18 anos, 20 histórias
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18 anos, 20 histórias Uma publicação de: CEDECA Interlagos Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Interlagos Rua Nossa Senhora de Nazaré, 51 - Cidade Dutra CEP 04805-100 – São Paulo/SP – Brasil. Tel/fax (11) 5666.9861 www.cedeca.inter.org.br/ cedeca.inter@uol.com.br
Coordenação Roberta Freitas Lemos Organização e Redação Final Fernanda Alves Vargas, Kátia Aparecida Gomes e Roberta Freitas Lemos Entrevistas Fernanda Alves Vargas e Kátia Aparecida Gomes Capa Mateus ‘Subverso’ Transcrição Gabriela Morales Galhardo, Graciela Alves Vargas, Juliana Boniconte e Laís Vieira de Campos Tradução Graciela Alves Vargas
Consultoria Fabio Silvestre da Silva Colaboração Adriana Silva Oliveira, Elânia Lima Silveira, Fernanda Bastos Lavarello, Francisco Helder Oliveira, Isabela Barbosa Costa, Ivone Souza Paula, Kátia Cristina dos Reis, Liliane Maria Alberto da Silva e Pérola Boudakian Neves. Edição Allan da Rosa e Mateus ‘Subverso’ (Edições Toró) Impressão Gráfica Maxprint Apoio Instituto Cultiva
São Paulo, novembro de 2009
Equipe CEDECA Interlagos Diretoria Colegiada CEDECA Interlagos Gestão 2006-2008 Beat-Wehrle (Tuto) Djalma Costa Francisco Helder de Oliveira Gestão 2009-2011 Fernanda Bastos Lavarello Francisco Helder Oliveira Ivone Souza Paula Núcleo de Incidência e Monitoramento de Políticas Roberta Freitas Lemos (coordenação) Daniel Adolpho Daltin Assis Elânia Lima Silveira Kátia Aparecida Gomes Kátia Cristina dos Reis Liliane Maria Alberto da Silva
Núcleo de Mobilização Comunitária Fernanda Alves Vargas (coordenação) Adriana Silva Oliveira Kleber Luis Gonçalves Paula Dias dos Santos Paulo Albano da Silva Antunes Rosimeire Moreira S. Araújo Tatiana Rodrigues Bento Wellington Neri da Silva (Tim) Ivone Colontonio Núcleo de Sustentabilidade Institucional Aderaldo Severino de Andrade Dilma Maria de Jesus Fernades Gildasio Januario de Souza Isabela Barbosa Costa Maria Aparecida Freitas Pérola Boudakian Neves Renata dos Santos Azevedo
O CEDECA Interlagos
O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Interlagos – CEDECA Interlagos – é uma organização não governamental fundada em 1999 por pessoas inconformadas com as constantes violações de direitos nas margens da cidade de São Paulo que compõe o extremo Sul do município. É especialmente nesta região que este centro desenvolve suas atividades. Marcada por ocupações desordenadas e políticas contraditórias de proteção dos mananciais, a região da Capela do Socorro e Parelheiros retrata as profundas desigualdades características do nosso país. As muitas violações de direitos são resistidas por uma população indignada de quase um milhão de pessoas. Temos pautado o diálogo constante, a partir da construção coletiva, com o Estado e com a sociedade civil organizada, privilegiando os espaços de participação popular. Nossa missão é: Defender os direitos humanos da criança e do adolescente por meio da proteção jurídico-social, na lógica da proteção integral e na ótica de políticas públicas com construção e participação popular
Iniciamos nossa atuação promovendo atividades diversas com adolescentes da região. Em seguida, passamos ao atendimento dos adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (MSE-MA) e ao desenvolvimento de ações de defesa em situações de violação de direitos na região. Durante sete anos seguimos este trajeto buscando inovar, estreitando relações e vínculos com as comunidades do entorno, nos aproximando de espaços de participação e buscando trabalhar em rede com foco na defesa de direitos. O ano de 2006 foi de grande importância para este Centro de Defesa que passa a reorganizarse internamente ampliando sua atuação de defesa de direitos. Tal decisão política é atravessada pelo rompimento dos convênios que tínhamos com o Governo na execução dos serviços de atendimento aos adolescentes que cumpriam as medidas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade. Ao interromper as parcerias referidas, o CEDECA Interlagos mantém sua coerência do compromisso com as crianças e adolescentes, avança no fortalecimento de sua essência enquanto Centro de Defesa e potencializa sua ação como ator do Sistema de Garantia de Direitos.
Deste modo, no ano de 2007, o CEDECA Interlagos manteve-se próximo aos adolescentes, jovens e famílias da região estabelecendo uma relação pautada pela defesa e pelo controle da efetivação dos seus direitos humanos ao exercer a Proteção Jurídico Social atuando com maior referência no Sistema de Garantia de Direitos1. Com isso, tivemos a oportunidade de desenvolver metodologias diferenciadas de mobilização popular que trazem em seu bojo a cultura, a ludicidade, o esporte e a contação de histórias aos debates acerca de direitos humanos de crianças e adolescentes, compreendendo-os enquanto protagonistas de suas histórias. Pudemos também atuar de forma ainda mais enfática na defesa de direitos humanos de crianças e adolescentes, por exemplo, a partir da produção e sistematização de conhecimento e tecnologia social que são trocadas em forma de formações e assessorias em torno de temáticas como: orçamento criança e adolescente, violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes, justiça juvenil, moradia, práticas alternativas de acompanhamento de adolescentes em cumprimento de medidas socio-educativas, cultura entre outras. Durante os 10 anos em que vem consolidando seu trabalho e sua atuação enquanto Centro de Defesa, o CEDECA Interlagos pôde firmar parcerias com organizações (governamentais ou não), com coletivos e movimentos sociais ampliando as possibilidades de alcance da efetivação de sua missão junto a pessoas que acreditam na construção de uma sociedade mais justa e digna para crianças e adolescentes. Mantemo-nos firmes na luta e acreditamos na potência humana para transformação social, reafirmando nossa bandeira pela efetivação de direitos humanos de crianças e adolescentes. O CEDECA Interlagos pauta suas ações pelo paradigma da proteção integral, preconizado por normativas nacionais e internacionais dos quais o Brasil é signatário. Acima de tudo o CEDECA Interlagos pauta suas ações no entendimento de que a voz e a opinião de crianças e adolescentes precisam ser ouvidas e acima de tudo valorizadas. É a partir desta história e destes entendimentos que dedicamos esta publicação às crianças e adolescentes do extremo sul da cidade de São Paulo e de todo o país.
CEDECA Interlagos 10 anos lutando, construindo e fortalecendo.
1 Sistema estratégico que articula os diversos sistemas operacionais para garantir a proteção integral e, portanto, a efetivação dos direitos humanos da Criança e do Adolescente. Compreende todos os atores que atuam na promoção, defesa e controle da efetivação dos direitos da criança e do adolescente. Resolução 113 de 2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Agradecimentos
Ao companheiro Fábio Silvestre da Silva que contribuiu desde a concepção desta obra. À Rosa Maria Ortiz por sua presença atuante e fraterna. À cada grupo, organização, serviço, Aldeia Tenonde Porá, Caminhando Núcleo de Educação e Ação Social, Colégio Humboldt, Colégio Santa Maria, Diretoria de Ensino Sul 3, Escola Estadual Herbert Baldus, Escola Estadual David Zeigger, Museu da Pessoa e Supervisão de Assistência Social da Capela do Socorro, que apoiaram esta iniciativa. A cada pessoa que de algum modo esteve envolvida nesta construção: Alexandre Carvalho, Andréa Ranieri, Andreas Bossert, Cristiane Pauperio, Cristiane Silva, Cris de Oliveira, Débora Lopes, Ellen Quandt, Jerá, Maria Nanci, Marisa Bontempo, Miriam Esteves, Nilceli, Renato Silva Moreira, Rodrigo Caldas (Branco), Samuel A. dos Santos, Sergio Silva, Sol, Sonia, Suseli Klein. Aos autores de cada reflexão realizada no último capítulo, que enriqueceram com o seu olhar esta publicação: Alan Amaro, Aldaíza Sposati, Ana Celina Bentes Hamoy, Bel Santos Mayer, Carlos Nicodemos, Claudio Hortêncio, Daphne, Eduardo Melo, Fábio Silvestre da Silva, Francisca Rodrigues de Oliveira Pini, Gloria Motta, Maria Ermínia Ciliberti, Jalusa Silva de Arruda, Juliana Pacheco, Kleber Luis Gonçalves da Silva, Lucia Toledo, Lumena Celi Teixeira, Lurdinha Trassi, Maria Cristina G.Vicentin, Maria Angela Santa Cruz, Marcos Barreto, Márcia Mara Ramos, Maykell Araujo Carvalho, Marilene Felinto, Maria das Graças de Jesus Xavier Vieira, Marcelo Neumann, Margarida Maria Marques, Maria Luiza Moura Oliveira, Marcos Vinicius Moura e Silva, Olívio Jekupé, Paulo Albano Antunes da Silva, Pedro Pereira, Rodrigo Gomes Pedroso, Robson Bonfim, Rosamar Maria Coelho, Rudá Ricci, Tuto B. Wehrle, Ubiratan de Paula Santos, Valmir Soares de Macedo, Valdênia Aparecida Paulino Lanfranchi, Vanice Aparecida Alves e Vera Lion. Ao Paulo Sérgio Pinheiro e Cecília Anicama pela oferta do artigo sobre o balanço, na América, dos 20 anos da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. À Associação Nacional de Centros de Defesa – ANCED pelas infindáveis discussões e possibilidades de troca. A edições Toró que com sua poética e profissionalismo foi parceira na editoração deste livro. E, especialmente, aos jovens, protagonistas, que com suas vozes construíram essa história: Amanda, Aparecida, Beatriz, Carolina, Cauãn, Denise, Elisabeth, Jorge, Laissa, Lila, Line, Luanda, Mariane, Maya, Mike, Paola, Rodrigo, Sofia.
Sumário Prefácio
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Apresentação
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20 histórias: 18 histórias de jovens que completaram 18 anos em julho de 2008...
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... e 2 histórias que não puderam ser contadas
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Algumas reflexões à luz dos direitos fundamentais preconizados na Convenção sobre os Direitos da Criança e no Estatuto da Criança e do Adolescente
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Prefácio
Fábio Silvestre da Silva
Ganha vez, finalmente, a voz dos filhos e filhas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)2, considerada um dos rebentos diletos da criação democrática no país, na medida em que a fecundação, a gravidez e o parto ocorreram em meio à formulação da Constituição Cidadã de 1988. Era uma vez que desejávamos há algum tempo, mas a idéia não tinha voz. Atendemos por muitos anos seguidos e numa Conferência da Criança a idéia se materializou. Entendemos ali que era preciso que os adolescentes nascidos em 1990, contassem por si suas próprias histórias. A decisão para a leitura das histórias contidas e contadas neste livro e suas análises lidas e relidas, nos leva a reconhecer os múltiplos caminhos que circunscrevem a questão dos direitos humanos de crianças e adolescentes, depois dos 20 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança e os 19 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Vários caminhos trilhados pelo Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA Interlagos) nasceram em razão de uma aposta ideológica por sentimentos humanitários, por necessidade de sua fundamentação ou simplesmente por curiosidade de saber o que garotos e garotas tinham a dizer sobre suas vidas e seus direitos. Nas trajetórias contadas pelas meninas e meninos fica nítido o acerto do CEDECA Interlagos ao pedir a voz dos adultos para explicar o que eles estavam dizendo. É, talvez, uma boa provocação ao mundo adultocêntrico (que só entendem quando os adultos falam), garantido que as vozes dos rebentos do ECA falam aos ouvidos dos jovens e as vozes adultas aos adultos. As histórias, em sua totalidade, nos fazem ouvir e perceber uma realidade ainda repleta de desafios para o cumprimento dos princípios das legislações internacionais, em especial a Convenção sobre os Direitos da Criança3, e da proteção integral preconizada pelo ECA. Contudo, é possível vislumbrar, com uma publicação desta natureza, no exercício do controle da efetivação das políticas, um futuro promissor, se forem observadas algumas prioridades na política de atendimento, como grita cada uma das histórias. Nosso desejo é que as vozes dos adolescentes e as análises aqui trazidas a público sejam úteis para transformar o quadro retratado. Que elas contribuam para o resgate da dignidade no trato com os direitos humanos de crianças e adolescentes e ajudem a produzir uma visão de futuro mais promissora do que aquela que parece destinado a tantos filhos do ECA, criando um Brasil com melhores condições de vida para todos com a absoluta prioridade. Agora é a sua vez de ler e ouvir as várias vozes. É a sua vez de entender o silêncio ensurdecedor das ausências públicas nas vidas de crianças e adolescentes neste Brasil. É a sua vez de reconhecer que eles são gente e têm direitos! 2 Lei Federal n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília, 1990. 3 Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança - Resolução n.º L. 44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 8
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Apresentação
Em julho de 2008, o Estatuto da Criança e do Adolescente (apelidado de ECA, por conta de suas iniciais) completou seus 18 anos de existência. O ECA é a lei4 que dispõe sobre a proteção integral de crianças e adolescentes, ou seja, diz sobre tudo o que deve ser garantido para que cada criança e adolescente possa se desenvolver plenamente. Esta lei, regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988. A Constituição Federal é a lei nacional maior, é um conjunto de normas que organiza a vida de país. Ela estabelece um Estado Democrático de Direito ao declarar os direitos e as garantias fundamentais da população, regular as relações entre governantes e governados e limitar os poderes. Seu artigo 227 diz que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A aprovação especialmente deste artigo em 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente dois anos depois, a partir do esforço coletivo e organizado do movimento da infância, revelou a disponibilidade da sociedade para a transformação de um paradigma, ou seja, a transformação de um jeito de olhar a criança e o adolescente. A legislação anterior se referia aos “menores”, como denominava aqueles que se encontravam na chamada “situação irregular” (como órfãos, vítimas de maus-tratos, meninos e meninas fugidos de casa ou em conflito com a lei), e que por sua vez eram “objeto de tutela”. Tais conquistas trazem um novo olhar em que todas as crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e devem ser protegidos integralmente pela família, pela sociedade e pelo Estado. Esta mudança no modo como se reconhece a criança e o adolescente foi fortemente influenciada por alguns documentos internacionais tendo como o principal deles a Convenção sobre os Direitos da Criança5 (CDC) adotada em Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de1989, aprovada no Congresso Nacional em 14 de setembro de 1990 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 19906.
4 Lei n° 8.069/90 de 13 de julho de 1990. 5 A Convenção sobre os Direitos da Criança dispõe em seu artigo 1° que “considera como criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”. Portanto, a CDC utiliza o termo criança para todos os sujeitos com 18 anos incompletos. 6 Decreto n° 99.710, de 21 de novembro de 1990 que promulga a Convenção dos Direitos da Criança. • • 18 anos, 20 histórias
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Ao assinar esse documento, o Brasil se comprometeu a adequar suas leis e políticas aos princípios e direitos garantidos nesta Convenção. São quatro os pilares que orientam a garantia de todos os direitos previstos: • • • •
a não discriminação, garantindo a todas as crianças, sem exceção, o direito de desenvolver seus potenciais; o interesse superior da criança que deve ser considerado prioritariamente em todas as ações e decisões tomadas que lhe digam respeito; a sobrevivência e desenvolvimento traduzidos na importância de acesso a serviços básicos e igualdade de oportunidades, e; a participação, que garante o direito de expressão de suas opiniões, assim como a consideração de seus pontos de vista, em tudo que diz respeito a garantia de seus direitos.
Em consonância com esses princípios da CDC, o paradigma da proteção integral garantido no ECA tem como pressuposto a criança e o adolescente como sujeitos de direito, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e sendo considerados como prioridade absoluta. Mas afinal, de quem estamos falando? No Brasil, quando falamos em criança, queremos dizer toda pessoa que tenha até 12 anos incompletos e quando falamos adolescente, queremos dizer as pessoas que tenha de 12 a 18 anos incompletos. Excepcionalmente, esta lei é aplicada para pessoas que tenham entre 18 e 21 anos (art.2 do ECA). No entanto, foi para proteger toda pessoa que tenha até 18 anos incompletos que ela foi criada. Após 20 anos da Constituição Federal, 19 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) e com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tendo completado 18 anos, as perguntas que nos fazíamos insistentemente eram: A mudança de paradigma havia sido consolidada e concretizada na vida de nossas crianças e adolescentes? Quais teriam sido as repercussões, em suas vidas, da luta pela implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Convenção sobre os Direitos da Criança? As respostas, com certeza são complexas e de muitas facetas. Apenas os próprios jovens poderiam respondê-las. Mas como fazer isso? Como uma reflexão acerca da efetivação deste projeto político poderia ser produzida a partir da história dos jovens? Ou ainda, como é que a história de vida de cada um desses adolescentes poderia contribuir para a efetivação de seus próprios direitos? A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer este Estado Democrático de Direito, incorporou a participação de toda a sociedade na elaboração, acompanhamento e controle das políticas públicas, ou seja, do conjunto de regras, programas, ações, benefícios e recursos voltados para promover os direitos 10
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do cidadão. No entanto, monitorar e avaliar a implementação da própria CDC e do ECA - o que significa olhar para a vida de nossas crianças e adolescentes e saber dizer se seus direitos tem sido garantidos e como isso tem sido feito - para de fato incidir politicamente, argumentar e propor transformações, no modo previsto para a garantia de direitos, tem sido um grande desafio no nosso país. A Convenção sobre os Direitos da Criança institui seu próprio sistema de monitoramento. Para isso, constituiu um Comitê para os Direitos da Criança que tem a composição de dez membros eleitos dos diferentes países que ratificaram a Convenção7. Dentre outras atribuições, este Comitê deve receber periodicamente um relatório de monitoramento do governo de cada país contando em que circunstâncias suas crianças e adolescentes vivem e dizendo dos desafios e dificuldades da implementação da Convenção. Um outro relatório produzido paralelamente pela sociedade civil também pode ser enviado, acompanhado ao do governo. Depois disso, o Comitê deve elaborar sugestões e recomendações baseadas nas informações que lhe foram prestadas. Como regra, o primeiro relatório sobre a implementação da CDC confeccionado deveria ser apresentado dois anos após a ratificação da CDC e posteriormente a cada cinco anos. No caso brasileiro, este primeiro relatório deveria ter sido apresentado pelo governo em 1992, apesar disso, foi entregue apenas em 2003, ou seja, 11 anos depois. E como o relatório da sociedade civil deve acompanhar o do governo, este também só pôde ser enviado naquele momento. Apesar de sabermos da confecção de um segundo relatório, nenhum outro foi enviado até o fechamento deste livro. O monitoramento das políticas públicas para a infância tem sido realizado pela sociedade civil que arduamente cobra ações efetivas de seus governantes, no entanto a sociedade tem recebido poucas respostas concretas, constatando-se ainda hoje uma infindável lista de violações de direitos. Foi ao olhar para os aniversários destas legislações e dos impactos que elas podem ter gerado na vida das crianças e adolescentes brasileiros que surgiu a idéia desse projeto, que mais do que monitorar e avaliar políticas públicas pretende transformar. Transformar ao fazer com que seus leitores: crianças, adolescentes, jovens e adultos se sintam e sejam assim reconhecidos, como co-responsáveis na luta pela garantia de seus direitos, somando forças na criação de um plano político para a implementação dessas normativas que possibilite a criação de um sistema de monitoramento que envolva a todos. Seu início teve como marco a comemoração dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, seu fim, o aniversário dos 20 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança. Mas acima de tudo, um projeto que teve como início, meio e fim, histórias de vida daqueles que nasceram com o ECA. No primeiro capítulo o leitor terá acesso a transcrição de uma roda de conversa ocorrida na sede do CEDECA Interlagos em julho de 2008 onde adolescentes expuseram questões cotidianas e dialogaram 7 Art. 43 da Convenção sobre os Direitos da Criança. • • 18 anos, 20 histórias
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sobre algumas possibilidades de controle da efetivação de direitos com a vice-presidente do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, a paraguaia Rosa Maria Ortiz. Encontrarão também um artigo gentilmente cedido por Paulo Sergio Pinheiro e Cecilia Anicama que faz um balanço dos 20 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança na América. No capítulo seguinte, desenham-se os relatos de 18 histórias de jovens nascidos em julho de 1990, junto com o ECA. No terceiro capítulo, são feitas reflexões acerca de 2 histórias que não puderam ser contadas. Por fim, no último e quarto capítulo, parceiros do CEDECA Interlagos foram convidados a refletir conosco sobre estas histórias contadas, a partir de uma análise à luz dos direitos fundamentais garantidos pelo ECA e pela CDC. Entendemos que é nesta junção que o monitoramento das políticas pode ser feito: análises técnicas que conversam com sistemas formais de monitoramento, mas que se baseiam, sobretudo, na vida das pessoas, em suas histórias, valorizando, de fato, a voz da criança e do adolescente. Convidamos você a ler as próximas páginas, conhecer um pouco sobre possíveis ações de controle e “escutar” essas histórias, que a partir do cotidiano refletem os debates surgidos na luta pela garantia de direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil, no retrato das tentativas de implementação e efetivação da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
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Capítulo 1
Controle da efetivação de direitos e mecanismos de monitoramento
O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Interlagos (CEDECA Interlagos) para marcar os 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente recebeu em sua sede Rosa Maria Ortiz, então vice-presidente do Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas – ONU, de nacionalidade paraguaia, e única representante latino-americana no Comitê. Rosa Maria Ortiz participou de uma roda de conversa com adolescentes promovida e realizada pelo CEDECA Interlagos. O evento reuniu mais de 100 pessoas, jovens em sua maioria, que se mostraram curiosos em entender os mecanismos de controle social e, especialmente, o processo de monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança, e mais ainda: entender como esse processo pode trazer benefícios concretos para a sua realidade e a de sua comunidade. Esta roda de conversa foi parte de uma série de atividades de Rosa Maria no Brasil organizadas pela Associação Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (ANCED) que agrega mais de trinta CEDECAs no Brasil. Entre os dias 08 e 17 de julho de 2008 foram programados encontros com diversas instâncias governamentais e atores da sociedade civil. Em São Paulo, esteve no final de sua visita ao Brasil. Historicamente, a Associação Nacional dos Centros de Defesa - ANCED cumpre um papel importante na avaliação dos mecanismos de proteção dos direitos da criança e do adolescente no Brasil à luz dos mecanismos internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU. Hoje é a ANCED que sistematiza as informações enviadas da sociedade civil dos diferentes estados e elabora o relatório alternativo em parceria com o Fórum Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança, a ser enviado junto ao relatório oficial do governo. O objetivo da iniciativa da ANCED de trazer Rosa Maria Ortiz para o Brasil e organizar esta série de atividades foi difundir o sistema de monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança no país, assim como permitir à Rosa Maria Ortiz e ao Comitê, um entendimento mais aprofundado da realidade das violações de direitos de crianças e adolescentes brasileiros. Acompanhada pela coordenação da ANCED, Rosa Maria Ortiz visitou a capital federal, Brasília, e mais três estados brasileiros: Pernambuco, Pará e São Paulo. • • 18 anos, 20 histórias
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Imersa na realidade de violação de direitos sofrida por milhares de crianças e adolescentes cotidianamente, discutiu diversas pautas em cada um dos lugares visitados. Nas próximas páginas, o leitor terá acesso a transcrição da roda de conversa com adolescentes realizada no CEDECA Interlagos. Nesta roda, jovens puderam falar e ouvir sobre questões tanto globais como regionais, históricas e cotidianas, dialéticas estas fundamentais para a defesa dos direitos da criança e do adolescente. Sua transcrição traz uma linguagem simples e acessível para apreender possibilidades concretas de controle da efetivação dos direitos de crianças e adolescentes. Em seguida o leitor encontrará um artigo gentilmente cedido com excluxividade à esta publicação no qual, cuidadosamente, Paulo Segio Pinheiro, brasileiro, Comissionado e Relator da Criança da Comissão interamericana de Direitos Humanos, OEA e ex- Expert Independente do Secretário-Geral da ONU para o estudo sobre violência contra a criança (2003-2007), e a advogada peruana especialista em direito internacional, Cecilia Anicama, fazem um balanço da implementação da Convenção sobre os Direitos da Criança nas Américas, em plena comemoração de seus 20 anos de existência.
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Roda de Conversa São Paulo, 17 de julho de 2008
Djalma Costa: Representante do CEDECA Interlagos e membro da coordenação da ANCED
Boa tarde. Quero agradecer mais uma vez a presença de todos e de todas. Foi bom vocês atenderem a esse convite, para a gente poder bater um papo agora à tarde com a Rosa Maria Ortiz a respeito do Monitoramento, da Convenção sobre os Direitos da Criança, de direitos no Brasil e da comunidade onde a gente vive. A Rosa Maria e eu chegamos esta noite em São Paulo. Começamos uma viagem pelo Brasil, de Brasília fomos pra Recife, de Recife fomos para o Pará e hoje aqui estamos. Em cada comunidade, em cada local que a gente passava, ela ouvia muito sobre a violação dos direitos de crianças e de adolescentes por este país afora. Casos. Cada caso mais esquisito e mais terrível do que o outro. Conhecemos e conversamos com as comunidades mais longínquas, mais distantes nesse país, como por exemplo, as comunidades nas margens do Rio Tapajós, lá no coração da Floresta Amazônica. Nós fomos juntos a Abaetetuba, aquela cidade do Pará que a mídia tem falado muito até hoje sobre a garota que ficou presa com homens adultos durante quase um mês, que vocês devem ter acompanhado pela televisão. E qual é o objetivo de tudo isso? O objetivo de tudo isso é divulgar a Convenção sobre os Direitos da Criança, que é um instrumento internacional assinado pelo Brasil e publicado por este país e pela ONU, pelo seu comitê internacional dos direitos da criança. O Brasil há 18 anos assinou esta Convenção dizendo que queria fazer parte desse acordo e queria cumprir tudo que estava escrito neste documento. Desde então a sociedade civil luta para que o Brasil cumpra aquilo que está escrito nesta Convenção, o que não está tão fácil. A ANCED (Associação Nacional dos Centros de Defesa) está agora escrevendo um relatório • • 18 anos, 20 histórias
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da sociedade civil e informando para o Comitê dos Direitos da Criança como é que o Brasil está trabalhando com esses direitos, como é que ele respeita esses direitos e como é que ele cumpre aquilo a que ele se comprometeu 18 anos atrás. É claro que a fotografia não é tão bonita e na medida que a Rosa Maria for conversando com vocês, vocês poderão perceber isso. Rosa é vice-presidente deste Comitê Internacional dos Direitos da Criança, na ONU. É uma zeladora, digamos assim, desta Convenção. É uma divulgadora da Convenção, e o papel dela no Brasil nesses dias, tem sido de: 1°: divulgar a Convenção; 2°: cobrar das autoridades brasileiras que tenham responsabilidade na implementação e efetivação destes direitos e; 3°: assessorar e sensibilizar a sociedade civil de que tudo só vai dar certo se esta sociedade, se este movimento quiser, se pressionar, se mobilizar, se estudar, se entender, e fazer com que o governo brasileiro cumpra as suas obrigações, àquilo a que se comprometeu. Por isso, esta tarde é muito feliz para o CEDECA Interlagos, que recebe hoje um público em sua grande maioria de jovens e adolescentes. E é com vocês mesmo que ela vem conversar. Os adultos precisam de sensibilização. Vocês jovens são os detentores desses direitos, e precisam entender, para que vocês mesmos façam a sua própria história, para que vocês mesmos sejam os batalhadores disso que nós estamos falando agora. A ANCED, que é a Associação Nacional dos Centros de Defesa em que hoje o CEDECA Interlagos é um dos coordenadores, está feliz com esse processo de mobilização e por onde passamos temos trabalhado bastante essas questões. E ela, Rosa Maria, paraguaia, é alguém que hoje está no Comitê, mas é alguém dos movimentos populares e sociais no Paraguai. Uma mulher que dedicou parte da sua vida em prol, não só da luta feminina, mas também dos movimentos populares e sociais e da luta política do Paraguai. Então é alguém que tem muito a dizer, e nós temos muito a compartilhar e a ouvi-la neste sentido. Antes de começar, só vamos anunciar e contar para vocês quem está presente: Casa Frei Reginaldo de Acolhida à Criança e ao Idoso - Cafraci; Comissão da Criança e Adolescente da Câmara Municipal de São Paulo; Subprefeitura da Capela do Socorro; SAS de Parelheiros - Supervisão de Assistência Social de Parelheiros; pesquisadores da ANCED; Associação Chácara do Conde; Fundação Abrinq; CEDECA Sapopemba; Agência de Cooperação Social Farol; Defensoria Pública do Estado de São Paulo; CEDECA Jd. Ângela; Instituto Pólis; Centro Comunitário Oscar Romero; Abrigo Auxiliadora; Educar para Crescer - Editora Abril, Coletivo FACA; MIMESIS, Instituto Latino-Americano 16
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das Nações Unidas para prevenção de delito e tratamento de delinqüente- Ilanud, Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo; Conselho Tutelar do Grajaú; Centro Cultural da Juventude; Projeto Meninos e Meninas de rua de Guarulhos; Instituto Fonte; Projetos Meninos e Meninas de rua de Diadema; os Intercambistas do Programa Conectas de Direitos Humanos de Angola e Moçambique; Rancho do Sr. – O Exército da Salvação; Núcleo de Criança e Adolescente da PUC de São Paulo; o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; CEDECA Paulo Freire da Brasilândia; Casa de Acolhida Joselito Lopes Martins; Movimento Enraizados e os trabalhadores do CEDECA Interlagos. Bom, agora vou deixar para ela conversar mais com vocês. Muito obrigado. É com você.
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Rosa Maria Ortiz1
Boa Tarde a todos. Em primeiro lugar agradeço por estar aqui e pelo convite. Desculpas por não falar português, ainda. Mas consigo compreender bastante. Sou de um país vizinho – Paraguai - onde se escuta muito sobre vocês. O importante é que nos entendamos: que eu entenda vocês e que vocês me entendam. Estou aqui como vice-presidente do Comitê de Direitos da Criança das Nações Unidas. É um pouco difícil falar diante de um público tão jovem, de um assunto tão chato, como parece as Nações Unidas. Falar de algo como as Nações Unidas não parece ser tão interessante. Estive pensando então, em como poderia falar de algo que esteja mais próximo de vocês, e pensei na FIFA (Federação Internacional de Futebol). A FIFA, onde existem regras para todas as nações que participam do campeonato mundial de futebol. Dessa maneira, as Nações Unidas são algo parecido, onde os Estados entraram em acordo de regras para viver em paz. Essas regras foram feitas depois de duas grandes guerras mundiais, que produziram milhões de mortos e milhões de vítimas: adultos, idosos e crianças. Logo, parecia que tinham que buscar alguma forma de parar, pois assim a humanidade não poderia continuar. Tinham que buscar algumas regras, regras 1 As falas de Rosa Maria Ortiz foram traduzidas do espanhol para o português. • • 18 anos, 20 histórias
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de jogo, para viver em paz. E quais teriam que ser essas regras no jogo? Isso era algo que todos deveriam concordar, e o principal era construir algo que permitisse viver com dignidade, que correspondesse ao que as pessoas precisassem para viver, não só economicamente, não só comida, mas também o afeto, família, uma comunidade, saúde, lazer. Então, foi feito esse trabalho de verificar o que era essencial para a vida do ser humano. Quais seriam as necessidades que não poderiam deixar de ser olhadas? Fizeram então, uma lista dessas necessidades inadiáveis e isso se transformou nos Direitos Humanos, que significa o mínimo que o ser humano precisa para ter uma vida harmônica, que permita nos respeitarmos e viver em paz. Essa lista saiu no primeiro documento, um primeiro regulamento mundial, que foi a Declaração dos Direitos Humanos. E muito bem, a partir desta declaração, outros instrumentos começaram a ser feitos, ou seja, a declaração deu margem para que os países a tivessem como um marco de referência para suas leis, suas instituições, mas ainda não obrigava os Estados. Foi então que decidiram dar um passo maior, fazendo acordos, convênios, convenções, onde concordariam em cumprir esses direitos: nos ajudam a cumpri-los, para não ser uma declaração de boas intenções e sim obrigações para nossos Estados. E assim surgiram várias convenções. Convenções que juntavam àqueles direitos civis, políticos e aqueles direitos econômicos, sociais, culturais. Cada país tinha a obrigação de respeitar esses direitos para seus cidadãos, e havia um sistema de controle, mas para os meninos e meninas ainda parecia que esses direitos eram somente para adultos. Suas necessidades não eram suficientemente atendidas ou não eram vistas. Parecia que só quando fossem adultos poderiam gozar desses Direitos Humanos, como se não fossem totalmente humanos. Sendo assim, as Nações Unidas, ou seja, os países, decidiram que uma Convenção sobre os Direitos das Crianças fazia falta para entender quais as necessidades básicas do ser humano desde pequenos, ou seja, desde a concepção, no nascimento, na idade de ir pra creche, escola, na adolescência e juventude. Em nenhum outro período o ser humano muda tanto como dos 0 aos 18 anos. Continuamente suas necessidades vão mudando, portanto, essa Convenção teria que atender todas estas necessidades. Assim foi dada à luz a esta Convenção. Em 1989. Justo entre 1989-1990 toda a região da América do Sul estava em um momento em que faziam uma opção de vida pelo movimento democrático. Vários países daqui do sul: Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil acabavam de terminar duras ditaduras. Duras ditaduras. Não há ditaduras brandas. Porém, o povo havia dito: - Basta de governos militares, queremos uma democracia! E democracia sem direitos humanos não existe. Os Direitos humanos fazem parte da democracia! Mais acima, na América Central, terminavam muitas guerras civis dentro dos países: El Salvador, Nicarágua, Guatemala. E esses países também fizeram uma opção pela vida democrática. 18
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Assim sendo, a Convenção sobre os Direitos da Criança vinha justo no momento em que queríamos aprender a viver em Democracia. E o que seria melhor do que começar pelas crianças, respeitando os direitos para que esta Democracia fosse crescendo com eles? Assim, para muitos países, essa Convenção foi um marco de referência chave para sua vida democrática, e continua sendo. O Brasil possui o instrumento: Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA. Desde que ano? 1990. Justo no momento em que nasce a Convenção, o Brasil adequou sua legislação à Convenção. Pois esse é o primeiro passo que os Estados tem que dar quando aprovam essa Convenção: ratificam e convertem em lei no seu país e se comprometem frente aos demais países a cumpri-la. Sabemos que isso não se faz de um dia para o outro, mas deve-se organizar o país para que estes direitos sejam cumpridos. O Brasil foi o primeiro país, na América Latina, que teve sua legislação adequada à Convenção. Digo parabéns e obrigado, porque não foi bom só para os brasileiros e brasileiras, mas sim para toda a América Latina. Eu, que percorro todas as regiões, posso dizer que desde o México até a Argentina, o ECA foi uma referência para as legislações, para a adequação legal à Convenção. Cada uma é particular, nenhuma é igual a outra, mas em grandes partes são muito parecidas a este Estatuto. Portanto, o Brasil cumpriu um papel muito importante de indicar aos latino-americanos um caminho, uma legislação respeitosa dos direitos da criança. Passaram-se 19 anos que a Convenção foi criada e 18 anos que o ECA foi criado. Esse é o momento de avaliar o quanto estão aplicando essa lei e, sobretudo de cuidar da mesma, para não retroceder. Porque em Direitos Humanos não é permitido retroceder, ou por acaso, pensam que seria bom passar de 8 horas de trabalho a 15 horas de trabalho? Ninguém permitiria, não é? É uma conquista. O direito humano é uma conquista e é um limite para que o Estado respeite e não retroceda. É um limite para os Estados que tem que respeitar, e ao mesmo tempo é um horizonte que nos indica para onde devemos ir. Quando digo Estado, digo: sociedade, governo local, governo estadual, governo federal, militares, polícias, civis, autoridades, parlamento, poder judiciário. Eu felicito vocês pelo ECA e pelas muitas instituições que foram criadas graças ao Estatuto: as varas da infância, os tribunais, as defensorias, e claro, os Conselhos Tutelares, Conselhos de Direitos da Criança e Adolescente nos três níveis; políticas e programas também que a própria sociedade foi criando e muitas outras instituições como o CEDECA. Mas ainda fica uma sensação de que ainda há o que melhorar. Bom, então os Estados que ratificaram esta Convenção também se deram conta de que deveriam criar mecanismos que assegurassem que ela fosse pra frente e sabiam que isso não seria fácil. Houve muita dificuldade para criar a Convenção sobre os Direitos da Criança e as pessoas pensavam que jamais sairia. Da mesma maneira que ainda não conseguimos fazer uma Convenção para o povo indígena, também • • 18 anos, 20 histórias
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pensava-se assim das crianças e adolescentes, e de repente saiu, e foi ainda o instrumento ratificado mais rapidamente e pelo maior número de países. Nenhum instrumento internacional de Direitos Humanos tem o acordo de tantos Estados. E sabendo que era difícil, os Estados disseram: “Temos que criar um instrumento que nos vigie, monitore, que nos controle, que veja nossos avanços e não nos permita retroceder, nos ajudando a avançar sempre. O que pode ser tal instrumento?” Então pensaram: Vamos criar um comitê de pessoas de diversas regiões do mundo, pessoas que conheçam os direitos da criança e que vigie nossos Estados através de um sistema. Qual sistema? Como podemos fazer para que este comitê integrado por essas pessoas, da Ásia, África, América Latina, do norte, do Canadá, como podemos fazer para que vigiem? Então foi criado um sistema, onde cada Estado teria que apresentar um relatório ao Comitê a cada 5 anos, e o primeiro seria aos 2 anos. Vocês conhecem o boletim escolar? O boletim onde está matemática, ciência sociais, história, geografia? Bom, desta mesma maneira, o comitê criou uma lista de temas para controlar os Estados. Logo, aos 2 anos, cada Estado teria que apresentar um relatório e o Comitê verificaria se já existiam as leis, se foram criadas as varas de infância, se existem varas suficientes ou ainda faltam, se respeita o direto à participação das crianças, como é a mortalidade infantil, a educação, o ensino médio, etc. Tudo o que tem a ver com as crianças! Quantas crianças estão em instituições, porque vivem em instituições e não com a família, que programas existem para apoiar a família. Tudo isto está no “boletim”. Com isso, ao apresentar os relatórios, os Estados recebem do Comitê algumas qualificações sobre o que estão fazendo bem e recomendações sobre o que devem melhorar. Não em números, mas como Recomendações. Para que este Comitê possa cumprir bem sua missão, não pode escutar apenas o governo. O governo sempre vai dizer o que faz de positivo e esconderá o que falta. Por isso, para o Comitê é muito importante receber relatórios das organizações e da sociedade. Um relatório paralelo, alternativo ao governo. O Comitê convida a sociedade civil a escrever seu relatório, sendo um resultado de ampla consulta, desde as necessidades das crianças antes de nascer, ao nascer, as vacinas, creches e todas as necessidades até os 18 anos, quais direitos foram cumpridos e quais faltam, que programas faltam, que leis faltam, que políticas faltam. O Comitê também convida a sociedade civil a produzir parte das informações do relatório produzido pelo Estado. Porque, muitas vezes, a sociedade civil sabe mais do que o Estado, de quais são suas necessidades. E é importante que essas necessidades também estejam no relatório do Estado. Mas o que aconteceu com o Brasil? O Brasil, que foi o primeiro que fez a primeira tarefa, a de fazer seu Estatuto, não apresentou seu 20
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relatório nem aos 2 anos, nem aos 4, nem aos 6, nem aos 8, nem aos 10. Aos 12 anos, com muito atraso, apresentou seu primeiro relatório, quando outros países já estavam no terceiro relatório. E isso é colocado contra o Estado Brasileiro e uma sociedade civil que não se inteirou que essa era uma responsabilidade, e não empurrou o Governo para que cumprisse com essa responsabilidade. Talvez porque não entendessem para que isso servia. Então, minha visita aqui, hoje, é para explicar um pouquinho para que serve isso. Porque se não entendermos pra que serve, para que será usado, então para que fazê-lo? Ao longo dos 18 anos da Convenção, vemos a partir do comitê, que aqueles países que mandam os relatórios, vão aprendendo a fazê-lo cada vez melhor. O relatório não é só para que o Comitê se contente e possa fazer suas recomendações. Então, porque é importante fazer um relatório? Em primeiro lugar, é importante para o Brasil, para conhecer o que está sendo feito e o que falta ser feito, para cumprir com a Convenção. Esta é a diferença entre o Estatuto e a Convenção. O Estatuto não está calcado na Convenção. A Convenção que está apoiando o Estatuto, e faz com que o Brasil faça parte do “campeonato mundial” dos Direitos Humanos. A Convenção obriga o Brasil a cumprí-la, a cumprir com o ECA, que é o que vocês estão precisando: que as políticas existam, que as instituições sejam fortes, que tenham os recursos humanos e financeiros necessários. O relatório é uma oportunidade para fazer um diagnóstico, para ver como está a equipe do Brasil, para ver como está todo o Brasil e não só algumas cidades, para ver como são cumpridos os princípios de Direitos Humanos. O primeiro princípio é que Direitos Humanos é para todos, e não para um só setor, incluindo populações à margem das políticas, mais afastadas, com deficiências, indígenas, quilombolas, para todos. Não se pode legislar só para um setor e esquecer o outro, porque todos têm os mesmos direitos. A não-discriminação é o segundo princípio, buscando políticas que apontem para o fim da mesma, para que todos possam gozar de todos os direitos. O princípio do interesse superior da criança é chamado por vocês de prioridade absoluta. Este é o Artigo 3° da Convenção. As crianças e os adolescentes devem estar em primeiro lugar nas políticas, no orçamento. Deve-se observar a situação das crianças como em um caso de emergência. Primeiro as crianças nas políticas, primeiro as crianças nos orçamentos. Primeiro as crianças. Mas se não há consciência disso, é difícil que exista então uma luta por esse princípio. Quanto às crianças podem falar com liberdade nas escolas, se socializarem? Fazer essas maravilhas? Quanto um juiz escuta as crianças e os adolescentes? Quanto a polícia escuta? O que faz a polícia para escutar as crianças? O que faz a professora, os pais, as paróquias? Os governos locais, Conselhos Tutelares, Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente escutam? E como as crianças se • • 18 anos, 20 histórias
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organizam pra fazer com que suas vozes sejam firmemente escutadas, para serem inseridas nas políticas? Esse é o quarto princípio desta Convenção, a participação. O comitê mede nestes relatórios quanto é que está sendo cumprido destes princípios, quanto se cumpre o princípio da universalidade de direitos, da não discriminação, da prioridade absoluta para as crianças, e o princípio da participação, escutar a voz das crianças, meninos e meninas. Quanto disso é cumprido? São todos princípios que também estão nas outras Convenções, ou seja, não é uma invenção da Convenção sobre os Direitos da Criança. É nada mais do que adequar os princípios destes instrumentos à população de 0 a 18 anos. Se vocês participarem na elaboração dos relatórios sobre como estão sendo cumpridos os direitos das crianças no Brasil, façam com que chegue ao Comitê que se reúne em Genebra três meses por ano: em Janeiro, Maio e Setembro. Assim, nós do Comitê vamos poder devolver recomendações para seu País. E para que servem as recomendações? Assim como existe a Convenção, as recomendações são uma referência importante que os Estados não podem desconhecer. Quando, por algum motivo, é feita alguma demanda ao Estado, a Convenção pode ser utilizada, bem como o Estatuto e as recomendações que o Comitê está fazendo para o Brasil, ou seja, servem como instrumentos para a luta de vocês pelos direitos. Serve para isto, mas não podemos fazer boas recomendações ao Brasil se não recebermos relatórios claros que nos indique como está indo o cumprimento dos direitos. O Estado tem que voltar a fazer o próximo relatório, e ao fazê-lo tem que prestar contas das recomendações. Por exemplo, vou relatar três recomendações que o Comitê fez para o Brasil: Na primeira, dissemos que a Subsecretaria da Criança, que está junto ao CONANDA como cabeça do sistema de proteção dos direitos, não tem força suficiente, nem visibilidade para realmente impulsionar os direitos das crianças em todo o país. É uma Subsecretaria da Secretaria dos Direitos Humanos, e não a vemos com força suficiente. Portanto, o Comitê recomendou ao Brasil, elevá-la a Secretaria para que possa ter mais força. Por exemplo, agora em Brasília, o Estatuto fez 18 anos com grandes celebrações, mas a Subsecretaria não falou, nem o CONANDA, que são as cabeças do sistema de proteção. Eles não apareciam e nem sequer estavam no palco, estavam no público. Quando eu perguntei à subsecretária porque o CONANDA e a Subsecretaria não estavam, ela me disse: não posso estar como subsecretária se já está o Ministro. Então, é importante que seja uma secretaria nacional, para que assim possa ser identificada por todos, junto ao CONANDA, como cabeças que estão impulsionando os programas que todo o sistema descentralizado necessita. 22
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Essa é uma recomendação que está sendo trabalhada. Nesta visita eu falei com Carmem de Oliveira, subsecretária, um pouco com o ministro, Paulo Vannuchi, e com o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores), que me disseram que estão analisando, e possivelmente vão fazer um Decreto para que a Subsecretaria passe a categoria de Secretaria. Uma segunda recomendação que o Comitê fez é que os níveis de coordenação não estavam suficientemente fortalecidos. Há muitas iniciativas, mas não há uma articulação. A polícia anda por seu lado, o Conselho Tutelar por outro, com pouquíssimos recursos, o Conselho de Direitos não tem muita visibilidade, os atores não se conhecem, tanto em nível horizontal como vertical. Portanto, há necessidade de buscar formas de maior articulação para que a equipe do Brasil, que são todas as autoridades e a sociedade civil, possa se conhecer e trabalhar melhor na Convenção. E por último vou mencionar sobre outra recomendação, uma terceira. No Brasil não vemos, como Comitê, que exista uma instituição independente de Defesa dos Direitos Humanos. Existe o Ministério Público, que é o orgulho do Brasil, mas desde lá vemos que o Ministério Público não tem a independência, a autonomia para que realmente possa defender os Direitos Humanos, receber e atender as denúncias quando um cidadão ou cidadã está sofrendo violação de seus direitos por parte do Estado. Bom, finalizo aqui, para continuarmos conversando. Muito obrigado.
Debate (Neste momento, os participantes da roda de conversa colocaram suas posições e questões, estabelecendo um diálogo com Rosa Maria Ortiz. Foram blocos de perguntas e comentários da platéia seguidas de respostas de Rosa Maria Ortiz)
Participantes Eu estou achando, pelo que eu ouvi, que é um relatório não oficial. Que as pessoas não estão sabendo mesmo o que está se passando com os nossos adolescentes. Eu queria saber o porquê desses dois relatórios. Queria saber sobre esses relatórios que devem ser feitos, e queria saber sobre a eficiência deste retorno. Quem dá esse retorno? Como você falou, faz alguns anos que a gente não envia esse relatório e sendo enviado, qual o retorno que é dado e por quem é dado? Porque queria saber se essa pessoa que dá esse retorno como uma recomendação para o país, conhece essa realidade que, às vezes, é micro, porque • • 18 anos, 20 histórias
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a gente tem uma realidade que é aqui, da Cidade Dutra e dos bairros adjacentes em que o CEDECA Interlagos trabalha. Como é que eles conhecem essa realidade para saber que tipo de retorno enviar? E mesmo que esse retorno seja numa instância maior, como é que isso é trabalhado, que tipo de resposta é dada para que seja realmente efetivo, que não seja também algo vago, respostas muito abertas, como: “Vocês precisam melhorar o nível de mortalidade infantil”, isso pra mim é muito vago. Eu queria saber que medidas práticas são dadas e baseadas em quê? Melhorar as condições de vida de crianças e adolescentes do Brasil é cada vez mais difícil. Temos uma política social excludente, aliada a uma política econômica pautada pela ampliação das riquezas dos que já são mais ricos, e a permanência dos que não tem nada, cada vez em condições mais difíceis. Como pensar em ações articuladas em uma estrutura federativa, garantindo ações que de fato possam promover sanções? Como fazer o país avançar diante das suas escolhas excludentes e conseguir articular e integrar o grande número de organizações no país que caminham também paralelamente, quando da necessidade de uma união de esforços para além dos seus desejos, para além do seu presente? Pensando também que a criança e adolescente precisam sim não só de uma visão de futuro, mas de uma visão e de uma atuação para o presente, porque a exclusão acontece no momento imediato. Quando falou dos relatórios, falou do relatório governamental em âmbito nacional. As organizações civis, em geral, não têm possibilidade de gerar um relatório nacional, já que a gente não teve nem organização em tantos anos pra elaborar um relatório assim. Eu queria saber se no âmbito da ONU, o recebimento de um relatório regional, inclusive visto o Brasil pelas suas diferenças regionais, é recebido da mesma forma. Que atenção ele recebe e que retorno a gente recebe disso no âmbito regional, visto que a nossa capacidade organizativa atual não permite um relatório nacional? Quem vive no Brasil sabe que o Governo, muitas vezes, faz leis devido a pressões externas, e a gente aqui no Brasil grita, grita, grita e o Governo não ouve. Eu queria saber se a ONU dispõe de mecanismos para cobrar dos governos como no caso do relatório, em que o Brasil ficou tantos anos sem apresentá-lo? A ONU tem um mecanismo pra cobrar dos países?
Rosa Maria Ortiz
São perguntas muito pesadas. Bom, queridos, queridas, companheiros: Porque dois relatórios? Porque como disse, o relatório apresentado pelo Governo às vezes não reflete o mesmo que a sociedade civil sente. 24
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O Comitê mantém um diálogo com representantes governamentais e pedimos um detalhamento de todos os aspectos e vemos o que está bem e o que falta melhorar. Antes de nos encontrarmos com o Governo, temos um encontro com representantes da sociedade civil três meses antes, que já devem ter nos mandado seus relatórios, e fazemos com eles o repasse de informações do que questionaremos ao Governo, e com essa informação da sociedade civil nós estaremos mais preparados para o diálogo com o Governo. Não recebemos só o relatório governamental e da sociedade civil, também recebemos relatórios de todos organismos das Nações Unidas que trabalham aqui: Unicef 2, Unesco3, OMS4 e também relatórios das visitas feitas em função, por exemplo, de denúncias, em relação a torturas, algo contra populações indígenas, etc. Cada relator que visita o país diante de uma denúncia, faz seu relatório. Assim, teremos todas essas informações já digeridas quando formos conversar com o Governo, e é por isso que precisamos da participação da sociedade civil, pois seria injusto para os cidadãos que um Comitê que vai vigiar o cumprimento dos direitos só escute ao Governo. Isso não seria democrático, porque nenhum Governo se castiga, nenhum Governo quer mostrar o que faz de errado, por isso também é importante ter o relatório da sociedade civil. Depois responderei como a sociedade civil fará semelhante trabalho, mas pelo menos fica claro que, para o Comitê, não se pode somente escutar o Governo, precisamos também escutar as organizações da sociedade civil. Por isso esses dois relatórios. Em relação à eficiência do retorno e como trabalhar. Claro que o retorno de todo trabalho realizado não será eficiente se ninguém conhecer e se ninguém trabalhar com as recomendações do Comitê. Assim, temos que saber a quem pertence o quê: o Comitê deve estudar os relatórios, dialogar com a sociedade civil e com o governo e possuir todos os relatórios dos devidos relatores; a sociedade civil deve fazer este trabalho de consulta, para saber o que vai ser informado ao Comitê e identificar os problemas principais. Depois explicarei como fazê-lo. E então o Comitê faz suas recomendações, que estão aqui nesta publicação5, mas também podemos dar o endereço eletrônico onde podem encontrá-las, o site do Escritório do Alto Comissionado de Direitos Humanos6. Todos levarão este documento.
2 Fundo das Nações Unidas para Infância 3 Agência especializada das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura 4 Organização Mundial da Saúde 5 Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, Publicação de Terre dês Hommes Holanda, Escritório Nacional Brasil, Apoio Anced – Associação Nacional de Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, São Paulo: Março de 2007. Disponível em www.cedecainter.org.br 6 http://www.ohchr.org/SP/Pages/WelcomePage.aspx • • 18 anos, 20 histórias
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Claro que pode ser entediante para uma única pessoa ler essas recomendações, mas, por exemplo, para uma pessoa que está precisando lutar pela existência de menos crianças em instituições, será feita a busca no documento por: ambiente familiar, cuidado alternativo, etc. Aqui, o Comitê recomenda várias medidas ao Brasil e utilizaremos isso para pedir que essas medidas sejam aplicadas. O Comitê é como um espelho, vai refletir o que recebe. Se recebermos uma informação adequada sobre os problemas, vamos fazer recomendações adequadas. Se recebermos poucas informações, haverá então recomendações vagas, gerais: “melhorem o número de crianças nas escolas, diminuam a mortalidade infantil”, mas se recebermos relatórios que indiquem o que ocorreu nos últimos anos, das porcentagens, etc, poderemos dizer que no próximo relatório prestem contas a respeito desta porcentagem e nos informe o que fizeram para baixá-la. Tudo isso depende do que recebemos. Nós não podemos saber mais do Brasil do que vocês, este é um trabalho em conjunto. Cada um faz sua parte. O jovem perguntou que se a sociedade civil não tem a possibilidade de elaborar um relatório como o exigido, se poderia elaborar um relatório regional. Não é que se solicita algo nacional. Aqui, por exemplo, seria local, neste lugar, parte, em São Paulo. O que for feito de diagnóstico, tem que ser somado aos outros lugares para que vire estadual. E que então, se somará com outros estaduais e terão que dar conta de um diagnóstico nacional, e o conjunto de tudo isso é o que vai pra Genebra. Isso tem relação com como a sociedade civil se organiza através, por exemplo, da ANCED. Na primeira vez que o Brasil se apresentou, a ANCED fez um ótimo relatório. Já, quando perguntávamos ao governo, nos informavam de dados grandes, de nível nacional, mas não de quais as regiões sofriam mais discriminação, violação de direitos, etc. O informe da sociedade civil era de melhor qualidade comparada ao do governo. Por isso recomendamos que o governo melhorasse a qualidade de seus relatórios. O senhor falou de como pensar em ações articuladas e se há sansões, e como fazer o país avançar. A palavra articulação é chave, por isso gosto do exemplo do futebol, que me inspirou ontem aqui no Brasil. Como pode uma equipe funcionar se não estiver articulada? Não é fácil aplicar esta Convenção. Hoje perguntei sobre qual o trabalho feito junto à polícia. A polícia não trabalha Direitos Humanos, é reativa, a polícia é repressora, mas se não incluirmos a polícia, algo faltará. É um desafio pensar em como articular com a polícia para que respeitem os direitos das crianças e sabemos bem que isto é um problema, pois existe execução de crianças e adolescentes, há violação tremenda e privação de liberdade, ou seja, é um desafio. Temos que incluir a polícia em nosso trabalho, não digo que os convidemos agora, mas há que se pensar em uma estratégia. Como um país pode se organizar para cumprir com os Direitos Humanos, se é a polícia que está controlando tudo? Há algo que não está certo, e isso é um problema que existe em todos os países da América Latina e do mundo. 26
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Em alguns países como a Suécia, - não quero dizer que só a Suécia é um país onde se cumpram os direitos da criança - por exemplo, quando adotou a Convenção sobre os Direitos da Criança, precisou de um período para planejar como a incluiriam. No caso da polícia, foram realizadas provas, desde o comandante até o último cabo. Quem não sabia sobre Direitos da Criança não poderia estar no cargo. É só um exemplo, pois de que nos serve fazer todos os esforços pelos direitos das crianças, sendo que, por outro lado, a polícia está fazendo o que quer? E mesmo o poder judiciário que, muitas vezes, é mais lento nos processos de Direitos Humanos. Tive oportunidade de visitar altíssimas autoridades que, não só no Brasil, agiam como se nunca tivessem entendido do que se tratavam os direitos da criança. Por isso é importante ter um terceiro, que seria o Comitê, que obriga a fazer o que não está sendo feito. Se o relatório é bem feito, essas autoridades que nunca escutaram ou nunca fizeram sua tarefa com responsabilidade e não levaram a sério esses direitos, terão que se juntar com outros e ver o que lhes pertence, o que não estão cumprindo e o que estão cumprindo. Ou seja, o relatório serve para articular ou para obrigar a fazer o que devia ter sido feito, que é sentar um na frente do outro, e dizer: - Isto me pertence, isso pertence a você, isso não posso, não tenho recursos suficientes, vamos juntos pedir recursos para poder fazer. Mas não passar pra frente e dizer: - Eu fiz o meu, e agora faça o seu. Por exemplo, neste percurso, escutei denúncias de crianças indígenas que há quatro ou cinco anos morrem de hepatite no Vale do Javari 7, então fomos falar com a autoridade mais alta do Ministério Público. O que acontece é que já passaram três ajustes de conduta, passaram três quatro, cinco anos, e as crianças continuam morrendo, não foram vacinadas. Sendo que com uma vacina essa mortalidade pode acabar. Foi dito: “Já fizemos três ajustes de conduta e não deu resultado. Então passamos ao Poder Judiciário, mas esse pode demorar de seis a sete anos e, enquanto isso, continuarão morrendo. Nós somos a mais alta autoridade dos Direitos Humanos, fizemos o que podíamos e agora o assunto fica pra vocês, nas organizações internacionais”. Isso é passar a bola e não proteger os direitos, isso não poderia ser dito. 7 O Vale do Javari, situado no Estado de Amazonas, na região de fronteira do Brasil com o Peru, engloba um território de 8.544,444 hectares de área intacta de reserva indígena com cerca de 3.600 indígenas. Nos últimos 18 anos, tal população sofreu com epidemias de Cólera, Coqueluche, Malária tipo Falciparum, Vivax, entre outras. Atualmente, os maiores índices de doenças tem sido de Hepatite e Tuberculose. Crianças e adultos vem morrendo de hepatite A, B, C e D, tuberculose, meningite, além de outras doenças que não foram identificadas e o estado brasileiro não toma as providências necessárias para garantir a saúde destas pessoas. • • 18 anos, 20 histórias
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Então, na redação do relatório a articulação é obrigatória, a não ser que seja mal feito, como foi, então se contrata um consultor para fazê-lo: “Por favor, nos faça o relatório”. E isso não serve pra nada. Só serve se obriga que sentem juntos para discutir o que está sendo feito, o que avançou e o que nos falta. Ou seja, o relatório tem sentido se for usado e bem feito, e essa é a idéia de minha visita. É um convite para que este relatório realmente cumpra com as necessidades, que é ajudar a articular as partes, ter um diagnóstico em comum, todos os atores colocando a camiseta do Brasil e vendo como melhorar. Ainda foi dito que o governo faz as leis, que as pessoas gritam e o governo não escuta. Que mecanismos existem para poder cobrar dos Estados? Este é um mecanismo suave. Os outros Comitês das outras Convenções que tem também os relatórios como sistema de monitoramento, tem ainda a possibilidade de fazer uma denúncia individual e não precisam esperar 5 anos para que a denúncia apareça no relatório. Como diante de um caso emblemático, onde as instâncias internacionais votaram em fazer uma denúncia ao Comitê. Assim como fazem a Comissão Interamericana de Direitos Humanos à Corte Interamericana. Mas por algum motivo, os Estados que fizeram esta Convenção não quiseram dar essa possibilidade ao Comitê. Provavelmente, porque como eram “só crianças”, não tinham interesse que o Comitê escutasse denúncias individuais. Mas neste momento, com 18 anos de Convenção, estão querendo mudar, e estão elaborando uma proposta de um protocolo adicional para que o Comitê também possa receber denúncias, pois aparece como uma discriminação contra a criança, já que todos os Comitês têm essa possibilidade menos o Comitê de Direitos da Criança. Mas isso não quer dizer que não existam mecanismos de exigibilidade. Fazer o relatório já é um, mas há que exigir que o façam, para que possa ser cumprido. No entanto, se existir um caso de violação dos direitos da criança que queira denunciar internacionalmente, pode-se fazer a denúncia aos outros Comitês, pois crianças são humanos e isto serve para os Direitos Humanos de todas as pessoas, incluindo as crianças. Então, se for um caso de tortura seria um comitê, para racismo outro, existem outros comitês que vigiam todos os direitos políticos e civis, e os que vigiam todos os direitos econômicos, sociais e culturais. Isso quer dizer que se pode fazer a denúncia individual, talvez não ao Comitê da Criança, mas a outros Comitês. Tão pouco se deve pensar que fazer esta denúncia resolveria este caso imediatamente, já que ainda leva de cinco a seis anos até que o país seja condenado por um caso. Mas, é importante para um caso emblemático, paradigmático, ser recebido no comitê. É importante que o Estado receba uma condenação para aprender e mudar. Mas para essa criança a resposta não virá tão rápida. Ainda existem outros mecanismos para exigir do Estado, como a visita dos relatores, quando há, por exemplo, violações como torturas. 28
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O Brasil recebeu a visita de alguns relatores. É necessário estar atento, fazer parte de um movimento que conheça as condições para pedir que um relator venha: um relator de educação, de saúde, moradia, povos indígenas, etc., Estas são pessoas nomeadas pelas Nações Unidas, em acordo com todos os Estados, como referência para certos direitos. Então, alguém pode ligar e dizer: “Somos 20 organizações preocupadas pela falta de vacinas das crianças de Javari”. Pode-se fazer uma denúncia ao relator, que poderá vir imediatamente ou responder ao Estado, dizendo que tem uma denúncia e quer preparar uma visita. Logo, o Estado, às vezes com vergonha de que o relator venha pra verificar uma violação de direitos que o Estado deveria ter resolvido, acabam por resolvê-las antes. E se não resolvem o relator vem. Há diferentes mecanismos, também existem os mecanismos do sistema interamericano. Existe a Comissão Interamericana, que também tem seus relatores, mas é a Corte Interamericana quem condena os Estados. Demora entre seis e sete anos, mas condenam. Meu país tem três condenações ou mais - mas três que eu conheça - sobre adolescentes infratores, que estavam vivendo em condições desumanas. Houve um incêndio, morreram nove, e a condenação foi feita de maneira a pedir que mudassem todo o sistema de Justiça Juvenil e ainda reparar as vítimas, etc. Uma série de medidas. O Brasil também teve suas condenações. Ou seja, esse sistema de exigibilidade de direitos é toda uma especialidade, e quem trabalha com esses direitos não pode desconhecê-lo, pois são mecanismos de exigibilidade.
Participantes (nova rodada de perguntas e comentários) Então, uma coisa que me preocupa muito é que uma das suas falas foi que temos que encontrar formas da sociedade civil se organizar pra cobrar do governo e não tanto esperar que o governo faça pela gente. Eu concordo com isso, mas também acho que não dá para o governo se eximir de dar acesso à informação para a gente. Porque a gente só pode exigir quando conhece meios pra isso. Um meio de exigir é, por exemplo, o que você está fazendo aqui hoje, é um esclarecimento pra que a gente possa intervir. Mas imagino que mil outros lugares do Brasil não tenham um terço de conhecimento sobre o que fazer quando se tem uma denúncia de violação dos direitos ou alguma coisa do gênero. Então, acho isso muito complicado. É uma característica da lei no Brasil, ela é feita pra quem a conhece, e quem a conhece, normalmente, é quem tem acesso a uma educação de qualidade, e a maioria da população, principalmente a juventude, e juventude da periferia, que são a maior parte da juventude do Brasil, não tem acesso a esse • • 18 anos, 20 histórias
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conhecimento, e como pode cobrar? Como vai poder estabelecer qualquer tipo de relação? Ou pior ainda, como vai identificar que está tendo algum direito violado? Às vezes já estão acostumados a uma situação de normalidade de violação de direito e isso é terrível. Isso não é só o caso brasileiro, porque se você para pra pensar que tem a missão de paz da ONU e o que o Brasil faz no Haiti, é visto que as crianças de lá também estão comendo bolachinha de barro. Isso é muito complicado, acho que é preciso fazer com que as pessoas tenham acesso ao conhecimento pra poder cobrar das leis. Acho que a ONU também deveria se responsabilizar de criar medidas para que a gente tenha acesso a essas informações. Como a gente vai chamar o relator pra fazer uma denúncia aqui? Sei que existem mil burocracias e armadilhas formais que a gente precisa saber pra poder trabalhar com isso. Como é que a gente chega na lei? Porque parece que, muitas vezes, a lei não é feita pra gente! Eu ainda tenho uma pergunta em relação aos relatórios. Para mim eles ainda estão muito abstratos. Eu queria saber como eles são feitos, qual a metodologia, os pontos que precisam ser cumpridos e qual o nível de detalhamento deles. Tem que ser no mínimo estadual? Por mais que não tenhamos um relatório oficial do governo eu gostaria de saber, pelo que o comitê já recebeu de documentos relacionados a direitos humanos, como o comitê avalia a nossa situação atual? Que coisas melhoraram? Existe uma regressão ou não? Ou seja, os pontos que melhoraram e os que têm que melhorar. E fazer essa relação do Brasil de como a gente está em relação aos nossos vizinhos da América Latina. Sua fala demonstrou a importância de consultar as camadas mais populares, as que estão à margem. Eu queria saber que tipo de estratégia vocês usam pra garantir que as vozes dessas pessoas que estão à margem sejam de fato colocadas no relatório. E como é feita uma avaliação disso? Como é a construção dos processos? Sei que tem pessoas que avaliam o relatório, mas eu queria saber se essas pessoas também certificam se os relatórios que estão indo estão de fato acontecendo e qual a freqüência em que são avaliados. Fui uma das redatoras do relatório do governo que será entregue agora para ONU. Queria dizer que me coloco a disposição para esclarecer, não só os conteúdos, mas inclusive toda a metodologia, de elaboração, e dizer pra vocês que a ONU também define uma série de regras, e uma delas, que é a mais apertada, é que o relatório do governo tenha no máximo 120 páginas. Nessa oportunidade, no papel de redatora do relatório - uma das três - tive pela primeira vez, a oportunidade de tomar conhecimento e ter um contato com um instrumento que, a meu ver, é de fundamental importância para todos nós, sociedade civil, governo, todas as instâncias, que é o Manual da Aplicação da Convenção sobre os Direitos da Criança. Eu não tive oportunidade de ter em mãos a última edição e sim a penúltima. São 800 páginas, mas entre a Convenção e o relatório, o manual da aplicação é 30
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de extrema importância, para que consigamos conhecer como elaborar, como planejar estrategicamente o nosso dia a dia, os nossos relatórios, daquilo que nós fazemos pra que possamos depois compor outros relatórios, como o CEDECA Interlagos compor com outros, outras instituições. A minha pergunta é: porque ainda não está divulgado este manual? Só existe em inglês e espanhol, não tem em outra língua. Tenho a impressão de que uma missão importante, que é um pouco do que a sociedade civil está fazendo, é a questão de transparência tanto das informações como também dos próprios dados. Estava tentando fazer um diagnóstico de escola aqui no Grajaú: que criança está na escola, quanto falta, etc. Foram dois meses de labuta, pra conseguir informação, e ainda foi pouca. Acho que essa questão da gente poder ter acesso à informação pública é uma das coisas que temos muita necessidade. Quanta dificuldade para ter informações reais, assim mais detalhadas. Talvez uma colaboração que vocês podiam dar é esse diálogo pela divulgação da informação, desses relatórios, que a gente pudesse ter acesso e pudesse ter mais pessoas se apropriando disso. Você, na sua fala, diz que recentemente foi criada uma Comissão de Direitos da Criança, um Comitê, e queria que você esclarecesse. Tem o Ministério Público, o CONANDA, e você parece que valorizou essa questão do Comitê, queria que me explicasse o que ele faz. Considerando que a gente vive numa democracia representativa, e que a gente não participa diretamente das decisões governamentais, a não ser em momento de eleição, queria saber da ONU, recebendo um relatório governamental e um relatório da sociedade civil, confirmando que a sociedade civil faz determinadas denúncias sobre a ação do próprio governo em relação à quebra de direitos, qual é a ação de vocês sobre o governo, em forma de pressão ou sansão, pra que se consiga retornar a preservação dos direitos? Em que ponto as informações da sociedade civil e as informações governamentais se encontram? Elas conseguem trazer de fato uma fotografia real da sociedade e da maneira em que esses direitos da criança e adolescente são violados? Não seria um pouco retroativo pelo fato de já se ter várias organizações, várias comissões, vários órgãos que já defendem a criança e o adolescente? Não seria mais viável que tivesse de fato ações concretas para que esses direitos sejam prevalecidos, a não ser ficar criando órgãos, comitês? Acha que a sociedade civil não está precisando mais de ações concretas do que de comitês, etc?
