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URBANO ORNAMENTO INVENTÁRIO DE GRADES ORNAMENTAIS EM BELO HORIZONTE

Fernanda Goulart


LIVRO FINANCIADO COLETIVAMENTE | www.catarse.me/urbanoOrnamento


Meu agradecimento caloroso a todos que acreditaram comigo que o amor por esses ornamentos urbanos não poderia ficar guardado apenas nos corações, em especial a: Alexandre Rezende (pelas fotografias, reluzentes, e a presença, amorosa, nos seis anos da pesquisa); Beatriz Marinho, Clarice Lacerda, Esther Azevedo, Lorena Galery, Luisa Ribeiro, Vanessa Magalhães (pela enorme cumplicidade, razão de chegarmos aqui); Luis Alberto Brandão (pelo exemplo, fértil, e o prefácio, impecável); Maurício Goulart (pela revisão, criteriosa, e a generosidade, contagiante); Stéphane Huchet (por confiar, nunca cegamente, em minhas obsessões); e ainda a Christus Nóbrega, Daniela Goulart, Danilo Matoso, Eliane Guimarães, Fernanda Moraes, Flávio Goulart, Gabriela Abdala, Giovana Miranda, Leandro Campos, Luciana Guizan, Ludmila Brandão, Luís Caixote, Luisa Ganzarolli, Maria Gabriela Ribeiro, Maria Rosa Cervera, Paulo Baptista, Renata Marquez, Rodrigo Bastos, Vera Chacham e Roberto Rezende. Obrigada também a: Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Santander e FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais), pela concessão das bolsas de doutorado-sanduíche e iniciação científica; NPGAU (Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo/UFMG), Escola de Belas Artes/UFMG, SESC Palladium e Universidad de Alcalá de Henares/España, pelos suportes acadêmico e institucional – todos apoios indispensáveis à concretização deste trabalho. Agradeço ainda, e profundamente, aos moradores de Belo Horizonte que despenderam seu tempo para compartilhar comigo algumas de suas memórias e afetos sobre ornamentos, grades e outras belezas. Gratidão enorme, por fim, aos apoiadores, que compraram o livro antecipadamente e, com isso, permitiram transportar, do sonho à realidade, o inventário. Nenhum simples “obrigado” será suficiente. Espero que o livro o seja.


DESENHOS Lorena Galery Esther Azevedo PREFÁCIO Luis Alberto Brandão FOTOGRAFIAS

Alexandre Rezende Clarice Lacerda Fernanda Goulart Lorena Galery Vanessa Magalhães Wilson Baptista

PROJETO GRÁFICO

Fernanda Goulart DIAGRAMAÇÃO

Clarice Lacerda Lorena Galery DVD

Lorena Galery Luís Siqueira Dias REVISÃO

Mauricio Goulart

PESQUISA DOCUMENTAL

Beatriz Marinho Fernanda Goulart Vanessa Magalhães

Luisa Ribeiro


Inventário de grades ornamentais em Belo Horizonte

Grades entre lugares comuns e compartilhados > p. 9 A constituição do inventário: coleta e vetorização > p. 19 Paisagens em uma gramática belo-horizontina, possível e universal > p. 23 paisagem 1: Imantar, arredar, jogar, montar, editar, multiplicar > p. 32 paisagem 2: O horizonte dá a ideia da paisagem > p. 84 paisagem 3: álbum de autossuficiências > p. 144

paisagem 4: Floresta de portõezinhos, a assombrar > p. 186

paisagem 5: Paisagem na parede, lojinha de molduras > p. 212

paisagens 6: As que gostaríamos de ver emolduradas pelas nossas janelas > p. 228

e Outras belezas

Linhas vivas | Luis Alberto Brandão > p. 266 Colcha imaginária: reterritorializar, escutar, costurar > p. 256


Ele entrou no meu sonho, sem licença. Chegou pequenininho como se fosse filho da insignificância. Seu andar perdido, pisando dúvidas, parecia transportar o passado em suas costas. Não se desfaz da carga do passado. Ele sabia que o futuro é só matéria de fantasia. No sonho, trancado em meu quarto, floresceu uma floresta com sombra, perfume e tesouro. Ele pisava sobre as folhas e uma música metálica fatiava o silêncio, brotando sob seus pés. Bartolomeu Campos de Queirós, Elefante.

Para Ló, esta cidade de papel.


grades entre lugares comuns e compartilhados

Há uma presença discreta e feminina na cidade, impressa em luz: rendas de sombra e luz nas calçadas, nas paredes e no assoalho, por dentro. Há também rendas impressas nos azulejos decorados, que estão nas fachadas, e que mais parecem de banheiro ou cozinha. Em algumas dessas casas vivem velhos moradores, com muita vontade de contar a história. De uma cidade que não é tão velha, mas está cada vez mais nova e geométrica, pois não tem tido tempo de envelhecer horizontalmente. Não foi apenas em um outro tempo, mas para um outro tempo, que se conceberam aquelas superfícies rendadas. Um tempo em que, segundo se acreditava, valia a pena rememorar e guardar coisas, mesmo que ocupassem o peso e o volume das águas-furtadas. Hoje é apressado o modo como pensamos em dispor os materiais, os pisos imitando cascalhos e granitos, a lógica dos azulejos “10x10cm”, instalados em grupos de dezesseis. São outros os ornamentos e outras as geometrias, apontando para novas lógicas da arquitetura como fruto da “sede engenheira”, da especulação imobiliária e do nivelamento das opções e dos gostos. _ Poderia ainda hoje o ornamento ser o catalisador de outros olhares e outras percepções na cidade? Objetos de presença ubíqua e discreta, as grades ornamentais têm permanecido, em alguma medida. Estão instaladas em casas que, na maioria, não são tombadas, e que têm sido destruídas em consequência do acelerado processo de verticalização da cidade. Algumas das grades que compõem este inventário pertenceram, num 9


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primeiro momento, a uma coleção de frustrações, a partir da vivência de uma perda que sempre me feria, quando descobria que “aquela” casa, onde estava instalada “aquela” grade, havia sido demolida. O destino desses objetos tem sido os ferrosvelhos, que as têm vendido para a confecção de peças decorativas, instaladas geralmente dentro das casas. Com o boom imobiliário atual, a transformação da capital mineira se fez perceber com nitidez surpreendente nos seis anos desta investigação, e seguramente a cidade já não será mais a mesma, a cada vez que o leitor folhear este livro. Nunca é. Coletar os modelos de grades foi, aliás, uma espécie de corrida contra o tempo: cada casa que ia para o chão sem ter sido registrada era uma batalhazinha perdida. O inventário apresentado aqui é, assim, uma possibilidade de garantir a memória de um bem arquitetônico pelo qual muitos guardam afeto, mas que é, em certo sentido, marginal aos interesses de preservação. _ Mas as casas de ontem estavam ali, ensinando-nos sobre o seu tempo passado, desenhando o nosso espaço presente. Há uma sobreposição de tempos, os mesmos modelos de grades em edifícios de idades distintas. É como se a história dessas grades pudesse ser, em certa medida, separada da história da Arquitetura, como uma segunda camada, uma espécie e pele que tem sua veia atemporal, em função da facilidade de se realizar uma intervenção dessa natureza, a posteriori. Muitas casas receberam-nas anos depois de sua construção, sem se preocupar com os estilos em voga, por questões de segurança – das crianças e contra os ladrões – e diversas outras foram construídas bem depois da própria grade, e aproveitam-na, após resgatá-la em ferros-velhos. Grades que, de tão fixas, tornar-se-ão tão móveis, nesta nova morada, de papel e linhas. Sobreposição não só de tempos, mas de modos de viver e habitar. Outras belezas.


