liberdade e diversidade humanas. A dominação tende a tomar conta de todas as maneiras de viver, seja na vida privada ou pública. Nesse sentido, ela absorve qualquer tipo de liberdade e tende sempre ao totalitarismo. O filósofo pensava que a democracia ocidental é extremamente excludente do outro, pois marginaliza camadas inteiras da sociedade: o estrangeiro, o explorado e o perseguido de outras etnias e de outras cores, os desempregados e os deficientes. Isso demonstra o quanto é preciso construir novas bases de relação entre os seres humanos. No seu entender, há brechas na própria estrutura social excludente para se criar uma sociedade de cooperação livre entre as pessoas, de respeito verdadeiro às individualidades e sem repressão. Para Marcuse, a sociedade teria ainda a possibilidade de viver segundo mecanismos racionais e de tolerância universal.

Coleção Roger-Viollet/AFP

Herbert Marcuse, em 1974: para ele a sociedade ocidental estava sob constante risco de guerra e de exclusão das diversidades.

Coleção Roger-Viollet/AFP

senvolvem uma grande gama de instrumentos de opressão à liberdade do indivíduo. A sociedade capitalista do século XX, no entender do pensador, baseia-se na criação de falsas necessidades a fim de manter um sistema de mercado e de consumo, com um poderoso mecanismo de canalização da capacidade criativa e da liberdade humana para a busca de diversos tipos de lazer e entretenimento, criando um falso conceito de participação. Nessa sociedade, os cidadãos não têm liberdade, mas uma suposta liberdade, mantida pela ameaça constante de guerra e de exclusão das diversidades. A sociedade procura desenvolver maneiras de reprimir e criar uma tolerância repressiva – aquela que permite determinadas ideias e não permite outras. Toda e qualquer ideia que se oponha ao sistema de ideias dominantes nas sociedades opressoras não é aceita, ao passo que aquelas que convergem no sentido de concordar com as dominantes são aceitas e toleradas. Existe, nas sociedades do século XX, totalitárias ou democráticas, uma falsa noção de liberdade.

A filósofa Hannah Arendt considerava que a ação política devia sempre levar em conta a pluralidade de ideias, posições e etnias.

Pensadoras abrindo caminho Nesse cenário, duas mulheres influenciaram decisivamente as discussões da Filosofia do século XX: Hannah Arendt e Simone de Beauvoir (ver respectivas biografias no Capítulo 6). Hannah Arendt faz uma análise importante da política do seu século, dizendo que a essência da política é um viver entre seres humanos. Sua função principal deve ser a de otimizar e regular a relação de grupos e indivíduos diferentes no interior da sociedade. E a ação política deve sempre levar em consideração a pluralidade de ideias, posições e etnias. O respeito ao outro tem de ser a base da política. Segundo a autora, os seres humanos são plurais e diferentes, por isso a convivência entre eles, em uma determinada comunidade, é sempre com o diverso. As relações humanas devem estar baseadas no respeito à multiplicidade das vidas e das ideias. 288


As tiranias e as intolerâncias, em sua concepção, seriam evitadas se as estruturas políticas habilitassem os cidadãos a serem engajados politicamente e ativos para poderem conviver com o outro, e não ficarem isolados em guetos. Os seres humanos precisam vivenciar a experiência da pluralidade e da diferença, e a interação política ativa dos cidadãos pode conduzir a essa experiência. Segundo ela, as pessoas no século XX haviam se tornado distantes umas das outras, haviam virado verdadeiros autômatos (indivíduos que agem como máquinas), que respeitavam regras sem pensar. Eram adestradas para cumprir ordens sem raciocinar ou colocar em dúvida o poder do comandante. A passividade era a principal característica dos indivíduos do século XX, chegando ao ponto de renunciar à capacidade de pensar, agir e julgar por si mesmos. A intolerância e a falta de capacidade de conviver com o diferente eram frutos desse estado de coisas. A análise de Hannah Arendt teve por pano de fundo sua condição de pertencer à etnia judaica, obrigada a fugir da Alemanha nazista e emigrar para os Estados Unidos. Simone de Beauvoir, por sua vez, defende a liberdade da mulher de ser mulher, e não viver de acordo com as imposições masculinas. Para a filósofa francesa que influenciou vários grupos feministas, a liberdade era uma questão fundamental para todos os seres humanos. As mulheres deveriam ser respeitadas e ter poder de decisão em suas vidas, pois elas têm aceitado durante milênios a tirania imposta pelos homens sobre sua individualidade. Segundo ela, as mulheres deveriam lutar para destruir as instituições que acabam com a liberdade feminina, entre elas, o casamento. Essa sua postura de defesa da mulher, visando à ocupação de outro lugar na sociedade e na cultura, alinha Simone de Beauvoir na perspectiva da defesa da convivência social tolerante com o outro. No caso, “a outra”, uma voz feminina que nunca pôde exercer seus direitos na sociedade em que apenas os homens dominavam.

A comunicação e a tolerância Jürgen Habermas, um dos maiores filósofos ainda vivos (ver biografia no Capítulo 5), pretendeu criar uma Filosofia da comunicação. Segundo ele, o diálogo e a comunicação podem ser um meio ainda possível de criar relações tolerantes e chegar a regras que servirão como padrão para ações éticas de todas as pessoas. A sociedade deve desenvolver maneiras de criar e fortalecer um melhor entendimento e uma melhor comunicação racional entre as pessoas, o que pode contribuir para uma convivência melhor, respeitando-se as diferenças e criando uma mentalidade de concordância mais ampla em relação às necessidades humanas. A linguagem e o diálogo podem conter aspectos que melhoram as relações humanas, pois o ser humano tem a capacidade de se comunicar, desde que isso se realize a partir de uma argumentação racional. Os diferentes interesses podem ser discutidos e podem chegar a um consenso racional. 289


Passados dois séculos do Iluminismo, Habermas não é apenas uma reedição mais atual da tolerância do século XVIII. Antes de Habermas, o filósofo Max Horkheimer, também da Escola de Frankfurt (ver biografia no Capítulo 4), e o sociólogo alemão Max Weber haviam falado de uma “razão instrumental”. Para ambos, o projeto moderno de emancipação do ser humano pela razão acabou se mostrando problemático, pois a razão se tornou “instrumental”, quer dizer, um instrumento de poder do ser humano sobre o ser humano, do ser humano sobre a natureza e de controle do conhecimento, usado com finalidades extrínsecas ao ser humano. Nessa linha de crítica, Habermas propõe outro tipo de razão: a razão comunicativa, usada de forma igualitária, em que os sujeitos construam racionalmente um diálogo consensual. Jacques Derrida foi outro filósofo que realizou duras críticas às bases da Filosofia e da cultura ocidental. Segundo ele, o problema da exclusão do diferente na sociedade tem raízes antigas. A sociedade grega já havia criado um conceito de homem grego que excluía o outro, o não grego. Dessa forma, Derrida diz que o humanismo da valorização do ser humano e da sua liberdade, nascido no Ocidente, é excludente por natureza, uma vez que leva em consideração apenas o cidadão europeu, que é colocado no centro da civilização humana. E, desta forma, tudo aquilo que se afasta desse modelo de cidadão é excluído e colocado de lado. Para Derrida, deveríamos respeitar verdadeiramente as diferenças e as divergências humanas que caracterizavam os seres humanos e as culturas. O humanismo ocidental é, para ele, uma mentira, uma justificativa do europeu para excluir o não europeu, uma forma de agressão ao outro e uma prática excludente. Segundo Derrida, a construção da identidade humana ocidental e do conceito de ser humano foi concebida por meio da desumanização do outro, não ocidental. De certa forma, os europeus se tornaram humanos negando a humanidade aos não europeus. Ele acredita que a origem disso se encontra na Grécia antiga. Os gregos se afirmavam humanos negando humanidade aos bárbaros não europeus. Os cristãos preservaram esse tipo de pensamento, de forma que os europeus cristãos colonizadores negaram a humanidade aos povos colonizados. O branco europeu e os seus valores tornaram-se o centro da cultura e do pensamento humano. Esse pensamento tornou-se central na sociedade e infiltrou-se na cultura ocidental de tal forma que está presente em várias áreas, como a poesia, a Filosofia e a literatura.

AFP

Por meio das relações dialógicas, é possível conciliar liberdade individual e vontade coletiva, pois o interesse geral deve contemplar e respeitar o interesse dos indivíduos, chegando-se a um consenso.

O filósofo francês Jacques Derrida, em foto de 1993.

Jacques Derrida (1930-2004) Filósofo francês de origem argelina, considerado pósmoderno. Foi criador do desconstrutivismo, uma proposta de desconstrução do discurso filosófico, revelando-lhe outros sentidos ou mostrando que não tem consistência de verdade. Entre suas principais obras estão Gramatologia e A escritura e a diferença.

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Destaque Universalismo europeu versus universalismo universal Na mesma linha de Derrida, o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein faz uma leitura crítica dos valores europeus impostos ao mundo como se fossem valores universais. Em sua obra O universalismo europeu – a retórica do poder, ele inicia sua análise pela discussão ocorrida no século XVI entre o dominicano Bartolomé de las Casas e outro dominicano, Juan Ginés de Sepúlveda. Las Casas foi o primeiro religioso a proferir seus votos nas Américas e, no início de sua carreira, apoiava a política espanhola de escravização dos ameríndios. Entretanto, depois uma experiência espiritual, passou por uma espécie de “conversão” e começou a combater a política colonialista. Foi o primeiro europeu a criticar a imposição cultural e escravista que o projeto de colonização praticava. Contra seus argumentos, insurgiu-se Sepúlveda, a favor da política colonialista, usando o que Wallerstein chama de “a retórica do poder”. Esse episódio da história mostra como europeus se julgavam civilizados, detentores de valores superiores aos indígenas – então considerados “bárbaros, cruéis, brutos, cheios de vícios” –, achavam-se no direito de tomar-lhes as terras e impor-lhes trabalho escravo. Assim, os espanhóis justificavam o massacre de milhares de ameríndios e o extermínio de sua cultura. Wallerstein analisa o desenrolar da história dos últimos quinhentos anos, mostrando que esse discurso é recorrente como justificação de toda atrocidade. Nos séculos XX e XXI, ainda ocorre de uma cultura impor sobre a outra de forma violenta, por meio de guerras e genocídios, supostos valores de democracia e liberdade. Como exemplo, esse argumento foi utilizado pelo presidente norte-americano George W. Bush ao atacar o Iraque. Na introdução de sua obra, Wallerstein diz:

[…] o universalismo dos poderosos sempre foi parcial e distorcido, um universalismo que chamo de “universalismo europeu” por ter sido promovido por líderes e intelectuais pan-europeus na tentativa de defender os interesses do estrato dominante do sistema-mundo moderno. […] Os conceitos de democracia e de direitos humanos, de superioridade da civilização ocidental – porque baseada em valores e verdades universais – e de inescapabilidade da submissão ao “mercado” são apresentados como ideias evidentes por si sós. Mas elas não são nada evidentes. Trata-se de ideias complexas que precisam ser analisadas com atenção e despidas de seus parâmetros nocivos e não essenciais para que sejam avaliadas com sobriedade e postas a serviço de todos e não de poucos. WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 27-28.

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A revolução da internet O espaço virtual inaugura no mundo contemporâneo uma nova forma de comunicação e de diálogo. O advento da televisão foi uma revolução na comunicação, na divulgação da informação, mas, diante dela, as ­pessoas são apenas espectadores; com a internet a revolução na comunicação avança, assim como todo tipo de divulgação, pois permite a interação, a troca, a expressão do pensamento e a participação em uma rede global de forma dinâmica. Essa revolução é vista por alguns pensadores de forma otimista, como o filósofo francês Pierre Lévy , que acredita que esse espaço pode ser aproveitado para construir uma “inteligência coletiva”, uma espécie de mente cognitiva virtual, com a qual todos podem contribuir, em uma rede mundial de conhecimento e cooperação. É o que já está acontecendo, em certo sentido, por exemplo, na elaboração da Wikipedia, uma enciclopédia livre, que qualquer pessoa pode ajudar a construir, de qualquer parte do mundo. Existem também iniciativas individuais, de universidades ou governamentais que disponibilizam na rede aulas de professores de diversas disciplinas que podem ser assistidas pelo público em geral, disseminando ainda mais o conhecimento. Para Lévy, a internet possibilita o compartilhamento da memória, da percepção e da imaginação, permitindo a criação de uma espécie de cognição comum da humanidade, o que certamente poderá contribuir para uma aproximação entre as culturas e para a tolerância entre todos. Claro que alguns regimes autoritários cerceiam o acesso dos cidadãos às redes sociais e à internet em geral, como a China, a Coreia do Norte, a Síria, e o Irã, entre outros. Ainda assim, as pessoas conseguem manter contato com o exterior e até organizar atos de desobediência civil e protestos contra o governo. A Primavera Árabe, movimento que começou na Tunísia, em 2010, reivindicando liberdades civis, exigindo melhores condições de vida e criticando a truculência do poder, se espalhou pelas capitais árabes – levando a enormes transformações políticas na região e causando a queda de vários ditadores – com a ajuda das redes sociais, em grande parte utilizadas de forma clandestina.

Pierre Lévy (1956) Conhecido como o filósofo da informação, Pierre Lévy se especializou em investigar as relações entre a internet e a sociedade. Em suas obras, ele aborda o papel fundamental das tecnologias na esfera da comunicação. Seus temas principais são a exclusão do universo digital e as novas tecnologias. Ele elaborou uma tese sobre um sistema que promove o intercâmbio de conhecimentos entre comunidades, gerando uma ampla enciclopédia virtual em constante transformação. O sistema de uma região pode atender à demanda de empregos das empresas locais e próximas, criar um registro para as pessoas se organizarem e formarem cooperativas de trabalho.

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National Gallery of Art, Washington, EUA

Texto original

Busto de Voltaire, feito por Jean Antoine Houdon, de 1778.

em Portugal, na Espanha, em Goa. Atualmente limitam-se a dizer em alguns países: “Crê, ou te abomino; crê, ou te farei todo o mal que puder; monstro, não tens minha religião, logo não tens religião alguma: cumpre que sejas odiado por teus vizinhos, tua cidade, tua província”. Se fosse de direito humano conduzir-se dessa forma, caberia então que o japonês detestasse o chinês, o qual execraria o siamês; este perseguiria os gancares que cairiam sobre os habitantes do Indo; o mongol arrancaria o coração do primeiro malabar que encontrasse; o malabar degolaria o persa que poderia massacrar o turco – e todos juntos se lançariam sobre os cristãos, que por muito tempo se devorariam uns aos outros. O direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos. VOLTAIRE, François Marie Arouet de. Tratado da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 37-38.

Se a intolerância é de direito natural e de direito humano

A web, onde todas as páginas formam uma só

Voltaire Pierre Lévy

direito natural é aquele que a natureza indica a todos os homens. Educastes vosso filho, ele vos deve respeito a seu pai, reconhecimento ao seu benfeitor. Tendes direito aos frutos da terra que cultivastes com as vossas mãos. Fizestes e recebestes uma promessa, ela deve ser cumprida. Em todos os casos, o direito humano só pode se fundar nesse direito de natureza; e o grande princípio, o princípio universal de ambos, é, em toda a Terra: “Não faz o que não gostariam que te fizessem”. Ora, não se percebe como, de acordo com esse princípio, um homem poderia dizer a outro: “Acredita no que acredito e no que não podes acreditar, ou morrerás”. É o que dizem 293

O imenso hiperdocumento planetário da web integrará progressivamente o conjunto de obras do espírito. Se somarmos a isso o correio eletrônico e os grupos de discussão, a interconexão mundial dos computadores passa a adquirir um sentido diante de nossos olhos: ela materializa (de maneira certamente parcial, mas significativa) o contexto vivo, mutante, em contínua expansão, da comunicação humana. O mesmo quanto à cultura. Observemos esse processo embriogênico: a aparição de um hiperdocumento produzido e lido virtualmente por todos, a emergência de um metatexto que contém potencialmente todas as mensagens e os entretecidos. Esse objeto muito


estranho que se eleva em nosso horizonte manifesta a mensagem plural, impossível de cercar, viva, infinitamente crescente, que a humanidade envia a si mesma, o banho de sentido que ela secreta e que a nutre. Uma mensagem, uma obra, nunca é senão uma interface entre seres humanos, um meio objetivo de colocar almas em relação. E a web opera, pela primeira vez na escala da espécie, uma mediação potencial no conjunto dos sujeitos. O grande tecido dos sentidos se materializa sob nossos olhos. O Estado, as religiões, as mídias, outras formas culturais, sociais, até mesmo econômicas, pretenderam representar os grupos humanos, dar-lhes uma forma. Mas todas essas tentativas de representação são parciais e redutoras. Tememos que a internet seja irrepresentável, que a web seja oceânica e sem forma. Mas talvez isso aconteça porque elas encarnam a primeira objetivação não redutora da cultura, isto é, do contexto ou do hipercontexto mediador entre os humanos. Hoje, tornou-se evidente que a totalidade dinâmica da sociedade é irrepresentável. Virtualmente, não há senão uma única sociedade. Podemos agora perceber de modo palpável que a relação da humanidade com ela mesma não pode ser cercada, nem representada, por quem quer que seja, nem pelo que quer que seja: nada a tira do prumo, nada a domina, nada a aprisiona. É ela quem segue em direção ao divino. Na web, tudo está no mesmo plano. Como dizia um consultor americano a um dirigente da IBM, na web, uma criança se encontra em pé de igualdade com uma multinacional. E, no entanto, tudo é diferenciado. Não há hierarquia absoluta, mas cada site é um agente de seleção, de orientação, de hierarquização particular. Longe de ser uma massa amorfa, a web articula uma multiplicidade aberta de pontos de vista. Mas essa articulação opera transversalmente, como um rizoma, sem um ponto de vista superior, sem uma unificação nivelada. É um território movediço, paradoxal, tecido com inúmeros mapas, todos diferentes,

do próprio território. Cada um terá sua página, seu mapa, seu site, ou seus pontos de vista. Cada um se tornará autor, proprietário de uma parcela do ciberespaço. Mas essas páginas, esses sites, esses mapas se correspondem, se interconectam e confluem horizontalmente por canais móveis e labirínticos. O autor ou proprietário coletivo toma corpo. Como se trata de um espaço não territorial, a superfície não é um recurso escasso. Os que ocupam muito espaço na internet não tiram nada dos outros. Há sempre mais lugar. Haverá lugar para todo mundo, todas as culturas, todas as singularidades indefinidamente. [...] LÉVY, Pierre. A conexão planetária. São Paulo: Editora 34, 2001. p.139-141.

Para estudar os textos: • • •

• •

Leia os verbetes referentes aos au­tores Voltaire e Pierre Lévy. Anote no caderno todas as palavras que você desconhece e procure-as no dicionário. Entenda os textos parágrafo por parágrafo, relendo-os, se for necessário, para a compreensão integral do pensamento de cada autor. Se houver algum conceito ou trecho que lhe pareça particularmente difícil, peça ajuda a seu professor ou consulte um dicionário de Filosofia. Defina com suas próprias palavras o conceito de tolerância de Voltaire. Compare o texto de Pierre Lévy com o pensamento de Stuart Mill.

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DESTAQUE

Não escreva n

Interdisciplinaridade

História Biblioteca Nacional da Alemanha, Berlim

Uma pensadora que enfrentou a barbárie

o livro!

Rosa Luxemburgo pregava que a revolução proletária não precisava do terror para realizar seus fins, pois “ela odeia e abomina o assassinato. Ela não precisa desses meios de luta porque não combate indivíduos, mas instituições”. A filósofa foi uma das primeiras mulheres a concluir um doutorado em Ciências Políticas. Rosa enfatizava a importância da organização das mulheres para a luta pela emancipação e considerava que isso só seria possível com a revolução socialista e o fim da escravidão econômica do matrimônio.

Rosa Luxemburgo (1871-1919), filósofa, jornalista e líder marxista, tinha uma máxima que ficou famosa: “A liberdade é quase sempre, exclusivamente, a liberdade de quem pensa diferente”. Rosa foi uma revolucionária de origem polonesa que passou grande parte da vida na Alemanha e teve papel extremamente importante na política europeia no fim do século IX e no início do século XX. Um fato comprova a sua disponibilidade para o diálogo. No congresso socialista de 1904, na Holanda, Rosa discutiu várias vezes com o líder socialista francês, Jean Jaurès, por divergências de opiniões. Quando ele iria discursar em plenário, verificou-se que não havia intérpretes disponíveis. Rosa, deixando as diferenças de lado, num gesto elegante, traduziu o discurso de Jaurès do francês para o alemão. A líder das esquerdas, no fundo uma democrata, falava fluentemente polonês, francês, além de dominar o russo e o alemão. Um espírito livre, ela desafiou as normas e convenções de sua época e se tornou um ícone político e sociológico. E, embora centrada na reforma social, Rosa tinha interesses variados, que abrangiam a história, a literatura, a música e até a botânica. A filósofa foi uma das primeiras mulheres a concluir um doutorado em Ciências Políticas. Ela enfatizava a importância da organização das mulheres para a luta pela sua emancipação e considerava que isso só seria possível com a revolução socialista e o fim da escravidão econômica do matrimônio. 295


E também avaliava a necessidade de estabelecer-se como uma das principais dirigentes políticas da época. Isso, num período em que as mulheres nem tinham direito a voto em grande parte das nações. No Brasil o voto feminino só começou a vigorar a partir de 1932. Em alguns outros países, esse direito para a mulher só chegou na década de 1940, no caso da Argentina, e na década de 1970, nos casos de Suíça e Portugal. Rosa Lowenstein Luxemburg nasceu em Zamost, uma cidadezinha polonesa sob domínio da Rússia czarista. Quando bem pequena, sofreu uma doença que afetou os quadris e, como não foi tratada adequadamente, ficou manca para sempre. Tinha uma irmã que também mancava e três outros irmãos, esses sem problemas físicos. A insurgente política não era modelo de beleza, e, além da dificuldade para andar, tinha nariz comprido e a cabeça grande para um corpo pequeno. Mas, quando conversava, fascinava os homens com sua graça, vitalidade e paixão pelos ideais revolucionários. Era uma aluna brilhante, que amava a poesia e a música alemã. Vários intelectuais ficaram seduzidos por ela, que acabou se apaixonando por Leo Jogiches, um revolucionário marxista que logo percebeu o gênio de Rosa e a ajudou de todas as maneiras, até financeiramente em variadas ocasiões. Jogiches, que nasceu em família rica e tradicional, era muito inteligente e criativo. Político por natureza, foi o companheiro da sua vida, ainda que tivessem tido diversos atritos e rompimentos durante o percurso. Rosa, cujo nome gerou apelidos, como Rosa Vermelha, participou da fundação, em 1893, do Partido Social Democrata Polonês, cujo objetivo era escrever uma constituição liberal para todo o império russo, concedendo autonomia territorial para a Polônia e a implantação das teorias de Karl Marx. A sua Polônia natal, nesse período, havia passado por três partilhas sucessivas, dividida e anexada até 1918 pela Rússia, Prússia e Áustria. Os sociais democratas sofreram com os expurgos do líder soviético Josef Stalin e a agremiação foi se transformando até se tornar o Partido Unificado dos Operários Poloneses, que nos anos 1980 chegou ao poder, levando à ditadura do general Wojciech Jaruzelski, um linha-dura comandado por Moscou. Em 1990, Jaruzelski foi sucedido a contragosto pelo operário Lech Walesa, líder do sindicato Solidariedade (Solidarnosc), o primeiro não comunista em um país comunista, que lutava pela autonomia sindical e melhores condições de vida. Um sopro de liberdade varreu o país com essa eleição, que teria, provavelmente, deixado Rosa feliz da vida, pois um operário (ainda que oponente ao comunismo) chegara ao poder derrotando um general ditador. Rosa sempre esteve a favor de que a classe operária é quem deveria dirigir a luta por seus interesses. Quando a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) eclodiu, o mundo de Rosa ficou despedaçado. Tudo pelo que ela lutara estava acontecendo ao contrário: de repente, os operários de diferentes países tornaram-se inimigos truculentos. Por sua atuação contundente, a filósofa ficou presa em diversas ocasiões, assim como Jogiches e seus amigos. O revolucionário fundou, com Rosa, a amiga dela, Clara Zetkin (jornalista e feminista, autora de Lenin e a questão da mulher), Karl Liebknecht e outros, a Liga Espártaco, um grupo de esquerda do Partido Social Democrata da Alemanha, no início da Primeira Guerra Mundial. A Liga tornou-se, depois, o Partido Comunista Alemão e Rosa fez o seu último discurso no congresso de fundação do partido, no fim do ano de 1918. O grupo Espártaco liderou a revolução comunista alemã de 1918/1919, que não conseguiu sucesso. A ativista entrava na luta política, contudo, não apoiava a violência para chegar ao poder. Rosa pregava: “A revolução proletária não precisa do terror para realizar seus fins, ela odeia e abomina o assassinato. Ela não precisa desses meios de luta porque não combate indivíduos, mas ins-

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tituições; porque não entra na arena cheia de ilusões ingênuas que, perdidas, levariam a uma vingança sangrenta. Não é a tentativa desesperada de uma minoria de moldar o mundo à força, de acordo com o seu ideal, mas a ação da grande massa dos milhões de homens do povo...”. Rosa apoiou a Revolução Russa, mas alertou para os perigos da falta de liberdade, que poderia levar a uma ditadura totalitária.

A tentativa de instaurar a revolução comunista na Alemanha levou os adversários, insuflados pelo governo, a perseguir os líderes do movimento, e os Freikorps (em alemão, “corpos livres”, paramilitares direitistas dos mais violentos) perseguiram ferozmente Rosa e Liebknecht. Pouco depois de sair da última temporada na prisão, Rosa foi sequestrada, espancada e morta com um tiro na cabeça em 15 de janeiro de 1919 em Berlim e seu corpo foi jogado em um canal. Liebknecht também foi assassinado. Entre os membros dos Freikorps estavam alguns dos futuros dirigentes do regime nazista: Martin Bormann, Heinrich Himmler e Rudolf Hess. Jogiches, já marcado para morrer, se recusou a abandonar a cidade, pois queria levar os assassinos a julgamento. Ele foi morto dois meses depois de Rosa. As principais obras de Rosa Luxemburgo são: Reforma ou revolução, Acumulação do capital, ­Introdução à economia política, Greve de massas, partidos e sindicatos, A Polônia independente e a causa dos operários, Reforma social ou revolução, O socialismo e as igrejas, A crise da Social Democracia e A Revolução Russa. • Você considera que a situação social e profissional das mulheres e dos trabalhadores em geral sofreu transformações significativas no último século?