Rosa Maria Ortiz
Nem um pouco fácil essas perguntas. Bom, queridos, queridas: • • 18 anos, 20 histórias
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Em primeiro lugar eu gostaria de desmistificar a ONU. A ONU são os povos, a ONU são os Estados, quem representa os Estados são os Governos. Então, a ONU não é Deus que vê tudo, faz tudo e obriga a todos, tem suas fortalezas e debilidades, e os Estados, que são pessoas buscando como melhorar as coisas, inventam esses acordos, esses comitês de vigilância, esse mecanismo de relatórios para ir procurando, para ir tentando caminhar, mas se a sociedade civil não se envolve nesse sistema de monitoramento, haverá menos possibilidades de que o governo o faça, porque não tem ninguém para prestar conta a sociedade. Assim continuou o Brasil por 12 anos, porque era “melhor”. Havia muitas coisas. Para que se apresentar a este comitê? O Comitê via o Brasil com muita preocupação, porque era um dos 10 países no mundo que não cumpria com o acordo. Depois de ter sido o primeiro país a ter seu Estatuto. Foram mandadas várias cartas, até que agendou para tal data: “Se o Brasil não apresentar seu relatório, o Comitê vai avaliar com a ausência de Governo, ou seja, avaliaremos os direitos da criança só com a sociedade civil e outros organismos”. Porque entre os outros Estados também é uma vergonha quando um país que fala de direito, que exige, não está cumprindo com sua tarefa. Isso a sociedade civil tem que saber utilizar, comunicar à Brasília que estão fazendo uma denúncia contra o Brasil pelas crianças do Vale do Javari, que não estão sendo vacinados. É o que fizemos, quer dizer, a sociedade civil, comigo em Brasília. Logo, ficam de olhos abertos para se preparar e tentar resolver antes. Isso é parte do jogo internacional, do qual a sociedade civil tem que saber como tirar proveito. O Brasil não pode exigir que haja a Organização Mundial do Comércio, que haja condições mais justas para os países do sul e estar violando ao mesmo tempo. Então, o Brasil tem que cuidar de seu nome, imagem, e como sociedade civil temos que saber como fazer uso deste sistema, para fazer com que o Estado faça o que tem que fazer. Simplesmente isso. Como adultos estamos falhando com as crianças, temos uma lei e não a cumprimos como tal. A prioridade absoluta não é cumprida. Só se exigirmos, há possibilidades de cumprimento, mas às vezes exigimos, gritamos, gritamos, como dizia um dos jovens, gritamos e o governo não responde. Mas agora há alguém mais atrás do Governo. Então, porque não aproveitamos para utilizar deste outro recurso? Aprendendo que o governo não é o teto, pois atrás dele há um sistema que pode ajudar para que as reivindicações que vocês estão procurando sejam contempladas, para que possam receber apoio de fora. Porém, fiquem de olho, pois os que estão do lado de fora não podem fazer nada que não seja feito dentro. Não se pode pedir a ONU que exija do governo que faça tal coisa, tem que ser de cima e de baixo. Por isso este sistema é interessante, porque nós do comitê, de cima, não poderemos fazer nada 32
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que vocês não estejam procurando. Só o trabalho em conjunto obrigará o Estado a caminhar, pois ele sempre reage às pressões, e se as pressões de multinacionais, dos que querem ganhar milhões, dos que estão aí fazendo lobby, influi; nós que trabalhamos pelos Direitos Humanos temos que nos aliar, o lado internacional ao nacional, para que o governo cumpra com seus deveres. Esclareço que não podemos ficar sentados esperando o porquê da ONU não pressionar, pois ela não funciona assim, senão seria uma “intervenção”. Vocês gostariam de ter uma ONU militar quando o povo não fizer o que também tem que fazer? Há que ser um trabalho em conjunto. Nós podemos ser um reflexo do que a sociedade civil reclama. Como a ONU pode assegurar qual é a prioridade? Os direitos são muitos e tem que ser feito de maneira gradual. Nós não podemos dizer: “A partir de agora será de tal maneira”, mas lembrar quais os compromissos, o que lhes falta e dizer das reclamações que os setores fazem. Quais são os pontos que precisam cumprir? Eu precisaria de um seminário para responder isso, de um dia para dizer isso. Posso dizer alguns itens do primeiro capítulo. Normalmente é necessário um dia de trabalho, mais ou menos, para fazer algo superficial, mas, por exemplo, o primeiro capítulo se chama Medidas Gerais de Aplicação da Convenção. Isso quer dizer quais são as medidas dos Estados, medidas gerais, não para um caso particular, mas como o Estado se organiza, para fazer com que os direitos fluam? A primeira pauta é a legislação, pois dificilmente podem-se efetivar os direitos se a legislação não ajudar. A segunda pauta desse sistema é o organismo que coordena todos os setores, pois muitas vezes dizem que os Direitos Humanos são transversais a todas as políticas e a todos os programas, o que quer dizer que a responsabilidade não é de ninguém. Há que existir a transversalidade, mas também alguém forte que esteja lembrando à polícia, por exemplo, que não fizeram seu planejamento com enfoque nos direitos, aos militares que estão recrutando menores de 18 anos, ao ministério de saúde para saber quais são as estatísticas, aos governos locais, etc. Ou seja, alguém deve lembrar a todos que todos têm responsabilidade com relação aos direitos. O Comitê viu que a Subsecretaria de Criança e Adolescente e o CONANDA ainda estão muito fracos e deveriam se fortalecer, assim como todo sistema local, estadual e federal também deve se fortalecer para cumprir com essa responsabilidade de coordenação. Ao falar de coordenação, falamos também de articulação, pois a articulação permite que nos controlemos mutuamente, e nos ajudemos mutuamente. Por exemplo, se reconhecer que um é do Ministério Público e outro do Conselho Tutelar e os mesmos dizem que tem tais dificuldades, não poderemos retirar os problemas, mas procuraremos fortalecer as mesmas para que todo o sistema possa funcionar. Para isso a articulação e a coordenação é necessária. A terceira pauta: um pai, um Estado, um povo, uma cidade, para poderem trabalhar todos os direitos para todas as crianças, tem que ter um plano. E existem planos, mas setoriais, existem planos contra a exploração sexual, trabalho infantil, • • 18 anos, 20 histórias
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sobre medidas sócio-educativas, sobre direito à convivência familiar e comunitária. Mas ainda não estamos vendo todos os direitos para todas as crianças, e sim certos problemas que identificamos como os mais graves, onde não entra como controlaremos a saúde, educação, o cumprimento dos direitos nos povoados indígenas, quilombolas e nos bairros mais marginalizados. O plano deve ser completo. Para poder ter um plano completo temos a seguinte questão: fazem falta os dados que existem nas estatísticas e censos e que não tem o enfoque nos direitos. Ou seja, se queremos estudar sobre os direitos que são cumpridos e os dados oficiais que recebemos não refletem isso, temos que tratar de fortalecer essas instituições que fazem as estatísticas e censos. Além disso, a sociedade civil às vezes tem mais conhecimento, porque faz mais investigações, podendo também contribuir oferecendo os indicadores para incluí-los nas estatísticas e censos. Outra questão: os recursos humanos capacitados e os recursos econômicos fazem falta. O artigo 4° da Convenção fala que os Estados darão seus melhores recursos para os direitos das crianças. Isso deve ser cumprido. Outra pauta: há que se conhecer os direitos, divulgar os direitos e recomendações, e a Convenção deve fazer parte do currículo, não só na escola, mas também nas universidades onde se formam os profissionais que depois vão ser juízes, professores, defensores, autoridades, etc. Muitas vezes a Convenção ainda não está nas universidades. Os profissionais se formam sem conhecer os direitos da criança, logo é um desperdício do esforço de um Estado, que diz que respeitará os direitos da criança, mas não controla o currículo das universidades, nem controla que a polícia tenha a Convenção incorporada no seu manual de atuação e na sua escola de polícia. A sociedade civil é outra questão. Todas são questões, que sem as quais um Estado não se organiza bem para cumprir os direitos. Esse é o primeiro capítulo, depois vem os princípios e depois os artigos da Convenção com determinados direitos. São mais ou menos 70 pontos e só falei do primeiro capítulo para que tenham alguma idéia. Direitos Humanos é fazer política, então ao fazer diagnósticos municipais, podemos ver: como está a legislação municipal, quem divulga a Convenção, se a mesma está nas escolas e universidades, quais dados existem, quais faltam, como está o orçamento, como está a participação da sociedade civil, etc. Esses são os pontos básicos para se trabalhar com Direitos Humanos. Essas são as respostas a algumas perguntas. Sobre a ONU ensinar, cada Estado ao ratificar a Convenção se compromete a divulgar e ensinar a mesma. O que temos que fazer, desde a sociedade civil até a ONU, é exigir que o façam. Em relação ao tipo de estratégias, há por exemplo, situações de populações que vivem à margem, e como fazer que cheguem ao relatório? De quem é a responsabilidade de que isso ocorra? 34
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Novamente, a sociedade civil e o Estado têm que planejar de qual maneira vai organizar o relatório, para que realmente refl ita a situação de todo o lugar, ou seja, local, estadual ou federal. Para que participem todos os setores mais marginalizados, é um desafio, mas a ONU não pode mais do que recomendar ao Estado que prestem conta de tais coisas. E depois, se não derem conta, responder como foi a consulta, o porquê o relatório não foi mais participativo, etc. Os Direitos Humanos não são somente para os países do norte. Muitas vezes pensam isso. As autoridades ou setores mais retrógrados pensam que essas são imposições que vem do norte, e que só servem para os seres humanos do Equador para cima. Não podemos permitir que pensem que nós somos menos humanos, que somos menos capazes. Depende de nós, de nos capacitar para cumprir todos os direitos. Que o relatório tenha que ter 120 páginas, isso tem um motivo. Realmente se trabalha de uma maneira bem disciplinada, 120 páginas é mais que suficiente para contestar 70 pontos. Sempre é mais difícil resumir, não? Todo trabalho que está por trás é muito grande para colocar em 120 páginas. Porque imaginem que há que traduzir em todos os idiomas: ao russo, chinês, francês, inglês, espanhol, árabe, etc. Então, não podem ser documentos demasiado extensos, e sim o resumo de um trabalho demasiado extenso. Dizia que as estatísticas são feitas a cada 10 anos. Sim, e temos que procurar que da próxima vez que sejam feitas, estejam incluídos os indicadores dos direitos das crianças, ou se não esperaremos quase 20 anos mais, ou seja, é apenas uma chamada para se trabalhar com mais rapidez. Olhe, tão pouco quero dar a impressão de que todo mundo nesta sala tem que ser esperto em tudo. Cada um tem que colaborar. Não que todos devem saber de tudo, mas nos organizarmos para que todos aspectos sejam cumpridos e assegurar que podemos fazer um relatório completo. É bom saber do todo, mas onde cada um faça sua parte. O que é ruim é trabalhar como se fossemos uma pizza, e só ser conhecedor da situação das crianças que vivem e trabalham na rua, por exemplo, mas não saber nada de exploração sexual, de educação, entre outras. É positivo ser parte de uma organização que me permite conhecer o todo. Conhecer minha parte, mas também temos que conhecer o todo. Conhecer o todo nos dá força, nos ajudamos mutuamente e aprendemos mais. Assim, seremos mais eficientes.
Participantes (nova rodada de perguntas e comentários)
Tenho duas perguntas: Como a ONU está vendo a questão da exploração, da pedofilia, exploração sexual de crianças e adolescentes na internet? • • 18 anos, 20 histórias
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E como a ONU está vendo a questão da violência no Rio de Janeiro, da polícia? E o Estado que não faz nada no Rio de Janeiro e em São Paulo? E a questão da exploração sexual no Brasil e fora do Brasil também? Recentemente a Carmem Oliveira deu uma entrevista em uma rádio de grande repercussão nacional, dizendo que caso o Brasil aprove mesmo o projeto que está em tramitação no Congresso, que reduz a maioridade penal, a ONU poderia intervir nessa decisão do Estado Brasileiro. Queria saber que medida seria esse tipo de intervenção e se é de natureza diferente quando vocês observam que o Estado, por exemplo, não fornece vacinas para as crianças e depois elas morrem. Eu gostaria de saber pela sua experiência, sobre os projetos eficazes que ocorrem na América do Sul e em todo o mundo. Como deve ser feita a articulação entre as pessoas e o governo? E como as pessoas vão se organizar para que a nossa situação melhore em relação aos nossos direitos? Como realmente nós vamos fazer? Ou seja, de que forma as faculdades vão nos ajudar com o conhecimento, como o governo vai nos transmitir esse valor? Porque o conhecimento dos direitos, pra corrermos atrás e buscarmos que eles sejam realmente efetivados, tem que fazer parte da nossa cultura e do nosso dia a dia. Que projetos estariam sendo eficazes no mundo? Mesmo que o problema da China seja diferente do nosso, eles são problemas.
Rosa Maria Ortiz
A primeira pessoa falou sobre pedofilia, delitos pela internet, mas não falamos até agora que a Convenção tem dois protocolos, que são uma extensão dela, sobre dois temas que eram muito difíceis de serem entendidos quando a Convenção saiu e, portanto não saiu tão bem nestes aspectos. Temos que saber que sempre que avançamos um pouco em Direitos Humanos, vamos melhorando. Assim foi feita a Convenção sobre os Direitos da Criança, para melhorar aquelas Convenções que não eram suficientes para defender os direitos da criança. Imaginem que a Convenção saiu, permitindo que aos 15 anos as crianças pudessem participar de conflitos armados. Uns podiam dizer: - Que calamidade, para quê criar um instrumento internacional de defesa dos direitos da criança, se permitirá que aos 15 anos possam matar ou ser mortos?. Entretanto, não havia condições de conseguir votos para elevar essa idade, porque muitos dos países aceitavam que suas crianças e adolescentes fossem combater. Vejam que não é fácil construir esses instrumentos. Mas, assim mesmo, era melhor colocar 15 anos do que não colocar nada. Porque pelo menos, os menores de 15 anos estariam protegidos. Mas foi péssimo, para muitos países era uma vergonha. 36
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Logo foi feita uma grande campanha contra as crianças-soldados, e isso elevou a consciência dos Estados, conseguindo reparar, através de um documento anexo a Convenção, que é um protocolo adicional, que trata sobre as crianças em conflitos armados e eleva a idade para 18 anos, e também condiciona os Estados quanto ao recrutamento: como deve ser, além do castigo às pessoas que recrutam, etc. Por exemplo, uma pessoa brasileira que recruta na Bolívia, a lei brasileira castiga esta pessoa, mesmo que o delito tenha sido cometido na Bolívia. Ou vice-versa, crianças brasileiras que são recrutadas por qualquer outro país, também há castigo pela legislação. O segundo protocolo se refere à venda de crianças, à prostituição e utilização de crianças para pornografia. Estes delitos cibernéticos não eram suficientemente conhecidos em 1990. Portanto, foi feito um protocolo adicional que se anexa à Convenção, mas os países têm que ratificá-lo. Até agora são mais de 100 os que ratificaram este protocolo. A Convenção tem 192, ou seja, faltam mais ou menos 90 para ratificar estes dois protocolos. Assim, me refiro à pergunta sobre pedofilia e do que a ONU faz em relação a isso. Faz protocolos que os Estados ratificam e devem cumprir com os mesmos. Tenho que aproveitar para dizer que o Brasil também ratificou esses dois protocolos e que também deve esses relatórios ao comitê. Acredito que no ano 2000 foi ratificado. Em 2002 ratificou os dois protocolos e deveria ter apresentado seu primeiro relatório em 2004, possivelmente aprovará primeiro algumas leis e depois fará o relatório. Em relação à pergunta sobre qual é o papel da ONU quando um Estado não está respondendo aos direitos das crianças, por exemplo, no caso das vacinas, um dos papéis do Comitê é receber os relatórios e fazer recomendações. Lembrem-se de uma coisa, por favor: os estados fizeram a Convenção, os Estados inventaram o Comitê, os Estados inventaram o sistema de monitoramento por relatório, os Estados propõem candidatos para serem membros desse Comitê, os Estados elegem e selecionam os membros, ou seja, o Comitê tem os papéis bem marcados na Convenção, e o principal papel é receber relatórios da sociedade civil, relatórios do governo e dos organismos e fazer recomendações. Mas os membros que duram 4 anos no comitê, não podem ficar sentados em Genebra vendo quantas coisas faltam. Logo, inventamos métodos para apoiar aos Estados (ao dizer Estado, dizemos: Sociedade e Governo). Então, uma das coisas que inventamos foram as visitas, como a que estou fazendo, porque vemos que a sociedade civil e os organismos do governo não conhecem a existência desta exigência, não conhecem suficientemente que tem que participar desta elaboração. Lembrem-se do que eu disse antes: o relatório não é para satisfazer o Comitê. Como fazer para articular? Fazer um diagnóstico para fazer um relatório é uma maneira de articular. O relatório serve para obrigar que todos se juntem e digam que tem responsabilidade com a metade da nossa população, que são as crianças e adolescentes: “Temos tais, tais e tais pontos que precisamos cumprir, que são exigidos pelo comitê. Sentaremos e vejamos o que estamos fazendo”. Esta é uma forma de articular. • • 18 anos, 20 histórias
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Então, não é só um relatório, mas uma oportunidade para fazer isso. Se um Estado se compromete a cumprir com os Direitos da Criança, todas as instâncias governamentais têm que sentar pra verificar o que está sendo feito, o que falta e quem vai fazer o quê. Porém, não é o que acontece, e os Conselhos de Direitos da Criança deveriam convocar todas as instâncias e avaliar periodicamente o que estão fazendo e o que falta. Como nos articulamos, como nos ajudamos para fazer? Esta é uma questão de responsabilidade dos adultos frente às crianças. Não cumprimos com nosso dever. Exigimos muito das crianças, mas os adultos têm essa responsabilidade e não a cumprem. O relatório é uma oportunidade para fazê-la, mas articulação não é só isso, a articulação tem que estar nas políticas. Como assegurar que os jovens participem dos relatórios? Bom, acredito que existam milhares de possibilidades e vocês devem saber muito mais do que eu como trabalhar com jovens e crianças, e claro que terá que ser adequada a eles. Não podemos pedir um esquema do mesmo jeito que os adultos, mas o que posso dizer é que o que chega no Comitê, das crianças e adolescentes é fantástico e às vezes, muito mais claro do que o relatório dos adultos, pois eles têm uma maneira direta e coerente de dizer as coisas. Então, é importante que eles, a sua maneira, possam se fazer ouvir sobre o que eles percebem como necessidade e como um problema quanto aos seus direitos. Não é que tenham que ser adultos e contestar os 70 pontos, e sim dizer sobre o que eles percebem. E há muitas maneiras, em forma de comics, desenhos ou fazer um pequeno documentário, por exemplo. Os adolescentes organizados no Peru fizeram seu relatório ao Comitê, porque a sociedade civil, ao fazer o informe, se esqueceu deles, então eles se reuniram e fizeram seu relatório. Foram dois ao Comitê no momento em que o Peru tinha que apresentar seu relatório, e depois veio o mais importante, as recomendações estavam feitas, e os adultos não fizeram nada para difundir as recomendações, a não ser algumas fotocópias, mas não trabalharam seriamente nelas, já os adolescentes sim. Eles foram a sete estados do Peru, avisaram as organizações dos estados, fizeram um seminário, explicaram cada recomendação, discutiram como essa recomendação se aplicava neste estado e ao terminar, convocaram, no dia seguinte, as autoridades de Saúde, Educação e o Governo local e disseram: “queremos informar sobre nossos direitos, e dizer que o comitê está recomendando ao Peru fazer isto e isto”. Claro que priorizaram o que pareceu mais importante e pediram que as autoridades assinassem que fariam algo em relação a isso. Em um ano voltariam para perguntar o que fizeram. Como continuaram? Fizeram isso em sete estados, além de uma grande reunião nacional apresentando ao Parlamento. Então, imaginem a posição dos parlamentares escutando esses adolescentes, como cidadãos que trabalham responsavelmente pelos seus direitos, exigindo das autoridades o que devem fazer. A 38
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postura perante aos adolescentes muda totalmente. Vale muito mais que eles falem de seus direitos as autoridades, do que adultos como nós, que podemos gastar mil palavras, mas não transmitiremos o que eles podem transmitir. Isso é só um exemplo do Peru. Eles também podem vir contar sua experiência, para que sejam os próprios adolescentes, crianças e jovens, os que trabalhem pelos seus direitos com o apoio dos adultos. Queria dizer que o Brasil não está sozinho com isto e que a região da América Latina tem experiências riquíssimas, como esta que contei sobre o Peru, vocês têm riquíssimas experiências para compartilhar com os outros países da América Latina. É importante que o Brasil não se sinta sozinho, pois ele foi muito importante para nós e nós também somos muito importantes para o Brasil. Podemos trabalhar juntos e aprender juntos. Muitíssimo obrigada por tudo.
Djalma Costa: Representante do CEDECA Interlagos e membro da coordenação da ANCED
A gente ouviu muito o que Rosa disse e de fato o governo brasileiro ficou doze anos pra apresentar o primeiro relatório. Só apresentou o primeiro em 2004 porque o comitê pressionou. É um mecanismo de pressão. Vale a pena vocês conhecerem com mais calma o processo que nós estamos fazendo agora. Ouvi várias perguntas muito interessantes: Como é que a sociedade civil está fazendo este relatório? Esse relatório é representativo nacionalmente, nós temos nove áreas sendo pesquisadas. É um relatório com coleta de dados que estamos fazendo, a ANCED junto com o Fórum Nacional de Defesa dos Direitos Criança e Adolescente. Nós temos um outro processo iniciando, um outro relatório construído pelas crianças, pelos adolescentes e pelos jovens, tendo oito áreas de perguntas, garantindo o direito à participação neste processo. Vamos conversar com a comunidade indígena, com jovens que passaram pelo sistema sócio-educativo e os que ainda estão internados, crianças no campo, crianças que moram nas ruas, as crianças vivendo com HIV, a criança abusada sexualmente, explorada sexualmente, jovens que estão articulados em rede, as crianças vivendo em abrigos, as crianças quilombolas, entre outras. Então, tem um leque de coisas em que vocês podem estar se inteirando. Está no processo de construção do relatório. O debate é longo. Esse é um processo que pudemos contar com mais calma porque • • 18 anos, 20 histórias
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ela já veio fazer essa popularização toda. Nós queremos popularizar a Convenção, queremos tornar a Convenção tão popular quanto o ECA. A ANCED está trabalhando junto com o Fórum Nacional DCA e eu acho que a mobilização está dada. Gostaríamos de agradecer a presença da Rosa. Acho que é uma oportunidade única para a gente ter de perto alguém da Organização das Nações Unidas contando, se aproximando e tornando real, tornando parte do mundo real este mecanismo e todas essas informações que a Rosa trouxe hoje pra gente. Então, queria agradecer imensamente tua presença. Agradecer a todo mundo que esteve aqui hoje, disposto a conversar, disposto a dialogar. Obrigado!
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A Convenção dos Direitos da Criança 20 Anos Depois: Avanços e Desafios nas Américas Paulo Sérgio Pinheiro8 e Cecília Anicama9
Paulo Sérgio Pinheiro8 e Cecília Anicama9 Depois de duas décadas10 há hoje uma geração de adultos que foram crianças e que cresceram sob a vigência da Convenção sobre os Direitos da Criança11, e com as quais nos toca hoje assumir os grandes desafios que ainda temos para enfrentar uma implementação adequada a respeito daquela Convenção. Este tratado estabelece um marco jurídico fundamental para se avançar na realização dos direitos da criança cuja análise não pode ser descontextualizada de um exame situado no processo de transição e de retorno de regimes constitucionais democráticos iniciados há 20 anos na grande maioria dos países do continente. É evidente que se avançamos no fortalecimento dos sistemas democráticos, mas vivemos ainda em sociedades onde prevalece a iniqüidade, a concentração de renda com a desigualdade socioeconômica, inalteradas depois do fim dos regimes autoritários militares e do retorno da democracia. Problemas como a desigualdade entre a renda dos brancos e aquela dos afro-descendentes ou povos indígenas, orçamentos que não são desenhados nem implementados sob um enfoque de direitos que se traduza num compromisso dos Estados com o investimento social na infância12, discriminação de distinta índole, contra os migrantes, os afro-descendentes, LGTB, as crianças e adolescentes com deficiências físicas ou mentais ou portadores do HIV, os povos indígenas; as distintas formas de violência, inclusive legalizada e perniciosa contra a criança e onde ainda prevalecem relações entre governos e sociedades marcadas pela ilegalidade, autoritarismo e arbitrariedade. Isto por sua vez configura um paradoxo entre sistemas políticos que pretendem promover sua consolidação democrática, mas, nos quais contraditoriamente prevalece um autoritarismo como uma constante nas relações entre adultos, sejam eles agentes do Estado ou particulares, e crianças e adolescentes, percebidos como violentos e até 8 Comissionado e Relator da Criança da Comissão interamericana de Direitos Humanos, OEA e ex- Expert Independente do Secretário-Geral da ONU para o estudo sobre violência contra a criança (2003-2007). 9 Advogada especialista em direito internacional. 10 Pinheiro quer agradecer ao apoio do Instituto Interamericano da Infância, OEA; a Save the Children Suécia, a Plan International, no Peru e ao CNPq e a FAPESP no Brasil. 11 Doravante referida como Convenção 12 Vásquez, Enrique, Manual Global por la Infancia, Universidad del Pacífico y Save the Children Suecia, 2005. ¿Los niños primero? Volumen III Universidade Pacífico e Save the Children Suécia, 2005. • • 18 anos, 20 histórias
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como predadores. Deste modo, os progressos alcançados no sistema político e no estado de direito nas Américas convivem com atrasos espantosos na relação que as autoridades, pais e mães, professores e aqueles adultos responsáveis pela proteção das crianças e adolescentes mantém com eles.
A universalidade da Convenção dos Direitos da Criança A Convenção é hoje o tratado de direito humanos que conta com 193 Estados13 Parte, vale dizer, o tratado com o maior número de ratificações no mundo. Este fato é fundamental porque em primeiro lugar na esfera política mostra o consenso universal que existe a respeito de temas fundamentais da infância e adolescência. Ademais porque no âmbito jurídico a ratificação dos tratados internacionais de direitos humanos exige dos Estados a adoção de medidas adequadas e efetivas para assegurar o respeito e a defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes. Urge também reconhecer os avanços alcançados e determinar os desafios que ainda subsistem e identificar as oportunidades para aprender e coordenar com base na experiência acumulada para assegurar às crianças o pleno exercício de seus direitos humanos em conformidade com os postulados na Convenção. Estas reflexões aqui desenvolvidas têm lugar num ano emblemático para os direitos das crianças internacionais. Com efeito, em 2009 se celebram: O 82º aniversario da criação do Instituto Interamericano da Criança (IIN) O 60º aniversario da adesão do IIN à Organização dos Estados Americanos, na sua qualidade de organismo técnico especializado em temas de infância O 20º aniversario da Convenção dos Direitos da Criança O terceiro ano da implementação das recomendações formuladas no Estudo Mundial sobre Violência contra a criança aprovadas pela Assembléia Geral da ONU em 2006 e novamente em 200714 e a nomeação da Representante Especial do Secretário- General da ONU sobre Violência contra a criança. O 50º aniversario da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o 30º aniversário da Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgãos principais da OEA encarregado de promover a defesa e respeito dos direitos humanos nos Estados membros da OEA. O 10º aniversario, em novembro deste ano, da Sentença do Caso dos “Meninos de Rua” 13 14
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http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-1&chapter=4&lang=en http://www.unviolencestudy.org/ http://www.crin.org/docs/UNVAC_World_Report_on_Violence_against_Children.pdf CEDECA Interlagos • •
(Villagrán Morales e outros) que explicitou a idéia da existência de um corpus júris de direitos humanos da infância e da adolescência, incorporando ao sistema americano o estatuto de proteção de direitos consagrados na Convenção sobre os Direitos da Criança15. Todos estes processos fornecem uma plataforma extraordinária para a efetiva defesa dos direitos da criança nas Américas. Esta oportunidade abre espaços para assegurar que as crianças como sujeitos de direito gozem do respeito e da proteção de sua individualidade, sua dignidade humana, o desenvolvimento de suas capacidades e potencialidades para construir e fortalecer instituições democráticas e sociedades inclusivas e livres de todas as formas de violência contra crianças e adolescentes. Neste contexto, como se sabe a Convenção é a norma internacional que consagra de forma compreensiva e integral o reconhecimento dos direitos humanos da criança. A Convenção trata de questões fundamentais da vida das crianças, incluindo a sobrevivência e o desenvolvimento, a educação e a saúde, a vida familiar, a recreação e atividades culturais, proteção contra o abuso, violência e exploração, questões relacionadas com a administração de justiça e a proteção dos direitos das crianças em contato e em conflito com a lei, participação nos processos de tomada de decisões na família, na escola e na comunidade como um todo. A Convenção estabelece um marco normativo e ético para tratar das questões relacionadas com a infância e a adolescência com a finalidade de salvaguardar os direitos humanos das crianças e adolescentes consagrando os princípios de: Não discriminação para evitar a marginalização, a estigmatização em razão de origem, gênero, condição socioeconômica, deficiência ou de qualquer outra índole. O Interesse superior da criança deve ser uma consideração primordial para orientar as decisões legislativas, judiciais, administrativas e de qualquer outra índole; assim como para resolver confl itos de interesse relacionados com a criança. A participação da criança e o respeito à opinião da criança é requisito na tomada de decisões sobre questões que afetem as crianças; e ao mesmo tempo é um corolário do reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direito. Assim os princípios gerais da Convenção constituem postulados básicos para avaliar e fazer um balanço dos primeiros 20 anos da Convenção identificando os desafios pendentes para abordar o déficit fundamental em temas da infância e adolescência nas Américas, que consiste em conseguir tornar realidade o discurso baseado num enfoque de direitos na prática e na vida cotidiana das crianças e dos adolescentes. Esse desafio pode resumir-se na necessidade de assegurar que exista sincronia entre teoria e ações práticas em temas de direitos humanos das crianças. Para se conseguir êxito não bastam discussões acadêmicas, mas é necessário o respeito e o cumprimento estrito de todos os artigos da Convenção em conformidade com os princípios de integralidade, interdependência e universalidade 15
Sentença de 19 de novembro de 1999. Série C No. 63.
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dos direitos humanos. É também necessário assegurar o investimento na infância o qual exige um novo planejamento econômico baseado num enfoque de direitos humanos da criança numa concepção econômica orientada por um enfoque de valores, com a finalidade de assegurar uma atribuição adequada e suficiente de recursos financeiros, humanos e de outra índole que sejam necessários. Isto tem um caráter imperativo, sobretudo num contexto de crise econômica mundial que incide com maior severidade nas crianças, em particular, na primeira infância e que por sua vez tem a potencialidade de limitar os câmbios positivo como resultado de limitações na disponibilidade de recursos que deixa sem sentido o significado de progresso e desenvolvimento. Nesse cenário, cabe sublinhar que a proteção que a Convenção garante não se esgota em seu texto, senão que ao mesmo tempo, serve como norma orientadora para a interpretação e determinação do conteúdo. Assim a Convenção é uma norma aplicável e um instrumento de interpretação para definir o alcance e o conteúdo dos direitos humanos das crianças no âmbito nacional e internacional. Por exemplo, a Corte Européia16, a Comissão e a Corte Interamericanas utilizam a Convenção como norma fundamental para a interpretação dos direitos humanos das crianças. E importante para nossa região recordar que tanto a Comissão como a Corte Interamericanas estabeleceram que a Convenção é uma norma que forma parte de corpus júris17 para a defesa e respeito dos direitos humanos das crianças e adolescentes que se encontram dentro da jurisdição de cada um dos Estados membros da OEA, que serve de guia e de instrumento para a interpretação e adoção de medidas que incidem no âmbito da infância no hemisfério. Como resultado da adoção da Convenção na região prevalece hoje um discurso baseado num enfoque de direitos humanos que reconhece as crianças e os adolescentes como sujeitos de direito. Isto sem dúvida tem sido resultado da mudança de paradigma que introduz a Convenção em todo o âmbito da promoção e defesa dos direitos da criança. Na difusão e aplicação deste novo paradigma sem dúvida é necessário reconhecer o papel estratégico que desempenharam as organizações da sociedade civil que trabalham no âmbito da criança, entre as quais as organizações de base, as redes regionais e as coalizões nacionais de adultos e das próprias crianças e adolescentes. Estas organizações tem tido o papel de protagonistas tanto nos espaços nacionais como no âmbito internacional. Exemplo disso é o bom nível de interlocução e diálogo que existe entre a sociedade civil e o Comitê dos Direitos da Criança da ONU e que igualmente começa a desenvolver com as distintas entidades que formam parte da Organização dos Estados Americanos (OEA). 16 Corte Européia de Direitos Humanos Caso T contra Reino Unido, aplicação 24724/94, sentença de 16 Dezembro de 1999; caso V contra Reino Unido, aplicação 24888/94 de 16 de dezembro de 1999; caso Costello-Roberts contra Reino Unido, 23 de março de 1993. 17 Comisión Interamericana de Derechos Humanos, La Infancia y sus Derechos en el Sistema Interamericano de Protección de Derechos Humanos, segunda edición, Sección 3, OEA/Ser.L/V/II.133, original em español, Doc 34, 29 de octubre de 2008. http://www.cidh.oas.org/countryrep/Infancia2eng/Infancia2Cap1.eng.htm#3. Corte Interamericana de Derechos Humanos, caso Villagrán Morales y otros contra Guatemala, fundo, sentença de 19 de novembro de 1999, série C, Número 63, parágrafo 194. 44
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É também constatável que a Convenção gerou mudanças importantes no âmbito dos sistemas jurídicos dos Estados membros da OEA, tanto ao nível normativo como ao nível jurisprudencial e jurisdicional permitindo a criação de instituições e estabelecendo mecanismos que tem como encargo assegurar a proteção dos direitos humanos da criança. Muitos países da região incorporaram as provisões da Convenção em suas normas constitucionais e contam com normas de proteção e de promoção dos direitos humanos das crianças, tais como o Estatuto da Criança e Adolescência, ECA, no Brasil e códigos da criança em vários países. Três Estados membros da OEA, Uruguai (2007), Venezuela (2007) e Costa Rica (2008) adotaram normas que proíbem em forma expressa o castigo corporal contra a criança, e criaram instituições que em distintos níveis tem competências em matéria de infância, como os ministérios, defensorias ou promotorias especializadas em temas da criança, entre outras. Existem, além disso, programas e planos de ação no âmbito da infância e um maior empoderamento por parte da sociedade civil em temas da infância.
Violência, ainda, e a falta de sincronia entre teoria e prática Assim mesmo, nestas duas décadas se registraram altos índices de violência contra a criança em todo mundo que a cada momento pesam sobre os avanços alcançados pela Convenção. A esse respeito, gostaria de sublinhar que o Estudo Mundial sobre Violência contra a criança18 apresentado à Assembléia da ONU em outubro de 2006, demonstrou que o problema da violência contra a criança não é novo nem desconhecido. Todos sabemos que não há nenhum lugar no mundo onde se pode dizer que não existe violência contra crianças. Agora mesmo neste momento, milhares de crianças estão sendo golpeadas, abusadas, castigadas fisicamente ou maltratadas sob diversas formas, o que significa que todos temos falhado em nosso dever de proteger as crianças. As formas de violência extremas tem sido condenadas internacionalmente de forma ampla. Apesar disso, o tema geral da violência contra a criança continua sendo fragmentado e muito limitado, em particular, quando se trata da violência no lar, na escola, nas instituições encarregadas de cuidar de crianças, no lugar de trabalho e na comunidade. Adicionalmente, é comum que em nossos países as crianças continuem a ser criminalizadas por encontrar-se em situação de rua. É lamentável que as crianças em conflito com a lei sejam submetidas a detenções arbitrárias, torturas e condições de detenção, que configuram processos de violência institucionalizada, violência sexual e de desumanização das crianças e adolescentes19. É também recorrente que a crescente preocupação pelo incremento da violência em alguns países da região seja 18 19
O Estudo Mundial sobre Violência contra as Crianças está em http://www.unviolencestudy.org/ Consulte também Pinheiro, Paulo Sérgio, Children behind bars: promoting restorative juvenile justice.
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usada como argumento torpe para promover estratégias repressivas contra as crianças e adolescentes, em flagrante desrespeito dos padrões internacionais de direitos humanos. Isto se verifica num cenário em que claramente falta sincronia entre a teoria e a realidade configurando mais desafios para a defesa e respeito dos direitos das crianças em comparação com os avanços alcançados em 20 anos, a qual condiciona perniciosamente a perpetuação das violações dos direitos humanos de crianças e as distintas formas de violência de que são vítimas cotidianamente. É evidente que mesmo prevalecendo em muitos lugares do hemisfério o discurso tutelar e assistencialista marcado por influências culturais e preconceitos, limitando o pleno reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos, em muitos casos, se abrem espaços de participação. Mas, na realidade, terminam sendo espaços de assistencialismo de crianças em que aos adultos lhes custa muito assumir como interlocutores pessoas menores de 18 anos como seus pares em igualdade de condições. Sob o discurso tutelar desafortunadamente as crianças continuam sendo “mini cidadãos com mini-direitos”. Tal visão obstaculiza a efetividade das medidas que podem adotar os Estados e contribui para consolidar a brecha de governabilidade que subsiste em diferentes temas de infância com distinta intensidade. A linguagem foi sendo adaptada à perspectiva de direitos, mas muitas vezes atrás da mudança de denominação a prática tutelar continua quase intata.
Deficiências normativas e institucionais No âmbito normativo, subsistem deficiências e vazios em vários países. Assim mesmo, temas como a patria potestas, o direito à identidade, as garantias judiciais para a proteção e atenção com as crianças em conflito com a lei e outros direitos ainda evidenciam inspirações sob um enfoque tutelar que consagra a consideração das crianças como objeto de proteção permitindo-se aos adultos exercer direitos de correção moderada cujo exercício vulnera os direitos humanos das crianças. Num recente Relatório Temático sobre el Castigo Corporal y los Derechos Humanos de las Niñas, los Niños y Adolescentes, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos sustenta que “a autoridade parental deve ser interpretada em relação com a indivisibilidade dos direitos humanos 20 para assegurar a proteção dos direitos das crianças. Nesse sentido, é necessário que a regulação sobre esta matéria no direito nacional nos Estados Membros deve estar em consonância com o respeito dos direitos humanos das crianças e adolescentes” 21 (tradução não oficial). Outro tema recorrente relacionado com 20 www.cidh.oas.org/Ninez/CastigoCorporal/CastigoCorporal2.htm 21 CIDH Relatório sobre el Castigo Corporal y los Derechos Humanos de las niñas, los niños y los adolescentes, sección IX, OEA/Ser.L/V/II.135, Doc. 14, 5 de agosto de 2009, parágrafo 85. “la autoridad parental debe ser interpretada en relación con la indivisibilidad de los derechos humanos[117] para asegurar la protección de los derechos del niño. En este 46
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o marco normativo em temas da infância diz respeito à falta de regulamentação adequada de todos os aspectos que formam parte dos sistemas de justiça juvenil. É preciso recordar que atualmente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos está elaborando um Relatório Temático sobre Justiça Penal Juvenil nas Américas, o qual tem por objeto formular recomendações aos Estados que gerem consensos para a tomada de decisões orientadas para enfrentar a violência institucionalizada da qual são vítimas as crianças e adolescentes em conflito com a lei. Este Informe Temático sublinhará aspectos e problemas fundamentais que afetam os sistemas de justiça juvenil nas Américas. Entre os quais gostaríamos de mencionar algumas constatações preliminares como: a brecha de governabilidade que existe em temas de proteção das pessoas menores de 18 anos em conflito com a lei; os processos de judicialização que enfrentam os sistemas de expulsão social que afeta de forma perniciosa as crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade; e o patente desconhecimento da sua dignidade humana como resultado das graves condições de detenção e internação a que são submetidos crianças e adolescentes em confl ito com a lei que desencadeia processos de desumanização que afetam os sistemas de justiça juvenil. A isto se soma a falta de medidas alternativas adequadas e efetivas e a falta de um adequado sistema de defesa legal para este setor vulnerável da população. Nesse sentido são lamentáveis as freqüentes propostas para a redução da idade de imputabilidade penal ou a ampliação temporal das penas privativas de liberdade para crianças e adolescentes assim como a aplicação de penas privativas de liberdade perpétua para pessoas menores de 18 anos que desrespeitam flagrantemente a Convenção e as normas interamericanas sobre direitos humanos. Evidentemente, tal como foi assinalado no Informe Mundial sobre Violência contra criança, as resposta que devemos dar em face da falta de proteção das pessoas menores de 18 anos em conflito com a lei não se esgotam no âmbito normativo, mas pelo contrario exigem uma visão da integralidade dos direitos humanos que requer atuar tanto no nível de prevenção como de proteção 22. No âmbito da institucionalidade, existem órgãos criados sob enfoques tutelares em vez de se constituir órgãos e instituições independentes, transparentes que contem com mecanismos acessíveis, efetivos e amigáveis, capazes de assegurar a participação protagônica de crianças que tenham recursos humanos, financeiros e técnicos adequados para assegurar uma efetiva promoção e proteção dos direitos das crianças e adolescentes. Pelo contrario, neste âmbito se registra uma permanente descapitalização institucional como resultado da permanente rotatividade de funcionários onde não existem condições para assegurar recursos humanos especializados nos temas da infância e da adolescência.
sentido, se estima necesario que la regulación sobre esta materia en el derecho interno de los Estados Miembros debe estar en consonancia con el respeto de los derechos humanos de las niñas, los niños y los adolescentes”. Utilizamos a versão oficial em espanhol pois a tradução em português ainda não está disponível. 22 Organização das Nações Unidas Estudo Mundial sobre Violência contra Crianças, Genebra, 2006, p. 203. • • 18 anos, 20 histórias
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A suprema necessidade de políticas públicas e recursos No âmbito das políticas públicas corresponde aos Estados estabelecer políticas de Estado que tenham continuidade e transcendam os governos de turno. Adicionalmente, é preciso investir em políticas públicas e programas de caráter compreensivo baseados num enfoque de direitos humanos e em provas empíricas para analisar os fatores que perpetuam a violência e as distintas violações dos direitos humanos das crianças. Não basta contar com planos, programas e políticas específicas no âmbito da infância, pelo contrário, com base no principio da integralidade e interdependência dos direitos humanos urge olhar as políticas de Estados sob estes dois princípios, de modo a compreender que todas as medidas adotadas por um Estado, que não tenham como beneficiários as crianças correm o risco de enfraquecer a proteção de seus direitos humanos. Para assegurar a efetividade de uma política pública e assegurar recursos financeiros adequados para abordar as causas subjacentes das formas de violência e violações de direitos humanos. Assim mesmo, as políticas devem ter metas claramente definidas e devem estar fundadas em informação detalhada sobre os problemas que afetam a infância e a adolescência, que por sua vez, devem ser monitoradas e sistematicamente avaliadas, assegurando a participação de todos os atores relevantes, as agencias de cooperação internacional, as organizações da sociedade civil locais, nacionais e regionais, os meios de comunicação, as corporações e demais atores da sociedade civil e principalmente as crianças e adolescentes. Nesse sentido, tais políticas e programas devem se sustentar em informação precisa. E evidente que a total carência de informação sobre questões relacionadas com a infância e adolescência continua sendo um obstáculo para assegurar o cumprimento da Convenção. Dita informação deveria estar disponível em forma desagregada conforme critérios tais como a idade, o sexo, a origem étnica, a condição socioeconômica, entre outros. A efetiva implementação das políticas públicas requer também assegurar uma efetiva coordenação e cooperação entre as diferentes instituições e órgãos que formam parte dos sistemas nacionais de prevenção, promoção e proteção dos direitos das crianças e adolescentes no âmbito local, nacional, regional e federal. A informação, além disso, deve estar disponível para as crianças e adolescentes numa forma adequada. Estes são um ator chave que deve ser escutado e deve expressar sua opinião livremente, na hora de avaliar e investigar as políticas da infância. Especialmente devem priorizar- se as medidas de prevenção em face das formas de violência que são violações de direitos humanos. Não devemos esquecer que a melhor forma de abordar a violência e evitar violações de direitos contra a infância é impedi-la antes que ocorra, mediante o investimento em políticas e programas de prevenção. Devemos repetir como um mantra que a prevenção é possível. Cremos que já temos algum conhecimento sobre aquilo que funciona e aquilo que não é positivo em matéria de prevenção. 48
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Em definitivo, as políticas públicas em matéria de direitos humanos da infância devem ser formuladas se respeitando os princípios gerais estabelecidos no corpus juris de direitos humanos das crianças e especialmente aqueles estabelecidos pela Convenção Americana e a Convenção dos Direitos da Criança.
O valor da cooperação internacional No âmbito da cooperação internacional, queremos também enfatizar a importância de refletir junto com os distintos atores que intervém em temas da cooperação internacional para que, sob os princípios que inspiram a Convenção, se atue de forma coordenada na promoção, prevenção e proteção dos direitos humanos das crianças. Para o que, é preciso que tenhamos presente o alcance e o conteúdo do artigo 34 da Convenção e as considerações do Comitê dos Direitos da Criança formuladas em sua Observação Geral 5 (2003) sobre “Medidas gerais de aplicação da Convenção sobre os Direitos da Criança (artigos 4 e 42 e parágrafo 6 do artigo 44)” 23, a qual determina que a proteção das crianças requer fundamentalmente a cooperação internacional. Nesta direção, queremos também sublinhar a importância da cooperação técnica e financeira entre Estados e órgãos internacionais de proteção de direitos humanos para assegurar o desenvolvimento de padrões internacionais, seu efetivo monitoramento e uma adequada assistência aos Estados no cumprimento de suas obrigações internacionais. A Relatoria da criança da Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem um compromisso de colaborar com os Estados no cumprimento de suas obrigações internacionais de conformidade com o que estabelecem a Carta da OEA, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Convenção dos Direitos da Criança e demais normas interamericanas e as recomendações formuladas pelo Informe Mundial sobre Violência contra a Criança; assim como, para promover o desenvolvimento de standards de direitos humanos, através dos mecanismos com que conta a CIDH e os mecanismos que a permitem atuar perante a Corte Interamericana e de cooperar com o Comitê dos Direitos da Criança, com o Instituto Interamericano, e apoiar decididamente a gestão de Marta Santos Pais em seu novo mandato de Representante Especial do Secretário-Geral da ONU sobre Violência contra a Criança. Reiteramos nossa convicção quanto à necessidade de aproveitar a força que conseguiram as organizações da sociedade civil na região e na necessidade urgente de consolidar e institucionalizar espaços de participação, coordenação e diálogo entre Estados e a sociedade civil; assim como entre órgãos e organismos internacionais e interamericanos e organizações da sociedade civil. Para isso devemos trabalhar pelo fortalecimento e institucionalização dos espaços para a participação 23 Comite de Direitos das Crianças Observação geral 5 (2003) CRC/GC/2003/5 Medidas generales de aplicación de la Convención sobre los Derechos del Niño (artículos 4 y 42 y párrafo 6 del artículo 44), 27 de noviembre de 2003, párrafo 60. Em espanhol, pois não há tradução oficial em português. • • 18 anos, 20 histórias
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da sociedade civil a nível nacional, interamericano e internacional. A Relatoria da criança deve também cooperar com as organizações da sociedade civil e em especial com as organizações de direitos das crianças das Américas. Queremos chamar a atenção para o posicionamento estratégico que tem a CIDH para assumir a liderança da luta contra todas as formas de violência e violações de direitos humanos no hemisfério com base numa ação conjunta com os Estados, as agencias de cooperação internacional, a sociedade civil e as crianças e adolescentes. Queremos citar novamente o Estudo Mundial sobre Violência contra a Criança para recordar que a violência contra a criança é um problema urgente. As crianças e adolescentes não podem assumir o custo de que deixemos de lado tudo que o Estudo Mundial sobre a Violência, e os Informes da CIDH aponta. Não há justificativa para nenhum tipo de violência ou violação de direitos. Todas as formas de violência e violações de direitos são capazes de ser prevenidas. Tampouco deve haver desculpas para atrasos na ação, as obrigações dos Estados são claras. Concluímos, assim, parafraseando Karl Menninger, psiquiatra norte-americano que indicou que “tudo que se dá às crianças, as crianças darão a sociedade”. Sem duvida não podemos aspirar viver em sociedades democráticas, inclusivas, tolerantes livres da violência se não empreendermos sobre a base da participação protagônica das crianças. Vivencias comuns sob princípios éticos e democráticos nas quais sejamos conscientes da diferença entre o que fazemos e o que somos capazes de fazer, isso já resolveria a maioria dos problemas do mundo. O desafio está em eliminar essa diferença em temas da infância.
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Capítulo 2
20 histórias: 18 histórias de jovens que completaram 18 anos em julho de 2008... ...e 2 histórias que não puderam ser contadas
Reconhecer cada história entrelaçada às realidades vividas por crianças e adolescentes no Brasil é a proposta aqui traçada. Entreolhar a partir do chão pisado, como direitos humanos tecem o dia-a-dia de crianças e adolescentes em cada caminhada. Pautada na história de vida destes jovens, a conversação se dá pela oralidade. Elisabeth, uma das adolescentes protagonistas deste projeto, ao nos contar sobre os costumes do seu povo, nos lembra a importância da oralidade: Contando histórias, mostram muitas coisas pra nós. Como deve se cuidar, ter cuidado com as crianças. E ensinar tudo o que fomos ensinados. Contar histórias, causo, piada guarani e lenda que parece ser real, mas que não é real... pode ser que seja. Os mais velhos contam histórias antigas de como era nossa aldeia, como que Guarani vivia. Por isso vou contar também.
Ressalta ainda que entrelaçada a sua história está a história de seu povo: Pra contar minha história, preciso contar a história antes da minha história, a história do meu povo, por que faz parte da minha.
E assim aconteceu com Amanda... Aparecida... Luanda... Carolina... Mariane... Denise... Mike... Elisabeth... Cauãn... Jorge... Rodrigo... Sofia... Laissa... Lila... Paola... Line... Beatriz... Maya... Mas, o que contar? Pensar numa história pra contar é difícil, né? Porque tanta coisa aconteceu na nossa vida. (Sofia)
Na conversação, as linhas se desenham pelo dito e pelo não dito, a construção se dá pela palavra, mas também pelo silêncio. Linhas escritas pelo narrador que viveu a história, o protagonista, em parceria com o entrevistador, estabelecendo uma relação dialógica. Assim constitui-se um campo de conhecimentos, de • • 18 anos, 20 histórias
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reflexões e aprendizados. Tomamos como ponto de partida que somos atores sociais e históricos e que qualquer metodologia a ser escolhida há de reconhecer o trabalho a ser realizado na parceria entre os envolvidos, ou seja, revelando ambos como produtores de saberes e práticas. O processo se constrói ao caminhar e, desta maneira pode modificar-se com avaliações realizadas no meio do caminho. A indicação dos adolescentes se deu via articulação com diversos atores do Sistema de Garantia de Direitos que atuam na área de atuação do CEDECA Interlagos, a região da Capela do Socorro e Parelheiros situado no extremo sul da cidade de São Paulo: Secretaria da Assistência Social da Capela do Socorro e organizações conveniadas que realizam o serviço de acompanhamento de Prestação de Serviço a Comunidade e Liberdade Assistida; Secretaria da Assistência Social de Parelheiros; Diretoria de Ensino Sul3; Escola Estadual David Zeiger; Escola Estadual Herbert Baldus; Colégio Santa Maria; Colégio Humboldt; Aldeia indígena Guarani Tenondé Porá e ONG Caminhando. Também realizamos um levantamento de adolescentes que já foram acompanhados em medidas socioeducativas em meio aberto nos sete anos que este Centro de Defesa executou este serviço. Outras organizações nos disseram que não conheciam nenhum jovem que faria 18 anos nesta época. Conversamos com Centro de Convivência e Cooperativa – CECCO, um Núcleo de Ações para a Cidadania na Diversidade – LACE, um Centro de Referência da Criança e do Adolescente – CRECA, o setor de atendimento Especial – ATENDE. Este ponto de partida traz uma escolha por perpassar a rede de instituições nas quais adolescentes transitam, ou seja, o adolescente indicado já teve algum trânsito na instituição em questão. Neste sentido buscamos instituições que pudessem trazer um quadro quanto mais diverso possível de adolescências, mesmo sabendo que não poderíamos alcançar a diversidade plena.
Com tais indicações, algumas linhas foram desenhadas:
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Adolescentes indicados pela rede pública de ensino, na 3ª série do Ensino Médio;
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Adolescentes indicados pela rede privada de ensino na 3ª série do Ensino Médio;
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Adolescentes que estão ou já estiveram inseridos em alguma medida socioeducativa em meio aberto (Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade).
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Adolescente indígena, do povo guarani.
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Adolescentes com deficiência.
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Neste percurso inicial algumas características do grupo de jovens que se formou já se faziam marcantes: •
Do total de 17 jovens indicados, 4 são do sexo masculino e 13 do sexo feminino.
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As indicações das escolas públicas e privadas foram predominantemente de jovens do sexo feminino, dos 12 jovens indicados, 11 eram do sexo feminino, e que por sua vez estavam em processo de conclusão do Ensino Médio;
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Neste período duas jovens engravidaram. Até o final do processo foram dois nascimentos...
No entanto outra parte do caminho só seria desenhada a partir das histórias vividas e principalmente pelos caminhos escolhidos por cada jovem nesse compartilhar de histórias. O primeiro contato com os jovens indicados deu-se de diversas maneiras: conversas telefônicas, visitas domiciliares e conversas nas instituições que indicaram nomes. O processo de reflexão acerca dos direitos da criança e do adolescente foi contínuo nestas conversas. Cada convite à organização, cada convite à adolescentes e às famílias pressupôs uma contextualização de onde esta proposta se insere. A coleta do depoimento se deu em três momentos: 1.
Círculo de histórias coletivo – Nesta etapa replicamos a metodologia construída pelo Museu da Pessoa1, aqui recriada a partir da lógica do debate de direitos humanos, essência desta pesquisa. O círculo de histórias é utilizado no primeiro momento pela riqueza da troca de histórias no âmbito coletivo. Cada participante escolhe uma história a ser contada ao coletivo. O único critério de escolha é ser uma história importante para quem conta.
2.
Entrevista individual 1 - Toma como foco a construção de uma linha do tempo, do nascimento do participante até o dia da entrevista, tendo ainda a possibilidade de projetar seus planos, desejos e sonhos em uma continuação imaginária desta linha.
3.
Entrevista individual 2 - Toma como foco o olhar de cada jovem sobre o bairro, a cidade e a sociedade.
No caminhar, algumas variações desta metodologia foram criadas a partir dos próprios jovens. 1 Referenciamos o Museu da Pessoa – um museu virtual de histórias de vida - que reforça a cada dia o potencial de cada história de vida na construção de um mundo mais justo e democrático - http://www.museudapessoa.net. • • 18 anos, 20 histórias
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As etapas, no entanto, mantiveram-se. Em alguns processos utilizamos outras ferramentas como disparadoras da conversa, estas foram escolhidas entre os envolvidos. Por exemplo, uma jovem trouxe fotos especiais para a conversa, outra tirou fotos da comunidade onde vive. Assim cada adolescente trazia o seu modo de caminhar, o seu modo de conversar e seu modo de conviver no processo. A cada encontro novas paisagens e construções eram desenhadas. Como “quem conta um conto aumenta um ponto”... Esse conto foi ficando assim cheio de pontos. Os pontos ligam-se, viram letras. Essa letra mais outra, mais outra, tantas palavras... Por sua vez, as tais palavras formam frases e são muitas dessas. Aí sim, novamente ligadas a um ponto ou até três pontinhos. As frases contam histórias e são como uma ponte que vai de um lugar a outro, sendo tantas vezes o mesmo e diferente lugar... O caminho percorrido reflete uma história também de 18 anos de existência de um marco legal brasileiro, que consequente a uma convenção entre muitos países, reconhece a criança e adolescente como sujeitos de direitos, não como objeto, não como menor, não como maior, mas sim como pessoa. As “vozes” nestas páginas podem fazer-se ouvir no simples falar e tem muito a contar. A nossa escolha pela conversa foi por conseguir olhar para o que está “entre”: entre uma pessoa e outra, entre o que cada um percebe como aquilo que lhe é importante e o que não está nas notícias. O que não cabe em nenhum número. Sentimos este livro pulsar e apenas construímos a ponte que possibilita o encontro entre narradores e leitor. Algo parecido como uma conversa entre histórias, a dos narradores e de cada um que lê. Histórias vividas por quem conta e, portanto, permeadas por questões humanas, questões que permeiam a vida de crianças e adolescentes no Brasil. Assim foram se delineando caminhos. Assim foram se desenhando páginas.
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“
Os olhos claros transparecem algo de delicado. A pos tura firme transparece algo de dureza. A menina Carolina tem olhos claros e pos tura firme. A v ida às vezes é bruta. mas em meio a vendavais segue em f rente, olha pra traz e diz : - Tive uns problemas meio chatos. A menina Carolina sempre foi do futebol. Ar tilheira de primeira, seguia no futebol os passos da v ida. Caia, machucava, logo levantava e seguia a par tida. Ria-se do tombo. Dizia: - Sou meio revoltada, meio briguenta, mas o que amo é minha família. Então , dia desses essa menina, desembes tou a chorar e não parava mais... mas o que faria Carolina chorar? E os sonhos que já eram tantos... apenas duplicaram seu tamanho.
Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher. Sou minha mãe e minha filha, Minha irmã, minha menina, Mas sou minha, só minha e não de quem quiser... (Renato Russo)
”
Oi!
Meu nome é Carolina. Nasci em julho de 90...
M
in h a m ã e e s t a v a g rá v i d a
de gêmeas... Só que a outra não se desenvolveu, por isso que ela acha que eu sou meio doidinha, assim, meio bagunceira... Acho que eu até herdei da outra, né? Ela não veio e deixou tudo pra mim! Minha mãe fala isso: “Tá vendo, oh, não deixou a outra nascer, a menina mal quis se desenvolver, você já matou a menina, só pra ela não tomar o seu lugar”. Essa é a história que a mamãe conta, pra me deixar meio constrangida, mas pra mim tanto faz, porque depois vieram mais dois, então, um a mais ou um a menos, não fez tanta diferença, não.
Ela namorava meu pai, mas era casada com ele na época que me teve. A gente morava aqui em São Paulo, lá na Lapa. Morei lá até meus três anos. Lá levei meu primeiro tombo. Estava com minha irmã brincando. Eu tinha três anos, minha irmã tinha sete. Ela inventou de fazer bolinha de sabão. Só que ao invés de soprar, engoli. E era de sapólio! Meu pai, desesperado... ...me pegou no colo, subiu a escada correndo, só que bateu a cabeça na quina e caiu rolando... bem em cima de mim. 56
Eu perdi os dentes que já tinham nascido. Fiz uma pequena cirurgia na boca, fiquei uns meses sem comer nada, só podia beber, tudo na mamadeira ou na chuquinha, não conseguia mastigar. Essa é uma história meio engraçada, mas com essa história aconteceu uma coisa meio desagradável. Meu pai foi embora, deixou eu e minha irmã, já era, foi embora... Como se nada tivesse acontecido. Foi embora! Minha mãe trabalhava e ele ficava em casa com a gente. Largou minha irmã lá na escola e... me deixou lá, ...com uma toalha na boca pra estancar o sangue. Foi embora... Quando minha mãe chegou, não tinha ninguém em casa, ...só eu, toda cheia de sangue. Minha mãe desesperada, já me levou pro hospital e depois, quando chegou em casa do hospital, com mais calma, viu que ele tinha deixado... um bilhete, CEDECA Interlagos • •
...dizendo que não dava mais, pra ele ali. Um tempo depois ela conheceu o meu padrasto, o Adriano. Gente boa... Foi comigo fazer o que tinha que fazer na minha boca, me levou no médico... Minha mãe começou a morar com ele.
Quando minha mãe foi ter minha irmã, não foi um parto muito bom, foi um parto difícil, tiveram que tirar ela à força, com aqueles ganchinhos (fórceps), sabe? Aí, ela teve que ficar uns tempos na UTI, mas
Quando eu engravidou de novo.
Tempos depois. Estávamos no bar da minha avó, na sua casa, pra passar o fim de semana. Era um sábado. Nesse dia sua casa estava sem energia (elétrica). Aí, minha mãe colocou...
tinha
nove
anos
ela
No dia que eu estava fazendo dez anos. Estava na casa da minha avó e minha mãe ligou dizendo que estava indo no hospital. Aí eu falei: “Não mãe! Você não vai ganhar ele justo no dia do meu aniversário?” É muito chato ter um irmão que faz aniversário junto! Depois de umas horinhas, meu padrasto ligou falando que minha mãe tinha ganhado. Falei: “Nossa, que chato, meu, ele vai ganhar meus presentes todos, como vai ser?” Maior guerra esse negócio de ter irmão fazendo aniversário no mesmo dia. Um ganha mais, outro menos ou você não ganha e ele ganha, você fala: “Pô! Meio desproporcional! Lógico que vão dar mais atenção pro mais novo, né?” Já me acostumei, estou mais aliviada, mas meus aniversários sempre foram uma chatice. Não gosto, vai perdendo a graça... Você vai ficando mais velha e o pessoal vai esquecendo um pouco. Não é a mesma coisa de quando era pequenininha... “pra quem que ela vai dar o primeiro
graças à Deus ela saiu bem.
uma vela lá no quarto, ...só que caiu e começou a pegar fogo na casa. Então, um homem que estava lá no bar, desceu e salvou minha irmã. Ela já estava toda... sufocada por causa da fumaça. Ela era pequena, um neném de cinco meses, não tinha nem como se salvar. Ele desceu e pegou ela lá. Levaram no médico e hoje está tudo bem. Ela fala pra caramba! Fala demais! Tenho duas irmãs e um irmãozinho. Fiz o jardim de infância primeiro. Foi legal estudar assim, fazendo bagunça de criança! Depois a primeira série. Chata, tem que tirar nota. Estudava no Pastor Brandão, terminei a quinta série lá, tinha dez ou onze anos. Aí, teve uns problemas chatos... ...Levei uma surra do meu padrasto.
pedaço?” Tinha graça dar o prime iro pedaço de bolo. Agora não tem mais. Minha outra irmãzinha... ...nasceu em 99, a Thaís, que vai fazer treze - não sei quantos anos tem direitinho. Ela também teve um acidente básico, nasceu com uns probleminhas que eu não sei o nome direito. • • 18 anos, 20 histórias
Eu comentei com uma amiga da escola, falei pra ela o que estava acontecendo comigo e que não estava conseguindo sentar na cadeira da escola. Foi meio bruto o que ele fez comigo. Era muito difícil pra ela mandar ligar em casa pra alguém vir me buscar. Aí, o que aconteceu? 57
Ela foi na diretoria. A diretora catou e logo na hora chamou a polícia. Aquilo ficou
minha amiga. Ela foi lá e chamou a diretora que me chamou.
bagunçando a minha cabeça,
Ela perguntou o que estava acontecendo e eu disse, “não foi nada não, só estou com a minha perna machucada”. Ela perguntou o motivo. Eu disse: “eu apanhei”. Foi nessa hora que ela chamou a polícia,
...tinha que fazer um monte de coisa. Tinha que ir pra delegacia, fazer exame de corpo de delito, um monte de coisa. Foi tipo assim: Eu não tinha lavado o quintal de casa. Aí, como eu era muito moleca, fui pro fliperama. Aí, meu pai chegou - eu chamo de pai, não falo padrasto, porque ele cuidou de mim até hoje e eu não conheço meu pai, nem faço a mínima questão de conhecê-lo - e foi lá no fliperama atrás de mim. Eu falei: “Ai, agora vou apanhar, meu!”. Aí meu pai falou: “Vou te levar pra casa”. Eu disse: “Não me bate, não me bate!”. “Vamos pra casa, que lá a gente conversa”. Quando a gente chegou ele falou: “Vai limpar o quintal”. Aí eu fui lá, limpar o quintal e depois que eu limpei, ele disse: “Não adianta você querer fugir, você vai apanhar, você sabia da sua obrigação!”. Aí ele começou. Apanhei. Minha mãe ficou chateada com ele, porque ele tinha me batido. Eu sempre fui pequenininha, nunca fui muito grande. E como ele é uma pessoa forte, com as cintadas que ele me deu, me machucou; como eu sou mais fraca, ficou muito machucado, inchado, muito dolorido, sensível. Aí,
ficou
tudo
...não dava pra sentar. A cadeira da escola é dura, né? Foi nessa hora que eu comentei com a 58
...porque a polícia pode ver... se a gente está machucada ou não. Pediram pra mostrar minhas pernas, meus peitos, meus braços, os lugares onde a cinta bateu e machucou. Como eu era pequena, não sabia se eu tinha que ir ou não com eles. Eles falaram: “a gente tem que levar você”. Me colocaram no carro de polícia e me levaram. Dez horas da manhã... Era sete horas da noite e eu ainda estava lá, na delegacia, fazendo boletim de ocorrência, eles estavam examinando o que eu tinha, fizeram exame de sangue, isso tudo. Minha mãe, preocupada, ...ligou pra escola e só falaram: “a Carolina foi pra delegacia”, só que não explicaram pra minha mãe o porquê, ...só disseram... que eu tinha ido pra delegacia. Aí, os policiais me trouxeram em casa, eu tomei um banho e eles esperaram meu pai chegar do serviço. Quando meu pai chegou, eles já tinham um mandado lá pra ele. “O Sr. tem que vir conosco”. Minha mãe olhou pra mim e eu comecei a chorar, ...com medo... CEDECA Interlagos • •
da minha mãe brigar comigo pelo que eu tinha feito. Pegaram minha mãe também e fomos pra delegacia... ...de novo! Aquilo já estava se tornando cansativo, eu era pequena, tinha acordado cedo e ainda estava lá, não tinha comido nada! Na delegacia resolvemos tudo. Assinamos uns papéis e ele não pode mais encostar em mim, se encostar é preso. Aí, tivemos audiência com o Conselho Tutelar. Fui eu e minha mãe pro Conselho Tutelar e... eu tinha que decidir... se queria ficar com minha mãe..., ou se preferia ir pro Conselho Tutelar, ficar com eles. Aí, fomos lá pro Fórum, acho que é Fórum que fala. Foi tipo uma entrevista também, com uma mulher que conversou com a minha mãe, conversou com meu pai e aí me chamou. A advogada entrou comigo. Quem teve que escolher isso fui eu... ...ficar com a minha mãe ou ir com eles. Ela pediu pra eu decidir se eu queria mesmo ficar com a minha mãe, sabendo do que podia acontecer comigo (apanhar de novo, ter que passar por isso tudo e meu pai ser preso), se eu queria que meu pai fosse preso caso ele me agredisse de novo. Eu falei que não, “Acho que isso não vai mais acontecer, ele não vai mais precisar me bater, ele pode ficar lá em casa, não precisa prender, eu querendo ou não, eu gosto dele”. Apesar de ele ter me batido, eu sabia que ele tinha me batido porque eu tinha errado. Resolvemos tudo lá. Aí tem uns papéis, se acontecer alguma coisa, eu mostro lá pra qualquer um, na hora e ele vai preso.
• • 18 anos, 20 histórias
Mas marcou, nunca precisou dos papéis. Depois disso ele não me bateu mais, só ameaça, coisa de pai: “Se você não fizer tal coisa, eu vou te pegar”. Isso até minha mãe fala. Bater que é bater, nunca mais me bateu. De uns tempos pra cá... ...meu pai verdadeiro apareceu. Me achou através de um site aí, que tem pelo computador, Orkut, sabe? Como meu sobrenome é único, ele colocou lá meu nome. Achou! Ele só entrou (na página pessoal) e não deixou nenhum recado! Só que aparece quem mexeu no seu Orkut, né? Aí eu entrei no dele e escrevi: “Como assim, você entra, mexe no meu Orkut, como se nada tivesse acontecido, não deixa recado, mensagem, nem nada?”. Ele: “Ah, você sabe com quem você está falando?” Eu falei: “Não quero saber com quem eu estou falando, só queria saber por que você mexeu no meu Orkut sem ter deixado recado nenhum!” Aí, ele falou: “Eu sou seu pai”. “Não, meu pai é o Adriano, que eu saiba o nome dele é esse”. Aí ele falou assim: “Não, fui eu que fiz você”. “Só prestou pra fazer, né? Porque pra cumprir com seu papel de pai, você não soube”. Ele falou que queria encontrar conosco. Falei: “Mano, não quero me encontrar com você! Sinceramente, você é um desconhecido que eu não pretendo ver tão cedo!” 59
Aí, ele falou que ia na delegacia, nuns lugares aí tentar me tomar da minha mãe. Eu respondi: “Mano, você pode conseguir, você consegue minha guarda e eu fujo, deixo você! Não foi assim que você fez com a gente? É assim que vai acontecer”. Ele falou que tinha uma casa, que pra vender precisava da nossa autorização, né? Tudo o que é dele fica no nosso nome e no da minha mãe, que é casada com ele ainda. Aí, nós falamos: “Se é por precisar vender, você vende essa merda. Nós nunca precisamos de nada até hoje” - Desculpa as palavras, mas é normal, era pra falar do nosso jeito, né?! - Ele falou que tinha uns terrenos lá pra vender, que pra vender ele precisava da gente... “Nessa hora você se preocupa, né? De saber se tem filho, se tem ex-mulher, se tem o caralho a quatro, mas na hora de vir aqui e prestar seu papel de pai, você não soube, você soube largar a gente ir embora”. Por isso que eu sou meio revoltada da vida, meio louquinha. Em 2004 ou 2005, ...não lembro a data, minha irmã mais velha engravidou. Eu jogava futebol e cheguei do jogo cansadona. Minha irmã começou a brigar comigo! - Ah, vai fazer... tal coisa. - Para de me encher o saco, mano, acabei de chegar do jogo!. Aí, ela veio e me deu um tapão. Na hora que ela me deu um tapa eu revidei, sabe? Fui pra cima. Eu me revoltei, fui pra cima dela e começou uma guerra entre eu e ela... Eu não tava vendo nada, ela puxou meu cabelo e enquanto ela 60
tava segurando meu cabelo eu chutei, só que aí pegou na barriga. Ela quase perdeu o neném... Eu lembro até hoje, era uma quinta-feira, uma tarde quente, um calor! Aí, foi pro médico e eu falei assim: - Caramba, será que ela perdeu meu sobrinho? O pessoal todo: - Você tá louca, menina? - Então tá bom, meu, eu vou embora! Peguei e fugi de casa, fui pra casa de uma colega minha, que morava aqui. Aí, minha mãe louca atrás de mim, bateu na casa dessa menina. A mãe dela disse que eu estava lá em cima. Minha mãe subiu e disse: - Vamos pra casa. Eu falei assim: - Não volto para aquela casa de novo não, eu vou pra casa da Nadine, não quero mais saber de vocês. Minha mãe olhou pra mim e falou: - Você vai, eu sou sua mãe e você vai, você é ainda menor mocinha! Voltei. Teve um dia que minha irmã foi fazer um exame e acabou tendo o neném! Como se fosse normal, ela telefonou e disse: - Liga pra mãe e avisa que eu já vou ganhar, o neném já está pra nascer! Eu fiquei mó feliz! Liguei pra minha mãe e ela falou: - Como assim? Minha mãe veio correndo, largou o serviço pra vir embora, ligou no hospital e perguntou: - A Nadine já ganhou neném? Falaram que não, só que minha irmã já tinha ganhado há umas quatro horas... Minha mãe poderia ter CEDECA Interlagos • •
assistido tudo, mas com o mau atendimento do estabelecimento ela não pôde ver nada, só soube por que minha irmã estava precisando de algumas coisas. O marido dela estava lá, mas ele não podia assinar nada por ela, eles não eram casados, a única pessoa que podia assinar era a minha mãe. Ela era de menor. Ela estava de seis meses. Depois disso, nós conversamos. Ela me pediu desculpa. Eu pedi desculpa pra ela e pedi desculpa pro neném! Mó da hora, mano, mó sensação à pampa. Hoje sou madrinha dele, do meu sobrinho. Nós somos muito apegados. Meu sobrinho é muito gente boa... Até o ano passado, eu jogava bola, mas agora não posso, estou meio parada... Eu era atacante. Sofri até um acidente jogando bola. Grave. Aqui na quadra da escola, na aula de educação física. Desloquei a bacia, coluna e meu joelho... Todo mundo jogando, correndo, a menina foi lá e esticou a perna, na hora que eu corri. Aí, eu voei na quadra! Tenho até cicatriz no braço. A quadra quente, né? Queimou. Na hora não senti nada. Fui embora e depois que eu tomei um banho e deitei, não consegui mais levantar da cama. Minha mãe chegou, eu estava lá, sem mexer pescoço, ...sem mexer nada, porque eu desloquei a bacia e minha coluna saiu meio do lugar, e assim eu não conseguia mexer nada. Minha mãe ligou pra minha tia e fomos pro médico. • • 18 anos, 20 histórias
O médico falou: - Ah, foi uma torção no joelho. Ele me deu uma injeção, me passou uns remédios e eu fui pra casa. Fiquei tomando soro na veia por um tempo e enquanto o soro estava fazendo efeito, não sentia mais nada. No outro dia, não conseguia levantar da cama de novo. Minha mãe falou: - Caramba, o quê que está acontecendo? Você já foi no médico e tomou remédio, vamos esperar. Se até o final da tarde não melhorar, a gente volta lá de novo. Chegou as cinco da tarde, eu não estava mais agüentando, ...estava me contorcendo de dor, eu não agüentava. Minha perna parou, eu falei: - Pronto! Perdi os movimentos da minha perna! O que vai ser de mim agora? Fomos pro médico ...de novo. Aí, colocaram aquela tala insuportável no meu pescoço, aí toma mais soro na veia, toma mais remédio... Foi na hora que eles resolveram tirar um Raio-X. Viram que minha bacia estava fora do lugar e começaram a passar uns negócios que não tinha nada a ver de novo. Fiquei com o pescoço entalado, um calor insuportável, coçando. Voltei pra casa... e volta pro hospital de novo, nada de melhorar, nada de melhorar... Foi quando olharam minha coluna, ...tiraram Raio-X total do meu corpo... ...pra ver o que tinha acontecido, aí foi quando descobriram, trataram e melhorou. Aí, minha mãe me proibiu de jogar futebol. Mesmo assim, eu... ...ia escondida jogar, 61
Minha mãe falava:
pra fazer esse curso.