As grades são bens da arquitetura, compartilham de sua escala, cercando-a, envolvendo-a, delimitando-a. Protegem o homem, graciosamente. Cercam e conformam o espaço, acrescentando uma camada transparente à história do ornamento: envolvem deixando ver, criando uma camada gráfica, que vibra em linhas de ferro cuja expressividade vai além do que suas aparentes rijeza e severidade material permitiriam. É inevitável pensar na força gráfica das linhas que conformam as grades ornamentais. Linhas que preenchem as cidades de ontem e de hoje, conferindo graça discreta aos caminhos, em tom distinto dos atuais muros de vidro (transparências que hoje estão na moda, criando novas e geladas ilusões de passagem). Linha que é, sobretudo, metáfora da fronteira, mas pontilhada, porosa, entre a Arte e a Arquitetura. Linha de costura, a conformar um patchwork urbano e multitemporal. Linha voluptuosa, que gera movimento e responde pelo impulso ornamental, erótico e de proliferação. Linha de projeto, a conformar uma arquitetura ilustrada, apontando para a importância histórica do desenho para esse saber. Linhas que são escritas a se compartilhar. A linha da grade ornamentada se conforma num espaço que está “entre”: entre a casa e a rua, entre a segurança e a beleza, entre a indústria e o artesanato. Linha de ferro que é pedra de toque do progresso; grade ornamental que é ferro ou aço1 domesticados pelas mãos; matéria que se transforma ou se rarefaz, novidade nenhuma em tempos de alumínio e plástico; produto que ganha outros circuitos de existência – para o lado de dentro das casas, escondidas pelos muros –, outras configurações, envolvidas por novas versões de arames farpados encaracolados galvanizados, de enrolamento desordenado, impudico, zangado, inexoravelmente indiferentes aos arranjos dos portões.

1. O aço é nada mais que o ferro dissolvido em carbono – que lhe confere mais resistência – composição presente na maior parte das grades de ferro existentes no mundo, mas que somente no final do século XVIII firma-se como fórmula e tecnologia cientificamente dominada, para ser produzida em grande escala. Na literatura sobre o tema, é mais usual referirse ao ferro do que ao aço.

_ Ornamento, grades, patrimônio e belezas que há muito habitam lugares marginais. 11


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O século que assistiu Belo Horizonte nascer naturalmente viu as grades se multiplicarem na paisagem urbana. Engatinhando e respirando ainda ares de província, em suas primeiras décadas de vida, a capital mineira só foi acompanhar um pouco mais tarde esse processo, e, pouco a pouco, foram surgindo estabecimentos e profissionais para responder à crescente demanda pela fabricação e montagem desses bens integrados. Publicados nas primeiras décadas de vida da cidade, almanaques antigos trazem propagandas de algumas casas que comercializavam, naquela época, equipamentos urbanos em ferro forjado e fundido – como a Fundição Horizontina, a Mechanica de Minas, a Serralheria e Mechanica Bello Horizonte e a Siderurgia Magnavacca. Voltemos à primeira Belo Horizonte para reunir algumas pistas sobre as suas grades mais antigas. Poderíamos começar essa história pelas inúmeras metalurgias artesanais existentes em Minas e no Curral d’El Rey no século XIX, na ocasião da construção da nova capital, e que já marcavam a transição da economia aurífera para a siderúrgica. No cenário mundial, as tecnologias de extração, fundição e transformação do ferro em aço já haviam alcançado maturidade em seu desenvolvimento tecnológico – não à toa os mais nobres exemplares de grades integradas à arquitetura oficial da Cidade de Minas não foram produzidos aqui. Ilustres exemplares pré-moldados que se encontram nas portadas e escadarias das antigas secretarias da Praça da Liberdade vieram da oficina belga Forges & Aciéries Bruges. Outras obras monumentais em ferro ornamental, que misturam forja e fundição, destacam-se: os quiosques da Praça da Liberdade e do Parque Municipal, a monumental


porta da Unidade de Atendimento Integrado (UAI) da Praça 7, a cúpula e o portal do antigo casarão de Afonso Pena Júnior, a estrutura interna da Estação Ferroviária. Com menos ostentação que os exemplos citados, os edifícios domésticos também estamparam muito ferro ornamentado em seu exterior: grades que participaram de novas configurações espaciais à moda eclética francesa. Ouro Preto substitui seus guarda-corpos de madeira por ferro fundido e as casas-tipo belo-horizontinas, não muito diferentes de tantas contemporâneas suas espalhadas pelo Brasil, foram projetadas com grades e gradis, a cercar jardins e varandas que então faziam parte da fisionomia urbana. São poucos e esparsos os documentos disponíveis para decifrar o que seria uma possível história das grades ornamentais de Belo Horizonte. Os arquivos públicos guardam diversos desenhos de fachadas arquitetônicas, preciosidades em papeltecido que revelam a presença dessas estruturas desde a fase de projeto. Dispersas nos dossiês de tombamento e nos “registros documentais” da Prefeitura2, há fotos de antigos moradores posando em frente aos portõezinhos, testemunhos mais afetivos que históricos de uma arquitetura e uma cidade em desaparição, que nos fazem imaginar quantas outras, desaparecidas, já não podemos acessar. Antigos cartões postais da cidade mostram rendilhados em ferro, quase invisíveis pelo desgaste da imagem, e revelam casas, igrejas e janelas ainda sem grades, nos primeiros anos de vida de Belo Horizonte.

2. Os “registros documentais” são dossiês elaborados a partir de um conjunto de informações sobre os edifícios situados em “Áreas de Interesse Cultural” (AIC) da cidade. Eles contêm plantas originais e atualizadas, fotografias do interior e do exterior das casas, contextualização histórico-arquitetônica do imóvel, depoimentos de moradores, entre outros dados. São instrumentos de preservação de edificações que raramente são objeto de tombamento, embora os “registros” também possam servir como bases à inscrição no tombo.

_ São grades baixinhas, a nos lembrar antigas (e hoje raras) visibilidades. O inventário fotográfico realizado pelo Urbano Ornamento, por sua vez, mostra as grades que permanecem e tantas outras que não comparecem nas primeiras edificações da cidade. Dos portõezinhos das casas-tipo às grandes e pomposas portadas 13


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dos edifícios institucionais, o típico das escolas estilísticas nos possibilita construir uma brevíssima cronologia, esperada e possível, em meio à paleta eclética, universalizante e atemporal da arquitetura não oficial. Para desenhar essa linha do tempo, poderíamos começar pela obediência das grades à tipologia fachadista neoclássica, com seus geometrismos sóbrios misturados a guirlandas e brasões, típicos da arquitetura pública, como no Conservatório de Música, nos palacetes da Praça da Liberdade ou no Automóvel Clube. Nessa paleta historicista, não há como escapar da referência à iconografia neogótica, nas grades-muros de igrejas como a Capela do Rosário e a Matriz de São José, mas também em outros imóveis institucionais, como as cercas do Parque Municipal ou a porta do antigo Conselho Deliberativo, atual Centro de Referência da Moda. Rocalhas interpretadas em linhas de ferro, de apelo barroco-rococó, envoltas em complexas lacerías das grandes portas e sacadas de mansões das avenidas Olegário Maciel, João Pinheiro e Assis Chateaubriand, dão um tom menos abrasileirado que sofisticado e aristocrático, desejado para esse tipo de arquitetura. Em alguns desses casarões é possível encontrar curvas vegetais art nouveau, embora tímidas e quase inexistentes. O geometrismo marajoara das eloquentes portas art déco de edifícios que vão conquistando altura – tais como Lutetia, Teixeira da Rocha, Indaiá – atestam a potência gráfica assumida pelo ferro nesse tipo de arquitetura. Esses mesmos geometrismos abrem passagem ao modernismo, e se simplificam até desaparecer o ornamento, que ainda sobrevive nos prédios dos Correios e da Prefeitura, por exemplo.


