ano 1, nº 1, primavera 2012 | vitória da conquista
isto não é uma revista
Montagem a partir do desenho de Valter A. Rodrigues; sem data; sem título
Realização ESPAÇO AVESSO
Equipe
Coordenação Caio Resende (UESB) Cecília Barros-Cairo (UESB e Espaço Avesso) Eder Amaral (UERJ e Espaço Avesso) Erika Grisi (UFS e Espaço Avesso) Thiago Suiten (UNIFACS) Design Gráfico Aurélio Corujeira (Imboré Design) Curadoria Editorial Erika Grisi
A Revista Veneta é uma publicação trimestral que pretende funcionar como veículo articulador e difusor de produções na convergência entre a arte, o pensamento e a clínica, práticas que não se reduzem às corporações técnico-profissionais, que se imiscuem entre os nossos modos de vida, na nossa relação com a realidade que criamos uns com os outros. Neste sentido, Veneta é uma revista das “artes do delírio”, e também das “artes do cuidado”. Entendendo que estas artes estão espalhadas numa infinitude de saberes e fazeres, nosso desejo é convidar os mais diversos praticantes – artistas, pesquisadores, ativistas, cuidadores – a colaborar com textos e imagens instantâneas, súbitas, impetuosas do que cada um deles produz. Uma revista experimental, para imagens, escritas e leituras experimentais. Uma acolhida, enfim, aos textos sem destino e, por isso mesmo, certeiros: às coisas que fazemos de veneta. Realização
Conselho Editorial Amauri Ferreira Livre, leve e nômade
Antônio Moura Faculdade Juvêncio Terra
Heliana Conde Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Luana da Silveira Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Maicon Barbosa Universidade Federal Fluminense
Paola Zordan Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Perla Pimentel Université de Poitiers
Colaboradores Antônio Moura George Neri João José Gomes dos Santos Leila Domingues Machado Querino Zelma Borges Zezel Leite (Valter Rodrigues) Ilustrações e fotografias Alan Alves Meg Sousa Luis Mathias Valter Rodrigues Monaliza Cirino
Elinei Carvalho Santana – CRB 5/1026
VEREDAS 18
ARREMATES 39
AVULSOS 26 Da embriaguez como método - João José Gomes dos Santos 26 Ensaio sobre a cegueira de um rei - Leila Domingues Machado 30 Essa noite nunca existiu - querino 32 Pássaro turvo - Caio Resende 37
ENTREVISTAS 23 TrocAfeto com Angélica Faria, usuária do Caps II de Vitória da Conquista
INSTANTÂNEAS 19 Set - George Neri
DOSSIÊ 6 Carta de um lavrador - Valter A. Rodrigues 6 Grupo e Caos: Pseudo-equipe em saúde mental - Antônio Moura 10 Sobre a morte da psicologia - Eder Amaral e Cecília Barros-Cairo 14
Sumário
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EDITORIAL 4
EDITORIAL
isto não é uma palavra
Acesso súbito de loucura. Capricho, ímpeto, tineta. Impulso repentino, desvario. Quanto a sua origem, não há dúvidas sobre a região, mas titubeia-se quanto ao país. É certo que advém de terras nordestes. Uns dizem que surgiu na ponta nordestina da Itália, onde os habitantes misturavam dialetos à língua maior, falando e agindo ora de um modo, ora de outro; dir-se-ia que a imprevisibilidade dos moradores do Vêneto (cuja capital é Veneza) desorienta qualquer romano. Talvez esteja aí, na atitude dos falantes da “língua vêneta” – conhecida no sul do Brasil como talian – o nascedouro da expressão de longa fama: “fulano está de veneta”. É claro, há controvérsias: a nosso favor. Nas beiras de cá, o Sertão sinaliza outras procedências. Muito provavelmente, nossos avós saborearam a palavra até não poder mais, num sentido vizinho àquele de origem europeia. Entretanto, no nordeste brasileiro, “estar de veneta” é obedecer aos ciclos misteriosos do espírito, ter o ânimo revirado ao furor dos temperamentos. Quando acordamos de veneta, é menos por desembarcar dos sonhos com o pé esquerdo – como contestam os canhotos –, que por seguir sem saber os contragiros lunares, seus luscofuscos repentinos, saber tão antigo quanto esquecido nas brenhas do tempo. No Sertão, onde a lua estoura o céu preto depois do fogo das horas, antes da astronomia chegar o vaqueiro já conhecia outras razões para ver na bola de prata um satélite: de sua própria cabeça. Intuía, em si mesmo e nos seus, que volta e meia não se escapava, acontecia de estar “de lua”. A ideia de fazer esta revista veio assim. Seu nome não poderia ser outro. Por trás disso, um encontro improvável aconteceu, inaugurando conspirações de mil projetos comuns, numa urgência vital de experimentar o que pensamos e fazemos juntos. De súbito, o tino da revista ganhou liga, começamos a aliciar seus cúmplices. É que forjar uma revista de veneta é crime
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previsto na lei da utilidade do tempo, em vigor na maioria das cabeças. Um não acabar mais de desperdício das contas do relógio, da energia, do salário. Artifício erradio, despropositado. Exige um desvio de competências, um rapto de forças, um conluio de desejo que só a amizade oferece. É preciso sinalizar estas presenças de veneta em nós. A primeira delas, a quem dedicamos este primeiro número de Veneta, passou por nós deixando mil rastros luminosos: Valter Rodrigues, mestre-amigo, nos deu o que pensar por toda uma vida. Dele é que roubamos a alegria da inquietude, a força de pensar problematicamente. Isto não é um professor, nem um psicólogo, nem um psicanalista, nem um editor, nem um homem, nem um velho, nem um menino. As negativas que o constituíam eram acima de tudo a afirmação de um modo de vida pleno na intensidade, na amizade e na beleza. Valter é para nós, antes de qualquer coisa, esse interlocutor sempre presente, apesar das distâncias; aquilo a que aprendemos, com a vida, a chamar de amigo. O projeto de Veneta está repleto de sua presença. A imagem da capa, bem como algumas das contidas no miolo da edição, são de autoria de Valter. Se por um lado ele não é nem isso nem aquilo, por outro ele é isso, e aquilo, e mais aquilo: desenhista, ensaísta, lavrador... Abrimos os trabalhos do Dossiê/ Doce-ê com um texto seu, escrito em 1976 como se o tempo não passasse. Sim, pois aquilo que diz nesta Carta de um lavrador persiste em nos tocar diretamente, como se o ouvíssemos falar outra vez. Na sequência outro amigo comum, Antonio Moura, psiquiatra, poeta, professor e aliado prossegue a problematizar nossas práticas de cuidado à loucura e suas encruzilhadas, no texto Grupo e Caos: pseudo-equipe em Saúde Mental. Fechando o Dossiê/ Doce-ê, Cecília Barros-Cairo e Eder Amaral, aprendizes de feiticeiro na arte da docência e da clínica, retomam a experiência de for-
mação partilhada por Valter, interpelando a psicologia e seus 50 anos de profissão no Brasil: seríamos capazes de afirmar uma psicologia que queira tornar-se desnecessária? Tal é a provocação de Sobre a morte da psicologia e as ossadas de um ofício. As Veredas são os caminhos que nos trazem e para os quais nos dirigimos, nossas alianças e pontos de encontro com o mundo. Mas Veneta não é só palavra. Em seu meio, as Instantâneas são imagens que deixam o olhar deslizar vagabundo pela página. Assinado por George Neri, fotógrafo, cineasta e amigo, nosso primeiro ensaio fotográfico, Set, delira o feriado nacional no invisível da cerimônia. Além deste ensaio e dos desenhos de Valter, a primeira Veneta foi presenteada com imagens de Meg Sousa, Alan Alves, Luis Mathias e Monaliza Cirino. Veneta segue cruzando perspectivas, provocando Entrevistas: mistura de olhares, de escutas e vozes. E para começar, Angélica de Faria, uma venetista “de carteirinha”, conversa com Cecília sobre a vida, a felicidade, a clínica, a saúde mental, a arte, o espírito e, é claro, a Veneta. A seção Avulsos é destinada aos textos que espalham para outras regiões do pensamento e da criação o perfume de Veneta. Seu primeiro texto nos fala Da embriaguez como método. O escrito do amigo aracajuano João José Gomes dos Santos registra a intensidade da experiência da rua, de beber suas gentes e movimentos, da mistura com seus presentes. Em seguida, Leila Domingues Machado, professora e artífice dessa aliança em terras capixabas, nos oferece seu Ensaio sobre a cegueira de um rei, no qual acompanhamos a fortuna de um soberano recém regresso às terras de seu reino, sob pleno contágio do mundo. Charles Ribeiro (ou querino) vem flanar entre encontros notívagos, poesia e experimentações que nos dizem que essa noite nunca existiu (quem acredita?). Colocando a tampa da seção, Caio Resende lança em voo trôpego seu Pássaro Turvo, Dioniso cambaleante nos pés de um bêbado a meio fio.
Nos Arremates, atenta às vozes que nos conjugam, Erika Grisi acompanha o ressoar dos sotaques que nos deixam de Veneta, costurando com suas linhas nossa primeira brochura. Antes de entregar à leitura este primeiro número de Veneta, nos cabe apresentar o grupo que gesta sua aparição, já que ainda não foi de todo apresentado: além de Cecília, Eder, Erika e Caio, Thiago Suiten nos acompanha na alegre tarefa de aliciamento que é própria da Veneta; o resultado gráfico-poético de Veneta se deve a sua cuidadosa criação, capricho e talento sem os quais este projeto jamais “entraria no papel”. Nossos mais sinceros agradecimentos a Andrea Moure, integrante do Grupo Miríada e parceira de trabalho, por nos ter apresentado a revista argentina Miríada, doravante hermana más vieja de Veneta. Dela tomamos emprestado o formato impresso; com ela, partilhamos o desejo de fazer circular as generosidades da criação e do encontro. Esta revista é fruto do trabalho coletivo, da colaboração e, sobretudo, da experiência político-afetiva que nos envolve ao redor deste projeto, desta convivência. Por isso é que dizemos, desde a capa, que “isto não é uma revista”: isto é um encontro, uma aposta, uma alegria de fazer o que nos fortalece. Enquanto esta alegria existir, haverá Veneta. Veneta é uma força repentina, uma surpresa. Nem sempre agradável, intensa toda vez. Tem o dom do intempestivo, é prodigiosa, pródiga. O repente lhe é comum na rapidez, na euforia e no gênio. Veneta é a alma do avesso. É a borda do que sabemos, sobre nós mesmos e sobre os outros. É a beira do mundo, Estamira. Versa pelas artes do encontro, do choque, do contágio. Veneta é disparate. É disparo. Fere rente. Editoria de Veneta Vitória da Conquista, Bahia ... no frio que antecede as primaveras.