- Pára de jogar bola, menina! E hoje parei de jogar bola,
Tem que ser criativo, com umas coisas meio doidas. Esse ano...
... futebol pra mim é só pela televisão. Meu esporte agora é entrar na internet! Fiz curso de informática durante dois anos e dois meses, agora faço de webdesigner e vou começar de inglês. De inglês não gosto, mas aproveito... Eu prestei atenção em informática quando eu comecei a ir na firma que pai trabalha, quando comecei a ver as máquinas e os detalhes do computador, falei: - É isso, é isso que eu quero fazer! Mexer com eletricidade, com esses negócios assim, tipo, computador. Via todo mundo da minha casa mexendo e comecei a me interessar. Minha mãe é secretária, a via digitando rapidão. O negócio é “zica” mesmo. Será que um dia eu vou conseguir fazer isso? Hoje tô entendendo tudo. Pra profissão que eu quero seguir eu preciso de outras línguas, pra poder resolver alguma coisa, pra explicar o que eu estou fazendo; porque com a computação você vai pra qualquer outro país. É tecnologia, né? A tecnologia hoje em dia está muito avançada. Webdesigner é da hora, eu gosto! Pra fazer webdesigner, tem que ser meio louco, porque senão ninguém presta atenção no seu site! Você vai fazer um site lá, um site de caixão, vai colocar um caixão na frente e já era - ninguém vai se interessar. Agora, faz um site de caixão com um fundo amarelo, põe uns negócios alegres de circo, fica diferente... assim que eles falam pra gente. Tem que ser meio retardadinho, assim, pra fazer, mas é da hora, meu! Você tem que ter um gênio meio diferente 62
Fui passar o ano novo na praia com o meu namorado. Eu estava com ele já ia fazer uns sete meses. Ele foi pedir autorização pro meu pai e pra minha mãe pra me deixar ir. Fomos pra praia e na volta, ...aconteceu! Dias depois eu estava indo pro curso e desmaiei na lotação. Falei: “Caraca, o quê será que aconteceu? Eu desmaiei?” Mas mulher sente, né? Minha menstruação parou e até então eu não tinha falado com a minha mãe. Estava com medo. Liguei pro meu namorado e falei: “Ó, está acontecendo isso, isso e isso”. Ele falou assim: - Se você tiver, a única coisa é a gente ter. A gente estava sabendo o que estava fazendo. A
barriga
começa
a
crescer, ...começa a sair um líquido meio nojento, sabe? É meio nojento isso... Eu tive certeza mesmo quando saiu um líquido branco, tipo leite. Fiz o exame de sangue e deu positivo. Fiz aquele teste de farmácia; todo mundo fala que não tem nada a ver, mas eu falei: - Vou fazer!. Deu positivo. CEDECA Interlagos • •
Nós somos de família espírita, que freqüenta centros. Aí, minha avó recebeu lá o espírito dela e a mulher falou que tinha uma criança na família. E minha irmã começou a passar mal no serviço, foi pro hospital. Quem sabe se era da minha irmã? Na semana seguinte o espírito voltou e falou pra ela que era uma de cabelo longo, loira e baixinha. Minha irmã tem cabelo longo, loiro, só que ela é alta. Aí, minha avó desceu lá em casa e falou: - Você está grávida! Eu comecei a chorar! Uma reação assim, sem noção! Fiquei com medo do meu padrasto, por tudo o que já tinha acontecido. Minha avó ligou pra minha mãe, que estava no serviço, e contou. Eu esperei eles chegarem, mas quando minha mãe chegou, já comecei a chorar de novo! Meu pai chegou e eu pensei: “Pronto, agora eu vou ser mandada embora de casa de vez!” Minha avó pediu pro meu pai sentar, minha mãe também sentou e falou: - A Carolina está grávida. Eu comecei a chorar, ...eu só chorei naquele dia, ...só chorava. Minha mãe disse que já sabia. Quando é mãe sente, né? Eu estava estranha, tava meio mudada. Meu pai deu o maior apoio, passou um sensação muito boa. Ver que você vai ser mãe, muda a sua vida totalmente, né? Eu adorava ficar bagunçando na escola, agora quando venho pra escola fico quieta. Até a diretora falou: -Você? Grávida? Jamais deve ter passado pela cabeça delas que isso ia acontecer comigo. Eu sou meia doidinha, meia bagunceira! Mas agora está tudo bem, graças a Deus. Minha mãe está super feliz... Meu pai mal chega do serviço e... ...já pergunta: - Como está meu bebê?
• • 18 anos, 20 histórias
Meu sobrinho, que é bem apegado, se distanciou de mim na primeira semana, chegava perto de mim e me batia. Ele tem três aninhos. Ele chega da escolinha e diz: - Madinha, madinha, me ajuda a fazer a lição? Tenho que levar pra escola, se não a professora briga. Começo a ajudar e ele diz: - Não, mas eu quero pintar dessa cor. - Não, Dedê, a professora mandou pintar dessa, digo, tentando convencê-lo. Ele vai direto ao ponto: -Caramba, esses professores tudo chato! Por que não deixa pintar do nosso jeito? A lição é nossa ou é deles? Eu explico direitinho pra ele. Depois que ele sai da escolinha ele vai lá pra casa, aí a mãe dele chega do serviço e o pega. Ele gosta de ir pra lá, porque a gente fica bagunçando. Minha família é família boa, é gente boa. Moram eu, a minha mãe, meu pai e meus dois irmãos: Thaissa e Ricardo. Minha irmã, a Nadine, é casada, mora num bairro diferente, na casa dela com o meu sobrinho, mas é perto. Dificilmente a gente fica distante, só pela rotina de serviço e de curso é que a gente fica separada, mas tirando isso, quando tem tempo, todo mundo vive junto, enchendo o saco, bagunçando... É praticamente um círculo onde eu moro. Tem o ponto final das peruas, que é quase do lado da minha casa. Anda só um pouquinho. 63
Atravessando a avenida, tem a igreja paroquial. Eu não sou muito de ir na igreja não. Este (envolto nas mãos) é um escapulário azul que eu ganhei de uma amiga que me ajuda bastante... Pegando a avenida dá pra ir pra escola, tem a papelaria e a Doceria da Dona Flor. Se você tiver com fome, é só ir pra Flor. Pega firme! (risos). Médico, ...só quando me machucava (risos), quando atacava a minha alergia. Tenho problema de fígado, né? Como amendoim, enlatado, ataca. Emergência? Só na farmácia do lado da minha casa. Escola! Vixi Maria! Eu não gosto da escola..(risos) Sinceramente, por mim eu não vinha mais pra escola. Eu gosto de bagunçar na escola. Escola é pra bagunçar. Ficar escutando música é uma coisa proibida agora, né? Jogo também não pode. Alguns professores abrem exceção pra nós. Particularmente, eu não gosto. Sei lá, umas coisas sem noção que tem na escola. Sua mãe falou como é que era o ensino dela antigamente, né? É totalmente diferente do nosso ensino hoje. Quando perguntamos: - E ai professor? É pra vir a amanhã? Ele responde: - É sexta feira, vocês são burros? Vocês vão vir fazer o que na escola? Sexta feira não tem aula! Como é que a gente bota na cabeça que a gente vai vir pra escola? Não dá! O professor incentiva a gente a ficar em casa. Ninguém vai. Não compensa você entrar numa sala com dez alunos. Na sala tem quarenta, se entra na sala 64
que tem dez, o professor não tá nem aí, não vai cobrar nada mesmo. A gente vai e o professor fala pra não encher o saco. Como é que pode estudar desse jeito? Como que tem vontade? E depois eles reclamam. Como que se interessa? Os professores mesmo incentivam a gente a não vir pra escola! É o nosso futuro que tá em jogo! É mano, mas... Estamos no último ano, quem vai colocar na nossa cabeça que a gente tem que fazer alguma coisa? Minha mãe fala que o ensino no tempo dela era totalmente diferente. Não tinha essas mordomias, pra pesquisar trabalho, era no livro. Lendo no livro. Agora não, vai lá na internet, coloca qualquer coisinha e acha! Passa pro Word, configura e entrega. Sem ler, sem saber o que tá escrito. Colocou, passou, configurou, já era! Os professores pegavam mais no pé pra estudar. Passavam mais dever de casa. Agora o que a gente tem? Tem lição de casa? Não tem! Antigamente eles preparavam o pessoal pra ir pra faculdade, pensavam no futuro né? Agora não! Não prepara pro mundo, nem pra faculdade, não prepara pra nada. Pra minha filha, ...eu quero que seja totalmente diferente. Não pretendo colocar ela em escola pública. Eu quero colocar ela numa escola que tenham professores que pensam no futuro, né? Que não falam pra gente não ir pra escola. Não fala pra faltar, pra ficar em casa, pra não encher o saco. Quero um professor que pegue no pé, que passe lição, conteúdo, é diferente da nossa escola hoje. Professores que realmente querem estar ali pra dar aula,... ...que estejam presentes. CEDECA Interlagos • •
O ano passado tinha professor que incentivava a gente a estudar, que passava conteúdo e ajudava o nosso futuro, mas esse ano é totalmente diferente! Os professores não tão nem aí pra nada, se tem dois ou três que pensam nisso, é muito. Você tira por essa prova que teve aí do estado, do governo, sei lá. Passaram coisa que nós nunca vimos na escola. Porcentagem foi uma coisa que não vimos na escola. Passamos a ver nesse último ano. Os professores falam que é coisa de oitava série. Mas qual o professor que passou isso pra gente na oitava série? Na oitava série eu aprendi geometria. Na escola... ...o que mais me marcou foi a minha professora de Português. A Zuleica. Professora dez meu. Para aquela ali eu tiro o chapéu em todas as ocasiões. Era professora e tipo “amiga” mesmo. No primeiro dia que ela entrou na sala, todo mundo já a conhecia. No primeiro dia, já ficou nervosa comigo, tivemos uma briguinha básica. Só que com o decorrer do tempo, como a gente não se interessava nada pela escola, ela chegava, dava conselho, se você tivesse triste na sala ela percebia, se você bagunçasse ela percebia. Ela sempre foi a coordenadora da sala... Se você tirava uma nota ruim assim, ela chegava e... ...falava um monte mesmo. Um monte pra te ajudar. Uma professora dez mesmo. Sinto mó falta dela. Converso com ela pelo computador. Aquela ali • • 18 anos, 20 histórias
eu posso falar, viu? É uma amiga mesmo. Se não fosse ela, acho que eu tava ainda na sétima, oitava série. Ela que abriu meu olho: “Estuda menina!”. Eu fazia as lições no primeiro e segundo bimestre. Chegava no terceiro e no quarto não queria saber de mais nada. Só tirava nota vermelha. Ela falava: - Você não é menina de ficar tirando nota vermelha na escola. Você tem conteúdo. Aí bateu na cabeça... Pra me divertir, antes ia pra pracinha ...que é onde tem show de vez em quando. A gente se divertia lá. Todo sábado colocava as caixas de som nessa praça e ficava ouvindo musica à noite. Passava funk, pagode, esses negócios. Todo mundo se encontrava lá. Tanto menino quanto menina. Tanto nóia quanto... tudo! Tudo ia pra lá. Aconteceram umas coisas lá... Os polícias saíram dando tiro pra cima de todo mundo... Porque dava muito bandido, essas coisas assim, né? Agora fechou. Não tem mais. Agora o último domingo do mês, ali na João, tem a festa da esquina. Aí vem um monte de MC pra cá cantar. Na escola tem uns MC. Os meninos mesmo daqui do bairro organizam. Aqui perto podia ter também um parque pras crianças. Não tem onde as criancinhas brincar. Na pracinha mesmo. Escorregador, gangorra, balanço. Não tem. Só no domingo que tem a rua de lazer. Eles fecham de ponta a ponta, mas as criança não tem a gangorra, não tem o balanço. Antigamente tinha.
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À noite? A Flor fica aberta até oito horas. A padaria, que, de segunda a quinta fica aberta até umas dez. E de sexta, sábado e domingo, é vinte quatro horas. Aí fica uma baguncinha lá. Dia de sexta, vão uns meninos com carro lá fica fazendo barulho, escutando funk. Não sou muito fã de funk não. Isso pra mim é barulho. Quando esses lugares ficam fechados, fica mais sossegado a noite. Segurança! Vixiii. Isso existe? Isso não existe aqui. Ah, eu não acho que tem segurança onde a gente mora! A gente se sente segura porque a gente é colega dos meninos, sabe que ninguém vai fazer mal pra gente, mas se não fossem os meninos pra passar essa confiança, a gente teria medo de sair na rua. Porque ficam, uns meninos na esquina fumando e outros ‘cheirando’. Como é que você pode ter confiança num bairro que tem “nóia” em cada esquina que você passa? Não dá. Os meninos não gostam dos polícias, os polícias não gostam dos meninos, ...começa aquele pé de guerra, mano,... tem dia que você tá dormindo, escuta barulho de tiro. Não dá. Como é que se pode confiar? Aí, começa a juntar bebida com droga, todo mundo bem loco, como é que se sai na rua? O que mais dá medo é confronto... Os meninos contra os policiais... Qualquer bairro está tendo isso agora. Quando começa muita movimentação de polícia lá no bairro, eu até desço pra minha casa, porque vai que acontece algo comigo... Teve um baile funk esses dias aqui perto. Os policiais... ...deram tiro em todo mundo. Como pode? Eu vou pra um lugar que
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se sabe que a qualquer hora eles podem chegar... Qualquer hora eles podem brigar... Quando a pessoa tá drogada, bêbada, ela não tá nem vendo. Vai pra cima, enfrenta mesmo. Não tá nem aí com as conseqüências, não. Era tiro de borracha, mas machuca. Tem muita pessoa que tá ali só pra curtir o final de semana, que não tem nada pra fazer, que vai lá escutar uma musiquinha. Aí começa esse pé de guerra. Como é que vai ter vontade de voltar pra lá? Eu não gosto disso não. Já não gostava, agora não vou gostar mesmo. Não vou dar esse incentivo pra minha filha. Ah, pra minha filha queria... ...um lugar com mais lazer pras crianças, um bairro que tivesse lazer né? Que não tivesse tanto esses negócios de polícia contra bandido, contra “nóia”. Um lugar mais sossegado, mais calmo. Totalmente diferente daqui, mais reservado. eu quero dar pra minha filha... um ambiente melhor. Totalmente diferente do que eu vivo agora. Eu sei que é ruim, mano, você morar num lugar que é bem movimentado. Devia ter um lugar adequado pra colocar esse tipo de música. Como pode uma padaria ficar aberta vinte e quatro horas com o som no último volume? Ninguém dorme. Não dá. Como a minha filha pequena, vai poder dormir num lugar desse? Não tem como. Qualquer hora os meninos passam de moto, fazendo aquele barulho, estralando as motos. Imagina eu passando com a minha filha na rua e começa aqueles “pá, pá”? Eles não estão nem aí. Dane-se se tem criança ou não. Vão fazer barulho do mesmo jeito, tão curtindo a vida deles. Isso não vai ser legal. Uma neném
CEDECA Interlagos • •
pequenininha, recém-nascida, com esses barulhos no ouvidinho dela! Não pode. É desproporcional né? A gente pretende ir pra Sorocaba. Porque eu tenho uma tia que morava lá. A gente ia pra lá de final de ano, passar Natal e Ano Novo lá. É que meu pai é metalúrgico... ...e como eu vou mexer com a área de computação, no interior é mais fácil de arrumar emprego, bem mais fácil do que aqui na Grande São Paulo. Minha irmã ainda está pensando se vai sair mesmo de São Paulo, mas eu, minha mãe e meus irmãos já praticamente decidimos. Ir mesmo, nós queríamos ir pra Fortaleza. Vamos pro interior já sabendo que quando meu pai e minha mãe se aposentarem, nós vamos embora pra Fortaleza. Lá era a terra do meu pai. Agradável, a família toda lá, é legal... mas uma coisa vai ser meio chata, tenho uma grande amiga aqui, largar ela vai ser meio complicado. Mas... a gente supera. Tem computador agora, a tecnologia está avançada, não vamos ficar “muito” distante! Eu gosto pra caramba de onde moro, tenho várias colegas. Conheço gente demais. Falo colega, porque eu diferencio bastante o termo amigo e o termo colega. Colega eu tenho um monte; amiga, só tenho uma. Daquela ali eu não escondo nada. Caiu um fio de cabelo meu, ela já tá sabendo e vice-versa. Quando a gente for embora, eu vou sentir muita falta dela. Mas... já estamos superando, aos poucos. Conheço ela desde que eu era pivetinha, tinha quatro anos quando eu a conheci. Vai ser a
• • 18 anos, 20 histórias
madrinha do meu filho. A gente sabe o que a gente vai passar, sempre deixamos bem claro uma pra outra. Esse é um sonho de todo mundo da minha casa. Sair de São Paulo. A gente prefere mais o interior. Todo mundo, até meu irmãozinho, que tem oito anos. Eu sempre quis morar em Fortaleza, eu acho os negócios lá “da hora”. Mas o interior, pra mim, vem antes de Fortaleza. Fortaleza é mais pra bagunça, pra você curtir, pra você sair. Agora lá no interior, não. Lá é pra pegar no batente e trabalhar. Se você não trabalhar, não tem como viver lá. Já trabalhei em restaurante de culinária italiana, mas eu saí, fazia os cursos e ia pra escola. Fica meio puxado, né? Pra fazer tudo isso e ainda olhar meus irmãos pra ajudar minha mãe em casa, fica complicado. Não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo. Aí, resolvi deixar o serviço de lado e cuidar do meu estudo. Vou investir nos estudos..., não no nível de uma faculdade agora, mas vou fazer uns cursos bons, desse jeito fica bem mais fácil pra você arranjar um emprego e se adaptar na área que quer. Porque não adianta você fazer um curso de informática e querer ir trabalhar num restaurante. O que adiantou, o tempo que gastou? Webdesigner também, não tem nada a ver, a não ser que o meu patrão chegue e fale: “faça um site pra nossa empresa”. Eu penso em fazer esses cursos. Quando eu terminar, vai ficar mais fácil pra eu achar um negócio que eu goste, que eu goste de fazer. Se for mesmo pra fazer alguma coisa, eu vou fazer veterinária. Eu, minha mãe e minha prima já estamos guardando dinheiro. 67
Eu comecei eu tinha onze anos, ela começou com dez. Vamos abrir um negócio junto; fazer a faculdade junto, terminar junto... Minha mãe é secretária. No momento ela está trabalhando, por isso ela desistiu um pouco de fazer, mas eu e minha prima sempre, nós sempre nos encontrávamos e falavamos: - Do que nós vamos brincar? Vamos montar nosso escritório, aí, vamos cuidar dos bichinhos. Eu nunca quis brincar de casinha, bonequinha esses negócios,... Eu nunca brinquei de boneca, nem de pequenininha, que nem essas menininhas que ficam brincando. Eu sempre fui meio loucona, mais maloqueira, mais da rua, jogar bola com o time no meio da rua. E assim foi indo. Minha vida foi meio triste, mas ao mesmo tempo, eu sabia diferenciar o que estava acontecendo dentro de casa e as baguncinhas da rua, minhas amizades... Sempre soube diferenciar tudo. Sempre tomei uns tombos, pra ver se eu tenho que fazer aquilo, se não, eu não faço. Eu não sou de ir pela cabeça dos outros: - Você tem que fazer isso. -Não, mano eu não vou fazer o que vocês estão pedindo. O que vai me adiantar? Chega um: - Ah, vamos ali, vamos ali fazer uma bagunça. Tipo, você juntar uma turma, ir pra um cinema, ir pro shopping, você vai bagunçar, só que é diferente. Se eu vou pro salão, é uma bagunça diferente. Mas tem aquele pessoal que quer envolver droga, quer envolver roubo, eu já descarto, porque... ...minha mãe é uma pessoa que eu coloco em primeiro lugar... 68
...em tudo o que eu vou fazer, penso na minha mãe. Não penso nem em mim, penso nela. É uma pessoa que sempre batalhou, sempre teve seus objetivos. Eu sempre segui os exemplos dela, ...aquela ali pra mim é tudo. Joana. Minha mãe é tudo pra mim, eu deixo bem claro, todo mundo sabe. Falou da minha mãe, arrumou briga comigo. Eu sou assim, meio revoltada, sou muito briguenta, ...nossa, eu brigo demais! Trazer desaforo pra dentro casa eu não trago, mas também não fico arrumando briga à toa no meio da rua. No ano passado eu tive uma briga com uma menina aqui na escola, por causa do meu namorado. Ela mandou uma carta pra ele. Você tem um namorado, você vai querer saber o porquê da menina estar mandando aquilo pra ele, né? Ele chegou e me mostrou, eu peguei a carta e cheguei nela, dizendo: - O que está acontecendo? Você está mandando uma carta pro meu namorado? - Não mandei nada, não. Gritando na frente de todo mundo. Aí, eu falei assim: - Não, eu não vim te bater. Ela falou: -Então, bate! Você e sua mãe... Falou o nome da minha mãe, na hora que ela falou o nome da minha mãe, eu a arrastei nesse barranco todinho aqui da escola. Na hora que eu estava subindo ela falou: - Pode ir lá chamar a sua mãe. Sua mãe é otária igual você. Na hora que ela falou “Sua mãe é otária”, CEDECA Interlagos • •
eu não tive dúvida, o sangue subiu... Falou o nome da minha mãe, pra mim, xingou o mundo inteiro. Aí, voltei, na hora que ela olhou e viu que eu estava descendo, ela já abaixou. Assim que ela abaixou, eu já catei e bati a cabeça dela bem numa quina que tem; ela já ficou meia tonta. Eu comecei: bati, bati, bati, quebrei o óculos dela, machuquei minha mão. Mas eu continuei batendo. Aí, ela veio e correu pro barranco. Nossa, aí não tive dúvida, na hora que a derrubei, peguei as pernas dela e saí arrastando ela no barro. Falei: - Isso é pra você nunca mais falar o nome da minha mãe. Pra você ficar bem ciente de quem é a otária aqui. E as amigas dela olhando e não fizeram nada. Na hora que eu estava indo embora, eu fui falar com a amiga dela: - Se vocês quiserem falar alguma coisa, podem falar, mas falem de mim, não fala da minha mãe não, tá? Aí, ela foi lá em casa, falar pra minha mãe que ia fazer B.O. Eu falei: - Pode ir, mano, fazer o que vocês quiserem lá na delegacia, eu tô pouco me lichando pra vocês tudo. Aí, a mãe dela falou: - E se eu fizer com você a mesma coisa que você fez com a minha filha?
Eu não gosto de ficar falando... ...até no dia que vocês convidaram de contar a história da minha vida toda, eu falei: “Nossa, mano, será que eu vou me adaptar de fazer esse bagulho aí?” Aí eu começo a falar, é capaz de vocês até ficarem com medo: “Não vou fazer entrevista com essa menina não, ela fala demais!” Mas, até então, está tudo fluindo de acordo, por enquanto está tudo bem. Mas eu não preciso brigar não. Eu não sou convencida, mas eu tenho quem faça por mim. Se eu não faço, eu tenho quem faça. Ela sabe que se ela mexeu comigo ou com a minha filha, ela não mexeu só comigo, mexeu com várias pessoas. Pra mim, antigamente, falar no nome da minha mãe já era questão de querer bater. Se eu pudesse matar e não acontecer nada! Meu maior medo é a morte. Deles... De perder o que eu tenho hoje. Minha amiga. Minha filha. Minha mãe. Alguém da minha família, que mora comigo. Não é nem tanto a minha, é deles. Não só pra morte. Medo de qualquer pessoa que possa fazê-los triste. Infeliz. Medo de vê-los sofrendo.
Falei: - Pode fazer, não passa vontade não. Mulher que é mulher, pra mim, não fala, faz.
Algumas semanas depois...
Agora tem umas louconas que já estão falando da minha filha, que eu já não estou gostando...
Vou casar e... decidi casar longe.
Eu sempre tive minha vida bem fechada. Sempre era eu, minha mãe e minha amiga, é sempre entre nós. • • 18 anos, 20 histórias
No domingo ele veio. A gente tava lá, como sempre. Conversa vai, conversa vem. Ele perguntou se eu queria ir morar com ele, casar com ele. Comecei a chorar e saí da sala. Saí correndo! 69
Saí correndo, entre aspas, né? Deixei ele lá com a minha mãe (risos). Eles ficaram ali, conversando direitinho. Mas depois eu respondi. A sensação é legal, meu! Pô, gostei. A minha vida tá assim agora, as pampas! As pampas é assim, legal! (Risos) É mania, é mania de eu falar ‘as pampas’. Já acostumou. Fiz o ultra-som. As pernas começaram a ficar bambas, eu comecei a suar. Na hora que passou o gelzinho e aquela maquininha, apareceu duas bolinhas na tela. Meu coração começou a acelerar, minhas pernas ficaram bambas, minha mãe deu um grito na sala também! Todo mundo parou e olhou pra ela, ela tá super feliz! Eu falei: “Pronto é gêmeos!” Aí o médico falou: - Pra sua infelicidade não. - Não, pra felicidade mesmo. Se fosse gêmeos logo na primeira é ruim. Era pra eu ter sido gêmea, né? Como eu já falei... - Parabéns, é uma mocinha. Ai foi uma sensação legal. Vi uma menininha, Juliana. Minha mãe tem um netinho, né? O sonho dela era ter uma menininha agora. E eu dei esse presente pra ela. Minha mãe é mó bobona né? Ela gosta da gente, assim, ela coloca a gente em primeiro lugar. Aí eu falei: 70
- Mãe, quer ser madrinha da minha filha?. Ela não aceitou, falou que ser madrinha e avó não tem graça. Ela prefere ser avó. Aí eu deixei ela escolher o nome da neném. Ficou super feliz. Minha mãe e o pai da neném escolheram juntos. No pré-natal, eu comecei a ir pelo meu convênio. Só que tava muito rolo. Fiz ultra-som eles num viram nada. Não dava. Eles não acontecendo,
falavam
nada
que
tava
o que precisava tomar. Aí, fui ao posto de saúde... Na maternidade. Tô fazendo lá e deixei o convênio de lado, o atendimento de lá é bem melhor do que o do convênio que eu tenho. Agora estou na maternidade de Interlagos ...eu consegui ver o sexo, escutar o coraçãozinho. Tô tomando os remédios direito. No convênio não tinha nada disso. No ultra-som deles não deu pra ver, não passaram remédio, não passaram receita nenhuma, nada que eu tinha que fazer. Então procurei outro lugar, pra ver se eu fazia alguma coisa pra criança, né? Porque, comer, eu tava comendo já. Precisava de uma vitamina. Agora nesta maternidade! Tá sendo ótimo. Faz pouco tempo, não tem nem um mês que eu vou (Maternidade Interlagos). Quando entrei tava com vinte semanas já. Minha mãe me levou. Logo que dei a noticia, ela começou a correr atrás dos negócios. Foi excelente. A primeira (consulta) foi pra passar com o médico. Fazer, escutar o coraçãozinho. Um barulho CEDECA Interlagos • •
meio estranho que faz; no começo parece um rádio desconectado. Aí o médico falou assim:
Viver nossa vida!
- Tá escutando? É o coraçãozinho do seu bebê. Aí minha mãe começou a tremer, a chorar, de emoção. Meu deus do céu!. Meu coração começou a acelerar, mas é ótimo. Melhor impossível. Todos super atenciosos. Tudo carinhoso. Consegui fazer tudo isso nesta maternidade e no convênio eu não consegui fazer nada. Super atencioso, o médico. Quando minha mãe tava grávida do meu irmãozinho, minha mãe passava com ele. Eu me senti mais segura né? Se a família já conhece fica mais fácil. Se pega um médico que você nunca escutou falar, que vai mexer em você, que vai falar da sua filha. É diferente. Agora quero casar!
Pra minha filha, quero um ambiente melhor. Porque esse... Esse é desproporcional, né?
“Sou gente, tenho direitos!”
Nós vamos morar juntos! Tem a casa já. Depois a gente vê esse negócio de casamento. Agora no momento nós vamos morar juntos. Eu, ele e a bebezinha. Num sei direito o bairro, mas não é aqui. Não é longe, mas também não é perto. É por aqui. Ele não quer morar perto dos pais, da família. A gente quer deixar família mais pra visita. Casar. Melhor coisa. Ele já achou a casa. Já tá tudo certo. Só falta ir embora (risos). Nós vamos depois que eu ganhar. Minha mãe quer ficar mais presente, assim, no primeiro mês. Aí em novembro, dá tempo de arrumar tudo, de colocar os móveis no lugar, já pra gente ir e não ter trabalho de fazer nada (risos).
• • 18 anos, 20 histórias
que fazes por sonhar É o mundo que virá pra ti e para mim Vamos descobrir o mundo juntos Quero aprender com o teu pequeno grande coração (Renato Russo)
71
“
No dia que nasceu, ela foi logo para a incubadora. Desde então era de longe a mais cuidada e ai de quem não acreditasse... Foi crescendo em meio à tia, mãe, primo, pai, vó, mais primo, irmã, tio, mais prima, mais tio, vô, mais prima, mais tia, mais vó, tio, mais... Sempre alguém es tava a chegar, seja pra visitar ou pra ficar. Assim cresceu Dedé, e assim crescia a casa, de puxadinho em puxadinho. Cada família é de um jeito, a de Denise era imensa e se juntava a cada aniversário. Família pequena, família grande, família de pai e mãe, com filho parido do ventre ou parido do coração, família com duas mães, ou com dois pais, família de irmãos, família vó e neto... Afinal de tantos tamanhos e jeitos pode ser uma família...
Família é quem você escolhe pra viver Família é quem você escolhe pra você Não precisa ter conta sanguínea, é preciso ter sempre um pouco mais de sintonia (Marcelo Yuka)
”
Sou Denise,
quando era pequena me chamavam de Dedé. Nasci no dia 03 de julho de 90.
T
odo mundo fala que eu nasci
muito pequena. Tinha bronquite e fiquei um tempo na incubadora. Nasci com alguns problemas. Meus pais são de Minas. Meu vô por parte de mãe morava aqui e minha vó morava em Minas. Minha mãe engravidou de mim lá em Minas. Meu vô estava construindo a casa aqui em São Paulo. Depois meu pai veio pra cá também. Aí passou um tempo, minha mãe veio... Aqui, eles casaram... Minha mãe tinha mais ou menos uns vinte anos e meu pai uns vinte e três... Até que uma irmã da minha avó, que morava aqui faleceu e não tinha quem ficar na casa... Aí minha vó veio também... Veio a família toda! Só ficaram lá dois tios meus que eram casados. Na época que nasci morávamos no Grajaú, que foi o primeiro lugar que minha família morou. Passado um tempo viemos pra esse bairro. Porque a gente morava lá de aluguel. Lá em casa todo mundo sempre foi muito unido. A família inteira.
• • 18 anos, 20 histórias
Todo mundo sempre morou no mesmo quintal: Em baixo... ...moram minha vó com minha tia e dois tios. Em cima... ...moram eu, meu pai, minha mãe e meus dois irmãos. Um pouquinho mais pro fundo... ...moram meu tio, a mulher dele e meu primo. No outro lado... ...moram uma prima da minha avó e um afilhado dela. E no outro lado... ...moram mais dois parentes. No quintal mora um monte de gente! Moram cinco famílias! Cada uma em uma casa. No mesmo quintal. O terreno é aquele que minha vó herdou. Hoje, essa minha avó tem uma chácara também, aqui perto. Meu vô que fica lá, porque minha avó teve derrame ano passado e não fala, 73
nem anda. Ela tá bem melhor agora, porque, antes ela não falava nada, agora ela já resmunga, já xinga, já faz um monte de coisa. Por parte de pai... Minha vó e meu vô ficaram doentes. Por causa de bebida e por causa de cigarro. Minha avó morreu de câncer nos ossos. Meu vô não sei. Eu não fui em nenhum um dos velórios. Minha vó sei que morreu depois que meu irmão nasceu.
...tinha a EMEI, mas era muito difícil entrar. E acho que tinha uma faixa etária certa pra entrar, acho que quatro anos pra cima. Eu ainda era novinha. Quando tinha três anos, ...minha irmã nasceu.
Todo mundo falava que a bichinha era ruim, porque demorou pra morrer.
Carolina. Ela nasceu dia vinte e um de julho e eu faço aniversário dia três de julho. Minha irmã nasceu uns dias antes do aniversário da minha mãe. Pensaram que era menino, mas se enganaram. Antes eu era a mais nova de toda a família, a neta mais nova, agora não mais.
Minha vó era que nem eu, muito desbocada.
Ela praticamente tinha tomado meu colo.
Todo mundo fala que eu puxei minha avó. Que minha vó falava mesmo. Xingava. Os nomes dos cachorros dela eram estranhos. Tinha uma cachorra dela que o nome era Dona Maria. “Dona Maria, Dona Maria!”. Tinha outra que chamava Piranha. A cachorra começava a latir e ela começava “Cala a boca, Piranha!”.
Fiquei chateada... Além de ser mais nova, eu era mimada... Mas até acostumar, não demorou muito não. Hoje, somos eu e mais dois.
Minha avó demorou pra morrer.
Minha vó dava carreira em todo mundo! Saía do quarto correndo atrás dos outros na rua, minha avó era mó brava, todo mundo falava. Ela morava num lugar que tinha muita fruta, manga, tinha acerola, um monte de coisa. Aí os meninos pulavam pra pegar manga e ela saia correndo atrás do moleque na rua com o facão. Pipa então, nem se fala! Ela também morava em Minas. Com dois anos, comecei a ir pra escola... Eu via o pessoal falando na Tv e não queria esperar. Minha mãe me colocou na escolinha. Fiquei só um ano lá, porque fechou, mas fiz um monte de coisa nessa escola: festa de aniversário, não saia de lá... Fiquei triste porque não tinha outra escola... 74
Sou a mais velha. Todo ano vinham meus primos que moravam em Belo Horizonte para passar férias aqui. Tanto por parte de pai, como por parte de mãe. Vinha um monte. Aí ficava parecendo uma creche a casa, porque era um monte de criança. Eu sempre fui muito mimada, não gostava que brincassem com as minhas coisas. Lembro que quando tinha seis anos, uma prima dois anos mais nova que eu, veio pra cá. Toda vez ela vinha pra minha casa ficava mexendo nas minhas coisas. Eu tinha que arrumar sozinha e tinha a maior raiva disso. Até que um dia eu fui pra casa dela, brinquei e mandei ela arrumar. A mãe dela ficou com raiva de mim e foi atrás de mim. Essa era a prima que eu mais brigava. Saía até no tapa com ela. Lembro que foi bem na época que ainda passava o Sitio do Pica-pau Amarelo, na Cultura. CEDECA Interlagos • •
Mas no fim, elas (tia e prima) acabaram morando em casa com a gente um tempo e... ...tive que sair do meu quarto e ficar na sala. Colocaram minha cama na sala e eu dormia lá. Morria de medo da Cuca! À noite nem dormia direito, gritava e ia pro quarto da minha mãe... Sou sonâmbula, eu falo a noite. Essa coisa de morar todo mundo junto sempre tinha alguma coisa complicada. Teve uma vez que minha mãe tinha saído com a minha irmã e eu tinha ficado em casa... Meus primos adoravam me atentar... Minhas primas todas tinham cabelo ruim, elas adoravam fazer escova no cabelo. Elas sempre iam arrumar o cabelo! Então, teve um dia que meus primos ficaram me atentando lá debaixo. Aí peguei a mangueira e... ...comecei a jogar água. Molhou o cabelo das duas e o quintal inteiro. Eu lembro que era mó briga com esse povo. Nessa época eu sempre ia na igreja com minha avó. Fui coroinha da igreja. Eu continuo indo pra igreja... Foi lá que no ano seguinte conheci minhas amigas. Elas eram coroinhas e foi quando eu virei também. As meninas todas desandaram. Elas iam pra festa, eu ia junto, mas eu nunca deixava de ir pra igreja. Nós éramos seis, Joana, Dedé, Ciça, Mari, Cacá e Jéssica. A gente fazia tudo junto, fazia tudo que tinha direito.
brincadeira, jogava futebol na rua, soltava pipa. Na época tinha Recreio nas Férias 1e a gente trabalhou um tempo. Bagunçávamos demais. Até já corremos de cachorro. A gente também treinava futebol juntas, na escola ou na praça de um bairro próximo. Eu sempre fui fanática por futebol, mas nunca fui de jogar bem. Meu pai e minha irmã também. Meu pai jogava no time da ‘Bola Branca’ (viação de transporte público), onde trabalhava. Ele me levava no campeonato no SESC toda vez que ele ia. Então, eu vivia no meio de todo mundo jogando futebol. Meu pai também tinha o time do bairro e ...eu sempre ficava no meio do futebol. Na época, eu jogava só pra pegar nota mesmo da Ed. Física. Foi quando eu conheci as meninas, eu tinha uns doze anos. Comecei a entrar em campeonato, elas na escola delas e eu na minha. Campeonato no bairro... A gente jogava na rua, na quadra da escola e fazia campeonato... No bairro não tem outros esportes. Pra mim também não interfere, porque eu gosto mais de futebol e aprendi a jogar. Aprendi a gostar um pouco de Handball, que a gente já jogou na escola também. Quadra tem bastante por aí. A escola é mais focada no futebol, porque é o que todo mundo mais gosta, mas dá pra jogar vôlei e basquete. A quadra da escola tem até aquela cesta. As outras não. A única que dá pra jogar basquete mesmo é a da escola. Tem o aro. Ano retrasado a gente parou de jogar futebol. Jogávamos bastante no CDM (Centro Desportivo Municipal) também, e um tempo atrás queriam destruí-lo pra fazer aquelas moradias,
Inventava um monte de coisa, inventava 1 Programa da Secretaria Municipal da Educação. • • 18 anos, 20 histórias
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tipo Cingapura. Porque tem muita casa perto da represa, né? Aí eles estão tirando tudo. O pessoal do bairro fez um abaixo assinado e conseguiram por um tempo que não tirassem. Em vez de tentar destruir podiam tentar fazer Centro de Cultura, mais Biblioteca, mais espaço pras crianças. Podiam fazer oficina de teatro, oficina de pintura, porque o governo tem meios pra fazer isso no bairro, pra comunidade. Porque não tem nada no bairro que dá pra falar que é cultura mesmo, só na igreja. A biblioteca só agora começou a funcionar... Acho que devia ter mais local pras crianças brincarem, mais cultura... Um lugar mais seguro... Como eu posso explicar? É tipo, pra dar pra criança e o pai falar: “Não, o meu filho está seguro naquele local”. Ainda estamos esperando... Na quinta série eu... dei o meu primeiro beijo. Foi namorinho de criança. Eu gostava dele e ele falava que gostava de mim, então a gente ficou. Mas nem durou muito tempo. Depois disso, pra eu ficar com outro menino demorou mó tempão. Depois a gente conheceu três meninos: João, Reco e Zé. Aí rodavamos a banca, todo mundo rodava a turminha toda. Eles pegavam todas. Sempre fui desbocada. Nossa! Eu saia no tapa com os meninos. Discutia. Não dava trela pra ninguém não. As meninas até me chamavam de boca aberta. Fofoqueira. Porque eu não agüentava segurar nada, sempre falava. Se via os meninos fazerem coisa errada, eu falava. 76
Só que eu mesma namorei um por cinco meses, tudo escondido. Escondido da minha mãe, do meu pai, de todo mundo. Quando fiz quatorze anos, falei: “Mãe, quero uma festa de quinze anos”. Falei brincando. Só que tenho uma tia, a que mais me mima e com quem eu pareço muito que começou a organizar minha festa de quinze anos. Eu escolhi as meninas pra dançar. Nessa festa, não foram todas as minhas amigas que dançaram, porque elas não tinham dinheiro pra... não tinham condição, ...mas no dia do ensaio, foram todas! Pra bagunçar, né? Chegou no dia do meu aniversário, elas fizeram uma homenagem pra mim. Antes delas falarem, eu já tava chorando. Sempre fui muito chorona. Nossa, como eu chorei naquele dia! Na hora de dançar teve briga e a festa acabou cedo. Estudei sempre de manhã. Ano passado comecei estudar a noite. Então, fez ‘mó’ diferença. Eu fazia curso o dia todo e a noite ia pra escola. Minha sala era a sala que tinha mais meninas: ...trinta e cinco meninas e dez meninos só. Nas primeiras semanas reunia aquele tanto. O professor quando entrava na minha sala, uma sala que tinha que ter quarenta alunos, via oitenta alunos dentro. Porque como tinha muita menina, vinha muito menino que não estudava lá, pra dentro da nossa sala. Aí a nossa sala ficava muito cheia... Eu lembro que pra eles controlarem isso demorou duas semanas. CEDECA Interlagos • •
Antes era totalmente diferente. De manhã sempre tinha que colocar uniforme e a noite não, entrava de qualquer jeito. Era uma bagunça mesmo. Esse ano já está melhor. No primeiro dia de aula entregaram carteirinha, não faltou aula, estavam falando das regras da escola, como é que ia funcionar. Melhorou bastante. Os professores também. Faltavam muitos professores, eles quase não iam pra escola. Esse ano não. Parece que tem só uma que falta, que acho que está grávida e tem outra indo no lugar dela. A diretoria, esse ano, não briga, não manda assinar direito o livro... ...a diretora conversa com o aluno, pergunta por que ficou do lado de fora. A escola devia ser mais rígida com os alunos. A escola não precisa ter regra, a escola precisa ter mais punição. Antes de desobedecer a regra, o aluno vai pensar na punição que ele vai ter. Na escola que não tem punição, que o aluno pode quebrar as regras e não acontece nada, então, o aluno não tem preocupação de quebrar as regras. Algumas coisas na escola ainda deixam a desejar. Eu lembro que mês passado, precisamos usar a televisão da escola e estava quebrada, mas não é sempre que acontece. Biblioteca na escola, não tem. Tem, mas não funciona. A sala de computação só pro evento no final de semana, o Escola da Família, durante a semana não pode usar. O laboratório ficou anos, anos e anos lá parado, agora que a gente está começando a usar. Esse ano como está tendo professor novo, • • 18 anos, 20 histórias
eles querem arrumar e estão correndo atrás do material, de autorização. Mandando relatório pro governo, pro governo mandar. Em vista do que estava antigamente, se a gente for ver, está melhor pros alunos que estão vindo... Já fora da escola, em frente a ela não tem luz. Quebraram a luz. Não tem... Então, na saída da escola tem que sair da escola e ir embora logo. Porque se você bobear lá... a polícia chega e já enche o saco. Tipo, se você está saindo da escola, você tem que ir embora logo porque eles não sabem quem é aluno... ...porque é tudo escuro. Já teve caso deles chegarem na porta da escola e o aluno estar esperando o resto do pessoal sair e eles falarem: “Sai da frente da escola, que você tem que estar pelo menos cem metros longe da escola pra gente ir embora”. Eles não se preocupam com a segurança da rua, eles querem que os alunos vão embora logo, pra eles irem embora também. Nosso bairro nunca foi de ter muita polícia, sempre foi muito tranqüilo. Agora esse ano que começou a subir polícia no bairro. Tem muita polícia hoje. Não se pode nem ficar na rua, ...senão a polícia passa e acha que você tá fazendo alguma coisa errada. Antes não. Perto de uma doceria que fica ali no bairro, tinha final de semana que os meninos ficavam a noite inteira fazendo fogueira... Não passava carro, nem polícia, hoje em dia não pode ficar... Só até as 22hrs, 77
...depois que fecha a doceria, se ainda tem gente ali, a polícia passa e já implica. Em horário de escola é sempre mais movimentada a avenida. Na saída da escola, é a mesma coisa. Sempre eu vou e volto com muitas pessoas. Vêm mais ou menos umas seis pessoas todo dia junto. Na escola são duas salas diferentes, ...a gente sempre espera as duas salas saírem. Eu moro bem na avenida principal do bairro. Essa avenida é bem grande, bem extensa, passa por três bairros. Dá acesso à quase tudo do bairro e é bem central... Em frente a minha casa tem uma Loja de Móveis e uma Padaria. Mais pra frente tem uma rua, onde tem o ponto das peruas que vão pro shopping, tem mercado, essas coisas assim, básicas. Mais pra cima é onde fica a doceria, que é onde todo mundo marca de se encontrar, é o point do pessoal que mora lá. Tem também a igreja e a biblioteca. É grande parte de um quarteirão... A escola não dá nem cinco minutos da minha casa. Pra cima não tem nada não, só tem um campo de futebol, onde a gente jogava muito. Em frente a minha casa, tem um bar e esse bar era de um bandido do bairro. Sempre no bairro tem aquele bandido que é o que mais todo mundo respeita. Esse homem morreu no ano passado. Ele sempre defendeu muito o bairro. Ninguém ia pro nosso bairro pra fazer coisa errada. Ele sempre falava: “Eu quero um bairro pra morar, não quero um bairro pra fazer coisa errada. Não quero um bairro pra roubar, pra fazer troca de mercadorias. Quero um bairro pra morar!”. Tanto que ele sempre falava pra todos os meninos: “Esse bairro é pra gente morar. A gente não vai 78
fazer coisa errada aqui”. Depois que ele morreu, as crianças, ...os moleques que tinham mais de 12/13 anos que andavam com ele, ...começaram roubando o mercadinho no bairro, usando drogas pra todo mundo ver. Aí aconteceu! A polícia vem atrás. A polícia começou a rodear lá. O bairro era bem tranqüilo. Nunca foi de ter polícia, mas agora você sai na rua... Têm polícia demais. Os serviços de saúde aqui no bairro também são precários. O pessoal aqui da farmácia, tava fazendo... ...uma proposta pra prefeitura com assinaturas pra ter um posto de saúde perto do bairro. Aqui perto não tem nenhum. As duas vezes que eu fui, foi em um que fica no Grajaú. Tem que pegar uma lotação. Uma vez fui com a minha mãe no Hospital. Eu sempre tive ataque de bronquite, falta de ar. Nesse dia, estava tendo jogo do Brasil. Fiquei atendimento.
umas
três
horas
esperando
Tinha um médico atendendo. O médico perguntou onde estava a minha mãe... Minha mãe falou e ele respondeu: “Ah”! E olhou pra mim e disse: “Ah, vai na sala, entrega essa ficha na sala de medicamento e espera pra tomar o medicamento.”. Aí, eu olhei assim pra cara dele: “Só?”. Aí ele: “É!”. Nem encostou em mim! O que eu fiquei mais encabulada foi que ele nem encostou em mim. Eu falei: “Eu não vou tomar injeção, nem encostou em mim, ...como é que ele sabe que posso tomar, ...que eu preciso tomar injeção? Eu não vou tomar mãe, vamos embora mãe!”. Ela falou: “Calma!”. CEDECA Interlagos • •
Eu falei: “Calma nada, vai que me dá alguma reação essa coisa que eu vou tomar? Nunca tomei!”.
A gente começou a botar ordem nos livros, classificar e fazer outras atividades.
Aí minha mãe: “Tá bom, então, vamos embora”. Não adiantou nada! Minha mãe pegou e comprou um remédio que eu já tinha tomado antes e me deu. Foi aí que melhorei.
A verdade é que de início a gente não fazia nada mesmo,
Teve outra vez que tomei uma injeção e desmaiei. Eu tomei a injeção e na hora que eu saí do hospital... tava subindo a rua... e desmaiei! Voltei pro hospital. Foi por que eu tava fraca, não tinha nada no estômago e eles me deram injeção de Voltarem... é muito forte. Aí eu esperei lá um tempo, minha mãe comprou um negócio pra eu comer e melhorei. É só o tempo virar que eu fico doente. Eu não tenho convênio. Eu vou pro hospital público... O médico olha pra mim e fala: “Toma Bezetacil”. Eu vou tomar Bezetacil? Passa dez dias e pioro de novo, não adianta de nada. É assim. O hospital público tá uma calamidade.
como a gente era à toa então resolvemos ficar lá. A biblioteca foi crescendo e passou a ser muito freqüentada. Saía muito livro, principalmente obra literária, mas só podia pegar dois por vez. A gente também tinha que lidar com o temperamento de cada pessoa. E acabava lendo bastante também, principalmente aventura, sobre adolescência e juventude. Eu ainda leio, na época eu lia mais, mas não leio tanto porque agora eu tô meio relaxada e sem tempo. No decorrer deste tempo foram criadas várias parcerias, fizemos projetos, excursões! Tinha também o concurso cultural...
tem uma que gosto muito... que começou quando eu conheci minhas seis amigas, as que falei aqui do bairro. Uma delas é Bárbara é filha da Maria. Bárbara desde pequenininha, dos seis anos de idade, acompanha a mãe que lá naquela época
Lembro bem das excursões. Em uma ficamos vários dias em uma reserva cultural. Lá fizemos tanta bagunça... em outra fomos para a praia. Lembro que chovia muito e mesmo assim entramos na água. Claro que em seguida veio a bronca e então voltamos para o ônibus completamente molhadas. Seguimos viagem com as meias do lado de fora da janela! Balançando pra secar...
...encasquetou em abrir uma biblioteca na nossa comunidade.
O grupo de voluntários se tornava o grupo de amigos,
Começou em uma salinha bem pequenininha,
mesmo os novos que chegavam mesmo os que saiam... Acabou se tornando além de um trabalho voluntário,
De todas as minhas histórias,
...do tamanho de um banheiro. Tá, ela não é grande hoje, mas cresceu. Logo as doações de livro foram aumentando... Todas nós começamos a realizar um trabalho voluntário. • • 18 anos, 20 histórias
...amizade! Com o passar dos anos, algumas pessoas
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foram se distanciando deste trabalho. Eu fui ficando... passou por um tempo mais difícil. Até que, quem começou a cuidar de tudo que acontecia era eu. Se tinha reunião na comunidade quem ia era eu, quem levava bronca era eu, tudo que acontecia era eu. Até que conheci algumas pessoas que gostavam muito de ler e convidei uma delas para ficar comigo cuidando da biblioteca. Uma delas topou. Ensinei como funcionava. Hoje ela cuida da biblioteca e eu acompanho. Na biblioteca da escola tentamos. Todo sábado vínhamos. Tínhamos que classificar e organizar todos os livros. Era muito livro e muito exemplar de cada livro, o que fazíamos era colocar quatro livros em uso, o resto a gente deixava para quando precisava usar na sala de aula. A gente queria emprestar pra comunidade, mas não dava, era muito livro, os que tinham na outra na biblioteca eram poucos pro que tinha na escola. Paramos. Pode ver que está desorganizado... É... Estou nesta biblioteca na comunidade até hoje. Lá eu aprendi muitas coisas, cultivei amizades que ainda tenho e ainda passo por muitas experiências. Foi marcante este período.
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CEDECA Interlagos • •
Em cima... Em baixo... Um pouquinho mais pro fundo... De um lado... De outro... Uff quanta gente, Gente que quer brincar, sem hora pra parar Gente que fica doente e não tem onde se tratar Gente que destrói e gente que constrói. Gente que quer fazer o que tem direito.
“Sou gente, tenho direitos!” Deixo quieto e seguro as páginas dos sonhos que não li E outra vez não me impeço de dormir Os jornais não informam mais E as imagens nunca são tão claras Como a vida Vou aliviar a dor e não perder As crianças de vista (Marcelo Yuka)
• • 18 anos, 20 histórias
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“
Uma louça lavar, almoço preparar. Um pouco de atenção e preocupação... Um cuidado especial e tratar bem é o segredo. Ser reconhecido e bem tratado é o tempero. Por fim, perguntar: Como você es ta? Faz a his tória do dia-a-dia rolar...
”
Me chamo Rodrigo, nasci em julho de 90.
E
u moro com a minha mãe só. Ainda
Cuidei dela dos dez aos quatorze anos.
não sei história de quando eu era pequeno.
Sei fazer bastante coisa.
Minha casa é grande e tem um pedaço de quintal.
O que mais gosto é de fazer comida.
Lá tem um varal e uma escada.
Morava os três.
Fico jogando bola no quintal.
Até que ela morreu. Foi infarto. Fui ver ela no hospital.
A rua é grande e larga.
O que menos gosto é de lavar roupa, mas lavo.
No meu bairro tem uma Lan House. Lá vou jogar às vezes. Tem um parquinho. Lá tem balanço, tem escorregador, e só. Às vezes vou lá brincar de balançar. Fui nas férias. Meu bairro tem hora que é seguro e hora que não. Às vezes a polícia fica lá toda hora.
Ver ela não voltar mais.
Uma vez fiquei doente e fui pro hospital. É longe. Fui sozinho. Falei que tava com dor de cabeça. Ele deu o remédio e eu voltei pra casa. Não gosto de injeção.
O lugar que mais gosto é onde minha tia se deitava.
Antes de começar a escola eu cuidava da minha tia. Cuidava assim... Tratando bem. Porque ela tinha problema nas vistas. Enxergava só de um lado. Não conseguia fazer tudo sozinha... Ajudava ela a fazer comida, lavar o banheiro, limpar a casa e só. • • 18 anos, 20 histórias
Eu fiquei triste. Sempre morei na mesma casa. A vida inteira. Minha casa.
Agora eu durmo no quarto dela.Antes dormia no quarto com minha mãe. Lá é assim, tem uma cama, um guarda roupa, um sofá e uma TV. E só. Só isso só. No quarto gosto de assistir TV. Novela e jornal. Eu gosto dos assuntos. Deixa eu ver... dos assuntos... morte.
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Na sala fico bastante. Ouvindo música. Samba, Forró. Só. Ouço rádio e os meus CDs. Zeca Pagodinho, Daniel, Luciano. Só. Ouvindo, sozinho. Minha mãe só chega oito horas. Eu tô em casa assistindo TV. Aí ela vai comer. Às vezes a gente conversa. Ela pergunta se fui pra escola. Morava também com o Lobinho. Tenho uma foto abraçado com ele, tava no quintal. Era quietinho. Gostava de brincar com ele. Jogava bola com ele. Eu corria, ele corria atrás de mim com a bola. Era branco. Vira-lata. Era meu, mas ele morreu. (pausa). Eu tinha (pausa), acho que eram dez anos quando ele morreu. Eu fiquei triste. O carro passou em cima dele. Eu o vi morto. Só vi depois, ele morto, só. Fiquei chorando. Ainda não sei ler. Número sei.
vou pra sala. Lá na sala tem uma lousa e um monte de carteira. Gosto de fazer lição. Tenho aulas de matemática, português, ciências, geografia, física. Só. Gosto mais de física. Não gosto muito de matemática. É chato fazer lição, fazer conta. Gosto de bola, vôlei, basquete. Principalmente vôlei. Não tem professor que lembro mais, nenhum especial. Tem um chato, porque matemática é difícil. Ele é muito chato. Fala pra não fazer bagunça na sala. E ficar quieto. Eu fico calado lá. Os outros fica conversando. A escola precisa mudar. Feio é ver as mesas quebradas, cortadas, pedaço da mesa e das cadeiras soltas. Precisa pintar a escola, mudar a mesa. Arrumar direito. Lá não tem ninguém mais próximo. Tem... mas não ficava com ele muito não. Na hora do recreio todo mundo fica andando, conversando e ouvindo música. Não gosto da hora do recreio.
Fico meio período na Ong. Das oito até meio dia. Depois eu vou pra escola.
Porque (pausa), porque é muito chato ficar parado, fazendo nada.
O nome da minha escola é Salvador. Tô na oitava série.
No intervalo eu fico quieto no canto. E só.
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Às vezes lancho o lanche de lá.
A hora da entrada é bagunçado.
Não gosto de quem fica me xingando.
Zoeira. Eu não.
Só tem uns moleques lá que ficam me xingando.
Na entrada eu espero o portão abrir e logo
Eu nem ligo. CEDECA Interlagos • •
No intervalo tem um moço lá, que fica no pátio. Saio as seis e vinte da escola. Vou pra casa. É perto. Vou de ônibus. Demora meia hora. Já estudei em outra escola. No Horácio. Faz tempo. Faz três anos. Lá era muito diferente. Eu bagunçava muito lá. Bagunçando...é... zoando com os moleques lá. Bati nele aí fui pra diretoria. Eles xingavam a mãe dos outros aí eu não gostava.
Pra escola vou de ônibus. Vou até o Terminal Varginha. Um pouquinho longe. Às vezes vou sentado e às vezes em pé. É bom andar de ônibus. Gosto de ficar sentado. Fico dormindo. Lembro bem de uma festa minha de aniversário que tinha muita gente, meus amigos. O pessoal cantando parabéns em volta de um bolo. Gosto dos meus amigos juntos. A rua que eu moro tem um monte, um monte de casa. Só casa. Minha casa não é grande, nem pequena.
Não gostava.
Gosto de ficar na rua conversando.
Sai de lá porque eu era muito “baguncento”.
Com meus amigos.
Também zoava na sala. Riscava a mesa. Só. Nesse dia fui pra diretoria. Chamou minha mãe e falou pra não ficar com mais bagunça. Minha mãe não falou nada.
Miguel. Wildson. Weverton. A gente fala de Futebol. Sou Corinthiano.
Mas tinha um monte de amigos.
Tenho vontade de ir ao Estádio.
Nós conversavamos, brincavamos.
Lá no Morumbi.
Gostava mais da escola Horácio, porque eu brincava lá.
Às vezes jogo futebol, na defesa.
Onde estou não gosto dos professores. Muito chato. Mandam ficar quieto.
Andar de bicicleta e jogar bola.
Lembro quando conheci meu primeiro amigo, o Alan. No meu primeiro dia de aula. Só lembro disso. Tinha uns onze anos. Gosto de sair com minha mãe,
Gosto de brincar, na rua. Tenho uma história engraçada. Foi uma vez que eu tava saindo de casa. Indo pra rua jogar bola. Quando eu tava na defesa o moleque colocou o pé e eu caí. Machuquei os joelhos e o cotovelo jogando futebol. Então fui pra casa.
pro Parque Ibirapuera e pro shopping.
Passei remédio e deitei.
A última vez foi no shopping. Foi um
Passei sozinho.
sábado. • • 18 anos, 20 histórias
Quando era pequeno, 85
brincava de outras brincadeiras.
Só no sábado.
Esconde-esconde, pular corda e só.
Uma vez por semana.
Hoje não brinco disso.
É muito longe a casa dele.
Mas os amigos são os mesmos.
Esqueci onde ele mora.
A primeira comida que aprendi a fazer tinha dez anos.
Vejo se ele está bem.
Aprendi a fazer arroz e feijão. É assim:
Ele gosta muito de beber. Às vezes tá bebendo. Um pouquinho.
∙ Descascar o alho e bater.
Só.
∙ Depois esquenta a panela e coloca o óleo.
Às vezes ele vem me visitar.
∙ E o arroz e a água, só.
Eles moram com minha vó e meu avô.
∙ Deixa.
Lá, gosto muito de ver minha tia.
∙ Só fica pronto depois que acabar a água.
Esqueci o nome dela.
Nessa época, preparava comida pra nós três.
Com quem mais gosto de conversar é com minha avó.
O que mais gosto de fazer é lasanha.
Ela conversa bastante comigo.
Lembro também quando aprendi a fazer macarrão.
Sempre conversamos de como que ela está bem.
Esquenta a água e põe, depois coloca o macarrão.
Gosto.
Eles me tratam muito bem.
Aprendi tudo com minha mãe. E a lasanha foi com minha tia. Gosto de viajar. Fui uma vez pra Aparecida do Norte. Faz tempo. Tinha treze anos. Fui com minha tia e com minha mãe. Fomos de ônibus. Comprei um relógio lá. Mas perdi. Com quatorze anos. Faz tempo também. Indo pra casa do meu pai. Costumo visitar meu pai. Vou às vezes.
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CEDECA Interlagos • •
Meu bairro tem hora que é seguro e hora que não Na minha escola tem horas que falo e horas que não Tem horas que brinco e horas que fico sozinho Horas que me tratam bem e horas que me tratam mal. Mas sempre é hora de tratar bem e ser bem tratado Seja pelos amigos, seja pelos professores. Seja pelo Estado.
“Sou gente, tenho direitos”
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“
Silêncio se teima em falar É palav ra que es tá a pulsar Pulando da garganta Desaguando os nós Procurando caminhos Cos turando uma colcha pra esquentar a noite Desenhando um ves tido pra f lorir o dia Crescer e recriar o hoje Isso foi assim... simples Crescer aprendendo autonomia Descobrindo dia-a-dia que os sonhos podem ser gigantes Acabou entrando na nossa vida e nunca mais saiu. Apesar da v ida nem sempre ser respeitada Como a heroína daquele liv ro... que sempre lutou pra ter uma v ida digna. Uma v ida! Viver!
”
Meu nome é Sofia Vasquez Carvalho Nasci em julho de 90.
A
qui em São Paulo mesmo.
Sou sincera, não consigo ficar guardando uma coisa que eu precise falar sabe? Então vou contar minha história. Sou um pouco tímida no começo, mas quando as pessoas me conhecem, vou me soltando e sendo mais extrovertida. Pensar numa história pra contar é difícil, né? Porque tanta coisa aconteceu na nossa vida. Mas uma coisa importante e significativa que aconteceu foi a separação dos meus pais... quando eu tinha seis anos. Ele saiu de casa falando que ia buscar a felicidade dele. E... isso é meio relativo. Acho, que buscar a felicidade você pode buscar, realmente, dentro da sua casa. E... com isso a gente sempre lutou pra ficar mais junto assim. Eu e a minha irmã. A gente sempre lutou pra ficar mais junto, pra se aproximar dele, né? (choro) ... (silêncio)
Sempre fui ligada à família e meus pais se separaram muito cedo. Isso me abalou... me abalou bastante. Teve várias coisas que me chatearam bastante. Depois disso, não tive muito contato com meu pai. Foi bem forte. Foi numa idade que a gente tá começando a perceber as coisas. Foi bastante doloroso, pra mim e pra minha irmã. Lembro que fiquei bem chateada, porque minha mãe ficou. Então senti bastante. Não foi uma separação fácil, sabe? Tocou bastante. Acho que afetou meu psicológico... eu fazia xixi na cama, todo dia. Não tinha explicação pra aquilo, não tava com nenhuma doença nem nada, sabe? Então, comecei a ir na psicóloga e ela percebeu que era realmente isso. Comecei a tomar remédio homeopático. Aí passou. Agora a gente tá morando junto e isso foi muito bom pra minha vida. Faz uns dois anos. Eu, minha mãe, minha irmã e ele. Meu pai tá morando com a gente, mas eles estão separados. Mais pra se juntar mesmo. A família.
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Ele morava com a namorada e se separaram. Acho que ele refletiu, percebeu... viu que minha mãe tinha a felicidade... porque ele saiu de casa dizendo que precisava buscar a felicidade dele, né? Mas não pensou no que realmente é essa felicidade, que pode estar tanto em achar um amor, como em ficar com a família. Acho que ele refletiu e pensou que ele passou todo esse tempo longe das filhas dele. Acho que quis meio que refazer esse passado. Na verdade minha irmã mora só de fim de semana aqui, porque ela estuda em outra cidade. Ela faz USP, Zootecnia e vem de quinze em quinze dias, que também não dá pra vim todo fim de semana né? Fiquei muito feliz por ela ter entrado na USP. Ela tem dezenove anos. A gente é bem amiga, é mó legal. A minha irmã ter ido morar na outra cidade, bem... É bom! Foi ruim. Foi bom pra ela, mas foi ruim pra mim, ter que me separar dela e a gente não se ver muito. Porque a gente sempre morou junto e sempre fez tudo junto, sabe? No mercado ia junto, pra escola juntas, então, quebrar isso é difícil. Graças a deus existe internet, né? E a gente consegue se falar bastante. A gente sai bastante junto, sempre fez tudo junto assim. Quando eu era criança lembro bastante da gente andando de bicicleta no parque do Ibirapuera no domingo. Da gente... É... eu e a minha irmã andando de bicicleta. Meu pai é editor de imagem e sempre gostou de tirar muita foto. Então, tem foto de tudo, tudo, tudo. E filmagem também. Eu e a minha
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irmã, ela pisando no meu pé, de brincadeira, tem tudo isso gravado. Lembro bastante também da gente na casa da minha vó. Era um quintal bem grande, cheio de árvore, onde a gente ficava brincando. A gente brincava bastante de Barbie. Muito, muito, muito. A gente pegava tênis e fazia de carro, aí ficava a casa inteira de trânsito pra Barbie. Brinquei de Barbie até os doze anos, treze anos, então... não é que nem hoje em dia, que com doze anos tem gente até namorando. Meu pai brincava bastante com a gente de Barbie. Era muito engraçado ele brincando com a gente. No prédio na minha outra vó tinha um monte de criança. Então, eu passava as férias da escola lá, a gente ficava brincando na parte debaixo lá do prédio. Gato-mia, esconde-esconde, amarelinha! Estudei em três escolas diferentes, as três eram escolas alemãs. Minha mãe é professora e começou a trabalhar em uma dessas escolas. Então, ela gostou bastante do ambiente, da cultura e colocou a gente pra estudar lá. A gente incorporou bastante a cultura alemã. Fizemos por um tempo dança alemã e aula de artesanato em madeira. Tem as festas alemãs que a gente dançava e cantava. Uma vez a gente fez um curso em Gramado, foi um curso de duas semanas em uma Casa de Juventude. Foram quinze dias aprendendo, aprimorando o alemão e vivendo dentro da cultura alemã. Era levantar cedo, cantar as músicas alemãs, comer aquelas geléias... Então, foi uma imersão, sabe? É uma coisa que nunca saiu da gente. A gente nunca desistiu de aprender o alemão. Nunca desistiu de estudar.
CEDECA Interlagos • •
E foi assim... foi simples. Acabou entrando na nossa vida e nunca mais saiu. Na primeira escola, lembro que estava no maternal e quando a gente entrava na primeira série, ganhava um cone cheio de doce. Eu sempre fui louca por doce. Então, eu queria muito entrar na primeira série pra ganhar aquilo. Era bem legal porque quando era pequena a gente tinha aula de música, de artes, sabe? As aulas não eram nada demais, tínhamos todas as matérias, mas acho que sempre foi bastante aplicado, porque a gente não ficava só ouvindo o professor falar, a gente sempre teve que fazer muito trabalho, por exemplo, em geografia, quando aprende relevo, a gente não ficava vendo o relevo... A gente desenhava o relevo, fazia livrinhos sobre isso. Sempre foi bastante prático, acho que isso ajudou bastante. Acho que esse é um método bem legal, é um colégio bem construtivista. Tem outros exemplos. Tinha muita gincana, olimpíada. Todo mundo participava, mesmo se você fosse muito ruim, você participava. Era um método de incluir todo mundo, de conhecer bastante gente. Na gincana, eram pessoas de várias séries, então a gente se conhecia. Era um colégio pequeno. Lembro que teve uma professora, da primeira até a quarta, a Eliana, eu sempre gostei bastante dela. Era uma pessoa que compreendia a gente.
Teve também uma professora de português, na sétima série, Roberta, ela era muito bacana. Lembro que quando fui embora de lá fiquei muito chateada porque eu não ia mais ter aula com ela. Nem sei explicar direito, (risos), mas eu gostava muito, muito dela. Ela me entendia. Todos os textos que eu escrevia ela adorava, me dava dicas e sempre fazia vários projetos pra sala... Ela também contava da vida dela pra gente. Às vezes a gente fazia umas rodas pra contar sobre a nossa vida sabe? Cada um aprender com o erro do outro assim? Tinha outra também, de artes que, que eu gostava bastante Viviane. Tudo que a gente fazia ela apoiava, todos os projetos. Essas foram as melhores professoras que eu tive. Sempre fui aluna de professora. Sempre fui muito bem na escola, tirava dez, tirava nove, todo mundo achava que porque minha mãe é professora eu era boa aluna, mas não tem nada a ver, né? Teve uma época que ela começou a dar aula pra mim e eu ia bem na matéria dela. Todo mundo achava que eu roubava o gabarito, essas coisas. Eu fiquei muito chateada. Uma vez que tirei dez na prova, todo mundo foi reclamar pra diretora que eu li o gabarito. Lógico que não, não sou louca! Foi na oitava série. Lembro que a coordenadora falou pra mim: “eu sei que é muito difícil você não ver o gabarito”. Nossa, aquilo... Depois daquilo fiquei assim, desacreditada,
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de pensar que as pessoas não são boas. Fiquei muito chateada com todo mundo. Também acho que na escola a gente vê bastante preconceito. Tem bastante diferença ser uma escola alemã e particular. O pessoal tem bastante preconceito com negro, com homossexual, com tudo, sabe? Por exemplo, tinha uma menina na minha sala que era negra e todo mundo tratava ela mal. Ficavam xingando ela, por exemplo. Não tinha nada a ver, todo mundo é igual de qualquer jeito, independente de etnia. Aquilo me deixava muito mal, tanto é que tentei incluir ela no nosso grupo... Quando você está estudando você sempre tem que ter um grupo pra fazer algum trabalho, né? E aí sempre queriam excluir ela de todos os grupos. Isso é a coisa mais desagradável que existe quando você está no colégio. Não ter um grupo pra fazer um trabalho, é a pior coisa que existe. Eu chamava ela pra fazer grupo com a gente, comigo e com minhas amigas. Lógico que também dentro do meu grupo tinha gente que não gostava, né? Mas eu sempre tentei incluir ela. Então, essa é uma coisa que eu sempre lutei. Fui percebendo, conforme as coisas foram acontecendo: pelo jeito das pessoas falarem com ela, de ficar jogando papelzinho, de ficar falando alto algum apelido maldoso. Foi durante todo o tempo que ela estudou comigo. Acho que depois eles foram percebendo... quem sabe? Dessa época da escola, lembro que a gente era sócia de um clube ali perto, então eu fazia aula de dança, aula de sapateado, aula de balé. 92
Sempre fiz bastante esporte e dança lá no clube. Minha mãe sempre deu aula em escola, ela dava aula até tarde assim. A gente saía da aula e ia ali, pertíssimo. Eu e minha irmã. A gente ficava jogando vôlei, nadando, fazendo aula de dança. Boa parte dessa época foi no clube. A gente sempre ficou sozinha, porque meu pai não morava com a gente e a minha mãe tinha que trabalhar. Bastante tempo... sozinha entre aspas, né? Às vezes a gente via ele. A gente encontrava ele de final de semana pra almoçar, mas não era nada, sabe? Não tinha proximidade. Era só um encontro, sem muita conversa sobre o que estava acontecendo, porque ele não sabia o que a gente tava fazendo direito, no dia a dia. Era mais pra conversar sobre coisas, sei lá, inúteis. A gente sempre teve que ser bastante independente. Hoje faço curso de técnico em secretariado em alemão, é um curso super diferenciado. Uma parte é teórica, as aulas são em uma outra escola alemã, uma quarta. A outra parte é estágio. Fico 30% do curso em aula e 70% trabalhando. São três períodos de quinze semanas. Fico alternando, por exemplo, agora eu vou ficar até o fim do mês trabalhando e no outro mês vou pra sala estudar, depois volto pra trabalhar e vai indo. É bem diferente, quando você já tá meio que enjoando de estudar, você vai trabalhar. Melhor coisa. (risos) A gente aprende bastante e é uma coisa engraçada. Quando você vai trabalhar no emprego, você percebe muita coisa que já aprendeu nas aulas. Por exemplo, tem uma aula que é de anotação de recados. Sobre você anotar o que você conversa, CEDECA Interlagos • •
porque secretária tem bastante disso. Percebo no trabalho que eu preciso me adaptar em escrever rápido, pensar rápido, tudo isso. Antes de entrar, fiz vestibular da USP, pra tecnologia têxtil. E ao mesmo tempo fui fazendo as provas desse instituto de formação profissional em administração. Pensei: “Em uma coisa ou outra, eu vou ficar”. Até passei pra segunda fase da USP, só que já tinha sido aprovada em todas as etapas do instituto e até já tinha conseguido vaga de estágio na empresa. Pensei que precisava escolher. Gosto muito de alemão, então eu pensei em fazer alguma coisa ligada à línguas. Só que eu não queria fazer letras. Não queria. Aí fiquei sabendo desse curso, que um amigo meu tava fazendo. Me inscrevi pra secretariado e pra comércio internacional. Pensei: ‘Ah, eu gosto dessas coisas de moda, de repente comércio internacional, de repente eu quero abrir uma loja’. Então, achei melhor fazer o curso, porque são só dois anos. É muito tempo pra fazer outras coisas como moda que é o que eu quero fazer, por exemplo. Esse curso é muito diferente, não é uma coisa que você acha em qualquer lugar. Não é todo mundo que tem a oportunidade de fazer isso. Eu não pago o curso, a empresa que me paga. Além, de ela pagar o curso e eu ter a oportunidade de ganhar esse diploma pra estudar na Alemanha, ela ainda me dá uma bolsa auxílio. Então, todos esses fatores foram bem decisivos pra eu tomar essa decisão. Às vezes me dá aquela dor assim, do tipo: “Será que é isso que eu tenho que fazer da minha vida?”, mas depois eu percebo que é pouco tempo, dois anos passam logo. E também, posso conseguir um diploma • • 18 anos, 20 histórias
pra estudar na Alemanha, sabe? Então, acho que é uma oportunidade. Lá eles falam tudo em alemão. No começo foi bem difícil, porque eu só falava alemão na aula de alemão, não na aula de biologia, por exemplo. Foi difícil, mas consegui me adaptar e fui gostando conforme foi passando o tempo. Agora tô gostando mais... no começo fiquei meio balançada, mas agora já tô me acostumando. Até minha irmã tentou fazer, mas não passou. Ela não ia gostar muito. Pra entrar você tem que ter uns diplomas... Por causa desse curso, meu dia-a-dia tem duas fases. Na época que eu tô trabalhando acordo bem cedo, e como trabalho lá em Santo André, demoro duas horas pra chegar. Chego em casa e não faço muita coisa..., desenho, costuro ou descanso! Às vezes tô muito cansada. Já quando tô estudando é outra rotina. Essa escola alemã onde tenho as aulas do curso, aluga duas casas bem próximas ao curso, uma de menina e outra de menino. Aí acordo seis e meia e já tô ali do lado. Porque não tem como morar aqui e ir pra lá todo dia. É muito longe, né? Lá tem gente que vem do sul, tem gente que vem de outros lugares. Moro lá nos períodos que tenho curso. É meio difícil. Você tem que se acostumar com um monte de gente que nunca viu na vida, mas graças a Deus todo mundo lá é bem legal. São dezessete meninas morando junto. A gente acaba se acostumando a viver com bastante gente. Na outra casa deve ser uns dezoito meninos. Estudo até as cinco da tarde. O clima é de estudo. À noite, às vezes a gente janta fora, faz alguma coisa...