A mídia em pauta

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Junte-se a um colega e leiam a notícia a seguir. Depois, discutam o contraste entre pesquisa descrita na notícia e a visão de Pierre Lévy.

No mundo contemporâneo, as pessoas passam grande parte do tempo usando aparelhos eletrônicos em geral.

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Distração digital aumenta ignorância, diz professor

Interdisciplinaridade

Sociologia

São Paulo – Uma série de pesquisas realizadas nos últimos anos mostra que a ignorância dos jovens americanos é epidêmica. Para Mark Bauerlein, professor da Universidade Emory, em Atlanta, e autor do livro The dumbest generation: how the digital age stupefies young americans and jeopardizes our future (A mais burra das gerações: como a era digital está emburrecendo jovens americanos e ameaçando nosso futuro), o excesso das chamadas “distrações digitais” está por trás da crescente falta de cultura dos jovens. Em levantamento de 2002, 52% dos jovens escolheram Japão, Alemanha ou Itália como aliados dos Estados Unidos na 2ª Guerra Mundial. Em uma pesquisa de 1998, só 41% sabiam apontar os três poderes do governo (Executivo, Legislativo e Judiciário), enquanto 59% sabiam identificar os Três Patetas pelo nome. Mais de 64% sabiam o nome do último vencedor do American Idol, mas só 10% sabiam o nome da presidente da Câmara dos EUA. E 25% não sabiam que Dick Cheney é o vice-presidente do país. Bauerlein, também ex-diretor de Pesquisa e Análise na Fundação Nacional para as Artes, ressalta que os jovens de hoje são “tão mentalmente competentes quanto os de 20 anos atrás”, mas eles estão deixando de lado os hábitos intelectuais. “Se você entra no quarto de um jovem de 15 anos vai encontrar o iPod, TV, computador, video game, e tudo isso vem antes do livro na escala de prioridades.” De acordo com o Panorama de Aplicação dos Estudantes, 55% dos alunos de ensino médio estudam ou lêem menos de uma hora por semana. Em contrapartida, passam nove horas navegando em sites de relacionamento. Estudo de 2005 da Kaiser Foundation mostra que, em um dia, em média, jovens de 8 a 18 anos assistem à TV durante 3 horas e 4 minutos, passam 48 minutos navegando na internet, 14 minutos lendo revistas, 23 minutos lendo livro, 49 minutos jogando video game, 32 minutos assistindo a DVD. [...] “O problema”, alerta Bauerlein, “não é a tecnologia, mas o uso que se faz dela. Os adolescentes de 15 anos só se importam com o que outros adolescentes pensam. Isso sempre foi assim. Mas hoje a tecnologia permite que os adolescentes estejam em contato entre eles, excluindo os adultos, 24 horas por dia.” Os jovens ficam em contato o dia inteiro, por meio do celular, páginas da internet, mensagens instantâneas. “A tecnologia ligou os jovens de uma forma tão intensa que os relacionamentos com adultos estão diminuindo. Eles estão cada vez menos maduros, prolongando a adolescência até os 30 anos.”. Distração digital aumenta ignorância, diz professor. O Estado de S. Paulo, 2 jun. 2008.

Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultnot/agencia/2008/06/02/ult4469u26134.jhtm>. Acesso em: 12 dez. 2012.

Cinema pensante •

Interdisciplinaridade

Arte

Veja e discuta os filmes: Jefferson em Paris (Jefferson in Paris), 1995. Direção de James Ivory, com Nick Nolte. Retrata um período em que o futuro presidente dos Estados Unidos, um dos redatores da Constituição Americana, morou em Paris, como embaixador. Trata-se de história real de um dos iluministas, defensores da tolerância e da liberdade, mas que, entretanto, mantinha escravos. Rosa Luxemburgo, 1986. Direção de Margarethe Von Trotta. O filme retrata a vida da pensadora Rosa Luxemburgo e sua atuação política em meio às turbulências do início do século passado. 298


Procure saber... Faça uma pesquisa na internet com a palavra tolerância e divida os resultados, no caderno, em três itens de acordo com a importância: • conceitos; • denúncias de intolerância; • projetos de tolerância.

Para ler mais Recomendamos duas leituras importantes e interessantes: VOLTAIRE, François Marie Arouet de. Tratado de tolerância. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva. 5. ed. São Paulo: Loyola, 2007. LUXEMBURGO, Rosa. Camarada e amante. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1983

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Capítulo

12

Amor, coisa do corpo ou da alma?

Museu de Arte, Craiova, Romênia

Para começar

O beijo, de Constantin Brancusi, de 1907.

Falar de amor Não há outro tema mais discutido e proclamado em todos os países, em todas as épocas e em todas as culturas do que o amor. É próprio do ser humano amar e ser amado, buscar a felicidade na troca afetiva… O amor é o mote principal das manifestações artísticas de todos os tempos. Ele é usado como motivo de eufóricos poemas, de atitudes heroicas e, em outro extremo, de suicídios e assassinatos. O amor pode de fato levar à morte? Ou isso é apenas uma patologia? O amor é uma manifestação da alma, um sentimento imaterial, podendo se pretender eterno? Ou é apenas uma reação química, um dado passageiro, radicado no corpo? Há diferentes tipos de amor

ou todos se originam de uma só fonte? Os filósofos também participaram e participam dessas reflexões, buscando entender, afinal, o que é esse sentimento que pode tirar um ser humano do eixo e, ao mesmo tempo, trazer-lhe a maior das felicidades. Como definir o amor, como compreendê-lo, como domesticar seus arroubos e racionalizar o desejo? É possível fazer isso? É necessário e útil? Outras questões se colocam àqueles que pensam sobre o amor: O amor tem sempre uma conotação erótica? É possível amor sem sexo e é desejável sexo sem amor? Questões antigas e complexas, para as quais certamente não existe uma única resposta, mas alguns filósofos procuraram refletir sobre elas. Texto dos autores.

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O Eros platônico

Museu Metropolitano de Nova York, EUA

Na mitologia grega, Eros é o deus do amor. Hesíodo, poeta grego da Antiguidade, o descreve como um deus primordial, nascido de Caos e Gaia, a deusa Terra. Outros poetas dos mitos diziam que Eros nasceu de Afrodite, a deusa da beleza. Entre os romanos, foi chamado de Cupido e aparece sempre como uma criança alada, que flecha o coração dos humanos.

Jovem defendendo-se de Eros, de William Adolphe Bouguereau, de 1880.

Em O banquete, Platão apresenta reflexões a respeito de Eros e elabora pela primeira vez na história do pensamento um tratado sobre o amor, colocando-o como base da Filosofia. Podemos observar três partes essenciais na obra: 1) os discursos dos convidados de Agáton; 2) o discurso de Sócrates; 3) o discurso de Alcebíades, que é um elogio a Sócrates. Antes de examinar o conteúdo dessa obra, é importante ressaltar um aspecto relevante da cultura grega: era comum a prática de relações homossexuais entre homens, que tinham, no entanto, mulher e filhos. A mulher na Grécia ocupava um lugar de subalternidade e desprezo, a ponto de um dos convivas de O banquete afirmar que só o amor entre homens era de fato amor. A relação com a mulher era apenas para reprodução. Mulheres viviam encerradas no gineceu – uma parte da casa a elas reservada – e não participavam da vida política e social da pólis. Dessa maneira, a prática homossexual grega tinha uma marca de exclusão do elemento feminino. Nesse sentido, a obra traz uma novidade que contrariava os preconceitos de então: Sócrates anuncia, no banquete, que aprendera com uma mulher, a sacerdotisa Diotima, a doutrina sobre o amor que iria expor.

O banquete Agáton reuniu em sua casa alguns amigos para um banquete, a fim de comemorar um prêmio recebido por um triunfo teatral que havia conquistado. Entre os convidados, estavam Aristodemo, discípulo de Sócrates; Fedro, jovem retórico; Pausânias, rico da sociedade de Atenas; Erixímaco, médico; Aristófanes, teatrólogo e comediante famoso; Alcebíades, rico e belo político ateniense; e Sócrates, o filósofo. Pausânias propôs que, em lugar de beberem, como era de costume, cada um fizesse um discurso a Eros, o deus do amor. A sugestão foi aceita por todos. 301


O primeiro discurso, produzido por Fedro, é tipicamente retórico. Nele, o jovem Fedro diz que Eros é o deus que mais ama e mais se dedica aos homens. Eros inspira o bem e impede o mal. O jovem retórico louva o amor homossexual entre os homens, comum em Atenas e em outras cidades gregas. O segundo a discursar é Pausânias, que inicia sua fala distinguindo dois tipos de amor: o Eros celeste e o Eros vulgar. O Eros celeste participa unicamente do elemento masculino e o Eros vulgar participa do elemento masculino e feminino. O primeiro inspira um tipo de amor ao espírito do outro e só pode acontecer verdadeiramente entre dois homens. O amor, para Pausânias, acontece pelos homens fortes e inteligentes. Em sua opinião, não se deve amar apenas os corpos, e sim as virtudes do outro. Erixímaco desenvolve um discurso que pretende ser uma continuação e uma conclusão do realizado por Pausânias. Como médico, ele diz que seu antecessor tinha razão em dividir Eros em dois, no entanto, para ele, o Eros celeste também se dirigia ao corpo; a diferença é que o Eros celeste se dirigia ao corpo são e o Eros vulgar, ao corpo doente. A natureza do corpo possui esses dois tipos. A medicina é a ciência do amor aos corpos. O médico é aquele que sabe promover a harmonia entre esses dois inimigos no corpo do homem. A harmonia deriva do acordo entre esses opostos. Erixímaco conclui seu discurso dizendo que o amor corporal pode ser desfrutado, desde que seja com cautela para não afetar a saúde do corpo dos amantes. Após esse discurso, entra em cena o autor satírico Aristófanes, que inicia seu discurso exaltando o poder de Eros. Ele narra então um mito: no início dos tempos, os seres humanos se dividiam em homens, mulheres e andróginos: os homens possuíam quatro braços, quatro pernas, dois sexos masculinos; as mulheres tinham a mesma quantidade de membros e dois sexos femininos; e os andróginos tinham um sexo de cada. Esses seres primordiais, devido aos seus oito membros, eram muito vigorosos e velozes, e, por isso, quiseram atacar o mundo dos deuses e Zeus os puniu: a punição divina foi cortá-los pela metade. Isso explica por que todo ser humanos se sente incompleto e sempre busca sua outra metade. Nesse sentido, comenta Aristófanes, o amor é a força que impulsiona um ser na direção do outro. Um ser só se torna completo no encontro com o outro. O desejo dos amados é serem apenas um único ser. E a felicidade seria encontrada por aqueles que dedicassem sua vida a Eros. Outro pensador a elogiar Eros é o anfitrião Agáton, que defende a juventude eterna do deus do amor. Segundo o poeta, Eros é ágil, delicado, fino e belo. Ele é virtuoso e oposto à violência. Ele é temperança, porque vence as paixões e os prazeres. Eros é a justiça, a sabedoria, um criador grandioso, o guia das ações humanas. Sua força mantém os laços entre os seres humanos. O último pensador a discursar é Sócrates. Partindo do discurso de Agáton, Sócrates diz que a sacerdotisa Diotima tinha lhe ensinado as doutrinas 302


sobre o amor que iria expor. Em seu discurso, Eros aparece como filho de Poros (Recurso) e de Penia (Pobreza). Pelo lado paterno, está sempre arranjando meios de realizar feitos; pelo lado materno, está sempre carente de algo. Diferentemente dos discursos anteriores, em que Eros é descrito como um deus, Sócrates o apresenta como um meio-termo entre os humanos e os deuses, um gênio a quem cabe transmitir aos humanos as ordens dos deuses e aos deuses as preces dos humanos. Por sua natureza, oscila entre a tolice e a sabedoria, já que apenas os deuses eram considerados sábios.

Assim, Eros está em busca da sabedoria e, nesse sentido, sua figura se aproxima da ideia que Platão tinha sobre a figura de Sócrates: aquele que está sempre disponível para adquirir sabedoria. Eros, assim como Sócrates, é aquele que deseja o bem, o belo e a verdade. Para Sócrates, os seres humanos são movidos por um constante desejo, e isso faz parte de sua natureza. Quando se atinge o objeto desejado, chega-se à felicidade. Além disso, Sócrates, em seu discurso, traça uma evolução do amor. Os seres humanos começam amando a beleza física dos corpos, mas logo percebem que existe uma beleza mais profunda, que é a beleza das almas. O amor das almas é muito mais nobre e louvável, porque se direciona a algo que é perene e eterno. Há uma sublimação da beleza corpórea que deixa de ser a mais importante para valorizar a da alma. Esse amor à alma do outro motiva o ser que ama a cuidar e a zelar pela felicidade do amado, procurando levá-lo ao bem, ao belo e à verdade. O amor evolui do amor ao corpo para o amor à alma e atinge seu ápice no amor que se dedica à educação do outro. O amor pedagógico é a forma mais sublime em Platão. Então, Eros, além de ser aquele que deseja o saber, também é aquele que se dedica ao outro para que o outro atinja a plenitude da virtude e da verdade. O amor inicia-se no sensível e se transforma em amor filosófico-pedagógico. Essa ascensão do amor aparece em outro diálogo platônico, em que Sócrates diz ao discípulo: “Quem ama Alcebíades é o que ama a sua alma e quem ama a sua alma está perto enquanto está progredindo na virtude”. Ao longo do discurso de Sócrates, o amor tem uma dimensão de falta, de necessidade, de insuficiência e, portanto, é a base da busca, é o desejo de ter o que não se tem. Ele é a procura pela sabedoria, é a raiz de todo filosofar. O amor é um impulso para o bem e para a verdade, uma espécie de mola propulsora. Ele aparece como alavanca para vencer a morte, por meio da vontade de procriar. Mas sua dimensão mais profunda é a pedagógica, pois o amor é o que impulsiona um ser na direção do outro para levá-lo ao bem e à verdade; para educá-lo; para levá-lo a zelar pela felicidade do outro. Pode-se observar em O banquete, de Platão, um modelo desse amor pedagógico quando Alcebíades chega à casa de Agáton e, em vez de louvar Eros, louva Sócrates. Em seu discurso, Alcebíades ressalta as semelhanças entre Sócrates e Eros. Assim como Eros, Sócrates está em busca da sabedoria e educa todos aqueles que estão à sua volta. 303


Staatliche Kunsthalle Karlsruhe, Alemanha

O banquete, de Anselm Feuerbach, de 1873. A pintura reconstrói o banquete descrito por Platão.

Alcebíades era tido como um dos jovens mais belos de Atenas, o que era valorizado no mundo grego, onde o amor deveria ser direcionado à beleza corporal. Na Grécia antiga, era comum o mestre unir-se sexualmente ao discípulo e, no entanto, Sócrates diz a Alcebíades que não amava seu belo corpo, e sim sua alma. O episódio mostra que o filósofo grego procurou na sua filosofia ajudar Alcebíades em seu processo de busca da verdade. Sócrates é aquele que possui um amor pedagógico que o impulsiona a educar, esclarecer, despertar, conduzir, exemplificar, enfim, fazer o parto das outras almas. E, nesse sentido, o filósofo deserotiza o amor, colocando-o em um nível espiritual, o que causa espanto em Alcebíades e representa na Grécia uma grande revolução.

Destaque Eros, para Platão, tem um sentido de busca do preenchimento de nossa incompletude. Sobre esse tema, leia a seguir o que explica Gilda Naécia Maciel de Barros, especialista em História e Filosofia da educação na Grécia antiga:

Platão está firmemente convencido de que todo homem quer o bem, ainda que por vezes se engane na compreensão do que é o bem. Nesse movimento para o bem – porque é isso mesmo o que nos motiva – o amor atua como uma força propulsora, fecunda, que sempre nos estimula a caminhar em direção a nós próprios, à nossa verdadeira natureza, sedenta do belo, do bem e da verdade. É o amor que nos impede de esquecer, porque nos arrastando para a beleza, vivifica nossa alma, alimenta-a do que é adequado à sua natureza divina. 304


Por ele, passamos do culto a um belo corpo ao culto dos corpos belos, daí ao culto aos belos discursos e leis, ao culto das ciências e, finalmente, ao encontro com a beleza em si. O amor platônico, como vemos, está distante de Eros tirano, que nos escraviza às paixões dos sentidos e nos mergulha no abismo da desordem. Não é repressor, não tem que ver com a sublimação de instintos. É o mais precioso auxiliar daquele que quer atingir a perfeição, pois o movimenta em direção a ela. É úmido, nutriz e poderoso; faz-nos procurar o que nos falta e nos diminui. É nele e por ele que geramos o conhecimento e, por este, nos aproximamos de nós mesmos. O amor platônico é filosófico porque nos faz ver que a verdade de nossa natureza é procurar. Procurar o saber. O Eros platônico é libertador. Essa é a lição d’O banquete. Nesse diálogo, é muito significativo o que ocorre no último ato. Numa reviravolta teatral, Platão muda o rumo do discurso, que se iniciara e se desenvolvera com o elogio do amor, concluindo-o com o elogio de Sócrates. Como? Por quê? Num dado momento, o bem-nascido Alcebíades, aquele jovem ambicioso, de grande talento e rara beleza, aparece em cena de forma repentina. Viera coroar o vitorioso poeta Agáton, mas acabará por falar de Sócrates, um homem feio como os sátiros e silenos, que escondendo dentro de si imagens divinas, falava como os deuses. A entrada de Alcebíades encaminha o movimento dramático do diálogo em direção a um desfecho surpreendente. Introduz-se, então, com ela, uma aproximação entre a representação filosófica do amor e a sua encarnação, na figura de Sócrates. E onde está esta afinidade? Pois não é o amor filho de Poros e Penia? E o próprio Sócrates, que dizia nada saber, não era farto de recursos para tudo procurar, capaz de fazer nascer no espírito de seu interlocutor aquele sentimento de carência, companheiro do espanto, sem o qual não sentimos necessidade de saber e, muito menos, aprendemos a ver? No desfecho d’O banquete as imagens poderosas de Eros e Sophia encontram-se e se sobrepõem num paradigma, a figura viva e única de Sócrates. BARROS, Gilda Naécia Maciel de. Eros, a força do amor na Paideia de Platão. In: Videtur. Disponível em:

<http://www.hottopos.com/videtur18/gilda.htm>. Acesso em: 10 dez. 2012.

Uma revisão histórica e filosófica do amor O que você pode dizer de suas experiências amorosas? Elas são perturbadoras e causam sofrimento? Ou estão mais próximas dos sentimentos de confiança e de cumplicidade da amizade? É comum pensarmos que 305


o amor é aquilo que nos liga a outra pessoa, mas será possível vivenciar um amor que não esteja ligado à satisfação de nenhuma carência ou necessidade pessoal? Será possível amar a humanidade?

No livro Pequeno tratado das grandes virtudes, o filósofo contemporâneo francês André Comte-Sponville descreve o que seriam as três espécies de amor. Sua teoria, entretanto, é uma revisão das diversas ideias sobre o amor que perpassaram a Filosofia ocidental. Para ele, o amor pode se manifestar em uma dessas formas, embora elas possam se mesclar umas com a outras: Eros, Philia e Ágape. Eros é o amor que brota do desejo, da falta, da carência e está por isso filiado à ideia de Platão. O amor está sempre procurando se preencher, está em uma busca apaixonada pelo outro, querendo fundir-se em uma só pessoa. Esse amor, de caráter fortemente passional, projeta-se como um desejo de integrar-se, unir-se, tomar posse do outro. É arrebatado, compulsivo e perturbador, porque pode nos tirar do eixo da racionalidade. De qualquer forma, é um amor que sofre, que se desespera, que está sempre carente. Mas quando Eros consegue o objeto almejado, ele perde a força, esvai-se de sua intensidade. Podem advir até o desinteresse e o tédio. Por isso, Eros é sempre insatisfeito e nunca se contenta. Para que o amor dure, deve se transformar em Philia. Philia vem do grego e quer dizer, literalmente, “amizade”. Mas esse amor é mais do que amizade entre amigos. É um amor mais alegre, mais companheiro; não é amor de falta, de carência, de sofrimento. É o amor que permanece, quando algo permanece, depois que a paixão acaba entre os casais (embora possam se manter traços apaixonados permanentes em uma relação). Se uma relação amorosa não tem amizade – o que significa cumplicidade, um estar ao lado, com respeito mútuo e espaço para liberdade (que às vezes a paixão não permite, porque é próprio de Eros o desejo de possuir) –, ela não se mantém. O amor como Philia é compromisso a longo prazo, é a capacidade de assumir responsabilidades em relação ao outro que podem envolver a doação de si e a superação do egoísmo. A relação sexual pode estar presente nesse amor, entre casais, mas não é condição necessária, porque esse amor pode ser entre irmãos, entre pais e filhos, entre amigos íntimos. Aristóteles louva a amizade em seu livro Ética a Nicômaco, dizendo que ela se dá entre iguais e que é útil, agradável e boa. Consistindo-se mais em amar que ser amado, é uma condição para a felicidade humana. Ágape é um amor ainda mais nobre do que os outros. Na Philia, embora haja uma superação do egoísmo e possa haver uma doação desinteressada, uma entrega de si mesmo, ainda assim temos nela um prazer pessoal, de estar ao lado do outro, a alegria do companheirismo, a ajuda mútua, o apoio entre os que se amam em pé de igualdade, o gosto pela presença e pela existência do outro… É um amor que temos, em todo caso, por algumas pessoas mais próximas, escolhidas, especiais, com as quais temos afinidades. 306


Mas há um amor que transcende completamente todo benefício próprio, não tem nenhum resquício erótico e nenhuma seletividade do amor Philia. É o amor que Comte-Sponville chama de Ágape. É o que no cristianismo se chama “caridade”. O autor evita usar esse termo (que seria o mais adequado na tradução latina do termo grego ágape), porque “caridade” é uma palavra que foi muito distorcida em nossa cultura, muitas vezes reduzida às ações de “dar esmolas” ou “ser bonzinho”. O sentido do amor Ágape é o de amar indistintamente a humanidade, e não apenas os que estão mais próximos, chegando à capacidade de amar os próprios inimigos. É um amor que não procura para si nenhuma vantagem, a satisfação de nenhum desejo ou carência, e vai até o sacrifício de si, por qualquer outro ser humano. Não é um gostar específico de pessoas particulares, mas um amor universal por todas as pessoas. Quando Comte-Sponville se refere ao amor Ágape, está sintetizando a célebre passagem bíblica da Epístola de Paulo aos Coríntios, O amor é um dom supremo:

Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, se eu não tivesse caridade, seria como um bronze que soa, ou como um címbalo que tine. Ainda que eu tivesse o dom da profecia, O conhecimento de todos os mistérios E de toda a ciência, Ainda que tivesse toda a fé, A ponto de transportar os montes, Se não tivesse caridade, Eu nada seria. Ainda que eu distribuísse Todos os meus bens aos famintos, Ainda que eu entregasse meu corpo às chamas, Se não tivesse caridade, Isso nada me adiantaria. A caridade é paciente, A caridade é prestativa, Não é invejosa, não se ostenta, Não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, Não procura o seu próprio interesse, Não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, Mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, Tudo espera, tudo suporta. 1981. I Coríntios, 13:1-7. 307


O amor romântico

crédito obra

Temos a sensação de que o sentimento romântico é algo que brota naturalmente no ser humano e de que ele sempre foi vivenciado da mesma forma. No entanto, se adotarmos uma perspectiva histórica, podemos observar que o amor romântico, tal como nós o entendemos hoje, veremos que ele é recente e é fruto da cultura de uma época. A exaltação do amor romântico poderia ser situada historicamente no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX. Foi nesse período que se fez o movimento do Romantismo tanto nas artes quanto na Filosofia. Os poetas cantaram o amor romântico, que é, no entanto, um tipo de amor atemporal, presente em grandes símbolos da literatura universal de todas as épocas e sonhado ainda hoje por muitos como um padrão de amor. Tristão e Isolda, uma história de amor medieval, Romeu e Julieta, de Shakespeare, ou Werther, de Goethe, poeta alemão: todas essas histórias de amor acabam em tragédia, morte e suicídio. Isso ocorre porque o amor romântico sempre se revela impossível, irrealizável e só encontra um sentido na morte dos amantes. O amor romântico é avassalador, toma conta por inteiro da pessoa. Nada mais lhe importa, nem a própria vida, a não ser a vivência desse sentimento. O ser amado é idealizado, ou até mesmo sacralizado, e o estado de espírito do amante oscila entre o sofrimento trágico da ausência do amado e o êxtase da felicidade na sua presença, a um simples toque seu ou a um mero olhar. É um amor de sentimentos extremos, de arroubos ardentes. Mas é um amor que nunca se realiza, e provoca loucura ou morte. É um amor estetizado, tornado belo pela sua irrealidade, pelo seu conteúdo trágico e impalpável. É um amor que se quer eterno, atemporal e, por isso, os amantes preferem morrer a se separar e acham que seu amor se projetará na imortalidade.

Segundo alguns pensadores, mesmo na sociedade capitalista pode existir um tipo de amor sereno, que levaria a uma vida harmoniosa.