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CARTA DE UM LAVRADOR* Valter A. Rodrigues¹
São Paulo, 13 de fevereiro de 1976 Volto às palavras. Ou, pelo menos, ensaio uma volta. Digo, hoje recomeco, hoje retomo as ideias. Embora, no fundo, eu não ligue para elas. Decididamente, não vivo de ideias, embora seja isso o que mais pareca, quando se vê minha biblioteca. “Um pouco de tudo”. Posso dizer hoje que se não faltam ideias em minha cabeca, o que respiro mesmo é terra e planta, e não livros. Aprendo pouco com eles, e muito com a terra no fundo do quintal, e meu cachorro que insiste em revolvê-la. E esta é minha identidade com meu cachorro (desculpem-me, minha cachorra) - o desejo de revolver a terra mais e mais. Não sei o que diriam meus clientes, se eu lhes dissesse que a maior parte das coisas que faco com eles, das palavras que digo não nascem dos livros, mas da terra revolvida, preparada, regada, e do lento processo de formacão de vida que acompanho, progressivamente, brotando dela. Assim, minhas nocões de vida e morte, de nascimento e vida, do deixar morrer e deixar viver, no moto perpétuo do tempo. Não sei o que diriam. Talvez nada, ou talvez tudo (acho que às vezes subestimo essas pessoas que me procuram. Às vezes, eu me subestimo - o que posso fazer por você?). A verdade - nada. Nada posso fazer por ninguém, em momento algum. Mas posso, e esta é a única forma, fazer junto, acompanhá-lo com o mesmo cuidado que acompanho o nascimento da planta e o desabrochar da flor. Convidar as pessoas a revolver a terra comigo. E por que não? Na realidade, sou um lavrador, de poucas ideias na cabeca e, cada vez mais, muita forca nas mãos. Aqui, em minhas mãos, da mesma forma que escrevo agora, nascem minhas ideias e minhas palavras. Mãos e coracão. Com isso, para que ser teórico? Divirto-me comigo. Conto minha história como a de um cara que fez o diabo para negar, esconder, disfarcar minha origem em berco de terra. Compreensível, até. Como dizer aos meus amigos, de nomes enormes e tradicões maiores ainda que nasci de lavradores, que meu pai é um matuto e minha mãe moca do campo? Como dizer que, no meu mundo, falava-se de assombracão, de saci e mula sem cabeca? Ou que minha infância passei cuidando de galinhas, num quintal imen-
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so de uma cidadezinha do interior? E hoje me descubro lavrador. E que não adiantou todo o esforco em parecer intelectual de ~boas origens , com árvore genealógica e tudo mais. E é aqui, nesta terra, neste mundo pequeno que descubro minha forca. Atraso as palavras, deixo os livros na estante, interrompo, volta e meia as teorizacões, corro para o quintal, verif ico o tamanho das trepadeiras, arranco mato, desafogo alfaces, salsas e cebolinhas. Jogo as sementes na terra lentamente trabalhada. Trabalho esta terra, antes estéril, para que ela venha cobrir-se de verde. Busco a umidade do solo para repousar as mãos, quando elas se cansam e pedem trégua. É aqui, neste pequeno quintal, que a vida comeca a florescer. É dessa planta adulta, já formada - o próprio homem - que nasce a semente. Cuido de mim hoje como cuido de minhas plantas. Retirando folhas mortas, f lores já murchas e galhos que já não produzem mais nada. Ou deixando que caiam por si mesmos quando a planta mãe os recusa, e prepara-se para que nascam novos brotos. Cuido do homem como cuido das plantas. Mas, mais que limpando-o, acompanhando-o no doloroso (!) processo de aceitacão da morte e da vida como movimento contínuo no espaco tempo. É preciso morrer para viver. Quando comecei a entrar na terra, pensei em desistir. O que eu plantava morria. Cheguei a arrancar muitas mudas “mortas. Julguei-me um mal lavrador, sem mãos para a terra. Mas, talvez o acaso, ou minha falta de cuidado deixou que algumas mudas - agora galhos secos - ficassem na terra. E esses galhos -~já mortos~- brotavam de novo, davam folhas tenras, e firmavam-se no solo. Assim aprendi a morrer inteiro. Mas restou a impaciência. Agora eu já sabia que as plantas morriam. Ainda assim, apressava-me em vê-las nascer de novo. Procurava ajudá-las nisso. Olhava-as todos os dias, e dizia - esses galhos secos enfeiam o jardim. Resisti ao desejo de arrancá-las, ou abandoná-las. Meus esforcos eram inúteis. Os brotos novos só vinham no seu tempo, não antes. Meu exercício. Minha impaciência é grande. Às vezes conseguia uma planta nova. Plantava-a, mas sem
*Manuscrito datilografado sem título. Esta “carta de um lavrador” – imagem forjada no próprio escrito – é oriunda do espólio textual do autor, gentilmente cedido à REVISTA VENETA por Zezel Leite, sua esposa. 1Valter A. Rodrigues (1948-2010), psicólogo (PUC-SP), psicanalista, editor e professor universitário. Mestre em Comunicação pela Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero (FCSCL-SP), onde desenvolveu a pesquisa “Corpo, técnica e mídia: simulações de potência” (2002). Natural de Itapira-SP, Valter viveu boa parte da vida em São Paulo, de lá saindo apenas em 2006, quando chegou a Vitória da Conquista. Revista Veneta | Dossiê | Carta de um lavrador
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sentir-me satisfeito. Era uma só. Procurava revelá-la bem, cercando-a de cuidados. Mas a insatisfacão continuava. Uma planta só, que importância tem? O tempo produzia novas plantas, que nasciam da planta mãe. E a terra cobria-se mais. Não gosto de informacões prontas, já dadas, já elaboradas. Existe uma distância para mim entre o sabido e o vivido. Do processo das plantas, sabia através dos livros, ou de conversas com amigos. Mas esse conhecimento sempre adiantou pouco, quando o momento era vivo. Falo de minha vida no interior. Sempre me senti dividido em dois mundos. Dizendo do antes e do depois. Parti minha vida ao meio. De matuto a intelectual. Itapira e São Paulo, dois pontos. Plantei-me em terra nova. Foi difícil. Aqui morri. Pensei - o Valter do interior ficou lá. Hoje vivo no centro cultural. A vida é outra. A vida é outra e o Valter é o mesmo. A terra é outra, mas a raiz é a mesma. Sou raiz, e a semente é a mesma. Mais enriquecida, talvez. Enxertada, com certeza. Nesta terra, morri e nasci. Expandi raízes, a terra é fecunda. Retorno à terra no momento mais difícil. Sem mais nada para acreditar, muitos lacos partidos, os referenciais perdidos. Retorno à terra duvidando de minha profissão, desacreditando das ideias até então defendidas. Retorno à terra sentindo a vida perdida. Acredito-me enlouquecido. Sem referenciais, não consigo retomar coisas interrompidas. Deixo parte de mim numa casa antiga, de muitos fantasmas e pouco ar. Sinto, ao chegar aqui, na nova casa, a ameaca de um retorno ao interior. O muito espaco me assusta, a presenca de árvores recorda. Nenhum prédio, pouco asfalto perdido em verde. Tenho espaco e ar e me sufoco. Poucos amigos, que reclamam da distância e assim se afastam. Os trabalhos atrasados da faculdade ameacam. Talvez eu nunca chegue a ser psicólogo. Já nem sei mais se é isso que quero. Penso em morrer. A solidão assusta. Como a vida assusta. É como comecar tudo, do zero. Nascer ou morrer. Nenhuma outra alternativa à vista. Sinto-me decadente. Descubro que não sei nada. A vida se constrói sobre a ilusão de muita sabedoria. Os livros ajudam. Mas os livros estão encaixotados. Como manter uma ilusão, negada aos olhos? Um dia desencaixoto os livros, coloco-os em estantes. É preciso que eu me agarre em alguma coisa. Mas os livros não tem cor. Os livros estão fechados e continuarão fechados. Não consigo f icar em casa. Todos os dias saio, perambulo por Pinheiros, visito a antiga casa, desejo-a de volta. Minhas mãos estão machucadas. Machuco-as quando comeco o trabalho de encaixotamento
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dos livros. Procuro escondê-las. Estão sujas e calejadas. Sonho minhas mãos f inas de livros nas estantes e muitas palavras na cabeca. Penso - nem trabalhar posso. Como poderão as pessoas aceitar essas mãos, se já não são macias? Comeco a mexer a terra com essas mesmas mãos. Machuco-as mais. Tenho às vezes a impressão que machucar-me torna-se proposital. O corpo enche-se de espinhos de cactos e roseiras. Mexo a terra com medo. Existem aranhas, existem lagartas. E outros bichos que são repugnantes. Rejeito a terra, tenho medo dela. Mas a terra é meu único elo. Viver ou morrer torna-se condicão da terra. Um dia, uma amiga da faculdade aparece. O convite para terminar os trabalhos atrasados. Acompanho-a sem vontade. É uma nova solicitacão. Aceito com esforco. Reaproximo-me dos livros, mas não consigo distanciar-me da terra. A terra atrai, deixo a faculdade para depois. Na realidade me protejo. Sair agora é enlouquecer. Tenho medo. Às vezes meu cachorro me irrita. O que planto, ele arranca. A terra aplainada, ele revolve, faz buracos. As plantas não tem tempo de amadurecer. Sinto que o cachorro me provoca. Às vezes me solicita. Parece-me ciumento, mas sei que isso é ideia minha. O cachorro não é humano. Não posso concebê-lo com ciúmes. O quanto lhe falto, é o quanto me falto. A terra é um refúgio. Às vezes me parece cômodo, embora me ensine. Mas não sinto que essa aprendizagem possa frutificar, se eu não puder abandonar a terra e voltar-me para a cidade, onde encontro exigências. Não adianta também frutificar sozinho. Preciso do outro para crescer. E deles me refugio no meu pequeno espaco sem cimento do quintal. O mundo de fora me ameaca mais e mais. É preciso estar atento para perceber até onde eu me fazer lavrador é consciência ou é alienacão. Porque não sou lavrador. Não vivo da terra. Ela pode me fazer crescer, mas não me alimenta. Por mais que produzir com a terra me faca feliz, meu não produzir no mundo me desespera. Não sei se quando voltar já será tarde. Não quero perder o que consegui até hoje. São coisas importantes. ***
Revista Veneta | Dossiê | Carta de um lavrador
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GRUPO E CAOS
PSEUDO-EQUIPE EM SAÚDE MENTAL*
Antonio Moura Existe a realidade dos grupos submetidos. Ela é relevante... Pode ser ao ‘eu do líder’, ao nome da família, à imagem do rei, às palavras do mestre, a certa filosofia, às coerções de uma organização, à competitividade, à palavra da mídia, à ciência, ao consumo automático, à arte, à revolução, a Deus, ao partido etc. A lista é praticamente infinita. O que esses dados heterogêneos têm em comum é a função de conduzir o grupo em direção a objetivos fora dele. Ou seja, o grupo só existiria a partir de algo que o ultrapassa como vivência concreta de si. Ele ergue uma crença no Imaginário. Este habita o grupo, fabrica uma natureza que o “autoriza” a assumir uma “essência”. Irão aí medrar as futuras burocracias e os microfascismos, por onde a instituição-Grupo forma um refúgio bem sucedido das forças coletivas da história, do tempo e do caos. “Você não é dos nossos”, “morte ao estrangeiro”, “só entra aqui sendo...” são palavras de ordem que passam a ressoar como formações inconscientes. As pessoas, os indivíduos, os eus, se encaixam nesse grupismo protetor. O desejo grupal passa a maquinar corpos em busca de territórios estáveis onde alguém se reconheça. “Eu sou o grupo”. Trata-se de uma subjetividade padronizada em linhas endurecidas da existência. Como diz Guattari, um grupo–sujeitado. Seja o caso da reforma psiquiátrica. Há grupos de trabalho chamados de equipes técnicas multidisciplinares. Os papéis técnicos compõem um repertório de ações práticas (técnicas) para com o paciente. Tais práticas correspondem a modos de subjetivação, as quais precedem a fundação dos grupos. Eles vêm de fora, consistindo forças que secretam sem parar o valor e o significado das práticas. O ideário da reforma psiquiátrica cunhou o rechaço ao hospital psiquiátrico e a valorização do usuário como ser humano. No en10 Revista Veneta | Dossiê | Grupo e Caos