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Estudei muito pra ganhar esse diploma. Faço algumas coisas em paralelo. Desenho e costuro. Desenho roupas. Acho que isso é bastante forte no meu dia a dia. Sempre tô desenhando alguma coisa diferente, montando alguma coisa legal. Faz tempo. Sempre gostei de moda. Sempre gostei de me vestir, de fazer, de olhar revista de moda. Aí, minha mãe falou assim: “Por que você não faz um curso de costura, um curso de moda?” Fui. No primeiro dia lembro que fiz uma saia. Ficou horrível. (risos). Mas ela falou assim: “Não, mas você tem jeito”. Aí eu falei: “Vou ficar, vou aprender!” Fiquei, fui gostando, fui gostando bastante. Comecei aula de corte e costura quando tinha onze, doze anos. Fiz um curso de design de moda também, de um ano e meio. Foi tudo junto assim. Esse era mais voltado ao desenho mesmo, em uma escola de arte. Foi bem legal fazer esse curso. A gente fez dois desfiles lá no shopping paulista. A gente desenhava e tinha que passar por um concurso lá. Eu que fiz as roupas mesmo. Sabe? Então foi muito, muito gratificante ver a modelo desfilando com a roupa que eu fiz. Aí, uma amiga da minha mãe que mora em São Francisco Xavier é artista plástica e começou a falar: “Ah, traz as suas coisas e coloca aqui na minha loja”. Aí fui colocando umas saias, uns colares e começou a vender. A gente falou: “Nossa, porque a gente não abre uma loja aqui?”. Abrimos. Faz uns dois anos, dois anos e meio. Acho que esse ano faz três. Passou tão rápido. 94
A gente vai quase todo fim de semana pra lá. Tenho costume de fazer algumas roupas pra colocar na loja. O nome da nossa loja é o meu mesmo, Sofia Vasquez. Essa loja sou eu, sabe? Assim... Lá, tudo tem minha cara... toda decoração fui eu quem fiz. Minhas roupas dizem alegria, dizem aproveitar a vida. São bem alegres, sabe? Não é nada pra baixo. Minha família também é do interior. Tem minha vó e minha tia avó que moram em Bocaina, uma cidade minúscula, perto de Bauru. Minha mãe nasceu em Andradina, depois foi morar em Campo Grande. A família dela é toda de lá. Depois foram pra São José do Campos... Por isso que tenho loja lá perto, porque minha tia mora lá. Meu pai é carioca, mas foi pra São José dos Campos e lá ele conheceu minha mãe. Vieram morar em São Paulo depois que a minha irmã nasceu. Em são Paulo, moro há uns cinco, seis anos na mesma casa. Aqui é bem legal, porque o clima é bem de interior. Bem tranqüilo, é difícil ter assalto aqui, pelo menos na minha rua. Não acontece isso. É perto do metrô, então você tem acesso fácil a outros bairros. Tem ponto de ônibus aqui perto também, quando preciso pegar ônibus pra algum outro lugar é fácil. E os lugares aqui perto... tem cinema, tem loja, tem supermercado, tem tudo perto. Então é fácil o acesso também. Os bairros que tem aqui perto pra quem gosta de sair são bem legais. Tem a Vila Madalena, tem a Paulista e no geral eu gosto bastante de morar aqui. Tem hospital também, mas nunca fiquei CEDECA Interlagos • •
doente mesmo. Tanto é que eu odeio hospital. Odeio tirar sangue, odeio tomar vacina. É a pior coisa do mundo pra mim, mas nunca precisei ir muito no médico. Se ficar doente, minha mãe liga e marca uma consulta. Pra me divertir, saio bastante com as minhas amigas. Na casa de uma, na casa de outra, pro cinema, teatro. Esse sábado, a gente vai assistir uma peça do Wagner Moura. Bem legal. Hoje, tô pensando um monte de coisa. Penso muito na minha mãe, dela sempre ter feito tudo sozinha, ter conseguido tudo sozinha... teve que trabalhar bastante e deixar a gente sozinha em casa. Foi bem difícil, mas graças a Deus, deu certo, né? Penso que quero conseguir ir pra Alemanha que é meu sonho sabe? Ir pra lá, mas não pra ficar, só pra passear. Ir pra estudar sabe? É um grande sonho. E também fazer uma viagem pro mundo inteiro. Um mochilão pro mundo inteiro. Penso no que vou fazer de faculdade... Queria descobrir o que quero, até hoje não sei. Gosto bastante de cinema, de áudio-visual, de design, de moda, então eu não sei o que fazer. Preciso decidir isso. Mas enquanto penso tudo isso, gosto muito de ir ao cinema, de ouvir música, de sair com meus amigos, de conversar. De ler, entrar na internet pra ver alguma novidade. Ah, e de comer. (risos). Leio bastante revista também, revista de moda, jornal.
Já viram o filme “o Fabuloso destino de Amelie Poulain”? É sobre uma menina que vive num mundo... na bolha, sabe? Ela percebe que vive em um mundo e a realidade é outra. Então ela precisa ajudar as outras pessoas e fazer sempre, sempre o bem. Mesmo que, mesmo que ela não conheça essas pessoas. Mesmo que não tenha certeza se assim vai ajudar, mas tem que tentar ajudar as pessoas de qualquer jeito, sabe? Não é só a fotografia do filme que é bonita. A história também é bem bonita. E diria também que sou simples. Verdadeira e simples. Tem um livro, “A hora da estrela”, gosto tanto desse livro, acho que li umas três ou quatro vezes... É muito bem escrito, muito tocante. Acho ‘tudo’ aquele livro. Incrível. Um pouco sobre a gente perceber a realidade, né? que nem sempre é tão boa... No livro a Macabéa é uma pessoa que não tem estudo, não sabe nem falar direito e que sempre lutou pra ter uma vida digna. Uma vida! Viver! Acho que é isso que a gente tem que fazer, né? Sempre lutar pela vida e por direitos, né?
Gosto bastante de falar. Enfim, diria que gosto de aproveitar a vida! Diria também que sei respeitar os outros acima de tudo. Tenho um ideal, tenho ética. • • 18 anos, 20 histórias
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Meninos e meninas São amarelas, negras, brancas, índias, pardas, mamelucas. Meninos e meninas São brasileiras, sulamericanas, européias, asiáticas, africanas. Meninos e meninas Estão imigrantes, refugiadas, clandestinas, sem terra. Meninos e meninas Estão católicas, muçulmanas, espírita, candomblé, judias.
“Sou gente, tenho direitos!”
Meninos e meninas Meninas que gostam de meninas, meninos que gostam de meninos, meninos e meninas que se gostam. Cada povo tem sua história. Cada religião tem seu espaço. Cada segmento, sua memória. Todos feitos de carne, osso e desejo. Todos gente! Gente de verdade, Quer políticas reais pra suprir suas necessidades. Gente de verdade, mais que sobreviver, quer respeito e dignidade.
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CEDECA Interlagos • •
“
Foi nesse dia que a jovem Lucivania, menina-moça de 18 anos deu a luz a novo rebento. Pariu a nenê. Seu nome Lila, pequena Lila, que deveras já nascia com fome, desnutrida. Miudinha. Parecia tão f rágil. Mas com fome também de vida. Sobreviveu. Pequena. Guerreira. A jovem mãe Lucivania logo par tia a jovem pra cidade-grande. Buscar modo de mandar dinheiro para a família que crescia.
Quem é pequeno? O que é grande? Seria a cidade grande? Seria a menina miúda? E sua vida? A vida é o que não se mede... E is to, Lila parecia saber, antes mesmo de se dar conta... Veio a desnutrição, desde o ventre. Veio assim e parecia tão f raquinha. Ai veio o sarampo. E Lila seguiu. Resis tiu. Virou menina-moça. E veio a saudade num coração aper tado. Que no calor do colo da avó, mesmo assim, sentia a dis tância de um retrato já quase apagado. O que sempre soube, ela, já menina, é que o que não se mede é a vida.
”
Nóis vamo a São Paulo Que a coisa tá feia Por terras alheia Nós vamos vagar Meu Deus, meu Deus Se o nosso destino Não for tão mesquinho Ai pro mesmo cantinho Nós torna a voltar Ai, ai, ai, ai Patativa do Assaré
Pode me chamar de Lila...
Eu nasci em oito de julho de noventa... Hoje eu vou contar a minha história...
S
empre fui uma criança desnutrida, pequenininha...
Fui criada com a minha avó. A minha mãe passou acho que três meses me amamentando. Ela veio pra São Paulo e... não pode mais me amamentar. Recém nascida, minha avó começou a me criar. Até uns dois anos, quando minha mãe voltou, passou uns meses comigo e resolveu ir pra São Paulo procurar meu pai. Nesse período eu tive várias doenças. Eu tinha a saúde muito frágil. Vivia gripada, com febre, tinha problema de desnutrição, um monte de coisa. Aquelas doenças... catapora, pneumonia, essas coisas. Nesses onze meses eu não consegui me adaptar ao clima daqui. Caiu todo meu cabelo, caiu todinho, todinho. Minha mãe falava que meu cabelo era bem bonzinho, mas quando caiu e nasceu de novo, não nasceu mais como era. Aí eu não pude ficar com ela em São Paulo... Foram onze meses que fiquei com ela. Minha mãe não pode me levar de volta, ficou aqui com meu pai e eu fui pra lá. Foi um moço • • 18 anos, 20 histórias
que tinha o apelido de Pepe que me levou, de volta lá pra minha vó. Acho que daqui pra lá são três dias de ônibus. Eu fui de ônibus com essa pessoa, esse homem, que não sabia mexer direitinho com criança, eu ainda ia fazer três anos. Eu voltei... Continuei sendo criada pela minha avó. Minha mãe teve mais uma filha, mas... só vim conhecer minha irmã depois de onze anos. Fiquei lá, com minha avó. Quando eu tinha quatro anos peguei sarampo. Acho que foi... Lembro que passei um monte de dia internada no hospital. Minha vó sempre foi carinhosa... Ela criava um monte de animais. Lá em casa tinha criação de bode. Era muito legal. Eu morava com a minha vó, um tio e uma tia, aí minha tia engravidou, teve uma menininha. Era linda! Quando era pequena, né? Depois que cresce, vira uma pestinha. Passou um tempo, ela teve mais um filho. Cuidei deles desde quando eram criancinhas. Cuidava deles e ia pra escola. É, mas até entrar na escola demorou. Eu não podia entrar porque eu não tinha registro de nascimento. 99
Foi tanta conversa lá com a secretária da educação, consegui, mas já dois anos atrasada. Mesmo assim, às vezes ficava três, até quatro meses sem ir, porque eu vivia doente e ficava em casa. O tempo passou, acho que nesse período eu não perdi nenhum ano de escola. Sou atrasada na escola porque eu entrei já avançada. Lá, tinha uma menina que... tinha quase a mesma história que eu. A mãe dela deixou ela com a vó, com a mesma idade que eu tinha. A gente foi criada como irmã. Minha casa era de frente com a dela. Aí ficou a amizade muito legal, só nos separávamos pra dormir e na hora de almoço, porque aí ela tinha que ir pra casa dela e eu pra minha. Lá no Piauí, na cidade onde eu morava, tinha uma igreja bem grande que era da padroeira da comunidade. Nossa Senhora da Aparecida. Era o chafariz, um espaço bem grande, um barzinho e no final de semana tocava um som bem alto. A maioria dos meninos e meninas iam lá conversar. No final de ano as pessoas da comunidade organizavam peças de teatro na época da quaresma, da páscoa. Quem quisesse participava. Encenavam em um espaço que parecia uma pracinha. Era muito legal. Só parou uma época, porque a igreja era uma capelinha bem pequenininha. Muitos fiéis iam lá. Todas as missas, as novenas e as celebrações eram lotadas. Todo mundo contribuía com a igreja, dava esmolinha e tudo mais. Aí um senhor começou a se achar o dono da igreja.
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Só que ele não usava esse dinheiro para a igreja. Aí o pessoal fez protesto e, no fim, muita gente se afastou da igreja. Eu também me afastei por muito tempo. Outras coisas aconteceram na minha vida. Quando tinha uns onze anos, me apaixonei pelo um menino lá. Só que o menino não gostava de mim, mas mesmo assim, eu gostava dele. Passou, passou, passou. Fiz quatorze anos e a gente começou a namorar. Só que vi, que esse menino era chato e deixei ele pra lá. Pouco tempo depois, já prestes a fazer quinze anos, veio a... ...minha primeira menstruação. Ai meu Deus! Foi muito chato. Eu não sabia o que fazer, ...nem contava pra ninguém porque eu tinha vergonha. Ficava com medo de falar pras minhas tias, pra minha vó. Sentia cólica, chorava e ninguém sabia por que era, porque eu não tinha coragem de falar. No terceiro mês minha tia descobriu que eu tinha menstruado. Falou pra todo mundo. Eu fiquei com muita vergonha. Teve uma vez, no quarto ou quinto mês, que eu menstruei na escola e acho que senti, mas não tive coragem de levantar da cadeira. Fiquei lá. Não fui pro intervalo. Não falei com os professores. Esperei todo mundo da escola sair. Quem fechava a escola era uma tia minha. Fiquei lá e não levantei da cadeira, até quando deu 12h40, todo mundo já tinha ido embora. Peguei minha blusa de farda, amarrei na cintura, peguei meu material, fechei a porta e fui pra casa chorando. Eu tava com muito medo das pessoas verem aquilo e dizerem: “Argh, que nojeira!”. Minhas amigas CEDECA Interlagos • •
não sabiam que eu já era mocinha, que já tinha menstruado. Eu tinha medo das pessoas saberem. Antes de virar mocinha, conheci meu pai, nessa idade de quatorze anos. Ele foi lá pro norte, onde eu morava. É. Pela primeira vez eu vi o meu pai. Eu pensava que ele era mais bonito, né? (risos) Ele foi porque eu tava precisando do registro de nascimento, pois tinha que mudar pra outra série e as escolas não estavam mais me aceitando sem registro. Então precisava. Aí ele foi lá. Pra tirar meu registro. Me registrou errado. Ainda me registro errado! Passou um mês e foi embora pra São Paulo. Depois de um ano que me visitou ficou muito doente, foi derrame cerebral, teve que fazer uma cirurgia urgente! Acho que as veias da cabeça, alguma coisa na cabeça dele tinha ficado colado. Ele tinha 80% de chance de morrer se ele fizesse ou ele podia ficar tomando os remédios e não fazer essa operação. De início eu não me importei muito, porque eu não sentia carinho por ele. Ah, é só uma pessoa, eu num..., só o vi uma vez... Não sentia aquele carinho, mas às vezes eu me arrependia dos pensamentos ruins que eu tinha, ficava pensando que ele não tava nem aí, mas eu pedia perdão ao meu Deus e que ajudasse meu pai. Quando passou, uns três meses ele foi pra casa. Minha mãe, fala que foi muito ruim nessa época, porque só ele trabalhava. Tinha três filhos pra criar. A minha mãe precisou começar a costurar, lavar • • 18 anos, 20 histórias
roupa pro pessoal de fora e bordar. As minhas irmãs começaram a dormir nas casas dos outros porque ela tinha que ir pro hospital pra ficar com meu pai. Pelo jeito que eles falam, foi muito ruim essa época pra eles. Eu não vivi, porque não tava aqui. Mas, quando eles contam dá vontade de chorar, se eu tivesse aqui eu poderia ter ajudado, poderia estar trabalhando também. Nessa época eu ainda estava lá no norte. Quando tava com uns quinze anos, minha mãe foi lá visitar a gente, mas meu pai não podia! Conseguiram vir porque meu pai recebeu uma quantia legal do serviço lá dele, aí... ...minha mãe foi lá com as meninas e o meu irmãozinho. Passou um mês lá. Nessa época, na minha casa, no norte, meu tio adoeceu também. Ele teve meningite e ficou seis meses no hospital. Minha avó gastou todas as economias dela e a gente passou uma situação muito difícil. Meu tio não trabalhava fixo. Tinha quatro filhos dentro de casa que ele precisava sustentar. A gente fazia de tudo pra ajudar, mas a gente não tinha muita grana pra sustentar tudo isso, e também nós mesmos. Tinha que pagar hospital e remédio, que eram muito caros. Acho que uma caixinha era noventa reais e só dava pra quinze dias. E noventa reais, além de comida pra todo mundo, era muito difícil. Foi nessa época que minha mãe foi pra lá. Foi bom porque eu pude conhecer ela, porque eu não tinha mais lembranças da minha mãe. Num lembrava das feições dela. Só das fotos. Fotos velhas. 101
Antes dela chegar limpei toda a casa, fiz comida, tomei banho, me arrumei toda bonitinha. O dia que ela chegou foi muito bom! Eu achava que eu não ia sentir nada, mas quando eu vi eles... ...deu vontade de chorar. Eu comecei a chorar, minha vó também, todo mundo, sabe? Reunimos toda a família pra esperar eles chegarem. Fiquei muito ansiosa e curiosa pra saber como eram. Quando vi as meninas, pensei: “Caramba, só eu que sou baixinha, todas elas são alta e gordinha e só eu que sou baixinha!”. Dei aquele abraço forte na minha mãe, chorei pra caramba nesse dia. Tinha doze anos que minha vó não via a filha, foi muita emoção nesse dia. Era pra passar o mês, aí prolongaram mais um mês, mas as meninas não podiam ficar sem escola, aí minha mãe resolveu voltar mesmo. Eu passei a ligar direto pra elas. Antes, eu não ligava. Tinha pouco tempo que tinha colocado telefone lá na região, antes eu nem me interessava em ligar, mas depois que peguei amizade com minhas irmãs, peguei carinho por eles, aí comecei a ligar. Elas foram embora e eu continuei estudando. Aí no próximo ano, tinha dezesseis anos e ia mudar de escola, ...não ia mais ficar morando na minha comunidade. Fui pra casa da minha tia que era em outra cidade. Comecei a fazer a oitava série. Conheci várias pessoas especiais. Meus melhores amigos conheci naquela escola. Professores que eu até hoje admiro.
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Foi das melhores escolas que eu já tive. Era uma escola estadual. Tinha suas bagunças, seus erros, mas era muito organizada. Era muito legal. Conheci vários amigos e tinha três em especial, a Francinele, o Helder e o Ribamar. Esses foram meus melhores amigos, para o que der e vier, nas horas difíceis. Tenho muitas saudades. Muita gente que se aproximou de mim, não por interesse, mas pelo que eu era. No segundo ano que eu tava lá, ganhei professores de alto nível. Teve concurso do estado nessa época e entrou vários professores que eu não conhecia. Dos professores quem eu admiro muito é o meu professor de Geografia, ele era muito inteligente. Na aula dele, eu ficava: “Meu deus! Que professor! , Eu quero ser um dia como ele!” Eu tenho um sonho em me formar em Geografia, porque eu achava muito interessante o jeito que ele explicava, porque me fazia compreender que aquela matéria não era tão difícil como eu pensava. O modo dele explicar era bom, porque eu entendia. A professora de Gramática também era ótima. De História! Gente! Parece que eu tava vendo ali como aconteceu. Já a de inglês, eu não entendia. Eu não gosto de inglês mesmo. Nunca fui de gostar, mas essas outras matérias eu amava. Literatura! Eu tinha uma professora de Pernambuco, que falava muito engraçado. Ela era loirinha, branquinha, pequena. E muito divertida! CEDECA Interlagos • •
Os meninos zoavam demais ela e a professora ficava doidinha na turma, mas era uma ótima professora. Já teve outra que entrou que eu não gostei, porque ela faltava muito na escola.
Passei três dias na estrada. No caminho ligava direto pra minha mãe, pro meu pai: “Pai eu to em lugar tal. Não me deixa na rodoviária, se não eu vou morrer!”.
Até a oitava série a gente tava brincando, mas quando entra no ensino médio, de primeiro pra terceiro ano, a gente já quer adquirir algo...
Quando começou a entrar na cidade mesmo, em São Paulo, eu me dizia:
...pra poder mostrar pro mundo que a gente sabe.
E mesmo assim não chegava. Só passava carro, prédio, casinhas, casonas... E num chegava nunca. Quando chegou na rodoviária eu falei:
Nessa época, não é que eu queria ser a certinha da turma - porque eu não era a mais inteligente, existia muita gente inteligente na minha turma – mas, eu me interessei mais pela escola nessa época. Foi nessa época também que eu vim pra cá a minha primeira vez. A mudança de escola foi tão difícil. Tem professores que me ensinaram muito quando eu cheguei nessa escola que estou hoje (São Paulo), mas eu achei tão estranho, porque tudo que eles tão me mostrando aqui no terceiro, eu vi no primeiro e oitava série. Eu fiquei assim:
“Cara aqui tudo é grande”
“E agora?” “Como é que eu vou levar minhas coisas?” “Como é que eu vou descer do ônibus?” “Será que meu pai vai tá lá?” Ficou um monte de perguntas. Quando eu desci, fiquei parada lá. Cheguei, acho que uma cinco da manhã, na rodoviária do Tietê. Lotado. E fiquei lá esperando, esperando... esperando... A rodoviária lotada, véspera de natal.
‘Cara! Eles tão dando assunto de oitava série, eu já vi isso!’
Uma hora se passou.
Que bom que meus professores puderam me mostrar isso no tempo correto.
Nada.
Aí vim pra São Paulo. Essa história eu adoro! No dia foi pra lá de emocionante, pra lá de triste. Há quase dois anos atrás. Foi quando eu vim pela primeira vez. Eu tinha apenas 16 anos, não conhecia nenhum lugar além de Arraial, no Piauí. Eu tava com muito medo. Tinha que viajar sozinha. • • 18 anos, 20 histórias
Comecei a chorar e ninguém. Nada. Parei de chorar. Três horas se passaram... e ninguém. Chorei mais. Parei. Às vezes uma das multidão me chamava e dizia:
pessoas
naquela
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“Ô menininha, chama aquela mulher ali. Chama ela pra mim”. Eu ia lá e chamava. Eu me senti perdida naquele lugar. Primeiro, eu nunca tinha saído de Arraial. Minha cidade é super, hiper pequena e de repente estou num lugar enorme. Cinco horas se passaram. Às vezes chegava outra pessoa e dizia: “Chama aquela senhora pra mim”. E eu chamava. Ficava lá. Começava a chorar de novo. Parava. E nada. Isso porque do lado de lá, depois da cerca eu não podia passar porque depois não podia voltar. E se meu pai me procurasse, entrasse, e ele não tivesse o bilhetinho lá, ele ia ficar do outro lado. E não tinha orelhão. Eu não sabia. Eu fiquei parada. Paralisada. Só, num lugar só. Só. Fiquei esperando pra caramba lá. E ninguém chegava pra me procurar. Parava, eu tentava me controlar. E assim nove horas se passaram. Deu sete da manhã e nada do meu pai. Eu tava chorando já desesperada, quando um rapaz que estava lá para buscar a mãe dele perguntou: “Por que você ta chorando?”. Respondi: “Porque eu to aqui há horas esperando meu pai pra me pegar e eu não conheço esse lugar. Eu não conheço esse lugar moço. Eu vou morrer aqui sozinha” Falava. 104
Chorava. E parava. Aí o moço perguntou pelo número de telefone da minha casa. Aí eu falei e ele ligou a cobrar do celular dele. Falou com a minha mãe. Contou que eu tava lá desesperada, chorando há horas esperando meu pai e nada dele. Dizia: “mas senhora, porque o pai dela não vem pegar ela? Ela tá desesperada aqui. Ó, ela tá na plataforma 17, por favor, fala pra ele vir aqui”. Foi quando minha mãe contou que ele já estava lá desde as três da manhã, mesmo horário que eu tinha chegado. O moço desligou e pediu que me controlasse, que esperasse mais um pouquinho que meu pai ia me encontrar. Então achou a mãe dele e foi embora. Aí eu fiquei lá tentando me controlar. Mas sei lá... ...quando a gente não conhece, não sabe o que pode acontecer, o que está vivendo ali é difícil. Aí passou meia hora e eu ouvi alguém chamando meu nome e procurei através da grade que tem lá, vi tanta gente, tanta gente, mas não via ele, não conseguia. Aí olhei um pouquinho assim pro lado e ele tava lá. “Lila tô aqui. Venha aqui filha”. A gente foi pra casa, que é bem longe do Tietê. Cheguei com os olhos inchados de tanto chorar, morta de cansada. E essa história é muito importante pra mim, uma experiência que eu nunca tinha vivido, nem esperava viver. CEDECA Interlagos • •
Também muito despedida lá no norte.
importante
foi
a
Aqui em São Paulo, o nosso bairro é assim:
“Se você for, você vai acostumar lá, você não vai mais voltar pra cá.
Tem um monte de ruazinhas, casa, casa, casa. Também tem um terreno bem escuro, que vem até do lado da escola, sem casa, é um terreno particular. Acho que eles vão construir lá. Não sei se é da prefeitura. Se fosse da prefeitura,
Você vai me deixar Lila, você não pode me
eu acharia bom fazer uma área de lazer,
Na época da viagem, minha vó não queria que eu viesse e sempre falava:
deixar!”. Mas eu sempre falava pra ela que eu ia voltar. Dizia que eu tava procurando algo melhor pra mim. Que lá eu tinha escola boa, mas não tinha oportunidade de emprego. Não dava, eu ficar lá fazendo nada?! Ela sempre falava que num era pra eu vir, que não era pra eu abandonar ela. E eu... mas eu vim... Mas eu não abandonei a minha vó, eu vou voltar um dia. Aqui fui conhecer mais minhas irmãs, já conhecia, mas a gente ficou mais íntima, conversava mais. Conheci novas pessoas e novos lugares. Mas passei dois meses aqui e voltei, porque eu não tinha pedido transferência nem nada pra estudar aqui. Voltei, passei mais um ano lá. Foi um ano muito difícil porque eu senti muita falta das minhas irmãs. Nessa época quase entrei em depressão. Foi o ano de 2007. Eu tava contando os dias pra vir, apesar de amar meus tios, minhas tias, meus primos e a minha vó. É que eu queria ficar perto da minha mãe e das minhas irmãs. Poder também fazer outros cursos e colocar uns currículos pra ver se eu encontrava um emprego, pra ajudar a minha família. Aqui é bem diferente do Piauí. • • 18 anos, 20 histórias
...mas não sei, acho que o terreno é particular, não sei de quem é, mas a prefeitura poderia comprar! Favorecer alguma coisa ao bairro. Em uma parte do terreno a gente passa andando. Num tem pavimentação nem nada. Mas o nosso bairro mesmo é todo pavimentado, tem iluminação e tudo mais. De um dos lados do terreno tem uma avenida e um monte de coisa. Tem também o escadão, que é bem declinado. Quando chove é muito ruim pra subir por ali porque tem muita lama. Ontem mesmo pra vir pra escola. Cheguei com os tênis cheios de lama! No meu bairro mesmo, não tem nada. Só casa! Casas e bares. De um lado tem um clube, mas é particular. Lá tem, piscina, salão de festa... mas é particular. Próximo daqui só tem uma pracinha. Os meninos improvisam lá! Eles fazem campinho, jogam futebol lá. Porque de lazer, pra criança, pra adolescente, não tem nada! Ah! Tem uma rua que tem um muro e... uma bica que fica caindo água. Quando tá muito calor as criancinha fica lá. Só que não é muito saudável né? Um monte de criança tomando banho. A minha mãe não deixa meu irmãozinho ir lá não Já no final de semana, Quando meu pai
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arruma dinheiro pra gente passar em algum lugar, a gente sai dessa região, vai pro Parque Ibirapuera, esses outros lugares. A minha mãe às vezes pede pizza ou ela dá dinheiro pra gente ir lá, mas são dois domingos no mês. Parques assim... perto de casa, não tem. Só se for quadra de escola, dos outros bairros. No nosso não tem mesmo. Eu jogava futebol lá onde eu morava. Mesmo baixinha. Tinha time de futebol feminino na minha comunidade. A gente participava de campeonatos. Aqui não vejo nem as meninas falando de futebol. Agora aqui na escola não tem professor. Pra gente do terceiro, do ensino médio, não tem Ed. Física. A gente não usa a quadra. Eu nunca vi. Bom se tivesse, campeonatos, alguma coisa na escola. Não tem coisa pra fazer. Tenho vontade de conhecer teatros, mas é muito longe da minha casa pra ir pra esses lugares e também tem que ter dinheiro pra gente sair. E a minha mãe não vai deixar eu sair sozinha, com mais três irmãos em casa, porque vai dizer que tá favorecendo só um. Tem o ciúmes também, se fizer pra uma tem que fazer pra todas. Às vezes tem festas na comunidade, festas de aniversário. Minha mãe diz: “Meia- noite é pra você estar em casa!!”. Teve um baile funk, com um cara do bairro que é DJ. Ele tinha a aparelhagem toda e montou o baile funk, só com o pessoal da comunidade. Minha mãe não deixa a gente sair pra 106
esses lugares... porque, sei lá. Ela fica falando que só tem um monte de... Eu não sei nem como falar. O meu vizinho direto sai pras baladas e bailes funk, a minha mãe não deixa a gente ir porque ela pensa que nos baile funk só tem... “putaria”! Que as meninas não se dão o respeito, os meninos não respeitam as meninas, que as músicas não tem noção... Tem uns funk mesmo que são muito doidos. Ela não deixa nem a gente ouvir funk em casa. A gente num sai muito mesmo pra ir nesses bailes. Nesse que teve no bairro a gente foi porque todo mundo é conhecido, não ia ter tudo aquilo que tem em outros bailes. Eu ouço falar dos CÉUS, que a prefeita fez, mas nunca fui. Falam que alguns estão abandonados e falam que outros, antes eram uma beleza, tinham muitas coisas, mas com o passar do tempo... Acho que não tinha como manter, ou tem e não quiseram investir mais. Lazer mesmo ali perto... Meu Deus! Só Lan house! Nem posto de saúde... Às vezes a gente tá precisando e não tem mais como marcar. Só pro próximo mês. Um monte de gente conhecida vai ao posto, que fica bem longe e tem que passar mó tempo na fila. A saúde não espera o próximo mês. Eu tive problema de visão, tentei marcar consulta no posto umas três vezes. Toda vez que eu vou, ...não tem mais consulta pra esse mês. Tem que esperar pro outro mês. E eu acho que isso é ruim pra população, porque não é só o meu caso, têm muitas outras que precisam, que quando vão lá, não tem como ser atendido. Às vezes nem remédio tem lá. Os remédios acabam rapidinho. CEDECA Interlagos • •
Tem outro posto (Assistência Médica Ambulatorial), funciona o pronto-socorro e o posto mesmo também. Mas só que lá tem que ter o cartão. Minha mãe tem, mas eu mesma não tenho, já tentei fazer mas não consegui. Pra gente conseguir alguma coisa lá, pra marcar consulta, pegar remédio é... a maior burocracia. Onde eu morava, em Arraial no Piauí, ...não tinha pavimentação. Também não tinha saneamento básico, mas os moradores faziam as coisas. Tinha associação de moradores. Pra deixar o lixo era num lugar afastado da comunidade, pra não ficar lixo na comunidade. Campo de futebol, que aqui não tem, lá tem. Um clube pra toda comunidade, da associação de moradores, ...qualquer um podia freqüentar. Tem outra diferença... as árvores! No meu bairro, aqui, tem pouquíssimas, e lá tinha muita. Em cada casa tinha umas fileirinhas de árvores. Quando eu vim pra cá, minha idéia era trabalhar, mas por enquanto eu não tô trabalhando ainda, mas tô fazendo meu ensino médio à noite. A escola... não é totalmente igual porque como a comunidade era menor, a escola também era menor. Tinham menos alunos, mas a mesma quantidade de professores. Tinha muitos professores. Pra cada matéria tinha um professor. Não tinha o problema de faltar muito, a não ser por doença. Os alunos também não faltavam muito porque a comunidade era pequena, os pais viam se os filhos “matavam” aula ou não. Aqui não dá. • • 18 anos, 20 histórias
A escola aqui não é tão boa, mas eu tenho professores ótimos e têm outros professores que não tão nem aí pra gente, mas a gente fica em cima pra vê se eles dão algo que interessa. Por exemplo, Na segunda, antes de ontem. A gente veio pra escola, como sempre. Alguns alunos faltaram, mas a maioria da nossa turma veio. Todo mundo trouxe os livros necessários, tivemos a primeira aula, mas quando começou a segunda aula, falaram que só teríamos duas aulas, porque não haveria água na escola. Acho que deu problema na caixa aqui da escola. No outro dia, também. Ontem não tinha água na parte da manhã, mas teve aula. Já pra gente, todas as aulas foram canceladas. Tivemos só as duas primeiras aulas, ...e na segunda aula, a professora não deu aula. Ficou lá na turma, tava presente, mas não deu aula, nenhum conteúdo. Ela só tava lá sentada. A gente ficou só conversando. Aí bateu o sinal, pegou as carteirinhas e a gente foi embora. Já ontem, a gente veio pensando que não haveria aula. Não foi informado, que já tinham consertado a caixa d’água. Tivemos todas as aulas e foi legal. Todos os professores da minha sala vieram, mas nem todos os alunos vieram. Minoria. Um monte de gente não vem porque não quer, hoje provavelmente, virão dois ou três alunos da minha turma. Hoje eu vou pra escola, mas não sei se eu vou entrar não. Se tiver só eu, eu não vou entrar não, eu vou embora. 107
Na minha turma tem uns trinta e seis alunos. Os meninos, às vezes combinam de não vir pra escola certo dia, só que normalmente eu falo logo: “Não tô nem aí pra vocês, vocês vão levar falta. Porque eu venho!”. Às vezes eu não venho por alguma coisa que acontece em casa, mesmo se eu quisesse faltar, Eu ia cabular aula e ficar onde? Ficar só olhando pro tempo, sem fazer nada? Prefiro ficar na escola, mas às vezes também não vem ninguém. Esses dias (véspera de feriado) os alunos normalmente faltam. A gente ia ter prova hoje, de inglês, mas a... professora também mandou avisar que não vem, que não vai passar nada. A outra professora também não vem, aí só tem duas aulas no último horário. Um dos motivos de os meninos não quererem vir. Vir pra escola pra ter duas aulas. Como foi na segunda. Muitos alunos da minha turma vieram e tiveram uma aula e depois simplesmente foram embora. Então, a maioria não vem hoje. Essa história de professor faltar é normal. Na semana, acho que dois dias vêm todos os professores. Nos outros três dias, faltam um ou dois professores. A gente fica com horário vago. Vai embora mais cedo. Quando faltam muitos professores, a gente vai embora. Quando falta um professor só, vem um professor de apoio curricular.
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Entra lá, dá qualquer outro assunto... ...pra os alunos não ficarem sem nada. Teve um dia mesmo, que a gente teve três aulas de apoio curricular, porque faltaram os professores. Eu acho errado, porque o que mais importa é que os professores venham dar a matéria que realmente nos interessa. Porque os de apoio curricular, eles dão de assuntos básicos, de coisinhas que a gente já sabe. Esses professores de apoio estão quase sempre aqui na escola. Também tem a questão do comportamento na aula. Tem alguns professores que não permitem que o aluno se “empolgue” tanto na turma. Agora tem uns professores, que quando entram na turma, não impõe moral pra que a turma “preste atenção”. Se o aluno fica fazendo bagunça, o professor fica lá parado, olhando, como se estivesse esperando o aluno parar. Eu sei que o aluno tem que prestar atenção, mas os meninos não estão nem aí. Agora, já existem dois professores que não deixam bagunçar. Bagunçou, saiu da turma. Ele veio pra dá aula e a nossa obrigação é ouvir, ou então, tentar aprender o que ele vai passar. Primeiro: Numa sala de aula, nem todo mundo é de um jeito só. Uns não querem, tudo bem, é só ficar calado, não ouvir. Mas os que querem, são atrapalhados por quem tá bagunçando. Muitas vezes, por isso alguns professores se impõem. Mas outros, não tão nem aí. E atrapalha muito a bagunça dos outros pra quem quer aprender. A hora do intervalo é legal, porque reúne todo mundo. Os amigos começam a conversar. Quem não é amigo fica lá de canto. Tem também a
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merenda escolar. No intervalo eu fico com a minha irmã, ela tem dezessete anos. Fico com ela e os amigos dela. A maioria come merenda na escola, mas eu não! Eu prefiro a comida da minha mãe. Eu não gosto, mas a maioria dos alunos que estuda a noite, eles vem do trabalho com fome, aí a merenda escolar é importante pra isso. Agora quem não quiser. Eu mesma não gosto. Às vezes eu como, quando é toddy ou quando tem fruta, mas das outras coisa, eu não sou muito a fim não. Eu saio de casa pra vir pra escola, seis e meia. Chego aqui seis e cinqüenta. É meia hora, quando vêm caminhando normal. A volta pra casa é boa e é ruim. É bom porque sai mó galera, mó conversa com todo mundo. Fala com os amigos, dá um tchau. Tudo bem, mas até ali onde tem o farol, onde todo mundo vai junto. Dali pra frente, eu vou com a minha irmã. Sozinha. Às onze horas. No meu bairro mesmo, a entrada de pedestre que a gente entra andando, não tem muita iluminação. Aí a gente desce só nós duas. É muito escuro. Eu fico um pouco com medo, mas já acostumei. A gente já se acostumou... Também já aconteceu várias vezes de eu ir sozinha e a minha irmã também, porque, se eu sair na segunda aula e ela sair só na última, é muito tempo pra ficar esperando. Vou embora, fico com um pouco de medo, nessa faixa tem um terreno que não tem nada... ...é tudo isolado. Meu deus! Dá até medo de andar só. Na minha rua, quando a gente chega da • • 18 anos, 20 histórias
escola tá totalmente isolada, porque é a última rua e pra frente só tem o terreno. Nas outras ruas, é rua com rua, frente com frente de casa. E a nossa não, só dá de frente pra aquela escuridão. É bem escuro do lado do terreno, escuro... Já ouvi falar que aqui ao redor, tem pessoas que pegam meninas. Pra violentar, essas coisas. Só que comigo, com fé em Deus, não vai acontecer nunca. Perto da linha do trem falam que é perigoso, mas não acho que tem perigo ali não, passa carro e gente toda hora. Mas as meninas falam que já tiveram casos de meninas que foram pegas por homens ali, que tentaram violentá-las, mas comigo nunca aconteceu e nem há de acontecer. A noite tem o guardazinho pago pelos moradores, que fica fazendo rondas de vez em quando. A gente não vê ele, mas quando a gente entra, passa uns dez minutos, ouve o barulho do apito. No ano que eu vim, passava muita polícia ali no bairro. Acho que eles tava procurando alguém. Passava muita viatura, cheia de policiais. Agora não. Muitas diferenças daqui e de lá do norte. Muitas mudanças na minha vida. Importante pra mim é que esse ano eu tô junto da minha família, apesar dos problemas que temos, a gente tá sempre junto, pro que der e vier. E eu espero voltar um dia pra casa da minha avó, não pra morar, mas quero visitar eles nas minhas férias, quando eu estiver trabalhando. Pra poder ajudar a minha avó, por que ela já é uma idosa. E eu queria muito que ela tivesse com forças pra eu demonstrar... Não, pra eu repor tudo que ela fez por mim. Por ter me criado como uma pessoa honesta. 109
Eu tenho muito medo de morrer e num poder ver mais a minha avó. Porque aqui é muito perigoso. Todo dia sai coisas que eu fico perplexa só de ver pelos jornais. Eu rezo todo dia pra que isso não chegue até mim, nem nas pessoas que eu gosto, mas, sei lá, o mundo é tão estranho pra mim. Principalmente aqui que eu num conheço os lugares. Só da escola pra casa e pro meu curso. Me chamam pra sair a noite e eu tenho medo de sair com eles, porque, se durante o dia é perigoso, imagine a noite. A minha mãe mesmo também não deixaria, porque eu não conheço e ela não conhece as pessoas que estudam comigo. Meus amigos aqui da escola, esses que eu tô começando a fazer amizade. Conversamos: - Você conhece tal lugar? - Não! Não conheço. - Mas é ali oh! - Mas eu não conheço, não sou daqui...
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Menina morena Também deseja colo palavras amenas Precisa de carinho Precisa de ternura Precisa de um abraço da própria candura Guerreiros são pessoas são fortes, são frágeis Guerreiros são meninos por dentro do peito Precisam de um descanso Precisam de um remanso Precisam de um sonho que os tornem perfeitos (Gonzaguinha)
Em sua caminhada Lila ouviu falar do Estatuto, apenas não sabia que tinha o mesmo nascimento, mesma idade, parecida história de resistência... talvez com uma mesma afirmação de vida contida na garganta, que se quer fazer ouvida seja aqui ou ali, seja norte, sudeste, nordeste, sul:
Sou gente, tenho direitos!” • • 18 anos, 20 histórias
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“
Sonhei com uma menina linda, linda, linda. Dando risada pra caramba. Olhava a mãe ao pé do fogão Brincava sempre de casinha, de fazer comidinha. Reinventava cada ges to em seu mundo imaginário - Desde pequena quero ser mae. O nome era de uma ar tis ta de novela. Cresceu e gos tava de ver T V de tardinha Ser o que v ia no comercial Ter aquele celular de tirar fo to. Que aquela menina tinha. E a roupa da Sun Rocha. Tava na moda né? Mas muita coisa aconteceu... E acontecerá... Ela só quer que doa pouco E que venha logo Quer logo ver a manhã-menina sorrir.
”
Meu nome é Amanda, nasci em julho de 90.
S
onhadora dizem.
“Ainda é cedo pra isso!”
É. Cada um tem um sonho. O meu sempre o mesmo. Desde pequena quero ser mãe. Diziam: “Que estranho!”, “Tão nova...”, “Tão cedo”. Brincava pequena sempre de casinha... Aos quinze espalhei o meu sonho aos ouvidos em geral. Mesmo envergonhada, sabendo que as pessoas iam me julgar muito. E foi neste mesmo ano, que aconteceu. Menstruação interrompida. Dúvida. Será? Como falar pros meus pais? Onde eu vou morar? O que vou fazer da minha vida? Não terminei os estudos ainda! Mas ainda era pura interrogação ou pura possibilidade. Fui fazer o teste. Tristeza. Um pouco de tristeza. Não era aquela a hora ainda... • • 18 anos, 20 histórias
Deste dia quase três anos se passaram... Então há pouco tempo aquela dúvida instalou-se novamente. Caramba! Como fugir? Fiz o teste. Tristeza. Alegria. Na hora, não sabia se chorava de tristeza, se dava risada de alegria, não sabia se misturava os dois... “Como contar pros meus pais?” E que rolo foi contar... Primeiro foi pra minha mãe, que logo entrou em desespero: “Como você foi deixar acontecer isso? Você é muito nova! O que você vai fazer agora?” E começou a chorar... E começou a passar mal. Pensava comigo apenas “Não tem mais condições. Eu não vou tirar, né?” Logo minha mãe deu a noticia à meu pai. Todo mundo já sabe. Eu acho que o pessoal pode até me julgar porque eu sou muito nova, mas eu não ligo, porque eu vou dar tudo do bom e do melhor pra minha filha. Eu vou fazer do mesmo jeito que a minha mãe fez. Hoje eu já estou de cinco meses. Meu pai até hoje não fala comigo. 113
Estou fazendo o pré-natal.
“E esse meninão aí?”
É uma menina, o nome dela, Giovana.
Meu nome, Amanda.
Vai nascer lá pro dia 15 de agosto e eu estou muito feliz. De quando eu nasci... ...minha mãe conta que lá naquela época ela trabalhava em uma fábrica de relógios e era tipo chefe. Não que mandasse, mas se via uma peça quebrada mandava fazer de novo. Meu pai trabalhava com peça pra carro de corrida. Quando faltavam duas semanas pra nascer e o dono da firma mandou meu pai embora. Não tinha uma casa, não tinha uma roupa, não tinha nada. Minha mãe sempre trabalhou bastante. Sempre foi muito independente. Sempre teve as coisas dela, lutou muito pelo que queria. Nasceu no Ceará e veio pra cá cedo, com sete anos. Quando conheceu meu pai, ele foi na casa dela e não acreditou que ela morava sozinha. Diz que o chão de cimento vermelho parecia um tapete de tão encerado. Começaram a namorar, casaram e me tiveram... Ela queria uma filha e meu pai queria menino. Ele falava: “O nome dele vai ser Pedro”. Minha mãe: “Pedro não! Vai ser menina”. Um dia ele chegou em casa e estava cheia de roupinha de nenê, tudo azul, amarelo e verde. Minha mãe falou: “Não sei porque que você comprou isso, eu sei que é menina”. Nasci! Minha mãe conta que quando o médico viu, eu, toda de azul, disse: 114
Era o nome de uma moça da novela daquele tempo. Aos dois anos falam que eu era muito maluquinha. Comecei a andar logo cedo. Aos quatro anos, lembro de um aniversário que ganhei bastante presente. Meu cabelo parecia cabelo de macarrão, era bem cacheado. Aos cinco anos, meu pai cortou meu cabelo bem curtinho. Depois que foi cortado ficou liso, assim. Com seis anos tive duas hérnias. Fiz a operação. Naquele dia foi horrível. Todo mundo com medo. Eu nunca tinha passado por isso. Eles me levaram pro hospital, no dia e o ônibus quebrou no meio do caminho. O pessoal falava: “Ah, vai dar alguma coisa errada...” Quando chegamos no hospital pensei: “O que eu tô fazendo aqui?” O médico então me disse: “Ó, a gente vai te dar um remédio, é uma anestesia. Você vai dormir e vai sonhar que vai ganhar uma nova boneca e um Mc Donalds”. E foi exatamente o que eu sonhei. Na hora que acordei a mão do médico tava toda suja de sangue e eu, não tava sentindo nada. Passou um tempo e fui pra casa. Não agüentava nem colocar o pé no chão. Minha mãe que me levava pra cima e pra baixo, pro banheiro, pra tomar banho, pra almoçar, pra me botar na cama. Com sete anos comecei a vir pra escola. Lembro até do prézinho. Minha mãe falou: “ Você vai conhecer um monte de amigo”.
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É que eu sou filha única. Nunca tinha ido num lugar que tivesse um monte de criança sem os pais! Fiquei com receio, mas acabei indo e gostei pra caramba. Arranjei um monte de amigo lá. Na primeira série também lembro do meu primeiro dia de aula. Minha mãe me trouxe e eu não queria entrar, ela dizia: “Você vai entrar!” Falava: “Não, não quero entrar não”. Ela me deixou no portão e eu saí correndo atrás dela. Comecei a chorar. Ela me levou pra casa. No outro dia a mesma coisa. Só que aí ela disse: “Não, agora você vai ficar!” Aí, fiquei, entrei, quieta, não falei com ninguém. Até que a menina que sentou na minha frente falou comigo: “Qual é seu nome?” Com oito anos fui pra segunda série e lembro de um professor muito legal e de muita bagunça. Nossa senhora! Os moleques eram terríveis. Só faltava baterem no professor. A professora ficava doida com a gente. Fazia de tudo pra gente aprender e os meninos não estavam nem aí. Eu sempre fui super esforçada na escola. Com dez anos. Eu peguei infecção. Não conseguia fazer xixi de jeito nenhum, fazia xixi pela sonda. Os médicos falaram pra minha mãe: “Se a Amanda ficar viva ela vai re-viver”. • • 18 anos, 20 histórias
Porque quem me via não tinha esperança não. Não agüentava andar, não agüentava tomar banho, tomava banho sentada, lembro que cada vez que a água batia nas minhas costas eu gritava de dor. A professora foi me ver e saiu arrasada de lá! Foram vinte e cinco dias em casa. Fora da escola. Nesse mesmo ano, minha mãe pegou catapora. Passou uns dias em casa e fiquei com ela. Quando ela sarou, eu peguei. Na mesma época. Depois desse tempo fora da escola quando voltei era muita gente nova, muita matéria nova. A professora passava matéria, e eu começava a chorar porque não sabia fazer. A minha cunhada que começou a me ensinar e aí sim, comecei a aprender. Lembro que no final do ano, na quarta-série, o professor dizia: “Vocês têm que prestar atenção na lição, porque ano que vem não vai ter só um professor, vai ter mais de cinco!” A gente pensava que era brincadeira. Chegou na quinta série, cada aula entrava um. A gente ficava perdido. Ah! Na escola tinha um menino, da minha sala, chamado Vinicius, desde a primeira série estudei com ele. Era super atentado e eu pelo contrário era muito calma. Até então. Ele não parava de ficar me batendo. E eu como era besta não fazia nada. Eu falava pra minha mãe e minha mãe ia lá e falava um monte pra ele. Até que um dia, eu tava fazendo lição e ele 115
Outras coisas aconteceram nesse tempo...
perguntou as horas. Falei. Ele disse: “Deixa eu ver então!” Mostrei o relógio e ele pegou no meu braço e saiu me arrastando pela sala! Eu de joelho, sujei minha calça todinha. Pensei: “Ah, hoje eu não vou ficar quieta não!” Saí correndo atrás dele. Peguei. A sala tava sem professor, tinha acabado de bater o sinal. Ele começou a segurar no meu braço. Ele chutando e eu arranhando. Só que minha unha sempre foi grande. De repente um amigo diz: “Olha pra porta!” Era a coordenadora. Ela disse pra gente ir pra fora conversar. Foi aí que vi o braço do menino, saindo sangue. Tive que assinar o livro. Fiquei desesperada pensando: “Se minha mãe souber de um negócio desse, ela vai me matar”. Desde a sexta-série, os meninos zoavam o professor. Às vezes inventava apelido. Uma delas era a “hipopótamo”. Lá pra sétima, um dia, uma pessoa da escola perguntou o que a gente fazia à tarde. A gente respondeu o que fazia: “Nada”. Perguntaram: “Então, podem vir aqui todo dia pra ajudar a arrumar as carteirinhas?”. A gente vinha a tarde arrumar as carteirinhas e depois voltava pra escola. Tinha dia até que a gente ficava direto. Foi na oitava série que o pessoal foi saindo da escola, não foi muito legal não, todo mundo indo pra outra escola. O pessoal ia ficando mais velho e também mais ignorante, sabe, mudando o jeito de ser com as pessoas. Uns querendo ter mais de que os outros. Tipo, a gente conversa hoje e daqui uma semana não se fala mais porque não tem a roupa igual, não tem isso, não tem aquilo. Hoje cada um tem um grupo. 116
Lembro da confusão quando furei o umbigo. Furei sem minha mãe saber. Fui com uma mulher que se passou por minha mãe. Comecei a usar camisetas grandonas, que tampavam o umbigo. Minha mãe viu que eu levava remédio pro banheiro e logo descobriu. Foi num dia que ela mandou eu levantar a camiseta: “Levantar pra que, mãe? Você já viu minha barriga quantas vezes?” Fez cara de espanto e disse: “Agora você vai apanhar!” Catou a cinta. Eu disse: “Você pode me bater, já furei mesmo, não vou tirar não!” Ameaçou contar pro meu pai e no final eu que tive que contar. Meu pai é muito ignorante, muito ignorante mesmo. Disse: “Como é que é? Você pode tirar isso, que isso é coisa de maloqueiro! Você pagou quanto pra furar?”. Aí eu tirava, colocava, tirava e colocava, tirava e colocava. Deixei. Depois ele não falou mais nada. Também sempre tive vontade de ter um celular de tirar foto. Tinha uma menina que tinha. Queria um, só que minha mãe não conseguia tirar um pra mim. Às vezes minha cunhada me emprestava o dela. Um dia, fui pra Santo Amaro com meu namorado, o Ricardo, e minha mãe ia nos encontrar pra comprar o celular. Chegando no ponto de encontro, começou a esfriar! Um frio! Minha mãe demorou a chegar. Quando foi seis e vinte e cinco, exatamente, minha mãe chegou. A gente foi correndo pras casas Bahia. Mostrei qual queria. Aí a vendedora começou a
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colocar um monte de dificuldade: “...porque pra tirar esse celular tem que dar cento e vinte reais de entrada...” Aí, na hora que a mulher falou isso, levantei e falei: “Repete!”. Ela repetiu. Peguei e dei um chutão no balcão, onde o pessoal fica. A minha mãe até ficou nervosa, disse: “Calma!” Respondi: “A mulher tá vendo que a gente tá aqui tremendo de frio!”. Eu não tinha comido nada ainda. Veio falar que não posso tirar a bosta do celular. A gente foi embora. Eu falei: “Não, a gente não vai embora não, você vai comprar um DVD pra mim!” e minha mãe: “Não. Se eu comprar um DVD pra você agora, depois não vou conseguir tirar o celular. Não, não tem como tirar, se não, não vai dar pra te dar o celular depois!” Eu falei: “Não quero saber...” Gritava no meio da rua que nem uma louca, porque quando quero uma coisa, eu quero! Não quero nem saber se não posso ter. Você tem que dar dinheiro sem ter, eu quero. Entrei no ônibus e comecei a chorar. Meu namorado ficou pedindo pra parar de chorar. Nunca tinha namorado ninguém, foi ele quem me deu um celular.
cabeça. Fui no mercado e ele, esse segurança, perguntou pra minha mãe se era meu aniversário. No outro dia, veio ele, perguntou pro meu pai se eu estava em casa. Eu tava lá em baixo com a minha mãe conversando, porque lá em casa tem bar em cima, e minha casa embaixo. Ele me chamou e deu o presente. Nem olhei pra cara dele. Só vi o pacote, agradeci e saí correndo. Cheguei lá em baixo e contei pra minha mãe. Quando eu fui ver era uma blusa. Meu deus do céu! Eu não queria saber de mais nada só da minha blusa de frio. Sempre quis ter roupa da Sun Rocha. Tava na moda né? Esse cara começou a me dar vários presentes, meu namorado não tava gostando nada disso. E falou pra parar de aceitar os presentes. Aí chegou o ano novo. Naquela época, meu pai não deixava eu ficar na rua até quatro horas da manhã como hoje. Antigamente, quer dizer, no ano retrasado, porque agora eu fico até a hora que eu quiser. Aí entrei em casa e o segurança chegou no meu namorado e falou assim: “Você pode fazer o que quiser, mas eu gosto da sua namorada”. A mãe do Ricardo já não gostava muito de mim. Um dia, minha mãe passou na rua e ela disse: “Sua filha não presta pro meu filho! Meu filho é um bom partido...”
Nessa época, lá perto de casa tem um mercadinho e colocaram um segurança lá, que começou a gostar de mim. Eu ia pro mercado e ele ficava me olhando, eu achava até estranho.
Começaram a discutir: “E desde quando seu filho é melhor que a minha? Seu filho não é melhor do que a minha”.
Logo fiz quatorze anos. O pessoal sentou tudo ali na rua pra almoçar comigo e atacar ovo em mim. Tacaram ovo, farinha, cerveja, tudo que tinha direito. Todas essas porcarias na minha
Minha mãe também não aceita o namoro, mas ela vai ter que aprender. Outro dia disse que vai separar a gente. Eu falei:
• • 18 anos, 20 histórias
Cheguei lá e disse: “Ixi, problema seu!”
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“Você é Deus?”
Ele respondeu:
Não sabia não que tinha deus na terra, principalmente mulher. Pra mim deus é homem, não mulher.
“Eu vou casar com ela porque eu gosto dela, não porque você quer. Eu não faço o que os outros querem não, faço o que eu quero”.
Ela é da Congregação, então começamos a discutir. Na semana seguinte meu pai: “Você vai lá no Ricardo, vai chamar ele aqui agora que eu quero falar com ele”.
A gente marcou a data do casamento, vai ser dia vinte e sete de junho, à tarde.
Pensei: “Meu deus, agora danou-se”. Aí ele foi lá, falou com meu pai, falou assim:
Tô de seis meses, super contente. Tô fazendo o pré-natal e já descobri que é uma menina, Giovana o nome dela.
“Eu vou ficar com ela, porque eu gosto dela, vocês querendo ou não!” Meu pai falou: - Se você aprontar com ela você vai ter que assumir e... espero que não aconteça nada. Depois disso, a gente ficava em casa, ia pro shopping, comprava um monte de coisa pra comer e voltava pra casa, comendo e assistindo televisão. Tô com ele faz três anos e dez meses. Agora, tô morando com ele na casa dele, porque fiquei grávida. Quando contei que estava grávida, ele disse que não queria. Todo mundo dizia: “Eu não acredito, eu não acredito!” “Porque você é muito nova, você não terminou os estudos ainda”. Todo mundo. Minha mãe, a mãe dele. Meu pai falou pra ele: “Eu não falei pra você, que se aprontasse você ia ter que assumir ela?”
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Eu quero que passe logo essa época. Pra ver como ela é!
Quando eu ganhar eu já vou ter feito dezoito anos. Tô morando na casa da mãe do Rodrigo. Moram eu, ele, a irmã dele e a mãe dele. Embaixo tem cinco cômodos e em cima tem dois. A gente fica em um quarto e elas duas ficam no outro. Quando passar essa época de casamento, ela vai arrumar em cima. A gente vai ficar em cima, com a irmã dele. A mãe vai morar sozinha em cima da nossa laje. Não vou falar que meu dia-a-dia tá indo bem porque ontem o Ricardo foi mandado embora da firma. Como meu pai foi duas semanas antes de eu nascer. Foi depois do feriado, que dois pneus da moto dele furaram e ele falou que não ia trabalhar. A mãe dele falou um monte, mas ele não foi. Depois pegou conjuntivite e ficou mais sete dias em casa. Voltou a trabalhar e ontem o encarregado disse para ele vir no dia seguinte e ele disse que não ia. Algumas pessoas começaram a dizer que ele não tava fazendo o serviço direito, que não tava se esforçando... Foi despedido. Acho que é porque ele tava faltando demais, mas causa justa não teve não. Ele vai ficar aí, seis meses com seguro desemprego.
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Quando ela começou a mexer, não sei nem como explicar, porque eu fiquei tão besta, tava assistindo televisão, quando senti um negócio mexendo. Eu pensei: “Nossa! Será que eu tô com lombrigas?” Aí lembrei que tava grávida. Aí anunciei, mas toda vez que minha amiga colocava a mão, ela parava de mexer na minha barriga. E toda vez que eu colocava de novo a mão ela mexia! A gente pensava que ia ser homem, menino. Já tinha até nome Luiz Fabiano, só por causa do São Paulo, que o Ricardo é São Paulino. Um dia antes de fazer o ultra-som...
Põe a mão na minha barriga. Quando ela nascer já vou ter 18 anos.
...eu sonhei com uma menina linda, linda, linda.
A barriga crescendo A menina nascendo
Dando risada pra caramba pra mim, assim. Na manhã, assim que acordei, falei pro Ricardo. Aí quando chegou no ultra-som, era menina mesmo! Ele falou que queria mesmo era menino, mas tá mais besta... feliz pra caramba. Imagino como vai ser...
Sonho mesmo é que este mundo seja tão grande, Quanto os sonhos que ela pode criar.
Acho que não vai querer nem sair de casa. O parto. Quero o menos dolorido possível e mais rápido também!
“Sou gente, tenho direitos!”
Quero ver logo como ela é. Essas coisas, ter celular de tirar foto, ter roupa da Sun Rocha, eram vontades não vou falar que eram sonhos, sempre tive vontade de ter, mas sonho mesmo foi sempre ter um filho, e casar com uma pessoa que eu goste. Então, sonho mesmo é esse que vai acontecer: casar e ganhar minha filha este ano.
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“
Nem toda palav ra é aquilo que o dicionário diz* Nem todo sentimento demons tra o momento Nem toda sabedoria vem de um liv ro Nem toda música é escrita Tudo que escrevo, tudo que faço, tudo que sei, que vem... que dentro da minha cabeça vem, que... Ninguém ensinou, aprendi a fazer sozinho...
* Fernando Anitelli
”
Meu nome é Cauan. Nasci em julho de 90.
F
a ço p ipa d esd e os d ez anos. A primeira vez foi quando
eu só sabia soltar. Aí pegaram e cortaram minha pipa. (risos). Tive que aprender a fazer de novo. Ninguém ensinou, aprendi a fazer sozinho. Até ensinei todo mundo da ONG outro dia em uma aula. Gosto de pipa. E também de videogame... Também tenho uma banda. Sou eu e os moleques lá. São cinco, comigo. Todos moram no bairro. Começamos na casa de um colega meu. Faz tanto tempo. Não lembro. São amigos quando eles qué né? Meu primo que tá me ensinando. Ele tem uma banda e eu tenho a minha.
No meu dia faço tanta coisa. Hoje, acordei, peguei ônibus de manhã, às seis horas. Lotado. Um monte de pessoa. (balança a cabeça em sinal de negação). Moro lá perto do terminal de ônibus. Hoje foi bem ruim né? Demora pra chegar Chego e vou trabalhar. Trabalho na ONG. Há um ano. Faço parafuso.
A primeira vez que vi a bateria...
É pegar o saquinho e pôr no saquinho.
deu medo.
Gosto do que faço lá.
Primeira vez que toquei...
Hoje faço coisas que antes não fazia.
Também senti medo.
E lá tem tanta gente pra conversar.
Tinha dezesseis. Sempre gostei de música. Faço música em casa. Começo a escrever a mão e toco. Escrevo de tudo, que dentro da minha cabeça vem tudo. A última vez que a gente tocou na praça logo no dia do meu aniversário. • • 18 anos, 20 histórias
Quando cheguei aqui (na ONG) a primeira coisa que fiz: Fiquei sozinho. Tinha medo de tudo. 121
Pensei que era uma firma. Ficava com medo. Tinha medo né! Tinha né? (risos)
Ajudava ele a carregar as coisas. Era carregador da firma de piso. Era tijolo, era tudo. Já quis ser mecânico. Pra mexer nos carro. Gosto de carros. Desde pequeno. Dos dez anos.
Depois conheci o pessoal, fui conhecendo.
Meu pai trabalhava nisso.
Primeiro os instrutores. Seu Emanuel.
Na ONG conheci a Carol.
Na ONG tem a parte de cima e de baixo. Lá embaixo você faz um monte de coisa. Lá onde eu tô é mais serviço que antes. Lá não para de chegar caminhão. Chega um atrás do outro. É parafuso daqueles grandes, do pequeno também. Todo tipo.
Foi logo que eu entrei, já comecei a gostar dela. Ela era da minha turma. Conheci ela conversando com ela. Isso vai fazer três anos. Nós tava junto e feliz. Aí segunda eu terminei com ela. Foi um dia muito triste.
Agora nós entra as oito e sai às quatro.
Foram dois anos juntos.
O dia feliz foi no dia que eu ia descer.
Tô sozinho.
Descer assim... pra parte de baixo. Foi semana passada meu último dia em cima. Aí, do meu trabalho fui juntando dinheiro. Eu deixei lá no banco. Fui juntando pra depois comprar um videogame. Lembro que tava acho que dois mil. Foi. Aí fui com minha mãe e com o dinheiro comprei o videogame. 122
Antes eu trabalhava com meu pai.
Eu não tô mais com ela... Especial só a Carol mesmo. Só ela. Mais ninguém. Em casa fico muito no meu quarto. Quando chego em casa já vou para o meu quarto. O quarto é grande. Durmo sozinho. Ixi, é tanta bagunça. Tem espaço pra roupa, pra tranqueira e pra bagunça. Minhas tranqueiras são meu videogame e minhas músicas, só. É cama, guarda-roupa, televisão e eu. CEDECA Interlagos • •
Lá na rua, tinha amigos, mas foi todo mundo embora.
minha mãe e com meu pai. Foi briga. Eu comecei a chorar lá no meu quarto. Fiquei com raiva.
Porque foi com a mãe embora.
Pensava em tudo. Nem lembro em quê.
Mudaram.
Meu irmão
Só tem eu, em casa.
é dois anos mais velho. Trabalha de motoboy.
Por enquanto. Nenhum vizinho. Foi todo mundo embora. Os únicos amigos que eu tenho são da ONG. Às vezes passeio. Costumo ir pro shopping só. Vô. Sozinho. Às vezes o pessoal da ONG também vai. A minha casa sempre foi a mesma.
Ixi, a gente briga direto. Ele já foi pra escola. Ele já terminou tudo. Escola e colegial. Minha mãe é doméstica. Meu pai não sei não, não lembro não. Trabalhava, agora ele foi mandado embora.
Mora eu, minha mãe, meu pai e meu irmão.
Trabalha em outro lugar, mas não sei aonde.
(Suspiro)
Faz tempo.
É briga direto. Eu, minha mãe e meu pai. (silêncio) Que elas não deixa eu sair (riso), ir pra rua. Minha mãe achava estranho. Meu pai também. Fala que não. Eu. Falo nada. Fico quieto. De casa. Nenhuma lembrança de casa. Nenhuma. Lembrança, só tem, só da minha festa mesmo.
Tinha também meu vó. Lembro quando meu vô morreu. Foi muito triste. Eu, minha mãe e meu pai chorando. Direto. Eu tinha uns onze, doze, por ai. Não sei o nome dele... não sei. Minha mãe que sabe. Ele tava doente já. Não faço esporte. De vez em quando eu vou no mercadinho. Sozinho.
Catástrofe.
No meu bairro tem tanta coisa,
E uma vez que comecei a brigar com a
que eu não sei nem por onde começar.
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Lá só fico dentro de casa mesmo. Tem vezes que eu fico assistindo televisão, tem vezes que eu jogo videogame. Só isso. Vou no mercado e cada vez que eu retiro uma coisa eu pago. Aprendi com onze anos. Já fui no Posto de saúde. Fica longe. Eu tava com catapora. Foi, eu e minha mãe. Senti medo. Já na escola. Nunca fui na escola. Nunca. Não sei como é a escola. Não faço a mínima idéia.
Será que respeitar diversidade e valorizar o saber de cada um é possível? A curiosidade individual... O aprender grupal... Será que proporcionar lugares de convivência e desenvolvimento é possível?
A escola é grande. Disso sei. Um colega meu estudava, mas não consigo imaginar. Ou melhor, imagino, mas não sei. Acho que as pessoas entram na escola com dezessete anos.
“Sou gente, tenho direitos!” “Será só imaginação, será que nada vai acontecer?” (Legião Urbana)
Meu primo, acho que entrou com quinze. Acho que as pessoas vão lá aprender. Deve ser pra aprender a ler e escrever. Eu não aprendi a ler. Nunca fui à escola, porque eu tinha um problema na cabeça. Não sei como é que chama. Só minha mãe que sabe. Só ela que sabe mesmo. 124
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“
His tória que a gente lembra... His tória que a gente esquece... His tória que a mãe conta... His tória do sobrenome que vira nome... His tória pela palav ra ou pelo silêncio Dos três pequenos aventureiros Muitas são as his tórias... Subir em árvore, apanhar água pra vó, Andar no mato, passando por boi e boiada, correndo do boi, pra chegar na escola Nadar no rio, esquecendo da cheia levar surra de cipó esperar o rio baixar Descobrir o mundo Chegar em São Paulo, Ver que os mundos são muitos e que nem sempre eles se reconhecem. Que aqui o quintal, se chama rua e parece tão menor que o que já se viu.
”
Meu nome é Mariane Souza Leão Nasci no dia vinte cinco de julho de noventa.
H
istória dessa época não sei não.
Minha mãe não é muito de ficar contando história, nem nada não. Eu vou contar a história do meu nome, porque o meu nome tem muita história.