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Psicologia Limerence: uma versão atual do amor romântico

Interdisciplinaridade

Psicologia

Amor e paixão são a mesma coisa? Para alguns psicólogos esses estados ou sentimentos são distintos. O amor envolve preocupação e cuidado com o outro, enquanto a paixão nem sempre viria acompanhada desses comportamentos. A questão é controversa, polêmica. E há estudiosos que pretendem superar essa visão pela meio da pesquisa empírica. Será possível dar conta dessa questão tão complexa? Poderíamos pensar que o amor romântico está em extinção em um mundo tão pragmático como o atual, no qual o sexo se tornou descartável e relações profundas são quase inexistentes. É verdade que tragédias românticas como as descritas na literatura universal não acontecem mais – se é que aconteceram algum dia – da maneira idealizada pelos poetas. Mas o sentimento de amor romântico não está banido do coração das pessoas contemporâneas. A psicóloga norte-americana Dorothy Tennov (1928-2007), realizou uma pesquisa internacional com milhares de pacientes, entrevistando-os a respeito das suas vivências amorosas. Chegou à conclusão de que existe um estado, que ela chamou de limerence, que corresponde ao amor romântico e que independe de país, cultura, sexo… É algo universalmente humano. Ela descreve em seu livro Love and limerence: the experience of being in love (Amor e limerence: a experiência de estar apaixonado) o que seria limerence: “um estado emocional e cognitivo involuntário em que uma pessoa sente um intenso desejo romântico por outra pessoa – o objeto limerente”. Para a psicóloga, esse estado de espírito não é amor. Um dos seus argumentos principais é que o amor geralmente revela uma preocupação e um cuidado com o outro. A limerence necessariamente não tem isso. Nos pacientes analisados, Tennov constatou exatamente aquilo que os românticos descrevem nos poemas e nos dramas: o sentimento variando da extrema alegria para o extremo desespero, com os seguintes sintomas: • a pessoa está o tempo todo “invadida” por pensamentos intrusos, compulsivos a respeito do objeto de limerence; • quer a qualquer custo a reciprocidade de seu sentimento; • tem medo de ser rejeitada; • imagina fantasias constantes a respeito da reciprocidade do outro; • fantasia também a respeito das reações do objeto de limerence e tende a interpretar qualquer coisa como sinal de correspondência; • suas outras preocupações ficam de lado, pois a fixação mental é naquele assunto apenas; • tem uma espécie de fascinação pelo objeto de limerence, tornando-se cega para seus defeitos e exagerando suas qualidades; 309


tem atração sexual pelo objeto de limerence, mas não é o principal e pode nunca se concretizar como tal; • o anseio pelo outro aumenta com as dificuldades. Como se vê, a descrição psicológica do fenômeno de limerence não se esquece de nenhum traço do romantismo, descrevendo até mesmo as reações físicas dessa emoção: palpitações, ansiedade, excitação etc. Mas, o que é mais intrigante, é que esse arroubo todo tem prazo de validade. Nas observações de Dorothy Tennov, a média de duração da limerence é de 18 meses a 3 anos. Harling/Coleção Roger-Viollet/AFP

Ilustração, de 1900, referente ao Ato III da ópera Tristão e Isolda, de Richard Wagner (1813-1883). Trata-se de uma história lendária medieval, recontada em muitas diferentes versões ao longo dos séculos, sobre o trágico amor entre um cavaleiro e uma princesa irlandesa. Pode-se considerar o amor entre esses dois personagens como um tipo de amor limerence.

Eros no século XX O sexo é tema de Filosofia? Será que o sexo é uma prática restrita ao ato sexual ou é algo mais amplo? Dizemos que fazemos sexo com outra pessoa, mas será que a sexualidade se restringe ao encontro dos corpos? O que a arte e a ciência têm a ver com o sexo? Se no século XIX tudo era uma questão de romantismo, no século XX tudo passou a ser uma questão sexual. A virada de enfoque se deu a partir de Sigmund Freud, que identifica o desejo de prazer – a libido – como mola propulsora do psiquismo humano. Freud considera que a sexualidade já se mostra desde a primeira infância, quando o bebê mama no seio materno. Todo o desenvolvimento da psique do indivíduo e, historicamente, da espécie, é fruto de um processo de repressão dos instintos básicos, sobretudo do desejo de incesto. Ao analisar que o incesto é um tabu em todas as sociedades humanas, sempre reprimido, sempre condenado e até punido 310


Coleção Roger-Viollet/AFP

com a morte, Freud deduz que, para suscitar tanta repressão, é porque se trata de um instinto muito forte. Para Freud, os desejos mais profundos, instintivos do ser humano, são impossíveis de serem satisfeitos, porque senão não poderíamos viver em sociedade. Por isso, afirma que a civilização é fruto do sistema de repressão sexual e da sublimação dos instintos básicos. Para ele, sublimação é um processo de canalização do prazer para outros campos que não a mera satisfação biológica. Em seu livro O mal-estar da civilização, diz: “A sublimação das pulsões constitui um dos traços que mais sobressaem do desenvolvimento cultural; é ela que permite as atividades psíquicas elevadas, científicas, artísticas ou ideológicas, desempenhando um papel bastante importante na vida dos seres civilizados”. A psicanálise de Freud influenciou todo o século XX, sobretudo para lançar a sexualidade na pauta das questões a serem discutidas e analisadas. Assuntos que eram tabu até então passaram a ser encarados com mais naturalidade. Depois da década de 1960, houve no mundo a chamada revolução sexual, no intuito de promover a emancipação do ser humano dos esquemas milenares de repressão impostos, sobretudo, pelas instituições religiosas.

Festival de Woodstock, ocorrido em agosto de 1969, reuniu cerca 450 mil pessoas em White Lake, Nova York. Esse festival é até hoje um ícone da contracultura, que pregava o amor livre.

O advento da pílula anticoncepcional, liberando a mulher da imposição da gravidez; os movimentos feministas, em que a mulher se reconheceu também com o direito ao prazer sexual (que antes era apenas reconhecido como direito masculino), tendo pensadoras feministas como Simone de Beauvoir influenciando esses movimentos; a vinda a público de movimentos de homossexuais, reivindicando seu espaço social: tudo isso contribuiu para que, a partir da segunda metade do século XX, a sexualidade se tor311


nasse um dos objetos centrais da discussão filosófica e psicológica e das expressões artísticas.

A sexualidade para Marcuse, Foucault e Reich Você já se sentiu reprimido sexualmente? Já se sentiu impedido de externar impulsos sexuais? Para alguns pensadores, dentre os quais destacamos Freud e Nietzsche, a vida em sociedade só é possível graças a essa repressão. Para esses autores, o fato é que, se déssemos vazão a todos os nossos impulsos, a civilização não seria possível. Outros autores do século XX seguem essa linha de pensamento inaugurada por Freud e Nietzsche, aprofundando essa discussão em torno da sexualidade humana. Teóricos como Marcuse e Foucault passaram a analisar a sexualidade humana em termos muito mais ousados do que Freud fizera. Em sua obra Eros e civilização, por exemplo, Herbert Marcuse afirma que seria possível uma civilização sem esquemas de repressão sexual que não caísse na barbárie. Para isso, ele aponta a necessidade de uma reforma social que permitisse um modo de viver em que o homem não fosse obrigado a vender seu tempo para um trabalho sem prazer, em um cotidiano neurótico. Em uma sociedade mais de acordo com as necessidades naturais do ser humano seria possível, segundo o autor, encontrar uma nova erotização do corpo, não mais apenas fixando-se nos órgãos genitais, mas em um erotismo prazeroso de corpo inteiro. Outro discípulo de Freud que radicalizou suas propostas foi Wilhelm Reich. Em sua obra A função do orgasmo, advoga que a maioria dos seres humanos tem bloqueada a sua capacidade de sentir plenamente o prazer sexual e que seria preciso liberar essa energia contida para que houvesse maior bem-estar e saúde psíquica. Reich entendia que o sexo estava relacionado a uma energia poderosa, para a qual seria preciso abrir os canais. Entretanto, essa convocação geral à liberação sexual acabou, segundo alguns pensadores, por tirar completamente o foco da discussão sobre o amor. Se antes o amor era visto como condição adequada para o ato sexual, depois da revolução sexual o “sexo pelo sexo” passou a ser a pregação corriqueira. Inserindo-se este fenômeno na sociedade capitalista, onde tudo se torna objeto de consumo, o próprio corpo tornou-se consumível e descartável. Aproximando-se do século XXI, o sociólogo francês Jean Baudrillard analisa o mundo contemporâneo como um mundo “pós-orgia”, em que se procurou liberar tudo: o sexo, a arte, a política... Tudo se tornou tão excessivo e prolífero que caímos em um vazio. Ele observa que, em uma sociedade em que tudo se erotizou, acaba-se até mesmo a referência do que é prazer. Em uma sociedade em que tudo se pretende arte, a arte já não existe mais. Em uma sociedade em que tudo se politizou, o político não tem mais sentido. No livro A transparência do mal, Baudrillard descreve a situação presente como um indiferentismo sem rumo.

Jean Baudrillard (1929-2007) Filósofo e sociólogo francês, que tratou principalmente do impacto da comunicação de massa na sociedade contemporânea.

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AFP-PHOTO

A arte de amar depois de Freud

Freud, em foto de 1931.

Erich Fromm (1900-1980) Psicanalista e filósofo, era alemão e radicou-se nos Estados Unidos. Pertenceu à Escola de Frankfurt, estabeleceu uma relação entre psicanálise e marxismo e estudou o fenômeno do totalitarismo. Suas principais obras sobre a interpretação da realidade humana são O medo à liberdade, Análise do homem e A arte de amar.

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Será que o amor romântico pode ser considerado uma doença? O que está por trás das nossas apostas amorosas? Esse amor que implica na anulação de si não seria uma forma patológica de relação? Por que temos tanta necessidade de estarmos ligados a uma pessoa ou a determinados grupos? O filósofo e psicanalista Erich Fromm traz algumas reflexões interessantes sobre essas questões. Erich Fromm destaca-se entre os discípulos de Freud, tratando com especial propriedade a questão do amor. Ele desenvolveu uma teoria que parece explicar a origem do amor romântico, esse que faz a pessoa querer se fundir com o outro e se anular ou destruir. Fromm considera – aliás, como já haviam feito outros filósofos do passado, como os estoicos ou Kant – que o amor romântico, cheio de tormentos e altamente perturbador para o indivíduo, é uma espécie de patologia do amor. Trata-se de um estado doente do ser que ama, que, apesar de amar, traz certos desvios de personalidade. Desenvolvendo a teoria de Freud, Fromm vê o processo de individuação como muito doloroso para o ser humano: a criança sair do aconchego do ventre materno e enfrentar o mundo sozinha; a espécie humana sair da tribo, do clã onde está protegida e segura, para ter autonomia individual e liberdade de ser. É tão doloroso e causa tanto medo que os seres humanos inventam mecanismos para não sentir solidão e compensar a perda de uma identificação com um todo. Fromm afirma que, por isso, o ser humano tem medo da liberdade, pois a liberdade é mais solitária, implica em decidir por si próprio, deixando de ser rebanho e passando a assumir a postura de indivíduo livre. Entre esses mecanismos de compensação podem estar as perversões sexuais como o sadomasoquismo ou as orgias coletivas; as religiosidades fanáticas, em que o indivíduo se anula diante de uma divindade tirânica; ou, ainda, os sistemas políticos totalitários, em que o ser humano perde sua capacidade de decisão para fazer parte de um todo como o Estado. Fromm considera que, em todos esses processos, o indivíduo se submete, se perde como identidade, entrega sua liberdade em troca de uma segurança por meio da dominação. Qual seria, então, a solução para essa problemática? Como podemos evitar nos sentirmos sós em nossa liberdade, sem necessidade de sacrificá-la? Fromm descreve então o que seria um amor não romântico, mas um amor saudável e compensador. Sua ideia se parece muito com a Philia, de Comte-Sponville: é um amor que se dá entre duas individualidades plenas, inteiras, em que nenhuma das duas se perde, se anula, se submete ou domina, impõe ou violenta. É um amor sereno, denso e responsável. Ele descreve o que caracteriza esse amor: o respeito, o conhecimento, a responsabilidade e o cuidado. Essas características devem andar juntas para promover um ser humano integrado e feliz.


Texto original O amor André Comte-Sponville

O

sexo e o cérebro não são músculos, nem podem ser. Disso decorrem várias consequências importantes, das quais esta não é a menor: não amamos o que queremos, mas o que desejamos, mas o que amamos e que não escolhemos. Como poderíamos escolher nossos desejos ou nossos amores, se só podemos escolher – ainda que entre vários desejos diferentes, entre vários amores diferentes – em função deles? O amor não se comanda e não poderia, em consequência, ser um dever. Sua presença num tratado das virtudes torna-se, por conseguinte, problemática? Talvez. Mas devemos dizer também que virtude e dever são duas coisas diferentes (o dever é uma coerção, a virtude, uma liberdade), ambas necessárias, claro, solidárias uma da outra, evidentemente, mas antes complementares, até mesmo simétricas, do que semelhantes ou confundidas. Isso é verdade, parece-me, para qualquer virtude: quanto mais somos generosos, por exemplo, menos a beneficência aparece como dever, isto é, como uma coerção. Mas é verdade a fortiriori para o amor. “O que fazemos por amor sempre se consuma além do bem e do mal”, dizia Nietzsche. Eu não iria tão longe, já que o amor é o próprio bem. Mas além do dever e do proibido, sim, quase sempre, e tanto melhor! O dever é uma coerção (um “jugo”, diz Kant), o dever é uma tristeza, ao passo que o amor é uma espontaneidade alegre. “O que fazemos por coerção”, escreve Kant, “não fazemos por amor.” Isso se inverte: o que fazemos por amor não fazemos por coerção, nem, portanto, por dever. Todos sabemos disso, e sabemos também que algumas de nossas experiências mais evidentemente éticas não têm, por isso, nada a

ver com a moral, não porque a contradizem, é claro, mas porque não precisam de suas obrigações. Que mãe alimenta o filho por dever? E há expressão mais atroz do que dever conjugal? Quando o amor existe, quando o desejo existe, para que o dever? Que, no entanto, existe uma virtude conjugal, que existe uma virtude maternal, e no próprio prazer, no próprio amor, não há a menor dúvida! Pode-se dar o peito, podese dar a si mesma, pode-se amar, pode-se acariciar, com mais ou menos generosidade, mais ou menos doçura, mais ou menos pureza, mais ou menos fidelidade, mais ou menos prudência, quando necessário, mais ou menos humor, mais ou menos simplicidade, mais ou menos boa-fé, mais ou menos amor… Que outra coisa é alimentar o filho ou fazer amor virtuosamente, isto é, excelentemente? Há uma maneira medíocre, egoísta, odienta às vezes de fazer amor. E há outra, ou várias outras, tantos quantos são os indivíduos e os casais, de fazê-lo bem, o que é bem-fazer, o que é virtude. O amor físico não é mais que um exemplo, que seria tão absurdo superestimar, como muitos fazem hoje em dia, como foi, durante séculos, diabolizar. O amor, se nasce da sexualidade, como quer Freud e como acredito, não poderia reduzir-se a ela, e em todo caso vai muito além de nossos pequenos ou grandes prazeres eróticos. É toda a nossa vida, privada ou pública, familiar ou profissional, que só vale proporcionalmente ao amor que nela pomos ou encontramos. Por que seríamos egoístas, se não amássemos a nós mesmos? Por que trabalharíamos, se não fosse o amor ao dinheiro, ao conforto ou ao trabalho? Por que a Filosofia, se não fosse o amor à sabedoria? E, se eu não amasse a Filosofia, por que todos estes livros? Por que este, se eu não amasse as virtudes? E por que você o leria, se não compartilhasse algum desses amores? O amor não se comanda, pois é o amor que comanda. Isso também é válido, obviamente, em nossa vida moral ou ética. Só necessitamos de moral em 314


falta de amor, repitamos, e é por isso que temos tanta necessidade de moral! É o amor que comanda, mas o amor faz falta: o amor comanda em sua ausência e por essa própria ausência. É o que o dever exprime ou revela, o dever que só nos constrange a fazer aquilo que o amor, se estivesse presente, bastaria, sem coerção, para suscitar. Como o amor poderia comandar outra coisa que não ele mesmo, que não se comanda, ou outra coisa pelo menos que não o que se assemelha a ele? Só se comanda a ação, e isso diz o essencial: não é o amor que a moral prescreve, é realizar, por dever, essa própria ação que o amor, se estivesse presente, já teria livremente consumado. Máxima do dever: Age como se amasse.

sações inconscientes, liberação da arte. Assunção de todos os modelos de representação e de todos os modelos de antirrepresentação. Total orgia de real, de racional, de sexual, de crítica e de anticrítica, de crescimento e de crise de crescimento. Percorremos todos os caminhos da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. Hoje, tudo está liberado, o jogo está feito e encontramo-nos coletivamente diante da pergunta crucial: O QUE FAZER APÓS A ORGIA? […] A lei que nos é imposta é a da confusão dos gêneros. Tudo é sexual. Tudo é político. Tudo é estético. Simultaneamente. Tudo tomou sentido político, principalmente depois de 1968: a vida cotidiana e também a loucura, a linguagem, a mídia, assim como o desejo, tornam-se políticos à medida que entram na esfera da liberação e dos processos coletivos de massa. Ao mesmo tempo, tudo tornou-se sexual, tudo é objeto de desejo: o poder, o saber, tudo se interpreta em termos de fantasma e de recalque, o estereótipo sexual está em tudo. Ao mesmo tempo, tudo se estetiza: a política se estetiza no espetáculo, o sexo na publicidade e na pornografia, o conjunto das atividades naquilo de que se convencionou chamar cultura, espécie de semiologização mediática e publicitária que invade tudo – o grau Xérox da cultura. Cada categoria é levada ao mais alto grau de generalização e, por isso, perde toda a especificidade e se desfaz em todas as outras. Quando tudo é político, nada mais é político, e a palavra já não tem mais sentido. Quando tudo é sexual, o sexo perde toda a determinação. Quando tudo é estético, nada mais é belo nem feio, e a própria arte desaparece.

No fundo, é o que Kant chamava de amor prático: “O amor para com os homens é possível, para dizer a verdade, mas não pode ser comandado, pois não está ao alcance de nenhum homem amar alguém simplesmente por ordem. É, pois, simplesmente o amor prático que está incluído nesse núcleo de todas as leis. […] Amar o próximo significa praticar de bom grado todos os seus deveres para com ele. Mas a ordem que faz disso uma regra para nós também não pode comandar que tenhamos essa intenção nas ações conformes ao dever, mas simplesmente que tendamos a ela. Porque o mandamento de que devemos fazer alguma coisa de bom grado é em si contraditório”. O amor não é um mandamento: é um ideal (“o ideal da santidade” diz Kant). Mas esse ideal nos guia, e nos ilumina. COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Após a orgia

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal. Campinas:

Papirus, 2006. p. 9-16.

Jean Baudrillard

Se fosse caracterizar o atual estado de coisas, eu diria que é o da pós-orgia. A orgia é o momento explosivo da modernidade, o da liberação em todos os domínios. Liberação política, liberação sexual, liberação das forças produtivas, liberação das forças destrutivas, liberação da mulher, da criança, das pul315

Para estudar os textos • •

Leia os verbetes referentes aos autores. Anote no caderno todas as palavras que você desconhece e procure-as no dicionário.


Entenda os textos parágrafo por parágrafo, relendo-os, se for necessário, para a compreensão integral do pensamento de cada autor. Se houver algum conceito ou trecho que lhe pareça particularmente difícil, peça ajuda a seu professor ou consulte um dicionário de Filosofia.

Atividades Cinema pensante • • •

• •

Em que sentido o texto de Baudrillard concorda com o de Comte-Sponville? Existe algum possível diálogo entre os dois textos?

Não escreva n

o livro!

Interdisciplinaridade

Arte

Tristão e Isolda (Tristan and Isolde), 2006. Direção de Kevin Reynolds. Versão cinematográfica da lenda romântica medieval. Em nome de Deus (Stealing Heaven ou Abelardo e Heloísa), de Clive Donner, 1988. O filme conta a paixão entre Abelardo e Heloísa, um amor proibido e as consequências na vida do casal. Assista aos filmes e discuta os aspectos do amor romântico na relação dos personagens principais.

Lanche filosófico

Interdisciplinaridade

Literatura

Leia o famoso poema de Camões a seguir (Amor é fogo que arde sem se ver) e relacione-o com o tema estudado no capítulo, mostrando quais são as características do amor descritas nele:

Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo amor? Camões, Luís de. Amor é fogo que arde sem se ver. Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/biografias/amor_e_fogo.htm>. Acesso em: 8 dez. 2012.

Leia a seguir a letra da canção Monte Castelo, do compositor Renato Russo. Ela foi adaptada da passagem bíblica da Epístola 13 escrita pelo apóstolo Paulo aos Coríntios, O amor é um dom supremo (ver pág. 318) e do soneto 11, O amor é fogo que arde sem se ver, do poeta Luís de Camões (na página anterior).

Monte Castelo Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos sem amor eu nada seria.

É só o amor, é só o amor. Que conhece o que é verdade. O amor é bom, não quer o mal. Não sente inveja ou se envaidece.

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Amor é o fogo que arde sem se ver. É ferida que dói e não se sente. É um contentamento descontente. É dor que desatina sem doer. Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos. sem amor eu nada seria.

É servir a quem vence, o vencedor; É um ter com quem nos mata a lealdade. Tão contrário a si é o mesmo amor. Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem. Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face.

É um não querer mais que bem querer. É solitário andar por entre a gente. É um não contentar-se de contente. É cuidar que se ganha em se perder. É um estar-se preso por vontade

É só o amor, é só o amor. Que conhece o que é verdade. Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria.

O autor produziu um diálogo entre as duas obras, que resultou em uma terceira, musicada e com pouco acréscimo do artista. Renato Russo fez uma canção em que a intertextualidade se produz pelo perfeito ajuste de partes dos dois textos, o da epístola tratando do amor altruísta, generoso, o Ágape, e o de Camões, do amor terreno, carnal e possessivo entre dois seres humanos. A construção da obra foi realizada de forma muito criativa, pois além de apresentar ao público da banda de Russo, a Legião Urbana, dois textos tão distantes da maioria dos mais jovens, ainda utilizou no título o nome de uma batalha na qual expedicionários brasileiros participaram na Itália, em Monte Castelo, durante a Segunda Guerra Mundial, e que saíram vitoriosos, só que com muitas mortes de ambos os lados. Os soldados brasileiros lutaram no frio europeu intenso, sem roupas adequadas e mal treinados, mesmo assim ajudaram outras forças militares a barrar o avanço alemão no norte da Itália e a permitir a ofensiva aliada que levou ao fim do conflito no país. Essa luta não deixa de se encaixar numa forma de amor ao outro, à liberdade, à democracia, contra o totalitarismo, de uma forma ativa e concreta. O texto retirado da Bíblia, da epístola de Paulo, é endereçado a uma cidade corrupta (Corinto) e a uma Igreja dividida internamente. Paulo fala de um amor que se sacrifica pelo bem do outro, o amor Ágape, abnegado, que não espera nada em troca. Já o poema de Camões Amor é fogo que arde sem se ver é do século XVI, do Classicismo, quando ainda havia traços da Idade Média nas composições e a literatura tinha um caráter aristocrático. O poeta tenta definir o amor, mas para ele o sentimento é contraditório. No caso, o amor entre dois seres humanos, o amor entre homem-mulher, e mostra que, mesmo que ocorra sofrimento, o amor enobrece aquele que ama. Russo insere seu texto no trecho em que canta “É só o amor, é só o amor” e “Estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos dormem.” Sobre esta última passagem há muitas leituras possíveis, entre elas a de que o alvo do seu amor pode não estar percebendo o sentimento ou que os outros autores estejam mortos e apenas ele vive para explicar a mensagem. Além disso, existe claro, o arranjo, a música propriamente dita, que embala com perfeição a letra. A música faz parte do álbum As Quatro Estações, de 1989, e nos comentários sobre o disco o compositor cita, entre outras coisas, a Bíblia e o filósofo chinês Lao Tsé.

ESTOURO - VER PDF ANEXO

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A origem dos naturalistas

FCP_CH_M01 – Arte: inserir: um mapa da Grécia antiga, localizando Esparta, Jônia, cidades-estado, como Mileto, Atenas, Abdera, além de Éfeso e Samos. Incluir também o sul da Itália.

Os primeiros pensadores gregos surgiram nas colônias da Ásia menor, em Mileto, Atenas, Abdera e também no sul da Itália.

Filosofia antiga A partir de Aristóteles, a tradição filosófica considerou como filósofos os primeiros pensadores gregos, que apareceram no início do século VI a.C. no litoral das colônias da Ásia menor, mais precisamente na cidade de Mileto: Tales, Anaximandro e Anaxímenes (ver respectivas biografias no capítulo 1). É difícil apontar as causas do nascimento da Filosofia na Grécia antiga, já que existem várias explicações diferentes e até mesmo divergentes. Mas as perguntas recorrentes com relação a isso são: quais foram as condições históricas e culturais que proporcionaram o surgimento da Filosofia nas colônias gregas asiáticas (na Ásia Menor)? Por que ela não nasceu em

qualquer outro lugar? Não é possível citar todos os fatores que respondem a elas, mas podemos apontar os que são considerados essenciais.

Fatores políticos Entre os séculos VIII e VII a.C., as tribos e

os vilarejos gregos se organizaram em peque-

nas cidades-estado, denominadas pólis, politica-

mente autônomas e independentes entre si, que conviviam em relações de amizade ou de guerras

ferozes. Embora do ponto de vista político não houvesse um poder grego centralizador, essas

comunidades, em sua maioria, preservavam uma 318

Credito

Contando a história


Museu do Louvre, Paris, França

identidade grega no que se refere a arquitetura, planejamento urbano, idioma, literatura e religião. A pólis, desde seu início, foi marcada pela vida social e pelas relações políticas entre os homens. Pode-se dizer que os gregos tinham um grande senso comunitário. Os cidadãos participavam da criação das leis e da vida pública, conquistando direitos políticos. Nesse contexto, destaca-se uma extraordinária presença da palavra como um instrumento de participação política. Isso alimentou um ambiente de discussão, de argumentação e de persuasão racional entre a população. Os cidadãos gregos passaram a ser respeitados em seu discurso, em seu pensamento e em sua participação. Com isso, puderam tomar decisões justificadas racionalmente, explicar os motivos de sua ação e dialogar sobre qualquer tema, constituindo o primeiro povo a criar instituições políticas livres e a adotar sistemas de discussões abertas. A liberdade de pensamento, expressão e decisão assim vivenciada pelos gregos fez com que os deuses – que antes eram considerados aqueles que determinavam as condições da vida humana – começassem a perder espaço e força, surgindo, assim, as condições propícias ao nascimento da Filosofia. Essas condições, do ponto de vista político, foram únicas à Grécia e não houve nada similar entre outros povos da Antiguidade.