tanto, este humanismo não foi suficientemente forte para levar a clínica (ou seja, o encontro com o usuário) para formas descoladas dos antigos clichês do hospício. Entre estes, persiste a submissão ao poder psiquiátrico como representante autorizado da Ciência. Tal submissão produz efeitos sobre o paciente, reduzindo-o a um cérebro que consome remédios químicos. É uma constatação já denunciada por segmentos sociais interessados na qualidade da assistência prestada aos portadores de transtorno mental. Nosso problema é, pois, o trabalho da equipe técnica em seu cotidiano e na produção de uma reflexão sobre o mesmo. Teríamos as questões: 1) Trata-se, de fato, de um grupo? 2) A que interesses atende? 3) Que concepções sobre a loucura norteiam o seu trabalho? 4) Como se dá a comunicação entre os segmentos técnicos em relação ao paciente? 5) Qual o lugar da ética e da política nas ações práticas? Nossa hipótese de base: apesar do ideário da reforma psiquiátrica, a psiquiatria é um modo de subjetivação que ainda domina e controla os que lidam com o paciente. Significa dizer que não há reforma psiquiátrica na clínica. Ao contrário, o grupo técnico trabalha sob a transcendência psiquiátrica. Ora, a psiquiatria dispõe de um arsenal de medicamentos contra os transtornos mentais. Usá-los, sim, desde que observados critérios éticos e diagnósticos. O problema é que esse dado surge como primeiro na avaliação clínica. Medicar e depois diagnosticar, se possível. Desse modo, o transtorno mental surge na e da psiquiatria como seu objeto legítimo. Cabe aos demais técnicos acompanhar o carro-chefe. Ou nada. Esse fato compromete o trabalho de grupo como um trabalho coletivo. Mais: de que objeto se trata? Transtorno mental já não seria alguma coisa fabricada pela própria psiquiatria? Se é objeto da psiquiatria, não pode ser objeto da psicolo-
gia ou de outros saberes. Então, partir da psiquiatria como “proprietária” do paciente é admitir que tudo, em termos de equipe e tratamento, gira em torno do significante hegemônico “psiquiatria” como centro de significação clínica. E, por extensão o seu objeto, o paciente. Parece que estamos girando num círculo de redundâncias. Como, então, constituir um grupo se um sujeito (a psiquiatria) instituiu há muito o seu objeto (o paciente)? A produção criadora de clínicas só pode ser tentada se houver uma des-hierarquização das relações intragrupais. Um mesmo plano de trabalho e de afetos. Todos são iguais em suas diferenças. A que interesses atende o grupo? Pode ser o interesse do Estado, querendo suas apacs1 para justificar a assistência. O que mais? O interesse da sociedade como um todo e o seu senso comum para saber como andam (e o que fazem) com seus loucos. Ao contrário, acreditamos que o grupo deve atender aos interesses da loucura. Entendemos esta como a conduta libertária avessa aos domínios do Estado e dos seus aparelhos conexos. Nenhum romantismo. A loucura, na verdade, não tem e não vive de interesses. Ela vive do desejo, é o desejo espraiando-se em produções ao acaso dos encontros. Tal definição alcança o campo do impessoal. Portanto, não falamos do louco, mas da loucura que poderá se encarnar, aí sim, num suposto louco. Pois o desejo está em toda a parte onde se trabalha com o louco. Ressoa a questão: que linhas o desejo percorre ou, ao contrário, estagna quando o louco se diz (ou dizem) que ele é doente? Por fim, a análise de um grupo técnico compreende as linhas e as práticas que o desejo percorre. A equipe técnica é composta por linhas de desejo e práticas que lhe são coextensivas. Ela demanda uma análise político-institucional das suas operações cotidianas. Para isso ser possível, usamos um método que segue as produções do desejo num meio (ou conjugação) de determinações múltiplas. O meio é a subjetividade como modo de produção contextualizada. O Caps2 tende a reproduzir o modelo biomédico autor de tantos equívocos na história da psiquiatria. Talvez por isso, no 1Autorização de Procedimento de Alta Complexidade.
momento, praticamente não há avanço. Ao contrário, se as pesquisas sobre o cérebro evoluem, o que há é um retrocesso na percepção da vida afetiva. Ora, falar em grupos é antes considerar a sua vida afetiva: o desejo como foco. Os grupos se movimentam pelo desejo. Ou melhor, o desejo é o próprio movimento, não como espaço a ser percorrido, mas como intensidade. Desse modo, a pergunta é: o que move o trabalho dos Caps? O que move as suas equipes? Tentamos sugerir algumas hipóteses a partir da produção de subjetividade oriunda da forma-Estado. A subjetividade produzida é a da saúde mental, uma instituição a serviço do Estado. Sendo assim, servir a saúde mental é servir ao Estado. Mesmo trabalhando numa empresa privada ou na clínica consultorial, os modos de subjetivação seguem a forma-Estado. Este é um princípio de soberania que se afirma na regulamentação dos códigos sociais vigentes. O conceito de transtorno mental é tributário das ações do Estado que se traduzem nas chamadas políticas de saúde mental. Um técnico bem intencionado não basta para um trabalho novo e de qualidade. O sujeito “bem intencionado” remete às coisas da consciência e, portanto, da moral. Antes de tudo, ele julga. Desse modo, a equipe técnica é guiada pela moral, mesmo que não o admita, ou sequer perceba. O grupo reproduz o Estado interiorizado em subjetividades mansas. Isso não surpreende, ao contrário. O Estado “regula” os fluxos do capital em prol da superfície do corpo. O grupo é um corpo, um corpo submetido às injunções de não se poder dizer: “somos nós os autores”. Óbvio que não há uma autoria empírica. A “equipe técnica em saúde mental” recita os discursos em que o Estado – de modo implícito – comanda. O Estado é o Senhor. A clínica dos transtornos mentais é, assim, retalhada por linhas institucionais que a destroem, ou no mínimo, a desfiguram. São fluxos de poderio invadindo mentes e corpos desautorizados a desejar. Um grupo se reconhece num contexto de dominação consentida. As contingências do seu funcionamento passam a ser previsíveis. Neste sentido, o psiquiatra é o sujeito 2Centro de Atenção Psicossocial.
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empírico das equipes. Por que? Porque ele é a Medicina em pessoa. Quem cuida de doentes mentais é o psiquiatra. Deste modo, o grupo trabalha com a transcendência psiquiátrica norteando ações. Pouco importa se lugares de comando são preenchidos por não-psiquiatras. A subjetividade psiquiátrica se compõe de linhas existenciais traduzidas em papéis sociais diversos, a depender do contexto prático. Um técnico não psiquiatra poderá pensar, perceber, sentir e atuar tanto quanto um psiquiatra na relação com a loucura, e por extensão, com o paciente. Um técnico não-psiquiatra pode ser até “mais psiquiatra” que o psiquiatra. Voltemos, pois, às indagações iniciais, resenhando os cinco itens. 1- Trata-se, efetivamente, de um grupo? Ora, considerando as práticas “capsianas” em seus aspectos gerais, não é um grupo. Desse modo, se a proposta do trabalho é multidisciplinar, a equipe técnica é um pseudo-grupo. Um grupo trabalha sobre si numa auto-análise incessante enquanto se produz para fora num processo-ato (autogestão). São essas as condições básicas para um conjunto de indivíduos (ou pessoas) se intitular grupo. Portanto, quando falamos em grupo não falamos de uma organização nem tampouco de um dispositivo técnico (equipe) dentro da organização. Todo grupo compõe um corpo não visível, corpo em intensidade, corpo liso que se liga a outros corpos. A consistência grupal torna-se o conjunto das linhas subjetivas que confluem na produção de algo. No caso da equipe técnica, é uma produção de práticas singulares que irão servir ao paciente. Fora desse “projeto” não é grupo, e sim, evento serial de indivíduos. Tal entidade faz com que a equipe técnica dissolva-se. O que fica é uma forma espectral (uma sombra) esperando ordens. Como vimos, podem ser as da psiquiatria, ou, se quisermos ir mais longe, a forma-Estado e suas linhas de poder. Se não se trata de um grupo, também não se trata de uma equipe técnica e sim de uma pseudo-equipe.
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2- A que interesses atende? Uma pseudo-equipe, para “se esconder”, antes de tudo, precisa se mostrar como “A equipe”. Isso faz parte do processo de acolhimento ao portador de transtorno mental. Produção de verdade. Compromissos molares se afirmam: o do contrato de trabalho, das identidades profissionais, da segmentarização das especialidades, dos saberes, das técnicas, entre outros. A sobrevivência do organismo físico individual (cada um por si...) é peça vital nesse agenciamento de forças. De todo modo, pseudo-equipes tendem a uma operação de maquiagem da psiquiatrização. No fim ou no começo está a loucura. Como se sabe, a psiquiatria desconhece-a por não ser um conceito médico. No entanto, na prática continua “mandando”, pois lida com remédios químicos. Aplaca, controla, utiliza, codifica e “pune” a loucura. Desemboca no ato médico como expressão concreta de poder. Os demais técnicos costumam referendar a psicofarmacoterapia na medida em que eles, em termos imaginários, se “automedicam e medicam” o paciente. A saúde mental se institui como discurso do Controle. 3- Que concepções da loucura norteiam o trabalho de uma equipe? Ora, como vimos acima, essa questão remete necessariamente à psiquiatrização e ao conceito de mente que lhe é correlato. Loucura seria um erro da mente, o avesso da razão. Isso não está explícito, mas funciona nas operações de montagem de uma “certa” clínica, a clínica “certa”, a farmacológica. A loucura passa a não existir como experiência-limite, mas enquanto desordem do pensamento e do comportamento. Quantos não-psicóticos são diagnosticados como psicóticos? Não estamos a dizer uma novidade, e sim que essa novidade é uma antiga lição aparentemente superada pelos avanços neurocientíficos. No trabalho de uma pseudo-equipe, esse dado é assumido como verdade do progresso, ou progresso da verdade, tanto faz. A fé na ciência da mente espalha-se no organismo grupal como a sua pró-
REFERÊNCIAS BAREMBLITT, G. O inconsciente institucional. Petrópolis, Vozes, 1984. BIRMAN, J. A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio, Graal, 1978. CAUCHICK, M.P. Sorrisos inocentes, gargalhadas horripilantes – intervenções no acompanhamento terapêutico. São Paulo, Annablume, 2001. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia, Rio. Imago, 1976. EQUIPE DE ACOMPANHANTES TERAPÊUTICOS do Hospital-Dia. “A casa” – A rua como espaço clínico. São Paulo, Escuta, 1991. FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. São Paulo, Martins Fontes, 2006. GUATTARI, F. Psicoanalisis y transversalidad. Buenos Aires, Siglo XXI, 1972. LANCETTI,A. Clínica peripatética. São Paulo, Hucitec, 2006. LOURAU,R. A análise institucional. Petrópolis, Vozes, 1975. MORENO, J.L. Fundamentos do psicodrama. São Paulo, Summus, 1983. STENGERS, I. A invenção das ciências modernas. São Paulo, Editora 34, 2002.