Desde a infância meu nome foi muito zoado, por causa do meu sobrenome. Sempre motivo de muita ironia. Ganhava apelido de muita coisa por causa do meu sobrenome. Estudava numa escola aqui perto e não podia bagunçar na sala que todos os professores falavam: “Se você bagunçar eu vou falar seu sobrenome!’ (risos). Aí eu ficava quieta, né”. Quando acabei o ensino fundamental e fui pra outra escola, como eu era nova e não conhecia ninguém, pra todo professor que chegava na sala, eu falava: “Professora, não fala meu sobrenome, por favor”. Aí voltava pro meu lugar e ficava lá sentada. Esperava chegar o meu nome pra falar logo presente e era um alívio quando eles falavam só o meu nome. Até que uma vez, uma professora nova entrou na sala, era começo do ano. Eu esqueci de falar pra ela não falar meu sobrenome. Aí ela foi fazer a chamada e falou: 126
“Mariane Souza Leão? Mariane Souza Leão, nunca ouvi falar esse nome...” A classe toda: “Quê? Mariane Souza Leão?” E todo mundo começou a me zoar. Naquele dia eu procurei o chão, me senti muito mal. Não conhecia ninguém. Eu abaixei a cabeça assim e fiquei com vontade de chorar e de rir ao mesmo tempo. E todo mundo: “mas porque Mariane Souza Leão?” Ficavam fazendo pergunta sem graça pra mim e eu não sabia responder. Eu ficava com raiva. Só que eu já tinha que me acostumar com aquilo, desde criança com essas mesmas brincadeiras com meu nome. Até que comecei a gostar do meu sobrenome, porque eles me deram apelido de Leão (risos) todo mundo me chamava de Leão: “Ei Leão!” Até meus professores me chamavam de Leão. As professoras traziam retrato de Leão e colocavam na parede e liam o livro e falavam o nome do autor, tipo Leandro Leão. Todo mundo. Até que eu comecei a me acostumar com isso e agora não ligo mais pro meu sobrenome. Isso faz uns dois anos mais ou menos. Agora pra mim é uma coisa normal. Hoje moro em São Paulo, mas morei lá na Bahia com minha avó
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até os sete anos de idade. Minha mãe veio pra São Paulo pra trabalhar e mandar dinheiro pra gente lá, pra mim e pros meus três irmãos. Ela veio pra cá pra morar com o meu padrasto, que tá até hoje com ela. De lá pra cá, ela não senta e conversa com a gente pra contar outras histórias. Além de nós, moravam em casa: a família do meu tio, mulher e os três filhos dele, minha avó e meu avô. Era só a gente. Em Salvador, em uma cidade chamada... como é mesmo... Anhanguera. Da família só a gente morava na roça, mas não vivíamos numa situação precária. Minha casa era que nem um sítio, grande. Vivíamos todos felizes. Meu pai, não cheguei a conhecer. Chegar eu cheguei, mas não lembro, porque era muito nova. Minha mãe separou dele, ele, queria bater nela, até que ela pegou e se separou e nunca mais vi nem ouvi notícia dele. Nem sei se ele tá vivo, se já morreu. Eu não sei. Eu era novinha assim. Tinha uns cinco anos, mas não lembro exatamente. Isso daí minha mãe conta. Por ela tive uma base de como que ele é mais ou menos, mas saber mesmo não sei não. Eu, quando faço muito esforço eu lembro. Às vezes eu encontro alguma coisa...
que não tinha RG, aí acabei encontrando fotos. Escondidas, que ela não gosta de ficar lembrando. Ela deixa lá dentro, só não sei se tá lá ainda porque eu não mexo mais. Faz bastante tempo que vi essas fotos. Uns três anos mais ou menos. Olhei assim e nada. Quando vi não senti nada! Pra mim... pra mim nada. Não tenho vontade de encontrá-lo. Quando criança, a gente morava lá na Bahia e minha mãe morava aqui em São Paulo. Ela trabalhava, recebia e mandava uma parte do dinheiro pra lá e também comprava roupa pra gente e mandava. Vinha visitar a gente nas férias do trabalho, passava um, dois dias com a gente depois ia embora. A hora que ela chegava era todo mundo em cima dela. Ela deitava e a gente corria os três em cima dela, ficávamos abraçando ela. Quando a gente ficou mais velho ela achou que dava pra gente vir morar com meu padrasto... Primeiro veio só eu e depois o outro e o outro... Agora eu tô assim viajando, porque essas coisas eu tô tirando do fundo do baú.
Eu encontrei na gaveta dela uma foto jogada lá.
Eu não parava pra pensar na minha vida,
Eu tava procurando dinheiro (risos) no meio da bagunça. Ela tem uma gaveta onde só guarda papel. Eu tava procurando lá. Uma vez também procurava minha certidão de nascimento, na época
assim, como era antigamente. Eu acho até estranho (risos).
• • 18 anos, 20 histórias
Nessa época, da casa num lembro, porque não tenho lembranças de ficar em casa, 127
nem do resto da família. Lembro mais das nossas aventuras, eu e meus irmãos. Lembro que não tinha televisão, só rádio... E que na maior parte do tempo a gente ficava brincando. Lá a gente não ficava na televisão, por que não tinha! A gente ficava sempre procurando alguma coisa pra fazer. Subia em árvore, ia apanhar água pra minha vó. Enfim, a gente não ficava em casa... ficava andando no meio do mato. Sempre nós três. Eu e meus irmãos. Ficávamos caçando, caçando aventura. Não tinha asfalto, tinha muita árvore, era pouco veículo, o que passava mais lá era cavalo, égua, burro (risos)... A gente ia pra escola, quando voltava, almoçava e ficava brincando na rua. Na rua não! Lá na área. As casas eram distantes umas das outras. Era bem raro ter casa próxima assim, não tinha muita casa. Toda vez que íamos pra escola, tínhamos que passar por dentro de um sítio, que era de outra família. O portão, antigamente era uma cancela, um portãozão assim, de madeira, uma madeira pesada, bem resistente. Era tipo uma porteira. O portão estava sempre trancado. Era propriedade privada. Lá ficavam os bois, os bezerros, todos ficavam lá! A gente tinha que passar lá, por que era mais fácil da gente ir pra escola. A gente pulava esse portão, pra ir pro outro lado e conseguir ir pra escola. Mas não podia! Meus irmãos passavam por baixo da cancela e eu passava por cima (risos). Uma vez a gente tava indo pra escola. Quando chegou a hora de passar pelo portão, meus irmãos conseguiram atravessar. Quando eu fui passar... o boi olhou pra mim, a vaca tava com filhote, tava amamentando. Daí ele me olhou assim 128
e começou a correr atrás de mim! Disso eu nunca esqueço. (risos) E correu, correu, correu atrás de mim, e chegou quase na minha bunda (risos). Meu irmão tava tentando despistar o boi e o boi não parava de correr atrás de mim, aí eu consegui pular outra cancela e deixei meu chinelo pra trás. Continuei correndo, não consegui mais parar. Fiquei com muito medo (risos). Eu corri que nem uma louca. Aí cheguei na escola sem chinelo! Depois quando chegou na escola, meu irmão contou pra todo mundo o que aconteceu e que eu fiquei com muito medo. Ele ficava falando: - Porque que você não caiu no chão, pra fingir que você tava morta? Daí ele parava de correr. - Eu não ia parar, eu não ia fazer isso! E se ele não voltasse? E se ele continuasse e quisesse me chifrar? (risos) Eu só consegui pegar na volta, porque eu fiquei com muito medo. Então, meu irmão entrou lá de novo, quando a vaca não tava lá e pegou meu chinelo. Eu não queria mais passar lá de jeito nenhum, fiquei traumatizada por um bom tempo por causa disso. Eu via o boi com aquele chifrão, eu já passava longe. Passava tudo correndo. Fiquei com medo. Fiquei traumatizada. Essa história foi muito legal (risos). A gente nunca gostou de ficar dentro de casa. Eu, meu irmão e minha irmã. Eu sou a caçula, hoje, meu irmão mais velho tem vinte e um e minha irmã tem vinte. Nós sempre fomos unidos. Agora a gente tá assim, eles casaram e a gente ficou com pouco contato um com o outro.
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Sempre que era dia de calor, a gente ia pro rio. Gostávamos de sair, ficar andando, ir pro rio. Era bem pertinho da nossa casa. Quando chovia... praticamente alagava. Daí a gente esperava o rio abaixar e ia lá nadar. Então ficávamos lá bastante tempo. Minha tia sempre fazia uns penteados no meu cabelo, mas eu gostava de ficar com ele solto (risos). Então, ela colocava e depois eu tirava a xuxinha, tirava as trancinhas, ficava com o cabelo solto e ia nadar. Quando eu voltava, meu cabelo tava desse tamanho (risos). Aí um dia, eu tinha uns cinco anos, ela pegou a gente, amarrou nós três juntos com um pedaço de cipó em volta na gente. (risos) Amarrou e bateu em nós três, porque a gente não avisava que ia pra lá. Lá era perigoso, né? Então, ela não gostava que a gente fosse sozinho. Bateu na gente com outro cipó. Ia cada um pra um lado. Um pulava pra um lado e outro pro outro. Foi só dessa vez que bateu mesmo. A gente ficou com muita raiva. Muita raiva dela. A gente ficou até um tempo sem falar com ela, mas um dia voltamos a nos falar. Eu não pensava muita besteira, porque não era raiva, se fosse agora, acho que sentiria mais raiva. Se eu fosse criada aqui, que nem meu irmão por parte de padrasto que tem uns sete, oito anos, acho que seria diferente! Se por exemplo, eu batesse nele, ou uma tia batesse, acho que ele ficaria mais revoltado do que nós três quando estavamos apanhando lá, antigamente. A raiva que a gente sentiu antigamente, acho que hoje em dia, é uma raiva assim mais violenta, tipo: “Eu vou matar ela”. A gente não pensava assim, era uma raiva que depois passava. • • 18 anos, 20 histórias
Quando a gente ia pra escola, ia sempre nós três. Era longe. A gente andava um pouquinho, mas não lembro todo o caminho que a gente fazia pra ir pra escola, não. Eu sei que era uma caminhada. Era de terra e de mato só. Às vezes chovia muito e nos lugares de ladeira assim, a água, a água cobria tudo assim... E a gente não podia ir pra escola. A casa da nossa vó era bem isolada das outras casas. Então, quando chovia, a gente nem passava pro outro lado, pra ir pra escola, a gente ficava em casa. Porque pro rio crescer era rapidinho... aí a gente não ia pra escola. Era tipo uma trilha. Eu lembro que eu estudava junto com meus irmãos (risos), que embora eles sejam mais velhos que eu, a gente não tinha salas separadas. A escola era pequena e não era separado por idade. Qualquer um, todo mundo que ia pra escola ficava junto. Eu acho que a divisão era só de duas salas, mas idade... eram várias na mesma... Eu acho que eu era a mais nova de todas. Eu sempre fui a menor de todas, de todo mundo (risos), então, se fosse por idade, eu acho que eu ia ficar sozinha numa sala (risos). Lembro que as pessoas eram todas velhas, todas enormes. Eu lembro da professora ensinando a gente a ler. A gente arrancava uma folha, furava no meio e ia colocando em cima de outra folha com o alfabeto, então, a gente via a letra no buraco da folha e tentava adivinhar qual era a letra. Era uma coisa meio sem noção assim. Não sei nem como 129
eu consegui aprender a ler desse jeito. Eu não sei se agora, eles ensinam assim, eu não sei (risos). Desde a primeira séria, a gente aprendia com esse papel assim, que coloca em cima da letra... Quando eu descobria que aquela letra que eu tinha falado tava certa, eu ficava feliz, viu? Eu me considerava, ou, achava que era a mais esperta de todas. Foi uma descoberta muito grande. Depois disso tudo, só lembro quando eu tava vindo pra cá, pra São Paulo, com minha prima. Quando sai daquela cidade pequena, do campo e vim pra cidade. Vi um monte de coisa diferente, fiquei besta. Fiquei toda abestalhada quando vi aquele monte de gente. Nas paradas do ônibus, eu ficava olhando aquele monte de carro, aquele monte de avião (risos). Chegamos tarde, de lá da rodoviária fui pra casa da minha tia em outro bairro. Tive que dormir lá, pra no outro dia ela me levar pra minha casa. Era no mesmo lugar que moro hoje.
(risos). Até minha prima mais nova falava certo, já sabia falar porque já morava aqui em São Paulo. Eu também tinha muito sotaque (risos), quando eu falo que sou da Bahia ninguém acredita, ninguém desconfia, porque hoje eu não tenho muito sotaque. A única coisa que eu lembro era que minha mãe saia pra trabalhar e ela pedia pra minha prima ficar lá comigo, eu ficava na televisão, era uma folga boa, porque eu ficava parada assim, assistindo televisão e só. Lá na Bahia, só tinha TV na casa das minhas tias em Salvador. Aqui em São Paulo, eu não tinha onde ficar, onde sair. Ficava meio assim. Não conhecia ninguém e tava sem meus irmãos, ...eu nunca tinha me separado dos meus irmãos. E quando eu vim pra cá, fiquei um tempinho assim, sem eles. Todo dia eu chorava e falava pra minha mãe: “Eu quero meus irmãos, tô com saudade deles”.
Eu lembro que as pessoas me falavam que quando eu cheguei, eu era pequena, feia
Minha mãe acabou trazendo eles depois de um tempo. Foi diferente para os meus irmãos também quando chegaram, por exemplo, lá na Bahia a gente tomava banho com um copo Lembro que explicava pra eles como funcionava o chuveiro:
muito magra com o cabelinho duro, duro.
“Ó, aqui você tem que abrir assim... (a torneira)”.
(risos).
(risos)
Não sabia falar ônibus direito. Eu lembro que minha tia ficava: - Mariane, você tem que falar ô-ni-bus. Ai eu falava Onbu, falava tudo, menos ônibus. Tentava falar ônibus, mas não conseguia e elas tentavam me ensinar. Aí aprendi a falar ônibus 130
Eu queria dar uma de professora né? A escola aqui... é muito diferente. Era muito diferente! Lembro que no começo tudo pra mim era uma novidade. A escola era grande. Era muito legal. Eu era zoeira desde pequena. Eu sempre fui zoeira, sempre gostei de CEDECA Interlagos • •
brincar. Mas depois de um tempo aqui era só escola, casa, escola, casa, normal, sem muitas novidades. Depois dos dez, onze anos as coisas não eram tão legais assim, porque dos sete pra baixo a gente vivia mais solto. Dos nove pra cá é só escola... uma rotina, não é que nem antes, não tem muita história. A minha vizinha estudava na minha sala, então acho que foi através dela que eu comecei a fazer amizade com todo mundo.
Eu não virava moça achava que eu era diferente dos outros. Achei que eu não ia me desenvolver, perguntava pros outros se eu tinha algum problema. Falavam: - Você tem que ir no médico, pra ver porque você já tem quinze anos e não desceu pra você! Todo mundo dizia isso, o pessoal na escola, minha vizinha mesmo, minhas primas, minhas amigas, todas elas eram moças... até hoje eu lembro que minha amiga falou assim:
A gente ficava na rua, que era uma ladeira, brincávamos de pega-pega, ficávamos na rua correndo, subíamos e descíamos a gente não queria nem saber. Com uns oito, nove anos. Até as brincadeiras eram diferentes.
- Dé, você só vai virar moça quando a gente já tiver entrando na menopausa (risos).
Minha mãe não gostava que a gente ficasse
- Vocês meninas, vocês estão crescendo, vocês estão virando moças, então, tem que andar prevenida, com absorvente na bolsa.
na rua. Eu arrumava a casa, ficava na laje conversando com a minha vizinha e chupando manga. Não tem nada mais de interessante. Eu lembro que ela era mó piolhenta. Ela catava uma boneca e a gente ficava lá na garagem, ela mexia no cabelo da boneca e eu mexia no cabelo dela (risos), ficava fazendo penteado. Eu gostava de ficar mexendo no cabelo dos outros, até hoje eu gosto. Só que ficava mexendo, fazia trança, fazia penteado, fazia um monte de coisa. Hoje, continuo indo muito na minha vizinha, mas hoje ela faz escova em mim e eu faço escova nela (risos). Antigamente, na rua só nos finais de semana. Sábado, quando minha mãe tava lá na frente. Fui a mesma menina até completar quinze anos, quando tive minha primeira menstruação.
• • 18 anos, 20 histórias
Todo dia pra mim eu achava: ‘Será que vai descer pra mim hoje?’. Teve uma vez, na quarta, quinta série que a professora falou:
E eu e minha amiga, nós não éramos moças ainda, pegávamos o absorvente, colocávamos (risos) e ficávamos zoando. Só que depois disso, passaram-se anos e anos e nada pra mim. Não sei o que eu pensava... acho que pra mim era só brincadeira. Quando veio a primeira vez, eu falei: - Oba! Pensei: “Ah, eu não sou doente, eu sou igual às outras pessoas!” (risos) Fiquei toda feliz. Liguei pra todo mundo. Liguei pras minhas amigas, liguei pros meus amigos, liguei pra minha vizinha, falei pra minha 131
mãe, pra todo mundo. Pra mim foi legal. Ainda com quinze anos, eu e minhas amigas
Aí ele falou:
participávamos de aulas culturais na escola e apresentávamos danças em vários lugares: Maracatu, Pérola Negra, Olodum, várias danças... A gente tinha um grupo e sempre apresentava. A gente também fazia muito esporte, atletismo mesmo, nos jogos olímpicos. Eu participei do salto em altura, da corrida, como é que é, altura em bastão, não sei, é um que a gente corre e fica um bastão assim, a gente pula e cai no colchão. Eu lembro que consegui pular até um metro e quarenta. Eu era pequena, então, isso pra mim foi uma batalha! Eu praticamente conseguia me pular. Também jogava futebol, vôlei... Participava de tudo. Futebol e Vôlei a gente competia entre escolas. Vôlei, a gente não gostava muito era só por esporte mesmo. Isso tudo até a oitava série, ...porque a professora mudou de escola, e a gente não teve mais tudo isso. Sinto falta, era muito legal. A gente tinha todas as atividades. Todas essas atividades quem dava era a mesma professora. A escola é assim... Na semana retrasada, só tinha eventual na nossa sala. Duas aulas de eventual. Aí, uma aula ela passou lição, todo mundo terminou a lição e não tinha mais nada pra fazer. Ai a gente ficou brincando de Macaco, sabe? assim, brincadeira de bicho. Tenho cinco aulas por dia. Chego às sete horas. Aula eventual quer dizer que faltam professores por algum motivo. Os professores capacitados. Outro dia eu tava falando pro juiz de onde trabalho: 132
- A matemática é muito difícil, eu não sei matemática. - A matemática é difícil porque você ainda não teve professor que ensine de maneira que vocês aprendam. Porque tem professor que não tem paciência pra ficar explicando pra gente. - Professor, não entendi!. - Ah! Você não tava prestando atenção na minha aula! Tem professor que chega na sala e passa a lição. Ele sabe, mas a gente não. Não temos a facilidade que eles tem. Assim, uns tem mesmo problema de aprender matemática, como eu, número não entra na minha cabeça. Não consigo, é muito difícil entender matemática. E os professores não tem paciência. Alguns têm. Um que tinha, não trabalhava como professor, tava como coordenador, ele chegou a dar aula na nossa sala três meses no começo do ano. Explicou muito bem a matéria, só que depois ele teve que sair e entrou uma professora, que passava outra coisa, então, nossa cabeça ficou assim, toda bagunçada. Ela não deu continuidade ao que ele estava explicando, ela já veio com outra matéria, ela não concluiu aquilo. Acho, por exemplo, que a sala de leitura deveria ser aberta para os alunos que se interessassem. Às vezes eu tenho vontade de ler um livro, mas não pode pegar na escola. Antigamente quando eu estudava em outra escola, a gente tinha uma aula de leitura, uma vez na semana. A gente
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ia pra sala, podia pegar livro emprestado. Agora a gente não tem mais isso. Se a gente quer ler um livro, pede emprestado ou tem que comprar. Ninguém precisa ter um livro pra sempre, então deveria ter uma sala aberta pras pessoas interessadas. Esse ano só fomos pra sala de leitura pra assistir um filme, sobre o aquecimento global. A biblioteca não é usada em nenhum momento. Na semana passada eu olhei lá na sala, não tem mais nem livro. Eu acho que eles iam abrir uma sala de informática. Eu não vi nada disso. Não vi livro, nem computador, nem nada. Ia ser inaugurado na semana passada, só que eu não vi nada de inaugurado. Ia ser bom, se todas as escolas fossem um CEU1 da vida, seria legal porque o CEU tem várias coisas interessantes. Aquilo ali da até gosto da criança ir pra escola, lá tem lazer, lá tem, tem tudo! Eu nunca estudei no CEU, mas eu já fui várias vezes, é muito legal! Sou muito brincalhona, muito, extrovertida, às vezes séria, às vezes brava... Semana passada tinha uma reunião dos conselhos, aí uma professora, que é coordenadora da minha sala, foi no dia do conselho e falou que eu era a boba da corte na sala e que todo mundo ria de mim. Eu não deixei quieto, dessa vez eu fiquei brava e fui perguntar por que ela me chamou de boba da corte. Ela começou a falar e eu também comecei a falar. Discutimos. No dia da reunião dos pais, minha mãe tava trabalhando, então quem foi na reunião foi meu irmão. Ela falou um monte pra ele. Falou que eu ficava conversando a aula toda. Mudei de lugar. Sentava no fundo, agora eu sento 1 Centro Educacional Unificado • • 18 anos, 20 histórias
do lado dela. Só que todo mundo vem pra onde eu tô (risos). Ás vezes eu fico com raiva disso. Eles vêm pro meu lado, tiram a minha concentração da aula. Saio da escola às dez horas da noite. Quando o pessoal tem muita aula vaga, vêm muita gente pela linha do trem, pelo menos duas, três pessoas. Mas quando não vem ninguém, venho sozinha. Isso quando a lua tá brilhando mais, porque dá pra clarear um pouco, agora quando a lua não tá muito clara, a linha do trem fica muito escura. E quando tá muito escuro mesmo, eu dou a volta e vou pelo campinho, que é mais longe. Por dois motivos: porque pode ser perigoso e porque às vezes chove. Quando chove, a linha do trem fica uma coisa, é um barro tremendo. E aí ninguém fica limpo (risos). Perigoso, porque já aconteceu ano passado, ou retrasado, eu tava passando distraída e quando eu levanto a cabeça tinha um cara sentado na linha do trem fumando maconha. Pessoas paradas fumando. Às vezes eu não vejo, às vezes eu sinto cheiro de longe e já fico assim, meio esperta, né? Às vezes quando a pessoa ta lá sentada, às vezes num ta nem fazendo nada, tá parada... (risos), mas eu fico com medo, né?! Outra vez meu irmão foi assaltado, ali. Quando eu falo pras pessoas que eu passo ali sozinha, todo mundo me dá uma bronca, só que não tem outro meio de ir pra escola. Se eu der 133
a volta, vou chegar na escola super tarde, dá quase meia hora andando.
bairro tem muitas de árvores e se tivesse mais, a rua ia ficar ainda mais bonita.
Já a minha rua é bem tranqüila, mas antigamente, a rua era sempre assaltada...todo dia vinha alguém falando que entraram na casa, roubaram botijão, sapato. Agora nunca mais aconteceu uma coisa séria assim.
No bairro só tem casa, não tem nada além de casa. Casa, padaria... supermercado, salão, farmácia,... loja de roupa.
A polícia passa direto, mas isso não é sinônimo de segurança, né? Porque lá na rua onde eu visito a minha amiga, tem um ponto de droga, quase perto da casa dela. E quase todo final de semana, todo mundo já guardou a cara do policial, porque toda vez ele volta lá na boqueira e com certeza eles vão buscar dinheiro pra que aquele ponto de droga continue sendo, assim..., pra eles não interromperem nada. Se eles pagarem a polícia, o ponto de droga vai estar sempre ali né? Ativado. Agora, se eles não dão o dinheiro, eles levam a pessoa presa, ou batem nela, sei lá, alguma coisa assim. A ladeira da minha casa fica às vezes muito suja, quando tem feira perto da avenida. A feira fica um nível acima e quando eles lavam, a sujeira desce toda na guia da minha rua e fica o lixo lá, parado. E quando tem barraca de peixe fica um fedor enorme. Insuportável. Fica aquela água podre lá, parada. Vai lavando e o cheiro vai passando também na rua, vai subindo aquele fedor. Minha rua é de paralelepípedo (risos), metade sim, metade não. Moro lá desde que eu vim da Bahia. No 134
A linha do trem que passo quando volto da escola fica bem perto de casa. Trem que não funciona mais, está desativado há muitos anos. Aí construíram uns barracos ali na linha do trem. Ficou super feio. Estavam falando que o trem ia voltar, iam tirar os barracos e iam dar não sei quantos reais por família pra ir morar em outro lugar. Mas não sei não... Seria bom porque as pessoas vão trabalhar no Grajaú, tem que pegar a perua lotada e aquelas pessoas que trabalham mais longe ficam no aperto mais tempo ainda. Essas pessoas não tem outro transporte. Até os quinze era uma fase que a gente não pensava em trabalhar, só pensava em zoar e estudar. Aí aos dezesseis minha mãe começou a pegar no meu pé. Ela nunca tinha feito isso. Sempre ofereciam oportunidade de curso pra eu fazer na escola, pagando metade do preço, só que ela nunca disse nada. Depois disso, comecei a ver emprego pra mim, mandei currículo, comecei a ir atrás de agência que
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encaminha estudante pra primeiro emprego.
No terminal ele já sai cheio.
Eu via todos meus amigos fazendo alguma coisa, uns já tinham curso, outros já estavam começando a trabalhar com dezesseis (aquelas pessoas que tinham feito curso). E aos quinze anos
Lá tem uma fila enorme, vai enchendo mais.
fiz a prova de um curso profissionalizante e não passei. Foi aí que comecei a me interessar pelo trabalho. Então, já comecei a procurar vaga pra trabalhar, fazer cursos que já encaminhavam direto pro primeiro emprego. Fui fazendo vários cadastros em várias agências, sempre fazia entrevista, só que também não passava, porque na maioria das vezes eles queriam uma pessoa que tivesse experiência em informática e eu não tinha. Um dia fiz meu cadastro no CIEE2 e consegui uma vaga no Fórum, que é onde eu trabalho.
Eu pegava na rua, mas eu passava mal dentro do ônibus. Várias vezes passei mal dentro do ônibus. Não sei o que é que eu tenho, não sei se é pressão baixa. Eu ficava em pé, aí do nada eu começava a sentir uma coisa...começava a suar e minhas vistas escureciam. Quando eu ia ver, eu já tava desmaiada. Aconteceu umas três vezes. A última foi uns dois meses atrás. Quando abri o olho eu já tava sentada ali, no banco que me colocaram. Aí eu escutei o pessoal falando: - Por pouco ela não morria porque a porta ia abrir e ela ia desmaiar pra frente. Todas às vezes foram em ônibus cheio.
Esse foi o único lugar que eu não precisava ter curso, só escolaridade, só.
Todas às vezes.
Enquanto não trabalhava, acordava de sábado de manhã e ia pra escola jogar bola. A única coisa que eu fazia que não deixei de fazer foi o esporte. Eu gosto de todos. Gosto de caminhar, de jogar bola. Mas pra fazer outras coisas não dá mais tempo.
quero entrar na faculdade,
Eu, pra ir pro trabalho tenho que acordar às seis horas, mas só entro as nove. Pego o Terminal Sto. Amaro, desço naquela passarela do Grajaú, pego o ônibus que vai entrar pro Terminal as sete e meia no máximo. Chego lá e pego uma fila enorme. Tenho que chegar mais cedo pra ir sentada.
Ainda quero terminar meus estudos, continuar cuidando porque é uma vida mais difícil. Porque se você é estudante, você tem mais oportunidade, tem direito a mais coisa. Tem mais facilidade pra arrumar um emprego. O pessoal lá do serviço fala pra eu fazer direito, só que não sei se é isso que eu quero, pode ser que sim... Que nem hoje, eu tava conversando com o gerente lá e ele disse que me apóia, falou que eu trabalho bem, que eu sou inteligente, pra eu continuar no que eu gosto. E eu vou. Eu gosto de trabalhar lá.
2 Centro Integrado Empresa Escola • • 18 anos, 20 histórias
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Meu maior sonho é ter minha casa, ter o meu trabalho... Estou lutando por isso e aproveitando minha vida. Minha mãe não gosta, mas eu nunca fui de aproveitar minha vida assim, de conhecer outros lugares, de conhecer pessoas,... Se depender dela, eu fico trancada dentro de casa, mas eu sou uma pessoa que nunca fui criada dentro de casa, sempre fui solta.
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Chegar nesta cidade imensa Segurar os sonhos entre os dedos pra não ser engolido Aquele monte de gente. Miudinha menina do sertão Falava diferente Chegar e ver o mundo diferente: Minha mãe não gostava que a gente ficasse na rua. - Mas mãe, a rua é de quem? Rua Ladeira A poeira e o pega-pega Subir, descer, brincar Antigamente, rua só nos finais de semana. Já a noite, a rua é escura Voltar da escola sozinha só se a lua tá cheia senão escuridão E se chove, é barro. Se essa rua fosse minha? Essa nossa rua de todos os dias nossa rua cotidiana Rua dos conflitos e dos encontros. Transformador, potencial, criativo. Posso ultrapassar os muros do meu quintal? Acessar nela lazer, segurança, esporte?
“Sou gente, tenho direitos!” • • 18 anos, 20 histórias
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“
Com sete anos, fui professora. Com oito, bailarina. Com nove, coroinha. Com doze, capoeiris ta. Tentei até ser jogadora de futebol. Com dezesseis, desis ti. Com dezessete, o teatro me pegou. E hoje es tou sempre pronta pra subir no “ palco”. Com ros to pintado ou nariz de palhaço. Conto his tórias pras crianças rirem. Conto his tórias ves tida de outro personagem. His tórias reais. His torias imaginárias. E a his toria que hoje conto... São do ontem, de hoje. São minhas his tórias...
”
Nasci em julho de 90.
meu nome é Aparecida,
A
parecida por causa da Santa.
Acho que era uma promessa pra eu ficar bem assim, pra eu nascer bem.
Minha mãe veio do Ceará e meu pai veio de Minas Gerais. Num é que foram se encontrar numa praça em São Paulo. Minha mãe que contava. Eles acabaram ficando juntos e aí me tiveram.
gostava de brincar de escolinha, por que era uma coisa que dava pra gente brincar em casa. Gosto até hoje! Com minha vizinha Kátia e com minha amiga Mari. Eu era a professora e elas não sabiam escrever, nem nada. Aí eu brincava sozinha na verdade. Eu sozinha e elas.
Minha família sou eu, meu pai, minha mãe e as minhas duas irmãs gêmeas que tem seis anos. Nem dá pra confundir! São totalmente diferentes! Uma tem cabelo cacheado, outra liso, uma tem olho azul, outra tem olho verde... Que coisa, né? Uma puxou a mãe e a outra o pai. Com dois, três anos lembro que queria ter uma boneca que patinasse. Minha mãe nunca me dava a boneca. Dava qualquer coisa, menos a boneca de patinar. Até hoje não tenho a tal boneca. Eu fui muito triste na minha infância por que eu não tive essa boneca (conta rindo). Eu era mimada. Quando eu era criança...
• • 18 anos, 20 histórias
Eu era professora delas, só que elas não entendiam nada, porque eu sempre fui mais velha. A Ká é três anos mais nova e a Mari, dois anos mais nova. Pra mim era difícil. Eram super limitadas, nossas brincadeiras. Era escolinha e pega-pega. Quando a gente brincava, a Mari era sempre café com leite e eu pegava a Ká. Esses dias tentei brincar de pega-pega com a Ká e umas amigas dela da escola. Caí, rasguei minha calça e ralei o joelho. Ah, esses tempos atrás, eu quis fazer futebol! Futebol, sem ser na escola... Com um menino da igreja que já tem um grupo de meninos 139
pequenos. Super legal. Com as minhas amigas, tentamos montar o time, mas a gente num deu muito certo, a gente era ruim de bola. Ganhamos o primeiro jogo, mas perdemos o último jogo. Aí desistimos, mas acho que a gente volta ainda. Minha casa é perto da igreja. É a maior que tem no bairro. Minha vizinha é uma das minhas melhores amigas, afilhada da minha mãe. Minha rua também fica perto do A.M.A1. É só descer a rua que você já ta lá... mas eu quase não vou lá, porque meu pai sempre teve convênio pra gente. Vou só quando tô com dor de garganta e não posso ir pra escola. Aí vou lá. O cara me dá um remédio, tomo e só. Foram poucas vezes que fui. Nesse finalzinho de ano, umas cinco vezes. Demora um pouco pra ser atendido, mas é por que lá é novo, né? Fizeram agora. O atendimento, comparado a outros lugares de convênio, é ruim. Por exemplo... um dia fui no médico lá, por que eu tava com dor de garganta. Falei: - Não vou até a Santo Amaro, não sei se lá tem médico. Minha mãe falou: - Vai lá, pega um comprovante, toma alguma coisa. Aí eu fui e fiquei duas horas. Eu chamei a moça e ela falou: - Ah, então espera agora. 1
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Assistência Médica Ambulatorial
Esperei. A médica não tava. Fiquei mais meia hora esperando a médica chegar. Pensei: “Não, ela deve estar atendendo alguém, vou esperar”. De repente chega ela, comendo. E eu lá né? Nem pra moça falar pra mim: “Então, tem outra médica, essa aqui tá ocupada, ela vai demorar”. Eles não dão essa informação. Aí você vai nessa e espera. Ela não vai te atender se estiver no almoço ou se tiver muita gente na frente. Aí você espera. Meu bairro é assim, não tem muito o que curtir na verdade, não tem coisas. Ou é festa na igreja, ou é festa de amigos que moram perto. Só tem a igreja... Quando eu tinha oito anos. Meu sonho era ser coroinha da igreja. Eu falava: - Mãe, você tem que me levar pra ser coroinha da igreja. Minha mãe sempre ia pra igreja. Ela pegava uma rosa que tinha no quintal e levava todo domingo, como se fosse um ritual. Aí eu falava: - Mãe, vamos lá conversar com o cara, o que coordena os coroinhas. Ele falava: - Não, você tá muito pequena, a gente não tem turma pra você, volta domingo que vem, que você vai estar maior, aí eu vejo. CEDECA Interlagos • •
Eu ia todo domingo, sempre insistindo. Foi assim durante um ano, um ano e meio. Eu entrei pros coroinhas da igreja e fiquei até os onze anos. Entrei no coral também, fiquei até os quinze. Sempre fui dedicada. No pré eu era super estudiosa. Depois, entrei em outra escola, de primeira a quarta série. Também estudava bastante. Eu era a mais estudiosa assim, era o exemplo da sala. Isso falavam né? Da primeira à quarta série eu conhecia todo mundo, todos moravam perto da minha casa. Os professores, os amigos todos eram de lá. Tipo: não tinha ninguém que vinha de perua pra escola. Todo mundo que mora ali, saía do prédio e já tava na escola. Esses dias eu até vi um dos meus professores daquela época. Ele perguntou o que eu ia fazer de vestibular. Pediu pra um dia eu ir lá e contar minha história pra todo mundo estudar. Um dia eu vou. Ainda na primeira série, ou na segunda... entrei no balé. Fiz até os 13 anos, até apresentei em festival e fiz teste pra entrar no Municipal de São Paulo, mas não passei e aí desisti do balé. Terminando a quarta série, entrei em outra escola, que era um pouco longe da minha casa, porque as outras duas escolas que eram perto da minha casa tinham má fama. Elas não são bem vistas, não tem futuro.
• • 18 anos, 20 histórias
As pessoas falavam que os professores não tão nem aí. Eu ouvia histórias do tipo alunos que fumavam na escola, implicavam com alguns professores e estragavam o carro do professor. Já ouvi várias histórias. Meio violentas, né? Aí meu pai falou: - Vou colocar você numa escola boa. Pra essa outra eu ia de perua. Meu pai teve que pagar. Essa escola é melhor, por isso que meu pai me colocou nela. Nessa época, também entrei na capoeira. Fiz uns três anos. Participei de festival, ganhei campeonatos. Esse ano não vou participar do campeonato, porque não tive muito tempo pra praticar. Último ano da escola, muita coisa pra fazer. Parei com a capoeira. Durante esse período na escola, fiz vários amigos. Distantes, né? Todo mundo morava perto da escola e eu era uma das únicas que morava longe. Uma história que me marcou muito nessa época e que hoje faz parte hoje do meu cotidiano aconteceu quando eu tava na oitava série... Eu tava na escola com meus amigos. Aí, a diretora me chamou de canto e falou: - Cida, a gente tem uma prova pra você fazer! - Prova? Já tá acabando as aulas, vou fazer outra prova?
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- Não, essa é uma prova pra você entrar numa boa escola particular. - Ai meu deus, será que eu vou passar?”.
Quando recebi o resultado, vi que passei. Entraram uns dez junto comigo.
Fiquei preocupada. Ela falou:
Entrei em 2006.
- Estuda tudo que está pedindo, que você vai passar. Tenho certeza.
Foi muito difícil de adaptar.
Logo depois, cheguei pros meus amigos e disse: - Gente, tenho uma prova difícil pra ganhar uma bolsa em outra escola. - Ah Cida, por favor, você vai continuar estudando com a gente.
Muita coisa pra estudar. Tive que estudar mais o inglês. É bem difícil. Não saía de perto dos livros, até que no meio desse mesmo ano minhas notas melhoraram. Nesse meio tempo, desistiram uns dois no meio do caminho porque tava difícil. É totalmente diferente.
- Ah gente, é uma oportunidade, não vou desperdiçar não.
Até mesmo nas falas. Na outra escola a gente falava mochila, nessa escola a gente fala mala. Tipo, na minha escola a gente falava intervalo. Na escola nova é recreio.
Cheguei em casa e conte pro meu pai. Ele disse:
No segundo ano do ensino médio comecei a fazer teatro no colégio.
- Ah, estuda, eu sei que você vai passar.
Fiz uma peça ano passado: Saltimbancos. Esse ano vou fazer Hamlet e vou fazer uma peça no terceiro, né? Todo terceiro ano faz. Também faço parte de um grupo de teatro de artes daquela igreja perto de casa. A gente se encontra todo sábado e domingo. A gente ensaiar uma peça, faz show... A gente faz tudo, a gente canta, a gente dança, a gente faz tudo, até teatro de palhaço...
Cheguei na escola no outro dia e falei pro professor de matemática: - Ah professor, você sabe que eu recebi uma proposta e posso conseguir uma bolsa de estudos? - Fui eu que coloquei seu nome. Disse que colocou meu nome por que eu sou uma boa aluna e tiro notas altas. Fiquei muito feliz, pois tem muitos alunos inteligentes e fui escolhida. Comecei a estudar bastante. Quando chegou em novembro, fui fazer a prova. Estava muito nervosa. Acho que tinha uns trinta fazendo a prova também. Conheci várias pessoas que estavam na mesma situação que eu. Fiz a prova: matemática, português e inglês. 142
Saí confiante.
E ainda faço trabalho voluntário. No primeiro ano dessa escola a gente tem aula de cultura religiosa. Tem uma professora simpática que fala: - Ah gente, a gente tem um projeto de inserção social, em vários lugares. Tem creche, tem hospital, tem centros... Vocês podem participar do que quiserem, não é obrigado. Acabei gostando. Desde o primeiro ano, que estou lá. CEDECA Interlagos • •
Faço trabalho voluntário. No primeiro ano fiz numa... como se fosse uma creche... um lugar onde as crianças ficam. A gente ia lá brincar com elas. No segundo ano, fui ser voluntária no hospital. Aí já é uma coisa mais difícil. A gente foi trabalhar com esse lado assim, com essas crianças deficientes. Só que agora a gente tem um novo projeto que é dos palhaços. Algumas brincadeiras, algumas atividades que a gente faz no teatro, a gente usa pra divertir as crianças no hospital. Então já é quase meio espontâneo. A gente vai lá como se fossemos os “Doutores da Alegria”. Super legal! Esse ano fiz uma viagem também. Pra um trabalho voluntário, que era no Paraná. Trabalhamos desde o primeiro ano e no terceiro ano fizemos essa viagem. Foi de conclusão de trabalhos. Esse ano também tenho matérias diferentes, como essa de cultura religiosa e outra de orientação sexual... Foi uma coisa nova... Orientação sexual. Minha coordenadora do terceiro ano é psicóloga, né? Ela fala de psicologia, no sentido que a gente nasceu assim, diferenciando do outro. Por exemplo, eu nasci menina e vou estar ligada à minha mãe, mas eu vou ter que contrapor ela e gostar de homem. Entendeu? É uma coisa tipo psicológica, bem legal, que a gente discutia. E coisas práticas também, tipo anticoncepcionais. A gente conversou com todo mundo, meninos e meninas, cada um • • 18 anos, 20 histórias
perguntou, um pro outro, coisas que tinha dúvida e cada um respondia. Legal, né? Hoje em dia minha rotina é assim. Acordo seis e fico a manhã toda na escola. Almoço lá. Depois continuo na escola. O que muda de um dia pra outro é o período da tarde. Segunda-feira: Faço monitoria ou participo de um grupo de estudos com meus amigos, porque vou mal em algumas matérias e alguns amigos me ajudam. Terça- feira: Como sou bolsista, eu tenho que fazer um trabalho que é com crianças. É um estágio. Gosto muito de criança e acho que na escola é mais fácil cuidar delas, elas respeitam mais os professores, não é a mesma coisa que em casa. Irmã é irmã, sabe? Eles não ligam pra você e na escola não, os alunos sabem que tem que obedecer a professora. No primeiro ano eu ficava com uma auxiliar, no segundo ano eu era a auxiliar, e agora, no terceiro ano, eu tô como ajudante de professora. Fico até as 17h00 com as criancinhas. Quarta-feira: À tarde tenho a peça do terceiro ano. São os alunos que fazem a peça. Então eu tenho que estar lá pra ajudar a fazer, porque eu faço parte. À noite tenho o teatro, que é por parte da escola, que eu pago. Quinta-feira: À tarde não tenho quase nada. Ou é algum trabalho da escola pra fazer, ou saio com amigos. Sexta-feira: Tenho trabalho voluntário. Sexta-feira 143
sim, sexta-feira não, porque sexta-feira é o dia do trabalho voluntário. Eu tava na escola pública, era mais devagar, a escola que eu tô agora é mais puxada. Demorou, mas agora tá indo. Tô na escola particular e os meus amigos estão em outra escola. A gente tem contato ainda, às vezes eu a gente vai pra festas juntos. Os amigos da escola que estou vão pra Europa, vão pra vários lugares, assim, que eu não vou. Acho que escola particular tem um nível pra você, de estudos mesmo. Além disso, é um colégio religioso. A gente aprende não só apenas matéria, a gente nesta escola faz sarau. E também aprende valores.
O que tem pra mim? O que tem pra gente? Tem brincadeira, tem imaginação. Tem seriedade e também luta... Tem dúvida e tem questão. Se tem o E.C.A, a Constituição e ainda a Convenção... Por que tudo é tão limitado então?
“Sou gente, tenho direitos!”
Estar lá agora me marcou, porque é o lugar que eu tô agora. É um grande avanço pra eu conseguir coisas mais tarde, tipo no vestibular. Agora a gente tá mais sério, questiona bastante. Então... Aprender o que tá aprendendo... Por quê? A gente é bem questionador, nesse sentido.
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CEDECA Interlagos • •
“
Pete arandu onhemombe’u va’ekuegui aipo’o xereko Ymã guare onhemombe’u agui opa mba’e roikuaa Arandu nhemboaxa jevy va’emã ymã guare Nhevanga, nhembojere, mborai, ijavi ronhembo’é Guata, nhemoir , mborayvu... Pete nhemongueta jere py aikuaa mangui pa aju xe reko, xeretarã kuery reko, nhande pavê reko.
Nharombaraete nhande reko, Jaeja eme mbya jaikoa...
Através de uma lenda contada cultivo minha cultura Dos causos ditos, curiosidades descobrimos. Os saberes repassados são his tórias de antigamente. Brincadeiras, cirandas, cantorias, tudo aprendemos. Viagens, amizades, solidariedade... Numa roda de his tórias descobri de onde v im Minha his tória, his tória do meu povo, his torias de todos nós.
Preservar nossos cos tumes, E não deixar de ser Guarani...
”
Meu nome. Elisabeth! Nasci em 24 de julho de 1990...
N
asci na tekoa Tenondé Porã .
Ah melhor explicar, tekoa é aldeia em guarani!
preciso contar a história antes da minha história, a história do meu povo, por que faz parte da minha. Aqui na aldeia, com os mais velhos a gente aprende muitas coisas. mostram
muitas
Como deve se cuidar, ter cuidado com as crianças. E ensinar tudo o que fomos ensinados. Contar histórias, causo, piada guarani e lenda que parece ser real, mas que não é real... Pode ser que seja. Os mais velhos contam histórias antigas de como era nossa aldeia, como que guarani vivia. Por isso vou contar também. Os mais velhos conta que lá em 1500,
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nossa população indígena era grande. Era mais de 2 milhões de habitantes,
Pra contar minha história,
Contando histórias, coisas pra nós...
...quando os europeus começaram a desembarcar aqui,
Imagina mil tribos diferentes! Já hoje, segundo levantamento dos juruás, que são pessoas não indígenas , existe por volta de 350 mil habitantes, De 1000 povos, hoje são 218 povos diferentes. São 180 línguas diferentes. Menos da metade de nossas tekoas estão regularizadas pelos juruás. Em muitos desses lugares existem fortes conflitos com fazendeiros e garimpeiros, mesmo nos lugares reconhecidos pela FUNAI. Somos Guarani M’Bya e nossos antepassados sempre passaram por essa região onde hoje está nossa tekoa – lembram que tekoa significa aldeia? Eles paravam aqui pra descansar. É, porque percorríamos as trilhas na mata a caminho das tekoas de nossos parentes, tanto no interior, como no litoral. Acabou, que com a chegada dos CEDECA Interlagos • •
europeus este meio do caminho começou a ficar difícil e nossa parada de descanso virou uma tekoa. No final do século passado, os nossos antepassados se mobilizaram para conseguir... o direito de permanecer neste local. Se juntaram caciques e lideranças de todo o São Paulo, juntaram-se os mais velhos da aldeia e até alguns juruá... Todos foram até Brasília. Depois disto nossa região foi demarcada pela Funai declarada área de ocupação indígena. Hoje em nossa aldeia, somos entre 550 e 600 habitantes, varia muito porque nosso povo gosta muito de visitar nossos parentes em outras regiões. Aqui existe um posto de saúde da Funasa, um centro cultural, uma escola estadual, outra da prefeitura e a nossa associação. O meu povo fala o guarani. Nasci aqui. Sempre morei na casa da minha mãe com meu sobrinho. Tenho três irmãos. Minha irmã, mãe deste sobrinho mora aqui também, onde tem o morrinho, mas faz muito tempo que não vou lá. Ela mora com o marido e meus outros seis sobrinhos. São mais três meninas e três meninos.
sozinho. Demorou pros médicos saberem. E os médicos falam que ele vai ficar lá até...até morrer. Que já não tem mais cura pra ele. É que a metade do cérebro dele não funciona mais. A mãe dele vai visitar. Faz tempo que não vejo ele, não vou mais no hospital. Ele fez dois anos, quase junto comigo, em julho. Lembro de quando eu era criança gostava muito de brincar com meus amigos. Todos os tipos de brincadeira. Entre eles, eu era a mais tímida ...e chorona, mas me divertia muito. Já fiz passeio no zoológico, parque, etc. Aí, um dia, eu era pequena e fiquei doente Então, minha mãe me levou na Casa de Reza para o pajé me benzer. Sempre que ficava doente, ficava um tempo lá e voltava. Hoje quando a doença é muito grave tem posto de saúde. Naquele tempo não tinha posto de saúde,
Tenho muitos sobrinhos
tinha que pegar o ônibus e era muito longe.
e quero contar a história de um deles.
Fiquei varias vezes doente até os 10 anos.
Ele não tá com nós desde o carnaval do ano passado. Nasceu no mês de julho também e quando tinha seis, sete meses, foi pro hospital e não voltou mais. Tá lá, no hospital até hoje, doente com uma doença que eu não sei explicar, num ponto vegetativo que não se movimenta, não come
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Eu tinha muita sorte naquele tempo, mesmo passando todas aquelas dificuldades. A Casa de Reza é nosso cantinho, onde a gente vai dançar, cantar, dentro tem instrumento musical como violão, rabeca, chocalho, e outros instrumentos. 147
Desde pequena já tinha me empolgado com a Casa de Reza. É da Casa de Reza que nós trazemos a força, alegria para as crianças, além disso, ...as crianças são futuro da nossa aldeia. Na aldeia também temos um coral de dança e canto. Já estou no coral faz dois anos. São 19 pessoas. Até um tempo atrás, fui pra Goiânia cantar. Nós guarani, aprendemos a falar nossa língua desde pequenos. Com um ano e pouco a gente já fala algumas palavras guarani, com a ajuda de nossa família. Pra depois aprender português. Com o passar do tempo chegou o meu primeiro dia na escola. Lembro que como era a nossa primeira vez, minha e dos meus amigos, ficamos felizes. Comecei a aprender outra língua ...que é português. Na verdade, até que foi na primeira série, começando pelo alfabeto, mas eu aprendi mesmo foi na 3ª série. Comecei a ler algumas palavras e a escrever sozinha alguns nomes de objetos. Faz uns dez anos que estudo, entrei quando tinha sete anos. Estou no primeiro colegial. Na escola tenho português, matemática e inglês, biologia, física, artes, história, geografia e filosofia. Não tenho preferência, mas matemática eu não gosto muito, não sou boa de fazer contas. Quando acabar o colegial, quero continuar estudando. Três meses atrás decidi ir morar em outra casa e falei pra minha mãe. Aline, minha amiga também morava com a mãe dela. Então uma jovem da tekoa Jaraguá veio morar aqui e minha irmã fez uma casinha pra ela morar. 148
Moramos primeiro lá, nós três. Depois minha irmã também mudou e deixou a casa dela pra nós. Hoje moro com elas duas e logo chegarão outras duas jovens de outra tekoa. Aqui é mais bacana e legal que na casa da minha mãe. Mudei por que eu queria estar com elas, são minhas amigas e minha família também. As duas meninas que estão chegando, acho que são da minha idade mais ou menos.
Ei, posso interromper? Ou melhor, entrar na história? É que essa história também é minha...
Meu nome é Aline. Tenho dezessete anos. Sou eu que moro com a Elisabeth! Quero também contar uma história que aconteceu na minha vida e na dela também. Faz um ano atrás, que minha tia adotou um nenezinho, que tava doente. Ele ficou no hospital, acho que quase um mês, daí voltou pra cá, ficou com a gente. Era um nenezinho feliz, gostava de brincar, era risonho, aí ficou doente de novo, foi parar no hospital de novo, desnutrido. Era bem pequenininho mesmo, porque ele nasceu fora do tempo, nasceu prematuro. Minha tia adotou ele E a gente cuidou dele.
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Eu dormia com ele,
Ela vai fazer quatro anos esse mês.
depois a minha outra irmã dormia com ele,
Tô sempre com as crianças.
a gente se revezava. Quando ia completar um ano, faleceu. (silêncio) Vai fazer dois anos. (choro) A gente até hoje não soube o motivo pelo qual ele morreu. Essa história aconteceu na minha vida, não sei se isso é uma lição, mas é uma história que eu vou carregar sempre na minha vida.
Quando saio pra viajar, se fico fora três dias ou mais, sinto muita falta deles, porque pra mim elas são minha família. Todas. São minha alegria. Sem a minha família nada tem nenhuma importância. É isso que queria dizer. Pronto! Contei mais uma história nossa... Agora Elisabeth vai continuar. Voltando a contar...
Quando minha tia foi trazer ele do hospital, já tava morto. A gente tava lá na outra aldeia. A gente ficou sabendo e quando chegamos aqui não vimos mais ele. Dói muito pra mim.
Meu dia é assim, normalmente acordo de manhazinha, escovo os dentes, lavo o rosto, me troco e vou na casa da minha irmã olhar as crianças. Cuido delas.
A gente não se conforma com isso,
Lá moram minha irmã e meus sobrinhos. São sete. Cinco meninos e duas meninas. Mas eu só cuido de dois, o menino de três anos e a menina que tem seis meses. Dou comida, dou banho, troco. Meu sobrinho é chato, porque quando ele quer alguma coisa ele chora.
porque parece que a gente não cuidou bem dele e por isso morreu. Daí isso dói muito pra mim. Vou carregar sempre comigo. Essa é uma história que eu vivi. Uma história... ele tá sempre com nós, no nosso coração, no nosso pensamento, ...sempre tá no nosso arredor. Tenho também uma irmã e um irmão. Inclusive uma é adotada. Ela também era doentinha, ficou três meses no hospital, por causa não sei de que doença. Foram três meses, a gente pegou ela quando tinha nove meses. Era desnutrida, daí a gente cuidou e hoje ela tá bem. • • 18 anos, 20 histórias
Não é fácil cuidar dos meus sobrinhos, Fico lá até três horas da tarde e depois volto pra minha casa e as vezes assisto um pouquinho de televisão. Adoro ver filme. Faço pulseira também. Minha prima que me ensinou, ela não está mais aqui, se mudou pra outra aldeia que chama Jaraguá. Fazer pulseiras é o que eu mais gosto Faço pra mim e pros outros também. Depois vou pra escola estudar. A escola acaba as 21h20 e vou pra casa. Às vezes assisto novela.
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A área da nossa aldeia não é muito grande, nem pequena, mas tem bastante coisa boa pra fazer. Antigamente a aldeia era muito fechada pela mata. Hoje em dia não tem muita arvore para cortar e fazer casas, então o CDHU1 fez essas casas de tijolinhos. Antes as casas da aldeia eram de madeira e barro, ainda tem algumas de barro e de tábua. Estou muito feliz hoje. Hoje eu não sou mais criança, mas ainda não sou adulta e sim jovem, ...já já ficarei adulta. Sempre morei aqui e está sendo muito difícil de resgatar a natureza. Mesmo com tudo isso as crianças estão felizes, brincando pela aldeia, pelo menos eles estão com saúde, é isso que importa pra gente. O que tem de importante pra gente é preservar nossa floresta, nossos costumes.
Não deixar de ser guarani.
1 Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo - empresa do Governo Estadual, vinculada à Secretaria da Habitação, tem por finalidade executar programas habitacionais em todo o território do Estado.
Lenda da indiazinha Elisabeth: Numa mata bem distante vive uma indiazinha Ela preserva sua cultura repassando sua alegria Brinca e cuida das crianças com muita facilidade O que queremos, são direitos pra gente de verdade. A pequena indiazinha sempre resistente Diz ao seu povo: O que tem de importante pra gente... Temos direito a permanecer neste local Temos direito de ter e saber a história de nosso povo Temos direito de cuidar dos pequenos com saúde e segurança Temos direito a natureza, a língua e a cultura. Tenho direito de ser índia.
“Sougente,tenhodireitos!” “xeémãarekoxepavêoguerekova’e” • • 18 anos, 20 histórias
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“
De família numerosa pra sus tentar ela veio da Bahia. Atrás de emprego que rendesse mais uns veio ele do Ceará. São Paulo. Aqui se encontraram. Aqui encontram lugar possível. O bairro se forma. Começo. Quinhentos mil são os habitantes buscando um lugar possível. Na sua rua são quatro as casas. Ainda. Aos poucos, barro v ira as falto, escola vai chegando, um pos to de saúde aqui e outro acolá. Começo é quando inicia. Cada coisa tem seu começo que pode ser a qualquer ins tante. Mike já es tava na barriga e anuncia seu começo. Dia do par to, 18 do 7 de 2008. Na vida tudo são números, diria. Cer tidão de nascimento é n°, Jogo de futebol é n°, Computador é n°, Cif ra da música é n°, Senha de atendimento no hospital é n°, mas esse é tão demorado, tão demorado que o que não espera é o tempo, que corre e vê a vida passar por entre senhas de atendimento... Números... Na vida tudo são números, mas na vida não somos números... Mike sabe disso e sonha.
Num dia de tristeza me faltou o velho E falta lhe confesso que ainda hoje faz E me abracei na bola e pensei ser um dia Um craque da pelota ao me tornar rapaz Um dia chutei mal e machuquei o dedo E sem ter mais o velho pra tirar o medo Foi mais uma vontade que ficou pra trás
”
Começa quando eu nasci, no dia quinze de julho de noventa.
Meu nome, Mike.
M
inha mãe fala que ela achou bonito o nome.
De pequeno eu era o pimentinha, o
pimenta: - Olha o pimenta aí. Nasci em São Paulo. Meu pai é do Ceará e minha mãe da Bahia. Vieram como a maioria vem pra cá, atrás de emprego. Minha mãe e meu pai vieram porque lá tava apertado, a família da minha mãe é grande, então ela pensou: ‘Tenho que sair pra ajudar meus pais’. Então ela veio pra cá nessa idéia, mas chegou aqui não deu muito certo. Depois conheceu meu pai... Já meu pai veio pra cá junto com a família dele, por causa do pai dele, que veio trabalhar, arranjar emprego aqui, aí veio ele e os irmãos dele, meus tios. Cresceu aqui e começou a trabalhar. Tinha dezoito anos, a idade que completei.
Com onze outra vez. Uma mudança importante na minha vida aconteceu quando eu tinha quinze anos. Um dia depois do meu aniversário... Fazia Kung Fu nessa época. Saia de lá mais ou menos às cinco da tarde. Sempre passava no trabalho do meu pai, era perto de casa mesmo. Ele era frentista. Sempre que passava lá perto do Posto de Gasolina, eu ia lá. Esse dia não passei. Vim pra casa. Estávamos eu e meu irmão do meio. Meia hora depois minha tia chegou falando que ele tava no hospital. Logo que chegou dizendo que tinha acontecido alguma coisa ruim com ele, eu já sabia já. Fiquei meio cismado e só depois tive a notícia. Eu queria ir pro hospital ver ele. Mas não deixaram né? Foi infarto. Infarto do coração. Em seguida a namorada do meu primo disse que ele ia pra casa, mas logo depois chegou falando que ele tinha morrido.
Nasci aqui, morava em outro bairro.
Foi muito triste.
Com uns nove anos, mudei.
Fiz quinze anos antes dele morrer. Eu sei que ele esperou passar meu
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aniversário pra não morrer no dia. Antes de chegar meu aniversário de quinze anos meu pai falava que não tinha grandes condições pra comemorar, que pra ele era só um dia, mas que quando tivesse condições fazia, comemoraríamos de outro jeito. No dia, ele chegou do trabalho. Era um sábado. Chegou e falou que ia passar a noite jogando vídeo game comigo, né? Foi no outro dia. Ele morreu. Faz três anos esse ano. A gente costumava fazer muitas coisas juntos. Desde pequeno. Brincavamos. Iamos pro shopping quase todo domingo. Íamos pro estádio do São Paulo. Nossa! De tudo, de tudo a gente fazia. Nós dois corinthianos. Toda família. Menos minha mãe, que não gosta de futebol. Tem várias histórias com meu pai... Quando tinha seis anos. Foi assim... Um dia, meu pai levou uma fita dos Mamonas gravada, não era nem uma fita que eles tinham lançado, era uma gravação que fizeram e meu pai conseguiu. Eu ficava o dia inteiro ouvindo aquilo lá, nem sabia que era rock, só sabia que eu gostava. Fui ouvindo e quando fiz dez anos eles morreram. Não, com menos. Eu não sabia, eles tinham me enganado, não me contaram... Minha mãe não me contou, só fiquei sabendo um ano depois, um dia na televisão, quando eles tavam fazendo um ano de morte. Foi com dez anos que vi pela primeira vez um vídeo do Mamonas. Lembro que vi o guitarrista e era muito parecido com o meu primo. É um primo que na época também tinha uma banda e que anos depois me ensinou um pouquinho o que era 154
música. Lembro que vi aquele guitarrista tocando e pensei de início: “Nossa, deve ser difícil fazer aquilo”, mas depois fui vendo como fazia e pensei: “Ah, é fácil assim? Só colocar os dedos e tocar?” Nesse momento também fiquei sabendo que era rock. Aí fui conhecer Legião Urbana, Barão Vermelho e essas bandas mais pesadas. Ah é! Como ia esquecer!?!? Há quase um ano e meio atrás, minha mãe comprou meu violão. Dizia pra ela, que queria um violão, ou uma guitarra. Aí fomos na loja e ela disse: - Se você quer tirar seu violão tira. Respondi: - Não, deixa desapertar mais (o dinheiro). Ela foi lá e tirou o violão. No começo, ficava olhando pro violão assim: ‘Nossa!’ Tentava tocar alguma coisa e não conseguia. Aí, fiz duas semanas de aula, com um amigo, que é tio de uma amiga minha, ele passou o básico, mas pra mim era muita coisa mesmo. Aí eu peguei e comprei uma revista e a partir dela fui tocando e fui pegando, sozinho. Depois, meus amigos também me ajudaram. Vai fazer quase um ano e dois meses. Minha mãe fala: - Você fica tocando essas coisas que eu não entendo nada. Respondo: - Ah mãe. Você teve a sua época, você ouviu música diferente, então, não tem como você entender mesmo. Não toco assim, bem, bem, mas já pego cifra, tablatura de música e saio tocando já. Aqui CEDECA Interlagos • •
na região eu já vi cartaz, mas nunca ouvi falar em curso de música. Se tivesse um que eu pudesse fazer, eu faria. Inclusive tem um amigo meu que dá aula de violão aqui na escola.
ele comprou um computador e um dia lembro que ele deixou o computador ligado, eu fiquei vendo aquela coisa e falei:
Minhas músicas preferidas...
Então, ele chegou em casa falou:
são “Tempo Perdido” do Legião e “Brasília Amarela” dos Mamonas, pelo fato do meu pai ter uma Brasília na época, era quase amarela, era um verde meio amarelado, aí eu ficava olhando e imaginando eu lá dentro dirigindo. Tempo Perdido, quando eu peguei nessa idéia de perder muito tempo com as coisas que eu fazia e recuperar esse tempo fazendo alguma coisa que eu goste. Lembro também de um dia quando tinha oito anos. Acordei e dei de cara com uma bicicleta! Nossa! Fiquei doido! Eu saí em cima dela de noite. Minha mãe dizia: - Sai daí menino, vem pra dentro. Foi meu pai que trouxe. Outra vez meu pai e minha mãe realizaram um sonho meu, ter um computador. Já tinham me contado de computador e eu pensava ‘nossa, deve ser complicado!’. Teve um amigo meu que foi o primeiro instrutor de informática aqui. Eu ainda morava em outro bairro. Era vizinho da minha mãe, • • 18 anos, 20 histórias
- Nossa, o que que é isso? - Isso é um computador. O dia que eu vi um melhor, foi no canal dois. Era um monte de peça eletrônica e pensei: ‘nossa, tudo isso tem no computador e eu não sabia’. Vi na televisão o cara falando de informática. Assisti o cara desmontando e peguei gosto. Aí comecei a ver todo dia o programa, implorava pra minha mãe me colocar num curso de informática. Depois de um tempo que ela me colocou num curso. Eu abria o computador, ficava doido, mexia em tudo. Aí quando terminei meu curso, que era básico, nem quis esperar, já fui abrindo internet de Lan House, pra saber mais o que é que ia no computador. Na época num tinha muito computador assim avançado, nem computador barato. Aí, minha mãe me colocou no curso e falou assim: - ‘um dia quem sabe eu compro um computador pra você’. Eu tinha onze anos. Minha mãe falou que tava pensando em tirar um computador pra mim. Depois disso, eu não dormia, não fazia nada, só ficava pensando nisso. No dia fomos eu e meu pai tirar o computador pra mim. Na loja falaram assim: - Entrega em casa...
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Respondi: - Não! Vamos levar agora. Meu pai tava de carro e trouxe. Chegamos em casa, não esperei nem meu pai, eu mesmo já montei. Nunca tinha montado um, já cheguei mexendo e tal. Minha mãe que tinha saído, quando voltou, viu e disse: - Você nem esperou? Você nem sabe montar. Já tinha ship já, já instalei o programa já. Queria mexer logo. Nessa época, só queria saber de informática, quando não tava na frente do computador, tava jogando vídeo game. Minha mãe dizia: - Vai estudar! Aprendi muita coisa com meu pai. Ele era assim. Ele não era um pai de dar bronca, me bater, era mais sentar e conversar. A minha mãe fala que eu aprendi a ter calma assim, mais por causa dele. Porque ele não tirava o chinelo pra bater na gente. Falava, falava, falava e tinha que ter paciência pra escutar. Então, eu aprendi essa paciência. O nome dele, Roger. Depois da morte dele, tô muito grudado com minha mãe. Hoje eu faço muita coisa com ela. Antes era meu pai, que eu não via todo dia, via de manhã quando saia, de noite às vezes eu chegava e ele já tava dormindo. Final de semana: muito difícil. Ele trabalhava final de semana sim, final de semana não. Quando ele tinha uma folguinha, ou ele jogava bola com a gente ou saia com a gente, mas aprendi muita coisa com ele. Depois que meu pai morreu, 156
eu aprendi a fazer mais coisas com a minha mãe. Uns seis meses depois que meu pai morreu, o advogado pediu pra entrar com pedido de pensão. Minha mãe tentou e eu fui ajudando. Hoje tá mais calmo, não tem muita coisa pra sair no desespero caçando, procurando, ajudando. A gente fica mais em casa. Ela planeja sair, ir embora, tá pensando em ir pra Bahia, mas não tem como. Ela vai é reformar a casa e eu vou ajudá-la. Moro aqui há uns dez anos já. Meus pais mudaram pra cá por causa do aluguel que tava muito alto. Minha mãe falou que a gente tinha que comprar uma casa, meu pai falou que não tinha como comprar uma casa, mas tinha dinheiro pra comprar o terreno, então ele comprou o terreno e mudamos. Na época, tinha uma vizinha nossa, que ia ser despejada, porque não tinha condição de pagar o aluguel, aí meu pai falou: - Não. Como o terreno era grande e meu pai tinha conseguido um preço bom, disse: - A gente divide. A gente dividiu e ela passou a morar lá e cuidar do terreno. A gente foi construindo enquanto ela morava lá do lado. Até hoje, estamos morando aí. Lembro quando meu pai tava cavando pra fazer os alicerces. Eu ia lá brincar, ele falava: - Sai daí moleque, você vai se machucar! Nossa, era muito bom. Ficava lá vendo meu pai com os trabalhadores, construindo, mexendo no cimento. A vizinha chamou uns amigos dela, que compraram o outro lado do terreno que tava a venda. Minha rua tem quatro casas. De pouquinho em CEDECA Interlagos • •
pouquinho vai crescendo. Não gosto muito, mas gosto. Porque fica aquele monte de gente, abafado, daqui a pouco vai praticamente virar uma cidade grande ali.
Hoje moro com meus irmãos e minha mãe. Janice. Meus irmãos Davidson e Daniel.
Eu fiquei sabendo, que o terreno era da prefeitura. Aí não sei se um cara se apossou de lá, só sei que ele comprou e eu fiquei sabendo que se a gente mora no lugar há mais de cinco ou sete anos, a gente já pode, por direito, ficar com o terreno. Porque ninguém nunca veio mexer com a gente, nem falou que era de alguém, então a gente ficou com posse do terreno.
Vou fazer dezoito, o Davidson fez treze e o outro tem quase dez. É ruim quando os dois mais novos brigam, mas é coisa de irmão mais novo, então, nem ligo muito. Às vezes, eles vêm brigar comigo, mas nem ligo. Eles começam a falar, ouço, mas finjo que não tô escutando nada. Agora o do meio é cismado, mexe com ele, já fica irritado. Eles brigam, separo. Por besteira.
Minha mãe tava pensando em vender, pra ir embora, só que pensou que a prefeitura pode vir derrubar. Até que veio um cara, que entende e falou:
Minha mãe, ela é doméstica. Trabalha fora às vezes,
- Não vende porque eu fiquei sabendo que vai fazer um projeto e vai passar uma rua - num sei se vai tirar o campo, mas vai passar uma rua e vai construir um parque na frente. Vai valorizar. Depois que falaram que iam mexer lá na frente, que ia valorizar, ela preferiu deixar assim, porque se fosse vender, ia sair no prejuízo. Ela também não sabia se tinha casa certa pra ficar na Bahia. Se fosse pra casa dos pais dela ficaria muito apertado, não queria incomodar, então achou melhor não. Ela pode ir passear, mas agora não vai não. No final ela desistiu, porque se ela vendesse e chegasse na Bahia e não conseguisse outra casa, ia ser difícil ela voltar pra cá de novo, então, desistiu. A cidade fica perto de Salvador, chama Macaúbas. Fomos pra lá quando estava na terceira série, nas férias. Só ficou meu pai. Eu mesmo prefiro ficar aqui. Aqui já tenho meus amigos e há mais de quinze anos moro aqui, em São Paulo, nunca morei em outro lugar. Foi sempre aqui pertinho, então sair daqui ia ser difícil.
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Eu sou o mais velho em casa.
depois que meu irmão nasceu, chegou a trabalhar acho que três anos fora, mas não tinha como. Lembro que de manhã eu ia pra escola e meus irmãos ficavam em casa. Ficava aquela bagunça na casa, eu tinha que cuidar de tudo. Então ela viu que não dava conta. Depois ela foi vendo que dava pra segurar sem trabalhar fora de casa, então, só hoje ela tá tentando arranjar emprego. Agora dá. Ela me colocou num curso de administração e eu já terminei. Agora tô esperando um emprego, alguém me chamar pra entrevista. Hoje estou na fase militar, pra conseguir fazer outra coisa vai ser difícil. Assim que for chamado e conseguir vou ajudá-la. Agora recebemos pensão. Decidi começar a trabalhar, antes de o meu pai morrer. Eu via amigos meu novinhos, já trabalhando, comprando as coisinhas deles, aí pensava: ‘Ah, eu nunca vou trabalhar assim, tenho meus pais’. Mas depois dos quatorze anos eu falei: ‘Não. Tenho que começar a trabalhar pra ter minhas coisas’ e depois fui ver que eu tinha que ajudar meus pais também, né? 157
Tinha que ajudar meus pais, porque eles me davam tudo que eu precisava, então, tenho que retribuir um dia. Eu tentei começar na área que gosto. Tava tentando trabalhar na área de informática, né? Mas não dava. Aí, no meio do ano passado comecei a trabalhar no mercado do meu tio, dois dias por semana, aí não deu, porque era muito pesado, ...não conseguia chegar a tempo na escola. Esse ano comecei a trabalhar em Lan House, mas aí o cara queria que trabalhasse a noite e eu não podia, tinha que estudar. Estudo na mesma escola desde a primeira série. Amigos lá é o que não falta. Até os treze anos eu só brinquei, ficava na rua. Brincava de bola, soltava pipa, ficava na frente da televisão, jogava vídeo game. Com treze anos, cai na sala C, aí pensei: ‘Xi, minha mãe vai brigar comigo’. Eu estudava, não entendia nada, mas nunca fui mal na escola. Aí falei: - Não, vou parar com brincadeira, vou começar a estudar sério. E comecei a estudar sério. Então até essa idade, esse tempo pra mim foi tempo perdido, porque eu poderia ter aprendido mais. Pra mim era só ficar jogando na internet. Depois que fui ver que tinha muita coisa pra poder acessar lá na internet. Hoje, jogo pra mim, é tipo, troço chato. Faço mais programa, desmontar, montar computador. Eu até jogo, mas o que mais faço é mexer em coisas eletrônicas.