Determinadas cidades gregas deixaram de ser somente agrícolas para se transformarem em fortes centros comerciais e com uma indústria artesanal importante. Nesse período, surgiram diversos centros econômicos, em especial nas colônias jônicas, como Corfu, Cefalônia e Ítaca, e na cidade de Mileto. Embora nessas localidades a agricultura se mantivesse como uma importante atividade econômica, empregando uma grande parcela da população, setores como o comércio e a manufatura iam se desenvolvendo. Por causa das atividades comerciais, os gregos empreenderam viagens marítimas que favoreceram o contato com culturas de outros povos e o conhecimento de novas realidades, o que, entre outros resultados, provocou também questionamentos a respeito de sua própria cultura. As cidades comerciais gregas cresceram e os comerciantes e artesãos ricos começaram a concentrar em suas mãos o poder econômico (que antes estava nas mãos da nobreza, dona das terras). As famílias abastadas dos comerciantes questionaram os valores religiosos, a cultura e as ideias míticas que estavam culturalmente relacionadas à nobreza agrícola e, para mostrar sua força, começaram a promover as artes, novos conhecimentos e técnicas. Esses fatores colaboraram para o nascimento da Filosofia e o rompimento com a tradição mítica.

Fatores culturais

Réplica da escultura de Atena, realizada por Phidias para o Parthenon, em 438 a.C. Na mitologia grega, Atena é a deusa da sabedoria, da inteligência e da guerra justa.

319

Fatores econômicos

O primeiro traço cultural importante a se ressaltar é a criação do alfabeto grego. Os gregos se apropriaram do alfabeto fenício no século VIII a.C., introduziram modificações essenciais e criaram um alfabeto próprio para exprimir o pensamento não em símbolos, mas em palavras. Isso permitiu uma grande variedade de formas e combinações para expressar ideias abstratas e racionais. Esse alfabeto permitiu que as pessoas aprendessem a ler e a escrever com mais rapidez e eficácia. Influenciou também o surgimento da


Giovanni Caselli. Gli antichi Greci

literatura grega, cuja obra literariamente extensa e sofisticada de Homero está à frente, seguida da obra de Hesíodo, ambos do século VIII a.C. Os poemas de Homero, A Ilíada e A Odisseia, e o poema de Hesíodo, Teogonia, deram base cultural ao pensamento filosófico grego.

de forma mítica. Eles realizaram uma tentativa de explicar a origem, a ordem e o caos, o Cosmo e a totalidade das coisas por meio de um sistema orgânico. Esse modo poético-mítico de buscar a explicação e a causa dessas coisas levou os gregos à busca filosófica racional dos fundamentos, das razões, dos princípios, dos porquês. Embora Tales, Anaximandro e Anaxímenes substituíssem a narração mítica por uma teoria racional do Cosmo e da physis, eles conservaram os elementos, os temas e as categorias encontradas nas estruturas do naturalismo desses poetas.

Fatores religiosos

Alfabeto grego do século IX a.C. Trata-se do primeiro traço cultural importante da cultura grega.

Segundo estudiosos, uma das coisas que mais chama a atenção quando se examinam os poemas de Homero e de Hesíodo é que, embora sejam férteis em situações e acontecimentos imaginativos (com relatos fantasiosos), contêm uma tentativa de explicar os deuses, a natureza e a vida de forma racional e harmônica, o que deu substrato cultural ao pensar filosófico. Ambos os poetas estruturaram o mundo grego de forma ­coerente e buscaram as razões e as causas para o que ocorria na realidade, embora o fizessem

A Filosofia não surgiu completamente independente da estrutura religiosa existente. Na religião, encontrava-se a ideia de que toda a natureza e a sociedade são reguladas pelos deuses. Em suas obras, Homero e Hesíodo procuram explicar o funcionamento da natureza e da sociedade por um sistema único e coerente. É possível perceber um processo de racionalização do mito, ou seja, o mito aparece como uma primeira tentativa de compreender o Cosmo. No entanto, os gregos não tiveram uma estrutura religiosa rígida e hierarquizada nem havia um livro sagrado inquestionável ou uma teologia dogmática, o que contribuiu para a liberdade de pensamento, favoreceu a especulação filosófica e a ruptura com o sistema mítico. Vale ressaltar a existência da religião grega órfica como um dos fatores relacionados ao nascimento da Filosofia: o orfismo introduziu na civilização grega, a partir do século VII a.C., uma nova visão da realidade e da existência humana, um novo sistema de crença. Para os gregos, a partir de Homero, a alma era apenas uma sombra, quase sem identidade: o orfismo admitia a imortalidade individual da alma e apresentava uma concepção de homem dividida entre corpo e alma, o que seria marcante na Filosofia platônica e teria influência em todo o pensamento ocidental. O orfismo teria sido fundado pelo poeta trá320


Os primeiros passos da Filosofia Os fatores destacados, o nascimento das cidades-estado e o nível de bem-estar material atingido pelas colônias gregas – somado às condições de racionalização presentes em diversos aspectos culturais e ao clima de liberdade política e religiosa – propiciaram ambiente para o surgimento da busca racional de explicação da origem do mundo, do desenvolvimento da natureza, do processo pelo qual as coisas se constituem, realizada pelos primeiros filósofos gregos. Os principais pensadores desse primeiro período da Filosofia foram Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito de Éfeso (ver biografia no capítulo 1), representantes da escola jônica; Pitágoras de Samos, representante da escola itálica; Parmênides (ver biografia no capítulo 2) e Zenão (ver biografia no capítulo 8), representantes da escola Eleata; e Empédocles, Demócri321

Peter Newark’s Picture/AFP

AFP

to de Abdera e Leucipo de Abdera (ver respectivas biografias no capítulo 2), representantes da escola atomista.

Ilustração de Parmênides.

Coleção Roger-Viollet/AFP

Ilustração de Tales de Mileto.

Museu Nacional, Nápoles, Itália

cio Orfeu e a religião prometia uma vida melhor após a morte, o que pode, de certa forma, ter influenciado o início do catolicismo. O sistema de pensamento órfico defendia crenças que foram profundamente importantes para a Filosofia, tais como: 1) o ser humano possui uma alma divina que caiu em um corpo por causa de uma culpa original; 2) essa alma é pré-existente ao corpo, é eterna e está destinada a reencarnar em várias vidas até se purificar de sua culpa e libertar-se da prisão do corpo; 3) uma vida de bem-aventuranças aguarda no além-túmulo a alma que se purificou; 4) para ganhar a liberdade, a alma deve ter na Terra uma vida de bondade, de justiça e de ascetismo. As filosofias de Pitágoras, Sócrates e Platão (ver respectivas biografias no capítulo 1) assimilaram diversos aspectos do orfismo, o que representou uma ruptura em relação ao pensamento mítico, mas guardou elementos de racionalização que já estavam presentes no pensamento religioso.

Busto de Zenão de Citium.

Ilustração de Demócrito.

Todos esses filósofos, conhecidos como pré-socráticos, romperam com as explicações míticas para a origem do Universo e buscaram formular uma cosmologia naturalista, ou seja, uma abordagem que explicasse o Universo por causas naturais, encontrando seus elementos constitutivos: Tales de Mileto considerava que o elemento primordial do todo seria a água; para Anaximandro, o Universo seria constituído de uma matéria de extensão infinita, mas invisível aos nossos sentidos; para Anaxímenes, o elemento fundamental seria o ar; Heráclito de Éfeso concebeu a natureza como um devir permanente. Já Parmênides e seu discípulo Zenão defendiam um Universo de essência permanente, com leis imutáveis, onde o movimento seria uma ilusão. E, por fim, a escola atomista foi predecessora das concepções da Fí-


O humanismo grego No século V a.C., as principais figuras da Filosofia – incluindo os sofistas além de Sócrates e Platão – estavam ligadas a Atenas. Com o desenvolvimento da democracia, do comércio e do poder militar, a cidade tornou-se um dos centros do mundo grego. A atividade intelectual que se iniciara nas colônias gregas da Jônia e nas cidades do sul da Itália aos poucos migrou para Atenas. Entre os anos de 490 a.C. e 431 a.C., a cidade viveu um grande desenvolvimento cultural, político, econômico e de expansão comercial. Após a vitória ateniense sobre os exércitos do imperador persa Dario, no ano de 490 a.C., e as sucessivas derrotas dos persas para os gregos, a cidade tornou-se poderosa e respeitada. Somente em 431 a.C., com a guerra contra Esparta, Atenas começa a perder a posição de liderança no mundo grego. A batalha entre as duas cidades ficou conhecida como a Guerra do Peloponeso – narrada pelo historiador Tucídides – e terminou em 404 a.C., com a derrota de Atenas. No entanto, como centro cultural, a cidade não perdeu sua força.

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sica contemporânea, em que o Cosmo seria feito de partículas atômicas e vazias. Original foi também a doutrina de Pitágoras, de que sabemos muito pouco, pela escassez de documentos. Conta-se que foi ele o primeiro a mencionar o termo “filosofia”. Como matemático, astrônomo, músico e místico, suas ideias cosmológicas se ligavam a essas áreas: considerava que tudo no Universo era composto de números, que do Uno inicial haviam se derivado os números subsequentes e que as esferas do espaço se moviam em harmonia. Pitágoras, no entanto, diferentemente de seus contemporâneos aqui citados, não tinha apenas uma doutrina cosmológica, mas também uma proposta ética: seus discípulos eram vegetarianos, viviam em comunidades igualitárias e desempenhavam papéis políticos de contestação à tirania. As ideias de Pitágoras tiveram forte influência sobre Platão.

Ilustração da Guerra do Peloponeso. Essa guerra, que teve início em 431 a.C. e terminou somente em 404 a.C., enfraqueceu as cidades-estado gregas.

Atenas passou por um momento promissor de grande expansão comercial e de enriquecimento das classes mais populares, como os comerciantes e os artesãos. Com isso, a classe aristocrática, formada pelas famílias tradicionais dos senhores de terra, foi perdendo a força econômica e, consequentemente, força política, cedendo espaço aos comerciantes, que se tornavam a classe mais rica e poderosa. O contexto político sofreu mudanças radicais, pois a democracia ateniense foi resultado da força e da reivindicação da nova classe por participação política. Dois grandes estadistas contribuíram para o desenvolvimento de Atenas e para implantar e solidificar a democracia, dando mais poderes aos cidadãos: Clístenes (565-492 a.C.), nobre e legislador que implantou a democracia em Atenas, com a reforma política que garantiu o direito ao voto, independentemente da renda, e a possibilidade de ocupar variados cargos públicos, entre outras ações. Por isso, é considerado o pai da democracia. O outro estadista é Péricles (c. 495-429 a.C.), estrategista político, além de expandir a atuação prática do cidadão no governo, 322


foi responsável por muitos dos projetos de construção em Atenas. A vida democrática permitiu aos cidadãos participarem da vida política e serem iguais perante a lei. As pessoas que queriam chegar ao poder político tinham o direito de apresentar, discutir e defender suas ideias em público. Para isso, tinham de ter grande habilidade com as palavras e saber discursar para convencer os ouvintes. Nesse contexto, o principal ideal de um jovem ateniense era se tornar um virtuoso político, um bom cidadão, participativo da vida cívica. A educação ateniense começou a visar à formação do sujeito que sabia articular bem as palavras, usando a retórica. Por causa da importância dada à educação, Atenas atraiu pensadores e professores que levavam para a cidade novas ideias e modelos culturais. Chegaram sábios como Anaxágoras, continuador da escola jônica e professor de Péricles, bem como os sofistas, que serão tratados logo adiante. Anaxágoras afirmou que o Sol e a Lua não eram divindades. Suas concepções na astronomia levaram ao início dos fundamentos que levariam à futura teoria do sistema solar. Protágoras (ver biografia no capítulo 4), por exemplo, vinha da Jônia, enquanto Górgias (ver biografia no capítulo 2) era do sul da Itália. A especulação da filosofia naturalista iniciada na Jônia e nas ilhas do sul da Itália começou, porém, a dar sinais de esgotamento, pois os filósofos se contradiziam. Inúmeras teses haviam surgido sobre a natureza e o Cosmo, e cada uma apresentava resultados diferentes e contraditórios. Nesse sentido, a pólis ateniense e sua democracia tornaram-se um solo fértil para o florescimento de uma nova Filosofia, na qual a problemática a respeito da natureza era secundária. O mais importante, nesse novo contexto, era que o conhecimento contribuísse para a vida democrática da pólis. O centro da reflexão passou, então, a ser o homem e o universo humano. Essas novas condições sociais, culturais, políticas e históricas fizeram aparecer no cenário grego os sofistas, considerados os primeiros 323

filósofos do período humanista. Eles censuravam os filósofos naturalistas, pois julgavam que estes pensavam ter chegado à verdade máxima sobre a natureza e o Universo, mas, de fato, o que eles faziam era apenas expor opiniões contraditórias e nada conclusivas. Para os sofistas, as disputas entre os próprios naturalistas e as contradições que apresentavam eram fatores que apenas demonstravam que o pensamento é mutável e é somente um sistema de opiniões individuais. Assim, os sofistas caminharam para uma forma de relativismo e de ceticismo em que não se buscava a verdade – pois a verdade para eles era temporária e insegura –, sendo seu único objetivo ensinar a retórica. Tornaram-se figuras fundamentais no cenário da pólis, já que ensinavam aos jovens ricos a arte da persuasão, de articular bem as palavras, o que era fundamental para a democracia de Atenas. Eles faziam do ensino uma profissão, recebendo bons salários de uma elite que queria chegar à direção do Estado. Sócrates era ateniense de nascimento. Sua figura teve um papel fundamental nos novos rumos tomados pela Filosofia. Ele deu continuidade ao humanismo dos sofistas, mas discordou deles em muitos aspectos, e não aceitava, por exemplo, que os sofistas fossem chamados de filósofos, pois eles não estavam em busca da sabedoria. O genial Sócrates, diferentemente dos sofistas, tinha como objetivo auxiliar seus discípulos a chegar à verdade e à virtude moral, entendendo que tanto o saber quanto a virtude estavam na alma humana. Para ele, a alma é onde habita a razão e os valores morais; o ser humano tem por dever se autoconhecer voltando-se para sua alma. O filósofo é aquele que convida seu interlocutor a examinar a si mesmo, a tomar consciência e posse daquilo que possui de mais essencial dentro de si. O pensador propõe aos atenienses que não se importem com o poder político, com a persuasão a qualquer custo e muito menos com a riqueza e a fama advindas desse poder, mas sim com a verdade e com os cuidados da alma. A Filosofia seria, assim, a busca da verdade e


da virtude, e somente nesse caminho os seres humanos chegariam à felicidade. Ele acreditava na capacidade da razão de levar o ser humano a tal empreendimento. O cuidado de si, porém, estava entrelaçado à atenção especial quanto à cidade e aos outros, exaltando-se a participação na comunidade política. Sócrates discordava da ambição pelo poder, mas considerava o exercício da virtude como um ato também político. Podemos dizer que ele esteve vinculado ao seu mundo, porém, ao mesmo tempo o transcendeu, criticando duramente os costumes, os valores e a cultura de sua época. Platão, principal discípulo de Sócrates, deve o conteúdo de sua filosofia, acima de tudo, a seu mestre, que foi também sua fonte máxima de inspiração. Com foco na ética, na política e na teoria do conhecimento, Platão construiu uma filosofia metafísica, na qual procurou resolver várias das questões que a Filosofia grega vinha se propondo até então: por exemplo, na disputa entre o ser e o devir, ele resolve que o ser está no mundo das ideias, que é a essência da realidade, e o devir está no mundo dos fenômenos. No confronto entre a virtude e a vida política, Platão afirmou, como Sócrates, a ética individual baseada na consciência e radicada na alma. Mas, ao mesmo tempo, propôs a ética na organização de uma sociedade política mais justa, na sua utópica A República. Ou seja, para Platão, assim como para Aristóteles, não poderia haver política sem ética, assim como a ética – prática da justiça e das virtudes sociais – tinha um caráter político. Dessa maneira, inaugura-se no Ocidente a visão idealista do mundo e da existência, considerando a alma como portadora de imortalidade, de moralidade e de conhecimentos. A educação verdadeira, nesse contexto, seria aquela que “abre o olho da alma”, pelo cultivo da razão, para a visão da verdade e para a consequente prática da virtude. Não é possível esquecer as chamadas escolas filosóficas dos socráticos menores, que também devem esse nome à fundamental influ-

ência de Sócrates: Antístenes e Diógenes , da escola cínica; Aristipo , da escola cirenaica; e ­Euclides , da escola megárica. Antístenes (c. 444-365 a.C.) Filósofo ateniense, discípulo de Sócrates, fundador do cinismo. Para ele, a Filosofia era só uma atitude ética diante da vida. Não considerava a possibilidade de tratar a Filosofia como conhecimento.

Diógenes de Sínope (c. 413-323 a.C.) O mais famoso dos filósofos da escola cínica, revelava total indiferença e irreverência pelas leis sociais. Para ele, o ascetismo era o valor principal a ser cultivado: não desejar nada, não possuir nada, não depender de ninguém. Conta-se que ele dormia em um barril e era visto durante o dia nas ruas com uma lanterna nas mãos, à procura de um homem virtuoso.

Aristipo de Cirene (c. 435-356 a.C.) Discípulo de Sócrates, foi fundador da escola cirenaica. Nada do que escreveu chegou aos dias de hoje, mas sabe-se que focava toda a Filosofia na ética.

Euclides de Megara (c. 435-365 a.C.) Discípulo de Sócrates, fundou a escola megárica, com influência também de Parmênides. Para ele, a única ­realidade era o Bem, Uno e Supremo, ao qual se podia chamar de Deus, razão, sabedoria. Considerava que tudo o mais era apenas privação desse bem.

A escola cínica levou ao extremo a proposta de felicidade proporcionada pela virtude, em oposição aos prazeres sensoriais, tendo Antístenes e, depois, seu discípulo Diógenes, levado uma vida de ascetismo. Ambos preferiam viver na pobreza e na necessidade a se corromperem com os costumes da época. Já Aristipo de Cirene, fundador da escola cirenaica, herdou de Sócrates a ideia de autodomínio como fonte de felicidade. Ele teve também influência dos sofistas, na medida em que afirmava que todo o conhecimento humano é subjetivo, ou seja, para o filósofo, pode-se 324


Aristóteles entre a pólis e o Império As constantes batalhas enfraqueceram as cidades-estado e, no século IV a.C., durante o reinado de Felipe II da Macedônia e depois o de Alexandre Magno, seu filho, o Império Macedônio foi se instalando no mundo grego, o que fez com que as pólis fossem perdendo sua independência. A filosofia de Aristóteles (384-322 a.C.) foi desenvolvida em um momento de decadência da pólis grega e ascensão do Império da Macedônia. Sua família era ligada à Macedônia, pois seu pai havia sido médico daquela corte. Aos 18 anos de idade, o filósofo foi mandado para Atenas, que ainda era a capital cultural do mundo grego, para estudar na academia platônica. No entanto, manteve durante a vida ligações com o novo Império, tendo sido, inclusive, professor de Alexandre Magno (356-323 a.C.). Em Atenas, recebeu grande influência de Platão, embora tenha se afastado dele em muitos pontos, construindo uma filosofia com profundas especulações filosóficas, estudos políticos, pesquisas e explorações científicas. Discordava de seu mestre sobretudo em relação ao mundo das ideias. Para Platão, o mundo material seria uma projeção, uma espécie de imitação do mundo das ideias, sem realidade concreta. Para Aristóteles, ao contrário, o mundo sensório era objetivo e real. A produção de Aristóteles foi vasta e brilhante, abrangendo um grande número de áreas do conhecimento, sendo o primeiro a classificá-las, definindo a lógica, a ética, a política, a física, a metafísica e a poética como ramos do saber. A 325

obra aristotélica pode ser considerada como um grande mapeamento histórico do que havia sido produzido na Grécia antiga, uma síntese de todo o conhecimento acumulado pelos gregos, e uma clara tentativa de manter viva a pólis grega. Com esse mapeamento, Aristóteles deixou delineados os traços que o conhecimento ocidental haveria de percorrer nos milênios seguintes. Mary Evans Picture Library

afirmar que algo pode provocar uma sensação, mas sem se saber de fato o que é. A escola megárica, fundada por Euclides de Megara, é a que mais se aproxima de Platão, pois considera que existe um Ser Uno, o Bem, que constitui a essência de todas as coisas. O conhecimento desse Bem é a virtude, e a virtude é o conhecimento.

Ilustração representando Aristóteles.

Pensadores entre impérios: o helenístico e o romano O período helenístico teve início em meados do século IV a.C., com a morte de Felipe II da Macedônia e a ascensão de Alexandre Magno, estendendo-se até o final do século I a.C., quando a dominação romana se impôs. Ao assumir o poder em 334 a.C., Alexandre iniciou um período de conquistas que alargaria o domínio do mundo macedônio sobre a Grécia, a Índia, a Pérsia, a Síria, o Egito e a Babilônia, entre outras regiões. Seu projeto era estabelecer um grande império monárquico e hegemônico, que acabasse com a independência e a liberdade das cidades-estado gregas e acoplasse diversas cidades, países e povos. Embora o projeto de construir um império sólido não tenha obtido sucesso, devido à sua morte prematura aos 32 anos, as conquistas de Alexandre inauguraram uma nova época histórica e promoveram profundas mudanças políticas, filosóficas e culturais. A partir desse período, iniciaram-se trocas comerciais e culturais intensas entre o mundo grego e países da África e da Ásia, como a China


o ceticismo (ver boxe Informação no capítulo 2) e o cinismo. Com elas, novos conteúdos surgiram no pensamento grego.

e a Índia, o que fez com que a vida e os costumes dos gregos se transformassem de forma radical. As tradições, a cultura e as religiões começaram a se misturar, provocando encontros culturais sem precedentes até então no mundo ocidental. Novas cidades se projetaram como centros culturais: Rodes, Pérgamo e Alexandria. Atenas passou a dividir com elas as atenções dos intelectuais, principalmente com Alexandria, que viria a ter a maior biblioteca do mundo antigo. Com o desaparecimento da pólis, a ideia do cidadão participativo da vida pública também desapareceu, e o indivíduo passou a ser súdito do império. As decisões sobre a vida política e pública passaram a ser tomadas pelo monarca e seus administradores – o cidadão, que antes tinha interesse e participava da esfera política, passou a até mesmo ser avesso a ela.

Cinismo

Giovanni Casseli. Gli antichi Greci

Iniciado por Antístenes no século IV a.C., era mais uma postura ética de vida do que um sistema de filosofia. Antístenes foi discípulo de Sócrates, mas entendeu seus ensinamentos de forma diferente da de Platão, mais parecida com a proposta dos céticos. Achava que deveria assumir uma atitude de extremo ascetismo e desprezo pelos bens terrenos. Os cínicos tinham comportamento socialmente anticonvencional e consideravam que a felicidade estava na virtude, independentemente das condições exteriores.

Cena de batalha em um vaso grego, inspirada nas expedições de Alexandre, o Grande, 333 a.C.

Toda a Filosofia do século anterior estava ligada à ideia do cidadão livre, participativo da vida pública, e de uma vida ética ligada à cidade-estado. As velhas escolas filosóficas de Platão, Aristóteles e mesmo dos socráticos menores entraram em declínio. A vida no Império tornou os laços entre o cidadão e o Estado frágeis e distantes, e a cidade deixou de ser o espaço político. Não existia mais o cidadão da pólis, e sim o cidadão do mundo. Com a era de Alexandre, o homem grego voltou-se para si mesmo para descobrir seu mundo interior, já que o mundo externo estava em profundo declínio e degradação. Surgiram novas escolas filosóficas, sendo que as principais desse período foram: o estoicismo, o epicurismo (ver boxe Informação no capítulo 3),

Pode-se dizer que três traços são comuns nas escolas filosóficas desse período: 1) A Filosofia começa a se centrar mais no campo da ética individual, abandonando a velha preocupação de Platão e Aristóteles em relacionar ética, política e cidadania. Embora os filósofos helenistas não tenham deixado completamente as questões políticas – pois muitos desempenharam papéis importantes aconselhando reis e políticos de cidades gregas, os estoicos e epicuristas tiveram participação em reformas políticas e sociais de cidades –, o foco principal da reflexão passou a ser o indivíduo em sua singularidade. Essas escolas estavam preocupadas em ensinar o homem a viver e a morrer, mostrando o caminho de uma vida de virtudes e, consequentemente, feliz, para que atingisse a verdadeira paz interior e tivesse uma morte sábia. A felicidade e a paz interior seriam alcançadas por um processo de anulação das paixões e dos desejos mundanos, pela ausência da dor, pela renúncia e indiferença às convenções humanas. Dentro desse modelo, o sábio deveria se retirar das relações com os outros homens para viver recluso no campo, entre aqueles que compartilham do mesmo ideal. O filósofo, para essas escolas, não seria aquele que constrói sistemas de pensamento, como Platão e Aristóteles, que teriam criado sistemas metafísicos inchados e desnecessários, afastando-se do verdadeiro 326


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Museu Arqueológico Ostrense, Roma, Itália

espírito de Sócrates. Elas anunciavam querer recuperar o verdadeiro espírito socrático: a Filosofia como modo de vida e o filósofo como aquele que alcançou a serenidade interna e sabe viver e morrer com serenidade. 2) A expedição de Alexandre ao mundo oriental permitiu uma intensa troca cultural entre Ocidente e Oriente, dando um novo impulso às pesquisas filosófico-científicas. As descobertas de uma nova realidade geográfica e biológica proporcionaram novas perspectivas. O filósofo Pirro (ver biografia no capítulo 4), por exemplo, acompanhou Alexandre até a expedição à Índia e voltou de lá totalmente impressionado com a cultura do país. O pensamento oriental marcou de forma profunda o mundo helênico, influenciando as escolas filosóficas. Assim, floresceram novamente nessas escolas os conteúdos de estudos que foram caros aos pré-socráticos e a Aristóteles, como a Física, a Biologia e a Astronomia. 3) A cultura grega clássica considerava os gregos ocidentais o único povo capaz de liberdade, e os não gregos eram considerados bárbaros e incapazes por natureza. O preconceito racista dos gregos sofreu transformações com as conquistas de Alexandre. O jovem conquistador procurou integrar as culturas ocidentais e orientais, igualando os gregos e os não gregos. As escolas filosóficas desse período trataram com mais respeito os escravos e os não gregos, admitindo-os, inclusive, como alunos na escola de Epicuro, por exemplo. O estoicismo teve um grande filósofo escravo, Epíteto (ver biografia no capítulo 4). As mulheres também tiveram mais reconhecimento com essa troca cultural e passaram a ter alguns direitos reconhecidos, sendo aceitas por Epicuro entre seus alunos. A morte de Alexandre, em 323 a.C., a queda do Império Macedônio e a dominação do mundo grego por parte de Roma, no século II a.C., deram início a novas circunstâncias históricas no mundo antigo. Com esses episódios, a Grécia passou às

Plotino considerava que o mal não existia, apenas a privação do bem ou a imperfeição.

mãos dos romanos. Estes, desde o fim do século III a.C., haviam entrado em contato com a Filosofia grega e eram seus profundos admiradores, permitindo que as cidades gregas continuassem com suas intensas atividades culturais. A partir do século I a.C., em várias cidades do Império Romano foram fundadas escolas filosóficas, mais especificamente na Ásia, em Alexandria e em Roma. O estoicismo, o epicurismo, o cinismo e o ceticismo tiveram espaço privilegiado no mundo romano. O imperador Marco Aurélio (121-180), que era estoico, fundou, em 176 a.C., cátedras imperiais para ensinar o conteúdo da filosofia dessas escolas. Seu desejo principal era fazer de Atenas novamente o centro da Filosofia. Em muitas outras cidades dos territórios romanos a Filosofia também floresceu. Havia muitos professores em Roma e nas cidades do Império. Graças a pensadores romanos como Sêneca, Plutarco, Epíteto e Marco Aurélio, muitas informações sobre a Filosofia helenística sobreviveram. No entanto, entre os séculos III e IV d.C., essas escolas entraram em declínio e começaram a desaparecer, dando lugar a uma nova corrente chamada neoplatonismo. O neoplatonismo nasceu no Império Romano e foi uma tentativa de fusão do aristotelismo e do platonismo, além de outros elementos do período helenístico. Seu representante máximo foi o filósofo Plotino (205-270), para quem o Universo era


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constituído por hipóstases, espécie de camadas ou dimensões. Havia a hipóstase do Uno, equivalente a Deus, que estaria além do ser e da qual emanariam as outras hipóstases: a do nous (“espírito”) e a da “alma do mundo”. Para Plotino, o mal não existe – seria apenas a privação do bem ou a imperfeição, pois tudo estaria mergulhado no Uno. O neoplatonismo foi a única escola que subsistiu no século II a.C. Seu conteúdo filosófico do neoplatonismo foi fortemente marcado pelas questões morais e teológicas e teve grande influência na Filosofia cristã e, ainda, na Filosofia medieval.