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artista é a porra, arteiro dá cambalhota
pria natureza. Esse organismo é o que estamos chamando de pseudo-equipe. É, na realidade, uma organização e se impõe como realidade da saúde mental. Encarna em si mesma uma identidade, um eu-grupo consciente das obrigações para com o paciente. Ora, é óbvio que se trata de obrigações formais ditadas pelo Estado e reproduzidas em automatismos assistenciais institucionalizados. Isto subsiste nas práticas sociais e imprime uma marca subjetiva adotada como referência de trabalho. Daí resulta a imagem da saúde mental como o guia maior para ajudar o paciente, aquele que não é normal, ou no mínimo, não se adapta aos modos de vida estabelecidos. 4- Como se dá a comunicação entre os técnicos? Se considerarmos a ótica de uma pseudo-equipe, a comunicação está corrompida em suas bases. Não há contato entre segmentos técnicos heterogêneos, exceto o que for marcado pelo signo do controle sobre o paciente. “Para controlar vamos nos unir...” É um truísmo que se impõe, na medida em que a linha do poder psiquiátrico prevalece como alternativa micropolítica de trabalho. Controlar significa medicar, ou seja, tudo fazer pelo paciente, desde que passe pelas lentes de aprovação da medicina. A comunicação entre os saberes técnicos é, assim, forçada pelas circunstâncias que estabilizam o transtorno mental como enfermidade do sistema cérebro-mente. 5- Qual o lugar da ética e da política nas ações práticas? No universo imaginário da pseudo-equipe, a ética passa longe como inserção na potência de vida do paciente e do próprio técnico que o atende. “Ética é coisa da filosofia”, dir-se-ia. Quanto à política, permanece o Estado ditando suas prioridades em torno dos dados quantitativos: quantos pacientes foram atendidos nesse mês? Ou o Mercado em sua competição intrínseca: você produz o quê? Em resumo, ética e política estão fora, não contam, pois o tecnicismo raso prevalece disfarçado de ciência psiquiátrica.
SOBRE A MORTE DA PSICOLOGIA E AS OSSADAS DE UM OFÍCIO
Cecília Barros-Cairo* & Eder Amaral** Forasteiro delira o fim de um ramo
dois pedaços de rosto, uma foto abstrata e um menino com sono
Era um dia como qualquer outro, mas não haveria aula à noite. O CRP-031 promoveria um evento para comemorar o “dia do psicólogo”. No calendário dos festejos profissionais, o dia 27 de agosto é celebrado como marco histórico do surgimento da profissão no Brasil, regulamentada no país desde 1962. Como de praxe, haveria uma palestra – evidentemente proferida por um profissional da área –, cujo tema, de abrangência genérica, seria abordado no sentido da valorização da profissão, da importância de seu correto exercício, da função social do psicólogo, dos “desafios e perspectivas” da atuação. Na ocasião, fizeram o convite a um professor recém-chegado de São Paulo. O estilo provocador de suas aulas e seu posicionamento sobre a relação entre ética, afeto e pensamento causaram estranhamento, mas também curiosidade nos alunos. O convite veio a calhar: além da cerimônia do dia 27 de agosto costumeiramente atrair os alunos do curso de psicologia, aquela era a primeira oportunidade de ouvir o “forasteiro” para além da sala de aula. O auditório repleto de profissionais e estudantes aguardava o início da palestra entre biscoitinhos e listas de presença. Ao início da fala do convidado, ocorrera o que seus alunos lentamente se acostumaram a tes-
temunhar: a fala que ganhava devagar seu fôlego, de início pausada, como que ensaiando um salto em pequenos gestos, logo singrava, ofegante e intensa, pelo descaminho do já dado, já sabido. A sequência de provocações à audiência de feiticeiros e aspirantes atingiu seu ápice quando, ao falar da presumida importância social do psicólogo, o convidado sapecou: – Sonho com o dia em que me tornarei desnecessário; com o dia em que as misérias e as dores dos outros não precisem mais de um especialista nestes assuntos. Não tenho medo de não poder mais viver disso, porque a gente sempre pode fazer outra coisa da vida. Seria muito interessante ver chegar o dia em que, como psicólogo, eu não fosse mais preciso. Se temos medo de que, em algum momento, deixemos de ser importantes, relevantes, necessários como psicólogos, então precisamos nos perguntar sobre o que move essa vontade de importância.2 Será que ela não é uma “vontade de impotência”? Embora os alunos já estivessem ambientados à verve do professor, seu sonho-desejo-questão produziu aquele tipo de incômodo que se manifesta primeiramente no
* Psicóloga (Espaço Avesso) e Professora do curso de Psicologia da Faculdade Juvêncio Terra. Mestre em Memória, Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). ** Psicólogo (Espaço Avesso) e Professor dos cursos de Psicologia da Faculdade Juvêncio Terra (FJT) e do Instituto Multidisciplinar em Saúde da Universidade Federal da Bahia (IMS/UFBA). Doutorando em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 14 Revista Veneta | Dossiê | Sobre a morte da psicologia e as ossadas do ofício
Jovem senhora vagueia a horas mortas Aprendemos muitas coisas com a vida e o pensamento desse forasteiro Aparecido – de batismo, Valter Aparecido Rodrigues. Ressalte-se: aprendemos com a vida, mais que com as aulas; pois, também como professor, seu desejo sempre foi tornar-se desnecessário. Valter nos apresentou a possibilidade de experimentar nossas potências na leitura, na arte, no coletivo, na clínica. Esse encontro desnorteou nossos territórios para muito além do registro acadêmico, profissional, intelectual; em verdade, os encontros com Valter tinham a capacidade de nos mobilizar afetivamente, de não nos permitir sair do mesmo modo como chegávamos às suas aulas, à sua casa sempre aberta. De tal maneira que, desde então, mesmo a finitude – do próprio encontro com ele, diga-
se – desdobra outros nascimentos, novas alianças (por vezes improváveis) entre nós, geradas sob o signo de sua presença. Faz algum tempo que esta presença nos fortalece em nossas práticas, como ex-alunos, colegas, parceiros, experimentadores de um pensamento vitalista, muito frequentemente aprendido à base de silêncios e latidos. Sim, porque ele latia, embora às vezes preferisse outro caminho: “aqui não adianta latir, tem que morder”.3 Com o tempo, encontramos o sentido dessa veia canina no professor, no psicólogo que, teimosamente, “preferiria não”. Seu exercício diário na docência e na clínica era por demais ambicioso: de um lado, desviar de conteúdos ou teorias desencarnados, para fazer de cada aula uma experiência de problematização, de pensamento, mas também de alegria. Do outro, uma clínica que desinvestia a expectativa de “ajuda” para cultivar, à maneira do lavrador,4 a vitalidade de modos de existência criadores. Valter Apareceu e nos ensinou esse exercício, sabendo sempre se esquivar do tom catedrático, proselitista, autoritário. Assim é que aprendemos (ainda) a pensar por latidos, por mordidas: a interpelar a psicologia como um cão que não larga o osso. É assim que chegamos agora a pensar os 50 anos dessa profissão, a interrogar suas construções teóricas e práticas. Na universidade e nas práticas que com ela mantém interlocução, passamos por uma espécie de adestramento do pensamento e isso nos sinaliza um embaraço: alimentamos, assim, uma universidade que tem a didática como o seu fim. Como o seu fim? Não deixa de ser espantoso que a emergência de determinados campos problemáticos na universidade
Conselho Regional de Psicologia, 3ª Região (Bahia). Adaptação a partir das notas tomadas durante a palestra. 3 Alusão à frase utilizada sob gravura impressa na revista Cadernos de Subjetividade, número especial em homenagem a Gilles Deleuze, jun/1996, PUC-SP. 4 Ver “Carta de um lavrador”, neste mesmo número. 1 2
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quero ver essa boneca se tornar menina de verdade!
reconcertar-se das pessoas em suas cadeiras, seguido de silêncio. A palestra prosseguiu por mais 15 ou 20 minutos, entre mal-estares e euforias de uma fala franca em demasia. Faz seis anos que escutamos aquelas palavras e não as esquecemos. À época, estávamos em pleno meio: do curso, do estágio, das escolhas, e a pergunta do recém-chegado nos desorientou. Como continuar uma formação que tivesse como horizonte tornarse dispensável? Como estudar, investir tempo, dinheiro, energia numa profissão que pretendesse a própria extinção? Por que, afinal, desejar o dia em que, como psicólogos, nos tornaríamos desnecessários? Estaria o forasteiro agourando a morte da própria profissão?
Desenho de Alan Alves; 2012.
pássaros caem dentro de uma janela, como caem coisas em nossos olhos 16 Revista Veneta | Dossiê | Sobre a morte da psicologia e as ossadas do ofício
À beira das ossadas de um ofício Escrevemos por uma Psicologia que se faça, enfim, desnecessária. Que a morta-viva de 50 anos sacuda seus velhos trajes importados e os reinvente à costura tropical, que ela encarne sua condição tupi-nagô-africana-quilombola-acarajezista com a malemolência que lhe cabe. Para que seus maquinistas aprendam a conspirar novos sentidos em função do acontecimento, sempre tão imprevisível, que redesenhe seus próprios espaços, sua própria cultura, que saiba ser digna de sua própria pobreza, mas também de sua riqueza, das potencias éticas, estéticas e políticas que a constituem; para que tenhamos, enfim, uma psicologia menos piedosa, tal qual a serpente de Paul Valéry, que se devora pela cauda, recriando o pensamento como forma de liberdade. As amarras às quais está presa fazem da nossa jovem senhora uma reprodutora de iguais, de mais mortos em vida. É tempo de alcovitar-lhe adultérios: da Psicologia com a arte, com a rua, com o povo, com o pensamento sem dono, com os caminhos milenarmente esquecidos de sua constituição, com as forças que a permitiram nascer. Que ocorra – sem exagerada solenidade, sem pesar – o velório dessa Psicologia que ainda sustentamos mecanicamente. Que pensemos novas formas de existir para a Psicologia, novas linhas de percurso, para que nossos bons encontros com ela tornem-se possíveis e se proliferem. Que saibamos tornar desnecessário o que não serve para a vida, por uma psicologia como ciência e arte, como clínica e política, como desejo e alegria.