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Da segunda até a terceira série eu levava bastante bilhete pra casa. Teve uma vez, eu tava na terceira série, tinha uma professora de matemática, eu não entendia nada da aula, nada mesmo. Então eu sentava bem na frente da professora e ela pra me testar, passava a lição na lousa e colocava as respostas erradas na minha frente então eu ficava olhando as respostas erradas e ela ficava tirando sarro da minha cara. Todo dia era assim. Até o dia que esqueci o caderno e ela me pegou e disse que daquele momento em diante eu ia estudar mais, fiquei o ano inteiro de recuperação. A partir daí, eu comecei ter mais noção de números. 99% da nossa vida são números. Cada coisa que vamos fazer na vida, fazer uma casa, medir uma coisa, ir no supermercado, tem conta. Até na informática tem conta, na música. Hoje eu gosto. Tudo que é relacionado com número eu gosto, física, química, matemática, eu gosto. Pretendo fazer um curso de administração, mas preciso aperfeiçoar mais. Os alunos mais esforçados iam pra sala A, mas hoje não é mais assim. Porque eu vejo gente que no ano passado faltou praticamente o ano todo, tirou nota ruim e tá no 3°A. Então tá no 3°B não importa, se a pessoa tá no 3°A não é melhor que eu. Ninguém falou que ele é melhor que eu. Eu posso ser melhor que eles, mas não que eu me ache melhor que eles. Entendeu? Eu tô no 3°B e tô fazendo o que eu sei fazer, o melhor que eu sei fazer. Eu diria que pra mim é melhor que uma escola particular, porque uma escola particular têm aquele negócio de seguir. “Ah, vai seguir isso até o fim.” e lá não. Lá eles variam, eles dão o que eles acham o melhor pra gente. Por exemplo, veio uma CEDECA Interlagos • •
cartilha do governo que tinha as mesmas coisas que a gente aprendeu no segundo ano. Aí os professores disseram: - Não, se a gente der isso a gente vai estar fazendo revisão. Se fosse uma escola particular, como era uma regra que a gente tem que seguir, eles iam fazer tudo de novo, mas lá não, eles dão coisa diferente. Eles mostram o que vai passar no Enem. Aí é bom. No Conselho de Sala eles vão falar o que você tá precisando, qual a nota ou qual a matéria que você foi bem e qual a matéria que você foi mal. Então, te aconselham. Eles falam se você tá conversando muito ou não. A nossa sala o ano passado era uma das melhores. Esse ano tá piorando porque vieram alunos dos outros períodos. A sala inteira tem que participar do conselho: os professores, que dão aula pra aquela sala, o coordenador da sala, a diretora e a coordenadora, são os que participam. No último, a coordenadora começou falando do rendimento da sala, que tinha que melhorar, que o ano passado era bem melhor que esse ano e os professores começaram a falar: - A sala é boa, o problema é conversa demais. Em nota, não tem o que reclamar, tem um ou outro que não entende e tira nota baixa, mas no próximo bimestre recupera, então o problema mais sério é conversar. Dão melhorar...
os
conselhos.
O
que
devemos
Ano passado teve uma professora de inglês, • • 18 anos, 20 histórias
que chegava, passava a matéria e não explicava. Então o povo ficou revoltado. Ela foi no conselho e começou a falar e reclamar de um aluno, o Diego. Mas ele não faz nada mesmo. Aí ele ficou nervoso começou a reclamar que ela não passava lição direito, não explicava. Os outros diziam: - Não Diego, você não faz nada, você não tem o direito nem de reclamar e também ninguém tem o direito de reclamar de você. Mas que ela tá errada ela tá. Tem professor que fala assim: - Não, esse é bom, ele fica quieto no canto dele, faz a lição, não conversa. Os alunos podem falar dos professores, mas até hoje, só vi duas vezes, essa que contei e outra. Grêmio, desde que eu estudei de noite, nos últimos dois anos, não teve. Falaram que ia ter grêmio, mas depois disseram: - Não, tá muito bagunçado, então não vai ter grêmio. Os alunos não puderam organizar. Até que um dia, a escola falou de faculdade, que o governo podia pagar a faculdade, mas... tinha que vir no Escola da Família1. Na escola tinham computadores, mas ninguém mexia há um ano... Aí, eu e mais dois amigos que estávamos mesmo querendo um trabalho, um trabalho fixo, tivemos a idéia. - Vamos dar aula! - Vamos falar com a coordenadora pra gente abrir a sala de informática! 1 Programa da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, de abertura de escolas da Rede Estadual de Ensino aos finais de semana.
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Porque a gente é fanático. Tem uns cinco amigos meus que são todos doidos por computador. A gente dividiu em duas duplas, de manhã e de tarde, demos a idéia pra Sonia e ela disse que tudo bem, que podíamos tentar. E a gente conseguiu. Então hoje trabalhamos no Escola da Família dando aula de informática. Começamos esse ano. A primeira aula não prepararei assim, não fiz nada, porque era fácil... Era mais criança. Aliás, não nego aquela fala: “É difícil de lidar com criança”. Mas nesse dia, quando comecei a dar aula foi uns dos melhores dias da escola. Tinha feito curso, mas pensava: “Não. Eu não sei tudo”. Quando chegou esse dia e comecei a explicar, nossa, me empolguei, e fui vendo que aprendi bastante, você vai tirando dúvida e começa a se sentir professor. Na sala assim, é bom que a gente aprende a ver como o professor se sente. No primeiro dia a gente dizia: - Pô, não vai ter ninguém, porque tá começando agora. Aí começou a entrar um monte de gente, encheu a sala e só tinham sete computadores, aí a gente ficou olhando aquele monte gente, só pra sete computadores. Então, meu amigo falou assim: - Não, serão só dois alunos pra cada computador. Alguns alunos desistem porque acham chato ficar explicando, porque eles querem ir mais pra entrar na internet e jogar. Hoje é até tranqüilo de dar aula... A escola é perto de casa. Moro aqui nesse bairro há bastante tempo. 160
Mudou muito nesse tempo que moro aqui. O terreno em volta da casa, quando a gente mudou tinha muito pé de banana. Agora tem bem menos. A gente foi construindo, teve que cortar, era bastante mato. De um lado tem campinho e do outro tem a rua. O campinho, que não é bem cuidado, mas também não é desleixado... Até um tempo atrás a gente jogava bola lá e tal, mas aí muita gente começou a jogar entulho... Ficou muito amontoado, tumultuado. Aí vem umas pessoas e pegam o entulho. E tem também o negócio do esgoto. Que lá é aberto, é a céu aberto. Uns dois anos atrás, falaram que iam fazer o córrego, mas nunca fizeram. E também é água parada, tem esse negócio da dengue. O lado bom é que lá tem uma avenida passando de frente, têm muitas árvores, esse é o lado bom de lá. Uma chácara bem enorme, nossa! A gente acorda de manhã e olha aquele lado de lá: - Nossa, aqui não é São Paulo. É um lugar muito bonito mesmo. Antigamente tinha bastante buraco nas ruas, “boca de lobo” aberta. Hoje, tá mais ou menos. Pra mim, o lugar onde eu moro é bom porque tem pra onde ir, padaria, mercado, farmácia. A escola é praticamente do lado. É bom, mas precisa melhorar. Principalmente na escola, tem que preservar o local. Tem que cuidar. Que nem eu que dou aula lá e vejo o estado da sala de informática, não é péssima, mas também não é boa. Não é só a sala de informática, tem o laboratório, a biblioteca, as próprias salas de aula a cada ano que vai passando eles pintam, mas vai chegando no final do ano, já tá pior que antes. Quando me mudei eu já tinha amigo aqui, porque minha vó já morava nessa rua. Então, já conhecia os meninos. O que eu gostava mais é
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quando a roça não tinha cerca. A gente ia lá pra brincar, ficava o dia inteiro. Minha mãe até ficava preocupada. A gente brincava muito na roça. Esconde-esconde, pega-pega. A gente se escondia e ficava o dia inteiro conversando.
depois. Já que o terreno era baixo, tipo um barranco, já que não tinha como continuar o campinho, aí fez um terreno pra construir uma casa. A filha dessa mulher chamou a filha dela, que construiu uma casa também.
Era bom demais. Era calmo. Sem perigo.
Há menos de um ano atrás a gente jogava bola lá,
Ixi! Tinha milho, tinha pé de feijão, tinha banana, manga. A gente ia lá pra pegar milho pra comer, até que um dia o tiozinho pegou a gente e a gente saiu correndo. Ele disse:
Não jogavam bem lixo, é entulho mesmo, pedra, plástico, essas coisas. Aí
- Não, eu não vou brigar com vocês, mas não faz mais isso.
os caras limpavam todo mês, mas agora não sei porque que eles pararam,
A gente nunca mais voltou lá. A gente achava que ele era bravo, que ele ia bater na gente. A gente ficou com medo e nunca mais foi. (risos). Aí ele colocou a cerca.
acho que cansaram de limpar e gente vir jogar, não param de jogar.
Hoje um pedaço ainda é do mesmo dono, mas grande parte já tem diferentes donos. Em volta da minha casa tem um campo, um muro na frente, uma vielinha que dá pra uma chácara enorme e pro córrego. Na frente da minha casa também tem o campo, que é praticamente um quarteirão inteiro. Era só um terreno. Aí o povo começou a vir pra cá, com os parentes e falaram: - Ah, vamos construir um campo. Na época tinha um cara que mexia com ferro e soldava, então ele fez as traves. Começaram a limpar e colocaram as traves. Aí formaram o campo, colocaram a cerca do lado. Ali também jogavam muito lixo, ...no barranco do lado do campo. Então um dia uma mulher perguntou se alguém era dono e comprou o terreno desse dono que desapareceu • • 18 anos, 20 histórias
aí foi expandindo a rua e diminuindo o campo.
Então...isso cansa... Eram os próprios donos, não donos assim, porque o campinho não tem dono, é de todo mundo, quem quiser jogar bola vai, mas quem fez o campo que são os caras da rua, limpavam todo mês, todo mês cortavam mato, eles mesmos viam jogar e falavam pra não jogar lixo, mas tem gente lá da rua de cima que vem jogar. Limpando, sujando, limpando, sujando. Então... As coisas estão mudando. A vielinha que a gente passa, tão fechando e colocando uma cerca. O córrego é muito sujo mesmo, inclusive ele passa no meio da horta, então, assim, quem planta lá fica com a plantação meio contaminada, é ruim. Antes o córrego era bem mais poluído, muitas pessoas pararam, começaram a colocar lixo, ou separar o lixo. O bueiro fica aberto, sai do esgoto da rua e 161
começa a sair por aí. Sempre foi assim.
Agora já asfaltou tudo, tá bem melhor do que antes.
De lazer tem pouco por aqui.
Não vou falar que não tem violência, que tem.
Tem uma quadra do lado, as escolas tem o Escola da família. Tem um parquinho no bairro do lado. Pra criança a única coisa que vejo por aqui é o CDM, que tem a escolinha de futebol pra menina e menino. O campinho de futebol fica na frente da minha casa. A área do comércio também tá aumentando. Tem uma mulher a Flor que é bem famosa aqui no bairro. Começou com uma doceria bem pequena, uma janelinha bem pequenininha na própria casa dela. É ponto de referência aqui. Vai fazer quase dezoito anos já, então, desde que eu moro lá ela existe. Era só uma janelinha. Agora ela tem a doceria em baixo grande e tem uma loja e bazar em cima. Cresceu pra caramba. Pra gente que é adolescente, tem então lá pra comprar alguma coisa pra comer, tem lan house, que antes não tinha, também podemos ir na casa dos outros. Hoje fico mais dentro de casa, porque os amigos estão trabalhando. As ruas antes eram barro mesmo, agora asfaltou. Quando era de terra, pior era quando chovia. Era mó sacrifício ir pro bairro aqui do lado. Se você vestia branco, voltava marrom. A barra da sua calça tinha que dobrar, você tinha que voltar de shorts. (Risos) Ixi, estudar então... teve uma vez que, antes de ser asfaltada, tava indo pra escola de manhã e caiu mó pé d’água, só dava a gente indo pra escola. E a escola exigia camisa branca, cheguei todo marrom. Outra vez tive que fazer trabalho lá e tava chovendo, tomei um escorregão feio... Fiquei marrom de novo. 162
Antigamente você ouvia falar a cada mês tinha uma morte. Você via uma ronda ou outra. Agora pra onde você vai tem polícia, tá mais seguro. Em cinco dias de semana que tem aula, três têm ronda na escola, um dia sim um dia não pra fazer policiamento. Hoje pra mim é calmo, qualquer necessidade minha, tem bem perto: padaria, mercado, posto de gasolina. Então, a única coisa que tá ruim mesmo é a área de saúde. O hospital tá ruim. Algumas horas antes de meu pai morrer, ele foi levado pro Posto de Saúde mais perto de casa. Lá ele não teve socorro nenhum, não teve. Ele tava vivo, chegou vivo. Quando minha mãe chegou, ele tava numa maca, já morto, com as mãos amarradas em cima do peito. Pra mim, pensei que estava amarrado por que a maca era pequena, ou então tava quebrada, alguma coisa. Na hora, ele tava trabalhando, abastecendo o carro, que era até de um amigo dele. Ele caiu. O amigo o pegou e o levou pro posto de carro. Quando chegou lá, colocaram ele numa maca e levaram já pra dentro, não dava mais pra ver. Não sei quanto tempo esperou, só sei que minha mãe falou que assim que chegou lá ele tava numa maca, já morto. O cara que atendeu falou que tinha jeito de sobreviver, mas que tinha muita pessoa na frente e tal, depois disse que tentaram fazer, pra mim não
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foi o máximo, porque se eles tivessem feito o máximo ele teria sobrevivido. Falta de atendimento. Não teve jeito. A partir daí, falei: - Hospital por aqui não tem. Aqui não tem nem mais como acessar o que é mais perto. Pra mim, nessa área o pior é saúde. Aqui no bairro. A última vez que lembro de ter ido ao médico foi quando era mais novo. Minha mãe conta que peguei hepatite, meus pais me levaram pro hospital e lá queriam me internar. Aí, minha mãe falou assim:
Meu pai quando foi levado pra lá, não teve muita atenção e lá você chega e olha, tem um monte de gente, pouco médico... Devia melhorar - se fosse melhorar alguma coisa no bairro – a saúde. Colocar mais um hospital. Até um tempo desse tinha uma senhora fazendo abaixo assinado pra prefeitura fazer um hospital, mas nem sei que fim levou esse abaixo assinado. No bairro seria bom se colocassem uma escola de profissionalização de informática e também de idioma, porque tem muita gente que sai daqui pra ir muito longe fazer esses cursos. O mais importante que eu já vivi eu já contei.
porque se tivesse ficado no hospital eu tinha morrido.
Agora vai chegar o Enem e é um problema. A gente fica pensando que nunca fez. Eu não sabia o que era o Enem, até o primeiro ano eu não sabia o que era, depois eu fiquei sabendo e fiquei mais tranqüilo, porque é só pra avaliar o que você fez durante o ensino médio. Pra mim, se eu não passasse, eu ia fazer tudo de novo, repetir desde o primeiro ano.
Uma vez fui, mas faz tempo. Foi a mais grave. Eu tava na casa da minha avó e meu pai ainda era vivo. Era um dia de chuva. E lá o chão é de cerâmica. A gente tava indo embora, fui correr e esqueci que era cerâmica. Escorreguei e bati a cabeça. Abriu um corte e ele me levou correndo pra lá, porque não tinha outra opção. Lembro que fiquei um bom tempo esperando alguém me atender...
Quando sair da escola, primeiro eu quero trabalhar pra fazer a faculdade, fazer um curso técnico de computação ou de administração, que é a segunda coisa que eu mais gosto. Quero ainda fazer um intercâmbio de inglês. Intercâmbio de um mês. Que eu acho fundamental fazer. Eu já fiz curso de inglês, eu não sei muito, mas eu sei um pouco mais do básico, mas é bom se aprofundar.
- Não, que eu já vi gente ficar internado e morrer. Então ela não deixou e me levou pra casa. Depois, o médico falou que eu tinha um problema no fígado, que foi bom ela ter me levado pra casa,
Ali tem fama de ser ruim, só se for emergência mesmo, mas graças a deus nunca teve essa emergência de sair correndo de casa pra ir pra lá, só com meu pai. Poderia ter um hospital aqui. O hospital mais perto daqui é precário, o posto de saúde também. • • 18 anos, 20 histórias
Mais pra frente, quero... fazer faculdade de informática, montar uma banda e fazer fama também, não pelo dinheiro, mais por gosto mesmo, por gostar de música. Não ficar famoso assim de sair pelo mundo afora fazendo show, mas todo mundo falar “Aquele cara que toca naquela banda tal, que legal!” 163
Na banda são três: eu e mais dois amigos. Tem baterista e vocalista. Vamos começar a ensaiar. Um tem instrumento e o outro não. Caso não dê certo, tenho a informática. Pelo menos tenho outro recurso, outra saída. Faria por gosto mesmo da música, não muito pelo dinheiro. Um sonho, eu diria que é impossível, que é difícil, é trabalhar na Microsoft. O outro é trabalhar numa empresa grande na área de administração. E o outro é na área da música, crescer, a ponto de ser bastante conhecido pelo público e ser respeitado também. Ainda sonhos...
O que não espera é a vida.
“Sou gente, tenho direitos”
Eh, vida voa Vai no tempo, vai Ai, mas que saudade Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade E orgulho de seu filho ser igual seu pai. (Joao Nogueira)
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CEDECA Interlagos • •
“
A noite, escuta-se lá longe ...um apito faz a segurança Tudo que a gente tem direito... ...um apito fazendo a segurança. Lá longe, tudo é longe Tudo que a gente tem direito... ...tudo que a gente quer por per to Lá longe, tudo é longe.
”
Nasci em julho de 1990.
Pode me chamar de Beatriz...
U
ma vez eu perguntei pro meu pai
histórias de quando era bem pequenininha porque eu não sabia muita coisa. Ele falou que eu comecei a andar com um aninho. Era aquela coisa gorda com bochechão, bem gordinha mesmo. Todo mundo queria me pegar, era muito paparicada por todos. Era muito arteira também, né? Um dia, ele tava lá comendo, eu inventei de ir no colo dele e dei um tapa no prato, foi tudo em cima dele! Nossa, meu pai falou que queria me pegar! Aí veio minha mãe e disse: - Pára, pára, ela é uma criança, não sabe de nada! Em seguida já começava a dar risada, eu dava muita risada! Pelo que meu pai me falou, eu era uma criança muito feliz, adorava brincar. Tem uma foto antiga minha. Eu tô de maria-chiquinha, com um vestidinho todo estufadinho, em cima de uma motoca. Lá na Bahia, essa foto roda. Todo mundo quer essa foto de recordação! Minha lembrança mais antiga foi de quando minha irmãzinha nasceu.
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Eu tinha apenas três anos, mas lembro que foi assim... Até me arrepio! Eu tava lá, brincando, com a minha amiga. Minha mãe chegou dizendo: “Tô grávida!”. Fiquei olhando e nem tchum pra ela. Depois, fui vendo a barriga dela crescendo... Eu falei: - Mãe, o que é isso?... Comeu melancia? - Não, filha... É sua irmãzinha que está chegando. Lembro dela explicando: - É que o papai ajudou a mamãe a ter uma irmãzinha pra você brincar. Ela disse tudo isso, mas eu só fui me tocar mesmo, quando minha irmã nasceu. Aí sim, porque eu vi todo mundo dar atenção só pra ela. Davam atenção pra mim, mas os cuidados iam todos pra ela. “Não sei o que lá, pra Natália; não sei que lá da Natália; ó Natália” e eu pro espaço, né? Mas como minha casa era grudada com a da minha tia, que é uma tia que sempre me paparicou muito, acho que não senti tanta falta, tanto ciúmes, por que minha tia estava sempre do meu lado. No dia mesmo que ela nasceu foi muito emocionante, porque eu era uma criança sozinha, não tinha irmãos ou primos da minha idade. É bom CEDECA Interlagos • •
ter uma irmã. O nome dela é Natalia. A verdade é que no começo, fiquei ao mesmo tempo com ciúmes, porque ela era paparicada um pouquinho mais do que eu, mas hoje eu não ligo não. Naquela época a gente brigava muito. Na minha vida, outra lembrança muito forte é com a minha avó, a gente era muito apegada, em tudo. Ela nasceu em Alagoas, mas morava do lado da minha casa. Era mãe do meu pai. Eu sentia um amor muito grande pela minha avó. Tudo era minha avó. Tinha seis anos quando ela morreu. Coitadinha, era muito doente. Parecia que meu mundo tava desabando, não queria mais saber de nada. Foi muito sofrimento pra mim e pro meu pai. Como meu pai era o caçula, ela cuidava dele e de mim! Quando ela faleceu foi uma perda decisiva pra mim, uma perda que eu não gostaria de ter tido na minha vida. Hoje eu sinto falta dela, por ela ter sido minha companheira. Quando minha mãe ia trabalhar, ela ficava comigo e com a minha irmã. Eu lembro até hoje, enquanto eu estava brincando na rua - ela já era velhinha, né? - ela ficava passeando pela calçada me vendo brincar. Como ela era doente, ela ficava também bastante sentadinha, me vendo brincar com minhas amigas. Daí, ela me chamava pra dizer: - Eu te amo! Foi uma coisa muito importante na minha vida, que eu nunca vou esquecer. Eu vivia com ela, minha vida era ela. Chamava ela de vovó Gegê. Ela era muito fofa. Era mesmo como se meu mundo estivesse desabando naquela hora. Aí, a gente foi se acostumando a não ter mais ela do nosso lado. Fui seguindo a vida. No ano
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seguinte, tava tudo normal. Fiz meu aniversário, mas não era igual, porque eu não a tinha perto de mim. Vai fazer 18 anos que moro no mesmo lugar, com as mesmas pessoas. A gente conhece a rua inteira, é muito legal. Acho que morar no mesmo lugar desde que nasce, a gente aprende mais sobre a vida, conhece as pessoas mais profundamente. Eu gosto do lugar onde eu moro, não mudaria daqui não. Antes o bairro era horrível! Não era tudo asfaltado, antes... era tudo barro. Do lado da minha rua tem uma viela que dá pra ver a escola. Atrás da escola... era tudo cheio de esgoto. Pra andar tinha que passar por cima de tábuas, era horrível, fedorento. E aqui, onde é a escola, era tudo mato. Nada era asfaltado aqui, não tinham muitas casas que nem agora, hoje é uma por cima da outra. Essas ruas não tinham nome, ...há pouco tempo que puseram nome. Era muito difícil de você andar por aí. No sol, você fica coberto de pó, de poeira. Na chuva, cheio de lama. Então, era muito feio; hoje está mais bonito. A escola, principalmente, muito mudada. Quando tinha dez anos, não era de ficar saindo pra outros lugares, era sempre com o meu pai ou com a minha mãe. Com doze anos, comecei a conhecer outros lugares. Estranhava sair daqui pra ir para o bairro do lado, porque lá era um pouquinho diferente. Lá é mais movimentado, tem igreja, padaria, tem Doceira da Flor, que é ponto de encontro ali. Agora aqui no bairro não. 167
Eu era uma criança que adorava brincar de escolinha. Com cinco anos entrei na EMEI (Escola Municipal de Ensino Infantil). Era a maior alegria ficar brincando. Não fazia nada de lição. Como eu faço aniversário em julho, entrei na escola quando ia fazer 8 anos, na primeira série. Não entrei junto com todo mundo, foi estranho. Entrei mais ou menos em maio, quando todo mundo já estava acostumado com a escola. Lembro que foi meu pai que veio me trazer! Cheguei na sala e todo mundo tava conversando. Eu não conhecia ninguém! Não foi legal não. Lógico que você acostuma, mas acho que se eu tivesse entrado junto com todo mundo ia ser totalmente diferente. Sei lá, rolou um olhar estranho pra mim. Também... ...era muito estranho ver aquele monte de crianças correndo, querendo aprender a ler e a escrever, mas eu fui me acostumando. Foi quando eu conheci algumas pessoas. Uma única amiga está comigo até hoje, companheira mesmo, aquela coisa forte de amiga. Quando minha avó faleceu, ela estava comigo, foi dormir lá em casa; a gente fazia muita coisa junto. Quando tinha 10 anos queria fazer uma festa pra todo mundo, uma festança. Como na minha casa tinha um quintalzão, foi lá em casa. Fiz com uma prima que fazia aniversário no mesmo mês. Não gostei da idéia, não. Puro egoísmo da minha parte, porque eu queria uma festa só minha. Mas a gente dividiu e foi muito legal. Tinha um monte de gente, minhas amigas todas estavam lá. Foi aí (risos) que eu conheci um menino. Esse menino foi meu primeiro amor. Ele era meu vizinho. Era um garoto mó sem graça! 168
Foi muito besta! Eu olhei pra ele e me apaixonei; nunca vi isso, amor à primeira vista. Começamos a nos falar por cartinha. Pessoalmente a gente não se falava tão bem. Ele morava do lado de casa, mas era sempre por cartinha! Um mandava cartinha pro outro. Foi só namoro de criança mesmo. Eu lembro que ele subia no muro e cantava uma música dos Mamonas Assassinas. Ele sabia todas as músicas. Não tem nada a ver com música de amor, é tudo besteirol. Esse aniversário foi muito especial. Na hora de cortar o bolo lembrei da minha avó, mas a gente se divertiu muito, foi do jeito que eu queria. Minha mãe fez tudo do meu jeito, sempre foi assim, tudo do nosso jeito. Minha mãe e meu pai me criaram de um jeito de nunca prender a gente, né? Então, a gente sempre foi livre. Não de sempre fazer o que quiser, mas também, a gente sabe o que pode e o que não pode fazer. Com doze anos, todas as minhas amigas já tinham menstruado, menos eu. Pensava... ‘caramba, acho que pra mim não vai vir essa coisa não!’. Eu tava no sofá assistindo televisão e de repente uma sensação muito estranha, parecia que eu tava fazendo xixi na calça. Fui no banheiro. Quando vi, comecei a gritar: - Mãe, mãe, mãe! Foi horrível! - Tá saindo sangue de mim! Minha mãe me acalmou. Ela viu que tinha descido. Minha primeira menstruação! Falou:
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- Você compra um absorvente pra você usar, eu vou te ensinar. - Não vou lá não, manda o meu pai. Pedi por favor... Ele foi. Comprou um DESSE tamanho. Minha mãe me explicou tudo, foi uma sensação muito estranha. Eu tava passando de uma fase pra outra. Eu me senti mais aliviada, com um sentimento, assim, de mais experiência, não sei! De lá pra cá, meu pai pegava no meu pé: - Cuidado, cuidado pra não engravidar, cuidado!. Foi muito estranho. O ano de 2004 foi muito marcante... porque foi quando eu comecei a conquistar amizades. A gente formou um grupo de amigas, a gente se falava todo dia. Éramos em dez: eu, a Dedé, a Ka, a Adri, a Nô, a Bete, a Gigi, a Lê, a Ba e a Jô. Onde uma estava, todas estavam. Foi uma época de aprendizado. Nessa época a gente começou a trabalhar na biblioteca. Foram elas que me levaram pra lá. Lá que a gente ia falar, lá que a gente ia jogar conversa fora, lá que a gente chorava, lá que a gente falava de nossas decepções amorosas, lá a gente falava das brigas com nossos pais. Hoje, algumas continuam amigas, outras não. Umas pisaram na bola, outras me deixaram • • 18 anos, 20 histórias
muito chateada. Mas foi um ano que aprendi muita coisa. Lembro que tinha que fazer tudo para as minhas amigas e não é bem assim. Quando pisaram na bola comigo, eu pensei: ‘Vou parar de ser boba!’. Eu era muito boba; tudo que elas pediam pra mim, eu fazia. Foi uma coisa que ficou muito marcada na minha vida, tive momentos bons, muitos, mas também os tristes ficaram guardados, um dia vão sair. No ano seguinte, comecei a trabalhar com o tio da minha mãe. Foi um período de estabilidade, onde eu percebi ser alguém na vida e ter objetivos na vida; comecei a pensar no que seria bom e no que não seria pra mim Foi o ano em que eu viajei pela primeira vez sozinha. Minha tia, a mesma que falei lá atrás, tinha mudado para o Paraná e me convidou pra ir visitar ela. Meu pai estava doido de preocupação. Deu um pouco de medo, porque como eu tinha só 16 anos, dava o maior medo de me perder, descer em alguma parada e não encontrar o ônibus de volta, mas eu cheguei bem e me diverti pra caramba. Lá é muito lindo, ela mora em frente a um morrão. Tem dia que faz frio, tem dia que não. A gente ia pra balada... A igreja é enorme, parecia aquela de Aparecida do Norte, a catedral. É linda. E lá é um lugar calmo, não tem tanta violência, dá para viver tranqüilamente, para se divertir, fazer tudo o que você quiser. Eu tinha um amigo que morava do lado da minha casa, ainda mora aqui embaixo. Tudo, tudo, tudo, até menstruação eu contava pra ele. Era uma pessoa, um homem, que eu confiava muito. A gente sempre foi amigo e eu não o via como alguém 169
mais do que um amigo. E os meninos da minha rua falavam: - Beatriz, você tá afim dele! E eu respondia: - Que, ô, é meu irmão! Foi quando no ano passado, fui no casamento da irmã dele. O lugar lá era lindo. Há dois meses tinha terminado com outra pessoa, mas gostava dele ainda. Mas quando cheguei no casamento, eu o vi e achei ele lindo, não sei o que deu em mim, ele estava lindo! Ele tava de terno preto, com um negócio cinza! Eu não o via ali mais como um amigo, eu queria algo a mais com ele, que me fizesse feliz. Não sei o que deu no meu coração... ou eu ia atrás dele, ou não poderia mais ter ele do meu lado. Eu que cheguei nele. Lá era cheio de árvores e tinha um quiosque; a gente ficou debaixo do quiosque. Como ele sabia de tudo da minha vida, também sabia que eu gostava de outra pessoa. Ele falou: - Tem certeza? Você não gosta de outra pessoa? - Tenho! Sei que vou esquecer. Dia 14 de outubro, quando a gente ficou pela primeira vez,
Um amigo que virou um namorado. Meu dia hoje é acordar, agradecer a Deus por mais um dia de vida, arrumar a casa, ajudar meu pai no bar, porque meu pai tem um barzinho. Aí meu namorado vai lá em casa e fica comigo até a hora de ir trabalhar e eu fico lá, ajudando meu pai. Não estou mais trabalhando com meu tio. Quando eu termino de ajudar meu pai mais cedo, deito, fico ouvindo música. Adoro. À tarde, fico até umas 17 horas ajudando ele e depois, vou tomar banho para ir para a escola. Fiquei muito chateada esse ano, porque me separaram, não me colocaram junto com minhas amigas, caí com outra turma e não conhecia ninguém. Agora acho que foi bem melhor pra mim, porque meu mundo não podia ser só aquilo; eu tenho que conhecer mais pessoas, ver o que eles têm de bom e passar o que eu tenho de bom para eles também. Eu gosto disso. Esse ano estou no terceiro ano do Ensino Médio. Pretendo fazer uma faculdade de fisioterapia, que é uma área que eu gosto, porque eu gosto de esporte, de física, eu gosto de cuidar das pessoas, de cuidar bem direitinho, nos mínimos detalhes. Gosto muito mesmo. Eu estou muito feliz por estar participando da comemoração dos 18 anos do ECA.
foi muito emocionante. Todo mundo falava que a gente já tinha ficado, mas a gente nunca tinha ficado. Foi um momento, assim, único, nosso. Um momento que eu continuei sendo mais que amiga para ele. Foi uma amizade que virou namoro. Hoje, a gente está junto, muito feliz.
Acho que eu sou muito estudiosa, acho que tenho que ficar ligada no que está acontecendo, por que isso vai me ajudar no futuro. Sei que um dia que eu não fizer lição, isso pode, lá na frente, me atrapalhar, porque não vou ter atenção. Acho que a gente tem que viver a vida, aquele momento é único, cada dia é único na sua vida.
Foi uma coisa que aconteceu muito especial para mim, né?
São 24 horas pra fazer tudo o que você quer,
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porque aquele dia pode acabar! Acho que CEDECA Interlagos • •
eu aproveito bem a vida, saio muito com amigos que tenho hoje, sei definir cada uma, sei o que é bom e o que é ruim na minha vida. Minha escola é grande. Tem logo na entrada dois portões azuis. O muro, grafitaram há uns três anos atrás, a professora de artes fez um projeto pra cada um desenhar o que gosta e selecionou os melhores. Logo na entrada é o pátio, com outro portão, que é pra você ir para o estacionamento e outro para as quadras. Essa quadra foi muito importante pra mim. É muito engraçado, esqueci dessa parte na história. Antigamente eu queria ser jogadora de futebol. Na escola tinha vários interclasses. Eu sempre via na televisão meu time jogando e os meninos não achavam que eu sabia jogar, só porque eu era mulher. Falavam que eu ia chorar, se eu caísse, que eles iam me dar olé, maior preconceito. Comecei a jogar, até que a gente fez um time, eu fiz um time com as minhas amigas, o time União. Aí a escola começou a fazer campeonato feminino, porque antes não tinha campeonato feminino de futebol, ninguém jogava. Na sétima série, ninguém gostava da gente, porque acho que a gente era arrumadinha, sabe? Usava muito rosa... Então, todo mundo achava que a gente era paty, mas a gente não era chata. Um dia, o professor Fábio fez um cartaz e espalhou na escola. Estava escrito: ‘Vocês querem jogar futebol? Vamos lá com a gente’. A gente quis participar do Campeonato. Peguei um uniforme que eu tinha lá da rua, lavei e usamos. Ganhamos... Empatamos... Na final, tinha um mundaréu de gente lá na quadra. Se elas ganhassem, a decisão
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era nos pênaltis. Ia ser a maior decepção. E se a gente erra nos pênaltis? Não podiamos! Todo mundo torcendo para o terceiro ano, e contra a gente, que era da sétima. Todo mundo gritando: “Terceiro, terceiro, terceiro...!”.... Ganhamos! Nossa, a gente começou a gritar. Ninguém acreditava. Ganhamos vários campeonatos seguidos. Era bem legal. Então, eu sempre gostei de futebol. Meu sonho era ser jogadora de futebol, aparecer na televisão, ter muito dinheiro... mas foi sonho mesmo. Quando comecei a trabalhar parei de jogar futebol, porque eu não tinha tempo. O tempo que eu tinha eu queria descansar. Aí, fui perdendo aquela vontade de jogar direto, tal. Hoje em dia, eu gosto de praticar esporte. Eu acho que esporte é essencial na sua vida, faz bem saúde. Aí, quem seguiu meu ramo foi minha irmã. Minha irmã que joga futebol, agora. Ela tem um time lá da rua. É bem legal. Uma das salas da escola, a 5ª. B, é toda pichada. Os alunos não tem o que fazer, ficam escrevendo na cadeira, uns nem aí, outros xingando. Na escola tem também secretaria, diretoria, sala de informática, laboratório, biblioteca, sala de vídeo, banheiro dos professores, sala dos professores e o plantão de advertências e suspensão. Quando fica pra fora da sala, quando xinga o professor, quando briga na sala, quando não faz lição, quando desobedece o professor, quando senta na mesa... Normal. Vai pro plantão...
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Advertência e suspensão. E ouve um monte de coisa da diretora, que chama os pais. Olha, essa escola é meia doida. Uma coisa bacana que tem lá é o EJA (Educação de Jovens e Adultos). Acho legal que inventaram isso, porque tem muita gente que não tinha condição de estudar antigamente, tinha que trabalhar pra ajudar a sustentar a família; acho legal, porque ajuda um monte de gente que não teve oportunidade de estudar naquela época e hoje pode. Pra eles, na idade deles, são como indigente por não saberem ler, não saberem escrever. Eu acho legal que inventaram isso. Outra invenção boa que eles fizeram foi o CEU, um lugar onde muitas pessoas da comunidade podem jogar bola, fazer hidroginástica, piscina, tem um monte de coisas lá, aula de teatro... é bem legal pra comunidade isso. O time de futebol da minha irmã joga lá, é bem legal. Minha mãe... mesmo estudou pouquíssimo, não sei se foi só até a segunda ou terceira série. A família morava na Bahia, eram em muitos irmãos e ela teve que trabalhar com os pais. A casa deles ainda ficava muito longe da cidade, então só de pensar que tinha que dar uma caminhada, porque não tinha carro, não tinha nada pra chegar até a escola, eles acharam melhor parar de estudar. Já o meu pai... estudou até a quinta, eu acho. Mas aí já foi safadeza do meu pai, foi por safadeza. Porque pra minha avó, era tudo pro meu pai. Ele que me falou desse matão aí. Ele falava que aqui na quadra era um cemitério, o pessoal matava e enterrava aí atrás. Meu pai era muito preso. Minha avó era evangélica, 172
vivia no culto. Meu pai queria sair, queria chegar tarde. Ele parou de estudar, começou a fumar, aí... arranjou família, começou a trabalhar cedo também. Ele me fez cedo mesmo, foi com 17 anos, minha mãe tinha 21, 22. Então, meu pai se prendeu cedo, começou a namorar com minha mãe e se juntaram... Eu lembro que meu pai bebia muito, bebia pra caramba. Eu sofria muito porque meu pai bebia, porque meu pai chegava bêbado e enchia o saco da minha mãe. Eu lembro que uma vez teve uma briga danada lá em casa, foi minha tia que me contou, eu era bebezinho. Não tem aquele chão de cera, de cera vermelha? Minha mãe passou o dia todinho limpando a casa, passando cera na casa; tava fazendo feijão na panela de pressão. Eu era recémnascida e minha mãe já tinha me colocado no berço. Meu pai chegou bêbado, todo mal, começou a brigar com minha mãe. Minha mãe saiu correndo lá pra minha tia e me deixou sozinha lá, deitada no berço e o fogão com o feijão na pressão. Meu pai tava bêbado, bêbado, bêbado. Aí ele deitou do meu lado e ...o fogão lá, e o feijão lá.
CEDECA Interlagos • •
Minha mãe chorava na casa da minha tia:
Agora se eu falar com ele, ele me ouve e fala:
- Ele vai matar minha filha!
- ‘Tá bom, vai’ e pára.
Minha tia foi lá de madrugada e viu meu pai dormindo, tava abraçado comigo e a panela na cozinha tinha explodido, o chão todo sujo, mas meu pai me defendeu... E dormiu, eu também dormi. De manhã, minha tia veio e limpou a casa, me pegou e me levou pra casa dela pra minha mãe fazer alguma coisa para eu comer. Ele bebia. Eu era muito religiosa, ia muito pra igreja, católica. Eu não agüentava mais aquilo, estava muito depressiva. Notava que meu pai tava bebendo, e já começava a chorar. Meu pai tava lá no bar, eu ia atrás dele. Aí um dia numa missa, tava tendo uma muralha de pedidos. Nessa muralha eu...
Dia desses, meu namorado dormiu em casa e ele tava passando muito mal. Tínhamos que levar no hospital. O hospital mais próximo é no Icaraí, mas não faz atendimento de urgência. O Posto é só para marcar consulta, é a coisa mais básica que tem, pra fazer um exame. Então é longe pra gente e não fazem muita coisa. Tipo assim, se você quebrou um braço, mandam lá pro Grajaú, porque é no Grajaú que eles atendem tudo. Aí é mais tempo pra ir de um pra outro, entendeu? Pra chegar no hospital Grajaú são vinte e cinco minutos. Mas pra quem tá com o braço quebrado é uma eternidade! E no Posto de Saúde não tem tudo.
coloquei um bilhetinho pedindo pra que meu pai parasse de beber,
Levamos ele aqui no Hospital Grajaú, que é o mais perto.
porque minha mãe tava precisando muito, ela tava pedindo muito por isso. Eu tava vendo a hora que minha mãe ia morrer, de tanta decepção. Fiz o pedido e coloquei lá. Aí o padre ia lá e quebrava a muralha com os nossos pedidos. Depois de um mês, meu pai parou de beber. Eu agradeci a Deus. Meu pai parou de beber e até hoje ele não bebe, nunca mais encheu a cara.
Antigamente esse hospital era sujo, não tinha um bom atendimento,
Minha vida mudou totalmente. Meu pai me respeita. Se ele tá meio zumzum, eu já olho pra ele parar de tomar. Minha mãe ou minha irmã olham e ele já fala: - ‘O quê?’.
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hoje até tem senha pra você esperar. O problema é que eles demoram muito pra te atender, ainda mais com tantas pessoas passando mal. Demorou umas duas horas pra ele ser atendido. Tava passando mal, suando, com dor de cabeça, desmaiando, com sintoma de dengue, só faltava umas manchas vermelhas no corpo. A gente chegou lá, pegou a senha e esperou, esperou, esperou. Até desistir. Nessa hora ainda tava no número trinta e a dele era a sessenta e um. Saímos pra tentar em um posto novo que fizeram, depois de um abaixoassinado da comunidade. Lá foi rapidinho, ele passou na emergência e o atendimento foi super
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bom. Pegaram a pressão dele, viram que ele tava passando mal, chegou no médico, olhou pra ele e disse que era virose. Isso,... sem nem encostar nele, não viu nada e disse: - É uma virose, tem que tomar uma injeção. Quatro dias e se continuar assim, você volta aqui que pode ser dengue. Imagina, tomar uma injeção do nada e ainda depois de quatro dias ver que é dengue. Foi péssimo, esse médico, como ele é formado? Tinha que saber o que fazer, tocar, pra ver o que ele tinha, mandar fazer um exame de sangue. É claro que ele não melhorou nada. No outro dia, a gente teve que ir lá marcar uma consulta particular; fizeram exame de sangue, de urina, de tudo o que era exame. Depois de um tempo, descobriram que era uma virose mesmo, por causa do tempo, mas poderia se transformar em alguma coisa pior, como pneumonia. Tudo bem, tem senha hoje, mas os médicos não olham histórico, não dão atenção ao paciente. O médico fica sentado: - Ah, é uma virose, toma uma injeção. Quando eu ia no medico era quando jogava futebol, o atendimento na recepção não era bom, mas o médico mandava a gente fazer um exame, tirava Raio-X, era bem melhor do que o atendimento hoje. Acho até que o cidadão está correndo mais atrás de um objetivo, por exemplo, lá perto da minha casa não tem nenhum Posto de Saúde. O que eles estão fazendo? Passando um abaixo-assinado para mandar lá pro... como chama o cara que cuida disso daí? Pra fazer um Posto?
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Então, a gente tá querendo que faça um próximo da gente, porque os Postos ficam muito longe de onde muitas pessoas daqui moram. Antigamente tinha um lugar pra fazer isso, a Sede. Lá as pessoas se reuniam pra resolver coisas do bairro, bem antigamente. Hoje não tem mais isso. Essa Sede fica mais como um salão de festas, agora. Mas lá tem, de domingo, jiu-jitsu, antigamente tinha aula de axé (mas não tem mais), aula de ginástica, mas não tem mais isso. Agora é mais como um salão de festa mesmo, não é mais associação de bairro. Eu subia na viela da minha casa antigamente e era cheia de barro, de esgoto, de mato. Pra ir para a escola ou para ir pra algum lugar lá pra cima a gente passava por cima de tábuas. Acho que foi em 99, se não me engano, que o governo começou a asfaltar e arrumar. Nessa viela tem tipo uma área. O que fizeram nessa área vazia? Fizeram como se fosse uma pracinha de lazer, colocaram banquinho, plantaram umas árvores, aí ficou como um lugar de lazer mesmo, para brincar, pra não ficar saindo pra rua, que passa muito carro. Então, fica melhor para as crianças ficarem brincando, se divertindo lá. Essa praça aqui, é mais pro pessoal que mora aqui mesmo. É porque tem bastante criança aqui, então, eles ficam ali pra não ficar na rua, que passa muito carro. Nessa praça tinha os bancos, mas não tem mais, os vândalos de lá já quebraram. Tinham também umas árvores, mas não tem mais. É uma praça, só. Mas, não tem mais aquele esgoto. CEDECA Interlagos • •
Não tem nada. É tudo asfaltado. Brinquedo nunca teve também, eu acharia legal, se tivesse. Antigamente, tinha muitos casos de criança atropelada, mudou bastante coisa. Minha irmã já foi atropelada por uma moto. Ela deu umas três cambalhotas, caiu, machucou e o motoqueiro fugiu. Ela se machucou um pouco e levou alguns pontos. Lembro até hoje as cambalhotas que ela deu. Pra mim ela tinha morrido ali. Eu a vi dura no chão, sangrando na testa. Meu pai ficou doido, ele queria matar o motoqueiro, mas ele fugiu. A gente nunca mais ficou sabendo dele. Mas lá continua sendo essa pracinha, continua sendo. Na Vila Natal tem outra pracinha. No ano passado, todo o sábado a gente se reunia pra fazer música, banda de pagode, alguns grupos de axé iam dançar. Tem um negocinho de brinquedo, gangorra, coisa de criancinha, e lá também tem duas quadras de futsal. Lá é uma pracinha mesmo, onde a maioria se encontra lá pra praticar esporte. Aqui perto tem também um lugar que oferece cursos para jovens. Curso de panificação, datilografia, que agora virou de administração, tem também de costura e de serigrafia, que é tipo de desenho. Eu fiz um curso de desenho e um de panificação. É legal porque é de graça. Todos os moradores do bairro podem fazer esses cursos. É um incentivo, eu acho, um incentivo para os adolescentes não ficarem na rua, vendo o que não presta. É muito legal. Esse tipo de curso também rolava na escola. Antigamente, na escola tinha oficina, na semana cultural tinham várias coisas: tinha jardinagem, artesanato, panificação (que era • • 18 anos, 20 histórias
comida), arte, grafite, várias coisas, porque assim o aluno se interessava por aquilo, não ficava só naquela coisa de assistir aula, ver o professor falar, falar, falar, aprender, ou não aprender e pronto. Então eu acho que isso nunca devia ter acabado. Acho que está faltando é regra na escola, que parece que quem manda na escola não é a diretoria, são os alunos. No ensinamento, o professor chega na sala e começa a passar a lição na lousa. Passa a lição na lousa, explica, todo mundo falando e algumas pessoas querendo entender. Os professores não estão conseguindo botar ordem na sala, porque eu acho que... o número de alunos dentro de uma sala de aula tá muito grande. São quarenta e poucos alunos numa sala de aula! Na minha tem quarenta e dois! Claro que isso afeta muito o aprendizado. Como que um professor consegue dar aula pra quarenta e poucos alunos, com uns querendo ouvir e outros não? Eu acho que o máximo que deveria ter eram uns vinte e cinco alunos, porque assim ele ia dar conta de ensinar todos. Ontem eu fui na aula, porque tava chovendo. Foi assim, cheguei lá e a escola estava vazia. É assim, a noite é assim. No dia que está chovendo, ninguém vai. Até alguns professores, eles falam: - Eu vou parar de dar aula nessa escola, ela está sempre vazia! Então, o professor não está interessado se ele vai dar aula ou não, ele ganha o dele todo mês. Quem tem que estar interessado é a gente. Teve uma queda aprendizado no Brasil,
no
estudo
de
um dos piores no nível de educação. Então, 175
tá precisando de laboratório, então agora eles mandam ter mais aula de laboratório. Aí comecei a ter aula de laboratório, fazendo experiência de calor, temperatura. Tem que prestar atenção, porque depois a gente tem que fazer um relatório sobre isso. O professor fez a experiência, depois ele mostrou a experiência pra gente ver. Saio da escola às dez e quarenta e cinco. A gente faz uma média lá no bar da escola, a turminha fica conversando um pouco e depois desço eu e a menina que mora perto da minha casa. Não gosto de descer a noite sozinha. Porque, óh, porque assim: teve uma menina que mora perto da minha casa que foi estuprada. Só passa um guardinha lá na rua, mas não resolve nada! Então, foi de madrugada e o guardinha tava lá passando e não resolveu nada. Não tem segurança ali, não tem mesmo. Antigamente era ainda mais comum acontecer estupro. Aí, o que os moradores fizeram? Eles se ajuntaram e fecharam a viela. Aí não tem mais isso, por que quando vinha a polícia, eles fugiam pela viela por trás das casas, mas aí não teve mais. Agora também tem outro problema. Qualquer hora, tem gente usando droga na rua, todo mundo vê. Aqui na viela aqui de casa, aqui na pracinha, tem gente fumando droga na frente de todo mundo, ninguém liga. Aqui não tem segurança mesmo. Nadinha.
As vezes penso no que poderia mudar para melhorar. É porque assim, se houvesse segurança... por exemplo, hoje lá no meu bairro, o que está mais acontecendo são meninos novos roubando. Estão levando coisas roubadas pro bairro. Antigamente, o bairro onde moro era um lugar calmo, não tinha tanta polícia, sabe? Não tinha tanta coisa, como a gente vê hoje, droga vendendo na nossa frente, não tinha isso e hoje o que a gente mais vê é isso. Acho que o que está mais acontecendo no bairro, principalmente em frente à escola, são esses menininhos, usando drogas, roubando. Estão queimando a frente da escola, porque os pais que vêem, falam que a escola fica incentivando os alunos a estarem ali. Todos os pais passam ali, qualquer um vê gente naquele poste usando droga, é normal isso já! Criança de cinco anos passa ali e vê, é normal ali. Se tivesse segurança ia mudar muito, porque não ia ficar tão visível o que eles fazem. Não ia ser tão visível, ia mudar muito. Poderia mudar. Ter mais lugar pra gente praticar esporte, ter um hospital mais próximo da gente. Até tem um lugar aqui no bairro que poderia fazer isso. Poderia mudar mesmo. Porque é tudo longe da gente.
Bom, mas depois quando eu chego em casa, fica tranqüilo, espero meu namorado chegar, porque ele sempre passa lá em casa. A gente fica assistindo televisão, depois senta eu, meu pai, minha irmã (minha mãe já está dormindo), e ficamos conversando sobre como foi o dia, o que cada um fez, o que não fez...
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CEDECA Interlagos • •
Aqui longe, tudo é longe Hospital longe, Praça longe, A escola é perto, mas a educação esta longe... A segurança então... saiu correndo. Assim como esse negócio do ECA, da Constituição e da Convenção... Xi, tenho direito a tudo perto. Então o direito aqui esta longe.
“Sou gente, tenho direitos!”
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“
Mês de corrida encheção de saco daqueles carrinhos barulhentos. Tormento É, muita ferrari É, muitos roubos, É, muita polícia, E muitos ferrados Então, cada um que nem Jorge, jovem, menino, homem, negro, pobre, morador do morro, morador da v ila A polícia “confunde” Confunde com quem acha que roubou Confunde com quem acha pode roubar Confunde com S I mesmo Mês de corrida Plantam canteiro Embelezam o bairro Como bons vizinhos des te autódromo Vamos ver a corrida de Fórmula1, por traz dos muros esburacados. Como bons cidadãos Vamos ser parados pela polícia em silêncio Vamos vender cerveja no por tão Vamos tirar uns trocados E no dia seguinte novamente o trem lo tado. A corrida pela sobrev ivência continua
”
Nasci em julho de 90. Em Ilhéus, na Bahia.
Minha mãe deu-me o nome de Jorge.
N
ão sei bem o motivo não.
Lá morava com pai, mãe e um bocado de irmãos.
Tinha uns três anos de idade quando fui pra Ubatã, ou é, Ubata. Não sei. Em São Paulo eles falam Ubata. Minha mãe diz Ubatã, no meu RG tá Ubata. Pra mim não sei qual é o certo. Era um lugar legal onde a gente morava. Em frente tinha um cemitério. Era nesse cemitério que eu gostava muito de aprontar com meus amigos. Quando chegava a noite eu catava as caveiras, tipo, só as partes da cabeça e colocava lá em cima da tumba com duas velas no lugar do olho. Aí (risos) o pessoal que passava olhava de repente e assustava. Era legal. Eu me divertia bastante. Num sei se ainda existe, faz um tempão que eu não vou lá, mas na época que eu tava lá me diverti bastante. Não tem como esquecer. O caô era tipo bagunçar mesmo. Se divertir. Outra brincadeira era colocar uma meia preta com alguma coisa na ponta, no meio da rua e saia puxando a meia antes que o pessoal passasse. Brincadeira de criança mesmo. Lembro do futebol, dos amigos, gostava de • • 18 anos, 20 histórias
passear bastante, pra longe, pra todo lugar assim. Bagunça era o que eu mais fazia! Com 10 anos vim para São Paulo, junto de minha mãe e meus irmãos. De meu pai, não sei não. Ficou por lá e soube que viemos só depois, quando voltou de viagem. É que ele trabalhava viajando... Desse mesmo jeito demorado, Soubemos sua morte, anos depois, quando a mãe foi pra lá em visita. Meu irmão já morava em São Paulo, naquela época estava pra se casar. Nos chamou para ficar onde ele morava. Fomos. Ficando. Desde então. São quatro irmãos e duas irmãs. Incluindo eu. Envolvendo meu sobrinho e minha sobrinha, porque minha mãe cria eles desde pequenininho, então é considerado como irmão. São filhos do meu irmão. Os dois. A menina tem nove e o menino tem três anos.
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E moram com a minha mãe, junto comigo. A mãe deles sumiu. O que restou foi só o pai deles, meu irmão, que mora separado. Uma vez fui jogar água na minha cunhada e na minha irmã. Elas iam sair e não queriam deixar eu ir. Pensei, se eu não vou elas também não vão. Tinha uns 14 anos. Subi no banco e escorreguei, me machuquei. Fiquei uns dias em casa, vi que num ia sarar, fui pro hospital. Não sangrou, amassou o osso. Fui no médico, ele mandou lavar com água e sabão, sabão virgem. Das brincadeiras, essa deixou cicatriz. Hoje mora junto o total de cinco. Eu, minha mãe, meus dois sobrinhos e minha irmã. Os irmãos moram em outras casas. Quando a gente ainda morava junto era briga direto. Sou são paulino. Na minha casa só tem eu de são paulino. A maioria é corintiana. Quando tem jogo do São Paulo com Corinthians, não é que é uma rivalidade, mas sempre um zoa o outro. Eu tinha uma bandeira do São Paulo da hora, aí teve jogo do São Paulo contra o Corinthians e eu a coloquei no quarto do meu irmão, que é corintiano. Estiquei lá: SÃO PAULO. Ele veio e rasgou a bandeira toda de faca. Não vou fazer nada, né? Tô errado... mas ele é legal. Ele já tem uns 30, 35 anos. Graças a Deus, não tenho irmão que mora comigo, Os dois são casados e um separou. Agora tá sozinho. Nenhum mora comigo não, por que se eu morasse com um dos meus irmãos ia ser briga direto.
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Eu tenho um irmão que quer ser mais certo que todo mundo. Com ele acho que não ia me dar bem. Com os outros dois é bem diferente. Por exemplo, na minha casa, no meu quarto eu faço um monte de desenho, então você entra no meu quarto e não vê a cor da parede, você vê tudo colorido. São vários desenhos, então se ele morasse comigo com certeza não ia achar certo. Mas no meu quarto sou eu quem mando, ele é meio bagunçado, mas é da hora. Tem uns desenhos grandão, passei uns dois, três dias pra desenhar. Já na casa desse irmão é diferente, o quarto dele é bem arrumadinho, tudo organizado. Vou falar a verdade, eu acordo e a primeira coisa que faço é escovar os dentes e descer pra sala pra assistir TV, então nem arrumo minha cama (risos), minha mãe fica brava: - Jorge você tem que aprender a acordar e arrumar a cama. Mas, isso eu não faço. Sabe que, nem na FEBEM1 quando eu tava lá. Lá eu acordava e os caras já olhavam pra mim daquele jeito e eu lembrava que tinha que arrumar a cama, é... lá é diferente. A cama tem que amarrar o forro do colchão de um lado e do outro lado e depois aperta pra ver se ele fica reto. Se ele não ficar reto vai voltar. Então tem que deitar no colchão com força, pra ficar retinho assim e eu não tinha paciência pra essas coisas não. E se não ficasse... Aí eles mandam tirar o forro pra fazer a mesma coisa de novo e tentar deixar reto. 1 Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, em 2006 renomeada (Fundação Casa), responsável nesta época em executar em todo o Estado de São Paulo o atendimento de adolescentes em medida socioeducativa, a partir das diretrizes e as normas dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).
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Faz tempo que desenho, comecei a desenhar em 2003, tentava, tentava e aquilo não saia legal. Aí, outro dia tentando de novo, percebi que tava saindo alguma coisa... não igual, mas melhor que antes. Hoje, o que eu quero desenhar eu consigo, mais ou menos. Outro dia, fui na casa de um amigo assistir filme e na parede do quarto tinha um dragão. Pensei: - Ah vou tentar. Se ele pode fazer um assim eu também posso. É só querer. Fiz um mago e saiu grandão também. Legal. Toda vez que minha mãe entra no quarto, ela vê sempre um desenho diferente. Tem uns quatro ou cinco na parede. Como uma pessoa, que tem várias tatuagens, não é um em cima do outro, mas um do lado do outro assim, sempre coladinho. Aí dá outra visão, né? Eu gosto de desenhar bastante. Foi assim, um dia vi que conseguia. Minha ex-namorada tava mascando chiclete e veio uma tatuagem na embalagem. Você já viu aqueles chicletes que vem tatuagem? Veio um coração e um tribal. Ela fez a cópia do desenho e disse pra eu fazer. Achei que não ia conseguir. Disse que eu podia fazer outras partes, colocar mais coisa. Ela gostou e até guardou. Depois toda vez que eu olhava e via uns desenhos queria desenhar mais. Então começei a desenhar sempre, todos os dias queria desenhar, passava a noite desenhando. No meio de muita gente não consigo fazer. Só consigo desenhar bem sozinho, sem barulho, sem som ligado. Aí eu concentro no que eu tô fazendo, agora se tiver alguma criança do meu lado pode esquecer. Eu também tenho a capacidade de escrever uma música, • • 18 anos, 20 histórias
tipo funk, pagode, entendeu? Porque sempre que eu tô jogando bola, que eu tô junto com os amigos começo a cantar umas músicas que vão saindo da minha mente. Vou jogando uma linha em cima da outra, vejo que vai sair legal. Tem lá na Vila, um amigo que tá querendo fazer uma música junto comigo. Eu tenho duas. Só que eu não consegui gravar ainda, tá no meu caderno. Tenho uma que é pra um amigo meu que é finado agora, música em homenagem a ele. Saiu legal a música. Eu faço assim, não fico cantando pra gravar. Só faço e deixo ali mesmo. Pensei em ser um MC, só que eu fiquei pensando: ‘pra mim não vai ser legal ser um MC. Ficar cantando funk, funk não dá futuro a ninguém’. Dá futuro se for uma música mais saudável, porque tem uns tipos de funk que o pessoal fala só putaria, coisas de morte, essas coisas assim. Pra mim essas músicas aí não dão futuro. Dá futuro uma música mais decente, que fale do diaa-dia. Dar futuro quer dizer, futuro pra mim, não ganhar uma fama, mas ficar conhecido. Você ali ganhando a diferença. Ser MC não dá futuro pra mim, melhor trabalhar mesmo. Tava trabalhando, de feirante. Agora parei. Vendia fruta. No começo é chato, mas você vai acostumando e vai gostando. Trabalhei lá desde os dez anos de idade. Comecei com o patrão do meu irmão. Ele se tornou um grande amigo meu. Quando comecei a estudar, ele chegou em mim e perguntou: - Quando começarem suas aulas e a professora mandar a lista de materiais, você manda pra mim que eu vou comprar. Vixe, foi do nada assim, ele fazendo aquela amizade. Foi uma amizade que durou. Minha mãe não gosta dele, porque meu irmão trabalhou com 181
ele um bom tempo e queria que ele registrasse. Pra mim não é direito, feira registrar, feira é um bico que você tá fazendo normalmente. Quem registra é motorista, algo diferente, agora feirante trabalha em barraca. Com dez anos... já tem um tempo, hein? Quando comecei, não gostava muito não. Era assim: fazia uns negocinhos, entrava pra debaixo da banca e ia dormir. Às vezes eu gostava de ir pro CEASA com o motorista, ia todo sábado com ele. Eu deixava de ganhar dinheiro pra ir de caminhão pro CEASA2, por que lá é legal. São vários boxes, várias sessões: frutas, legumes e verduras, peixes, flores. Cada um tem seu lado, é bem legal. Você já ouviu falar do CEAGESP3? Lá é grandão. Eu gostava de ficar passeando sempre por ali, conhecendo as coisas. Sempre ia pra lá. Tinha um lugar que sempre ficavam os pombos. Eu ficava tacando coisa neles, aí sempre acertava em um ou em outro... gostava de ficar aprontando. Fazia de tudo, mas gostava mesmo de ir lá só pra andar mesmo. Quando a pessoa é pequena, conhece o CEASA e vai gostando, mas depois cresce... Na feira eu dormia e também ficava andando bastante. Aí o patrão sempre reclamava: - Jorge, você anda demais, isso não dá certo não. Ficava bravo. Mas fica só parado não dá não. Tem que se movimentar. Eu achava chato ficar parado e ia dormir. Minha mãe chegava em casa e eu só ouvia reclamação. Meu irmão contava pra ela e ela ficava brava: - Jorge você é um preguiçoso, sai de casa 2 Central de Abastecimento de Alimentos. 3 Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, mantém a maior rede pública de armazéns de São Paulo.
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cedo pra ir dormir debaixo da banca? Eu não sou bem chegado a ficar em feira não... Eu penso diferente, estudar fazer um curso, pra ter um trabalho melhor, registrado, por que ficar na feira não dá futuro pra ninguém. Dá pra quem é bom, mas pra quem não é... Ainda não tenho preferência de trabalho, mas se aparecesse um trabalho registrado eu ia gostar. Qualquer trabalho, eu não tenho preferência. Quando era pequeno ganhava, mas era pouco, criança não ganhava aquele dinheiro que os mais velhos ganhavam, eram tipo cinco reais. De pequeno gastava em doce, ia jogar fliperama, besteira, minha mãe sempre reclamava: - Você é besta, trabalha o dia inteiro pra ganhar um dinheiro e gastar em besteira. Você demora aquele tempo todo pra ganhar dinheiro e quando chega na sua mão, ele vai em menos de uma hora. Agora que cresci e desenvolvi bastante, às vezes que vou, é 40, 45 por dia. Não acho pouco, mas também não acho legal trabalhar em feira. Acorda muito cedo, sai cedo e não tem hora pra voltar, então isso é chato. O meu irmão mesmo sai as três e meia da manhã e volta as oito, nove horas da noite pra casa. A mulher dele sempre pensava besteira. Ele pegou raiva de feira também por causa disso aí. Ele até se separou um tempo da mulher dele por causa disso. Hoje eu guardo e deixo na mão da minha mãe. Mas eu deixo o dinheiro com ela e ela gasta! Ela chega em mim e fala:
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- Jorge, eu gastei tal e tal. Então, eu dou pra ela metade e deixo metade pra mim. Pelo menos, na hora que eu estiver precisando de alguma coisa, vou estar com o dinheiro guardado.
alguém que me conhecesse, lia meu nome e depois chegava e falava:
Na feira fico calado, não falo nada não.
Minha mãe ficou sabendo e disse que qualquer hora, eu ia arrumar alguma coisa para minha cabeça. Ela fica falando que algum macumbeiro vai saber, vai pegar meu nome ali e vai fazer uma praga ruim. Aí eu falo: - Credo mãe.
Só olhando eles gritarem, vou fazendo minhas coisas ali. Fico com vergonha. Ainda mais agora que apareceu essa ordem do Ka... Como é que é o nome dele mesmo? Vereador, prefeito, sei lá. Diz que não pode mais gritar nas feiras, mas não mudou nada, o pessoal não respeita essa ordem. Gritar na feira é um direito né? Tipo você tá gritando ali, tá querendo vender. Ali calado, naturalmente, você não vai vender nada. Então sempre tem os movimentos. Até hoje eu trabalho, não todo dia assim, mas eu sempre vou atrás de alguma coisa pra eu fazer. Gosto de mexer com graxa. Já quis ser mecânico, mas acho que eu não tenho aquela habilidade toda pra ser mecânico. Nunca mexi com isso, queria fazer um curso pra poder trabalhar de mecânico. Porque ia trabalhar pra mim e não para os outros. É legal tipo, trabalhar com kart. Uma vez trabalhei em um kart com um amigo, não fazia quase nada, mas sempre arranjava alguma coisa para fazer. Estava sempre ali passando graxa na roda do carro, mesmo quando não tava precisando, chegava em casa todo preto, sei lá, gosto de mexer com graxa, então eu queria ser mecânico. Já tive vontade de ter a oportunidade de sair grafitando na rua, fazer desenhos, livre. Tipo, a polícia vai passar e não vai embaçar. Com certeza, isso é o que eu queria para mim. A polícia pára, mas você explica direitinho... Queria ter a liberdade de sair por aí, grafitando. Antes, onde passava deixava meu nome, sempre desenhava alguma coisa, se passasse • • 18 anos, 20 histórias
- Jorge, você desenhou ou escreveu seu nome em tal lugar?
Parei de riscar meu nome em tudo quanto é lugar. Nunca mais fiquei assim, escrevendo meu nome à toa, mas eu gosto de desenhar. Tenho uma tatuagem no meu braço. Foi besteira. Veio da minha mente. Eu vi outra pessoa fazendo no próprio braço. Então eu quis fazer também. Acabou saindo essa merda no meu braço. Isso significa meu nome e o da minha mãe, a primeira letra é o “J” e segunda o “M”. Maricota e o Josué, inclusive esse M aqui, quando eu tava namorando com essa pessoa que eu falei pra você começava com M, o nome dela é Manoela, então quando eu mostrei pra ela. Ela falou pra mim: - Tira isso daí. - Não tem só você que tem o significado dessa letra, tem minha mãe. Como se diz: Só lamento, só lamento. Foi a mesma coisa que aconteceu com esse moleque. Ele tava pegando a menina, então, a letra que ele fez no braço dele tinha o significado do nome dessa menina e a mesma coisa com a mãe dele. Fiz pela minha mãe. Eu tinha, uns quinze anos. Só essa mesma. Ainda bem. Eu ia fazer uma por cima dessa, só que 183
eu ia fazer no estúdio. Ai depois eu pensei. Não, não vou não. Deixa quieto. Ia fazer uma outra coisa, mas que não fosse um nome, um desenho assim que não ia me arrepender depois. Uma coisa legal. Mas, eu preferi deixar quieto. Quando a polícia pega, embaça bastante. Eles embaçam porque eles pensam que é feito na cadeia, mas eu nunca fui pra cadeia. Fui eu quem fiz. Eu que quis fazer. Uma vez eles falaram: - Você tem tatuagem? aí eu pensei duas vezes, se eu falar que não ele ia pedir pra ver. Era melhor eu falar que sim. Ele olhou assim: - Você fez isso na cadeia, né?
Outra coisa que gosto muito é andar de bicicleta, mas também parei, porque minha bicicleta já era. Eu sempre gostava de ficar inventando alguma arte no meio da rua, gostava de ficar andando no meio dos carros. Eu e meu amigo sempre desafiávamos um ao outro, pra tirar racha. Aí a gente descia aquelas ladeiras ali, aonde vão os carros e saía cortando um ao outro, mó perigo. ficar
gosto de fazer alguma coisa que corre risco. Teve uma vez que a minha namorada tinha ido pra excursão da escola e fui buscá-la a noite lá. Eram nove e poucas da noite. Fui eu, esse amigo e mais uns três moleques de bicicleta. Chegando lá tinha um tiozinho saindo do mercado, ele tava com a arma aqui na cintura assim. Aí o moleque
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Quero... Viver de boa. Ter meu serviço, ter minha família,
- Não senhor, fiz porque eu quis, da minha vontade, nunca fui pra cadeia não. Ah melhor não mentir, né? Aí eles olham bem assim e marcam o nome.