A disseminação da arquitetura moderna tem muito a acrescentar a essa história e a essa transição. É uma passagem gradual, contudo, pois o ornamento permanece e se sobrepõe à novidade moderna, e, apesar de pouco explorado para além das formas historicistas, mantém-nas em grande e graciosa diversidade. A volumetria geométrica moderna equilibra-se com a transparência das grades, acrescentandolhes alegres padronagens forjadas. Avançam, com o século, a urbanização e a violência urbana, e, em igual medida, a demanda pelas grades, o que certamente fez multiplicar a disponibilidade desse tipo de mão de obra na cidade, uma força de trabalho e um “saber fazer” anônimos. Fortalecido pela mecanização da forja, o caminho encontrava-se livre para a simplificação radical dos modelos, tão ao gosto moderno. No entanto, escapar das formas históricas, nesse caso, significa dar origem a pesadas geometrias, tramas que perdem em inventividade, delicadeza e transparência, como demanda a atual visibilidade das cidades. São grades que gradualmente se esqueceram de ornamentar (mesmo como um disfarce educado, um pedido de licença), sua evidente função. Uma simplificação, antes traduzida em modulações, que agora se dissolve em falta absoluta de ornamento, quando vence (definitivamente?) não apenas a industrialização, mas a própria arquitetura seriada.

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“Desenhar eu não sei não, fazer eu sei. Sei entender o que você quer. Serralheria é matemática!”, afirma André Ramos, serralheiro em atividade desde os anos 70 em Belo Horizonte. Ele me conta com satisfação que “a época de marreteiro acabou”, e que as máquinas vieram para agilizar o que antes era feito com muita dificuldade e demora. Sobre a atual ausência total de demanda para a confecção de grades ornamentais, confessa ter dúvidas sobre se hoje aceitaria alguma encomenda desse tipo, por ser algo caro e que lhe demandaria todo o tempo disponível. Ainda assim, diz sentir saudades de quando fazia basculantes, mesmo os não ornamentados, já que hoje seu trabalho se reduz quase apenas a portões e grades com telas galvanizadas pré-fabricadas, sem “ornatos” – como ele chama as volutas –, além de tampas para caixas de esgoto, feitas de “chapa-xadrez”. Afirma não faltar trabalho, e haver hoje um movimento muito maior do que quando começou, atribuindo isso ao fato de que “estão acabando com a profissão”, para a qual não há mais ninguém interessado, só se “pegar no laço”. André conta ainda que há dez anos não faz nada “a quente”, referindo-se à técnica antiga da forja, e que volutas, desde que se iniciou no ofício, são feitas “a frio”, dobrando-as sem esquentar, sob moldes. “Nos anos 70 só tinha fera, na solda e no arrebite, que era usado até para fazer xadrez. Hoje o acabamento é pior, somos forçados a trabalhar errado”, conclui o serralheiro.


Em proporção direta à escassez investigativa e documental sobre as grades ornamentais no mundo, a produção bibliográfica sobre o tema no Brasil não vai muito além dos manuais domésticos de serralheria, que ensinam uma tradição praticamente inexistente por aqui. Não é de hoje que a disponibilização de barras de aço industriais de diferentes calibres e tratamentos e a mecanização do ofício modificaram a rotina das serralherias, facilitando o trabalho e barateando a produção para os clientes. A despeito da indústria da fundição3, o serralheiro não é mais um artesão, mas um técnico especialista em soldar barras de aço e “metalon”, ao sabor das demandas por portões altos e fechados. Há quem afirme que as grades ornamentadas ainda hoje instaladas em Belo Horizonte não possuem a exuberância de peças presentes em cidades brasileiras mais antigas. A diversidade e a abundância do conjunto reunido aqui, no entanto, nos leva a duvidar de qualquer argumento simplificador. Em que pese não possuirmos tradição no ramo, o inventário guarda uma infinidade de ferros forjados anônimos, artesanais e ecléticos, características cujo apelo é decidida e definitivamente popular, alimentado não somente pelos catálogos de ornamentos que aqui circularam, mas também pela perenidade, universalidade e intemporalidade de seu repertório. Agrada-me pensar que a sobrevivência dessas formas, concebidas a partir da mistura de necessidade e criação, é o resgate inconsciente de uma historicidade, em conexão profunda com desejos e realidades atuais. Expressa a confortável e alegre permanência das volutas – as formas mais primitivas, conhecidas, utilizadas e adoradas em todas as gerações da arte da forja – uma sobrevivência proliferante em lugares de pouca tradição ferreira, como a capital mineira. Neste inventário, popular e doméstico – cuja dimensão artística é plena e deseja evidência – contrapõem-se ao monumental.

3. A forja consiste em um método mais artesanal, ligado ao esquentamento gradual das barras de ferro, a fim de moldá-las com o auxílio da bigorna. Artesanal ou industrial, essa técnica identifica-se, grosso modo, com a torção e a reunião de várias peças para conformar uma estrutura, sendo a fundição, por sua vez, produzida a partir do derretimento do ferro para ser colocado em moldes e reproduzido em série.

_ Não se esqueça de que forjar é também inventar, criar. 17


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a constituição do inventário: coleta E vetorização

A escolha das regiões a serem percorridas na cidade respondeu ao seu primeiro traçado, a partir da crença de que ali, nas áreas mais antigas, estariam concentradas as maiores quantidade e variedade das grades. O anel da avenida do Contorno marcou, assim, uma referência para procurá-las, em bairros centrais (dentro dos limites da avenida) e pericentrais (adjacentes a ela). A partir dessa delimitação espaço-temporal, percorremos os seguintes bairros4: (1) Anchieta, (2) Bairro da Graça, (3) Barro Preto, (4) Barroca, (5) Bonfim, (6) Cachoeirinha, (7) Calafate, (8) Carlos Prates, (9) Carmo-Sion, (10) Centro, (11) Cidade Jardim, (12) Colégio Batista, (13) Concórdia, (14) Coração de Jesus, (15) Cruzeiro, (16) Floresta, (17) Funcionários, (18) Grajaú, (19) Gutierrez, (20) Horto, (21) Jaraguá, (22) Lagoinha, (23) Lourdes, (24) Padre Eustáquio, (25) Prado, (26) Renascença, (27) Sagrada Família, (28) Santa Efigênia, (29) Santa Tereza, (30) Santo Agostinho, (31) Santo Antônio, (32) São Lucas, (33) São Luís, (34) São Pedro, (35) Serra.