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antes pagão que devedor
coexista com a parafernália burocrático-disciplinar na formação do estudante, recorrendo assepticamente a conceitos que só funcionam se experimentados. Um ensino que reduz os conceitos a definições – nem sempre precisas – é incapaz de possibilitar àquele que estuda o sabor do problema. Queremos chamar a atenção para o entendimento do conceito como matéria-prima do pensamento, de modo que ele, ao ser experimentado, torna-se a própria prática – arruinando, deste modo, os recorrentes discursos que opõem ou separam o pensar e o fazer. Já se pressente que se trata de teimar pela transmutação da Psicologia numa maquinaria concreta de produção de pensamento, para que o desejo pela criação de outros modos de existência calibre a bússola de nossas práticas. Importa dizer que isso implica uma atitude sediciosa por princípio, instaurando alianças entre o afetivo e o político. Insistir numa representação intelectiva da Psicologia é fazer vista grossa ao imprestável: o que não serve para a vida, não serve para nada, nem mesmo à própria ciência que, ao se alinhar à reprodução serial de conceitos e métodos, assume sua própria impotência para criar novos entendimentos sobre a realidade. Dir-se-ia que a psicologia – essa jovem senhora de 50 anos no Brasil – está morta em vida. E estará fadada a isso enquanto a produção de conhecimento não se fizer aliada à produção de vida, enquanto o fervor tecnocrático sustentar essa engenharia das condutas em que a psicologia se tornou no seu primeiro século. O que está em jogo é saber se continuaremos, daqui para frente, a desejar dispositivos de anestesiar as almas e embotar os corpos ou, ao contrário, se esta aparente miséria é indiciária de um estado seminal: não se pode perder de vista que o grão tem que morrer para germinar.
VEREDAS
usinagrupodetudos.blogspot.com.br/ Grupo de estudos e práticas micropolíticas, espalhado entre São Paulo e Bahia pelas andanças de Valter Rodrigues e nossos encontros com o pensamento da diferença. dif09.blogspot.com.br/ Grupo de pesquisa em “Filosofias da diferença e educação” da UFRGS. Onde monstros, bruxas e delírios se constelam numa educação-arte. escolanomade.org/ Rede autônoma de estudos e cursos de formação em filosofia, coordenada pelo filósofo Luiz Fuganti.
www.claudioulpiano.org.br/ Site que reúne transcrições e gravações aulas do filósofo e professor carioca Claudio Ulpiano. www.uesb.br/labedisco O Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo - LABEDISCO/ UESB - é coordenado pelo professor Nilton Milanez e se propõe à investigação das produções contemporâneas em torno do corpo, orientado histórica e discursivamente, destacando materialidades verbais e não-verbais em veículos midiáticos, cinematográficos, literários, pedagógicos e judiciários, entre outros.
www.amauriferreira.com/ Site do filósofo, escritor e professor Amauri Ferreira. Seus textos e livros estão disponíveis para download, além dos programas de seus cursos livres de filosofia.
candeeirocafe.wordpress.com/ Candeeirocafe é uma possibilidade, um espaço aberto, um ponto de convergência para aqueles interessados em criação artística. Num intermezzo com outras áreas, como a fotografia, o estímulo à criação é a veia principal, mas a produção crítica e eventuais traduções têm se tornado inevitáveis.
www.nu-sol.org/ Grupo de pesquisas entre anarquismos e abolicionismo penal. No site há várias produções do grupo, entre elas a “Flecheira Libertária” e a “Revista Verve”.
www.amauriferreira.com/ Site do filósofo, escritor e professor Amauri Ferreira. Seus textos e livros estão disponíveis para download, além dos programas de seus cursos livres de filosofia.
18 Revista Veneta | Veredas
George Neri
SET
INSTANTÂNEAS
Revista Veneta | Instantâneas | Set 19
20 Revista Veneta | Instant창neas | Set
Revista Veneta | Instant창neas | Set 21
22 Revista Veneta | Instant창neas | Set
TrocAfeto com Angélica de Faria, usuária do Caps II de Vitória da Conquista
ENTREVISTAS
realizada em 10 de agosto de 2012 Angélica de Faria é militante antimanicomial de longa data. Sua presença – protagônica, em todos os sentidos – no processo de contrução das políticas de saúde mental em Conquista tem sido decisiva, pela posição disruptiva que ocupa como usuária do CAPS II. Veneta a convidou para abrir a seção Entrevistas com dois dedos de uma prosa franca e alegre.
VENETA: O que é a vida pra você? ANGÉLICA: Como você quer que eu responda? Porque se eu responder como esquizo, vou dizer que a vida é uma merda. Se eu responder como pop star, vou dizer que a vida é um barato!
V: E felicidade? O que é? A: Olha, é complicado responder felicidade pra você, porque eu sou esquizo. É complicado te responder vida, porque eu sou esquizo. Agora eu sei que falar de felicidade depende do que faz uma pessoa feliz, do que ela procura como felicidade...
Foto: Monaliza Cirino.
V: Vamos falar de Angélica, não a esquizo ou a pop star... A: Eu acho que é difícil te dizer a Angélica e deixar a esquizofrenia de lado. Não existe isso! Eu estaria te enganando... É engraçado isso, porque o esquizo não vive no ar, por mais que o pessoal fale por aí... ele vive com o pé no chão. Não dá pra ir ao mercado e pagar com carinho... eu sairia de lá em cana! A vida é uma mistura... você, uma hora, está diante das estrelas, uma hora está diante dos abismos, noutra diante das pontes ou pela estrada mesmo.
Revista Veneta | Entrevistas | TrocAfeto com Angélica de Faria 23
V: E o que você tem de felicidade na vida? A: O esquizo tenta segurar a felicidade, mas ela escorre pelas vertentes dos dedos. Na verdade, a felicidade é uma vertente que escorre pelos dedos...
Desenho de Meg Sousa; título: quero mais...
V: Ela escorre pelos seus dedos? A: Sim. E acho que pelos seus também!
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V: O professor Valter Rodrigues afirmou certa vez que seria feliz na profissão de psicólogo quando se tornasse desnecessário. O que você pensa disso? A: Que me desculpe o professor Valter, onde quer que ele esteja, mas eu discordo. Nós perdemos um médico da alma. Um médico da alma, acima de qualquer coisa, é um filósofo. E médicos da alma estão muito em falta. A área da Psicologia trata da alma e é muito complicado fazer um curativo na alma. V: O que você pensa sobre a mídia como grande produtora de sujeitos?
V: No jornal “Estrela da manhã1”, você cuida da seção de fitoterápicos. Essa temática faz parte de uma pesquisa na qual você investe muito o seu tempo e a sua dedicação. A que e a quem ela serve? A: O jornal é fantástico pra mim! É uma pesquisa muito ampla. Ela serve para trazer conhecimento ao portador de transtorno mental e também às unidades de saúde e de cuidado. (...) A gente precisa cada vez mais da cultura popular pra pensar nossa saúde. Mas isso precisa ser aliado ao conhecimento científico, porque é válido esmiuçar a cultura popular, aquela do chazinho da erva do fundo do quintal,
isso é super válido, mas é preciso aliar à ciência, porque toda planta tem a sua toxidade... é aquela brincadeira que eu faço: veneno de cobra é natural, mas também te mata! V: O que é saúde mental pra você? A: Você me perguntou no início da conversa o que é vida. Está respondido: saúde mental é vida. Ah! Mas estamos falando da nova saúde mental! V: Você está se referindo às novas políticas de cuidado a saúde mental? A: Sim. Também pela militância por uma sociedade sem manicômios, mas porque ela, a saúde mental, faz bem a todos. É muito melhor tratar as pessoas com pincéis e tinta do que com choque elétrico! V: O que é arte e o que é espírito? A: Os dois estão juntos. É a junção dos dois que faz o poder da criação se realizar. É um poder que está dentro de você e que você coloca na tela, no
livro, no soneto, na escultura. E não é só criação, é o se transportar para a arte... e isso precisa do espírito. V: Estamos passando por um cenário na universidade que cada vez mais fortalece a separação entre teoria e prática, entre aprender um conceito e não torná-lo passível de experimentação. Você teria algum recado pra os estudantes que estão suscetíveis a reproduzir esse modo de educação? A: Que os novos canários belgas, os filhotes de uma nova Psiquiatria, voem bem alto, saiam de suas gaiolas de ouro, cresçam suas asas e abracem os portadores de transtornos mentais. V: A nossa revista se chama Veneta. O que você acha disso? A: Legal! Combina comigo! Até acho que vocês vieram aqui por causa disso... o portador de transtorno mental está sempre de venetinha...! (gargalhadas)
O jornal “Estrela da manhã” é produzido na Oficina de Jornal pelos usuários do Caps II, com coordenação das psicólogas Geralda Alves e Laís Brandão. O periódico está em sua terceira edição e recebe apoio da Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) da UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. 1
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estão me deixando com sono, digo, confuso
A: Com o olho clínico, está deixando a desejar. Com o olho do oba-oba, está tudo legal. É muito negativo o modo como se mostra as comunidades. (...) sobre o consumismo que se aborda, é preciso entender que o consumo quem faz é você. É preciso fazer consumo que favoreça o ecossistema.
“tô te explicando pra te confundir, tô te confundindo pra te explicar...”
Caro Leitor, Desculpo-me se ainda pareço um tanto quanto bêbado, mas acontece que desejava muito escrever-te sobre o que me aconteceu nesta manhã de sexta-feira. Explicome antes de causar qualquer mal entendido, que minha ebriedade não foi provocada por uso excessivo dos etílicos. Fiquei bêbado de gente e movimento. Mas como tal embriaguez poderia ser atingida? – certamente me perguntaria se pudesse. Digo, lembrando Baudelaire, que é preciso embriagar-se sem tréguas, mas de quê? “De vinho, de poesia ou de virtude, a vossa escolha”2. Este é um método bastante efetivo para dizer coisas da vida. Embriagar-se sem cessar de gente e movimento, como nesta manhã de sexta aconteceu na feira livre. Andava sem pretensões por entre as bancas, bebendo café em copo plástico vagabundo para espantar o recorrente sono matinal. Soavam facas cortando peças grandes ou menores de carne vermelha, batendo contra os ossos, rompendo-os; também os sons febris das pessoas, conversando ruidosamente, rindo, cortejando os passantes a encostar-se à banca e comprar: “Bom dia freguês, o feijão está na promoção hoje”, ou ainda, “vai querer levar o que hoje, meu amor? As ameixas e as maçãs estão ótimas”; também aqueles que ofertam aos quatro cantos, aos gritos, os preços de suas mercadorias. Entre estes, alguém passa repetindo uma palavra tal como se fosse uma ladainha “olha o carrêgo, carrêgo, carrêgo, carrêgo, carrêgo... vai querer um carrêgo hoje, meu patrão?”. Deste cotidiano ruidoso falavam as marcas do asfalto3, mas o que diziam as rugas nos rostos das gentes? Acompanhando um fluxo, saí dos corredores e andei por praças que margeiam a feira, bem como por suas ruas adjacentes. Caminhei durante algum tempo, talvez minutos, sem saber ao certo para onde ia. O sol queimava alto sobre as cabeças, passava das dez horas da manhã de sexta-feira. Andei pela rua estreita de mão dupla onde o fluxo é intenso. Segui devagar... contrastando a impaciência dos automóveis, percorrendo lugares onde pousar os olhos. Ao lado, em bodegas e armazéns, homens esfriavam o juízo bebendo cerveja, tecendo conversas animadas, ou simplesmente sozinhos, mordiscando carne quente de brasa; sobre suas mesas sacos plásticos acinzentados tomados por hortaliças. Pequenos restaurantes abertos e vazios aguardavam ansiosamente por seus clientes. Lojinhas de presentes e decoração com seus coloridos plásticos... outras de utensílios domésticos e roupas, um salão de beleza, um pet-shop, outro botequim e pessoas caminhando apressadamente. Deixara a feira, mas a feira insistente transbordava pelas ruas. Na manhã de sexta, a João Gonçalves4 é um imã que ora atrai fluxos, ora os repele. Caminhos que a ela convergem quando ainda de sacolas vazias ou que dispersam quando já de feira feita, podem ser sentidos mesmo em ruas mais distantes. A feira interfere não só no movimento daquela via, mas também no clima do bairro.