Gosto de curtir adrenalina, desafiando, não sei nem como explicar,
olhou pra mim, fez sinal, eu olhei pra ele fiz sinal que também tinha visto. Fui lá e tentei tomar. Conforme tentei tomar, a minha mão escapou e ele segurou. Meu deus! Aí puxei rapidinho minha mão, sai correndo e o tiozinho correndo atrás de mim a pé. Carro passando e eu correndo. Quando eu cheguei lá em cima meu coração tava daquele jeito, batendo muito forte. Nunca mais eu vou fazer uma besteira dessa!. Foi há dois anos que aconteceu isso daí.
ter minha casa, ter meu carro, entendeu? Pra mim esse é meu sonho. E não ficar tirando coisas dos outros. Isso daí comigo nunca mais vai acontecer. Depois de quando eu fui preso nunca mais eu fiz esse tipo de besteira. Uns amigos às vezes ficam me perguntando. - E aí Jorge? Parou de cometer furtos? Eu fico quieto, não falo nada. Outro dia virei as costas e sai andando, sem falar nada. Sei lá, não vira. Não quero isso pra mim mais não, já era, ainda mais agora que vou fazer dezoito. Se fosse preso hoje, eles iam segurar até eu completar dezoito. Eu já sei como é que é, então, não quero fazer mais. É igual a droga. A droga quando eu queria experimentar, eu experimentei. Fiquei um tempo usando, só que eu depois já sabia como é que era, como deixa a pessoa. Já era, parei!. O cigarro mesmo, não queria fumar, aí, meu amigo disse que
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ia me ensinar a fumar, agora também parei. Já tô três meses sem fumar. Até minha mãe fica impressionada comigo. O meu irmão tava em casa nesse dia, tava louco de cachaça - ele bebe né? aí chegou louco de cachaça e começou a falar besteira pra mim: - Jorge, para de ficar usando droga. Ele não sabia que não tava mais usando. -Você quer dar conselho pra mim? Cê tem que parar com isso ai meu! Já parei com as drogas, agora você que tem que parar com isso aí. Minha mãe olhou pra mim: - Nossa, tudo que eu queria ouvir eu tô ouvindo agora. Melhor né? Já é um orgulho que eu to dando pra minha mãe. Eu fumava maconha. Só. Outros tipos de droga eu não usava porque eu ficava pensando que eu não sei se o meu corpo aceita aquela droga, entendeu? Tipo, a cocaína, vamos supor, eu vou usar aquilo dali e se meu corpo não se der bem com aquilo, dá overdose ou alguma coisa assim, acontece com muita gente. Dá overdose porque usa demais. Então eu nunca usei esse tipo de coisa. Só fumo maconha mesmo. Não devia existir né? Nem droga, nem cigarro, nem guerra. Sair das drogas, já consegui, parar com o cigarro também. Agora o que eu quero pra mim é ter uma vida melhor e eu sei que isso eu vou conseguir. Hoje moro com minha mãe e meus dois sobrinhos. Há quase quatro anos moro ali, de frente pro autódromo. Todo ano tem corrida. Não agüento mais a encheção de saco daqueles carrinhos barulhentos. É uma época que atormenta todos ali. É assim... Dia de corrida é dia que sai • • 18 anos, 20 histórias
muitos roubos, então você tá ali na rua, pode ser confundido com a pessoa que roubou. Então, sempre vem a polícia querer... Que nem no ano passado, eu tenho um amigo que o irmão dele fez um furto e ele tava com uma camiseta igual a do irmão. O polícia foi e prendeu ele. Então ficou dois dias na Febem. Era dia de treino, seguraram ele esses dois dias, até acabar a corrida. Quando foi no outro dia soltaram ele. Então pra mim, essa parte é perigosa, outras partes são legais, né? Você conhece outros tipos de pessoas. Tipo, os gringos que gostam de conversar mesmo, de chegar, trocar uma idéia. Comigo mesmo já aconteceu isso. Tipo: ‘Ô rapaiz!!’, na amizade, sem violência, sem querer dá voz de assalto essas coisas. Às vezes alguém vê uma gringo com bolsa e pensa: ‘Aquela ali deve ter dinheiro dentro daquela bolsa’. Então, vai chegar lá: “Isso aqui é um assalto, passa pra cá!”. E isso acontece. Todas as vezes que tem corrida no autódromo acontece. Não tem uma que dá pra falar que não teve um roubo. E tem vários polícias que ficam ali ao redor, mas, mesmo assim acontece. Comigo, graças a deus, nunca chegou a acontecer. Não quero que aconteça. Nessas épocas qualquer pessoa que ao olhar eles suspeitam, querem prender, pelo menos parar assim pra revistar. Isso é normal. Qualquer pessoa que a polícia suspeita, quer parar, qualquer um. É normal. Onde moro eles fecham a rua no dia da corrida. Então ali, dá pra você jogar bola, andar de bicicleta, que só passa só viatura. Dá pra brincar um pouco. Morei em vários bairros em São Paulo. Em todos eles sempre tive muitas amizades, porque eu era uma pessoa assim de aprontar
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bastante. Uma vez, eu e meu primo começamos a brincar de capoeira. Aí ele sem querer quebrou meu braço. E eu tinha um amigo que tinha uma bicicleta sem pneu, era só o aro da bicicleta e ainda era de plástico esse aro. Mesmo com o braço quebrado eu gostava de andar nessa bicicleta. Toda vez caia e batia o dedo. O gesso do braço já tava até furado. Aprontava bastante. Fiz várias amizades boas, amizades ruins também, porque você nunca sabe qual é a boa, qual é a ruim. Em um desses bairros, tinha uma menina. Uma menina muito bonita que eu passei a gostar. Aconteceu do nada. Foi acontecendo um olhar diferente e fui notando que ela tava gostando de mim. Sempre dava idéia nela, só que nunca tinha coragem de chegar nela e pedir pra ficar, mas teve um dia em 2006, que fiz uma pichação no meu quintal. Ela pedia pra apagar, dizia que tava feio. Pra mim tava fazendo a diferença no quintal. Aí ela começou a apagar, raspando com uma faca. Do nada foi nosso primeiro beijo. Beijo roubado. No outro dia eu perguntei pra ela se tinha gostado e ela respondeu que sim e deixou no ar que dependia de mim continuar. Namoramos dois meses e meio e depois ela decidiu parar de falar comigo de uma hora pra outra, mas dá pra ver nos olhos dela... Uma pena. Minha ex namorada. Tem uns quatro meses já, quando ouve minha voz desliga. Não sei se ainda guarda o desenho que fiz. Foi nesse mesmo bairro... ..que me ofereceram droga pela primeira vez, era novato lá, tinha uns doze anos. Chegava, cumprimentava e aos poucos comecei a conhecer o pessoal de lá. Nunca tinha experimentado. Lembro que no dia, fui contar pra um menino que tinha 186
acabado de comprar uma camisa do São Paulo. Ele tava fumando maconha e perguntou pra mim se queria. Olhei. Fiquei pensando... Disse não. Morei nesse lugar por um tempo, lá jogava bola e reunia os amigos. Hoje ainda vou lá, só que na quadra não gosto muito de jogar, porque é um lugar onde acontece muita coisa ruim. Tipo morte, é onde tem os pontos de droga, então, eu fico mais distante, né? Aí, evito mais coisa. Na época que morava lá, acontecia bastante morte. Se tinha muita movimentação de gente. Ia ver. Era morte. Sempre acontecia isso. Muitos casos de morte, essas coisas. As mortes eram... Ah, normal, tiro, nada além de tiro mesmo. A maioria. Foi um ano que fiquei morando lá. Nesse ano, muitas mortes. Se for pra pensar num número vai dar na base de uns quinze. A maioria eram amigos meus que faziam parte do crime... Você sabe que essa coisa de crime, sempre acontece uma besteira. Pra sobreviver no crime, tem que fazer tudo certo, né? Então se faz coisa errada e o pessoal vê, não gosta, vai querer cobrar de um jeito ou de outro. Vamos supor, se eu tô na favela, passa uma mulher casada e eu olho, mexo, não é um negócio certo. Então, pra eles ali sempre tem um jeito de resolver. Ou batendo ou matando. Várias vezes já vi isso. Por mulher. Tem outros motivos também. Vamo supor, tipo, X9 que é uma pessoa que viu uma coisa ali, viu alguém fazer alguma CEDECA Interlagos • •
coisa. Então, fica só pra mim aquilo que vi, mas o x9 sai espalhando pra outras pessoas. Então, tá fazendo um bagulho que não é certo. Espalhando um negócio que outro fez e ninguém deveria saber. Isso é X9. Hoje lá tá sossegado, não tem mais esses negócios de morte. A coisa mudou. Ainda tem outro. Um outro bairro que morei. Lá as mortes que eu lembro eram com estupro. Essas coisas. Depois mudei, de onde moro hoje dá pra ver onde morava... Aqui é bacana, por exemplo, tem um lugar pra você praticar um esporte. Tem o campo, tem a quadra, tem boas amizades. Mas onde moro hoje é o lugar onde vi acontecer mais morte. A única diferença mesmo de todos bairros que morei, é essa, o tipo de morte. Da escola lembro bem... Muitas histórias que me marcaram. Tem uma de quando estava na terceira série e tinha uns doze, treze anos de idade. Era fim de ano. Foi numa época que estava faltando muito nas aulas. Faltava e depois de um tempo voltava. Ia muito pra represa, nadar. Aí depois de um desses períodos de faltas, chegou o dia normal de ir pra escola na segundafeira. E fui. Logo na porta de entrada da escola, encontrei uma de minhas professoras. Ela olhou pra mim e falou: - Nossa! Aluno novo! E respondi: - Aluno novo. Neste mesmo momento ficou nervosa
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comigo. Fui direto pra sala. Ficou ainda mais nervosa. Começamos a brigar, com palavras. E ela, cada vez mais nervosa. Começou a correr atrás de mim no corredor da escola... Eu corri. Corri pra lá, corri pra cá. Até a hora que ela me pegou... me arranhou e rasgou minha camiseta. Aí eu fiquei nervoso. Derrubei ela da escada onde estávamos. É, só foi ficando pior, né? Ela era uma pessoa que parecia que não tinha Deus no coração. Ela é crente, entendeu? Só que ela era uma crente bem estressada, ela não tinha paciência pra conversar. Então, qualquer palavra a mais, deixaria ela nervosa. Ví que ela tava nervosa quando começou a falar alto comigo. Falava que eu não prestava, que ia mandar a diretora me expulsar da escola e várias outras coisas..., então comecei a discutir com ela. Eu já tava nervoso também, por ela ter falado que eu era aluno novo, sabendo que eu tava freqüentando a escola. Eu era mesmo desses alunos que faltava bastante. Eu fingia que ia pra escola, mas ia lá bagunçar. Cabulava aula, ia pra represa... Ai, então pra ela eu era “aluno novo”. Eu fui ficando cada vez mais bagunceiro. Levei três suspensões só nesta vez. Minha mãe teve que comparecer na escola. Normalmente minha mãe já ia direto na escola. Aliás, parece que ela amanhecia na escola. Ia direto, ...24 horas ela tinha que tá lá. Eu bagunçava hoje ela tinha que ir amanhã. Bagunçava no outro dia, tinha que ir no dia seguinte. Pra mim não tinha dia pra bagunçar. Todo dia era dia de bagunça. Bagunça que nem 187
todo mundo agüentava, mas acabava tendo que suportar. Esse dia foi o dia mais bagunceiro que eu tive. Eu derrubei a professora da escada... Nunca cheguei a conversar com ela depois. Passado um tempo ela encontrou comigo na feira. Eu cumprimentei, mas ela mal olhou pra mim e começou a me xingar. Nesse dia, a diretora, falou pra mim que ia me... levar pro Conselho Tutelar! Então eu fiquei com medo, comecei a chorar, só que não fui. Ela ter falado isso não me tocou em nada, não resolveu nada, não mudou nada, porque eu continuei vivendo na mesma bagunça e nunca cheguei a ir pro Conselho Tutelar. Fiquei com medo porque imaginei que a qualquer hora que eu tivesse na minha casa a polícia poderia chegar com ordem de prisão e me levar, né? Então eu fiquei com medo. Fiquei com medo porque eu nunca tinha ido pra Febem. Já tinha ouvido falar no Conselho Tutelar, mas nunca cheguei a ir nesse lugar. Minha mãe e as professoras sempre falavam nisso daí, Conselho Tutelar. Só que pra mim eu pensava só que era uma grande bobeira, porque quando eu bagunçava, era: - Se você continuar bagunçando eu vou pedir pra diretora te levar pro conselho tutelar. Ou: - Vou chamar a polícia aqui pra te levar pro conselho tutelar. 188
Eles sempre falavam, mas nunca aconteceu. Sempre falavam. Então aquilo ficou gravado na minha mente. No Conselho Tutelar nunca fui, não sei como é, então de noite, às vezes, nem conseguia dormir pensando nesse negócio. Eu chegava da escola, mas não ficava em casa, sempre arrumava desculpa pra sair. Ia jogar bola, ficava até a noite fora de casa, com medo de eles chegarem lá a qualquer hora. Com medo deles me levarem pra FEBEM. Então eu chegava da escola lá pelas três horas, comia um pouco, tirava a roupa da escola e ia pra rua. Minha mãe sempre falava a mesma coisa, ela colocava medo: - Jorge, o conselho tutelar vai vir te buscar se você não tiver freqüentando a escola. Se você tiver fazendo alguma coisa de errado na escola eles vem te pegar. Pra mim o conselho tutelar é uma escola diferente das outras. Os professores dão aula igual e tem que ir o dia todo. Também conversam com a sua família. Se eu fosse, veria a minha família bem menos, estilo a Febem, ia ver minha família bem pouco e por pouco tempo, não veria no dia a dia. Por isso que não queria ir. Tinha medo, né? De isso acontecer comigo alguma vez. Só que nunca chegou a acontecer. E até hoje eu bagunço na escola. Na sexta-feira, eu tava entrando pra escola, a coordenadora falou: - Jorge, você vai pra sala, mais tarde eu quero conversar com você, na hora da saída. Perguntei sobre o que ela queria falar comigo e ela disse:
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- Sobre você mesmo. Depois, chegando lá na secretaria, recebi a reclamação, falando que alguma pessoa da sala reclamou de mim pra ela, falou que eu não fazia nada e só ficava andando na classe. Isso é mentira. Fui mudando. O tempo foi passando, eu fui mudando, deixando de ser brigão, mas ainda sou muito bagunceiro. Bagunça é igual briga, mexer com outras pessoas, mas não fora do respeito, tirar não. Tipo coloca apelido, a pessoa fica nervosa, aí vai perdendo a linha, né? Ai o meu jeito é isso aí, sempre zoando. Pra mim bagunçar é, ficar dentro da sala, sempre procurando um assunto ali pra você debater com uma pessoa. Então, é o que eu gosto de fazer, tipo, não provocar, mas sempre arrumando alguma coisa pra você fazer, tipo, debater com o aluno ali, mas sem brigar essas coisas. Ai vê que ta perdendo a linha o melhor é parar. Eu penso assim. Entre as escolas que estudei, a de hoje é a melhor. Os professores, os monitores, os funcionários, todos gostavam de mim bastante. Gostavam não, ainda gostam, ainda estudo lá. Conversam com todo mundo, sempre tem uma idéia pra trocar. Tem outra história, também da escola! Foi em um dia que cheguei na escola e na entrada eu encontrei um aluno, com uma revista na mão... Peguei essa revista e comecei a zoar. Dei uma batidinha na cabeça das meninas, dos moleques. Só que numa dessas, bati num moleque que levou a sério e veio pra cima de mim. Na hora, começamos a brigar, um caiu em cima do outro e foi a maior pancadaria! Fizemos da escola um ringue. Aquela foi das maiores encrencas. Com o tempo fui fazendo • • 18 anos, 20 histórias
amizade e hoje nós somos colegas. Quando morava em Ilhéus não cheguei a estudar direito. Lá fiz a 2ª e a 3ª série. Aqui em São Paulo, comecei a estudar por volta de uns 13 anos de idade. Na escola, a única coisa que eu acho ruim são os policias de lá, são muito folgados mesmo. Você não pode bater o pé forte no chão que eles querem xingar, sempre querem esculachar. Esperam a gente sair pra vir falar coisa. Numa dessas, eu acabei quase indo preso. Foi uma vez no horário de saída da escola, eu fazia supletivo. Eu fiquei bagunçando com os meus colegas, na porta da escola, enquanto esperava minha prima, que não tinha saído ainda. Quando ela chegou, eu tava indo embora, os polícias entraram no carro, esperaram eu me distanciar um pouco da escola, ...me encontraram na caminhada e começaram a me agredir, a me bater, falaram que iam nos levar presos, que iam nos levar pra viatura. Só que nessa vez num aconteceu nada. Só em outra. Essa manhã fui por o desodorante que ganhei da minha prima. Pensei: “Esse desodorante parece o da FEBEM”. Fiquei lembrando daquele cheiro, quando terminava de tomar banho, eles davam o desodorante. Pensei: ‘ Vou abandonar, né?’. Não é ruim o que ela me deu, mas não gosto de lembrar daquele tempo. Aí a mesma coisa veio na minha mente: ‘Acho que vou voltar pra lá’. Volto a pensar: ‘Não, o que é isso? É demais!’ São dias que não saem nunca mais da mente... 189
Lembro exatamente, era julho, pouco tempo depois do meu aniversário... Brás. Pensava nas rebeliões. Fiquei pensando sei lá se devo me envolver com essas pessoas. Cheguei. Assustado. O funcionário falou: - Você não precisa ficar assustado porque aqui não tem nada disso, de rebelião, pancada, essas coisas. Aí me aliviei mais né? No meu pensamento havia aqueles negócio de rebelião, mas depois foi normal. Depois aprendi, lá é tipo, dominado pelos funcionários. São eles que mandam, enquanto outras são os presidiários que mandam. Os funcionários do Brás são diferentes dos outros. Ao menos eu acho que é assim. Já vi muitos falando. Lá o quarto cabia mais ou menos seis pessoas. Cada um tinha sua cama, mas é chato. Você não confia em ninguém, não sabe quem é quem. Como na cadeia mesmo, o pessoal que saiu da cadeia, veio pra mim e falou:
lá eles cortaram meu cabelo, ficou feio... Fui pra UIP. Fiquei lá quase um mês e meio. Agora tudo legal pra mim, mas eu ainda tenho certas lembranças de lá... Tipo os funcionários de lá são muitos folgados. Qualquer coisa eles dão de cabeça na parede. Cabeça na parede é assim, eles, tem uma risca lá, tipo no meio do corredor. Paralela a parede, mas afastada. Aí mandam você por o pé nessa risca e encostar a cabeça na parede. Dói bastante. Aconteceu isso comigo, só que daquela vez eu não tinha feito nada. Cheguei até a conversar: “Olha eu não fiz nada disso,o senhor pegou a pessoa errada”. Ele tirou sarro. Era assim. Não podia conversar dentro do quarto. Não podia Conversar só se fosse na quadra quando fosse jogar bola. E o que eu mais fazia era conversar. Só que eu nunca cheguei a apanhar. Teve uma vez que eu tava dormindo. Tava passando jogo do São Paulo com o Palmeiras. Eu queria assistir, mas eles num deixavam, falavam: - Dez e meia, é horário de ir pra cama.
- Na cadeia você tem que dormir com um olho aberto e outro fechado.
Insisti:
Os funcionários ficavam no corredor sempre vigiando os quartos.
- Aqui não pode
Em um lugar eu fiquei por dois dias. No final dos dois dias, o funcionário de lá deu nossa roupa. Eu pensei que ia embora. Fiquei até alegre. Eu fiquei pensando, nossa eu vou embora sem ter audiência. Nada disso. Era pro pessoal que ia ser transferido. Eu era um deles, fui transferido,
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- Faça o favor, senhor. Deixa eu assistir esse jogo. Deu meia noite, os moleques estavam bagunçando no quarto. O funcionário foi lá e disse pra eles: - Ó, eu vou colocar quem ta conversando de cabeça na parede. Vai ficar até o outro dia. Eu fiquei só observando, só ouvindo. Aí ele chegou no quarto e perguntou: - Quem aí tava conversando? e ninguém falou. CEDECA Interlagos • •
- Então já que ninguém falou. Ele colocou todo mundo na parede. Isso era uma meia noite. Quando deu mais ou menos quatro horas da manhã que eu levantei pra ir no banheiro, eu perguntei pro funcionário – que horas são?
ela não quis. Então mandei pelo Sedex, demorou cinco dias e no final de tudo eu cheguei primeiro que a carta. Lá fui na escola também e aprendi algumas coisas. Tinha até uma mulher lá, uma professora que disse que me conhecia de algum lugar. Falei pra ela:
- Quatro horas. Eu levantei e o pessoal ainda tava lá, de cabeça na parede. Por quatro horas.
- Será que eu fiz algum furto na senhora e a senhora lembra de mim?
A testa dos moleques estavam toda vermelha.
Ela não sabia. Eu disse que era melhor ficar por isso mesmo.
Foi horrível esse dia. O pessoal sai de lá revoltado. Eu saí e nunca mais, num pretendo voltar não. Lembrei também dos melhores momentos lá, jogando futebol, vira e mexe eu conversava com uns amigos lá dentro. Porque muitos lá parecia ser uma amizade boa. Mas não que valesse, entendeu? A minha primeira visita foi da minha mãe e da minha prima. Marcou. Eu não tava preparado pra receber essas visitas.
Eu não era bem acostumado a fazer isso aí. Eu ia, pra ver como que era, mas eu nunca pratiquei. Foram só três vezes. Furtos. Na terceira, fui pego. Nunca mais. Eu sempre fui atrás de novas amizades. Foram dois meses que marcaram, então eu sempre tava desenhando alguma coisa diferente pra deixar ali na lembrança. A escola aqui fora é grande. E lá é uma salinha. Tipo, com uns sete alunos.
Quando vi minha mãe começou a cair lágrima... dela ... e de mim... Ela olhava pra mim e começava a chorar. Foi dando aquela dor no meu coração. Aos poucos fomos conversando e ela sempre perguntando porque que eu tinha feito aquilo, porque que eu cometi aquele erro. Eu respondia:
Lá a gente ficava sempre assistindo televisão na sala, ficavam várias pessoas ali. Pra ir no banheiro tinha que pedir licença. Tipo: “Dra. Joana, posso ir no banheiro?’. Aí a senhora falava ‘Sim’.
- Sei lá, fazer o quê? Dizia apenas que não ia mais acontecer. E ela olhava pra mim assim e começava a chorar.
E sempre com a mão pra trás.
Foi dando aquela dor no meu coração. Passando o tempo ela fez outra visita com minha prima. Nessa eu tinha escrito uma carta, pra minha ex - namorada, pra minha mãe entregar, mas
• • 18 anos, 20 histórias
Se eu passasse pela senhora eu tinha que pedir ‘licença’. Na volta, licença. Eu andava com a mão pra trás, mas se tirasse a mão de trás, aí era diferente, eles agrediam com as palavras... Ordens. A minha saída foi cansativa. Foi bom porque, na minha audiência, o advogado chegou em mim e falou que eu ia embora. Fiquei alegre. 191
Lá no Fórum onde eu estava, tinham umas meninas, então a polícia começou a dizer: - Ó, os meninos vão ficar desse lado e as meninas desse. Nenhum dos meninos eu quero olhando pra trás. Então eu preferia não olhar. Na minha audiência, a conversa com o juiz não foi boa, mas também não foi ruim. Ele fazia várias perguntas pra mim, perguntas que eu não sabia responder. Sai pra rua com a roupa da Febem no corpo. Já tava liberado. Então, tinha que voltar lá na Febem pra buscar minha roupa. Foi cansativo. Eu deixei até coisas minhas que não deveria deixar... O meu relógio... Queria ir buscar, mas eles não deixaram. Eles falaram que se eu subisse lá em cima pra dar tchau, cumprimentar meus amigos, ia sujar pra eles. Isso aí não achei certo. Um dia, depois que saí, eu tava subindo a escada, com óculos escuros, e tinha um policial no terreno. Eu nem tinha nem visto ele vindo na direção contrária. Eu descendo, ele subindo. Quando passou perto, aí que vi e percebi que ele olhou pra mim diferente. Pensei: “Nem vou ligar.” Aí chegando em casa, sentei na minha porta, com um vizinho e a filha dele. Não sei onde ele foi, só sei que voltou logo depois. Ele me parou. Parou não, porque eu já tava parado, mas desceu da viatura, mandou eu ficar na parede e falou que não ia apontar a arma. Na parede eu fiquei olhando pros lados e ele olhou pra mim e falou:
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- É pra você mesmo!. Fiquei lá na parede, ele começou a falar um monte de coisa que não tinha nada a ver. E eu nem conhecia ele, nunca tinha visto. Ele disse que eu fiquei olhando pra ele no terreno. Pra mim num aconteceu nada disso. Um outro dia, tava na padaria, tinha acabado de chegar no serviço. Passei na padaria pra comprar pão. Não tinha visto que era ele, só quando passou do meu lado, olhou pra mim e fez sinal com as duas mãos, como dizendo: “Depois conversamos”. Conforme ele fez, eu mostrei o dedo pra ele. Ele ficou bravo, desceu e começou a falar isso e aquilo, um monte de coisa. Disse que ia me prender. Ia falar o que? Ficar quieto e responder: “ Isso mesmo senhor”?? Foi nesse dia que começou. Eu contei pra minha mãe, ela falou pra eu ir dar queixa lá na corregedoria. Se ele for pra corregedoria ele vai perder a farda e vai me cobrar. É pior. Eu achei melhor não, porque eu desacatei ele. É, mas ele já tinha me desacatado também, me xingou de alguns nomes lá que eu não gostei. Faz tempo, mas sempre que ele me vê, ele fala alguma coisa, diz que vai me pegar quando fizer 18 anos. Falou que ia me prender, ia me bater, falou que qualquer dia se ele me pegasse distante da minha casa, ele ia me matar. Ah, sei lá, esse tipo de pressão. Melhor deixar como tá mesmo... Porque eu tô limpo, mas se for acontecer, que aconteça.
CEDECA Interlagos • •
Muita fé em Deus que eu sei que ele não vai me prender.
• • 18 anos, 20 histórias
193
Ouvir desaforo calado? Isso demorou a aprender Gostava de bincadeira, dessas de provocação com amigo. Sujeito da paz, esse rapaz. Mas se o papo era briga. Nunca ouvia calado nenhum tipo de humilhação e podia ser quem fosse não ouvia xingamento em vão. Até que outro dia O cabra fardado, cintura carregada desaforo e bofetada A resposta: - Sim senhor. Agora, você leitor inteligente me diga, segurança pública para qual público?
“Sou gente, tenho direitos!”
194
CEDECA Interlagos • •
“
Não sei. Faz tempo Foi ontem Vai ser daqui a pouco
O tempo da gente É de gente Relógio de carne e osso Ponteiro de memórias Tic-tac de cheiros, lembranças e his tórias Tic-tac de gos tos, palav ras e imagens
O tempo da gente É de gente Tem cor e intensidade Tem tris teza ou saudade Tem amor ou brincadeira Tem violão e videogame
O seu olhar la fora O seu olhar no céu O seu olhar demora O seu olhar no meu O seu olhar. Seu olhar melhora. Melhora o meu (Paulo Tatit / Arnaldo Antunes)
Sei não. Faz tempo Foi ontem Vai ser daqui a pouco
”
O meu nome inteiro é Maria Laissa. Só isso. Depois dos dezesseis eu tinha quinze anos.
N
ão sei.
nada.
Depois dos treze,
eu tinha doze anos, depois dos doze, onze, depois do onze, dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, zero. Nasci em julho de dois mil e oito. Faz tempo.
Só os meus irmãos ficavam brincando. Eu ficava assistindo TV no quarto da minha avó lá em cima. Ficava assistindo Raul Gil, Eliana e Celso Portioli e Passa ou Repassa. Só meus irmãos brincavam. Eu não brincava de nada. Brincavam de pega-pega, esconde-esconde e andavam de bicicleta. Eu ficava olhando eles brincando. Não gosto de brincar. Até os dezessete anos tava morando lá e
Quinta-feira fiz dezoito anos.
ficava
Não comemorei nada, só fiz o aniversário só. Fiquei em casa. Não lembro de outro aniversário. Com dois anos, morava na Vila com minha mãe perto da minha avó e ficava visitando ela todos os dias. A minha avó ficava varrendo o quintal toda hora. Toquei violão e a minha mãe até tirou foto de mim tocando. Tinha dois anos, mas agora eu nem sei mais tocar. Sabia. Só tocava, sem cantar. No quintal da minha vó eu não brincava de 196
estudando
na
Escola
Pastor
Eduardo. É uma escola grande. Eu não lembro qual foi a escola que eu estudei. Tinha sala, banco, cadeira. Sei não. Não sei! Estudava lá com uns amigos. Não sei o nome deles. CEDECA Interlagos • •
Não sei o nome dos professores.
Eu conheço bastante gente.
Não conheço nenhum professor.
Com meus amigos,
Tem uma professora que eu conheço.
só que não conheço ninguém lá.
Não sei o que fazia na escola.
Lá ficava fazendo um monte de coisa,
Também gostava de fazer lição.
só que agora não sei o que fazia.
Lembro de um dia de festa de final de ano com meus amigos.
Faz tempo isso. Não sei quantos anos tinha.
Ensaiamos música e fizemos uma apresentação com desfile de moda. A música era a do Tarzan.
Depois saí da escola. Não lembro quando. Estudei no CIEJA2, que fica longe. Lá tem computador e eu gosto.
Lembro da festa junina!
Ainda não parei de ir no CIEJA.
Eu, de sandália e com o vestido que era da minha mãe, que agora é meu. A professora Gabriela também tava lá. Ela ensinava um monte de coisa e eu fazia lição no meu caderno sozinha. Ela ensinou matemática e lição de números. Eu gostava. A classe tinha muitas pessoas. Na classe a gente faz um monte de coisa. Depois eu ia ao cinema assistir filme do Nemo.
Continuo, mas ainda não tem nenhuma vaga pra mim. Hoje estudo na ONG. Trabalho lá também. Eu não queria trabalhar não. Queria ficar em casa. Eu não gosto de trabalhar.
Eu gostava da minha professora Gabriela.
E moro no Jardim Esperança, Rua do João, número 436.
Todos os dias ela dava lição de matemática. Ainda não sei ver número. Depois da escola, meu pai vinha me buscar de moto.
Com meu avô, minha avó, minha mãe e meus irmãos e ainda minha prima. Eles chegam todos os dias a noite de perua da escola.
Ele falava toda hora pra eu por o capacete.
Vi minha mãe grávida.
Eu ando sem capacete. Nunca caí.
Quem tava na barriga da minha mãe era o João.
Eu não gosto de pôr capacete.
Minha mãe não contou nenhuma história dele pra mim.
É ruim. É ruim. Estudei também na LACE 1. Conheci alguns amigos. Estudava nas duas escolas. Estudei bastante lá. 1
Minha mãe
Núcleo de Ações para a Cidadania na
Diversidade • • 18 anos, 20 histórias
2
Centro Integrado de educação de Jovens e
Adultos
197
trabalha sozinha, com os amigos dela.
Queria mas, não tem não.
Não sei do que minha mãe trabalha.
Não tem árvores, só poste.
Sei que ela pega o ônibus toda hora para ir trabalhar.
Pra vir estudar pego um ônibus de cada vez.
E quando ela desce no ponto, ela vai direto pro elevador e desce no 3º andar e é lá o trabalho dela. Meu vô conserta carro. Minha irmã, meus irmãos e minha prima estudam.
Moro perto da casa da Samanta. Nunca fiquei doente. E onde moro não tem posto de saúde. Antes morava em outro lugar.
Meu tio trabalha no trabalho dele e só chega de noite pra tomar banho.
Ficava lá com minha prima.
Eu só vejo minha mãe à noite , quando ela chega do trabalho. Quando está passando Os mutantes.
Também não sei se ela é menor que eu.
Gosto dos meus irmãos, mas não gosto de brincar com eles não. Não brinco de nada não. Meus irmãos brincam. Eu assisto TV. Gosto também de ouvir música do CD. No meu quarto tem um rádio da minha mãe. Sempre ligo. Toda hora. Fico muito no meu quarto. Lá tem minha cama em cima e em baixo a do meu irmão. Tenho meu rádio e um chapéu que fica na beliche. Quando faz frio tapo o buraco da janela com uma tabua verde. Lá também faço palavras cruzadas. Já meu bairro... Não tem escola. Não tem praça. 198
Até chegar no ponto de ônibus demora, eu até fico cansada.
Eu não sei se ela é maior. Eu não brincava de nada, ela brincava sozinha. Lá tinha elevador e toda hora eu ficava descendo pra brincar nos brinquedos. Tinha balanço e gangorra. Em casa fico assistindo TV. Acordo e já vou direto pra sala assistir Chaves. O controle remoto é da minha vó. De sábado, acordo e fico assistindo Gentil. Fico vendo o desafio final. É o programa De hoje em dia e o Fala Brasil. Todo dias de manhã, às seis horas. Passa duas histórias do Chaves. Sábado assisto Melhor do Brasil e domingo Tudo é possível. Programa que eu mais gosto. Também assisto Raul Gil, domingo também. Todas as noites eu fico assistindo Raul Gil. Não sei o que tem no programa. Um monte de coisa. CEDECA Interlagos • •
E todos os dias. O desenho do Pequeno Urso e Kayu.
Ele vai me esperar lá fora.
Minha mãe assiste TV na sala e eu assisto no meu quarto.
Bastante tempo.
Cada uma come em um horário. Minha vó cuida da casa. Ninguém me cuida não, eu fico sozinha no meu quarto. Eu vejo TV sozinha. Fico vendo TV sozinha, pra ninguém me incomodar. Eles ficam me atrapalhando. Eu assistindo o Pequeno Urso. Eles ficam mudando de canal. Aí me atrapalha. Enquanto fico assistindo, fico escrevendo. Escrevendo e assistindo. Gosto de escrever letras no meu caderno. Não sei o que gosto de escrever. Gosto de escrever o nome do Jean. É o meu amor. Ele tá me esperando.
Faz tempo que conheço o Jean. Não sei como começou. Não sei o dia que eu conheci ele. Foi na segunda feira, foi no ano passado. Gosto de ficar perto dele. A gente fica conversando. Na verdade eu não sei dizer o que eu converso com ele. Não sei. Converso com ele toda hora lá na quadra. Fico perto dele toda hora. Ele fica me esperando todos os dias lá na porta. Enquanto eu fico terminando de almoçar. Gosto dele. Ele gosta de mim. Gosto que eu pego todos os dias na mão dele, quando coloco minha mão pra traz. Ele fala e eu falo pra ele pegar na minha mão. E eu vou todos os dias com ele até o armário pegar a bolsa. Aí eu pego a minha bolsa e ele pega a dele. Aí a gente fica juntinho ali fora, esperando até a minha perua chegar. Ele vai embora com a mãe dele e eu vou embora de perua.
Vou encontrar ele hoje. Jean Alves.
Cada um vai embora.
Não sei escrever.
Vou pra minha casa.
Eu escrevo letras.
Fico andando até chegar no meu portão.
Não sei o que eu gosto de escrever.
Vou sozinha, eu ando a pé sozinha.
Não escrevo pra mais ninguém.
Eu ando na rua sozinha.
Só pra ele só. Pra minha mãe não! Só pro Jean.
Subo a escada sozinha. Quando eu chego em casa tomo banho.
Ah!
E o meu pai,
Eu acho que o Jean tá preocupado comigo.
Ele liga todos os dias na minha casa. No telefone.
• • 18 anos, 20 histórias
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Ele mora em Pernambuco com minhas tias. Quando saio da minha casa, vou pro shopping brincar nos brinquedos. Vou junto com meu pai e meus irmãos. Todos os dias ele vem me visitar. Todos, todos, todos os dias vem me visitar. Só domingo que ele vem. Sábado não. Sábado ele trabalha. Ele trabalha de caminhão, ele é o motorista e o cobrador. Ele trabalha de ônibus! É ônibus que eu disse! Ele trabalha lá em Pernambuco. Ele mora longe.
200
CEDECA Interlagos • •
Todo dia é assim Dia-a-dia. Tic-tac. Acordar de manhãzinha pra dormir no fim Ir ver TV sozinha Até ir se arrumar Pegar ônibus lotado E esperar até chegar Chegar à escola Chegar ao trabalho Ver os amigos Ver o querido Pegar na mão Lanchar juntinhos Voltar pra casa Cada um no seu caminho Em casa ver a vó Ver novela Escrever nomes Jogar videogame Ver desenho Ver a mãe chegar em casa E os irmãos logo depois Sábado faz diferente, mas do mesmo jeito. Domingo faz o mesmo, mas diferente. Acordar de manhãzinha pra dormir no fim. Todo dia é assim. Dia-a-dia. Tic-tac. Posso seguir minha rotina? Aprender a ler o mundo do meu jeito? Posso criar uma rotina? Ter no meu bairro tudo que preciso?
“Sou gente, tenho direitos” • • 18 anos, 20 histórias
201
“
Nasceu... Seu nome? Seu nome era pra ser outro... Sua v ida? Caiu, levantou e aprendeu... Brincou... Cantou... Cresceu... Es tudou, trabalhou, v iveu... E v ive. E faz . E conta...
”
Maya é meu nome... Nasci em julho de 1990.
S
ou muito tímida...
Ele ficou me ensinando...
Pensavam que ia nascer menino.
Aprendi no primeiro dia a andar de bicicleta. Caí, mas aprendi.
Minha mãe comprou tudo azul, quarto todo azul. Nasci menina. Foi a maior reação. Todo mundo esperava um menino e veio uma menina. Então, meu nome era pra ser Bárbara. Daí minha mãe falou: “não, nome de fresca”. Aí ela colocou Maya. O nome de uma atriz. Eu não gostei.
Meus pais se separaram quando eu era recém nascida.
Minha mãe é de São Paulo. Meus avós eram de Sergipe e Ceará. Vieram morar em São Paulo e depois voltaram pra lá a passeio e tiveram minha mãe lá no Ceará. Ela nasceu lá, mas sempre viveu aqui. Já meu pai é de Minas. Sou a mais nova. Hoje moro com meus avós, minha mãe e minha irmã. De quando nasci não, sei. Minha mãe conta mais de quando minha irmã mais velha nasceu... Lembrança que tenho mesmo é de quando ganhei minha bicicleta. Tinha uns cinco, seis anos. Foi uma emoção pra mim. Eu fui de cara andar na rua da minha casa... Levei o meu primeiro tombo! Caí e me machuquei todinha. Foi meu pai que me ensinou. • • 18 anos, 20 histórias
Meu pai... Ele aparece uma vez por mês e olhe lá. Dá dinheiro quando quer. Nem liga pra mim... tem tanta coisa pra fazer. Minha mãe é muito forte. O que eu lembro é de quando eu era pequena, que gostava de brincar de escolinha. Ficava pegando livro da minha mãe, riscando, lendo. Lembro que eu gostava muito de ir pra escola. Aí quando entrei na escola fui desistindo... Lembro do primeiro dia de aula. Fiz amizade com uma menina lá na fila e até hoje ela é minha amiga. Hoje, a gente chega e geralmente fica esperando a professora. Aí tem professor que passa lição. Tem professor que fica conversando. Tem uns que não explicam bem. Se vai perguntar, ele não quer explicar. Vários problemas. Falta de interesse de professor e do aluno também. Eu acho que a escola devia ser diferente.
203
Nunca assim, só copiando lição! O aluno não aprende só de ficar copiando. Uma vez eu vi uma escola que dura o dia todo, o pessoal fazia lição de manhã e no segundo período, fazia o que gosta, como pintar e dançar. Seria interessante também.
Acho aqui meio esquecido!
Acho que a pessoa já aprenderia mais entendeu?
Pra gente mesmo.
Fazer o que você gosta mesmo. Tem que ser na prática mesmo, não no pensamento. A turma da noite não tem Educação Física, coisa que todo mundo gostava. Aí, fica ruim, né? Dia de sábado fica difícil também. Eu tinha um time de futebol, das amigas da rua, o União. Jogava na rua e de uniforme. Era engraçado.
É um lugar meio esquecido. Não tem recursos aqui. Pras nossas necessidades. Lazer daqui, praticamente não tem. Tem a praça no outro bairro. Posto de saúde em outro bairro longe. Tem que pegar ônibus, porque aqui mesmo não tem.
Com nove anos fiz minha catequese e
Tá passando mal tem que ir num lugar longe.
comecei a ir na igreja.
Transporte também. É pouco.
Cantava no coral, chegava a ser bonitinho. Com doze anos comecei a participar de uma banda da igreja. Fiquei até uns quatorze. Gostava e gosto muito de cantar. Gosto também de dançar, na Igreja mesmo. Dançava bastante. Fiz minha crisma com quatorze. E da minha crisma o que mais me marcou foi o final, que teve um retiro de dois dias. Muito legal. Bagunçamos muito.
Tem uma linha. Não passa sempre... Falta de interesse de nós mesmos também. De lutar pelos nossos direitos. Também! É nossa parte também. O povo não corre atrás do nosso direto, só reclama. Tem um terreno lá que eu acho que dá pra fazer uma praça. Alguma coisa de lazer mesmo.
Nessa época não tinha nada pra fazer.
Um lugar pra ficar conversando...
É que esse bairro não tem muita coisa pra se
Um lugar com árvores.
divertir. Eu ia em outros bairros. Muito antigamente ia no CEU (Centro Educacional Unificado). A gente ficava o dia por lá. Biblioteca. Computador. Piscina. Cinema... Uma vez eu vi uma peça de teatro lá! Sempre morei aqui.
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Posto médico aqui não tem.
Também tem outro terreno no bairro que é enorme. O governo tava pensando em fazer um parque, porque é muito grande. Se tivesse esse parque... Ele teria um monte de coisa. Podia fazer tipo o Ibirapuera mesmo. CEDECA Interlagos • •
Brinquedo pras crianças... Sala com cursos pra comunidade... Teria quadra, parque, playground... posto de saúde... um tipo de museu com exposição de arte... teatro... Seria legal! As pessoas iam ter mais lazer! Não iam ficar sem fazer nada! Ficam assim e aí começam a entrar em outros caminhos. Droga, um monte de coisa. É assim aqui: Tem espaço, mas não tem lazer! Ficar por aqui, não dá não. Tem que ir longe. Não dá. Geralmente eu vou com a minha mãe de carro. Ela vai dirigindo. Antigamente, ia na praça, longe, ficava jogando futebol lá, mas agora tô sem tempo mesmo. Podia também colocar um posto de saúde. Seria muito bom! Estavam pensando em fazer, mas umas pessoas invadiram o terreno pra morar e teriam que sair de lá, mas o pessoal não tá querendo... Eu tenho um convênio lá em Santo Amaro. Antigamente eu ia no posto. Uma vez fui lá e ninguém viu o que eu tinha, só deu o que eu tinha que tomar. O médico não me examinou! Não fez nada! Não teve interesse mesmo. Ainda por cima esse posto, o mais perto é uma meia hora, vinte minutos de ônibus. A pé dá pra ir, mas é longinho. O meu bairro até deu uma melhorada, porque nunca mais ouvi falar de morte. Há quatro anos atrás se ouvia muito. Agora deu uma sossegada. Acho que tranqüilizou aqui! Antes era cheio de polícia, pra lá e pra cá. • • 18 anos, 20 histórias
Ah! Com doze anos também comecei a... participar comunitária.
de
uma
biblioteca
Várias atividades. Tudo que tinha eu ia. Até o ano passado. Gosto muito. Conheci muitas pessoas. Tinha bastante gente que eu gostava. E muitas viagens... Ficaram poucas amizades, mas eu tenho amiga até hoje. Duas delas se conheceram através de mim. Tem outra pessoa importante que é minha prima. A gente se conhece desde pequena, praticamente tudo que eu vivi, ela fez comigo ou sabe. Lembro que uma época muito difícil foi quando minha mãe ficou desempregada. Eu tinha uns quatorze anos. Foi quase um ano desempregada. Nessa época, minha irmã começou a trabalhar bastante... Aliás, minha irmã... Eu e a minha irmã ficamos um ano sem nos falar. Um ano! Não falava por nada, nem “Oi”. Foi uma coisinha boba. Uma mais orgulhosa que a outra. Foi julho do ano passado que voltamos a nos falar. Eu tava namorando um menino, o cara terminou comigo e fiquei muito mal. Triste. Ela voltou a falar comigo. Minha irmã é mais velha, tem vinte e três ou vinte e um anos. A gente brigava muito antes, agora não briga mais não. A gente mal se vê como antes... Meu maior medo é perder alguém que eu gosto muito. Hoje estou com 17 anos. Termino o 3° colegial esse ano. Quero muito contar uma
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historinha que tem a ver com esse momento da minha vida: Minha amiga fazia um curso... Era de admistração, telemarketing e informática. Ela me incentivou a fazer também, falou: - Vamos fazer! Outras duas amigas iam fazer também. Mas minha mãe não queria deixar eu fazer, falou, que era muito longe pra mim, porque é no centro e ia ser cansativo. Eu querendo, mas ela não tava deixando. Insisti. Insisti. Eu sou uma pessoa determinada, quero uma coisa eu vou fundo, sou persistente, esforçada. Até que ela disse: “Tá bom! Faz”. Eu fui, me inscrevi, depois de um mês fiz a prova, uma hora de prova... Pensei que não ia passar na prova, porque num deu tempo de fazer as questões de matemática. Eu falei: “Não passei, né?”. Nem liguei mais. Aí, depois de alguns meses me ligaram dizendo que eu passei na prova. Fui fazer entrevista e depois fiquei mais confiante. Passei na entrevista e depois de dois meses comecei a fazer o curso. Foi muito marcante pra mim, por que lá, neste curso, fiz novas amizades e aprendi muita coisa mesmo. Eu sou muito tímida. Acho que a timidez também perdi um pouco. Até, tinha muitas brigas, mas aí eu aprendia a lidar com outras pessoas, trabalhar mais em grupo. Muita coisa eu aprendi. Terminei o curso. Depois de um tempo me ligaram pra fazer uma entrevista de emprego. Eu fiz a entrevista em janeiro desse ano. Depois de muito tempo me ligaram. Já achava que num tinha nem passado. Foi depois de um tempão que eles me ligaram pra fazer uma outra entrevista e falaram que passei! Atualmente eu tô trabalhando, fazendo estágio, em um banco e tô gostando muito. Uma vez por semana eu faço um curso e trabalho no Departamento Jurídico. 206
É meu primeiro emprego. Eu tô gostando. Não sei se eu quero trabalhar lá mesmo. Eu não gosto muito de direito, mas também pode trabalhar com contabilidade. Quero fazer faculdade. Ter um carro. Antes eu queria ser fotógrafa, mas não dá futuro. Quando era pequena queria ser professora. Era meu sonho. Depois queria fazer veterinária. Depois, cantora! Acho que eu vou fazer faculdade de contabilidade pra poder ficar lá. É isso, a história de um curso que eu quase não fiz... E hoje eu tô trabalhando. Essa é uma historia muito marcante pra mim...
CEDECA Interlagos • •
Acho aqui meio esquecido! Esqueceram que preciso de um lugar pra aprender de verdade Esqueceram que preciso brincar Esqueceram que preciso me cuidar Tem espaço aqui pra tudo isso, mas esqueceram disso também! Esqueceram que sou prioridade absoluta
“Sou gente, tenho direitos”
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“
- Criança tem cada criativ idade Faz trave de chinelo na rua e brinca de bola Na v iela aper tada o pique esconde é cer to Na árvore da esquina, uma f lores ta imagina A chuva que cai no telhado, faz barulho engraçado Deslizante água sonora e f ria... Faz glof... glof daqui Ping e ping dali, cai na panela, no caneco e no copo Fazendo música Enquanto... No sofá da sala... - Fico vendo na tv Coisas que no seu bairro não vê Não vê praça Não vê hospital Não vê ônibus vazio Não vê os direitos da gente Não vê os direitos pra gente E mesmo assim criança tem cada criatividade!
”
Meu nome é Line! Nasci em julho de 90...
M
in h a m ã e é a l a g o a n a ,
ela veio pra cá quando tinha seus vinte e dois anos e veio trabalhar como empregada doméstica, cuidava dos filhos da minha madrinha. O Fabio tem vinte e um anos e a Adriana uns vinte e cinco. Minha mãe continua trabalhando lá, diariamente, mas agora ela não é registrada, porque minha madrinha paga a faculdade da filha. Lá em Alagoas minha mãe trabalhava com uma mulher que tinha vários filhos: Laércio, Letícia, Laebio, um monte de nome tudo com L, minha mãe achou bonito. Quando eu nasci ela ia me registrar no cartório de Laebia, mas no dicionário não tinha e o juiz disse pra colocar o meu nome de Lapa. De Lapa!!! Daí minha madrinha falou assim: - Não melhor colocar outro nome por que Lapa não. Imagina eu com essa idade me chamar Lapa? Na escola ia ser zoada demais. Minha mãe falou: - Lapa não. Coloca Line então. Já que tinha no dicionário colocou Line mesmo. Line da Silva • • 18 anos, 20 histórias
Minha mãe é mãe solteira, nunca foi casada. Ela tem dois filhos, mas nunca foi casada. Ela criou eu e meu irmão. Eu ficava vendo minha mãe trabalhando demais, sustentando eu e meu irmão, até que dei um basta. Pensei: ‘ Vou procurar um emprego pra ajudar minha mãe e vou batalhar junto com ela e arrumar nossa casa’. Tinha 16 anos. Minha mãe, hoje, tem uma casa própria, mas é toda velha, quando chove dá goteira... Daí comecei trabalhar, ajudo ela todo mês, gosto de ajudar minha mãe. A pessoa que mais amo é minha mãe, sem ela não ia viver. Não conheço o meu pai, não sei onde ele tá, só sei que é de Alagoas, minha mãe conheceu ele lá, minha mãe fala que quando ela ficou grávida ele deu o fora. Sabe que eu existo, mas nunca me viu na vida. Também nunca vi ele. Ele também nunca quis me procurar, saber onde eu estava. Se ele procurasse eu não ia dar valor... se ele não quis me dar valor quando eu era novinha... Minha mãe fala que ele tem outra família agora,
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porque minha mãe tem um amigo que sabe onde ele mora, sabe da família dele, tudo... Ele não quer falar pra minha mãe. Eu acho, na minha cabeça, que ele que fala pra minha mãe não falar, pra eu não interromper a vida dele, entendeu? Também eu não faço questão... Hoje minha mãe é pai e mãe pra mim, vai ser ela que eu vou dar valor... Não faço questão de conhecer... Lembro quando vejo fotos. Minha mãe tem bastante fotos. Lembro que até os 05 anos, eu morava com minha mãe, minha madrinha, o marido dela e os dois filhos. Gosto dessa madrinha como gosto da minha mãe. Eles gostavam de mim e eu gostava deles. A gente morava aqui mesmo em São Paulo, perto de Piraporinha e mesmo a minha prima eu considerava como irmã. Minha prima morava aqui em São Bernardo e ia pra lá todo fim de semana Depois que fiz cinco anos, minha madrinha foi morar em um apartamento e a gente também mudou. Deixamos minha madrinha, mas minha mãe continua trabalhando pra ela até hoje, faz mais de 20 anos. Eu estudava no prézinho numa escolinha que minha mãe pagava e minha prima na EMEI1. No fim de semana, a gente não via hora de amanhecer o dia! Pra pegar nossas bonecas pra brincar. A gente jogava um monte de tralha lá na calçada o povo passava e olhava... a gente achava muito comédia. Agora que eu e minha prima já estamos adolescentes, a gente fica lembrando do passado que nem era antigamente... 1
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Escola Municipal de Ensino Infantil
À parte que eu mais gostei da minha vida foi à infância, até eu parar de brincar. Até hoje tenho bonecas, Barbie, ursinho, tudo guardado. Minha mãe fala: - Line doa pra alguma criança necessitada! Eu falo: - Não mãe deixa aí! Quando eu tiver minha filhinha eu dou pra ela. Quando fico sossegada, parada pensando na vida lembro da minha infância. Como era... Eu e uma prima brigava como cão e gato, puxando o cabelo uma da outra, minha tia quando via a gente se pegando falava: - Pode deixar Zezinha... Minha mãe: - Não. Pode separar. E as duas lá se agarrando, já cheias de hematoma, uma dando tapa e puxão de cabelo na outra. A gente fazia cada coisa engraçada! Uma vez um colega matou um sapo e a gente foi lá na EMEI fazer o enterro! A gente cavou um buraquinho jogava o sapo lá e colocava uma florzinha que nem um enterro mesmo, a gente inventava cada coisa que era impressionante! Criança tem cada criatividade! Era enterro de formiga, era enterro de sapo, tanta coisa. Tem uma história engraçada com a minha prima. Eu sei que é meio nojento, mas eu vou contar. Antigamente, eu morava em cima e ela em baixo daí a gente combinava de tomar banho no mesmo tempo, juntas brincando. Um dia deu vontade fazer xixi e fiz xixi nas costas dela, daí ela falou: CEDECA Interlagos • •
- Laíza a água está ficando mais quente. (risos) Acho que eu parei de brincar quando eu percebi que tava virando mocinha, quando a adolescente percebe que vira mocinha é quando dá a primeira menstruação. Quando aconteceu a minha primeira menstruação, eu fiquei sabe... eu fiquei chocada. Não sabia o que era aquilo o que tava acontecendo comigo. Daí, fiquei com vergonha de falar com minha mãe, mas ela percebeu porque eu não lavei direito a calcinha. Ela percebeu e falou que isso era uma fase da vida de todas as mulheres. Eu pensei é que estava doente. Daí, parei de brincar. Acho que foi nos meus 15 anos, mas dava a doida na gente, eu e minha prima, a gente pegava as Barbies e ia brincar. Agora não tem isso não, por que tem meu irmão e minha prima de 10 e outra de 14 anos, eu deixo eles brincar um pouquinho. Eu tenho o maior ciúmes das minhas coisas, eu deixo brincar só um pouquinho, se estiver faltando alguma coisa eu já brigo. Gosto de fazer bastante amizade...
morreu, daí todos ficaram chateados até hoje eu fico lembrando dele ... Hospital R.S. Minha tia falou que entra lá mal e sai morto. Antigamente eu freqüentava o hospital da faculdade da região, era o mais perto daqui. Tenho problema no nariz e na pele e desde que nasci minha mãe me levava lá, não só eu, mas meu irmão também, lá é bom... Os médicos se preocupa com os pacientes. Agora que tenho convênio não fui mais lá. Na minha vida não acontece muitas coisas... Falei pra minha mãe quando eu sair de férias do serviço talvez eu vou pagar passagem pra mim, meu irmão e ela pra conhecer a terra dela, mas ela fala: ‘a não, vai você, eu tenho que trabalhar, daí eu ligo pros parentes e eles te pegam no aeroporto’... eu não quero por que eu vou ficar sem graça eu sou muito tímida, não sou muito de me expor. Eu tenho vontade de conhecer não só alagoas mas Bahia, Rio de Janeiro, Fernando de Noronha, essas três cidade. Queria conhecer o Brasil todo, mas já que não posso então pode ser essas três preferenciais. Na Bahia quero conhecer o carnaval de lá, no Rio, as praias e Fernando de Noronha é uma ilha linda tenho vontade de conhecer se eu não me engano é lá que tem golfinhos. Tenho vontade de mexer,
no ano passado perto do natal um amigo caiu e bateu a cabeça. Ele foi pro hospital e foi operado, mas não cuidaram direito dos pontos, os médicos e enfermeiros tem que usar luvas daí eles não usavam.
eu fico vendo na TV.
Entrou só com uma doença e morreu com mais de seis doenças!
Namorar... Só um que minha mãe ficou sabendo.
Pulmão, infecção... Acho que foi pela falta de higiene. Neste ano dia 2 de fevereiro ele
Foi assim, um vizinho se mudou pra cá, porque na casa de frente mudava um monte de
• • 18 anos, 20 histórias
Até agora só tive um namorado... Esse negócio de namoro veio tarde, porque agora é ficar.
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gente, saia um entrava outro, daí nessa ultima vez no ano de 2005 entrou um homem e o filho dele tinha quase minha idade. Eu achei o menino atraente, bonitinho daí eu mesmo não tinha coragem de falar ‘quero ficar com você’ daí, falei pro meu amigo que conhecia ele: - Cara você não se toca não a menina quer ficar com você. Mas ele não tinha coragem. Meu amigo que organizou tudo tipo um cupido. Eu fiquei com vergonha de falar com minha mãe. Eu não falo de namoro pra minha mãe fico com vergonha, ela não se abre disso comigo. Até que decidi falar... Ficava atrás da minha mãe, mas não tive coragem. Ela já tinha percebido: - Line você tem alguma coisa pra me contar? - Não mãe não tenho nada não. Daí continuei quieta e ela continuava a perguntar. Então contei. Minha mãe não ia com a cara dele. Eu pedi pra ela não julgar pela aparência. Ela falou: - Eu vou pensar no seu caso pra você não ficar falada na rua. Minha mãe deixou e a gente namorou só por quatro meses. Não deu certo. No começo, era mil maravilhas depois a gente começou a brigar muito, ele era muito ciumento e eu era também. Eu não sabia que eu era ciumenta... 212
tenho ciúmes da coisa que me pertence... Vou falar do meu bairro. É um lugar sossegado que nem todos os cantos que as pessoas falam. É... Sossegado, tem traficante, ladrão... Essas pessoas só vai mexer com a gente se a gente mexer com eles, se não mexer com eles, esse tipinho de gente, eles não vão mexer com ninguém. Eu moro bem atrás da escola, antes, a viela era aberta passava um monte gente desconhecida. Uma mulher foi estuprada lá, só uma vez. Então, construíram um muro, não é como todo mundo fala... é legal. Tem muita gente. Tem gente que cuida da vida da gente, pessoas falsas. Pra me divertir no meu bairro não tem quase nada, tem futebol, mas eu não sou muito de jogar futebol. Hoje, eu trabalho, faço curso e venho pra escola ainda. Eu saio mais com meus amigos, vou pro shopping, pro boliche, rodízio... Estamos cansados porque só boliche. Eu dei a sugestão de um jogo que divide em equipe, daí tem uma arma de tinta um time tem que pegar a bandeira do outro “ aqui por perto tem algum lugar” Ônibus é sempre lotado, daí começa encoxar... Eu não sou muito barraqueira, mas se ficar dando ousadia... Não é só um ônibus não, pego três ônibus, uma hora e meia de viagem. Eu faço baldeação e no terminal pego o Bandeira via Marginal pra ir mais rápido. Pra ir pro serviço eu demoro uma hora e meia se não faço baldeação duas horas. Eu trabalho do lado do Shopping Morumbi; agora que inaugurou a estação de trem eu vou começar a fazer isso.
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Já falei pros patrãos dar a diferença da condução. A viagem de ônibus é muito cansativa, o que cansa mais não é o serviço, mas o ônibus é uma viagem daqui pra lá. Eu faço o curso de idiomas de uma hora e meia, faço desde os quinze anos. Eu tinha ganhado uma bolsa da rádio, ...minha mãe foi lá ver o que era, eu fui com ela, ela queria que eu fizesse pra me especializar. Tinha ganhado uma bolsa só para a matrícula e o material, cinco cursos: de idioma, informática, técnica administrativa, básico é tudo básico secretariado e qual que é o outro... designer.
cara. Sou de classe baixa não tenho dinheiro pra pagar faculdade cara, aí fui pra administração, vou ficar louca com tanto numero! Quero fazer primeiro o curso e depois a faculdade. USP não paga, eu sei que quero fazer faculdade e ter um futuro melhor pros meus filhinhos... Sou assim, começo a falar na paro mais...
Vou terminar agora, depois de três anos no curso. É legal, mas é meio cansativo. Agora quero me especializar em escritório, restaurante não dá futuro, os meus patrões não valorizam os funcionários que tem. Quando terminar esse curso vou fazer economia no SENAI, quero terminar meus estudos, pretendo fazer faculdade de RH e quero me especializar no negócio de escritório, eu acho interessante negocio de escritório... Eu tinha dúvida em várias faculdades. Tinha vontade de astronomia... Meu sonho era fazer isso, começar aqui no Brasil, fazer intercambio e terminar no exterior. NASA... só crânio mesmo... Também tinha... vontade de ser médica de criança, daí eu também achei a faculdade muito
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A infância foi a melhor parte da vida Brincava, cantava, chorava, imaginava, sonhava... Aí veio a adolescência com cara adulta Tem que trabalhar, tem que estudar, Tem que ter hora pra tudo... Acordar, conversar, pegar o ônibus... Mas acima de tudo tem que ter direito... na infância e na adolescência em todas as fazes da vida.
“Sou gente, tenho direitos!”
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“
Gos to muito do barulho de chuva. A chuva me acalma Acalma a correria Acalma meu dia-a-dia Acalma, aquele barulhinho Que faz dormir mais tranqüilo Temporal, tempes tade. Queria melhorar o bairro ou Senão, mesmo mudar de casa Levar toda família. Pra minha vó não acordar com água subindo. Pra ninguém mais desesperar com a chuva, que é tão bonita.
”
Nasci em julho de 90.
Meu nome é Paola.
V
O parto atrasou bastante e eu acabei ficando sem ar, dentro da barriga da minha mamãe. Foi com fórceps, não sei exatamente o que quer dizer isso, mas pelo que me informaram, tiram o bebê puxando a cabecinha com um ferro. Então, nasci assim, roxinha, sem ar, me disseram que eu olhava muito as coisas a minha volta e não chorava. Aí o médico deu uns tapinhas e eu tive que chorar pra poder soltar o ar. Então, respirei um pouquinho, chorei bastante e me levaram pro berçário. Depois contaram que eu tinha problema cardíaco então eu precisei passar mais ou menos uns dois dias sem comer nada pra fazer os exames. Jejum. Meu pai fala que quando ele passou na frente do berçário, bateu no vidro e falou que eu sorri pra ele – acho que é bobeira de pai. Passei aquele tempo com fome, por causa dos exames. Minha mãe voltou pra casa e eu continuei no hospital. Meus pais eram novos, tinham mais ou menos dezenove anos. Meu pai tinha cara de muito mais jovem. O médico imaginou que ele era um garoto. Falou: “Poxa, você é tão jovem e já tem uma filha. 216
Porque você não deixa ela comigo?
ou contar o dia em que nasci!
Eu sempre quis ter uma filhinha”. O médico queria me adotar. Meu pai não deixou e me levou de volta pra casa. Ele conta que no meio do caminho comecei a chorar porque tava com fome. E ele sem noção do que fazer, comprou um suco de groselha, molhou uma chupeta e eu comi. A primeira coisa que eu comi foi groselha. (riso). Na minha infância, sempre fui muito mimada. Eu era a primeira neta da minha avó. Toda atenção era pra Paola. Aquele monte de brinquedo. Quando completei seis anos, minha irmã nasceu e fiquei com um pouco de ciúmes. Tinha que dividir a atenção com ela. No começo ela quebrou muito dos meus brinquedos, eu não gostava nem um pouco. Não foi fácil. Até me adaptar e acostumar. Depois gostei porque era uma companhia. Eu vivia muito sozinha, não tinha com quem brincar. Tinha poucas amigas, porque minha mãe sempre me protegeu muito, vivia mais trancada em casa. Não brincava na rua, não pulava corda... Fui crescendo e quando tava na quarta série fui morar no Rio Grande do Sul. Meu pai trabalha com segurança e foi CEDECA Interlagos • •
transferido. Então se mudaram pra lá. Foi uma mudança muito grande porque foi uma escola nova, um estado novo, pessoas com costumes diferentes. Até o jeito de falar. Todo mundo lá fazia muita brincadeirinha, dava risada, que lá eles falam “genTE, penTE, denTE”, e aqui a gente termina todas as frases com “i”. Então, todo mundo na minha escola ficava me aloprando. Passei um ano e seis meses morando lá. Na metade da quinta série voltei pra São Paulo. Foi uma fase de transição, porque tava... deixando de ser criança e começando a ser adolescente. Não sabia bem o que queria. Tinha complexo de inferioridade, me sentia o patinho feio, pensando que ninguém gostava de mim. Um monte de problema. Ser criança ou ser adulta? Até que foi começando a surgir um monte de pensamento na minha cabeça. O que eu quero pro meu futuro? Quais são meus objetivos? O que fazer pra alcançar tudo isso? Comecei a busca desenfreada por um curso e depois pra conseguir alcançar meus objetivos. Sempre fui de planejar muito. Sempre me perguntei por meu futuro... Aos treze anos já sabia que faculdade eu ia fazer. Queria cursar Administração e depois Ciências Econômicas. A grande questão que ressoava na minha cabeça era como conseguir alcançar esse objetivo. Então já nesta época dizia diariamente á minha mãe: “Mãe eu quero fazer um curso”, “Mãe eu quero fazer um curso”... Então, encontrei vários... Só que cada vez que eu ia fazer um acontecia um desentendimento,
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por exemplo, um dia destes eu fui fazer, mas um dos requisitos era levar cinqüenta latinhas de alumínio. Acabei não conseguindo. Em outro eu precisava completar quinze anos no mesmo ano que começasse o curso, mas na época ainda tinha catorze, então não pude fazer. Em outro, eu já tinha ultrapassado quinze meses a idade solicitada. Aí teve uma hora que eu me desesperei. Pensando sozinha que nada na minha vida dava certo e eu que não conseguiria realizar os meus projetos. Parecia que eu tava me debatendo e não conseguia sair do lugar. Foi quando encontrei um lugar com cursos que me interessavam e depois de um tempo insistindo à minha mãe, ela deixou. Agora era só combinar com meu pai para que fossemos fazer a inscrição. Planejamos, só que nunca conseguíamos ir. No último dia de inscrição eu fiquei em pânico, pensava: “não acredito que não vai dar certo”. Chorei muito... em casa, até que de repente lembrei de uma música que sempre falou comigo: “Os meus sonhos o vento não pode levar, a esperança encontrei no teu olhar”. E por mais bobo que isso pareça, essa música me ajudou a não desistir e não deixar tudo pra trás. No último dia consegui fazer a inscrição, em seguida fiz a prova e pouco tempo depois a entrevista. Passei. Durante o curso, tinha muitos trabalhos, muita coisa difícil, era muita pressão. Tinha horas que eu dizia: “Não, não vou agüentar”, mas eu sempre lembrava do começo e que devia levar até o final porque isso ia ser importante pra mim. Uma coisa que marcou muito e que fez diferença na minha vida foi o fato de começar a 217
confiar em Deus, porque quando eu era criança não tinha muita noção de quem é Deus. Existir ou não divindade, enfim... Quando eu tava nessa fase de começar os meus cursos, nessa correria, parecia que nada dava certo. Quanto mais eu me debatia, mais as coisas não saiam do lugar. Ficavam estagnadas. Eu freqüentava a igreja, mas não levava nada a sério. Comecei, então, a confiar, comecei a acreditar que realmente Deus existia porque ele falava comigo sempre, só que eu nunca tinha dado ouvidos, nunca tinha percebido. A partir daí comecei a confiar e ter fé. Minha vida começou a mudar, começou a fluir. Continuei, consegui boas notas, terminei o curso, fui encaminhada pra entrevista e... hoje estou trabalhando num lugar que gosto, na área que queria. Gosto de onde eu trabalho, mas ainda não gosto muito de onde moro. Sonho poder comprar outro lugar pra poder construir casas separadas, tudo é muito junto. Apesar do bairro não ser ruim, não gosto muito. É muito bagunça. É muito barulho. Tem um bar perto da minha casa. Até altas horas o pessoal fica na rua. Eu pretendo ter um lugar mais tranqüilo. Queria ir um pouquinho longe daqui. Não queria sair da cidade de São Paulo de jeito nenhum. Tenho vontade de conhecer outros lugares. Europa, porque eu adoro frio. O Egito, por causa das pirâmides, do enigma, das histórias que contam. Pequim, Hong-kong, só pra conhecer. Não quero sair do Brasil, nem de São Paulo de jeito nenhum. Apesar dos pesares, dos problemas, eu gosto muito dessa cidade. A cidade que eu morei no Rio Grande do Sul, era uma cidade pequenininha, tinha dezesseis mil habitantes, comparado com os dezesseis milhões de São Paulo, é uma diferença muito grande. Todo 218
mundo se conhece, todo mundo sabe da vida de todo mundo. Nem precisava ter ônibus na cidade porque dava pra ir a pé de um lugar pro outro. Era uma vida monótona, sem graça. Então eu prefiro a vida da cidade grande. A bagunça. O barulho. Tem outras diferenças enormes. A escola lá é muito mais organizada. Não tem pichação, as carteiras não são quebradas, tem material disponível, sala de informática e sala de vídeos. As coisas funcionam. O ensino é o mesmo nível. Os alunos de lá parecem ser mais interessados. Não tem muita bagunça, baderna. E o governo zela pela escola. Tanto o governo, os alunos quanto as pessoas que trabalham também. Acho que por isso, a região sul do país tem uma condição econômica até melhor. A maior diferença é o espaço. A organização do espaço. Aqui as casas são construídas uma em cima da outra, uma grudada na outra. Por exemplo, quando eu era criança, a gente morava numa casa de aluguel. Aí minha vó comprou um terreno onde tem a casa dela. E chamou a gente pra construir em cima da casa dela e morar lá. É um sobrado grandão, parece ser uma casa só, só que tem duas entradas. Então é uma casa grudada com a outra, uma amontoada com a outra. No sul não. Lá, a casa que eu morava, por exemplo, tinha um espaço enorme na frente e atrás, era um espaço duas vezes maior do que o que a casa ocupava. Lá tinha horta, carreira de uva, árvore de manga, grama, laranja, grama, tinha flor, espaço
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pro meu cachorrinho brincar. Dava pra fazer festa... Era muito diferente o espaço. Gosto muito do barulho de chuva. Tem gente que tem medo, eu gosto, principalmente pra dormir. Um dia estava na escola comemorando a chuva, adorando aquele barulho que... me acalma. Uma vez, em um dia de chuva eu estava aqui na escola, toda animada. Temporal, tempestade. Eu amo. E quando cheguei em casa, minha mãe e minha tia estavam desesperadas. Quando fui à casa da minha avó, tinha mais ou menos uns trinta centímetros de água com barro, aquela água suja. Porque a minha casa fica em um lugar mais alto, a casa da minha avó é do lado, mas é baixa. Tem mais ou menos uns dois metros da minha casa à dela. Chego na casa dela por uma escada. Então, tinha molhado o sofá que é de tecido, tinha quase alcançado a altura do colchão, tava tudo sujo. Os móveis de madeira estragaram. Minha avó tava desesperada. Tem um ralo enorme, que construímos exatamente por causa disso, só que a tampa é de cimento. É muito pesada, a gente não conseguia levantar, por conta da pressão e da força da água que impedia mais ainda. Era aquele desespero, e a água subindo, subindo. Até que veio um vizinho correndo e com a marreta ele fez um buraco no muro e a água foi indo embora. Depois ficou aquela bagunça toda. Poxa... • • 18 anos, 20 histórias
sujou tudo. Não foi a única vez. Já teve noites que estavam chovendo e minha avó acordou com a água subindo. Então, é um desespero total, insegurança. Quando a gente vê que o tempo está fechando, já corre todo mundo e varre os arredores da rua. Uma vez foi uma obra pública. Acrescentaram um cano por debaixo do chão, mas deixaram pedregulho. Veio a chuva e o pedregulho foi pra boca de lobo e entupiu de novo. É bem comum. Agora minha avó aumentou a altura da calçada, fez um ralo na frente, mas nada que o governo se importe, nada que tenha sido uma ação da prefeitura, por exemplo. O bairro onde eu moro não é tão ruim. Tem bairros muito piores. As ruas são asfaltadas, mas em dia que chove muito, as bocas de lobo do esgoto enchem e as casas também. Não é do jeito que eu queria. Em relação a política também é muito diferente daqui. Lá no sul, eu fui à prefeitura várias vezes, pra discutir temas com os alunos na escola, o que era bem legal. Também não tinha problema de tanta poluição. Não tinha esse estresse com transporte. A quantidade de carros era pequena e a quantidade de pedestres também. Então nem precisava de semáforo. Achei muito estranho, porque meu pai era o único que dirigia e não se acostumava com isso. Não vi nenhum acidente, nem comentários, nada. Lembro que tinham vários centros que ofereciam coisas de cultura. Tinham palestras, faziam exames gratuitos, feiras culturais com 219
produtos da cidade. As lojas se reuniam em um galpão grande e apresentavam seus produtos, com preços menores do que o normal. Aqui não tem muito disso. Acho que talvez até tenha, mas no centro da cidade, mais centralizado. Nos bairros que ficam mais distantes. Nas periferias, tem pouca coisa. Quando tem, ficamos sabendo pela televisão ou pelo rádio, mas nem sempre é um acesso fácil. Por exemplo, agora vai ter a Virada Cultural. Que vai ser na noite de São Paulo, só que é lá no centro. Se fosse perto da minha casa eu até poderia ir, mas com a correria que eu vivo, falta tempo e pelo fato de ser longe da minha casa, iria demorar pra chegar lá. Além do que ficar andando de madrugada pela cidade não dá. Ah, e o transporte! Aqui eu espero muito tempo na fila. Um dia, esperei mais de uma hora em pé, pra esperar o ônibus da primeira fila chegar pra conseguir passar pra quarta fila. Peguei cinco filas. Achei um absurdo. Eram seis horas, horário de pico, mas mesmo assim, né? Falei pra uma amiga brincando, que acho que eles pensam que a gente não tem casa, nem família, que a gente não tem o que fazer. Porque passar mais de uma hora em pé esperando um ônibus é um absurdo. E aí se você fala: ‘Não, eu vou no ônibus mesmo sem lugar pra ficar sentada, eu vou em pé’, você fica esmagada. Às vezes tira um pé do chão pra descansar um pouquinho, quando você tenta abaixar de volta não tem espaço. Muito cheio. Pouco ônibus. Não é suficiente porque tem muita gente. Transportes ruins. Ônibus lotado. Nós tentamos fazer um abaixo assinado. Pegamos assinatura de todo mundo do bairro, foi aquela correria. Mandamos um ofício pra prefeitura e não 220
adiantou nada. Não sei o que fizeram com o ofício e nem com as assinaturas, mas continua sem ônibus. Fizemos também um abaixo assinado, pra colocar aqueles postos pra recolher lixo reciclável, mas nada foi feito. Um documento que você pega com assinatura de trezentas pessoas, falando que elas não concordam em tirar o ônibus dali, porque elas precisam desse ônibus, porque essas pessoas usam esse ônibus, e, de repente, o governo recebe isso e não dá a mínima importância? Abaixo-assinado é um meio, se eles tiverem consciência. Porque ninguém vai perder tempo, procurando assinatura de trezentas pessoas, ninguém vai perder tempo escrevendo uma carta, se não for uma coisa útil. Muitas vezes o governo não ouve o povo, porque sabe que o povo fala, fala, mas também não faz nada. Todo mundo reclamou do valor da condução ter aumentado, mas ninguém parou de pegar ônibus. O valor das coisas está subindo, o valor da inflação está subindo, mas ninguém faz nada. Às vezes acho que é falta de informação, porque não sabem o que fazer, mas está na hora de buscar alguma coisa, porque o Brasil é um país rico, um país que tem muito dinheiro, um PIB enorme, e é um país que tem uma desigualdade social gigantesca. Então, se for comparar o mais rico e o mais pobre, é uma coisa absurda. As coisas estão acontecendo, mas ninguém está fazendo nada. Reclamar no ônibus, todo mundo reclama, dá até dor de cabeça, porque enquanto as pessoas ficam falando mal disso e daquilo, não acontece nada. Sempre gostei de manifestação, só que na maioria das vezes, as pessoas falam: “mas eu? CEDECA Interlagos • •
fazer manifestação?