4. As linhas na imagem da página ao lado representam os trajetos percorridos nos bairros delimitados.

A cartografia e a arquitetura da coleta, realizada entre março e dezembro de 2011, configuram-se da seguinte maneira: eixos: ruas e avenidas (percursos objetivos); passeios: bairros (errância);

dispersos e presenteados: imagens de grades registradas aleatoriamente. 19


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O registro foi feito assim: todas as casas detentoras de grades ornamentadas forjadas, situadas ao longo dos caminhos, foram contempladas, enquadrando sua fachada frontal, além de cada modelo de grade que estivesse ao alcance dos olhos, mesmo nas fachadas laterais, obtendo-se quantas fotografias fossem necessárias para registrá-las. Cumprida essa etapa, passamos à digitalização dos modelos encontrados, utilizando a caneta digital, que gera desenhos vetoriais editáveis. Com esse instrumento, cada forma foi desenhada manualmente, de maneira mais artesanal (orgânica) e menos geometrizada do que as ferramentas que criam “nós” no software de ilustração gráfica adotado, o Illustrator. Sua replicação e seu espelhamento garantem, ao final, um caráter mais gráfico, geométrico, uniforme. Fotos tomadas de pontos de vista laterais dificultaram a geometrização de grande parte dos desenhos, e para tanto utilizamos como apoio a retificação – conhecido procedimento dos profissionais das Ciências da Conservação – para garantir certa planeidade às imagens. Sem ignorar a importância dos cálculos matemáticos no registro fidedigno dessas formas, optamos por colocar em prática uma geometria mais intuitiva – como a dos serralheiros, talvez – que garantisse um vínculo satisfatório entre protótipo digital e fotografia, uma realidade aproximada, possível, suficiente. Depois de tantos trajetos e desenhos, temos em mãos o inventário, pronto para ser usado e editado por artistas, designers, arquitetos, serralheiros e por quem mais quiser. Distribuídos em seis grupos que se conformam como paisagens, os desenhos escolhidos para o livro reportam a grande diversidade do conteúdo digital, presente no DVD anexo, e ensinam o todo por meio de suas partes, bem como o universal por Belo Horizonte. Quando for utilizar e explorar os inúmeros arquivos que acompanham esta obra, o leitor poderá ler algumas informações técnicas que lhe podem ajudar a desfrutar melhor do inventário digital, encontradas em um arquivo intitulado Instruções.


São diferentes os tipos de discurso que os inventários gráfico e fotográfico, ambos amparados pela experiência em campo, podem tecer. O primeiro opera pela exaustividade, pela sede acumuladora. Sem abrir mão de sua poética, faz opção pela norma e pela forma, visando seu agrupamento, em favor da eficiência dedicada ao leitor-usuário. Deseja a memória e a padronização dos modelos, despidos, no entanto, de sua complexidade mundana, que nos convida a transformar suas impurezas e feiúras em outras belezas. O segundo sistema, por sua vez, opera mais pela diversidade que pela regra, e também pelas exceções: as grades combinadas aos azulejos, as que carregam palavras e letras que despertam histórias imaginadas; as que são lembradas pelos vestígios que carimbaram; as que figuram ou sugerem narrativas, idéias e paisagens; as que conformam jardins próprios; as que fazem de sua carência ou descomedimento o seu encanto; as que abusam das cores e desafiam o entorno; as que, de tão singulares, não encontram par algum.

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Conversando com Silvio Notato e Terezinha Serpa sobre a casa onde vivem no Prado, descubro que ela é filha de um serralheiro, Olimpio Serpa, já falecido. Olimpio e outros dois irmãos herdaram do pai, Giuseppe Serpa – italiano, mas não da primeira geração de construtores – a arte da serralheria. Pai e filhos atuaram em Belo Horizonte, entre as décadas de 10 e 60 do século XX, primeiro em uma serralheria própria, vizinha à residência da família, na rua Curitiba, e logo nas grandes Magnavacca, Orácio Albertini e J. Baragli, que assinam alguns trabalhos feitos pela família, como o portão do colégio Arnaldo e a porta da antiga Santa Casa. Silvio revela-me que o sogro possuía um catálogo com modelos de grades, de capa dura, da primeira década do século passado – que ele suspeita se tratar de um manual oriundo de Portugal e que já não se encontra mais nas mãos da família. Ele e sua esposa me asseguram que todos os modelos executados pelo pai vinham dessa publicação, mostrada aos clientes para que escolhessem o que mais lhes agradava. Mas as serralherias artesanais saíram do mercado, a partir dos anos 60, e quem tinha esse material – quando já não havia nenhum membro da família na profissão, o que era natural com a decadência do ofício – geralmente não lhe dava valor, desfazendo-se de livros e ferramentas, vendidas como sucata – reflete Silvio. Em sua casa, sobrou uma pequena bigorna e um enorme serrote, além de um vestígio da história a ser transmitida para as próximas gerações: um pedaço de grade, forjada por Olimpio no fogão a gás de sua casa, esquentada devagarzinho e dobrada com alicate e martelo caseiro.


paisagens em uma gramática belo-horizontina, possível e universal

A história das artes aplicadas é, de certa forma, desencarnada, narrada ao sabor de infinitas transformações. Fruto de revisitações estilísticas e de adaptações materiais – formas que nascem em manuscritos e são forjadas em ferro, criadas para a pedra e executadas em madeira, pensadas para ladrilhos e materializadas em manuscritos, ou simplesmente criadas para o papel, à espera de quem as transponha para alguma outra materialidade. História que nasceu de uma fundamentação estritamente visual, quando as coleções de gravuras, já desde o século XVI, foram divulgadas em pranchas avulsas que circularam bastante, servindo de inspiração a artesãos, artistas, ornamentistas, gravadores e arquitetos. _ Só uma lembrança, pode parecer disparatada, mas decorar é também memorizar, guardar na memória, gravar. Ser capaz de repetir. _ Estas imagens desencarnadas são um pouco órfãs, e encontram-se à espera... É no século em que foi inaugurada Belo Horizonte que a indústria gráfica se aprimora e democratiza-se em uma escala sem precedentes, facilitando o compartilhamento, em âmbito mundial, de múltiplas imagens produzidas pelo homem através dos tempos. Frutos frescos da descoberta da litografia colorida, os catálogos são, muitas vezes, edições muito sofisticadas, a maioria em enormes formatos, com acabamentos luxuosos – capas em couro, guardas decoradas com belos ornamentos ou marmorizadas, relevos 23


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e lombadas dourados, centenas de páginas – carregando consigo a expectativa de despertar o desejo dos compradores, bem como de promover um doutrinamento do gosto, como era de se esperar naquela época. Catálogos comerciais de ornamentos, hoje raros em todo o mundo, seguramente circularam pela capital mineira. Eles chegaram na virada entre os séculos XIX e XX, quando os mercados europeus, já saturados, encontraram em países como o Brasil o perfil consumidor ideal: Rio de Janeiro e São Paulo em vias de tornar-se as grandes metrópoles que são, algumas cidades trocando de roupagem, bebendo da moda europeia Eclética, Nouveau ou Déco, anunciada nos salões industriais, além de Belo Horizonte, que nascia amparada nos ideais ecléticos dos franceses, grandes disseminadores desses catálogos, ao lado dos ingleses. _ Hoje são sofisticados os catálogos produzidos pelas grandes construtoras, não os entregues nos sinais vermelhos de trânsito, mas nos estandes de vendas, apartamentos decorados envoltos pelo cheio-vazio do canteiro de obras. _ E ainda assim parece que habita em nosso imaginário a ideia de que carecemos de historicidade e, às vezes, é como se nos envergonhássemos de reivindicar a necessidade de preservar aquilo cujo valor nem conhecemos exatamente. _ Ou, quem sabe, envergonhamo-nos de não sermos aquilo que nunca poderíamos ter sido, e não nos permitimos amar o que temos. _ E se olharmos para essas grades como uma espécie de selo, atestando a existência (e a resistência) do que está por trás delas?