O Uno representado como o Sol, de Robert Fludd, 1617.

A passagem para a Filosofia medieval

Museu Capitólio, Roma

A queda do Império Romano e a conversão da Filosofia

Escultura em bronze, do período entre 500 a 480 a.C. A obra representa a lenda que atribui a fundação de Roma aos irmãos Rômulo e Remo. Após serem salvos das águas do Rio Tibre, onde haviam sido jogados pelo seu tio Amúlio, eles teriam sido amamentados por uma loba.

O Império Romano teve seu início poucas décadas antes da era cristã. Augusto, sobrinho de Júlio César, tornou-se o primeiro imperador romano em 49 a.C., pondo fim ao período da república romana. Durante cerca de trezentos anos, o Império Romano se manteve praticamente intacto, estendendo-se da Península Ibérica à Pérsia. Governado por Roma, adotava uma política de respeito às culturas e às religiões locais, produzia por meio de uma economia escravagista – com tecnologia avançada para a época e grande organização – e era defendido por disciplinadas legiões militares. Diferentemente do que ocorria na democracia grega e na república romana, onde os cidadãos participavam do governo, durante o Império, Roma passou a divinizar o imperador, que se tornou o único detentor de um poder tirâ328


nico. Nesse contexto, muitas vezes, ele acabava assassinado para dar lugar a outro imperador. O Império também se caracterizava pelo enorme contingente de escravos e de miseráveis – polarizado por uma pequena elite governante, com a ausência de uma classe média – , o que, a longo prazo, foi uma das causas de sua ruína. A rígida estrutura social não permitia praticamente nenhum tipo de ascensão, com o agravante de que a aristocracia romana considerava que os plebeus deveriam ser mantidos na base servil da sociedade. A Pax Romana – conhecida como um período de pelo menos 250 anos em que as províncias imperiais viveram sem a ameaça de guerras e protegidas pela lei romana – foi, na verdade, uma época de submissão e dependência de muitos povos. Entre os povos dominados estavam os gregos, que foram reduzidos à escravidão e submetidos ao pagamento de pesados impostos. Havia ainda um povo que particularmente se incomodava com a presença romana, com seus costumes e suas imposições: o povo israelita, que nos anos 70 da era cristã se rebelou contra Roma, o que levou à diáspora (a dispersão dos judeus pelo mundo e o longo exílio de Israel, pois apenas no século XX foram repatriados). Para o judaísmo, a divinização do imperador, os costumes permissivos dos pagãos, a exploração dos impostos e a profanação de sua terra pela simples presença de não judeus (considerados adoradores de ídolos) eram fatos difíceis de aceitar. E, no seio da sociedade judaica, nasceu Jesus, com sua mensagem enraizada no judaísmo, que era completamente oposta aos valores romanos e pagãos em geral. A religião pagã era politeísta, mitológica, permeada de cultos erotizados e não tinha uma ética rígida. Basta observar que os deuses reproduziam as mazelas humanas: praticavam incestos e estupros, eram vingativos, ciumentos e imprevisíveis. A relação das pessoas com os deuses era de oferendas para o aplacamento de sua ira e a conquista de sua proteção. Em uma sociedade rigidamente hierarquizada, tratava-se de uma religião que não oferecia nenhuma alternativa, consolo ou esperança para os pobres e marginalizados. 329

Já entre os profetas judeus, presentes no que hoje conhecemos como Velho Testamento, havia ressonâncias de críticas sociais, advertências contra os abusos do poder e a opressão dos ricos. Mas a mensagem cristã avançou nesse sentido, pois é igualitária, irmanando todos os homens. Ela dirige-se ao povo, trazendo a ideia de um Deus único – o que já estava presente na crença judaica –, mas um Deus paterno, justo, amoroso, que acolhia a escória da sociedade e estava acima das imperfeições humanas. A religião politeísta, nesse momento, já se tornava puramente um mito poético para as elites sociais. Havia também, entre os socialmente bem colocados, um vácuo de espiritualidade, além do declínio dos valores cívicos, políticos e familiares que se deu durante o Império, em decorrência da corrupção generalizada dos costumes. Por isso, com o tempo, a mensagem cristã também foi ganhando a aristocracia. O cristianismo espalhou-se pelo Império Romano, de início, por meio da obra de Paulo de Tarso, que percorreu a pé as províncias do Oriente e do Ocidente, chegando até a Espanha e fundando os primitivos núcleos cristãos. Pode-se dizer que ele – um judeu helenizado com cidadania romana – foi o primeiro a lançar as bases de uma nova filosofia teológica, pois suas epístolas já continham várias ideias embrionárias que seriam trabalhadas pelos patrísticos.

Patrística Primeiro período do que se denominou filosofia cristã, vai do século II ao VII. Foi a primeira tentativa do cristianismo de adotar uma argumentação filosófica, emprestando argumentos, sobretudo, do neoplatonismo. Caracterizou-se por um tom apologético, procurando converter os não cristãos e rebater as discussões dentro do próprio seio do cristianismo, combatendo o que foi chamado de heresia. A patrística foi usada como elemento de divulgação do cristianismo e de formação da ortodoxia católica.

A expressão “filosofia cristã” é controvertida, porque, em última instância, trata-se de um pensamento submetido à fé e muitos não a aceitam como Filosofia, pois carece da liberdade racional própria do indagar filosófico. O cristianismo não é considerado uma Filosofia, pois não partiu de um método de


filósofos cristãos que, com o tempo, foram sendo considerados pelos ortodoxos como heréticos (“heresia” vem do grego e significa “escolha” – uma escolha diferente ou oposta à ortodoxia). Esses integravam também elementos neoplatônicos e de doutrinas orientais. Eusébio de Cesareia (século IV d.C.), um defensor da doutrina ortodoxa, em seu livro História eclesiástica, escrito a pedido de Constantino, comenta vinte diferentes formas de heresia. O processo de consolidação da filosofia cristã foi dinâmico e polêmico. Um exemplo é de Orígenes (185-253). Considerado um dos pais da Igreja, foi autor de cerca de oitocentas obras de filosofia cristã, nas quais integrava uma cosmovisão platônica e neo-platônica com a mensagem revelada por Jesus; no entanto, no Concílio de Constantinopla (553 d.C.), sua obra foi condenada pela Igreja católica por conter duas ideias combatidas pela já constituída ortodoxia: a pré-existência da alma (o que poderia abrir a possibilidade para a doutrina da reencarnação) e a subordinação de Jesus a Deus, abalando o conceito da Trindade (três pessoas iguais em uma só substância divina). Universidade de Liverpool, Art Gallery & Colection, Liverpool; Bridgemann Art Library, Londres, Inglaterra

Chris Hellier/Corbis

investigação racional, e sim de uma revelação divina que se deu por meio da mensagem de um profeta judeu, considerado pelos seus seguidores como a encarnação de Deus. Apenas a partir do século II, os cristãos começaram a sentir a necessidade de formular o cristianismo em termos filosóficos, para se defenderem dos ataques dos filósofos pagãos. Os primeiros três séculos do cristianismo foram de intensos debates sobre a nova doutrina, para a qual diferentes interpretações foram propostas, algumas incorporando elementos das filosofias não cristãs vigentes. Poderíamos classificar didaticamente as seguintes tendências em confronto nesse período: • filósofos não cristãos combatendo as teses cristãs, apoiando-se, sobretudo, no neoplatonismo e no estoicismo. • filósofos cristãos que, com o tempo, foram se afirmando como ortodoxos (ortodoxia é a doutrina que se pretende como a verdadeira). Dessa tendência derivou-se a doutrina católica, que acabou prevalecendo também por motivos políticos, pois o imperador Constantino (272-337), ao se converter ao cristianismo e torná-lo a religião oficial do Estado, adotou a versão católica como a oficial, banindo todas as outras propostas (a partir do Concílio de Niceia em 325 d.C.). Filósofos cristãos dessa tendência também se apoiaram no neoplatonismo e integraram a teologia judaica ao cristianismo.

Mosaico bizantino do século IX representando o imperador Constantino, em Istambul. Constantino converteu-se ao cristianismo e tornou-o a religião oficial do Estado.

Ícone da Santíssima Trindade, realizado por cretenses no século XVII. O debate teológico dos séculos IV e V abordou a relação entre Deus, Jesus e o Espírito Santo, cristalizando a Trindade em credos nos concílios de Niceia e Constantinopla.

Já Santo Agostinho (354-430) foi o representante da patrística, que sistematizou todo o pensamento católico que vinha se constituindo com Inácio de Antioquia, Irineu de Lion e Clemente de Alexandria (mestre de Orígenes). A princípio, Agostinho era ma330


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iniciam os albores da escolástica (ver capítulo 3). Assim, depois da queda do Império Romano, com as constantes invasões bárbaras, a evasão urbana e a ascensão de uma economia agrícola de subsistência, houve um declínio geral da cultura. Os filósofos latinos cristãos posteriores a Agostinho, como Isidoro de Sevilha e Boécio , fizeram releituras do que havia sido elaborado antes deles. Isidoro de Sevilha (560-636) Pensador católico espanhol da Idade Média, suas obras abordam variados assuntos (Teologia, Medicina, Astronomia e Botânica, entre outros). As ideias de Sevilha tiveram grande repercussão sobre autores medievais. Foi considerado um compilador dos conhecimentos clássicos. Sua obra Etimologias é uma espécie de enciclopédia de conceitos.

Boécio ou Anicius Manlius Torquatus Seveinus Boetius (c. 475-524) Filósofo romano, cristão, foi um dos últimos patrísticos. Preparou o advento da escolástica com suas traduções de Aristóteles e Platão. Foi preso e morto pelo Imperador Teodósio, escrevendo no período de sua prisão A consolidação da Filosofia, obra na qual mostra que a verdadeira felicidade está na posse da virtude.

Razão e fé na Idade Média Biblioteca Nacional, Paris, França

niqueísta, uma das correntes da época que pregava um dualismo universal (bem e mal, luz e sombra, espírito e matéria). Depois, converteu-se à Igreja católica e solidificou seus dogmas com uma boa articulação filosófica e grande talento literário. Influenciado pelo neoplatonismo, aceitou as ideias inatas, a predominância do espírito sobre a matéria e a unidade de Deus como o Bem supremo – entendendo o mal apenas como a privação do bem. Mas ele não admitia a pré-existência da alma, como Orígenes. Um ponto até hoje muito discutido em sua doutrina – que iria influenciar Lutero e Calvino na época da Reforma – é a questão do livre-arbítrio. Existe em Agostinho uma teoria da predestinação, defendendo que os que serão salvos já são previamente destinados por Deus, pois não depende do ser humano salvar-se, e sim da graça divina. Ele justificava essa ideia com o dogma do pecado original: o ser humano teria perdido a capacidade de se tornar bom devido ao pecado primordial de Adão e Eva, e apenas a intervenção divina poderia salvá-lo. Nesse ponto, Agostinho debateu diretamente com ­Pelágio, que considerava o contrário: se Deus havia dado aos homens o mandamento de se tornarem perfeitos, é porque eles teriam os meios de fazer isso, pelo esforço e pela vontade próprios. Agostinho também aderiu inteiramente à doutrina da Trindade, teorizando sobre ela. A questão da Trindade divina gerou polêmicas durante séculos, tendo deflagrado inúmeros conflitos. Na época de Agostinho, havia outro teólogo cristão que seguia essa linha, cujos escritos não nos chegaram porque foram destruídos por ordem de Constantino: o padre Arius. Ele interpretava a figura de Jesus como um enviado de Deus, seu filho mais perfeito, mas não como a encarnação do próprio Deus. Esta ideia estava espalhada por todo o Império Romano; porém, no Concílio de Niceia, adotou-se a doutrina da divindade de Cristo. Arius foi banido e seus escritos, queimados. A partir do Concílio de Niceia, a ortodoxia católica se fortaleceu e se tornou hegemônica no Ocidente. A patrística dos primeiros trezentos anos, em debate com outras posições, firmou-se em uma só doutrina, predominante até o século VIII, quando se

Figuras do Livro das Horas (século XV) mostrando as diferentes ordens monásticas. Os mosteiros, durante a Idade Média, tiveram um papel importante, inclusive como detentores de conhecimentos inacessíveis para a população.


lustração representando Al-Farabi.

Roger-Viollet/AFP

platônicas em suas obras. Para ele, o Universo se dividia em mundo terrestre, mundo celeste e Deus. O mundo terrestre era feito de objetos materiais, podendo ser conhecido pelos sentidos. O mundo celeste era alcançado pela inteligência e permeado de formas imateriais, que Avicena chama de anjos e espíritos. Deus é a pura essência, o Ser necessário, o primeiro motor. Já Averróis, um árabe nascido em Córdoba, Espanha, tentou separar fé e razão, para que esta tivesse autonomia. Ele chegou a formular a tese de que existiriam duas espécies de verdade: uma religiosa e outra filosófica. A verdade religiosa dizia que Deus criou o mundo do nada; a verdade filosófica, que o mundo é coeterno com Deus. Essa germinação árabe influenciou filósofos judeus e cristãos. A História, por um breve momento na Espanha muçulmana (em torno do ano 900), presenciou a convivência das três correntes de pensamento monoteísta em um diálogo respeitoso: islâmicos, judeus e cristãos convivendo lado a lado. Os filósofos árabes, sobretudo Avicena e Averróis, tiveram influência na formação da escolástica medieval cristã, exercendo grande impacto na maior sistematização desse período, que foi a filosofia de São Tomás de Aquino. Ambos eram médicos e deram contribuições científicas significativas também nessa área.

Ria Novosti

AFP

O sistema feudal se estabeleceu na Europa, fixando o homem no campo e estratificando a sociedade em senhores, servos e clérigos – tendo estes conservado, em mosteiros religiosos, remanescentes da cultura escrita. Na Idade Média, reis, militares, nobres e vassalos eram, em sua maioria, analfabetos. Durante os séculos V ao VIII, houve de fato um retraimento cultural enorme nos países já cristianizados e um trabalho intenso de conversão de povos que ainda mantinham ritos pagãos. A Alemanha, por exemplo, só foi plenamente convertida ao cristianismo no século VIII; a Suécia, no século XI. Porém, enquanto o cristianismo se espalhava pela Europa e se firmava, abolindo as últimas manisfestações do paganismo, estabelecendo-se na sociedade feudal, outra cultura florescia em terras do Oriente Médio e do Mediterrâneo e da qual viria o renascimento da Filosofia no Ocidente: a cultura muçulmana. Dessa cultura, que esteve durante muitos séculos entranhada na Europa (os árabes estiveram por oitocentos anos na Espanha, sendo definitivamente expulsos apenas em 1492, ano da descoberta da América), surgiram filósofos que tinham acesso à Filosofia grega, sobretudo a aristotélica. Filósofos como Al-Farabi, Avicena e Averróis (ver biografias no capítulo 2) trabalharam largamente com elementos da Filosofia grega, pensando-os a partir da visão islâmica, mas guardando grande originalidade e liberdade de pensamento. Avicena, por exemplo, que foi leitor de Aristóteles, também incorporou teorias neo-

Ilustração mostrando o filósofo Avicena.

Ilustração (detalhe) de Carlos Magno (747-814), rei dos francos, participando da construção da catedral da ­cidade de Aachen, na Alemanha.

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Biblioteca Nacional, Paris, França

A partir do século VIII, temos, portanto, dois florescimentos culturais que fariam da Baixa Idade Média um momento de fecundidade: a cultura islâmica e o renascimento carolíngio. Com a coroação como imperador do Sacro Império Romano, Carlos Magno queria retomar as tradições do Império e se empenhou em incentivar a cultura. Recomeçava, na Europa, a preocupação em se estabelecer escolas – que se desenvolveram nesse período nos mosteiros e conventos – com a estrutura que se prolongaria durante séculos e se projetaria para a universidade, uma instituição fundada na Idade Média. Estudava-se o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e música). Scholasticus, a princípio, era o professor dessas primeiras escolas medievais; mais tarde passou a ser também professor de Filosofia e Teologia, contexto do qual se derivou o termo escolástica, característico da Filosofia desse período. Dentro da mentalidade medieval, a Filosofia não estava comprometida com a busca livre da verdade, mas com um ensino demonstrativo, explicativo e comentado da verdade revelada por meio das Escrituras Sagradas. A subordinação da razão à fé e a preocupação de se formar cristãos fiéis aos mandamentos da Igreja católica (que mantinha um poder hegemônico na Europa) eram traços indissociáveis da Filosofia. O princípio da autoridade era o mais invocado na Filosofia medieval e fartamente usado inclusive pelo maior dos escolásticos: São Tomás (1225-1274). Trata-se de invocar o apoio da Bíblia, dos pais da Igreja, dos concílios católicos e mesmo de filósofos pagãos para apoiar a própria argumentação. É uma forma de pensar sempre recorrente à tradição, o que revelava seu posicionamento conservador. Outro aspecto da Filosofia medieval era seu entrelaçamento com a ordem social estabelecida. Para o cidadão de então, tratava-se de uma ordem divina e as hierarquias terrenas refletiam as hierarquias celestes. Assim, a autoridade máxima na Terra era justamente a do Papa, por representar para os católicos a autoridade herdada diretamente de Deus.

Ilustração para a obra Sobre a predestinação divina, de João Escoto Erígena, realizada a partir de um pedido de Carlos, o Calvo.

Mesmo neste contexto de restrições ao livre pensar – ou, pelo menos, de um pensar condicionado à religião –, houve pensadores brilhantes. O primeiro deles, ainda em um período pré-escolástico, foi João Escoto Erígena . Para ele, não existia contradição entre a fé e a razão, entre a autoridade da Bíblia e a investigação livre do homem. Essa sua visão derivava de uma postura muito otimista em relação ao ser humano, que, para ele, possuía uma razão divina em si; portanto, a autoridade das Escrituras e dos grandes filósofos se identificava com a razão investigativa, pois ambas procediam da mesma fonte: a divindade. João Escoto Erígena (810-877) Filósofo e teólogo irlandês medieval, tinha uma visão de mundo que contrastava em alguns aspectos com a ortodoxia católica; por isso, foi perseguido por suas ideias. Considerava que o bem era a única realidade, que todos os seres humanos estavam destinados ao bem e que Deus estava presente em todas as coisas e em todos os seres.


seus domínios, é limitada. Nesse sentido, Aquino usa a invocação da autoridade, mas incluindo a autoridade de Aristóteles e outros filósofos pagãos no que se referia aos temas da razão natural. Por exemplo, para provar a existência e os atributos de Deus, ele usa, predominantemente, argumentos de Aristóteles e de Avicena – um pagão e outro muçulmano –, complementando com argumentos da fé católica quando se refere ao mistério da Santíssima Trindade. Mary Evans Picture Library

Outra grande personalidade da Filosofia medieval, destacando-se como um precursor do racionalismo moderno (ver boxe Informação no capítulo 2) e perseguido pelo dogmatismo da Igreja, foi Pedro Abelardo (ver biografia no capítulo 2), cuja elaboração filosófica coincide com o nascimento da universidade. Ele lecionou na Escola da Catedral de Nossa Senhora de Paris, que se tornaria a Universidade de Paris. Abelardo proclamou em pleno contexto medieval a soberania da razão. Sem renegar a fé cristã, propôs a investigação racional como critério único de verdade, incluindo a dúvida como instrumento necessário para essa investigação. A universidade, a partir de Abelardo, ganhou o status de fórum de ensino e discussão filosófica. Nessa instituição, ficava claro o entrelaçamento necessário entre formação e investigação na Filosofia medieval. As aulas eram constituídas em dois formatos: a lectio e a disputatio. A primeira, traduzida como leitura, era o comentário sobre um texto, e a segunda, traduzida como disputa, era o exame e a discussão de prós e contras de determinada ideia. Essas disputas tinham um caráter estimulante e muito participativo, pois havia questões propostas pelos próprios alunos, debates públicos entre professores com diferentes pontos de vista, e debates entre professores e alunos – com a presença de ouvintes até de outras cidades. Jacques Le Goff, historiador medievalista, descreve em sua obra Os intelectuais da Idade Média a efervescência desses debates nas universidades medievais. São Tomás de Aquino foi o maior sistematizador da filosofia escolástica medieval, com a formulação do que se tornaria a doutrina oficial católica válida até hoje. Ele, em última análise, sempre sujeitou a razão à fé, mas aceitava uma esfera de racionalidade que estaria aquém da revelação bíblica. Existiria, na sua concepção, uma razão natural, como que uma presença de pressupostos básicos na mente humana, pelo simples fato de sermos humanos e criaturas de Deus. A revelação divina completaria o que falta a essa razão humana, que, apesar de funcionar e ser respeitada em

Retrato de São Tomás de ­Aquino, que sistematizou a ­filosofia escolástica medieval.

Dentro do método da disputatio, Tomás de Aquino escreve em numerosos volumes sua mais vasta obra: A suma teológica. Em forma de exame de prós e de contras, para chegar a uma afirmação qualquer, coloca a razão a serviço da fé, sem deixar, no entanto, de realizar um exercício de racionalidade bastante amplo e profundo. O último dos escolásticos – ou o primeiro dos modernos – que provocou a primeira crise séria na tradição medieval foi o inglês Guilherme Ockham (ver biografia no capítulo 2), no século XIV. Ele propôs o desligamento de todo compromisso entre razão e fé, optando por um caminho de investigação empírica e independente, o que proporcionaria, também, mais liberdade à prática da fé. Além disso, no plano político, propôs que a autoridade papal se desligasse do poder temporal e ficasse restrita apenas à sua liderança espiritual. 334


Bridgeman Art Library

A música sacra desempenhou um papel importante na aprendizagem dos textos bíblicos durante a Idade Média. Na imagem, do início do século XIV, aparecem três clérigos praticando o canto, acompanhados do saltério (instrumento de cordas medieval). O uso do termo sacra foi registrado pela primeira vez na Era Medieval, quando se concluiu que era necessário elaborar uma teoria musical específica para as canções executadas nas missas. Sua expressão mais antiga é o canto ­gregoriano, gênero musical de cunho vocal, composto por uma única melodia.

O Renascimento e a Filosofia moderna

Galleria degli Uffizi, Florença

O homem como centro

O nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, c. 1485-1486, uma das obras ícone do Renascimento.