A V U L S DA EMBRIAGUEZ O S COMO MÉTODO¹ João José Gomes dos Santos¹
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esquartejarei entonces! (...) ‘recortar’ o buraco e colocar outra "coisa" pelo buraco do muro
Pelo asfalto e calçada alguns seguem de mãos vazias fazendo contas, tendo ao lado os rapazes “do carrêgo” levando a feira em carrinhos de mão por alguns trocados. Outros a carregam em suas próprias mãos distribuída em sacos plásticos amarelos, brancos, azuis, verdes e pendem lentamente para o lado, andando no compasso suportável do peso. Outros arrastam lentamente seus passos guiando o carrinho de compras na velocidade conferida pela idade já avançada. Ao seu modo, os fregueses levam a feira para casa, seja pagando pelos serviços dos rapazes com carro de mão, seja pelejando por si mesmo com o peso. Mas são só estes os modos de fazer feira? Numa dessas praças próximas à João Gonçalves, figuravam em verde escuro três box de banheiros químicos. Lá, bancos ao redor de mesas de cimento serviam de ponto de encontro entre bêbados ou casais de namorados; havia um boteco que parecia dividir espaço com a garagem duma casa situado em uma das quinas desta pequena praça em formato triangular; algumas árvores fazendo sombra. Os banheiros, postos no dia anterior para utilização durante a feira, àquela hora, gastos pelos usos, emanavam um cheiro acre de suas três portas fechadas. Tentei abrir uma delas. Sem sucesso. O cheiro de urina queimava... respiração suspensa. Um homem negro de barba rala e sem camisa levantou de sua mesa onde bebia cachaça e fumava com alguns companheiros e veio em meu socorro. Um encontro insólito se deu ali naquela pequena praça de forma triangular, um rapaz negro de mãos grossas e embriagado, embebedou-me com suas palavras. E assim continuo, bêbado de gente e movimento. Ele mostrou-me suas rugas e insinuou um modo de ouvir as marcas do tempo nos rostos da feira. Histórias que fervilham e fazem vibrar... interpelando passagens. De início, mesmo no breve tempo do encontro, a conversa vagou sobre os banheiros químicos e o fedor quase insuportável. Disse-me que eles viviam emporcalhados, sempre “ocupados... de merda”, que era uma falta de respeito para com os feirantes e os fregueses, e para usá-los só mesmo estando bêbado ou chapado. Foi quando conseguiu abrir uma das portas e fez surgir a quantidade de porcaria misturando-se ao plástico verde das paredes e do chão e um odor extremamente agressivo. Fechou a porta rindo. Ele perguntou se eu trabalhava para a vigilância sanitária, em tom misto de curiosidade e indignação. Meio sem saber o que dizer, ainda de respiração suspensa, respondi que não. Indaguei depois se mesmo assim gente os utilizava. Disse “claro que tem... gente que dorme aí, gente que entra pra fumar um baseado... ou pra tomar cachaça tranquilo”. Então perguntei, já pensando em uma despedida tranquila, qual era seu nome. De modo desconfiado e repentino, olhou-me com seus olhos ébrios e disparou certeiro, “pra quê você quer saber?”. Em tempo não lembro o que disse, ou mesmo se esbocei alguma reação; de respiração suspensa, não mais pelo cheiro da merda, mas como quem se prepara para tomar um “pau de cachaça”... Emendou em balbucios “nome é retrato, minha palavra é de vez”, antes de virar-se e sair. 1
Formado em Psicologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), atualmente mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
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Respirei fundo como após um trago de bebida forte e senti reverberar os efeitos da ebriedade de gente e movimento... e verbos. O tal homem negro de mãos grossas e sem camisa mostrou-me suas rugas e elas contavam que não aceitavam ser um nome próprio, pois nome é retrato, é fixidez, guarda em si a imobilidade das essências. O nome é o imediatismo do instantâneo, não produz nem narra história alguma. Já a palavra quando é contada, é de vez. Rugas se produzem nesse movimento que agencia histórias, e o que é de vez, por ser instável e atento às urgências do dizer, tem a força de estilhaçar com
“O encontro despido de gestos ou palavras complementares desenraiza os dois estrangeiros, implodindo-os em pedaços de nós dissonantes marcado em carne viva. Um enfrentamento atravessado por diálogos ausentes de ego, inconsciente, reflexos do outro, ocupa aquele lugar eterno onde o passado brilha em um outdoor. Sem contornos ou rostos delimitados, os dois participam de heterogêneos tempos e espaços. O outro, ou ele, ou os dois, perturbados e desconhecendo quem são, lembram-se de um poema de Borges que diz, dos espelhos, ‘infinitos os vejo, elementais executores de um antigo pacto, multiplicar o mundo como o ato generativo, insones e fatais’. Espelhos multiplicadores recusando repouso incitam o encontro com a perturbadora face da alteridade. O provocador objeto do poeta argentino fabrica coletivos instáveis, cenas inesperadas para quem o vê (...) O outro ou ele desdobramse em centelhas de inumeráveis histórias ruidosas, despidas de qualquer serenidade”5
será meu olho o buraco no muro? Desenho de Valter A. Rodrigues; sem data; sem título
Anônimo Deambulante, Aracaju, Fevereiro de 2009.
as identidades. “Nesse breve momento, o mapa dos dois perde os contornos. O nós nervoso nega repouso ou estabilidade, redesenhando a sua geografia para além dos limites (...); refaz fronteiras trazendo-os de volta, irreconhecíveis”6. Os banheiros, o cheiro e aquela praça haviam ficado distantes em uma visão embaçada onde se misturavam as formas, os sons e os odores. Ínfimo instante aquele, que se dilatou e ainda dura. Meu algoz, ou quem sabe companheiro neste combate do nós nervoso, havia sumido; transformado em fumaça espalhava-se pelo ar esfumaçando os limites, mesclando as formas e os ditos. Bêbado de suas palavras, a feira se desfez em um espaço de embriaguez, onde os contornos se diluem e são inconclusos, precários e instáveis. As rugas apresentavam-se agenciando narrativas às mercadorias de venda, às relações com fregueses, às amizades, às situações de trabalho. Elas contavam histórias deste espaço ébrio que punham em migalhas as identidades do feirante, freguês, pedinte, ambulantes e “o carrêgo”, assim apartadas. Como um sonho demasiado real. Epifanias daquela manhã de sexta inventaram em mim um outro modo de fazer a feira7. Ela que nega entradas e saídas fixas, destarte se engendra como campo de intensidades no qual a vida se faz em passagens e escorre em busca de agenciamentos onde as palavras sejam de vez. Narrativas contam dos modos singulares de fazer a feira e suas rugas; compõem, pois, este mosaico cotidiano, este enredamento de histórias e práticas. Assim como estou, ainda bêbado de gente e movimento, continuarei indo com passos trôpegos e de vista turva à rua João Gonçalves nas manhãs de sexta, pois nada melhor para curar uma ressaca que outro porre.
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Revista Veneta | Avulsos | Da embriaguez como método 29
tudo que sobra é rabiola... o link é a pipa
Ensaio revisado, modificado e extraído do trabalho monográfico realizado em 2010 como pré-requisito para conclusão do curso de Psicologia na Universidade Federal de Sergipe. O trabalho intitulado Deambulância das Cartas Anônimas consiste em um conjunto de cartas escritas em tempos distintos por um tal Anônimo Deambulante que contam fragmentos de histórias da cidade de Aracaju. Estas cartas foram apenas reunidas e editadas pelo suposto autor do presente texto, que as encontrou à deriva em uma praça qualquer de um bairro qualquer da capital sergipana. 2 BAUDELAIRE, Charles. Paraísos artificiais. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 189. 3 As marcas do asfalto são referência a uma outra carta escrita pelo Anônimo Deambulante, na qual se perguntava sobre os sinais inscritos no chão da rua onde a feira se realiza. Estas marcas, dizia ele, falam da cotidianidade daquela feira, da vida mundana das práticas que rasuram a pele da cidade. 4 Rua Coronel João Gonçalves é onde acontecia toda sexta-feira a feira livre do bairro Castelo Branco em Aracaju. 5 BAPTISTA, Luis Antonio. O veludo, o vidro e o plástico: desigualdade e diversidade na metrópole. Niterói: EdUFF, 2009. p.36 – 37. 6 Ibid., p. 36. 7 Fazer a feira é aqui uma brincadeira entre sentidos possíveis; por um lado pode ser o freguês que faz compras, por outro o feirante que faz seu dinheiro, ou ainda articulações entre modos de existir que produzem a feira, ou melhor, fazem feira em sua cotidianidade. (SANTOS, João J. G. ; RIBEIRO, Elton S. ; LOPES, Kleber J. M. Modos de dizer e a vida se fazendo numa feira livre em Aracaju. In: Anais da VIII Semana de Ciências Sociais, 2010. p.3.)
SOBRE A V U L ENSAIO S O S A CEGUEIRA DE UM REI¹ Leila Domingues Machado2 As pessoas iam chegando e se acotovelavam em busca de uma melhor localização para fitar o rei Anthropóphagos Re Activu e ouvir os relatos de sua última viagem. Dez caravelas haviam sido cuidadosamente preparadas para navegar velozmente pelo ciberespaço. E eis que ele está de volta, totalmente cercado por seus guardas aequales. Ele vai caminhando para o centro de um enorme tablado para iniciar sua fala:
dê seus pulo, Imboré!