Entre construções geométricas, desejos de figuração e de abstração, as formas ornamentais das grades vão sendo orquestradas pelos sabores de cada tempo, esses que por vezes nos permitem identificá-los sob o rótulo dos estilos, mas em tantas outras oportunidades se embaralham nas recorrências prototípicas que conformam essa intrincada história visual: o tempo onipresente e estendido das volutas, rigidamente organizadas ou em profusão, o tempo de sua aparente supressão, o tempo da retidão, da ortogonalidade, o tempo da replicação e do entrelaçamento, o tempo da natureza e da fantasia, o tempo da continuidade e da fragmentação.

paisagem

_ O que tanto você vê nessas grades? _ Uma paisagem, ou, pensando melhor, várias paisagens. A paisagem onde encontramos essas grades é dispersa, labiríntica. Paisagem urbana e monumental, paradoxalmente contida em cada uma das grades e em sua historicidade apreensível, mas não esmiuçadamente capturável. Capturados em milhares de fotografias, nossos ferros ornamentais foram dispostos em pastas provisórias – nomeadas pelos trajetos (eixos ou passeios) que cumprimos – capazes de guardar as memórias afetivas do campo e as sensações evocadas pelas grades em seu habitat. Seu desenho vetorial implica em sua desterritorialização e, também, em uma espécie de retorno: as imagens se despregam da cidade para compor os espaços (o de papel e o virtual) deste catálogo de ornamentos. Seguem, assim, habitando paisagens – formais, gráficas, memoriais –, reunidas aqui em uma espécie de gramática, ornamental e ornamentada, belo-horizontina e universal.

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Trata-se de uma universalidade que comporta exceções, improvisações, inventivas em maior ou menor grau, que nos pedem para ampliar o espectro do afeto que move a escolha e a manipulação de todas essas imagens. Incluem-se aí os fragmentos aparentemente mais singelos, as quase imperceptíveis mudanças de curvaturas das volutas, transformados pelo tempo e por outros tipos de desconhecimento da tradição (mas não da forma e da beleza), todos igualmente promissores em seu potencial memorial e transformador. A exaustividade do inventário ensina a importância de conferir-lhes importância igual, de apaixonar-se por cada uma dessas formas, e por sua alma popular, sabendo que cada fragmento lança o seu vetor de passado (difuso, mas reconhecível) – ferro, mãos, dobra, experiência, lastro – e de futuro, pois cada um é a peça de um quebra-cabeças remontável. São paisagens no plural, que abrigam imagens à disposição e a serem dispostas, pedaços de grades que foram desterritorializados – desvinculados de sua localização na cidade e de sua relação com a fachada –, desfuncionalizados – tendo seu papel na edificação apagado, não importando se são grades, portões, janelas, muros, portinholas, bandeiras, óculos, guarda-corpos – e dessingularizados – na medida em que qualquer agrupamento original que os caracterizava decorria da montagem realizada por cada serralheiro que as fabricou.

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(5)

_ Como se comportaram as grades, fora de seu habitat? Em sua lógica primordialmente modular, replicadora, recobridora, contemplativa, hipnótica, as superfícies ornamentadas das grades se dividem entre o desejo de ser fundo e o de ser forma, a despeito da alegria, da melancolia ou da ferocidade que evocam, e talvez por esse motivo também desejem ser música. Proporção, ordem, rotação, espelhamento, repetição, alternância, propagação, radiação, cruzamento são invisibilidades que costumam organizar as paisagens das gramáticas ornamentais. Seja neste catálogo de ornamentos ou na paisagem cotidiana, as grades, como os ornamentos, amam os verbos enquadrar, cercar, preencher, destacar, arrematar, ligar, separar, ordenar, suportar, rechear, figurar. Antes de exercerem qualquer função, precisam escolher entre se comportar de modo finito ou infinito. Se somamos essas duas disposições ao vocabulário de motivos encontrados, poderemos construir um jogo com peças por dispor em inumeráveis combinações. Seu coletivo será paisagem formal; seu resultado, memória gráfica; seu convite, replicar ou desmontar, remontar e editar, retornar à cidade, enfim.

(1)

Módulo (1) é a estrutura mínima de um padrão, que pede para ser multiplicado, para proliferar, virar preenchimento, padronagem (2). Alguns convidam-nos a replicá-los apenas horizontal ou verticalmente, conformando faixas, contornos, estruturas lineares (3). Vinhetas (4) são estruturas pregnantes, com um ou dois eixos de simetria, de maior complexidade que o módulo. As composições (5), mais complexas que as vinhetas, têm menor pregnância e, por consequência, menor resistência à redução.

(2)


C( U( $(

), S (

), O (

), E (

), L (

),

),

), GF (geométicos florais),

GA ou G (geométricos abstratos),

CCX

CO

FG (figurativos), H (híbridos),

A (agrupados), CO (cordiformes).

SX CO

CC

GF

S GF

SS

FG

C

SSS

CC

U

E

UU

GA

GA

EE

S$

CE

GA EE

LL


As paisagens que se seguem foram criadas sob a motivação de compartilhar com o leitor – de modo instrumental, mas também poético – a infinidade de formas que integram o inventário. Em uma via de mão dupla, subtraem, a partir do desmembramento, e também acrescentam, quando se constata a mobilidade de seus dispositivos paisagísticos. Trata-se de admitir a perda para usufruir da transformação, de aceitar o limite do fragmento para desfrutar da infinitude de sua combinatória. Desmembrar para constituir paisagens, mas também para dispor, disponibilizar, vislumbrar, mover. Fragmentadas, as espécies que as habitam convidam-nos a aprimorar, conceitual e poeticamente, a intimidade que podemos ter com elas. Experimentemos, pois, esquecer os nomes das categorias ornamentais (módulo, padronagem, linear, moldura, vinheta, composição), deixando o olho nos guiar pelo que aos poucos se vai somando. Assim, conformar-se-ão paisagens amplas, desfocadas, desorientadas, vastas, indeterminadas, como pode ser da natureza de todas elas. Paisagens formais, para serem vistas antes de pensadas, para que possam ser reconhecidas. Paisagens-jardim, prazenteiras, tão artificiosas quanto sedutoras, para que possamos nelas deambular. Paisagens-jogo, que nos convidam a mover as peças que compõem este léxico belo-horizontino e universal. Mesas e lâminas, a servir de apoio e moldura para formas e origens perdidas no tempo, cada uma com seus limites e deslimites. Mobilidade, visibilidade, sincronicidade e exaustividade são palavras-chave e palavras de ordem nessas paisagens tão concretas quanto imaginárias. São paisagens-gradis que esta espécie de gramática ornamental apresenta. Paisagens que se interpenetram, sobrepondo-se em transparência.