As divisões históricas são sempre polêmicas,

sobretudo no campo das ideias, pois elas sofrem um processo contínuo de transformação que não

se encaixa em períodos estanques. A transição do pensamento da Idade Média para a Idade

Moderna apresenta-se, assim, como uma longa maturação: iniciada no próprio período medieval, 335

nos séculos XIII e XIV, passou por um período de mudanças rápidas, o Renascimento, e se firmou como Filosofia moderna no século XVII. Os últimos escolásticos, como Roger Bacon e Guilherme Ockham – dois franciscanos ingleses –, já anunciavam uma atitude moderna, de não sujeição à fé, de busca independente da verdade e de valorização da experiência e da razão. As condições sociais, econômicas e culturais começaram justamente a se modificar no século XIII, que é considerado pelos historiadores como um período de gestação do Renascimento, processo iniciado na Itália. Marco Polo, um veneziano que chegou à China no século XIII, simbolizou o início de uma nova época para a consciência europeia: o homem ocidental começava a sair de suas raízes feudais, da servidão da terra, para expandir-se pelos mares em busca de novos mercados, encontrando outras culturas. As Cruzadas, guerras religiosas desse período que levaram os europeus ao Oriente Médio e ao norte da África,


Margaret Smeaton/ Shutterstock

também foram importantes nesse contexto. Esse processo de saída dos limites ocidentais se estendeu pelos séculos seguintes, tendo como momentos culminantes a descoberta da América e a expansão marítima europeia pelo Oriente e pelo Ocidente nos séculos XVI e XVII. Com a gradual decadência do modelo feudal, os centros urbanos renasceram na Europa e, com eles, surgiu a nova classe dos burgueses (de início, referência aos habitantes dos burgos). A vida estática da servidão dos campos, regida pelas regras da Igreja, foi se modificando a favor de novas mentalidades. Nesse contexto, muitas das principais cidades europeias passaram a contar com universidades influentes: Paris, Oxford, Cambridge, Bolonha, Salamanca, Praga e Heidelberg, entre outras. Esses centros de efervescência intelectual estavam a serviço da escolástica e sob o domínio da Igreja. No entanto, constituíram-se como focos de debates que favoreceram o amadurecimento do pensamento, de modo que entre os próprios escolásticos havia sementes do espírito moderno.

Universidade de Oxford, na Inglaterra

A transição para a Filosofia moderna – cuja raiz está presente no fim da Idade Média e cuja proposta perdurou até o século XX – ocorreu no período do Renascimento. A Renascença começou na Itália e teve uma fase importante durante o século XIV (o chamado quattrocento) e ocorreu porque nas terras italianas o feudalismo sempre foi pouco enraizado. Além disso, havia um permanente contato da Itália com o Império Bizantino e com o Oriente Médio, por meio do comércio veneziano e genovês. A Renascença se esten-

deu ainda pelos séculos XV e XVI, coincidindo com outro fenômeno radicalmente transformador, que foi a Reforma. No Renascimento, algumas tendências filosóficas se destacaram: Humanismo – A consciência filosófica, cultural, estética e política voltou-se para o ser humano, perdendo o enfoque teocentrista. O pensar se horizontalizou, olhando a terra e diminuindo sua verticalidade teológica. O ser humano passou a ser valorizado como senhor da natureza, como ser pensante e brilhante, artista e autor das coisas da Terra. Os próprios prazeres terrenos perderam o excessivo peso do pecado imposto pela Igreja. Mas o ser humano permaneceu exaltado como criatura divina, como filho privilegiado do Criador. O humanismo renascentista não se desenvolveu com pensamento ateu entre seus principais autores, como Pico della Mirandola, Erasmo de Rotterdam e Thomas More. Naturalismo – Começou-se a buscar explicações naturais para os fenômenos da vida, da natureza e do Universo, assistindo-se ao nascimento da Ciência. O Universo passou a ser entendido como ordem matemática, que pode ser interpretada pela razão humana, servindo-se de instrumentos de observação e mensuração. Grandes astrônomos – como Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, Johannes Kepler e Giordano Bruno – fizeram nascer a ciência da observação e da interpretação da natureza, como a descoberta de leis matemáticas. Um conceito novo revolucionou a cosmologia: o conceito de infinito. A volta às fontes greco-romanas – A Idade Média, no seu combate contra o paganismo no intuito de cristianizar a civilização, havia reprimido todas as heranças da Antiguidade clássica. Essa repressão foi feita a duramente tanto contra os remanescentes das tradições pagãs como contra as divergências dentro do próprio cristianismo, no combate aos hereges. A Academia Platônica, por exemplo, que havia sido fundada em 387 a.C., foi fe336


chada em 529 d.C. pelo Imperador Justiniano, juntamente com o Liceu de Aristóteles, fundado em 335 a.C. Os renascentistas, por sua vez, voltaram-se para a arte, para a literatura e para a Filosofia da Antiguidade, fazendo traduções, buscando inspirações e se reapropriando de ideias e propostas antigas. A obra de Platão, por exemplo, que era quase desconhecida para os medievais, foi lançada em 1400, em Veneza, e influenciou fortemente os astrônomos, especialmente pela sua valorização da Matemática.

A Reforma Os antecedentes da Reforma protestante, que quebraria a hegemonia da Igreja católica, encontravam-se, no século XIV, presentes no teólogo, professor da Universidade de Oxford e primeiro tradutor da Bíblia para o inglês, John Wycliffe (c. 1328-1384). Ele foi indicado pelo rei Eduardo III para mediar as diferenças entre a Inglaterra e Roma, como cobranças de taxas e indicações para postos na Igreja. Wycliffe se pôs contra o papado e pregou a necessidade da leitura direta da Bíblia e a separação entre Igreja e Estado. O teólogo com suas ideias inspirou ainda outro reformador, o tcheco Jan Huss (13691415), reitor da Universidade de Praga, precursor da reforma protestante, que, por suas posições tornou-se alvo da Igreja católica e acabou condenado à fogueira pelo Concílio de Constança em 1415. No mesmo rumo de Wycliffe e Huss, Martinho Lutero, na Alemanha do século XVI, condenou os abusos da autoridade papal e reivindicou a livre interpretação da Bíblia, a liberdade da fé e a autonomia do poder estatal em relação à autoridade religiosa. Mas, ao contrário de seus predecessores, Lutero conseguiu o apoio dos príncipes alemães e a quebra da unidade católica do Ocidente ao propor a liberdade religiosa. Outro reformador, João Calvino, um francês radicado na Suíça, seguiu-lhe os passos, apesar de haver 337

divergências nas propostas de ambos, como no que se refere à aceitação a teoria da predestinação, quanto à liturgia e aos sacramentos. Lutero não aceitava a ideia da predestinação e Calvino sim, pois considerava que poucos eleitos teriam direito à salvação eterna, entre os quais os bemsucedidos ou os ricos, o que abriu caminho para a identificação da burguesia com o capitalismo. Os protestantes, entretanto, não exerceram a tolerância que reivindicavam para si, pois dissidentes do protestantismo eram igualmente eliminados como heréticos. Um exemplo foram as perseguições aos anabatistas. Outro exemplo foram os hussitas, continuadores dos pensamentos de Jan Huss, que foram rejeitados tanto por católicos como por protestantes. Os anabatistas eram adeptos de seita protestante do século XVI, que desaprovava o batismo da criança antes do uso da razão, e preconizava a reiteração do batismo na idade adulta, no caso dos que tivessem sido batizado antes. Anabatista Adepto de seita protestante do século XVI, que desaprovava o batismo da criança antes do uso da razão (da compreensão das coisas) e preconizava a reiteração do batismo na idade adulta no caso dos que tivessem sido batizados antes.

O reformador João Calvino agiu de forma tão inquisitorial quanto os inquisidores católicos, mandando queimar vivo o médico espanhol Miguel Serveto (1511-1553) – teólogo e cientista que descobriu como funciona a circulação sanguínea – por considerá-lo herético, uma vez que ele não aceitava o dogma da Trindade. A liberdade religiosa anunciada pela Reforma nasceu semeada de intolerância e foi preciso alguns séculos para que o clamor de espíritos mais liberais aplacasse o sangue das guerras e diminuísse o número de fogueiras. A partir da Reforma, deflagrou-se uma reação, denominada Contrarreforma. Tratava-se de um programa da Igreja católica de reforma interna, de reconquista de adeptos e de combate às divergências. Assim, justamente no Renascimen-


Roger Bacon, filósofo inglês, retratado em gravura do século XVI.

Na Contrarreforma, surgiu a Companhia de Jesus, que exerceu com rigor os comandos da Igreja católica a fim de reconquistar adeptos que estavam se desvirtuando e conquistar novos fiéis no Oriente e nas Américas. Nos séculos XVI e XVII, houve também um recrudescimento da Inquisição, sobretudo na Espanha e em Portugal. A colonização da América Latina foi um projeto ancorado no programa da Contrarreforma. O Brasil foi conquistado dentro desse espírito de sujeição monárquica e de doutrinação jesuítica, sem reflexo dos avanços que a modernidade vinha propondo. Observa-se assim que, se por um lado os espíritos se arejavam e novos horizontes se abriam na cultura, por outro o fanatismo, a violência e o obscurantismo demoraram a se desfazer. Uma das heranças positivas deflagradas pela Reforma foi a preocupação com a educação. Pela necessidade de instruir o povo para a leitura da Bíblia, o próprio Lutero propôs a criação de escolas pelos príncipes, a obrigatoriedade da educação para as classes populares e o uso de métodos lúdicos para as crianças terem prazer em aprender. A Reforma teve uma marca profunda na área da educação, o que se comprova pelo fato de os grandes educadores que fizeram as revoluções pedagógicas dos séculos XVII, XVIII e XIX terem nascido em países protestantes – entre eles, destacam-se Comenius, Pestalozzi (ver biografia no capítulo 4) e Rousseau (ver biografia no capítulo 3). Os jesuítas também se empenharam em aberturas de colégios e em um amplo processo de educação, do qual no Brasil, durante os duzentos primeiros anos de colonização, foram os únicos promotores. Dessa forma, ainda que sua pedagogia tenha tido caráter catequético, os jesuítas contribuíram à expansão cultural.

Roger Bacon (1214-1294)

O século XVII

Crédito

to e no século XVII – marcado pelo racionalismo e pelo avanço das ciências –, a intolerância e a violência foram maiores do que durante o período medieval. Enquanto Pedro Abelardo, Guilherme de Ockham (ver biografias no capítulo 2) e Roger Bacon haviam sido perseguidos e aprisionados temporariamente, Giordano Bruno foi morto na fogueira em 1600 e Galileu foi obrigado a abjurar por ordem da Igreja católica. Kepler foi perseguido por protestantes e católicos (ver biografias de Bruno, Galileu e Kepler no capítulo 3.

Indicar fotografia

Coleção Roger_Viollet/AFP

Imagem do julgamento de Galileu Galilei ou Giodano Bruno.

Filósofo franciscano inglês, fazia experimentações científicas durante a Idade Média. Desenvolveu a ótica, criando lentes para óculos e um precursor do telescópio. Descrevia o método científico como um processo de observação, hipótese e experimentação.

O século XVII foi o século dos grandes racionalistas e dos grandes empiristas. A razão se firmou como autônoma da fé – o que não significa que se tornou ateia – e o experimentalismo 338


também buscou seu caminho, firmando a Ciência como promessa de domínio do mundo e de prosperidade material. Como intermediária entre a razão e o empirismo, estava a Matemática, vista como uma articulação natural e necessária para desvendar o mundo, seja no plano das ideias lógicas, seja na ordenação da experiência e da observação. Dois nomes simbolizaram bem essas tendências do século XVII: Francis Bacon e René Descartes (ver biografias no capítulo 2). Bacon, no final do século XVI e início do XVII, deu grande impulso às pesquisas científicas e realizou críticas ao modelo da lógica aristotélica, que, em sua opinião, escravizara durante muito tempo a Filosofia e a Ciência. Assim, ele é considerado um dos filósofos que iniciaram a modernidade. Sua contribuição foi a introdução do empirismo, no qual todas as proposições, para serem verdadeiras, devem passar pela verificação e avaliação da experiência e da pesquisa. Com isso, pretendia superar a filosofia aristotélica. O conhecimento científico, na sua concepção, deve estar a serviço do ser humano e permitir a ele dominar a natureza, imperando sobre as coisas. Mas, para que a Ciência impere, os indivíduos devem deixar de lado os preconceitos, chamados de ídolos pelo filósofo, que impedem o avanço da razão. O filósofo Bacon descreveu uma utopia tecnocrata na obra Nova Atlântida, em que coloca um mundo dominado pela técnica, onde a Ciência traz todas as soluções à humanidade e os próprios governantes são cientistas. Essa visão de Bacon teve influência em concepções cientificistas dos séculos XIX e XX, que adotaram a ideia da Ciência a serviço da felicidade humana e a rejeição de outras áreas do conhecimento. No mesmo rumo de Bacon, John Locke (ver biografia no capítulo 2) deu continuidade a essa tradição empirista inglesa (que vinha desde a Idade Média, com Roger Bacon e Guilherme Ockham).

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Locke se interessou em determinar como se dá o conhecimento humano: segundo ele, pelos sentidos, mas organizados pela razão. Descartes, por sua vez, elegeu a razão como fonte soberana de conhecimento humano. Procurou construir um sistema filosófico capaz de superar a filosofia escolástica, partindo em primeiro lugar de uma profunda desconfiança por tudo aquilo que tinha aprendido na escola jesuítica em que estudou. Para ele, a filosofia escolástica não merecia confiança, pois se contradizia em suas opiniões e especulações. Adotou, portanto, a dúvida sistemática como princípio de seu método de busca da verdade. Descartes não atentou, entretanto, para o mundo dos fenômenos externos, mas para sua própria interioridade. Desta forma concebeu uma razão pensante, espiritual e a própria presença de um Deus racional. Depois dessa certeza de sua subjetividade, passou a olhar o mundo externo para interpretá-lo dentro de uma ordem matemática. Seguindo os passos de Descartes, destacaram-se mais dois filósofos: Espinosa e Leibniz (ver biografias no capítulo 2), que criaram grandes sistemas racionalistas metafísicos. Espinosa identificou Deus e a natureza em uma perfeita ordem universal, na qual a vontade humana se encontra determinada, porque é animada pela centelha divina, que está em toda parte. Apesar de seu racionalismo, Espinosa atribuiu grande valor às emoções, identificando-as inclusive como fonte de ação moral. Leibniz, um brilhante matemático que, segundo se supõe, descobriu o cálculo infinitesimal, também via no Cosmo uma ordem universal e matemática, uma unidade divina. Entretanto, para ele, essa unidade se multiplica em infinitas mônadas, que são particularizações da divindade. Essa razão moderna, porém, tão confiante em si mesma, foi ao mesmo tempo exaltada e criticada no século no XVIII, durante o Iluminismo.


Dois séculos entrelaçados O século XVIII e o Iluminismo

Coleção Roger-Viollet/AFP

O século XVIII foi marcado por uma vida filosófica vigorosa e por complexas transformações nos campos da política, da cultura, da economia e da sociedade. Podemos considerar três grandes fatores como linhas mestras para compreendermos esse século: 1) a ascensão da classe burguesa em vários países da Europa, a consolidação do capitalismo e a criação de um mercado mundial; 2) as ideias inovadoras e de reformas, que, em geral, tinham o anseio de iluminar e libertar as pessoas de modelos opressores institucionais e sociais, fazendo nascer, assim, a filosofia iluminista; 3) as três grandes revoluções: a americana, a francesa e a industrial.

Cena da Revolução Francesa em ilustração de Jacques Onfroy de Breville.

A ascensão da burguesia No século XVIII, a Europa assistiu ao enriquecimento da classe burguesa e da classe média em diferentes países. É certo que a ascensão da burguesia, como uma classe poderosa, favoreceu o desenvolvimento social, econômico, político e científico graças à atitude assumida de defensora de novos ideais e reformas políticas que permitiram pôr em prática seus novos interesses.

O poder da nobreza, detentora de terras, passou a ser visto desfavoravelmente pelos comerciantes e mercadores da classe média burguesa, que conquistou riquezas graças à sua iniciativa de promover empreendimentos comerciais em grande escala. O comércio da burguesia era feito em âmbito mundial, o que promoveu e ampliou sua riqueza, aumentando sua força diante da nobreza enfraquecida. Esse contexto proporcionou o fortalecimento do capitalismo. Assim, o século XVIII se orientou no sentido das reivindicações, por parte dessa classe emergente, dos seus direitos políticos e de propriedade e da redução dos direitos da nobreza. Em geral, a burguesia via com desconfiança o governo e a nobreza em virtude da manutenção dos privilégios da nobreza, o que levou a um conflito entre essas classes. Assim, a burguesia surgiu como força revolucionária, defendendo novos ideais e novos valores. Os cidadãos burgueses da França, da Inglaterra, e mesmo da Alemanha defendiam uma maior participação política e liberdade comercial. Na Inglaterra, todo esse clima levou à Revolução Industrial e, na França, à Revolução Francesa: as duas revoluções que mudaram a face do mundo ocidental. As pessoas do século XVIII, principalmente da classe burguesa e da elite intelectual, conseguiram se apossar das forças do Estado, realizar reformas políticas, fazer mudanças sociais e culturais, incentivar empreendimentos renovadores e transformar a mentalidade de uma época, deixando um importante legado para as gerações dos séculos seguintes.

A Filosofia e a cultura Esse contexto moldou uma nova mentalidade e o surgimento da visão do indivíduo como um sujeito social. Apareceram novas concepções de Estado, economia e cultura e a racionalidade científica começou a ganhar espaço. No plano econô340


Coleção Roger-Viollet/AFP

mico, surgiram as ideias de liberdade comercial e de racionalização utilitarista dos processos econômicos (uma racionalidade a serviço de finalidades práticas). Na Filosofia, ocorreu a racionalização de todo o edifício do conhecimento e dos valores morais. Emergiu a figura de um novo tipo de intelectual, militante e participativo, que se caracterizou por assumir um papel social de luta para disseminar a cultura racionalizada e diminuir a ignorância das pessoas. O intelectual do século XVIII lutou por liberdade de ação e julgamento. O efeito desse processo na educação também foi grande, pois reivindicou-se uma melhor formação para os cidadãos e a alfabetização de todos. A Filosofia do século XVIII ficou conhecida como “iluminista” por pretender “iluminar” as pessoas com as luzes da razão. Voltaire (ver biografia no capítulo 3), por exemplo, exaltava as pretendidas mudanças como aquilo que traria um futuro melhor, como uma organização política e social mais humanitária, com mais liberdade, menos miséria e opressão. Tais ideias foram típicas dos pensadores desse século. Outros iluministas, como Diderot (ver biografia no capítulo 6) e Kant (ver biografia no capítulo 2), viram seu tempo entendiam que o pensamento humano tinham atingido uma maturidade, observando que o ser humano passou a acreditar em si próprio, deixando de lado a subordinação à revelação divina e à tradição cultural, entendendo que seu próprio intelecto poderia conduzi-lo à verdade.

Voltaire, escritor francês, em ilustração de Jean Huber.

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Continuando o empreendimento dos racionalistas do século XVII, o Iluminismo sugeriu que a tradição carregava crenças errôneas e que deveria ser construído um conhecimento baseado na razão. Os seres humanos estavam subordinados ao passado por opressões institucionais, políticas, religiosas e culturais; a função da Filosofia iluminista seria a de ajudar a libertá-los, implementando a razão como fonte única de autoridade. A razão, para esses pensadores, assume o papel de construção de uma nova cultura e de uma nova sociedade. Entretanto, o conceito de razão dos filósofos do século XVIII era diferente daquele dos filósofos do século anterior. A razão iluminista é controlada pela experiência, que a limita. Embora o ser humano não possa ser reduzido a ela, pois ele também é emoção (como reconheceu o filósofo iluminista Rousseau), a razão é seu principal guia. Para os iluministas, a filosofia do século XVII estivera muito empenhada em questões metafísicas e divinas, cabendo à filosofia iluminista trazer a razão para os eixos do mundo natural e humano. Essa foi a crítica feita por Kant: para ele, o universo da razão é o mundo dos fenômenos, pois a razão humana tem severos limites para conhecer a esfera divina. O Iluminismo foi um movimento multifacetado. No entanto, apresentou em diversos países europeus – e mesmo não europeus – linhas gerais semelhantes: a crença na capacidade da razão e uma postura filosófica crítica diante das coisas. Em termos gerais, poderíamos resumir as atitudes iluministas da seguinte forma: • as condições de vida poderiam ser melhoradas pelas luzes da razão, pois esta pode ser usada por todos. Os iluministas assumiram o projeto de elaborar um novo saber baseado na razão e um conhecimento do mundo natural e social. Ciências como Química, Zoologia, Física, Geometria, Matemática e Astronomia apresentaram novos conteúdos e foram colocadas em bases de observação empírica: o saber deveria ganhar bases empíricas e ser colocado a serviço dos seres


Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia

humanos, a fim de melhorar suas vidas e se tornar útil. Dessa forma, o progresso seria inevitável. a razão deveria iluminar o Estado e a política. A classe burguesa emergente e os setores do povo criticavam as arcaicas instituições políticas e as velhas estruturas sociais ligadas à nobreza. Porém, em um primeiro momento, as propostas iluministas não queriam transformar o Estado monárquico, mas reivindicar que esse fosse regido por leis. Em vários países da Europa, surgiram reis e rainhas influenciados pelo Iluminismo, procurando governar orientados pelos pensadores e dentro do modelo progressista do século XVIII – são os chamados déspotas esclarecidos. Em um segundo momento, o pensamento iluminista passou a propor mudanças mais profundas. Na nova proposta, o Estado deveria passar de monárquico a um Estado de direitos, dos cidadãos. A burguesia – que trabalhava para remodelar o Estado e adequá-lo aos seus interesses, defendendo a ideia de que os homens tinham direitos naturais e todos os cidadãos deveriam ter direitos iguais inalienáveis – passou a se apropriar dos ideais iluministas para realizar as reformas que desejava. Nos Estados Unidos, com a Revolução Americana, constituiu-se a Declaração Americana dos Direitos do Homem. Na França, com a Revolução Francesa, foi redigida, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Ambas foram inspiradas no ideário iluminista, que defendia a liberdade, a igualdade, a fraternidade, a justiça, a tolerância e o direito à propriedade.

Gravura retratando Catarina, a Grande, que realizou amplas reformas na Rússia do século XVIII, sendo considerada um exemplo do despotismo esclarecido.

em termos religiosos, prevaleceram duas posturas distintas no seio do movimento iluminista. Em geral, os iluministas assumiram uma postura cética em matéria de religião instituída e dos dogmas de fé e vários, inclusive, mostraram um tom irônico em relação às teses religiosas. As duas atitudes predominantes foram: 1) posições racionais e céticas geraram um pensamento ateu e materialista, que negou a existência de Deus e de uma realidade metafísica; 2) houve uma tentativa de racionalização da religião. Rousseau e Voltaire diziam acreditar em um Ser superior, necessário, inteligente, eterno. Deus, para eles, era uma conclusão racional, e não uma questão de fé, pois a razão ajudaria a libertar a religião das suas superstições e da ignorância. Essa interpretação de Deus, no seio do Iluminismo, foi chamada de deísmo. A religião deveria se orientar pelos princípios da tolerância religiosa e do respeito à liberdade de pensamento. a moral também assumiu a forma racionalizada e laica. Passou-se a questionar uma visão da moral comprometida com a tradição, com a religião e com as convenções sociais. Assim, tradição e religião não poderiam servir de base para a moralidade humana, que deveria se orientar pelas conquistas da razão. havia uma preocupação em difundir os ideais de uma nova cultura a fim de iluminar toda a humanidade. A divulgação das ideias iluministas ocorreu graças à imprensa diária, aos ensaios escritos por intelectuais e à Enciclopédia. A correspondência trocada entre os pensadores de diferentes nações também foi importante. Os cafés e os salões onde a burguesia se reunia para conversar sobre os assuntos filosóficos da época, também eram locais de troca de ideias. a educação também foi vista como um importante instrumento na formação de um novo ser humano e, por isso, precisava ser reformulada. Ela seria o meio mais eficaz para dotar a sociedade com novas luzes, cabendo-lhe promover a emancipação intelectual e cultural 342


Christel Gerstenberg/Corbis

dos indivíduos, libertando-os das tradições, da ignorância e dos preconceitos.

Operários trabalhando em máquinas de impressão, publicada na Enciclopédia, um dos meios de maior difusão das ideias iluministas na França, no século XVIII.

As três revoluções A primeira grande revolução do século XVIII foi a Revolução Americana, inspirada nos ideais de liberdade e de direitos humanitários do Iluminismo. Ela foi marcada por reformas sociais, culturais e políticas, de influência liberal e democrática, defendidas pelas classes burguesas e pelos intelectuais norte-americanos. Foi também fruto da rejeição à opressão inglesa por parte das classes ricas que controlavam os Estados Unidos. Elas buscavam autonomia e emancipação. No entanto, tratou-se de uma revolução burguesa, e não universal, porque o sistema escravista foi mantido e os negros não foram incluídos em igualdade de direitos na Constituição. Já na França, a Revolução Francesa surgiu do crescimento do poder da burguesia, que se aliou a grupos de artesãos e camponeses que estavam profundamente insatisfeitos com a situação de poder da nobreza. Os objetivos eram concretizar a reforma política, cultural e social no país, com um projeto de conhecimento racionalizado, e livrar os seres humanos da opressão da Igreja. O conflito entre os interesses da nobreza e do clero e as novas forças sociais, com suas ideias inovadoras, prepararam o ambiente da revolução. Como resultado, ela concretizou os ideais burgueses de controle do Estado, de mudança da cultura e da 343

educação, de uma exploração mais eficiente das terras e de um comércio mais livre. E foram os interesses da burguesia que prevaleceram. O século XVIII assistiu a outra grande revolução, esta mais econômica do que política, iniciada na Inglaterra, que foi a Revolução Industrial. A classe burguesa, já bastante enriquecida, queria ainda maiores lucros, menores custos e produção acelerada, buscando alternativas para melhorar a produção de mercadorias. Somado a isso, havia uma necessidade de aumentar a produção para atender o mercado mundial, o que levou a Inglaterra a mecanizar o processo de produção, resultando na Revolução Industrial. Com os consideráveis avanços tecnológicos, foram inventadas a máquina a vapor e as máquinas destinadas a trabalhar o algodão e surgiram também novos métodos de produção, mais eficientes. A máquina substituiu a mão de obra humana e as indústrias se tornaram os locais da produção por excelência, o que desencadeou profundas transformações no seio da sociedade. Os intelectuais do século XVIII, como Diderot e Condorcet (ver biografia no capítulo 3), viam com bons olhos as conquistas do comércio e da indústria, pois trariam prosperidade e riqueza. O clima de otimismo e progresso em que estavam mergulhados os pensadores daquele século não permitiu que muitos deles vissem problemas como o fosso econômico e político que separava as classes sociais.