Não há nada de diferente nas terras lunares! Todos são amigos e cordiais. Uma comoção se espalha pelo público, que permanece entre incrédulo e perplexo diante do que fora anunciado. Frente à desarmonia que se insinuava, o imperador irritado grita: Não há multiplicidade sob o sol! A multidão hesita. Uns parecem aceitar o anúncio como verdadeiro e ensaiam ir embora submissos. Outros ficam indignados e bravejam palavras incompreensíveis. Outros observam incrédulos. Nesse momento, uma voz irrompe dizendo: Olhem a roupa do rei! Os olhares se dirigem em uníssono para desnudar aquela
enorme capa e percebem que ela é feita de pedaços descombinados, de farrapos justapostos. Recortes desarmônicos de tecidos híbridos, transgênicos, matizados, multicoloridos, monocromáticos, inesperado a cada canto. Saem dela juras de amor eterno em imagens digitais de holly a bollywood, pulmões descartáveis, chips, Bluetooth, Botox, GPS, smartphones, células tronco, câmeras espalhadas por todos os lados, enfim, uma vasta gama de materiais que pareciam novos e se tornavam obsoletos num piscar de olhos. A multidão atônita intercala silêncio e riso, tomada pelo imprevisto. O rei tenta se recompor, mas uma outra voz anuncia: Você se veste como os roteiros das suas viagens! O nervosismo leva o imperador a lançar enormes golfadas de um caldo gosmento, com aparência de cola, conhecido como identitate. A situação insuportável o faz retirar de si aquele manto que o teria levado ao tão incômodo vexame. A plateia acompanha atenta seus movimentos e vê aparecer sob o manto que cai, um outro tão miscigenado quanto o primeiro. Estrondosas gargalhadas tomam conta da cena. O rei, por meio de gestos desajeitados, tenta se livrar da nova veste. Em movimentos incessantes. Ele retira mantos e deles emergem tantas outras misturas. Por fim, já não se sabe a diferença entre sua pele, seus mantos, suas vísceras, seus cheiros exóticos e mistos, seus tons de tapeçaria-tatuagem variados.
Artigo revisto e ampliado. Publicação original: BARROS, Elizabeth; SILVA, Alacir (Orgs.). Psicopedagogia: alguns hibridismos possíveis. Vitória: Saberes Instituto de Ensino, 2000. p. 249-252. 2 Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). 1
30 Revista Veneta | Avulsos | Ensaio sobre a cegueira de um rei
Ecléticos! Globalizados! Quando o banquete termina, os que participaram dele já não são mais os mesmos, mas também não são outros. O processo de digestão foi renovando suas forças. O brilho dos olhos se intensifica. Os movimentos nervosos dão lugar a certo compasso zen. E eles se foram, caminhando descalços e sujos, em intensa/densa promiscuidade com a vida. BIBLIOGRAFIA CAMPOS, Haroldo. Da razão antropofágica: dialógo e diferenças na cultura brasileira. In: Biblioteca Mario de Andrade. V44, n1/4, jan-dez 1983, São Paulo. ROLNIK, Suely. Subjetividade antropofágica. In: BARROS, M. Elizabeth (org.); LAVRADOR, M. Cristina Campello (org.); MACHADO, Leila Domingues (org.). Texturas da Psicologia: Subjetividade e política no contemporâneo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Cia das Letras, 1996. SERRES, Michel. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. Revista Veneta | Avulsos | Ensaio sobre a cegueira de um rei 31
artes do cuidado, práticas de desvio... artes transversais, práticas do cuidado!
Desenho de Valter A. Rodrigues; sem data; sem título.
Um silêncio toma conta de tudo. A plateia vê diante de si que o rei, o arrogante imperador, é um homem-plural. Contaminado por suas viagens e completamente cego para todos os lugares por onde seus olhos vagaram. Seu paladar é insosso e seu nariz está entupido. O rei percebe que suas vestes foram decisiva e insuportavelmente contaminadas pelo mundo. Ele olha seu corpo, que ao longo de tantos anos foi detalhada e exaustivamente esculpido por barras, próteses e suplementos, e compreende que ele não conseguira vedar seus poros. Diante do rei estupefato, a multidão se move. Uns fecham os olhos com força, tentando apagar da memória o que ocorrera. Outros correm aflitos anunciando o fim do reino. Muitos permanecem indiferentes. Outros consultam seus enormes alfarrábios a procura de Akinator ou de um verbete na Wikipedia que traduzisse o que estava acontecendo. Até que alguns se dirigem para junto do rei, tocam suas roupas experimentando suas texturas, seus aromas. Terminam por levá-las à boca para degustar seus sabores. Eles vão comendo indiscriminadamente os farrapos. Mas, cada parte tem um gosto e produz sensações distintas. Então, eles vão experimentando escolher os sabores que os deixam mais potentes. Um grupo, que acompanha a cena de longe, começa a gritar:
essaS noite nunca existiu A V U L S O querino
que nada, kafka só escrevia aquela porra porque brigou com o pai
aqueles olhos atravessavam a fumaça do cigarro de mão em mão ali. Eram olhos claros demais para a noite, e estavam perdidos. ou não. perscrutavam poemas na pele do que sucedia, trafegavam por entre os lençóis da memória para entender a tudo. eram obscenos. sorriam para você diretamente. poderia dizer que Dioniso dançava naquele meio, visto que não passava de um ritual estar ali, papel e caneta ao alcance, e a noite para o que viesse. poemas eram mapa, nós nesse barco ébrio atravessando o instante. sendo atravessados. És calmo, corrente e ponte. Eu atravesso, tu me atravessas. (poema III em ‘O homem e o rio’ – Flauta e delírio, Ed. UESB Charles Ribeiro, que depois começa a assinar ‘querino’)
I Uma outra realidade é possível, foi o que se tornou perceptível até por demais a partir daqueles encontros mais ou menos entre 2010 e 2011. Estávamos em vitória da conquista – BA, e começamos a freqüentar a praça da pedra, com leituras e conversas sobre o que quer que seja. Essa praça é um resumo da cidade, ou é possível ter uma vista geral: num mesmo lugar tinha uma igreja, um hospital, uma funerária, um bar, um putêro, quiosques, loucos passando etc etc. Era coisa de minerador estar ali, abrindo essa brecha. Mas talvez não tivéssemos plena 32 Revista Veneta | Avulsos | Essa noite nunca existiu
consciência disso: estávamos ali porque nos foi natural: queríamos um canto para continuar com certas leituras eu tinha traduzido o ensaio ‘Projective verse’, de Charles Olson, e começava a ler Michael McClure, mas juntos começamos por ler a Rimbaud e depois outros malditos e esquecidos: houve um pouco de Blake, um pouco de Artaud, algo de Breton e surrealistas, Kerouac mais que outros beats (Ferlinghetti e só depois Ginsberg, daí o que encontrávamos); Herberto Helder; Cláudio Willer e Roberto Piva; John Fante; e cada nome levava a outro e então acabamos por ler muito mais do que esses citados, mas em escala menor. Dentre nós, alguns tinham bastante interesse por cinema, outros por fotografia, outros por pintura. Tudo passava por ali, de maneira que é quase impossível listar o que atravessava aquela praça e conversas antes e depois, visto que cada qual tinha suas referências muito bem definidas. O que líamos e compartilhávamos ali era uma espécie de lugar comum a todos, e quase que aleatório, uma questão de disponibilidade. A princípio, estávamos na praça Edgard Neto, Giovane Brito e eu, querino. Iara Barberena já andava por ali. Micael também. Luis Mathias voltava pra cidade. Caio Resende, que conheci através de uma amiga em comum, achava ser o único interessado em poesia por essas bandas. Convidei a Pablo Luz, a quem conheci poucos anos antes, através de vários acasos (quando começou a tocar numa banda, Voyant o nome, para a qual escrevi umas letras e músicas; quando já ouvíamos falar a respeito
pois a inocência só é bela quando não há nada para além do momento, quando os corpos povoados de Presença reinventam a própria pele na orgia; outra maneira de sentir, uma outra maneira do sentir: (na praça da pedra, a respeito do candeeirocafe – tertúlia, candeeirocafe editorial: http://t.co/blU8FrOA caio resende, frank morais, querino)
Ao comentar sobre os processos criativos que envolvem, de alguma maneira, as pessoas que compõem o que hoje se torna conhecido como candeeirocafe (e esse é apenas
um termo genérico, visto que nunca houve a intenção de montar um coletivo ou qualquer coisa relacionada, sendo o nome apenas por conta de um blog em que compartilhamos esses nossos escritos de luz e grafite), talvez seja necessário comentar algo sobre ‘escrita automática’ ou sobre ‘composition by field’ ou sobre ‘fluxo de energia’ ou, quem sabe, sobre a coisa de não se comprometer com a chatice de certos padrões que tanto a academia quanto a crítica impõe ao ato criativo, insistindo sempre numa bíblia de cotovelo. Talvez seja necessário, talvez e apenas por uma questão de referência, visto que a coisa tornou-se bastante natural, sem pensar antes nessas questões, senão apenas em querer chegar; mas onde? Lembro a primeira vez em que o fato se deu, de escrevermos juntos. Estávamos alguns na casa de Platini, vendo fotos de uma viagem recente ao chapadão, até que a noite se estende, e algumas pessoas estavam indo embora, e ficávamos uns poucos por ali, ouvindo música ou fumando um cigarro, ou porque não havia muito mais o que fazer. Era já costume essa liberdade naquela casa. Era ponto de encontro, de passagem. Tinha uma mesa de sinuca no meio da sala!, e sempre um conhaque ou alguém pra fazer um café ou, enfim. Havia ainda cama ou colchão por demais. Sem problemas ficar mais um pouco. Sei que tocava um Bob Dylan, e em meu canto eu rascunhava algo. Pablo Luz também escrevia algo. Ian C.lima caminhava e fazia uns movimentos de satisfação enquanto escrevia. O dono da casa talvez estivesse beiçando em algum lugar. Havia mais pessoas por ali, mas à meia-luz quem tem certeza. Sussurros por todo lado. Sobre quantos cafés desperdiçamos foi escrito dessa maneira, quando alguém teve curiosidade em saber o que o outro tanto escrevia e, ao fim, eram aqueles rascunhos
Revista Veneta | Avulsos | Essa noite nunca existiu 33
Antes de Cristo, só havia práticas transversais. Depois dele, só as cruzadas.
um do outro através de pessoas próximas). Ian C.lima era colega de graduação. Campo Santo Leituga já era bastante conhecido na cidade, sendo expulso diversas vezes de tantos lugares por declamar uns poemas. Caroline Coelho e Babi estavam sempre de passagem, e outros tantos sempre presentes, claro (havia sempre o mais variado tipo de gente por perto, ora observando ora participando). Tanto Morgana quanto Giselli Moreira e Linauro Neto aparecem mais em idas à Lagoa das Bateias e durante as leituras que fazíamos em um teatro de arena próximo à praça, quando descobrimos que todos, alguns mais outros menos, ou pelo menos esses citados, escreviam ou fotografavam já com alguma seriedade no trato. Frank Morais, também colega de graduação, freqüentava com mais afinco a casa de Platini. Diego Oliveira vai se achegando nesse período entre lagoa e teatro, e sua música só vai crescendo em influência sobre tudo.