CO

S

SC

$

SO

CC CC

C H

E

G

G

A

31


32 paisagem 1

imantar, arredar, jogar, montar, editar, multiplicar Se a planeidade já predominava na forja feita aqui, alia-se a ela a quase exclusividade da modulação, para conquistarem o lugar definitivo como palavras de ordem para as grades belo-horizontinas. Está inaugurada a primeira paisagem, geometrizante e aparentemente comportada em grids, visíveis ou invisíveis. Seu signo, no entanto, é de infinitude, e sua aparência, mais orgânica do que prometeria. Por isso, imagine essa paisagem como um jogo de dominó, cujas peças (módulos) podem ser movidas sobre uma mesa, conforme as semelhanças entre suas partes − difusas, de certo modo, mas perfeitamente reconhecíveis (suas dobras, curvas, retas, círculos, quadrados etc). Como a maioria das paisagens apresentadas aqui, a paisagem 1 é dominada pelas volutas − em “C”, “S”, “L”, “E”, “U”, as letras que formalmente se aparentam e nomeiam volutas, na tradição da arte ornamental − dobradas, interrompidas, amarradas, entrelaçadas, replicadas e espelhadas em duas, quatro, oito vezes. Há também outras formas, florais, geométrico-abstratas, figurativas, acompanhadas, como as volutas, de elementos acessórios, grids externos e internos, em cruz e em “X”, estabelecendo múltiplas possibilidades de vizinhança. Essa paisagem-dominó, impressa em sua totalidade no poster anexado ao livro, é um convite ao jogo − de encontrar correspondências bifacetadas, ou mesmo ambíguas, de geografia instável − e a conhecer o restante do inventário gráfico, seu léxico,


sua sintaxe, seu potencial combinatório. Desafiando nossa imaginação para antever as texturas resultantes de sua replicação, os módulos que compõem esta paisagem reafirmam o poder proliferante de todo ornamento e a capacidade expansiva de qualquer paisagem. Módulos dispostos sobre uma mesa e postos em movimento, quando da verificação de outras vizinhanças, a apontar a possibilidade de criação de novas paisagens, todas articuláveis. Só será possível perceber sua mobilidade procurando-os, utilizando-os. Aproximados por semelhanças formais que provocam saltos no tempo, convidam a jogar, montar, cambiar, atravessar, os tempos e todo o inventário.

Trata-se, também, de uma paisagem-índice, a ensinar e convidar para o banco de imagens digital e para a virtualidade: outras possibilidades de comunhão e replicação, a partir do desmembramento dos módulos em inumeráveis fragmentos, a multiplicar a diversidade lexical ofertada. Por fim, nesta paisagem 1, há subgrupos, representados, no poster e na página 30, por um módulo principal que melhor os sintetiza, para conduzir o leitor-usuário ao primeiro exercício do reconhecer − exercício visual onde os destaques convidam os demais, orientam a paisagem. Tais destaques também foram aproximados, na maioria, por semelhanças formais, cambiáveis como as pequenas peças, capazes de promover avizinhamentos, criar manchas domesticáveis e móveis no inventário. As paisagens gráficas a seguir tornam-se, por fim, espécies de gráficos, diagramas capazes de nortear, cartografar, ilustrar, permitir o acesso, sintetizar e representar a totalidade digital. 33


P_S046


P_GF015


P_CO049





P_CO005


P_SSS005












P_CC085





P_CO008



P_GA099


P_FG002






P_CCX002










<

P_S019





P_GA115






P_GA119


P_S$010


84

paisagem 2

o horizonte dá a ideia da paisagem Esta é uma paisagem-barrada, paisagem entre fios, paisagem-cercadura, absolutamente horizontal – ainda que alguns de seus módulos possa, clandestinamente, convidar a uma viagem vertical – e prolonga-se indefinidamente para um lado e outro. Paisagem-fuga, um além e um através horizontais, recheados de correspondências e possibilidades de outras associações, como na paisagem 1. Paisagem também feita de módulos que, no entanto, por algum motivo formal (ou gestáltico, poderíamos pensar) – verticalidade de suas peças ou carência de simetria – solicita replicação unilateral, ao contrário da paisagem 1, que se estica para todos os lados. Ainda que a replicação se dê em apenas um sentido, não por isso seu signo de infinitude será menos potente. Do contrário, para ganhar força, para tornar-se o horizonte (ou a mais horizontal) das paisagens listadas aqui, seus módulos se mesclarão e nos confundirão a vista, tão contínua e imprecisa como a linha imaginária que divide o céu do mar, quando este se faz espelho.


Por vezes é chamada de paisagem-eufemismo, porque historicamente citadina, vertical, proibitiva com suas lanças, ou paisagem-obsessão, porque demasiado detalhista com diferenças sutis. Eufemismo e obsessão que revelam sua falsa síntese, cujas economia lexical e trivialidade escondem a complexidade oculta e sutil dos diferentes modos de forjar as formas mais básicas da serralheria artística: “S” e “C” sobrepostos pela nossa imaginação, revelando, a partir das mesmas letras, as caligrafias singulares inumeráveis e inclassificáveis dos serralheiros. Essa gramática, das cercas modernas e econômicas, além de ilusioriamente simplificada, é um convite a voltar no tempo, o da verticalidade, espinhosidade e estriagem góticas, com seus motivos tão ecléticos, tão antigos. Economia das “geometrias” que começam na repetição das linhas verticais, mas que, surpreendentemente, ainda são capazes de gerar ricos primitivismos, ou movimentadas e musicais proliferações de círculos, em sua pauta imaginária. A paisagem 2 convida a nos rendermos ao efeito óptico e acelerado de suas barras que se repetem, a nos imaginar em movimento passando os dedos por elas, a escutar seu “trrrrrrrr”. Musicalidade histórica – a do martelo sobre a bigorna, o ritmo que comanda o revezamento do ferreiro mestre e seus ajudantes – refletida em seu potencial rítmico e popular, diversificando alturas – dos próprios módulos ou de seus motivos internos – e distâncias entre barras, diversificando a paisagem à sua maneira, musical.

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L_S035

L_S021

L_S052

L_S020

L_S053

L_S051

L_CO005

L_S050

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L_S049

L_S048

L_S047

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L_S046

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L_S043

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L_S042

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L_CO001

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L_CO008

L_CO007

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L_S001

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L_S023

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L_S054 L_S002 L_S013

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L_SC011

L_S033

L_SC018

L_S032 L_SO001

L_SC017

L_S017

L_SC016

L_S016

L_SC015

L_SC014

L_SC013

L_SC012

L_SC010

L_S015

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L_SC007

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L_S014

L_SO020

L_SO019

L_SO018

L_S030

L_SO017

L_SO016

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L_SO013

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L_SO002

L_S034


L_C032

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L_C034

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L_C031

L_C030

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L_C028

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L_SO007

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L_C019

L_SO005

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L_SO004

L_SC024

L_SC022

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L_SC020

L_SC019

L_SO003 L_SC003

L_SO010

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L_C008

L_CC010

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L_C007

L_C056

L_C005 L_C006

L_C055

L_C013

L_C054

L_SO011

L_C053

L_C004

L_C052

L_C003

L_C051

L_C050

L_C002

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L_C001

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L_SC004

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L_C009

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L_H027

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L_E014

L_E015

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L_C010 L_CC005 L_CC006

L_H021 L_G028

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L_G031

L_G032

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L_G034

L_E003

L_E004

L_G035

L_E005 L_E006

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L_E008

L_A003

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L_A019

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L_G008

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L_G045

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L_G027


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L_G084

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L_G092

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L_S157

L_C139

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L_CO021 L_CO022 L_CO023 L_CO024L_CO025

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L_CO054

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L_S085 L_S086

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L_SO022 L_SO023 L_SO024 L_SC025