Entre o idealismo e o romantismo O filósofo alemão Immanuel Kant, um dos mais importantes iluministas, havia feito uma crítica aguda da razão, reduzindo seu alcance para o mundo dos fenômenos e negando que ela pudesse acessar a metafísica. Kant não negava a existência do ser enquanto essência, e sim a capacidade do indivíduo de alcançá-la racionalmente. Essa crítica deflagrou dois movimentos diferentes: 1) o cientificismo, de que falaremos adiante, para o qual só os fenômenos empíricos devem


ser levados em conta e a realidade se reduz ao mundo material. Nesse cientificismo, o materialismo, uma característica já presente em autores do século XVIII, foi fortemente adotado por pensadores do século XIX, com o esvaziamento total de qualquer realidade metafísica; 2) o idealismo, como concepção nova e bem aceita entre os discípulos de Kant, como Fichte, seu contemporâneo, e Hegel, na virada do século XVIII para o século XVIII. A razão, então, volta-se para si mesma e se torna absoluta. Ocorreu, assim, um paradoxo: enquanto os iluministas – entre eles o próprio Kant – falavam de uma racionalidade individual, uma razão autônoma de cada um, os idealistas, a partir de Fichte, passaram a usar o termo “Razão”, com inicial maiúscula. Tratava-se de uma Razão absoluta, da qual cada indivíduo fazia parte, mas que se constituía como um todo maior do que cada partícula. Uma Razão coletiva, que está em todas as coisas, como essência de tudo; um espírito panteísta, uma filosofia da totalidade: essa era a proposta dos idealistas. Entre os idealistas, o que teve maior destaque foi Hegel (ver biografia no capítulo 2), por suas concepções originais. Ele rompeu com o principal conceito da lógica tradicional: o ser que é, é; o que não é, não é; se sou A, não posso ser “não A”. Hegel introduziu a dialética, uma lógica que aceita a contradição e afirma que os contrários fazem parte da realidade. O ser e o não ser não se opõem, mas se completam. O mundo é visto como um devir de ser e não ser, em que tudo está em transformação (lembrando a filosofia de Heráclito – ver biografia no capítulo 2). Com essa noção, o filósofo idealista lançou um conceito importante para o século XIX: a evolução histórica, a humanidade em movimento e, portanto, a Razão se manifesta no processo histórico. Para ele, esse devir está ancorado em uma metafísica, pois essa Razão maiúscula é o Espírito absoluto. Novamente, não se trata de uma alma individual, no conceito cristão da palavra, mas do Espírito do todo. Hegel filosofa em função do devir histórico, procurando compreender cada momento da hu-

manidade como um aperfeiçoamento do Espírito, uma busca de liberdade e realização. Uma característica desse pensamento é uma filosofia que leva muito mais em conta a coletividade do que o indivíduo, o todo do que a parte, o Estado do que o cidadão individual. Por isso, Hegel entrou em litígio com os românticos, que partilhavam com ele uma visão de totalidade (como era o caso de Friedrich Schelling e dos irmãos Schlegel – ver biografias nos capítulos 2 e 7, respectivamente), mas que consideravam a soberania da sensibilidade individual e a impossibilidade de acessar esse Absoluto pela razão, e sim pela intuição e pela arte. O romantismo do século XIX, cujos teóricos atuaram na Alemanha, foi uma presença marcante em todas as artes da época. A filosofia romântica era espiritualista – ao contrário daquela dos iluministas –, exaltava as emoções individuais e inspirava-se na tradição, bebendo inclusive nas fontes medievais e cristãs. Na Literatura, os maiores representantes foram Wolfgang Von Goethe e Friedrich Schiller, na Alemanha, Lord Byron e Charles Dickens, na Inglaterra e Jean Jacques Rosseau, na França. No Brasil, os destaques foram Gonçalves Dias, José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo.

Romantismo Movimento filosófico e estético do século XIX, que se centrou na subjetividade do indivíduo, no predomínio do sentimento e da intuição sobre a razão e na busca de uma integração com o Absoluto.

As glórias e misérias do século XIX O século XIX foi repleto de fatos históricos transformadores e da efervescência de ideias. Grandes mudanças políticas, econômicas e sociais ocorreram no seio da sociedade capitalista. A filosofia das luzes, germinada no século XVIII, deixou como herança uma confiança absoluta na renovação e na transformação do mundo. Os eventos desencadeados pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial causaram um 344


enorme entusiasmo nas sociedades do século seguinte. A civilização europeia vivia o sonho de uma humanidade emancipada e uma enorme expectativa de progresso. A realidade, porém, contrastava com esses ideais.

O contexto Nas primeiras décadas do século XIX, nações como a Inglaterra e a França despontavam como grandes potências econômicas e industriais. A primeira, como a principal nação industrializada; a segunda, como a nação que levaria os ideais iluministas ao restante do mundo. No transcorrer do século, continuaram as transformações econômicas e sociais que corresponderam ao avanço do capitalismo industrial. Houve uma grande explosão demográfica nos países europeus e nos Estados Unidos, provocando um crescimento populacional que ampliou o mercado de consumo dos produtos industrializados e estimulou o processo produtivo. Os indícios de progresso, aos olhos dos analistas do século, eram inegáveis: a tecnologia, unida à Ciência, estava em pleno desenvolvimento desde a Revolução Industrial e apontava na direção de que a evolução seria ilimitada e resolveria os problemas humanos. Durante o século XIX, o florescimento da indústria promoveu uma crescente interação entre Ciência e tecnologia. A Ciência contribuiu para o desenvolvimento da máquina a vapor, para a melhoria dos processos de industrialização e produção, na engenharia, para a criação de ferrovias. Essas inovações produziram transformações na vida de todos, de modo que o saber científico começou a ser cultuado pelas pessoas comuns, como responsável pelas conquistas de bem-estar geral. Entretanto, a Europa passou a viver problemas sociais decorrentes dessas transformações. O ritmo acelerado da industrialização concentrou os trabalhadores e ampliou a formação das massas proletárias. Surgiram as grandes cidades com todos os seus problemas. A miséria, as doenças, a criminalidade e o desemprego aumentavam vertiginosamente. As condições de vida e de 345

cultura dos trabalhadores no século XIX eram as piores possíveis: habitações insalubres, salários baixíssimos, jornada de trabalho de 16 horas para homens, mulheres e crianças. A divisão entre ricos e pobres ganhou proporções assustadoras. Ocorreu um gradativo processo de proletarização da Europa, no qual a maioria dos trabalhadores não tinha a menor possibilidade de ter uma vida digna. Pensadores como Engels, Marx (ver biografias no capítulo 2) e Proudhon (ver biografia no capítulo 9) analisaram e descreveram as condições de vida da classe operária. Escritores como Victor Hugo e Émile Zola explicitaram a miséria do povo em obras como Les Misérables, de Hugo e Germinal, de Zola. Por outro lado, estruturavase o mundo burguês, concentrando o capital, a propriedade da fábrica, o poder da exploração e a apropriação do lucro.

A Filosofia Esse quadro do século XIX se completa com o surgimento de novas correntes filosóficas a partir de ideias geradas nesse contexto. Pode-se dizer que, de um lado, o desenvolvimento da indústria contribuiu para um grande interesse dos pensadores desse século pelas questões econômicas e sociais. Por outro lado, cada vez mais deixaram-se as bases teológicas e passou-se ao modelo científico de compreensão da realidade. Os argumentos para a explicação do mundo e do ser humano começaram a ser sustentados por um método científico objetivo de conhecimento, ancorado na experimentação. No campo estritamente filosófico, essas mudanças trouxeram um sentimento de otimismo, de criação de um mundo melhor e de edificação da sociedade sobre bases renovadas, dando continuidade à euforia progressista do século XVIII. As principais vertentes do pensamento do século XIX são: • evolucionismo – Em geral, as teorias filosóficas do século XIX aceitavam a evolução como lei natural, presente no mundo material, social, cultural e histórico. A visão predominante era de que tudo estava em constante


mudança, passando por um processo de aperfeiçoamento ou progresso. Desde Hegel, no início do século, até Comte (ver biografia no capítulo 3) e Marx, filosofias de direita e de esquerda, materialistas ou espiritualistas estavam embebidas dessa perspectiva de que a humanidade necessariamente caminharia para dias melhores. O evolucionismo social e humano de Herbert Spencer e o evolucionismo biológico de Darwin também se inseriram nesse contexto. Herbert Spencer (1820-1903) Filósofo e sociólogo inglês, pretendeu aplicar a ideia evolucionista de Darwin não só ao mundo orgânico, mas à sociedade e à Filosofia. Suas principais obras são Estática social, Sistema de Filosofia sintética e O indivíduo contra o Estado.

cientificismo – A tendência predominante era estabelecer a Ciência como instância máxima e única do conhecimento e como promotora dessa evolução social que todos esperavam. Marx chamou seu socialismo de científico; Comte considerava que a humanidade deveria atingir o estado positivo (depois de ter passado pelo teológico, dominado pela religião, e pelo metafísico, dominado pela Filosofia), sendo este estado o reinado da Ciência; Freud propôs uma interpretação da mente que se pretendeu científica. O discurso geral era de euforia em relação às possibilidades da Ciência, de caráter não apenas teórico, para a compreensão do mundo, mas também prático, para modificá-lo. Pensamento social – Impactados pelo estado de miséria das classes trabalhadoras e pelo avanço do sistema capitalista – que mostrava sua perversidade diante do ser humano por meio do enriquecimento de poucos e da miséria de muitos, criando uma sociedade apenas baseada no valor do lucro –, vários pensadores se dedicaram a criticar essa situação e procurar propostas de reforma social.

Surgiram as diversas formas de socialismo (o utópico, de Saint-Simon, Fourier e Owen – ver respectivas biografias no capítulo 10 –; e o científico, de Marx e Engels), além do anarquismo. O positivismo (ver boxe Informação no capítulo 4) teve como fruto a Sociologia, que nasceu dessa preocupação. Laicização do pensamento – As concepções racionais e as conquistas científicas do século XIX levaram a uma rejeição quase total dos postulados religiosos, principalmente os da Igreja católica, que significava a tradição, o dogmatismo e a coação. A razão e a Ciência eram vistas de forma oposta à religião, como forças que venceriam a tendência conservadora da sociedade, levando ao progresso, à liberdade, à justiça e ao futuro. Ocorreu um processo de descristianização do mundo ocidental e, com isso, uma crescente laicização da vida, do pensamento, da política e das propostas sociais.

A gestação do século XX Na segunda metade do século XIX, já se observavam autores que se projetavam para o século XX. Entre eles, destacaram-se Nietzsche, Schopenhauer e Kierkegaard e (ver biografias no capítulo 3, 6 e 7, respectivamente), que, em oposição ao seu século, voltaram-se para a subjetividade, para o singular. Seus pensamentos não foram totalizantes, como o idealismo de Hegel, o materialismo dialético de Marx ou o positivismo de Comte: eles filosofaram sem amarrar suas reflexões em um sistema fechado. Outra característica desses pensadores foi a despreocupação com a questão social, um pessimismo em relação ao mundo (mais especificamente no caso de Kierkegaard e Schopenhauer) e o ódio às teorias de emancipação social e igualitarismo (caso de Nietzsche). Trataram-se de pensadores que lançaram as sementes de algumas das tendências que se desenvolveriam no século XX: o existencialismo, o niilismo (ver boxes Informação no capítulo 2) e a negação da filosofia do progresso, tão cara à maioria dos pensadores do século XIX.

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Filosofia contemporânea História

O início do século XXI ainda pode ser considerado como um prolongamento do século XX, assim como nas primeiras décadas do XX ainda se vivia a euforia do XIX, com todo o seu entusiasmo pelo progresso e pela Ciência. O observador contemporâneo ainda não tem o recuo histórico necessário para fazer um balanço pleno sobre as contradições, as tendências e o significado do século mais vertiginoso de todas as épocas. Nunca houve um período com transformações tão drásticas e em velocidade tão intensa. Por isso, podemos apenas seguir alguns traços da atualidade, tentando mapear seu roteiro caótico. É verdade que o século XX trouxe, ainda mais que o anterior, notáveis progressos científicos e tecnológicos, como a comunicação em massa, a aviação, a astronáutica (iniciando a conquista espacial), o computador e a revolução digital – para citar apenas alguns aspectos mais importantes desse processo. Contudo, determinados fatos marcaram esse período de maneira a imprimir na mentalidade das pessoas um cunho notadamente cético e muito mais pessimista do que no século XIX. Duas guerras mundiais, com milhões de mortos; a invenção e o uso da bomba atômica; a longa Guerra Fria, com ameaça nuclear; o terrorismo; as centenas de guerras locais: tudo isso foi impactante na consciência mundial, acabando com aquela euforia anterior de que tudo estava caminhando para o melhor. A confiança no futuro e o orgulho das conquistas humanas, tecnológicas e civilizatórias ficaram abalados pelas atrocidades das guerras, pelos campos de extermínio em massa, pela tecnologia da morte e mesmo pela desigual e injusta distribuição dos benefícios tecnológicos alcançados, que não são acessíveis a todos os cidadãos. As utopias sociais, que até a década de 1970 ainda conquistavam adeptos entusiastas, também parecem ter desbotado pela visão de que 347

as grandes revoluções, inspiradas no marxismo – especialmente a russa e a chinesa –, redundaram em regimes totalitários, opressores e, inclusive, em fracasso econômico. O mundo, antes dividido em direita e esquerda, mergulhou a partir da derrocada da União Soviética, nas últimas décadas, em um só capitalismo global, com o qual possivelmente estejamos fadados a conviver. Coleção Roger-Viollet/AFP

Interdisciplinaridade

Foto da celebração do Dia Nacional de Pequim, em 1955, na China, em que é carregado o retrato do líder comunista Mao Tsé-Tung. Durante o período mais duro do governo de Mao, os conflitos, as perseguições e os expurgos aos opositores levaram à morte cerca de 40 milhões de pessoas. Há controvérsias em relação a esse número, mas ele provavelmente engloba os milhões de mortos pela fome que assolou o país durante anos, especialmente entre 1959 e 1961. A fome foi causada pelo equívoco de tentar industrializar o país a qualquer custo, para mostrar ao mundo a força do regime comunista.

A sociedade de consumo, que ganhou for-

ça depois da Segunda Guerra Mundial, atingiu proporções inimagináveis. O mundo inteiro tor-

nou-se um grande mercado consumidor e um campo de exploração de matérias-primas e de

mão de obra, bem como de agressão constante à natureza. O modelo da sociedade industrial,

que havia gerado todos os questionamentos socialistas e anarquistas, antes restrito à Europa,

propagou-se para o mundo, culminando em uma forma depredatória de exploração dos recursos naturais, uma crise ecológica e uma maneira

cada vez mais sofisticada de explorar o trabalho humano. Se, no século XIX, a classe trabalha-

dora era miserável e explorada, no século XX a crise se alastrou: países inteiros, como a China,


passaram a fornecer mão de obra praticamente escrava para a produção mundial, enquanto outros ficaram completamente excluídos da rota do capital, como é o caso da maioria dos países da África. A promessa de uma civilização racionalizada e científica – em que os problemas humanos se resolveriam –, os sonhos de uma sociedade ideal e mais justa, enfim, tudo o que o século XIX imaginou parecia ter se tornado um pesadelo no século seguinte. Essa crise, pela não realização do sonho, teve um impacto enorme no plano das ideias. Várias tendências filosóficas do século XX se enraízam nessa problemática, que foi tomando conta de todos os pensadores.

outros, o método científico foi submetido a uma crítica aguda, examinando-se que há elementos não objetivos na sua constituição e que teorias consideradas científicas no século XIX eram, na verdade, filosofias (Popper propõe essa interpretação tanto para o marxismo quanto para a Psicanálise). Quando Foucault (ver biografia no capítulo 6) analisa a gênese do conhecimento como resultado das relações de poder estabelecidas na sociedade ele está, igualmente, dando um golpe na objetividade do saber. A filosofia da linguagem, como a proposta por Wittgenstein (ver biografia no capítulo 8), também é uma desqualificação da Filosofia para achar respostas, pois traz uma análise de seus problemas e postulados como sendo apenas questões e formulações da linguagem. A tendência cética tem, na virada do século, uma forte ressonância de Nietzsche, que questionou a razão, a Ciência e dizia que não há fatos, apenas interpretações.

As ideias do século XX Uma das principais características de toda a Filosofia do século XX é a desconfiança nos grandes sistemas de pensamento que pretendem dar conta de toda a realidade, como eram o idealismo alemão e o materialismo histórico de Marx. A Filosofia se tornou mais recatada em suas intenções, chegando a se distanciar, como na época dos sofistas, de sua missão de busca da verdade, pois a própria verdade perdeu sua consistência para muitos pensadores. Por isso, ela também se tornou multifacetada, com tendências particulares e difíceis de serem mapeadas. Examinemos algumas tendências gerais dominantes no século XX, que não aparecem necessariamente de forma simultânea: • tendência ao ceticismo – Consiste em uma desconfiança na própria capacidade da Filosofia de propor respostas satisfatórias. A princípio, essa desconfiança se direcionou apenas à Filosofia. É o caso, por exemplo, do pragmatismo, que admite que a Filosofia deve apenas se preocupar com o que seja útil e prático. Mais tarde, porém, o ceticismo passou a desconfiar da capacidade de alcançarmos qualquer objetividade no conhecimento, estendendo-se inclusive à própria Ciência. Com Popper, Kuhn, Feyerabend (ver respectivas biografias no capítulo 4) e

Pragmatismo Corrente que se iniciou no começo do século XX, nos Estados Unidos, com Charles Pierce, William James e John Dewey. Para esses autores, só é verdade o que é útil e prático imediatamente. Portanto, a Filosofia fica restrita a um utilitarismo, não devendo se lançar a buscas especulativas e alçar voos além dos limites da prática concreta.

tendência ao subjetivo – Voltar-se para si, para o particular. Essa atitude é justamente o contraponto aos grandes sistemas filosóficos do passado, que queriam fazer uma filosofia da totalidade em que o ser humano, como subjetividade, perdia sua consistência. Schopenhauer, Nietzsche e Kierkegaard, embora de maneiras diferentes, já haviam preconizado essa tendência. A fenomenologia (ver boxe Informação no capítulo 4) e o existencialismo, considerados como métodos de abordagem filosófica, têm essa característica. A fenomenologia, iniciada com Husserl (ver biografia no capítulo 6), propôs-se a 348


Pós-modernismo Não se constitui como uma escola filosófica, com princípios e propostas unificadas. Os próprios filósofos não costumam admitir que sejam pós-modernos. O termo surgiu na arte para caracterizar aquilo que pretendia superar a proposta modernista, que tinha um ideário social, político e comprometido. Mas também ganhou corpo de Filosofia, referindo-se ao que pretende ser uma superação do projeto da Filosofia moderna – racional, humanista e com ideais emancipatórios. O pós-moderno, por sua vez, seria aquele que apresenta tendências céticas, niilistas, desconstrutivistas e uma profunda desconfiança de qualquer certeza ou verdade.

Gebrüder Siebe, Leipzig, Alemanha

fazer uma espécie de suspensão provisória (chamada de epoché) de todas as crenças e certezas filosóficas para ficar apenas com aquilo que é imediatamente evidente, chegando então a assumir a consciência (com isso, ela lembra o cogito de Descartes: Penso, logo existo). O existencialismo, por sua vez, propôs sua reflexão a partir do ser humano na existência, sua singularidade, suas angústias e sua liberdade. o anti-humanismo – A mesma desconfiança que recaiu sobre a validade do conhecimento tomou conta do próprio ser humano. Muitas filosofias no século XX, entre elas o estruturalismo (ver boxe Informação no capítulo 4) e as diversas tendências dentro do pós-modernismo, acabaram por decretar a “morte do homem” – decreto também previamente anunciado por Nietzsche, depois de sua declaração da “morte de Deus”. Isso significa que a ideia iluminista de ser humano

O filósofo Nietzche

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como razão autônoma, livre, responsável por si (que, aliás, se desenvolveu desde a Grécia), perdeu credibilidade, sendo o indivíduo posto como uma estrutura determinada ou um feixe de sensações aleatórias. • rejeição da metafísica – Este aspecto já vinha se instalando na Filosofia desde o século XVIII. Entretanto, no século XX constatou--se que algumas filosofias que renegavam a metafísica no século XIX na verdade ainda tinham traços dela. Por isso, no pensamento pós-moderno, há uma tendência ao niilismo, no sentido de que o ser é o nada. Essa “nadificação” atinge todas as coisas e provoca um esvaziamento total, o que o filósofo italiano Gianni Vattimo chamou de “niilismo consumado”. Desfazemse utopias sociais, humanismo, objetividade, valores e tudo é atingido pela sombra do nada. Segundo Vattimo, pensar o ser não é uma experiência de presença cheia, de verdade luminosa; se levarmos em consideração que, para Heidegger a metafísica (esquecimento do ser) é a história do ser, então o ser tem uma história que é sempre de diminuição, de esquecimento, de “fraqueza...”. Mas nem tudo se tornou cético, niilista ou anti-humanista neste último século. Vejamos outros aspectos também presentes na Filosofia contemporânea: • a volta da metafísica – A despeito de todos os anúncios da morte da metafísica e do desaparecimento do espírito, houve no século XX várias correntes que trilharam por antigos e novos caminhos do pensamento metafísico. Na Alemanha, o próprio Husserl, fundador da fenomenologia, definiu-a como a “ciência das essências”, pois concebeu que aquilo que se apresenta imediatamente à consciência são essências. Já seu discípulo Max Scheler (ver biografia no capítulo 5) estabeleceu que os valores são essências, ou seja, aquilo que define propriamente um pensamento metafísico – a presença de uma essência – está


posto na fenomenologia. Na França, temos a figura de Henri Bergson (ver biografia no capítulo 3), que formulou um evolucionismo criador, em que o élan vital percorre todas as coisas em busca da perfeição; o Universo é uma “máquina de gerar deuses”, pois objetiva a realização de seres moralmente perfeitos. Igualmente, na França, houve a revivescência de uma filosofia cristã por meio do neotomismo, de Étienne Gilson , e do humanismo integral (que considera também a alma do ser humano), de Jacques Maritain. O existencialismo cristão de Gabriel Marcel (ver biografia no capítulo 7) e o personalismo de Emmanuel Mounier (ver biografia no capítulo 7) fizeram uma abordagem do ser humano como valor supremo do pensar filosófico. Para Mounier, o ponto principal do personalismo é a centralidade da pessoa humana, pois “o universo da pessoa é o universo dos homens...”

Filósofo francês, representante do neotomismo contemporâneo – tentativa de fazer renascer o tomismo, o sistema filosófico de São Tomás de Aquino, no seio da modernidade. É considerado o maior estudioso medievalista do século XX. Entre suas principais obras, estão A Filosofia de São Tomás de Aquino, O espírito da filosofia medieval, A unidade da experiência filosófica, Deus e a filosofia e O Filósofo e a teologia.

a permanência de teorias críticas – O instrumental crítico recebido da tradição socialista e anarquista do século XIX não ficou perdido no século XX, apesar das reiteradas afirmações de que todas as utopias morreram. A corrente mais representativa de uma teoria crítica social neste século, com um de seus representantes ainda vivo, Jürgen Habermas (ver biografia no capítulo 5), foi a Escola de Frankfurt, que reavaliou a contribuição de Marx, reconhecendo a herança de Hegel e acolhendo a influência de Freud. Com filósofos como Horkheimer (ver biografia no capítulo 5) e Adorno (ambos da primei-

Theodore Adorno (1903-1969) Filósofo alemão que também escreveu sobre sociologia, psicologia e música. Adorno considerava a evolução do elemento estético muito importante para o desenvolvimento histórico. Graduou-se na Universidade de Frankfurt, onde mais tarde fundou, com Max Horkheimer, Walter Benjamin e outros, a célebre Escola de Frankfurt. Nos EUA, para onde seguiu fugindo do nazismo e por sua simpatia pelo socialismo, escreveu sobre o tipo de universo que encontrou, regido pelos interesses, pelo lucro e pelas conveniências, o levou a uma reflexão mais atenta sobre a massificação da cultura.

o humanismo perdura – Apesar de tudo, a morte do homem como sujeito autônomo e portador de direitos não se consumou, pois a vontade de justiça e o clamor pela sua dignidade permaneceram como diretriz na busca dos direitos humanos. Não são poucos os pensadores que militaram e ainda militam, como Habermas, Chomsky, Boaventura Santos (ver biografia no capítulo 4) entre outros, por uma sociedade em que o ser humano seja respeitado como tal. Eduardo Knapp/Folha Imagem

Étienne Gilson (1884-1978)

ra geração), e depois Erich Fromm e Herbert Marcuse (ver biografia no capítulo 6), a Escola de Frankfurt se valeu da crítica marxista ao capitalismo para interpretar fenômenos contemporâneos, como a sociedade de massa, o totalitarismo do fascismo e do nazismo e a indústria cultural. Nessa releitura, mesclada com a psicanálise freudiana, o marxismo não foi mais visto como uma filosofia totalizante e fechada, mas como um instrumental crítico adaptável às novas circunstâncias sociais.

Boaventura de Sousa Santos, em 2001, professor da Universidade de Coimbra (Portugal) que desenvolveu um pensamento humanista.

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Filosofia no Brasil

Museu Paulista, São Paulo

Uma das questões discutidas na atualidade é se realmente existe Filosofia especificamente brasileira, isso porque, como destacam alguns estudiosos, no Brasil não se desenvolveu nenhum sistema original nem uma escola filosófica que se tenha projetado com influências internas e externas. Outros estudiosos, porém, admitem que, embora sob a influência de filosofias vindas do exterior, no Brasil há um viés original de interpretá-las e vivenciá-las. O pensamento intelectual brasileiro teve sua origem no século XVI, ainda no período da colônia: a metrópole, que exercia sobre o Brasil um monopólio de natureza também intelectual, impunha à colônia o modelo jesuítico. Nesse período, Portugal estava afastado do influxo de modernidade no qual mergulhavam outras regiões da Europa, impulsionadas pelo pensamento filosófico moderno e científico. Do século XVI a meados do século XVIII, os jesuítas representaram os principais pensadores e educadores em solo brasileiro. Eles trouxeram as primeiras ideias filosóficas, vinculadas à política colonizadora dos portugueses e ao projeto empreendido pela Igreja católica de cristianização das Américas, atendendo aos interesses da camada dirigente, pequena nobreza vinda de

A fundação de São Paulo, de Oscar Pereira da Silva, 1909. Óleo sobre tela. Nesta obra, pintor representou os indígenas como passivos diante dos jesuítas. No entanto, a receptividade à imposição cultural e educacional não ocorreu da maneira como o quadro retrata.