as coisas que descambaram num castelinho de areia na beira da praia
que fazíamos uma mesma história. Beirava o arrebol quando deixamos sobre a mesa de sinuca, também, os manuscritos de exercício #1 e (chegando a ser dia). Três poemas completamente diferentes entre si, tanto em argumento quanto na estrutura, escritos por pessoas de personalidade igualmente distintas, e sem mais nem menos, no tempo de umas poucas horas. Sabíamos que algo tinha acontecido, ficou aquela sensação de traquinagem ou descoberta. Amanhecemos num restaurante qualquer por perto tentando entender a situação. Em alguns dias, faríamos uma leitura num teatro de arena próximo à praça da pedra. n’Arena, eis como nomeávamos entre nós essas leituras que começamos a fazer com certa frequência. Não seria a primeira. Poucos meses antes, sim, fizemos uns convites, foram algumas pessoas, mas nem todos ficaram até o final: lembro ter visto a maioria sair enquanto alguém lia uns anúncios de puta que Giovanne Brito recolhera numa viagem recente a São Paulo. Uns dois dias antes, aquilo tinha sido declamado em frente a uma igreja, enquanto o pastor lá dentro gritava Aleluia. Cheguei depois do ocorrido, mas é impossível ainda hoje passar em frente a uma igreja e não imaginar aquelas vozes de Edgard Neto ou Campo Santo Leituga ou não sei quem mais estava presente declamando: “Tammy japa mestiça”, o pastor respondendo: “Aleluia”, então segue: “23ª rainha do anal”, “Aleluia, pai!”, “especialidade: anal giratório”, “glória a deus!!!”, “e ainda beija na boca”, “amém, igreja?”. Sim, ao final, ficaram poucos nessa leitura, e fomos ao Viela depois, um bar bastante freqüentado ainda. La notte (http://goo.gl/V0WFc) foi escrito na manhã seguinte, e é escrita automática ou, melhor dizendo, jorro. Encontrei Ian C.lima na lagoa semanas
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depois, tinha escrito Leve (http://goo.gl/RzaN4), também no jorro; e Caio Resende aparece mais ou menos durante o mesmo período com Dora Moon (http://goo. gl/P7XzE), cujo primeiro impulso foi através de escrita automática até que, enfim, um jorro. Recebo uma carta de Ian C.lima pouco depois dessa primeira leitura após o ocorrido na casa de Platini. A carta é enviada também a Pablo Luz e trata sobre o que pode ser entendido como uma teoria das presenças. Segue trecho: (...) dentro das impressões que a noite de hoje me deixou, te digo que eu posso ter descoberto algo que talvez seja o verdadeiro prazer da minha vida: (...) percebi que as presenças trazem com elas uma carga intensa e que algumas delas se tornam especiais por me transmitirem algo que não consigo decifrar. não pense apenas em prazer: é um alento, um ânimo à vida, um alimento à vida. hoje pude perceber o quão isso pode ser voluptuoso; forte mesmo, ativo. (...) esse estado é o em que me acho mais conectado ao sentido da vida. (...) a valorização disso é a manutenção desse estado que provocará em muitos a sensação de quietude e internalização. (...) agora a escrita não é senão um meio. (...) (a carta na íntegra: http://goo.gl/7myOh)
“agora a escrita não é senão um meio”: não tem como ser mais claro. A brincadeira, se é que alguma vez a coisa foi encarada dessa maneira, tornava-se perigosa demais, séria o bastante para voltarmos. Pelo menos naquele momento. Blanchot, em ‘a parte do fogo’, cita Breton: "Mais uma vez, tudo o que sabemos é que somos dotados, até certo grau, da palavra e que, por ela, algo de grande e obscuro tende a se expressar imperiosamente através de nós... É uma ordem que recebemos definitivamente e que nunca tivemos tempo de discutir... Escrever, quero dizer escrever dificilmente, e não para seduzir, e não no sentido comum, para viver, e sim pelo menos para se bastar moralmente, e por não poder ficar surdo a um apelo singular e infatigável, escrever assim não é brincar nem enganar, que eu saiba." (Reflexões sobre Surrealismo, em A Parte do fogo – Ed. Rocco)
Desenho de Valter A. Rodrigues; sem data; sem título.
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Penso ainda em um ensaio em que Cortázar diz: Escrevo por incapacidade, por descolocação; e como escrevo num interstício, estou sempre propondo que outros procurem os seus e por eles olhem o jardim onde as árvores têm frutos que são, naturalmente, pedras preciosas. (do sentimento de não estar totalmente, em A volta ao dia em 80 mundos – Ed. Civilização Brasileira)
fiquei "incandiado"... que bombardeio é esse?
ou quando, por repetidas vezes, ele afirma que literatura (as artes, em geral) é um jogo bastante perigoso, o mais sério de todos. Bolaño também diz: ¿Entonces qué es una escritura de calidad? Pues lo que siempre ha sido: saber meter la cabeza en lo oscuro, saber saltar al vacío, saber que la literatura básicamente es un oficio peligroso. Correr por el borde del precipicio: a un lado el abismo sin fondo y al otro lado las caras que uno quiere, las sonrientes caras que uno quiere, y los libros, y los amigos, y la comida. Y aceptar esa evidencia aunque a veces nos pese más que la losa que cubre los restos de todos los escritores muertos. La literatura, como diría una folclórica andaluza, es un peligro. (disponível na internet, em: http://goo.gl/Vs8vb)
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Esse salto no vazio não é sem conseqüências, é coisa de corpo. Houve dissensões com o tempo. Tudo bem, nunca se pretendeu construir um programa ou manifesto a partir dessas movimentações. A tal carta ainda diz: estou pensando em como vai ser daqui pra frente, embora não queira pensar, porque apenas é. o que preciso de fora pra dentro é esse ser, e quem fizer parte disso não precisa estar ciente ou talvez seja necessário que não esteja. De qualquer maneira, é possível tirar uma poética disso, esse ser: apenas ser. “As coisas não se justificam, apenas são”, é o que diz outro poema. Agnosia? Não sei por que a palavra salta agora, não sei o que isso diz. Observo, tateio: sinto, conheço; e ainda não sei o que isso diz, o lugar por onde caminho nesse instante, o que está ao alcance do jeito que for, que salta junto à palavra no momento da escrita, ou não importa que material seja, mas que se coloca ali, sabe se colocar, por necessidade ou – não, a palavra é bem essa: necessidade. É conhecer através de não-conhecer. Michael McClure chega a afirmar que poesia é o produto da carne tocando a experiência. A escrita não é senão um meio. Vai ver, é por aí que a coisa se dá, e talvez esses escritos de luz e grafite do pessoal que atravessa a coisa do candeeirocafe sejam entendidos, em toda a sua plenitude, se considerado essa conversa. E não há qualquer transcendência em tudo isso.
A V U L S O SPássaro turvo Caio Resende
(cavalos de sombra amputados no tronco, metamorfoses em mulas-de-fogo e medo infantil) Povoado de escassos acenos, o cérebro urgindo nos anfiteatros do tempo as ilhas de fogo dos amores perdidos, com o teu caminho num lance de dados, o céu palafitado de nuvens em ira, todos os teus desejos são bonecos vodu espetados de estranhas carícias; intermezzo de solidão compulsiva e caralhos turgescentes reduzidos a pó Sobre o pavimento enlouquecido, segues com teus passos de coragem e acendes o teu Cigarro num gesto impreciso Segues com teus passos de coragem num gesto impreciso É madrugada! Tua fome de sentido fora enterrada junto a um cadáver de filho
As adolescentes não rogam mais pela dureza em teu nome, os pederastas fugiram dos banheiros públicos, a coriza de tuas narinas noturnas vence o roxo limite de teu sonho E andas com teus passos trêmulos, num descompasso de ternura E tuas mãos tateantes mastigam folhas de absinto Homem bêbado, tua chaga é a luz de algum meu verso, teus anseios eu conheço bem ou quase-nada, de ter cavado na madrugada, tanta vez, um corpo frio e sem nome Quantos conhaques apertados contra o peito, quantos baques esfolaram-te os joelhos, engendrando dores recebidas com sorriso Há vestígio de cabeças esmagadas habitando sob a dispéptica paisagem dos bueiros, engravatados que se molestam com canetas enquanto noivas desafiam a gravidade, há doentes mastigados em espera, genitálias jorrando o pus dos moralistas, papagaios enterrados nos quintais da obediência enquanto a vida persiste em coroar a natureza
Revista Veneta | Avulsos | Pássaro turvo 37
Agora cansei. Fecha a revista!
Uma face de clown te mira do escuro – sem sorrir-te, porém E caminha com teus passos E uma paisagem de lodo se desprende da brasa dum poste
Mas tu, pássaro turvo, homem bêbado, com teu rim transplantado por engano, com tuas tíbias e costelas fraturadas; tu, com teus passos de vexame, pouco sabes disso tudo que há no mundo, belo que tu és – com teu fígado poente e cigarras ruidosas nas pálpebras do sono, por onde agitas a caveira, desvirginando a praça pública com teu mijo soberano: nenhuma inocência te pôs menor ou maior que o instante! Assim como o circuito das pastagens luminosas ocultado por estúpidos acenos esculpidos nas usinas, e como epígrafes do ócio suicida que se atira das manchas de luz dando vida a tudo que existe, imbuída nas horas secretas – e pelos carrosséis delirantes de neblina – a tua imagem alucina a mandrágora do tédio
Foto: Luis Mathias.
Quantos conhaques apertados contra o peito Quantas vociferações entregues ao nada
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Nessa miríade de olhos ausentes, sob o sumo sombrio de tuas feridas, o sal corrosivo que emana dos ventos encontra tua hora mais pura.
ARREMATES
Erika Grisi
Existimos numa Veneta tecida por conversas. As vozes e os sotaques que a compõem misturam-se num encontro desenhado pelo acaso e pelo imaginável, ambos com a mesma vivacidade. Os sotaques que a atravessam, ganham corpo. Sopros que nos chegam de vários cantos. São sotaques, vozes e falas que se atrelam e constituem um modo singular de dizer, de expressar, de sentir a Veneta. No corpo mesmo. Não começamos por uma voz própria. Não temos um grito que seja tão somente nosso, uma vez que aprendemos a falar ao som de tantos outros. Os ruídos de diversas conversas reverberam em nós, de tal modo que torna-se impossível distinguir o que é deste ou daquele, o que não apaga a diferença e o encanto da escuta dessas vozes em nós. São muitos falantes nas linhas que nos escrevem, e descobrir a concretude da nossa Veneta nos permite notar o quanto conti-
nuamos invadidos pelo desaparecimento de um sotaque caipira que não silencia. Somos provocados por esse som, assim como pelos ruídos outros que ecoam à nossa volta e que nos movem, nos impelem a criar. A voz da Veneta é um arranjo de nossos sotaques. Doce e ácida, suave e afiada, a voz tem essa musicalidade, essa afetividade implacável do sotaque, que nos denuncia estrangeiros e nativos, estranhos e íntimos. Seja numa tagarelice sem tamanho, ou no timbre grave que nos toma sem pedir licença; ou ainda naquela voz de locutor tímido, que costura com sua astúcia nossas vozes, fazendo ressoar um burburinho todo nosso. Falares que se atrelam à Veneta passeando por um mundo de sotaques outros – paulista, sergipano, argentino, capixaba, gaúcho, carioca, francês... – que sopram em nós um pouco do ar que os constitui, conspirando-nos.
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