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L_SO021

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L_$020 L_$021

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L_C062

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L_C061

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L_C059

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L_C058

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L_SC030

L_SC031 L_SC032 L_SC033

L_SO053

L_SO037

L_H047 L_H048

L_SO051

L_SO034 L_SO035 L_SO036

L_SO050

L_SO033

L_H046

L_SO052

L_SO040

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L_SO039 L_SO038

L_$039 L_$038

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L_H045

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L_C109

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L_SC081

L_SC080

L_SC079

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álbum de autossuficiências Mais complexas que os módulos, as vinhetas nos permitiriam transportá-las para a paisagem 1, caso não conformassem, elas mesmas, paisagens em miniatura. Paisagens próprias, praticamente irrepetíveis, que, a despeito da presença de molduras, cercam, separam, pontuam, imperam: corpos de emaranhados de volutas e/ou outras linhas que, dispostas em simetria (unilateral ou bilateral) escancaram autossuficiência, de complexidade bastante para dispensar replicação, bem como de contorno (linear ou imaginário) suficientemente nítido para deixar claro a que vieram. Desmembrar essas minipaisagens pode até resultar em algum módulo ou moldura (o que não é regra), mas o restante serão peças soltas, solicitando o retorno a esse “organismo” que reclama completude. Como em quase todo ornamento, simetria é a palavra-chave da vinheta, acrescida da complexidade que faltou ao módulo. Simetria siamesa, porque suas metades não funcionam sozinhas. Pelas leis arquitetônicas, seus verbos são partir, marcar, pontuar, dividir, coroar, e quase nunca multiplicar, proliferar, replicar. A vinheta é uma minúscula e firme paisagem que, na maior parte das vezes, dispensa moldura, não de janela, mas de postigo, ou seja, de janelinhas cujos conteúdos conformam delicados selos, rótulos, demarcações de propriedade não apenas do que está por trás, mas delas próprias. Assim também seriam os cabeçalhos dos portõezinhos e as bandeiras das portas, se reunidos sob critérios funcionais, que nessa paisagem preferem ser nomeados como “leque”, essas vinhetas que se abrem, radialmente assanhadas, garantindo pompa. Não importa à vinheta o tamanho, a materialidade ou a função do objeto que a recebe, mas sim a capacidade que os motivos (e os olhares) têm


de organizar-se em torno de seu centro. De modo vital, e não arrogante. Nascida das iluminuras – quando fazia jus à sua origem terminológica vegetal, a vinheta em folhas de vinha que ornamentava pontualmente os livros –, migrou facilmente para os suportes impressos, obtendo as funções formalistas tanto de abertura como de fechamento, não por ser terminológica e funcionalmente onipotente, mas por ser síntese, pausa, ponto, demarcação de um todo pela parte. Como construir uma paisagem com pequenas paisagens? Afinal, se os elementos desse conjunto de autossuficiências são ao mesmo tempo fragmento e totalidade, eles não se realizam como pedaços que se deixam facilmente orbitar ou ser órbita. Seu conjunto poderá gerar uma efêmera (porque sempre modificável) constelação, um pouco estrambótica como nos catálogos ecléticos de ornamentos, sedentos por mostrar de tudo um pouco. Mas as vinhetas poderiam se reunir de modo ainda menos evidente, se dispostas em diminutos álbuns. Enxergar a mobilidade que as tantas texturas evocadas por essas minipaisagens, somadas pouco a pouco, provocam, transpor seu caráter estático, eis o convite deste que, em lugar de um álbum de paisagens, é um álbum-paisagem, imaginário. Imaginemos: Cada pequena paisagem em uma página que obedece o seu exato formato, seja ele disforme, quadrado, retangular, estreito, redondo, pontudo, em arco, em meia volta, ogival, apontado; o passar de suas páginas como um flip book frenético, dando-nos a ilusão de movimento, em função dos acréscimos e subtrações de estruturas semelhantes e díspares; a sobreposição de suas páginas recortadas e irregulares em transparência, quando as ausências podem revelar presenças, quando constatamos que jamais haverá uma forma definitiva para as vinhetas, mesmo em sua autossuficiência. 145


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floresta de portõezinhos, a assombrar Da paisagem 4, aparentemente resta pouco a dizer, porque seus integrantes, os portõezinhos, são formados por fragmentos de outras paisagens, vinhetas-leque, somadas aos lineares-barrados, ou diferentes vinhetas (a torná-los mais complexos), multiplicando nossa capacidade de amá-los. Predominantemente de base geométrica, vertical e rítmica, e de coroamento voluptuoso, a floresta que assombra tem a veemente horizontalidade da paisagem 2 e a eloquência logotípica da paisagem 3, ainda que ameaçadas pela transformação das vinhetas-cabeçalho, em função da violência urbana. No entanto, se frequentemente é o acréscimo de barras verticais e arames galvanizados que lhes rouba a excelência, outras vezes são graciosas, inventivas e voluptuosas complementações que desafiam sua escola, e as convencem de certa rebeldia e exuberância. Trata-se mesmo de uma paisagem desobediente, na cidade de papel e na cidade real. Nesta, representa a teimosia daqueles que não querem transformar muretas em muros, a resignação dos que estão impedidos de fazê-lo e o anacronismo das casas que, mesmo sem garagem, sobrevivem. Juntos, aqui na gramática, portões, portas e portõezinhos desobedecem por recusar seu desmembramento total, e fazem tal exigência para convidar-nos a conhecer três históricos postulados ornamentais, aos quais Alöis Riegl – autor de um emblemático estudo sobre o assunto5 – conferiu enorme importância. O mais evidente deles é a chamada “terminação livre”, nome mais abrangente dado por Riegl aos coroamentos, nascida de um “sentimento artístico” tão primitivo e coeso como a simetria. Trata-se de uma “acentuação ornamental”: a cabeça do corpo e da coluna (nada mais que o capitel);


a própria flor e a copa da árvore, coroando o talo e o tronco; assim são os cabeçalhos de nossos portõezinhos. O “recheio de cunhas”, por sua vez, é o princípio tímido e protagonista do horror vacui – impulso decorativo de preencher todos os espaços vazios –, em sua extrema necessidade de completar ângulos formados entre volutas que se tangenciam de modo divergente, para um lado e para outro, com estruturas curvas, folhas, outras volutas, semicírculos, terminando por contribuir com o primeiro postulado, com lanças e corações, ao centro.

5. RIEGL, Alöis. Problemas de estilo. Fundamentos para una historia de la ornamentación. Barcelona : Gustavo Gili, D.L. 1980

A simetria – a mais soberana das leis ornamentais, reciprocidade tão primitiva quanto “poderosa” – está, no entanto, de alguma maneira posta em xeque pelo terceiro motivo pelo qual essa paisagem assombra a gramática. É que seus voluptuosos cabeçalhos, se observarmos atentamente, amolecem-se em certo caráter vegetal – ideal e estilizado, no entanto, produto do espírito e não da natureza – e encarnam os famosos e tenros “pâmpanos”, inaugurados e adorados pelos gregos, o que significa todo um mérito, uma maturidade, “fórmula salvadora”, “conquista transcendental para a história da ornamentação”, segundo Riegl. Em “disposição oblíqua”, com “inclinação para a curva”, principalmente para fora, as volutas e fragmentos presentes nos pâmpanos conformam um linha ondulada cheia de tangenciamentos, ascendentes ou descendentes. Rompem com a unilateralidade e a rigidez dos arcos e dos espirais em sequência, conferindo movimento e liberdade ao ornamento e à presente paisagem. Dispostos em metades, seus fragmentos nos convidam a voltar no tempo, não apenas das cidades, mas dos antigos mostruários de ornamentos, grades, arquitetura e objetos de design, em sua simpática economia espacial, a ofertar exóticos pares, a provocar uma assimetria rebelde, voluptuosa, fluida e selvagem. 187