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Portugal para organizar a empresa colonial. Defendiam um modelo de pensamento escolástico e condenavam os estudos dos filósofos modernos, como Descartes, Bacon e Locke. A inspiração do pensamento jesuítico brasileiro era a filosofia escolástica tomista, um modelo filosófico metafísico, baseado nas teorias aristotélicas do ser, compatibilizadas com a doutrina cristã do Deus criador e da alma imortal. A proposta filosófica e pedagógica dos jesuítas estava contida no documento Ratio studiorum, um manual que servia de suporte às suas ações. Esse documento recomendava o zelo pela doutrina de Aristóteles, que é a base da teologia de São Tomás de Aquino. De modo geral, a Ratio studiorum continha também o plano educacional dos jesuítas, que se dividia em três cursos básicos: humanidades, Filosofia e Ciências e teologia. Era uma educação para a elite dirigente, ligada à metrópole, pois a população de indígenas e negros escravizados recebia uma educação voltada apenas ao trabalho manual e à catequese. A educação proporcionada pelos jesuítas às classes dominantes, por sua vez, era de boa formação cultural e humanista. No entanto, não permitia autonomia de pensamento, que seria a marca do pensamento moderno. Somente em 1759, quando os jesuítas foram expulsos de Portugal e do Brasil pela ação do Marquês de Pombal, iniciou-se uma influência iluminista na metrópole. Os intelectuais portugueses tomavam consciência da necessidade de modernizar seu país, a partir das novas ideias que circulavam no continente europeu. As reformas de Pombal visavam colocar Portugal no nível de países como a Inglaterra, transformando-o em uma nação capitalista, de acordo com os interesses das camadas dominantes. No final do século XVIII, a elite intelectual brasileira, a exemplo da portuguesa, começou a se modernizar. Os pensadores tomaram contato com ideias filosóficas e científicas do mundo moderno.


Henrique José da Silva/Escola Nacional de Belas Artes

Na virada entre esses dois séculos, as ideias do Iluminismo francês tiveram grande aceitação pela elite brasileira. Os círculos intelectuais difundiam as propostas racionalistas das luzes, graças às vitórias da Revolução Americana e da Revolução Francesa, bem vistas por pensadores brasileiros, embora a mentalidade nacional ainda fosse fortemente influenciada pelo pensamento escolástico. Leo Caldas/Pulsar Imagens

Entre os séculos XVII e XVIII, o Brasil passou por transformações internas que geraram impacto na vida intelectual dos brasileiros. A população do país, nesse período, chegou a quase 3 milhões de habitantes e surgiram centros urbanos que favoreceram as atividades intelectuais. Os pensadores brasileiros voltaram-se para as questões científicas e técnicas do pensamento moderno. Os jovens que iam estudar em Portugal voltavam ao Brasil impregnados do pensamento iluminista, como foi o caso de Francisco José Lacerda e Almeida (1753-1798, geógrafo e matemático), Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815,médico e naturalista), José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838, naturalista e mineralogista) e José Joaquim de Azeredo Coutinho (1742-1821, fundador do Seminário de Olinda). Esses intelectuais apoiavam a filosofia natural, ou seja, o estudo científico-racional da natureza.

Seminário de Olinda, inaugurado pelo bispo Dom Azeredo Coutinho, em fevereiro de 1800, com o nome oficial de Seminário Episcopal Nossa Senhora da Graça O bispo José Joaquim de Azeredo Coutinho, que fazia parte dos intelectuais que preferiam a Filosofia natural, a atenção ao estudo científico da natureza.

A elite pretendia renovar o pensamento brasileiro e trazer prosperidade e civilização ao país, para colocá-lo em consonância com o modelo filosófico e científico europeu. No início do século XIX, foi fundado o Seminário de Olinda, que visava concretizar essa intenção, dando atenção às ciências naturais, físicas e à Matemática na formação dos párocos. Esse colégio incentivava uma formação baseada na investigação e, durante certo tempo, foi o melhor de nível secundário no Brasil. O movimento tomista continuou a marcar de forma profunda a cultura brasileira durante o século XVIII. A hegemonia do pensamento escolástico foi quebrada somente no decorrer do século XIX.

A razão que levou os intelectuais brasileiros a se voltarem para as ideias iluministas foi a necessidade de se criar um conjunto de pensamentos políticos para refletir sobre o país. O Brasil ainda vivia um clima de submissão a Portugal e, do ponto de vista interno, escravos e mestiços estavam subordinados aos senhores brancos. A Inconfidência Mineira, de 1789, foi uma revolta contra o domínio português promovida pelas elites brasileiras. Estava impregnada de ideais iluministas, mas ainda não plenamente pelos aspectos igualitários desse pensamento, pois a escravidão, por exemplo, não foi posta em questão. Em 1807, quando Portugal foi invadido pelas tropas napoleônicas francesas, a família real e a corte se viram obrigadas a partir para a colônia, sob a proteção da guarda inglesa. Com a vinda da família real, que trouxe uma mentalidade iluminista e científica, ocorreram várias mudanças e avanços no campo intelectual brasileiro: a criação da imprensa (1808), com a circulação do primeiro jornal 352


Tiradentes, de Leopoldo Faria. Óleo sobre tela. ­Episódio da Inconfidência Mineira, no qual o artista retrata Tiradentes diante de sua sentença final, quando foi condenado à morte.

(A Gazeta do Rio) e, depois, das duas primeiras revistas (As Variações ou Ensaios de Literatura e O Patriota, 1813); a construção da Biblioteca Pública (1810), do Jardim Botânico (1810) e do Museu Nacional (1818). Também foram criados institutos de ensino superior em 1808 e 1810. Para a formação de oficiais e engenheiros, surgiram, respectivamente, a Academia Real da Marinha e a Academia Real Militar. No ano de 1812, foi construído na cidade do Rio de Janeiro um laboratório de Química. Surgiram escolas de Engenharia, Medicina e Direito. Cursos de Economia, Agricultura, Botânica, Química, Geologia e Mineralogia foram implementados no país. A vinda da corte trouxe também a possibilidade de um maior contato com a cultura europeia em geral e a francesa de modo particular. Embora o impulso cultural desse período não tenha contribuído para fazer nascer no país uma escola filosófica, ele ajudou a difundir o pensamento iluminista, liberal e científico. No período imperial do Brasil, Frei Caneca e Silvestre Pinheiro Ferreira assumiram posições de destaque no meio intelectual. Frei Caneca (1774-1825) foi um propagandista do liberalismo político. Defendia a independência do país e um governo constitucional, a exemplo do que acontecia na Europa. Segundo Frei Caneca, Deus não determina qual deve ser a melhor forma de governo, deixando tal julgamento aos homens; e é também papel dos homens escolher quando os governos devem ser mudados. 353

Academia de Belas Artes, Lisboa, Portugal

Prefeitura Municipal de Ouro Preto, Minas Gerais

A chegada da corte atraiu Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), ao Brasil, que deixou Portugal por ser defensor do pensamento de Locke, Condillac e dos enciclopedistas franceses, bem como por criticar as posições do governo português. Ele também difundiu no Brasil a obra de pensadores como Leibniz, Kant, Fichte, Schelling e Hegel. A Filosofia alemã teve grande espaço em suas conferências. Ele defendia a importância da Ciência, do naturalismo e da experiência sensível como fundamento do conhecimento.

Litografia do filósofo e político português Silvestre Pinheiro Ferreira.

Em Portugal, nessa mesma época, a população estava descontente com o fato de a corte estar no solo da colônia e o comando da nação, em mãos inglesas. Surgiram revoltas no país, levando a uma situação insustentável. Em 1821, o grupo chefiado por D. João VI voltou à sua terra natal, o que contribuiu para a emancipação política do Brasil. Os intelectuais brasileiros desejavam conciliar os anseios de modernidade com a realidade do país. Para isso, era preciso reformar as instituições e reestruturar a política e a sociedade, adotando os princípios do liberalismo político e econômico. As camadas dominantes nacionais queriam que as classes dominantes portuguesas reconhecessem o direito da colônia à liberdade de comércio. E a elite intelectual, sob influência dos ideais revolucionários franceses, desejava a ruptura completa com a metrópole. Com a saída da família real, houve uma tentativa por parte de Portugal de recolonizar o Brasil, porém, as elites não aceitaram perder os privilégios adquiridos.


Museu Paulista, São Paulo

Pintura retratando D. Pedro I após assinar decreto que deu autonomia às Escolas de Cirurgia do Rio de Janeiro em 1821, realizada por Oscar Pereira da Silva.

Esse conflito, além das ideias que pairavam no momento, levou o país à autonomia política em 1822. O debate sobre a liberdade política e econômica, fortemente marcado pelo discurso liberal, esteve nas principais discussões das décadas iniciais do século XIX. A Filosofia francesa serviu de modelo para os pensadores brasileiros, mais especificamente a inspiração da escola eclética, liderada por Victor Cousin . Embora de modo pouco profundo, a intelectualidade criou no Brasil a escola filosófica eclética, que, a exemplo de Cousin, buscou harmonizar as diferentes correntes de pensamento que existiam no país. Esse fato contribuiu para a sua boa aceitação. Os intelectuais dessa escola aspiravam entender o desenvolvimento e o encadeamento do ser humano, da História e da natureza, bem como descobrir Victor Cousin (1792-1867) Filósofo espiritualista francês, criador do ecletismo, uma síntese do pensamento de Descartes, Kant e da escola escocesa. Foi também historiador e atuante na reforma educacional. É autor de cinco obras que tratam da história da Filosofia, e, entre outras, da obra Da verdade, do bem e do belo.

Ecletismo Proposta filosófica iniciada por Victor Cousin, em meados do século XIX, que pretendia fazer uma espécie de síntese de diversas teorias filosóficas. A posição do ecletismo era espiritualista, ligada às tradições religiosas e culturais.

qual é a melhor forma de organização social e política. Esses pensadores passaram a ver a política como a Ciência que levaria os indivíduos à felicidade e ao progresso. Para os adeptos brasileiros do ecletismo, tanto o ser humano como suas criações poderiam progredir ao infinito. Os anos 1850 foram marcados por intensas reformas e transformações da sociedade e da cultura brasileiras. Nessa época, ocorreu o fim do tráfico de escravos. Alguns investimentos externos e empréstimos para construir infraestrutura foram concedidos ao país; ocorreu a importação de máquinas e tecnologia da Europa; construíram-se várias estradas de ferro; iniciou-se o desenvolvimento do processo industrial. O desenvolvimento econômico levou o Brasil a estreitar ainda mais os laços com a Europa, fonte fornecedora não apenas de tecnologia e máquinas – que eram importadas –, mas também de novas ideias, que continuavam a inspirar os intelectuais brasileiros. O processo de modernização da sociedade levou a um otimismo por parte dos pensadores, que não duvidavam de que o Brasil poderia ser elevado ao nível das nações desenvolvidas do século XIX. Almejar esse patamar de desenvolvimento significava acelerar o processo de modernização e, para isso, seria necessário introduzir novas ideias. Estas chegaram ao país enfraquecendo a Filosofia eclética, que entrou em declínio. As crenças básicas no liberalismo e na Ciência, mais especificamente no darwinismo e no positivismo, tornaram-se pilares das forças modernizantes que atingiram o Brasil, que se consolidaram entre os filhos da burguesia comercial brasileira, formados nas escolas técnicas, militares, nas faculdades de Direito e de Medicina, ou ainda, em universidades europeias. A geração de 1870 discutiu e propôs reformas institucionais, políticas e culturais, pretendendo equiparar o Brasil às grandes nações mundiais. Uma nova geração de intelectuais se formou, ligada ao cientificismo, que vigorava no ensino europeu e brasileiro. Quase toda a Filosofia passou a ser dominada pelas ideias positivistas de Auguste Comte, pelas teses da biologia evolucionista de Charles Darwin, pelo evolucionismo de Herbert 354


Spencer e pelo materialismo de Ernst Haeckel . Os três autores consideravam a evolução como chave central para se entender a natureza.

colocando-o em contato com a civilização mundial. As reflexões, por isso, voltavam-se muito mais para o prático e social das teorias do que para o aprofundamento filosófico. Coleção Roger-Viollet/AFP

Ernst Haeckel (1834-1919) Naturalista, médico, filósofo e artista alemão, divulgador da obra de Darwin na Alemanha, criador do conceito de monismo nas ciências naturais. O monismo, para ele, consiste em propor que a economia, a ética e a política são apenas uma forma de biologia aplicada. Em geral, o monismo é um sistema para o qual a realidade se reduz a um único princípio. Suas ideias sobre as espécies humanas, o ultranacionalismo e o antissemitismo foram uma forte inspiração ao nazismo. Sua principais obras são O enigma do Universo, O Monismo.

Spencer aplicou o evolucionismo à sociedade e criou o que foi chamado de darwinismo social, aplicando aquela célebre expressão da seleção natural – sobrevive o mais apto – aos indivíduos, às nações e às etnias, justificando, assim, ideias imperialistas e de dominação europeia. Já Haeckel defendeu a ideia de que tanto a ética como a economia e a política deveriam ser aplicações da Biologia. Seu evolucionismo apresentava aspectos racistas, com a concepção de que existiam diferentes espécies na humanidade, sendo que a espécie superior era a branca europeia. Influenciada por esses autores, a intelectualidade brasileira defendeu de forma convicta que só seria possível explicar e orientar o comportamento humano e as mudanças sociais por meio da ciência positivista e evolucionista, incorporando também ideias racistas, que combinavam com a mentalidade escravista da sociedade da época. Aliás, a abolição da escravatura não representou uma superação dessa mentalidade, pois quando se iniciou a imigração europeia, no final do século XIX e início do XX, um dos argumentos usados para seu incentivo era o do branqueamento da raça, pois, segundo alguns positivistas e evolucionistas, um dos motivos do atraso cultural brasileiro era o excesso de sangue negro e indígena de povo brasileiro. As correntes filosóficas brasileiras estavam empenhadas em vencer o atraso cultural do país, 355

Desenho de Charles Darwin, feito por um anônimo, 1917.

Luiz Pereira Barreto (1840-1923), médico, cientista e pensador positivista, expressou essa ideia dizendo que era fundamental elevar o Brasil, pois, no seu entender, a nação estava sujeita às leis gerais de progresso que regiam a humanidade inteira – e o que diferenciava o Brasil da civilização ocidental era apenas uma questão de fase evolutiva e não de natureza inferior. O pensador brasileiro se baseou nas teses comteanas de que a lei que rege a História é a lei do progresso, determinando a evolução e regendo a vida. Os positivistas brasileiros elaboram um projeto para o desenvolvimento da nação, com ideias de liberalismo econômico, governo republicano, luta contra a escravidão, separação entre Estado e Igreja, instituição do casamento civil, secularização dos cemitérios, libertação da mulher e crença na melhoria da educação como chave para resolver os problemas do país. Além de Pereira Barreto, entre os defensores do positivismo no


do Império, o influxo modernizador da sociedade, as mudanças culturais e as transformações econômico-políticas contribuíram decisivamente para o nascimento da República brasileira, em 1889. No início do século XX, os novos intelectuais brasileiros apresentavam uma mentalidade marcada por uma espécie de idolatria à Ciência. O positivismo, o darwinismo, o spencerianismo, o germanismo e o materialismo tiveram amplo espaço no pensamento filosófico das primeiras décadas do século XX. O quadro filosófico no Brasil do início da República completa-se com o processo de renovação da filosofia católica a partir da separação entre a Igreja e o Estado. A intelectualidade brasileira católica se voltou para o neotomismo, corrente filosófica que procurava retomar a discussão tomista em um contexto da Filosofia e da Ciência moderna, fortalecendo a filosofia católica. Os beneditinos fundaram, em 1908, em São Paulo, a Faculdade de Filosofia São Bento, que foi o primeiro curso regular de Filosofia no país e que irradiou a filosofia neotomista pelo Brasil. Delfim Martins/Pulsar

Brasil destacam-se Miguel Lemos (1854-1917) e Teixeira Mendes (1855-1927). Os darwinistas e evolucionistas spencerianos e haeckelianos se apoiavam na teoria de ­Darwin de que a luta pela vida e pela sobrevivência é vencida pelo mais apto no processo evolutivo. Com esse argumento, acreditavam combater a apatia e a incompetência nos setores da política, das instituições, da saúde e da economia brasileiras. Assim, eram antimonarquistas, republicanos, agitadores e propagandistas, como era o caso de Tobias Barreto (1839-1889) e Miranda Azevedo (1851-1907). Condenaram o conservadorismo da sociedade, criticaram as instituições obsoletas e a Igreja, as escolas inadequadas e a política ultrapassada. Tobias Barreto, um dos principais nomes da Filosofia brasileira do século XIX, fundou a Escola de Recife, de grande influência na cultura filosófica nacional. Admirador de Haeckel, Barreto lançou o germanismo, que pretendia trazer ao Brasil ideias da Filosofia alemã, superando a predominância das vertentes francesas. Miguel Lemos (1854-1917) Filósofo brasileiro que aderiu ao positivismo e com ­Teixeira Mendes e Benjamin Constant, fundou a Sociedade Positivista Brasileira, a primeira no Brasil. Em Paris, estudou as correntes da filosofia positivista e optou pela versão religiosa, chegando, mais tarde, a transformar a Sociedade Positivita na Igreja Positivista do Brasil, que participou da campanha pela abolição e pela defesa de direitos sociais e trabalhistas.

Teixeira Mendes (1855-1927) Filósofo e matemático brasileiro nascido em Caxias (MA), autor do dístico Ordem e Progresso da bandeira brasileira. Foi para o Rio de Janeiro estudar num colégio de jesuítas e depois passou a se interessar por matemática e filosofia positivista.

Podemos dizer que, apesar de suas diferenças, positivistas, darwinistas e evolucionistas tiveram no Brasil pontos em comum tanto em seu programa de ação quanto na valorização da Ciência e do naturalismo. A complexidade do cenário do final

Mosteiro e Igreja de São Bento, antiga Faculdade de Filosofia São Bento, em São Paulo.

A influência do anarquismo também marcou presença no pensamento brasileiro do século XX. Os primeiros imigrantes europeus, que vieram substituir a mão de obra escrava nas lavouras de café e nas emergentes indústrias brasileiras, trouxeram da Europa as ideias anarquistas. Estas, às quais os trabalhadores tiveram acesso, motivaram as primeiras lutas operárias e as críticas em relação ao capitalismo industrial. Os anarquistas 356


brasileiros não constituíram nenhuma linha filosófica, porque estavam mais preocupados com a ação revolucionária do que com o pensamento analítico intelectual. No entanto, tiveram um papel importante, organizando os primeiros movimentos sociais e operários e fundando várias escolas até a década de 1920. A partir da década de 1930, o cenário cultural e filosófico-científico da nação se modificou, em decorrência de conflitos entre grupos internos e de transformações econômicas e políticas da própria sociedade. Um forte processo de industrialização vinha superar o modelo agrárioexportador como base da economia. A modernização da sociedade brasileira estava a todo vapor e as elites do país visavam acelerar tal processo. Essas transformações acabaram por mudar o panorama social, cultural e científico. O desenvolvimento industrial contribuiu para fortalecer a visão científica e a evolução da técnica, isso porque a indústria precisava de pesquisas científicas e tecnologia para sua consolidação e expansão. Essas mudanças levaram a um crescente interesse pelas questões sociais. Pontes de Miranda, em 1926, lançou o livro Introdução à Sociologia geral, escrito na tentativa de entender o processo social e cultural no país e estruturar elementos de um conceito sociológico, que marcou uma tendência no pensamento do século XX. A necessidade de conhecimentos técnicos levava à expansão e à renovação dos modelos educacionais. Foi criada a universidade e os institutos de pesquisa, a fim de promover a pesquisa científica de qualidade. A economia e a cultura brasileiras entravam no processo de internacionalização, o que gerou intensas trocas culturais e de ideias filosóficas. A partir desse ponto, a Filosofia passou a ser menos atuante social e politicamente, para se fixar no mundo acadêmico. No decorrer do século XX, a Filosofia no Brasil esteve conectada com todos os movimentos mais importantes que se passaram na Europa e nos Estados Unidos, com leituras e apropriações nacionais das teorias de cada momento. 357

Por causa disso, o cientificismo brasileiro foi reformulado a partir do contato com as correntes de pensamento denominadas neopositivismo ou positivismo lógico. Os intelectuais dessa vertente procuraram superar as concepções das correntes positivistas do século anterior. Esse movimento significou uma ruptura com o pensamento de Comte e voltou-se para a filosofia do Círculo de Viena. Esses brasileiros criticavam o aspecto dogmático e metafísico da teoria comteana dos três estados, pretendendo uma reavaliação do papel da Ciência, que, na verdade, tinha um caráter dinâmico e inconcluso. Nessa mesma linha de raciocínio, um outro grupo de pensadores brasileiros fez uma crítica ao cientificismo a partir das obras de Bachelard e Karl Popper. Embora a tendência cientificista tenha sido forte em todo o século XX junto à intelectualidade brasileira, deve-se saber que floresceram outras perspectivas filosóficas.

Neopositivismo Filosofia do chamado Círculo de Viena, que reuniu filósofos, matemáticos e homens de Ciência com o objetivo de criar um positivismo lógico ou empirismo lógico. Eles dividiram as questões do conhecimento em questões matemáticas, empíricas ou de lógica de linguagem, opondo-se a toda metafísica.

Outra corrente que marcou forte presença no cenário brasileiro do século XX foi o marxismo. As ideias marxistas no Brasil contribuíram para criar um movimento de esquerda, constituindo-se um pensamento socialista muito mais sólido do que havia sido o anarquista em terras brasileiras. A partir de 1935, o marxismo passou a ser o centro das atenções operárias, apoiado na força do Partido Comunista, fundado em 1922. Esse movimento foi duramente perseguido, assim como todo pensamento de esquerda, primeiro na ditadura de Getúlio Vargas e, depois, nos anos da ditadura militar. Mas a presença do pensamento marxista no âmbito da Filosofia brasileira pode ser percebida até a atualidade. As posturas dos pensadores que criticaram o positivismo, buscaram estruturar o pensamento


Acervo histórico Folha Imagem

sociológico e formaram um pensamento de esquerda colocaram o país no quadro da Filosofia contemporânea. A fenomenologia de Husserl, Merleau-Ponty, Max Scheler e Heidegger se desenvolveu nos círculos intelectuais brasileiros como reação à visão estreita do positivismo. Muitos intelectuais buscaram apoio nas correntes fenomenológicas para fundamentar as ciências humanas sob novas bases. Um outro movimento filosófico que teve presença marcante na cultura brasileira foi o existencialismo. Alguns de seus representantes na Europa foram Sartre, Jaspers e Marcel, influenciados por Heidegger. No Brasil, o pensamento existencialista, principalmente o francês, ganhou força entre os estudantes universitários das décadas de 1950 e 1960 e nos círculos intelectuais. Sartre foi fartamente lido nesse período. O existencialismo ditou uma nova postura diante do mundo e da existência. A vertente existencialista de Emmanuel Mounier, de cunho cristão, foi uma das expressões mais difundidas na cultura brasileira nessa linha. Os círculos de intelectuais e ativistas católicos das décadas de 1950 e 1960 buscaram inspiração nesse filósofo francês para ressaltar o humanismo que sustentava a dignidade da pessoa humana e a luta transformadora sobre a realidade social e política. O existencialismo foi reprimido no Brasil pelo governo militar por ser revolucionário e por incitar à transformação política e social.

O prédio onde funcionava a Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia, em São Paulo. Em 1968, a rua foi palco de um conflito entre os estudantes da USP, que contestavam a ditadura militar, e os da Universidade Mackenzie, considerados de direita.

A partir da década de 1960, outra corrente filosófica exerceu inspiração no pensamento brasileiro: a Escola de Frankfurt. O Brasil começava a se inserir em um processo de cultura de massa e de capitalismo globalizado; assim, o instrumental crítico da Escola de Frankfurt serviu como análise desse novo contexto. Surgiram movimentos estudantis, com posições contestadoras, engajados na crítica dos valores do capitalismo global. Os movimentos chamados de contracultura – movimentos feministas, gays e hippies, representantes das minorias sociais e culturais reclamando seus direitos e sua liberdade – se espalhavam nos centros universitários. O momento era de contestação radical e de reivindicação da liberdade (seja ela política, sexual ou pela liberação das drogas). A civilização contemporânea atravessava uma intensa crise. Os intelectuais brasileiros encontraram no pensamento dos frankfurtianos elementos para entender a sociedade de massa e tecnológica, bem como analisar o contexto do país. A Filosofia brasileira apresentou, também a partir dos anos 1960, uma onda irracionalista, de crítica ao processo repressor da razão, que chegava ao país e impregnava a cultura nacional. Nas últimas décadas do século XX, irrompeu uma filosofia no cenário brasileiro cujas influências se devem a filósofos como Nietzsche, Deleuze, Foucault e Guatarri. Essa filosofia se desenvolveu na Europa, na América e no Brasil na esteira das transformações culturais e econômicas desse século. O modelo econômico industrial foi superado por um capitalismo tecnológico, pós-industrial, e que sustenta uma sociedade informatizada. No campo filosófico e cultural, os modelos de Ciência, Filosofia e Arte passaram a ser questionados. A modernidade teria baseado seu discurso em uma ilusão: a de que a razão poderia levar o ser humano à emancipação. O alvo de crítica dessa filosofia é a própria modernidade e a razão como base do conhecimento e do desenvolvimento. A modernidade é vista como algo a ser superado e afirma-se que chegamos a uma fase denominada pós-moderna. A pós-modernidade 358


marcaria uma ruptura com o modelo moderno – de Ciência, arte, cultura, sociedade, política e Fi-

losofia –, que vinha sendo construído pelo projeto iluminista moderno de civilização.

Dica de filme Alexandre, o Grande, de 1956, direção de Robert Rossen, com Richard Burton. Uma versão mais recente (de 2004) da história do imperador, dirigida por Oliver Stone, tem o ator Colin Farrell no papel de Alexandre.

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