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paisagem 5

paisagem na parede, lojinha de molduras

6. LEMOS, Fernando. A vinheta da iluminura à carroceria de caminhão. São Paulo, Centro de Documentação e Informação sobre Arte Brasileira Contemporânea, 1980. (Coleção Cadernos 1, Volume 1)

Esta é uma paisagem ambígua. Aparentemente finita, fechada, não cessa de evocar sua tendência ao infinito. Se vistos de modo isolado, seus fragmentos aparentam ser coadjuvantes, ainda que seu conjunto tenha presença marcante. Ela seria constituída por peças simples, totalmente adequadas à linearidade e ao potencial replicador unilateral da paisagem 2, não fosse um único e discreto motivo a provocar suas dobras, a dotá-la de esquinas. Multiplique esses motivos por quatro, e esses lineares se transformarão em peças capazes de gerar uma infinitude circular e generosa, que reforça outras paisagens, encarnando a potência de toda moldura. Aqui, no entanto, estão dispostos em duas sequências de ornamentos lineares, unidos pelo motivoquina, na proporção das janelas das quais foram retiradas na cidade. Libertaram-se de seus velhos conteúdos e figuram nessa nova paisagem, à espera. São também como setas em torno de um vazio, movimento centrípeto (porque sempre caberá uma mais ao centro, se movermos o conjunto para fora) e centrífugo (porque o conjunto pode sempre ser afastado para fora).


Uma paisagem para se pendurar na parede deve ser uma paisagem íntima, familiar: além de discretos (porque coadjuvantes), seus motivos são quase sempre triviais, e de limitada diversidade (ainda que tal limitação seja ilusória, como na paisagem 2). Não sem razão, possuem um subgrupo marcadamente feminino: volutas acompanhadas de flores, ou transformadas em módulos florais, são a encarnação da domesticidade em forma de moldura. Sem surpresa, as volutas em “S” são as que aparentam vestir melhor essas esquinas, pelo menos parecem ter estado mais em voga, encontradas na grande maioria das janelas emolduradas, tantas vezes envolvendo os xadrezes em losango, na fronteira entre ornamentar e não. São esquinas que sabem ser discretas e geométricas quando lhes convém, mas, quando esquecem seu suposto lugar acessório, arranjam um jeito de ser, elas mesmas, paisagens. Ainda que se preste a emoldurar “grandes paisagens”, a paisagem de pendurar na parede provavelmente preservará seu altruísmo e sua humildade, porque sabe de sua importância em promover contatos entre os dois mundos que ela, ambiguamente, separa. A moldura é o “fio de tempo estacionado à volta do definido e do identificado”, avistou Fernando Lemos.6

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paisagens 6

As que gostaríamos de ver emolduradas pelas nossas janelas

7. GOMBRICH, E.H. El sentido del orden. Estudio sobre la psicología de las artes decorativas. London: Phaidon, 2010.

Estamos diante de paisagens, no plural, transitórias. Paisagens-passagem, que, antes de vetorizadas, pedem para ser contempladas. Reinstalam conflitos antigos entre representação e decoração, lembrando-nos da capacidade do ornamento de construir espaços impossíveis, imaginários, ou mesmo inimagináveis7. Tais paisagens, no entanto, não costumam permitir ver fitas onduladas onde há águas, montanhas e serpentes, nem volutas onde há folhas e gavinhas. Preferem que perguntemos a elas primeiro sobre seu significado, e que esqueçamos um pouco do sentido de sua ordem. As grades que conformam as paisagens 6 fazem lembrar, de relance, suas familiares mais antigas: enormes portais religiosos que, pelas leis da perspectiva, simulavam caminhos aparentemente longínquos, a desembocar em uma vinheta ou brasão, destacada e ilusoriamente distantes. Sentem ainda saudades de outros de seus ancestrais, que se conformavam como miniarquiteturas, em altares que eram perfis exatos de igrejas góticas ou em grades-muro cuja faixa superior era formada por pequenas torres, como a das muralhas medievais. Aqui, como na paisagem 3, mas de modo enganosamente mais “clichê”, as peças são paisagens em si, sem iguais.


De geometria frágil e inoperante, na cidade essas paisagens estão sempre sustentadas por xadrezes que lhes garantem soldada sustentação. São, no entanto, paisagens que resistem a desmembrar-se. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que habitam sozinhas e autossuficientes os ocos arquitetônicos, reclamam imantações, demandam montar com elas agrupamentos que aqui não se concretizam de modo tão fluido, interligado. São paisagens tão esperadas quanto imaginárias as que se pregam nelas, cujas motivações secretas nem sempre queremos ver reveladas, para preservar um pouquinho mais seus mistérios. Por mais iluminadas que possam parecer, as paisagens 6, ainda assim, são becos que nos convidam a retornar. Subjetivar de novo, não apenas devolver, mas, antes, impedir que se esvaiam, dissipem, desbotem. Convidam-nos a conversar, reterritorializar.

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Moda tipicamente déco, as grades que se expressam através da figuração também devem ser, provavelmente, fruto de um desejo mais singular de comunicação com o espaço urbano, que se instala e se estende algumas décadas adiante. Assim são as grades da casa do senhor Antônio Correa, no Carlos Prates, idealizadas nos anos 60 pelo artista italiano Marno Funghi, seu amigo, ambos já falecidos. A esposa do senhor Antônio era também artista, e sugeriu a Funghi que fizesse uma grade que estampasse o mar. Ele então desenhou coqueiros, pássaros, nuvens, ondas e pirâmides. Teria sido um gesto déco de resgate de imagens exóticas, mas também banais, de culturas longínquas e misteriosas, como a pirâmide, abrasileirada, nativizada, na companhia das andorinhas? O morador da rua Nova Lima me contou que Funghi fez o trabalho por amizade, pois não costumava projetar grades, e sim “idealizar máquinas”.

Soube da morte do senhor Antônio pouco antes de finalizar este livro – habitado desde os primeiros esboços por seus pássaros –, quando lhe telefonei para tornar a fotografá-lo. Na ocasião da entrevista, ele me disse que sua filha manteria as grades da casa de raros azulejos azuis-e-brancos, se algum dia ela fosse abaixo, e revelou à sua cuidadora que se sentiria feliz de estar eternizado aqui. Voo guardado, voo alçado.

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Misturadas às paisagens descritas aqui, haveria outras, incontáveis: 7) os grids e xadrezes que são paisagem-pauta, de música ou de caderno; 8) as paisagens formadas por todos os ornamentos que se insinuam como flores: quantos módulos na paisagem 1 não haverão de revelar aqui seu desejo secreto de ser flor, porque quadradinhos, radiais, multiplicados em jardim?; 9) mais uma floresta, a de balaústres, praticados por inúmeras varandas pelo mundo afora, tão urbanos e tão vegetais – a nos lembrar das misteriosas “árvores sagradas”, inauguradas pelos assírios e aprimoradas de modo pagão por pompeianos e renascentistas, que, diferentemente dos que conhecemos, chamavam-nas de arabescos; 10) uma paisagem flutuante e misteriosa, no meio do caminho entre o abstrato e o figurativo, formada por símbolos que se revezam, aparecendo, desaparecendo e reaparecendo nas memórias ao longo dos tempos; 11) a paisagem exclusiva das volutas – e as que são mesmo gavinhas tridimensionais seriam espécies de rainhas antipáticas, equivocadas quanto à sua superioridade natural –, como um clube secreto, de senha inefável, como uma cabeleira descabelada.


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