Então, não é uma coisa boa. Aqui temos
sair de casa?
convênio.
ir lá pra frente de não sei aonde?
Lá era muito mais fácil. Minha irmã tava com um problema de saúde, bronquite, quando nós chegamos lá, nós não fizemos convênio pra ela. Ela chegou passando mal e foi imediato, fizeram a carteirinha e atenderam na hora. Então toda vez que ela precisava, era só levar a carteirinha e pronto. Mesmo meus pais não tendo titulo de eleitor de lá.
tenho que cuidar do meu filho, fazer janta pro meu marido”. O mundo está caindo na sua cabeça, e você preocupada com a roupa que seu marido vai usar no dia seguinte e que você tem que passar? Todo mundo reclama, mas nem todo mundo tem coragem de ir lá e falar. Eu quis ir pra manifestação que os professores fizeram no ano passado, por causa de uma série de medidas que o governo tomou. Ia ter redução de salário entre outras coisas. Falei pra minha mãe que ia e minha mãe fez um escândalo: “Você não vai, tem muita coisa pra fazer”. Acabei não indo, mas queria muito ter ido, tanto no ano passado quanto esse ano, porque acho que só os professores reclamando não adianta, os alunos tem que reclamar também. O problema de um vai acabar atingindo o outro. O problema da redução de salário do professor, em algum momento, vai alterar a vida do aluno. São problemas que interferem até nas pequenas coisas simples... Outra diferença é o serviço de saúde. O daqui é muito lento. Você vai em outubro marcar uma consulta e consegue em fevereiro. Aí em fevereiro, ou o aparelho quebrou ou o médico faltou. • • 18 anos, 20 histórias
O acesso é muito mais fácil. Serviço público de saúde... não tem nada no bairro mesmo. O mais próximo é um desastre. Uma vez, a mãe de uma colega minha foi pra lá pra fazer um exame e tava marcada pras sete horas da manhã, ela foi atendida às seis horas da tarde. Ela ficou esperando, esperando, esperando, não tinha comido nada e começou a passar mal. Ela pediu um remédio pra dor de cabeça e trouxeram soro. A enfermeira até se confundiu e veio perguntar se ela tava grávida. Ela é uma senhora de quase 60 anos. Imagina ela passando mal? Têm coisas absurdas. Da saúde dá tristeza falar, dá desanimo. O hospital mais próximo é um absurdo, parece que eles não sabem o que estão fazendo lá. Eu nunca ouvi uma pessoa dizer que foi bem atendida lá. Nunca, nunca. Chega lá e a primeira coisa que eles vão dizer é que perderam a ficha. Depois te fazem esperar horas. Depois o médico faltou. Aí remarcam o exame pra daqui há seis meses. Então? De repente a mamografia? A pessoa tá com câncer. Ela pode esperar 6 meses? Não, não pode. Geralmente, posto de saúde fornece medicamento, mas lá não tem nem dipirona, não 221
tem nada lá.
nenhuma explicação clara.
As pessoas ficam correndo, elas precisam de medicamento com urgência, e ficam procurando, pulando de posto em posto, de posto em posto, de posto em posto.
Nesse caso, diferente dos outros, não é questão de interesse de moradores, nem de interesse de funcionários. Acho que esse caso é totalmente ligado a verba, porque o hospital não tem nada, não tem máquina pra fazer exame, não tem um medicamento pra oferecer, nem instalações suficientes. Então, você entra no consultório, você entra no hospital, e encontra mais doentes no corredor, sentados na cadeira tomando soro e sentados no chão do que dentro das salas, porque falta instalação, porque falta médico.
Ano passado meu bisavô tava se sentindo mal e não queria tomar soro, não queria tomar remédio. Nós deixamos ele lá e viemos pra casa. Quando nós voltamos pra vê-lo, ele tava todo amarrado na cama. Amarrado. E lençol sujo, e aquele descaso, com os braços todos marcados. Então, é uma coisa assim desumana. Ele acabou falecendo nesse hospital e eu, sinceramente, não sei as causas exatas. Ele já tava com uma idade avançada e era óbvio que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Ele foi pra esse hospital, porque ele não tinha convênio. Amarraram, ele tava agitado, ele realmente não queria tomar medicação, mas não era uma coisa a ponto de precisar amarrar. Não teve autorização da família pra isso. Ele tava são, ele conversava, sabia o nome de todo mundo, ele não tinha perdido a noção das coisas. Então, acho que não precisava de tanto. Ficou lá, mais ou menos uma semana. Falta de cuidado. Ele já tinha passado por outras cirurgias em hospitais particulares, cirurgias mais graves. Coisas relacionadas à visão. Ele já tinha alguns problemas de saúde, fez outras cirurgias e foi muito bem tratado, mas porque eram hospitais particulares. Agora, nesse caso, que ele foi pro hospital público, além do cuidado ter sido pouco, de não ter sido suficiente, ele acabou falecendo lá. Foi levado pro hospital e de repente, eles ligaram e falaram que tinha falecido. Não deram 222
A única forma que nós, comunidade, que nós, pessoas comum, que nós, civis, temos de mudar alguma coisa, é cobrando do governo. Porque eu: Paola S. Oliveira, não posso chegar lá e determinar uma coisa, eu não posso tirar do salário, porque eu não ganho verba pra resolver isso. Então, tenho que cobrar do governo. Como? Acho que indo na prefeitura, fazendo abaixo assinado, fazendo manifestação, e assim por diante. Escolhendo um candidato que você sabe que vai fazer alguma coisa. Pesquisando de novo. Eu, geralmente não vou em posto de saúde e hospital, porque quando eu fico doente eu tenho até medo. Tava brincando com a minha mãe hoje, e falei: “Olha, mãe, se um dia eu estiver morrendo e eu não tiver convênio, me deixa morrer em casa, mas não me leva pro posto de saúde, por favor”. Porque a situação é crítica mesmo. Eu não costumo ir, a única vez que eu fui, eu tinha por volta de onze anos e eu tinha quebrado o pé. Tava brincando, jogando futebol com meu primo, pisei na bola e caí. Engessaram meu pé, não sei de que forma. Até hoje meu pé é meio tortinho, mas tudo bem. O que eu lembro, é que tinha
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muita gente, é que tava lotado. Que demoraram pra me atender, que eu fiquei lá chorando, porque quebrar o pé dói muito, muito, muito. Não foi feito um diagnóstico pra ver exatamente onde tinha quebrado, o que tinha acontecido. O médico só olhou pro meu pé, engessou e me mandou pra casa. Ficou um monte de criancinha lá chorando. Fila lotada, gente esperando remédio. Da escola é o que tenho mais pra contar. É o que mais me estressa, mais me deixa triste e chateada.
A situação da escola é precária. Os vidros são quebrados. As carteiras também. As professoras querem passar um filme, mas o volume da televisão é baixo e a televisão pequena. Nem o controle remoto tem pilha. Falta material. Não tem espaço pra montar uma feira cultural, por exemplo.
Ano passado, um dia tava uma chuva muito forte. Estávamos na escola e no intervalo ouvimos um barulho forte. Quando abriram a porta da sala,
A quadra não é coberta e fica abandonada. Fica em um lugar baixo que bate todo o sol. E em volta tem aquele monte de mato. Educação física em dia quente é impossível, porque os alunos passam mal. Fica abafado. É uma situação crítica.
estava chovendo, literalmente, dentro da
Tem muita coisa que pode ser melhorada.
sala. Caiu tanta água, que foi suficiente pra desmanchar o livro, cair a capa, um caos. Meu livro de português molhou tanto que dissolveu, sobraram só pedacinhos. Aquilo não era goteira, era um buraco no teto. A sala ficou toda molhada e nós precisamos ser dispensados. Telhado furado é uma coisa absurda. Antigamente tinha problema com pombo, porque o teto era aberto e entrava pombo dentro da escola. Era um terror. O pombo invadia a sala de aula, jogava sujeira em tudo quanto é parte e atrapalhava a aula. Sem contar que o pombo é um bicho que transmite muitas doenças. Era terrível. Outra vez foi um urubu na caixa d’água. Os alunos fizeram aquele escândalo. Não sei como apareceu, mas foi histórico, todo mundo parou na janela e ficou olhando. O urubu ficou ao redor da caixa. Imagino que tinha alguma coisa morta lá dentro. Sei lá, um ratinho, um pombo. • • 18 anos, 20 histórias
Às vezes eu acho que nem é má vontade da escola, é falta de verba. E também é depredação, porque as pessoas não tomam cuidados. Por exemplo, quando pinta o muro da escola, alguns meses depois já tá tudo pichado. Chegou carteira nova esse ano, não durou quase nada, já tá tudo rabiscado. É uma situação difícil. A escola não tem uma biblioteca montada, a que tem é uma bagunça. Quando a gente entra pra procurar um livro, demora muito mais tempo pra achar do que pra ler o livro. Quando a gente vai fazer trabalho em grupo, por exemplo. Se tem um trabalho a respeito de determinado livro, para uma sala com quarenta e seis alunos, a professora consegue disponibilizar da biblioteca cinco livros. Então, tem que montar grupos imensos. E o tempo não é suficiente, porque nem todo mundo tem tempo pra ler o dia inteiro. Então, não dá pra todo 223
mundo ler. Falta material. Temos sala de informática. Eu nunca entrei naquela sala. Nem pra usar os computadores, nem pra aprender alguma coisa. Nada. O que eu sei de informática não é porque aprendi na escola. No laboratório... Poxa! Eles usam vidrinho de geléia. O governo até mandou algumas coisas esse ano, mas não é suficiente. Tem acho que, mais ou menos, três mesas, seis banquetas em cada mesa, mas não é suficiente pra quarenta e seis alunos por sala. Não tem professores especializados pra fazer experiências com a gente. Aprender só com professores escrevendo na lousa não adianta nada. Não é uma coisa que você vai guardar pra sua vida, como se fosse uma experiência. Então, tem muita coisa difícil, muita coisa complicada, mas principalmente na questão de falta de material. Quando a gente precisa de alguma coisa, a escola quase nunca tem. Precisou montar um cenário aqui sobre aquecimento global...
programa de isenção da taxa do vestibular da USP, pra não pagar os R$105,00 pra fazer a prova. Ela pegou o nome de uma série de pessoas e levou pra fazer inscrição na casa dela, porque na escola eles não conseguiram fazer. Então, assim, mesmo sem obrigação nenhuma ela se disponibilizou a fazer. Mais importante creio é a questão da verba, porque na escola falta basicamente tudo. Então, mais verba pra resolver esses problemas, e fornecer uma oportunidade pros professores passarem coisas novas. Por exemplo, está chegando o vestibular, faltam mais ou menos 4 meses pra acabar as aulas e eu pego provas de vestibulares e vejo coisas que eu nunca vi na minha vida. Então, é importante melhorar tanto o ensino, na questão da didática, quanto no material. Os professores são bons professores, têm vontade de ensinar e muitos explicam bem. O problema é a falta de recurso e a falta de oportunidade, porque o governo manda o material pronto e fala: - É isso que tem que ser ensinado.
e as professoras tiveram que trazer coisas das casas delas.
Falam que é uma revisão. Mas tem cosias ali que nós nunca vimos, tem coisas muito mais importantes do que aquelas pra serem passadas.
Por exemplo: martelo, barbante, cartazes, nós, os alunos, que trouxemos. Todo material foi dos professores e alunos, porque a escola não tinha basicamente nada.
Acho que falta mais uma liberdade pra que os professores decidam o que vai ser melhor passar, porque eles conhecem a turma, eles sabem o que nós já vimos.
Muitas vezes os professores fazem coisas assim, se sacrificam mesmo pra poder ajudar a gente. Por exemplo, ontem, a professora de português se disponibilizou a pegar número de RG, CPF, nome completo do aluno, pra fazer inscrição em um
Também tem a questão de os alunos poderem colaborar. Abrir a oportunidade pro aluno falar:
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- Olha, eu nunca aprendi a calcular a área do quadrado. CEDECA Interlagos • •
E aí o professor falar: - Ah, tudo bem, então me disponibilizo a ensinar isso. O aluno poder falar mais, expressar mais, porque nós temos algumas idéias boas e se trabalhar todo mundo em conjunto: os professores, os diretores, os alunos, os pais, o resultado vai ser muito melhor. No primeiro colegial nós tínhamos aula eventual. O quê é que é isso? Falta um professor e entra um outro professor na sala e passa uma matéria que, de repente, não tem nada a ver. Ele passa um texto sobre uma atualidade qualquer ou sobre algum assunto, só pros alunos não ficarem sozinhos na sala. Esse ano, por exemplo, faz um bom tempo que estou pedindo pra fazer alguma coisa relacionada ao vestibular, mas não tem como, porque o governo manda o material pronto, então os professores nem tem a oportunidade de chegar e passar algumas coisas relacionadas a isso. Tem o problema de alguns alunos também. Porque tem alunos que vem pra escola pra não ficar em casa, porque acha que é mais divertido bagunçar na escola do que bagunçar em casa. Acho que precisava de mais punição, uma coisa mais severa, porque não é brincadeira. Tudo bem que a escola não precisa parecer com um regime de exército, não tem que ter tortura, não tem que ser uma coisa assim cheia de pressão o tempo inteiro, mas as pessoas têm que levar a sério.
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Eu falo com os professores, falo com a inspetora, falo com a diretora, na verdade eu falo com todo mundo. Tem alunos que são mais tímidos, eu converso, eu dou sugestões. Participação nas escolhas da escola é pouca, porque as escolhas vêm prontas: “Vai ser isso. Está decidido aquilo”. Esse projeto novo é um PD - projeto diferenciado. No começo do ano os professores não sabiam o que era pra fazer, só sabiam que eles tinham que dar aula de PD, mas não foi especificado o que eles precisavam fazer. Então, eles correram atrás de um material, tentaram montar alguma coisa e depois o governo veio com um projeto totalmente diferente. A escola não toma grandes decisões que nós possamos estar envolvidos. As coisas vêm prontas do governo e a gente não tem essa oportunidade. A participação nas escolhas da escola é, por exemplo, discutir se o aluno vai ser aprovado ou reprovado. Só isso. Eu não vejo na escola, os professores, os diretores dando uma opinião efetiva do que vai acontecer realmente, parece que as coisas caem prontas do governo e na verdade eles ficam meio sem informação. Acho que nem os professores, nem os diretores têm aquele poder de escolha. Quanto aos pais, só na reunião de pais que alguns dão sugestões. Mas, geralmente não vêm tantos pais. Por exemplo, opinam se os alunos devem fazer educação física em dia quente na quadra, sugerem fazer mais trabalho em sala do que em casa, porque muitos alunos não têm tempo. Enfim, dão sugestões mais simples. Quando os pais reclamam, geralmente a escola atende. Quando 225
dois alunos se desentendem, a escola também toma providências. Mas isso funciona melhor no período da manhã e da tarde, no período noturno nem tanto, porque como já são “adultos”, os pais comparecem menos nas reuniões, os pais não tem tanto controle, porque os pais não estão tão presentes na vida dos filhos. Eles não dão sugestões relacionadas ao que vai ser feito com a parte física da escola, mas sim como tratar os alunos. Quando se trata de crianças, de préadolescentes, é mais fácil os pais estarem presentes, tem essa comunicação entre pais e filhos. Mas a maioria dos adolescentes não fala como é que funciona a escola, porque não querem nada com nada. Então, se a escola estiver ruim, eles procuram deixar pior. Acho que toda grande mudança começa com pequenas atitudes. Então, os alunos têm que ter consciência. Acho que esse é o primeiro ponto, todo mundo se concentrar. Os pais, alunos e professores entenderem que esse aqui é um lugar pra formar conhecimento, pra adquirir conhecimento, pras pessoas se desenvolverem.
nem em si mesmos, nem na escola, nem no futuro. A maioria não pensa em nada, não quer saber de nada, não tem objetivo. Os professores? Acho que tem que ser mais rígidos em alguns pontos. Os alunos estão se matando no fundo da sala, estão fazendo bagunça, estão ouvindo música. Por exemplo, é muito comum soltarem bomba dentro da escola. Uma vez jogaram uma bomba dentro do vaso sanitário, ela explodiu, e aí ficou uma bagunça tremenda no banheiro. E se tivesse alguém lá dentro? Então assim, são coisas absurdas. Não é porque é sexta-feira que ninguém tem que entrar na escola. Tem que ter aula normal. Isso tem a ver com as pessoas que estão dentro da escola, pessoas que estão envolvidas com a escola. Mas também precisa de material, precisa de verba, porque não adianta ter boas idéias, não adianta os alunos se esforçarem, os professores se esforçarem se a escola não tem uma estrutura pra fornecer, pra ajudar no ensino. Material. Verba. Acho que tem que cobrar o governo. Na verdade,
A escola... não é só um lugar que a gente passa cinco ou seis horas por dia para ficar sentado na cadeira, ouvindo uma coisa que você vai decorar naquela hora pra fazer a prova e depois esquecer, mas é um lugar pra você aprender mais e pra se desenvolver. Então, acho que os pais têm que participar mais, tem que falar, tem que dar mais sugestões. Os alunos têm que ter consciência e perceber que o futuro deles também dependem da escola, porque os alunos aqui não acreditam 226
não sei se é mandando carta pra secretaria de ensino, não sei se é através do diretor que vai lá e fala, não sei se fazendo abaixo assinado funciona, não sei se fazendo uma manifestação na frente da secretaria de ensino, mas é preciso fazer alguma coisa pra eles
CEDECA Interlagos • •
saberem como isso está e o que precisa. Tem que ser feita uma cobrança do governo, porque não adianta ficar falando mal aqui e não fazer nada. Porque são várias escolas. Todas as escolas da região são assim abandonadas. As melhores escolas, as que não estão tão ruins assim, é porque o diretor tem pulso muito firme, às vezes até firme demais, e cobra demais dos alunos. Chegam a desobedecer regras do governo. Por exemplo, eles expulsam o aluno e se ele não conseguir vaga em outra escola é problema do aluno, eles não aceitam de volta. Já é uma questão em que o governo não está tão envolvido e a diretora age como se a escola fosse dela, é basicamente uma ditadura, mas funciona melhor do que aqui. Acho, na verdade, que esse não seria um caminho. Funciona melhor do que aqui, mas acho que não é uma coisa construtiva, podia ser melhor. Acho que o caminho é verba. Tem pessoas que tem vontade de buscar mais, mas, por exemplo, qual a possibilidade de um aluno que se formou nessa escola, entrar em uma faculdade como a USP? É mínima, porque o ensino foi ruim, porque não tinha material, porque a maioria dos colegas da sala estavam fazendo bagunça. Acho que de tanto ver essa realidade nítida é que os alunos perdem as esperanças. Acreditam que não podem conseguir nada, acreditam que a escola não pode trazer nada, pra eles, desacreditadas, • • 18 anos, 20 histórias
então
se
tornam
pessoas
que não confiam em nada, nem neles mesmos. Eu vou procurando tirar as minhas dúvidas. Se eu não sei, vai ter alguém que sabe. Em algum momento vou encontrar essas pessoas. Então, vou perguntando até descobrir, porque não posso ficar esperando a escola melhorar pra melhor a minha vida. Tenho que cobrar muito de mim, porque eu trabalho, estudo e faço curso. Estou em um momento muito agitado. Cheia de expectativas, pensando no que vai acontecer. Mas independente de dar certo ou não, de conseguir, na primeira tentativa, entrar em uma boa faculdade, o que vale é a experiência. Os meus dias são bem diferentes uns dos outros. Acordo cinco horas da manhã, tomo aquele banho super rápido, não tomo café, saio correndo e vou com meu pai até o metrô Ana Rosa. Lá, volto pra estação Conceição. Meu trabalho é lá. Fico lá até as duas e meia. Então, pego o metro de novo e vou até a estação Jabaquara. á, espero muito tempo, canso de esperar, até que consigo pegar o ônibus. Faço o percurso inteiro e 227
desço no caminho pra pegar outro ônibus. Nisso tô cansada, com sono, um caco. Tô louca pra dormir. Chego em casa e pego minha pilha de trabalhos e começo a fazer. Trabalho de inglês, trabalho do curso de técnicas bancárias, vestibular. Quase enlouqueço. Então, me arrumo correndo e venho pra escola. Quase chego atrasada, saio sempre em cima da hora. Como alguma besteirinha em casa e já venho correndo. Fico na escola até as onze horas, volto pra casa super ultra cansada, pra dormir um pouquinho, e acordar às cinco horas da manhã no outro dia. Já as terças-feiras muda um pouquinho, porque ao invés de ir trabalhar eu vou pro curso. Lá no centro da cidade. A correria é mais ou menos a mesma. Só que o curso é um pouquinho mais cansativo porque vai até as três. E pra pegar o ônibus lá é ainda mais difícil. Tem um trânsito horrível no horário de pico. Chego cansada de novo, vou relaxar um pouquinho, como alguma coisa e venho correndo pra escola. No sábado também é um pouquinho diferente, eu tô fazendo curso de inglês e ocupa minha manhã inteira, até meio dia e meio. Só que 228
agora, eu vou mudar, eu vou dar um jeito de passar o curso de inglês pra algum dia da semana... Vou começar a fazer o cursinho da Poli, cursinho pra vestibular e vai me ocupar das sete da manhã, até as sete da noite do sábado. E a noite é chegar em casa e me arrumar um pouquinho, que ninguém é de ferro! Também tenho que me cuidar, sou uma pessoa delicada, não adianta trabalhar, correr, sem ter um pouquinho de tempo pra mim. Vou organizar esse tempo. Quando começar o curso pré-vestibular, o único dia que vai me restar pra respirar um pouquinho é o domingo, mas aí tem dentista que tem que marcar, consulta médica que não pode ser no domingo. Seria um dia que eu teria um tempinho pra ficar com a minha família, pra poder sair. Eu nunca saio com eles, porque não dá tempo. Eu me divirto pouco. Eu gosto de ir ao cinema. Gosto muito ir no teatro. Gosto de ler livros, mas não da literatura que a gente lê na escola – essas são chatas, usam palavras muito antigas, tem que olhar no dicionário toda hora e os temas são cansativos. Gosto de livros fortes, suspense, que falam de espionagem, que falam de coisas do governo. Ah. Também gosto de fazer compras como toda mulher (risos). Gosto muito de ir ao shopping, adoro perfumaria. Coisas pro cabelo, pra pele. Eu gosto de me cuidar mesmo, ficar em casa, sentar e relaxar. Sentar na frente da televisão, comer pizza, ver CEDECA Interlagos • •
filme, conversar, ficar brincando com a minha irmã. Moro com meu pai, minha irmã e minha mãe. Gosto muito de passar um tempo com minha mãe, mas eu não tenho esse tempo. Gosto de passear com meu pai. Coisas de família mesmo, não gosto de balada. Saio com minhas amigas pra shopping, pro teatro, pra festa dos amigos, essas coisas mais tranqüilas. A minha mãe não trabalha. Cuida da casa. Meu pai trabalha como inspetor de segurança, cuida de bancos, confere o funcionamento da segurança. Tenho duas irmãs: a Pérola de doze anos e a Lurdes de cinco. A Pérola vai pra escola e vai começar o curso de inglês e de informática. A Lurdes não mora comigo. Os meus pais se separaram por um tempo. Meu pai teve um caso com a mãe dela, ficaram juntos, depois meus pais voltaram. Eu queria muito que minha irmãzinha morasse com a gente e ela também quer. Queria que meu pai ficasse com a guarda dela, queria poder ver ela crescer, ajudar com escola, com curso, com faculdade. Ter condições melhores, pra poder trazer coisas melhores pras minhas irmãs, que ainda estão crescendo. A falta de tempo pra família é um pouco difícil. Às vezes eu tenho tanta saudade da minha mãe e da minha irmã. Coisa que é raro, nunca ouvi um adolescente falar isso. Porque eu não consigo passar tempo com elas. O meu pai eu vejo de manhã, mas tem vezes que eu passo uma semana sem ver
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o meu pai. Ele mora na mesma casa que eu, mas a gente se desencontra. O horário que ele chega eu tô dormindo ou o horário que eu chego, ele já está dormindo. É difícil... mas acho que vale a pena. Também falta tempo pra outras coisas mais pessoais. Por exemplo, eu não tenho namorado. Eu não tenho tempo. Eu também passo pouco tempo com as minhas amigas. Hoje é aniversario de uma das minhas melhores amigas e não consegui falar com ela pessoalmente. Estou triste por isso. Saí do trabalho mais tarde, vim correndo, passei em casa, comi alguma coisa e fui pra escola. Quando chegar em casa tenho um filme pra ver de um trabalho, livro pra ler, redação pra entregar. Tenho uma pilha de coisas pra fazer. Nem sei que horas eu vou dormir hoje. Tenho vários sonhos. O principal é ser feliz, mas a minha felicidade é conseguir entrar numa boa faculdade. Na Fundação Getulio Vargas, na PUC ou na USP. Hoje trabalho no RH de um banco e lá tenho várias oportunidades, dependendo da carreira que eu resolver seguir. Sou secretária lá. Não é o que eu quero pra minha vida, não quero ser secretária pro resto da vida, porque é bom, mas não é tão bom assim. Então, eu quero começar com Administração, porque abre várias portas, e depois fazer Economia. Quero fazer administração, depois ciências da economia e depois pós-graduação das respectivas faculdades. Também quero comprar meu carro, não por sonho, mas por necessidade mesmo. Conseguir uma casa melhor, num lugar mais 229
tranqüilo, com menos bagunça. Conhecer alguém que me entenda. Porque mesmo completando dezoito anos agora, nunca conheci alguém que tenha uma cabeça parecida com a minha. Todo mundo acha que eu sou muito diferente pra minha idade. Poder ajudar meus pais e minha irmã. Ah, quero crescer dentro da empresa, conseguir um cargo melhor, poder comprar minha casa, o meu apartamento, conhecer a Europa, o Japão, a China e o Egito. Pronto, esses! Meus sonhos de criança eram bem diferentes. Lembro quando eu era pequena tinha dois sonhos relacionados à profissão, que não tem nada a ver com o rumo que eu tomei. Queria trabalhar com física e química, queria fazer explodir aqueles negócios, aquela fumaça diferente, eu queria criar coisas novas, porque desde criança tinha mania de pegar aparelhos e mexer com fio. Queria inventar uma máquina. Eu gostava muito de criar, até hoje eu gosto, só que não na mesma área. Então queria criar coisas, fazer aparelhos que fossem úteis pras pessoas e principalmente pra mim. E o outro sonho era ser espiã, agente do governo, trabalhar com uma vida cheia de ação e emoção. Que é o que eu quero até hoje, só que não é do mesmo jeito de quando era criança. Hoje em dia eu quero ação, eu quero emoção porque se tem uma coisa que eu não suporto é uma vida igual todo dia. Monotonia. Eu queria muito ter uma vida com ação, aventura. Correr, pular de um telhado pro outro. Essas coisas que criança vê em desenho, em filme e fica na cabeça. 230
Quando era criança, era uma menina bem tímida, quietinha, não bagunçava, ficava sempre perto da minha mãe. Mas sempre gostei muito de escrever, então pegava um bloquinho, pegava papel e escrevia e desenhava. Hoje em dia não desenho nada. Desenhava coisas que queriam expressar o que eu tava sentindo. Então eu desenhava e escrevia bastante. Tinha poucas amigas. Não era muito comunicativa com outros, não era brincalhona, então, pouca gente se aproximava de mim. Eu era uma criança um pouquinho triste. Principalmente pela parte do patinho feio, por ser tímida, por falar com pouca gente. Eu tinha a impressão que ninguém gostava de mim, que ninguém prestava atenção em mim, então eu era meio retraída. Como eu posso dizer? Meio triste, meio inconformada com a vida. Queria fazer mudanças, queria ver as coisas melhorando. Sempre gostei de dar sugestão, conselhos, palpite. Tô sempre pensando em coisas novas, jeitos novos de fazer as coisas pra melhorar. Gostava de escrever e contar fatos. Por exemplo, eu começava: Ah, hoje é dia tal do tal, e ai aconteceu isso e isso. E depois que eu contava aquele fato que aconteceu comigo, eu rabiscava e jogava a folha fora. Aí, a partir do fato que aconteceu comigo eu criava uma historinha. Como se não tivesse acontecido comigo e fosse com outra pessoa. Um conto de fadas. Uma historinha de mágica. Uma história de ação. CEDECA Interlagos • •
Criava alguma coisa que parecesse com minha história, só que transformava as pessoas reais e os fatos reais em contos, em mitos, em lendas e aí ia criando. Então, eu colocava nomes de mentirinha, inventava cenário pra história. Assim colocava o que sentia, o que eu era. Tinha uma caixinha que eu guardava todos. Lia e depois de uns anos falava: ‘Nossa, como eu pude escrever isso? Ai como eu era chorona! Ai como isso, ai como aquilo’. Ficava com raiva de mim mesma porque, “Poxa, porque que eu não tive coragem de resolver isso nesse dia? Poxa, porque que eu não falei o que eu tava pensando?”. Amassava e jogava fora. Tinha um diário até poucos dias. Um diário com muitos fatos. Tive diário dos nove aos treze. Depois parei de escrever em diário e comecei a escrever em folha avulsa. Ia ficando com raiva de mim mesma, por atitudes que não tomei, ou por atitudes que eu tomei. Acabava jogando fora e preferia não guardar recordações, deixar só na memória pra não ter nenhuma prova contra mim. (risos)
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Não reclama, pois há muita roupa pra passar Não reclama, que há ainda o jantar para fazer Não reclama, se o teto desabar, a escola vai melhorar Não reclama, que a consulta é já no mês que vem, se o equipamento funcionar Não reclama, pois a chuva só levou a sua cama* E se gritarmos: Somos gente! Temos dignidade! E se ocuparmos as ruas e tomarmos conta da cidade? E se lutamos por nossos direitos? E se não aceitamos mais nenhum descaso? E se reivindicamos dignidade? * Adoniram Barbosa
“Sou gente, tenho direitos!” 232
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“ ”
Essa história não começa do começo. Começo essa história por mim, que conto a história. Acho difícil tomar outro ponto de partida. É bom trazer isso logo de início, pois assim o leitor poderá vê-la apenas no possível, no permitido por ela. Essa história é costurada pelos retalhos de nossos olhares. Nossos, de cada um que conheceu Luanda, ou então compartilhou de nossas questões sobre o que escrever e o que não escrever desta história, onde dizer, onde silenciar... São nossas impressões. Assim é construída... O não encontro. A palavra atrás do beco. Escondida. Cansada. Quantas coisas poderiam dizer o silêncio? Não saberemos. Mas ele diz. Nasceu em 13 de julho de 1990 Não a conheci pequena. Chamava-se Luanda. Sei, apenas, de trechinhos tão curtos e cortantes, 234
que apenas entreolham um pedaço dessa história. Como seria Luanda na infância? De que gostava de brincar? Eram sete na família. Mãe Laura e seus seis filhos: Marlene, Joana, Luanda, Roger, Rafael e José. Laura tinha seus 42 anos quando a conheci, mas talvez pelo trabalho desde novinha, quiçá pela vida que lhe apressara, suas feições aparentavam muito mais idade do que tinha. Trabalhava todo dia fazendo limpeza nas casas alheias. Só não gostava de atender telefone, não havia como anotar recado, já que não sabia escrever. O provável curto salário assim parecia dar conta dos gastos de sua pequena casa. Eram três pais diferentes. Cada qual em seu caminho. Eu não poderia escrever sobre eles. Apenas posso dizer que o pai de Luanda era escolhido por afeto. O outro, aquele que a genética nomeia,
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daquele nada falava.
Des-proteção incabível.
As duas filhas mais velhas tinham vinte e cinco e vinte e sete anos, Marlene e Joana. Cedo se casaram. Cedo construíram novas famílias.
Ficou-lhe a tarefa de sobreviver.
O mais novo dos irmãos era o pequeno José de dois anos, depois vinha Roger, de seis e então Rafael, de doze anos.
Será que a menina ainda se punha sonhar? O tempo costumeiro já estava distante. Imagino que os dias não cabiam nas mãos e a comida já faltava...
No meio estava Luanda.
E que até a sobrevivência pedia socorro...
Filha do meio.
Foi quando a irmã mais velha não esperou mais.
No meio desta história. Eram quatro na casa.
Encaminharia o caso para “os órgãos que cabia”.
Lá moravam Laura e os quatro filhos mais novos.
Mas quais seriam?
Dias daqueles, a mãe, Laura, disse que ia à casa do namorado.
Assim como Marlene, muitos sempre ouvem falar de que casos assim era o Conselho Tutelar que resolvia, mas não sabia bem ao certo não.
Era costume ficar fora um tempo.
Era ajuda?
Passaram-se dias.
Era conselho?
Teria ido arejar a mente?
Era juízo?
Teria ido arejar a vida? Será que lhe faltara o ar? Passaram-se mais dias. Será que alguns dos dias conseguiam passar desapercebidos?
Assim, sabendo mais ou menos, foi à porta do Conselho. E logo o caso foi encaminhado: Os filhos de Laura iriam para o abrigo e então, o juiz decidiria. Assim foi...
Será que nesses dias o tempo tardava a passar?
Eram quarenta no abrigo. Crianças e adolescentes.
Será que o tempo acompanha a espera?
Não era a fundação Casa1, mas tinha até nome de Lar.
Luanda, na casa era a mais velha. E em seus 14 anos, ficou com a tarefa de cuidado. Dela mesma e dos três irmãos. A proteção possível.
• • 18 anos, 20 histórias
De zero a dezoito anos. O juiz avaliaria o caso e a mãe seria chamada. 1 Autarquia responsável pelo Atendimento a Adolescentes em Medida Socioeducativa no Estado de São Paulo.
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Como seria encontrar novas companhias? Como seria ter de se adaptar a uma nova rotina? Como seriam os cuidados?
Então já fora do fórum, brigou com uma das meninas. Nem bem saía da sala do juiz, logo teria que voltar. Receberia uma medida:
O que haveria de familiar? Saibam os leitores, que esse Lar já existia há tempos. Nesta mesma época, houve uma denúncia por parte dos adolescentes: qualquer coisa dita errada, um castigo vinha. Desses castigos da época da palmatória, desses que doíam além do corpo. Por conta destas mesmas denúncias, foi à sua primeira audiência com o juiz. Foram vários adolescentes do abrigo. Acontece que apesar das denúncias levantadas, Luanda havia encontrado alí alguma acolhida. Conheceu aquela menina...
Processo: 3176756433242 Medida: Liberdade Assistida Ato Infracional: Agressão Período: Ressocialização Meses depois, sua vida era informada ao juiz: RELATÓRIO DE ACOMPANHAMENTO Vimos por meio deste, informar a Vossa Excelência, que a adolescente em questão está sendo acompanhada em Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida, desde o mês de março de 2005.
Como era se apaixonar? Quantos sentimentos pulsavam? Quantas descobertas vibravam? Como despedir se novamente? O fechamento deste novamente ficar sozinha?
abrigo
seria
Luanda em seus dezesseis anos. Magra, de roupas largas, camiseta, bermudão e cabelos raspados. Teve que tirar o boné sobre o rosto. Muito quieta aos desconhecidos. Então, com o juiz, seu depoimento se opôs ao de outros adolescentes. Luanda, que de início estranhou aquele lugar, dizia:
Informamos que: Lua parou na 5º série. Lua fuma cigarros. Lua gosta de jogar vídeogame. Lua faz tratamento de epilepsia. Lua tem medo de ser novamente abandonada. Lua sorri, olhando quase que todo tempo para o chão. Lua não gosta, Lua parou,
- Prefiro o abrigo a voltar pra casa.
Lua tem medo,
- Lá, tinha comida e companhia. 236
CEDECA Interlagos • •
Lua sorri pro chão... Cumpria a tal medida, por enquanto morando no abrigo. Logo teve outra audiência. No dia, D. Laura levou toda a papelada, tudo comprovando que tinha até feito o recomendado: o tal do acompanhamento psiquiátrico. E olha que o psiquiatra era distante duas horas de sua casa. O juiz arrependido...
lhe
perguntaria
se
teria
se
Ela revelaria a sua história? Ou guardaria para si suas angústias? E ainda as agresssões que ela mesma já tinha vivido? Ou levaria papeladas e comprovantes? Aos poucos conseguia retomar cada uma das guardas de seus filhos. Assim foi também com Luanda, mas a verdade é que em outros momentos saia de casa e ia pra rua. Mas na volta sempre dizia:
- Prefiro a rua a voltar pra casa. Prefiria a rua a voltar pra casa? De volta a casa, mãe e filha por tantas vezes jogavam uma na outra, palavras ou objeto... O que diziam tais palavras? O que queriam dizer tais palavras? Conheci Luanda, já tendo passado por todas essas instituições, quando estava cumprindo medida socioeducativa. Parecia já cansada. Talvez ser penalizada tantas vezes lhe cansara... • • 18 anos, 20 histórias
Quando surgiu a possibilidade deste livro, logo pensei em Luanda. Contar sua história, não por relatório, não para técnicos, não para o conselho, não para o juiz. Contar sua história não pela negação, como talvez tenha feito aqui. Contar sua história a partir de suas próprias afirmações, modos de ver e sentir seu caminho. Como ela não tem telefone, liguei para sua irmã, que mora em outra casa, expliquei brevemente que era um convite e pedi que deixasse esse recado: iria na próxima terça feira pela manhã a sua casa para lhe deixar este convite. Cheguei a sua casa pela manhã, por volta das dez e trinta. Quem atendeu foi seu irmão. Esperei na porta enquanto ele foi ver se sua irmã atendia. Voltou dizendo que ainda dormia, mas que era pra entrar. Neste dia conversamos em volta da mesa da cozinha. Contou histórias diversas, do que fazia na rua com amigos, que gostava de ficar na calçada conversando e que apenas não gostava de gente folgada como a polícia. Conversamos muito e fiz o convite para a jovem, que logo aceitou. Combinamos na mesma semana começarmos. Não apareceu. Fui saber o que acontecera. Fui muitas vezes a sua procura. A verdade é que nunca mais a encontrei. Certa vez falei com sua mãe. Disse-me que era melhor que quando viesse chegasse bem cedo, pois logo de manhã saia pra rua e ficava o dia todo fora. Ralhou um pouco com a maneira de ser de Luanda. Disse também que era melhor que lhe chamasse de João, pois assim preferia, principalmente se sua namorada aparecia. Em outra vez, a mãe desabafava de angústias e de Rafael, seu penúltimo filho, que estava em um programa de proteção à criança ameaçada de morte... 237
Na última vez que fui até sua casa, conversei com o irmão mais novo e na calçada lhe perguntei e pedi que respondesse sem reserva, se achava que deveria voltar pra tentar falar com Luanda. O pequeno olhou pra baixo, sorriu de lado e disse-me que a irmã por todas as vezes que eu passava em sua rua, se escondia pelo beco ao lado. Não queria ser vista. Não era mais Luanda.
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CEDECA Interlagos • •
A ponte que não encontra passagem? O que teria deflagrado este encontro? Talvez esta ponte passa sua descrença por outra instituição que vai a seu encontro. Talvez pela possibilidade de defrontar-se novamente com as diversas faces da institucionalização. Talvez fosse insuportável. Talvez a vida (re) construída só fosse possível se o passado permanecesse lá onde ficara. Família... Conselho Tutelar... Juiz... Abrigo... Departamento de Execução da Adolescência e Juventude... Programa de Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade... Unidade Acolhedora... Vara da Infância e Juventude... Família... Rua... Família... Afinal des te caminho quantas são as garantias? Luanda não é seu nome. João também não. E ao mesmo tempo talvez seja tantos outros nomes. Luandas, Marias, Rodrigos, Jéssicas, Washington, Wesley, Ricardos, Jennifer, Valerias, Paulos, ...
“Sou gente, tenho direitos!”.
• • 18 anos, 20 histórias
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Capítulo 3
... e 2 histórias que não puderam ser contadas
Outras paisagens também surgiram neste percurso. Dentre os contatos iniciais realizados, alguns se faziam mais difíceis, não chegando sequer ao convite para participar deste projeto. A partir daí, passamos a refletir acerca da realidade de outros adolescentes que, dados como desaparecidos, não puderam contar a sua história. Em outros momentos, conversamos com responsáveis e parentes de jovens que após escutar a proposta desvelavam a situação em que viviam. Dois jovens estavam ameaçados de morte. Em outra ocasião, na tentativa de encontrar uma das participantes, recebemos a notícia de que seu irmão estava incluído no Programa de Proteção à Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Nesse universo tão pequeno de famílias de jovens indicados, três adolescentes estavam ameaçados de morte. Desta outra maneira se desenham trajetórias de crianças e adolescentes na “saída” de casa para constituição de outras vidas “possíveis”. Tais fatos ressaltaram a necessidade de não deixar que histórias como estas ficassem caladas. Silêncios que trazem grandes ruídos no modo como cuidamos da Infância e Adolescência no Brasil. Assim, mais duas linhas foram desenhadas: • •
Adolescentes ameaçados de morte Adolescentes desaparecidos
Como pontuamos no início, palavras e silêncios constituem estas páginas. Suas histórias não vão ser contadas. A emergência de sobrevivência faz-se maior.
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CEDECA Interlagos • •
Pintura de: Rodrigo Branco
E se eu tivesse rosto? Se eu fosse alguém? E se a minha vida valesse um tostão? Se meus sonhos não ficassem espalhados pelo chão? Se eu pudesse caminhar? E se eu não precisasse ter medo? Se eu pudesse, simplesmente, deitar e dormir? E se acordar fosse bom?
E se viver fosse possível? E se eu morrer? Alguém vai saber? Alguém vai se importar? E se eu morrer? Vai doer? Vai aliviar? E se viver fosse possível? E se eu morrer? Amanhã será um novo dia? Alguém vai chorar? Ou ninguém vai notar?
Porque ela me bateu tanto? Porque nunca conversamos? Porque me deixava com fome? Sabem que eu sinto medo? Porque me levaram embora? Se eu disser não, ele vai me machucar? Se eu fugir, consigo voltar? Alguém irá me encontrar ? Porque ninguém vem me buscar? Será que minha mãe se lembra do meu rosto? Meu pai está bravo comigo? Se eu voltar, ainda vão me querer? Voltar para onde?
Fotografia: Renato Silva Moreira
Capítulo 4
Algumas reflexões à luz dos direitos fundamentais preconizados na Convenção sobre os Direitos da Criança e no Estatuto da Criança e do Adolescente
O caminho percorrido por esses jovens, revelado nos capítulos anteriores, a partir do relato de suas histórias de vida, reflete uma história também de 18 anos de existência de um marco legal brasileiro (ECA) e um marco legal internacional (CDC) que reconhecem a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, não como objeto, não como menor, não como maior, mas sim como pessoa. Este capítulo dedica-se a suscitar reflexões sobre a realidade de implementação desses marcos legais, a partir de alguns aspectos das vidas desses jovens, que constituem as porcentagens nas mais variadas pesquisas que se propõem a avaliar as políticas destinadas a crianças e adolescentes. Embora não seja objetivo deste capítulo avaliar tais políticas, entendemos que ele traz de forma complementar importantes subsídios e que é, especialmente, na junção entre tais análises que esta avaliação pode se revelar ainda mais frutífera. Para que isso fosse possível, relemos todas as histórias e selecionamos diversos aspectos que atravessavam, as vezes uma, outras vezes algumas ou todas elas, e que ao nos saltarem aos olhos, entendemos serem importantes nos caminhos percorridos por cada um dos jovens. Os temas gerais levantados foram: infância, adolescência, direito à vida e à saúde, direito à moradia, direito à cultura, direito ao esporte, direito ao lazer, direito à educação, direito de ir e vir, direito à mobilidade, direito à convivência familiar e comunitária, acesso à justiça, direito à segurança, direitos dos povos indígenas, direito das pessoas portadoras de deficiências e o direito à participação. Depois disso, convidamos alguns associados e colaboradores deste centro de defesa, especialmente escolhidos por constantemente transitarem e debaterem tais aspectos das vidas de crianças e adolescentes, para lerem histórias e alguns trechos selecionados de determinado aspecto, e a partir deles escreverem uma reflexão pautada nos marcos legais. Embora os textos não reflitam necessariamente posicionamentos institucionais do CEDECA Interlagos, todas as contribuições trazidas por essas reflexões muito enriquecem as discussões realizados por este coletivo no seu cotidiano de trabalho. • • 18 anos, 20 histórias
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Na imensidão de aspectos possíveis evidenciados pelas histórias nem todos foram contemplados com reflexões. Nem todas as garantias e nem todas as violações de direitos são aqui discutidas. Muitos debates ainda se fazem necessários, abrangendo ainda mais pessoas, ainda mais crianças, adolescentes e jovens, que contribuam na qualificação das políticas de garantia de direitos.
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CEDECA Interlagos • •
Infâncias e Contemporaneidade Brincar, brincadeira… brinquedo. Maria de Lourdes Trassi Teixeira*
Eu e meus irmãos Ficávamos caçando, caçando aventura (Bahia)... Sempre nós três... (Mariane)
Quem tem medo de fantasma? E, de bruxa? E, de mula sem cabeça? E, de caveira? Jorge não tinha medo de caveira, nem de cemitério. Brincar com o medo… Brincar sem medo. Brincar com o corpo: pular, correr, uma perna só, dois pés, saltar, girar, cair, duro ou mole, bater palma, cantar, se esconder, olhar o mundo lá de cima da perna de pau. Paola queria brincar com outras crianças, mas terminava – por excesso de cuidado da mãe com o seu coração – achando um jeito de brincar consigo mesma, com seus pensamentos: escrever, desenhar, pintar, amassar o papel, jogar, reescrever o mundo e a caixinha da Paola ficava cheia de histórias de seus sentimentos: outras histórias dela mesma, seus segredos – criança tem segredo! Paola nos ensina aquilo que precisamos aprender quando olhamos a brincadeira da criança: ela vê o mundo de um jeito muito dela e expressa isso na sua produção. E, portanto, nenhum julgamento é possível. As soluções que encontra para os confl itos que vive ou que inventa não suportam o teste de realidade. Isso não importa! As soluções reais, ponderadas, viáveis são responsabilidades dos adultos. Então, só nos resta olhar, aprender, compreender e/ou entrar na brincadeira de faz-de-conta... E, quando usamos nossas memórias afetivas, - lembranças de nossa infância desenhadas no mais recôndito de nós compreendemos melhor porque o brincar é o espaço da afetividade, da criatividade. Com brinquedo ou sem brinquedo – a brincadeira é um encontro de intimidade com o outro: é o modo mais fantástico de compartilhar, aprender a conviver, aprender a ser – ser o primeiro, ser o segundo, • • 18 anos, 20 histórias
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ser o último, esperar, trocar, negociar, trapacear, perder, ganhar. As crianças sempre ganham quando brincam; por isso dizemos que a capacidade da criança brincar é um importante indicador da sua saúde mental, por isso nos preocupamos com as crianças que não brincam porque estão muito tristes, muito apáticas, muito doentes ou porque trabalham e vão perdendo sua infância. E, então, cantamos como em uma ciranda que passa de geração em geração, o direito de brincar como um direito à infância, condição para o desenvolvimento de nossas crianças próximas e anônimas como pessoas-cidadãs brasileiras e do mundo, que “gira na palma de sua mão”, como um belo pião.
*Psicanalista, doutora em Serviço Social pela PUC-SP, supervisora da área de criança e adolescente da Faculdade de Psicologia da PUCSP, coordenadora do Mestrado Profissional Adolescente em conflito com a lei da UNIBAN, autora do livro Adolescência-Violência: desperdício de vidas.
E-mail: lurdinhatrassi@uol.com.br
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Adolescências e Contemporaneidade “O desafio de pensar o que é proteção” Maria Cristina G. Vicentin*
O ECA assenta-se no princípio da “condição peculiar de desenvolvimento” da criança e do adolescente. Isto é, na idéia de que os modos de pensar, sentir e agir da criança e do adolescente são distintos dos modos de pensar, sentir e agir do adulto. É o que nos conta Paola: Na metade da quinta série voltei pra São Paulo. Foi uma fase de transição, porque tava deixando de ser criança e começando a ser adolescente. Não sabia bem o que queria. Tinha complexo de inferioridade, me sentia o patinho feio, pensando que ninguém gostava de mim. Um monte de problema. Ser criança ou ser adulta?
E também Amanda: “Estou muito feliz hoje. Hoje eu não sou mais criança, mas ainda não sou adulta e sim jovem, já já ficarei adulta.” Isto é, nosso mundo reconhece que há necessidades e demandas específicas da adolescência e que essas devem ser traduzidas em políticas específicas e também por um sistema especial de proteção de seus direitos. Por exemplo: adolescentes têm algumas necessidades de saúde distintas dos adultos e os serviços de saúde devem ser sensíveis a acolher as experimentações próprias desse tempo. É essa mesma condição peculiar que justifica as diferenças no tocante aos modos de proceder com a adolescência no caso de um ato infracional: não sancionar com as mesmas regras do adulto, mas, ao responsabilizar, fazer uma aposta educativa (as medidas socioeducativas). Considera-se, ao contrário, que a patologização ou a criminalização dos sinais de rebeldia e de questionamento das normas na adolescência pode, ao contrário, provocar ou cristalizar o comportamento que se quer criticar. O fato de a própria adolescência constituir-se como uma espécie de crise normativa, em que a estruturação da identidade do indivíduo está se definindo, revela que é preciso que o “mundo adulto” não precipite as experimentações adolescentes em formas patológicas ou delinqüentes. • • 18 anos, 20 histórias
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Se não fosse assim, como pensar e acolher a relação de Jorge com a “droga”?
A droga quando eu queria experimentar, eu experimentei. Fiquei um tempo usando, só que eu depois já sabia como é que era, como deixa a pessoa. Aí falei: “Já era, eu já sei como que é, então, parei!”. O cigarro mesmo, não queria fumar, aí, meu amigo disse que ia me ensinar a fumar, agora também parei. Já tô três meses sem fumar. (...) Eu fumava maconha. Só. Outros tipos de droga eu não usava porque eu ficava pensando que eu não sei se o meu corpo aceita aquela droga, entendeu? Tipo, a cocaína, vamos supor, eu vou usar aquilo dali e se meu corpo não se der bem com aquilo, dá overdose ou alguma coisa assim, acontece com muita gente. Dá overdose porque usa demais. Então eu nunca usei esse tipo de coisa. Só fumo maconha mesmo.” (grifo meu).
Se toda experimentação adolescente for criminalizada ou penalizada, como construir autonomia e responsabilidade - isso que Jorge nos mostra ter desenvolvido no seu modo de auto-cuidar-se? Essa condição peculiar, entretanto, não deve ser vista como uma essência ou como uma fase inerente e imutável do desenvolvimento humano. A adolescência é uma criação sócio-histórica, assim como o é a infância: foi o mundo moderno e depois o contemporâneo que desejou estabelecer uma distinção etária a favor de apostar na construção da diversidade de mundos: a infância é uma construção da modernidade (sec. XVIII) e a adolescência é bem mais recente (séc. XX). É exatamente por conta dessa perspectiva histórica que emergiu uma sensibilidade diferenciada em relação à criança e ao adolescente, antes inexistente. Sensibilidade, no caso da adolescência, que se formula como um respeito à sua condição de abertura, de incompletude. E como uma aposta na construção da autonomia: um direito a pronunciarem-se sobre si mesmos e sobre o mundo. Possibilidade de definir sua própria existência, como nos conta Elisabeth:
Três meses atrás decidi ir morar em outra casa e falei pra minha mãe. Aline, minha amiga também morava com a mãe dela. Então uma jovem da tekoa Jaraguá veio morar aqui e minha irmã fez uma casinha pra ela morar. Moramos primeiro lá, nós três. Depois minha irmã também mudou e deixou a casa dela pra nós. Hoje moro com elas duas e logo chegarão outras duas jovens de outra tekoa. Aqui é mais bacana e legal que na casa da minha mãe. Mudei por que eu queria estar com elas, são minhas amigas, minha família também. (grifo meu)
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Se há “condição peculiar de desenvolvimento”, não quer dizer que a relação do adulto com o adolescente deva ser de tutela, isto é, que a criança ou adolescente sejam objetos do poder do adulto e a condição etária seja fonte de discriminação. Mas não quer dizer também que a diferença criançaadulto deva ser apagada. Não se pode confundir tutela e proteção, principalmente quando o direito à participação tem sido um direito insuficientemente reconhecido e exercido pelos adolescentes. A Proteção Integral como referência ética a partir do qual pensarmos as nossas práticas em relação às crianças e aos adolescentes, requer o reconhecimento da existência de uma tensão, a ser constantemente pensada, e não necessariamente de uma contradição, entre pessoa em desenvolvimento e sujeito de direitos, entre proteção e autonomia. (Arantes, 2009) Proteção não é controle sobre o adolescente, é, sim, fundamentalmente, a manutenção dos nossos ideais pactuados de humanidade e dos projetos educativos que construímos para alcançá-lo, isto é, o patrimônio de laços sociais, éticos, democráticos e ternos que formos capazes de acumular e legar às novas gerações. Que os modos de ser e de viver construídos pela juventude sejam rebeliões felizes ou trajetórias de morte, dependerá do quanto o mundo adulto - as vontades políticas, pedagógicas, jurídicas, comunicativas, familiares, etc- for capaz de dialogar com as experiências juvenis, for capaz também de inventar seus próprios mundos e for capaz de se mover a construir coletivamente a vida. Os destinos dos jovens estão profundamente ligados à posição dos adultos: se os adultos não combatem sua própria inércia existencial não estarão assegurando proteção.
*Psicóloga, analista institucional, professora da PUC-SP, pesquisadora e consultora do campo da juventude em conflito com as leis. Associada ao CEDECA Interlagos.
Referências Bibliográficas ARANTES, E. M. M. Pensando a Proteção Integral. Contribuições ao debate sobre as propostas de inquirição judicial de crianças e adolescentes como vítimas ou testemunhas de crimes. In: CNDH/CFP. (Org.). Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção. 1a. ed. Brasília: CFP, 2009, v. 1, p. 79-99.
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Adolescências e Contemporaneidade Adolescências e sexualidade Gloria Maria Motta Lara* Lucia Toledo**
Pouco tempo depois, já prestes a fazer quinze anos, veio a minha primeira menstruação. Ai meu Deus! Foi muito chato. Eu não sabia o que fazer, nem contava pra ninguém porque eu tinha vergonha. Ficava com medo de falar pras minhas tias, pra minha vó. Sentia cólica, chorava e ninguém sabia por que era, porque eu não tinha coragem de falar. No terceiro mês minha tia descobriu que eu tinha menstruado. Falou pra todo mundo. Eu fiquei com muita vergonha. Teve uma vez, no quarto ou quinto mês, que eu menstruei na escola e acho que senti, mas não tive coragem de levantar da cadeira. Fiquei lá. Não fui pro intervalo. Não falei com os professores. Esperei todo mundo da escola sair. (...) Eu tinha medo das pessoas saberem.
(Lila)
A sexualidade é uma característica própria do ser humano e está presente em todas as fases da vida. Informação sobre suas diferentes dimensões colabora para que crianças e adolescentes desenvolvamna de forma saudável e tenham elementos para se protegerem. Grande parte dos meninos e meninas chega à adolescência com poucas informações a respeito de sua própria sexualidade. A maioria encontra muita dificuldade para conversar sobre o tema com pais ou professores e acaba trocando informações entre si, nem sempre corretas e muitas vezes reprodutoras de preconceitos. Para a maioria da sociedade, sexualidade ainda é sinônimo de sexo. Isso explica a resistência de setores profissionais e de algumas instituições em trabalhar esse tema com crianças e adolescentes, sob argumento de que fazê-lo estimularia a atividade sexual precoce. A realidade, no entanto, é bem outra. Na publicação “Direitos Sexuais e reprodutivos de adolescentes: um desafio”, os especialistas do Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual (GTPOS) informam que “crianças e adolescentes que recebem uma educação abrangente sobre sexualidade se sentem mais autorizados a exercê-la como fonte legítima de prazer” (p. 19). Além disso, de 250
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acordo com o GTPOS, são presas menos fáceis do abuso e da violência sexual, estão aptas a cuidar de seus próprios corpos e “menos vulneráveis às conseqüências indesejadas do exercício da sexualidade, seja por se sentirem mais autônomos, seja por buscarem ajuda quando necessitam” (p. 19). Muitas vítimas de abuso sexual, por exemplo, demoram a perceber a violência a que são submetidas especialmente quando ela ocorre no ambiente familiar e é perpetrada por alguém que a criança conhece e a quem está subordinada emocional ou financeiramente. O abusador pode agir de forma agressiva, sujeitando fisicamente a criança, ameaçando-a e utilizando o poder que tem sobre ela. Algumas vezes, no entanto, age de forma sedutora para conseguir o que deseja. Há abuso sexual mesmo quando não há contato físico entre abusador e vítima, assim como ocorre, por exemplo, no assédio, nos abusos verbais, no voyeurismo e no exibicionismo. Se a conversa sobre sexualidade fosse rotineira nas famílias, muitos casos de abuso sexual poderiam ser identificados precocemente e até mesmo evitados. As pesquisas demonstram que parte das crianças e adolescentes envolvida com exploração sexual – aquela modalidade de violência que envolve remuneração - foi abusada anteriormente. Na exploração sexual sempre há pagamento feito diretamente à criança ou ao adolescente, ou a agenciadores e facilitadores, como motoristas de táxis, funcionários de hotéis e boates. Todos os elos desta rede, inclusive aquele que compra o sexo com crianças e adolescentes, são exploradores, independente do papel desempenhado e de sua maior ou menor atuação. Nem sempre a remuneração é em dinheiro. Muitas vezes é feita com presentes, produtos de primeira necessidade (como comida), favores ou proteção (como costuma acontecer no caso de meninos e meninas em situação de rua). Não existem dados estatísticos confiáveis sobre o número de crianças e adolescentes explorados sexualmente no Brasil e no mundo. O 3° Congresso Mundial de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado em 2008 no Brasil, reuniu relatos da ocorrência do fenômeno em praticamente todo o mundo e detectou um aumento dos casos de exploração sexual de meninos. A chamada “prostituição infanto-juvenil” continua sendo a modalidade mais visível de exploração sexual de crianças e adolescentes. A utilização dessa nomenclatura não é adequada já que, no senso comum, prostituir-se é uma opção de vida. Ainda que se admita essa afirmação como verdadeira (que em vários casos não é), ela seria aplicável apenas a adultos. Crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento e, embora sujeitos de direitos, necessitam de proteção especial, inclusive para o desenvolvimento saudável de sua sexualidade. Relacionado com a prostituição de crianças e adolescentes, o turismo sexual cresce em todo o mundo, especialmente nos países em desenvolvimento. No Brasil é visível nas cidades turísticas, especialmente as praieiras, na Amazônia e no Pantanal. Nos grandes centros urbanos, como São Paulo, o turismo de negócios movimenta esse mercado de sexo. Embora não existam estatísticas sobre o assunto, há relatos da ocorrência • • 18 anos, 20 histórias
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de casos em feiras e eventos de grande porte (como corridas automobilísticas, carnaval etc.). O turismo sexual geralmente é organizado por redes criminosas que vendem pacotes em que o sexo com crianças e adolescentes está incluído e é, na maior parte das vezes, o maior chamariz das viagens. Além dos turistas estrangeiros, os nacionais também compram pacotes de exploração sexual de crianças e adolescentes. Outra modalidade de exploração sexual de crianças e adolescentes é a pornografia infantil que não foi inventada após o surgimento da rede mundial de computadores. Materiais pornográficos impressos, em filme, em vídeo e em DVD foram criados, distribuídos e consumidos muito antes do surgimento da Internet. Entretanto, para os especialistas reunidos no 3º Congresso Mundial, o advento da Rede Mundial de computadores favoreceu o crescimento das organizações criminosas que produzem, distribuem e consomem esse tipo de material. Além disso, os estudiosos advertem que as novas tecnologias de transmissão de dados, via computadores ou celulares, podem ser aliadas dessas quadrilhas, especialmente no que diz respeito à captação de imagens e sua divulgação. A preocupação até certo ponto procede, pois muitos adolescentes colocam suas próprias imagens nas redes pensando em atingir tão somente seus amigos e conhecidos, mas acabam perdendo o controle sobre o material postado. De qualquer forma, é preciso cautela para enfrentar o problema: se é necessário impedir que as redes de pornografia utilizem esse tipo de material produzido pelas próprias crianças e adolescentes, urge também garantir a eles o direito de desenvolverem a própria sexualidade e de se comunicarem utilizando inclusive os recursos tecnológicos de que dispõem. Permeando todas as demais modalidades de exploração sexual e alimentando-as existe o tráfico de crianças e adolescentes para fins sexuais. A Pestraf – Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual – realizada pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA) em 2002, identificou 241 rotas do tráfico sendo 131 internacionais, 78 interestaduais e 32 intermunicipais. Nesse comércio, meninos e meninas são retirados de suas cidades, transferidos para centros consumidores e, na maior parte das vezes, submetidos a regime de escravidão. O tráfico de pessoas, de acordo com organismos internacionais de defesa de direitos humanos, movimenta mais recursos do que o tráfico internacional de drogas. A violência sexual contra crianças e adolescentes vêm ganhando espaço na mídia nacional que apresenta quase sempre de forma sensacionalista os casos que são descobertos. De um modo geral, os abusadores e exploradores são tratados como pedófilos embora muitos deles não o sejam. De acordo com o “Guia Escolar: métodos para identificação de sinais de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes” (2003) pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e Ministério da Educação, “o conceito médico de pedofilia aponta para uma disfunção sexual” (IPPOLITO, 2003, p. 52). É um tipo de parafilia, em que o indivíduo só sente prazer com determinado objeto, tal como ocorre na necrofilia e na zoofilia. Segundo Azevedo e Guerra citado por Ippolito (2003, p.52) “para alguns, a pedofilia é uma psicopatologia, perversão sexual com caráter compulsivo e obsessivo”. 252
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O pedófilo é aquele que sente atração por crianças e que pode ou não materializar suas fantasias. Nem sempre o abusador ou explorador é pedófilo e sim alguém que simplesmente encara crianças e adolescentes como coisas que podem ser utilizadas para seu prazer. São pessoas que banalizam a violência sexual assim como a violência social em geral. A violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil insere-se no contexto de uma sociedade violenta, com alto grau de tolerância às suas manifestações, muitas delas resultantes da estrutura social existente. Apesar de nenhum dos jovens que contam suas histórias terem relatado experiências pessoais neste sentido, é possível perceber em algumas falas que a violência sexual é um fenômeno presente em suas vidas, tornando-se necessária a sua discussão. Para que o enfrentamento seja de fato eficaz e eficiente é preciso alterar a visão adultocêntrica da sociedade, garantindo papel protagônico às crianças e adolescentes no que diz respeito a seus direitos, que devem ser promovidos e garantidos pela sociedade como um todo.
Não gosto de descer a noite sozinha. Porque, óh porque assim: teve uma menina que mora perto da minha casa que foi estuprada. Só passa um guardinha lá na rua, mas não resolve nada! Então, foi de madrugada e o guardinha tava lá passando e não resolveu nada (...) Antigamente era ainda mais comum acontecer estupro. (Beatriz)
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*Jornalista, advogada, Coordenadora do Programa AFETO de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes da Agência de Cooperação Social – FAROL. **Psicóloga, supervisora do Programa AFETO de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes da Agência de Cooperação Social - FAROL, coordenadora da Comissão de Criança e Adolescentes do Conselho Regional de Psicologia (CRP-SP). Associada ao CEDECA Interlagos.
FAROL Agência de Cooperação Social Rua Marquês de Itu, 58 - 9º andar. Vila Buarque. São Paulo. Fone: (11) 3231-3920 E-mail: farolsocial@gmail.br
Referências Bibliográficas IPPOLITO, R. Guia Escolar: método para identificação de sinais de abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes / Rita Ippolito, coordenação técnica; elaboração de conteúdo: Benedito Rodrigues dos Santos, Marcelo Neummann, Rita Ippolito. Brasília: Presidência da República, Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2003. LEAL, M. L. e LEAL, M. F. (org.). Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial - PESTRAF: Relatório Nacional – Brasil. Brasília: CECRIA, 2002. GRUPO DE TRABALHO E PESQUISA EM ORIENTAÇÃO SEXUAL, ECOS, COMUNICAÇAO EM SEXUALIDADE E CENTRO DE REFERENCIA INTEGRAL DE ADOLESCENTES. Direitos Sexuais e reprodutivos de adolescentes: um desafio. São Paulo: Gráfica Multiformas, São Paulo, 2005.
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Adolescências e Contemporaneidade Pensando a história de Line na perspectiva de gênero: Adolescências, Gênero, Identidade e Cultura. Jalusa Silva de Arruda*
Minha mãe é mãe solteira, nunca foi casada. Ela tem dois filhos, mas nunca foi casada. Ela criou eu e meu irmão. Eu ficava vendo minha mãe trabalhando demais, sustentando eu e meu irmão, até que dei um basta. Pensei: ‘Vou procurar um emprego pra ajudar minha mãe e vou batalhar junto com ela e arrumar nossa casa’. Tinha 16 anos. (Line)
Se tem algo que chama a atenção em relatos como o da jovem, guerreira e sonhadora Line, é como o desonrolar de tantas histórias de vida dialogam com a forma como se construiu em nossa sociedade os ‘papéis’ do homem e da mulher. Aí fico me fazendo várias perguntas: por que a responsabilidade de filhos e filhas recaem muitas vezes apenas sobre as mulheres? Por que encontramos tantas ‘mães solteiras’ e quase nenhum ‘pai solteiro’? Por que são as mulheres que, além de terem que contribuir para o sustento do lar com algum tipo de trabalho, ainda chegam em casa e encontram roupa para lavar, comida pra fazer e filhos e filhas para cuidar? Refletindo mais um pouco, por que são as mulheres as maiores vítimas de violência sexual e violência doméstica? E por que os homens são a maioria dos agressores desses tipos de violência? Por quê? Pode ser um bom ponto de partida refletir sobre os conceitos de gênero e sexo, que são bem diferentes. Falar de gênero é diferente de falar de sexo. Sexo são características biológicas que vão distinguir fêmeas e machos; já gênero é a construção social da identidade feminina ou masculina: daí podemos concluir que “gênero é a organização social da diferença sexual” (SCOTT apud Kofes, 1994, p.21 ). E a gente vai perceber que este conceito está sempre em movimento, não é fi xo, porque o tempo todo estamos construindo nossas relações sociais. As representações de gênero do passado não são as mesmas de hoje e certamente não serão as mesmas do futuro. Nós construímos isso e se somos nós que construímos, também podemos desconstruir! Se durante grande parte da história da humanidade as mulheres foram subjugadas pelos homens, numa relação de poder desigual, a gente pode virar essa página, mudar o rumo e assumir uma nova sociedade, onde homens e mulheres possam ser efetivamente iguais. • • 18 anos, 20 histórias
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Mas ainda tem uma questão importante. A gente fala tanto em igualdade, mas nós somos todos iguais? Bem, primeiro precisamos saber direitinho de que igualdade estamos falando, já que somos diferentes. Vejam só: existem negros e brancos; pobres e ricos; homens e mulheres; heterossexuais e homossexuais; crianças e adultos; etc. Essas representações que trazemos como exemplos – e temos tantos outros – apresentam muitas diferenças. A questão não deve ser se somos ‘iguaizinhos’, porque igualdade não significa heterogeneidade e uniformidade. O problema é que nem sempre somos respeitados dentro de nossas diferenças e diversidades. A igualdade que falamos aqui (e que tanto precisamos!) é a igualdade de direitos. No entanto, ainda assim surge uma outra questão: se temos segmentos ou grupos de pessoas que durante muito tempo sofreram toda sorte de exclusão, violência, descaso da sociedade e do Estado, ou possuem uma condição peculiar, possuir ‘direitos iguais’ poderá, na verdade, aumentar a desigualdade! Confuso? Vejamos. Vamos pensar e tomar como exemplo crianças e adolescentes, que são pessoas na condição peculiar do desenvolvimento. Se estão nesta condição, que é diferente da dos adultos, crianças e adolescentes precisam receber tratamento diferenciado do Estado, da família e da sociedade para poder desenvolver-se completa, saudavelmente e com dignidade. É por isso que temos o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) e lutamos tanto por ele! Este exemplo é muito parecido com a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006), criada para proteger as mulheres da violência doméstica, já que são elas as que mais sofrem com esse tipo de violência (são as mulheres também as maiores vítimas de violência sexual). Às vezes, para promovermos a efetiva igualdade de direitos, precisamos criar mecanismos e leis que podem até parecer estar ‘favorecendo’ uma parte em detrimento da outra, mas isso não é verdade. Aí a gente pode falar de outro conceito bastante interessante: a equidade, que é a capacidade de entendermos as diferenças e manifestação das diferenças sem discriminá-las e garantindo o direito de todos e todas. Nós somos diferentes, mas nossos direitos são iguais e nossas diferenças, sejam elas quais forem, não podem ser impeditivos da efetivação desses direitos!
* Advogada popular, consultora jurídica do CEDECA/BA e mestranda do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. E-mail: jalusa_arruda@yahoo.com.br
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Referências Bibliográficas
Brasil. Lei nª. 8.069, de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm. Acesso em: 25 ago. 2009. BRASIL. Lei n°. 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 25 ago. 2009. KOFES, S. Categorias Analítica e Empírica: Gênero e Mulher: Disjunções, conjunções e mediações. Cadernos Pagu, Campinas nº. 3, p.19-30. 1994.
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Adolescências e Contemporaneidade ... Arrumar o cabelo! Adolescências, Diversidade Étnica e Identidade Alan Amaro dos Santos*
Minhas primas todas tinham cabelo ruim, elas adoravam fazer escova no cabelo. Elas sempre iam arrumar o cabelo! (Denise)
Mais do que uma colocação sobre o “tipo” de cabelo de suas primas, a expressão de Denise refere-se a sua noção de “beleza”, da idéia do que é bom ou ruim, do critério para separar o “bonito” do “feio”. Temos visto na atualidade, cada vez mais entre os adolescentes e as crianças, um crescimento vertiginoso da preocupação com a estética, induzida pelos meios de comunicação modernos (televisão, rádios, Internet, etc), reforçada pelo apelo midiático, para que as pessoas vivam em função do consumo e da busca incessante por um modelo de ser, apresentado nas novelas, filmes, programas e propagandas. Tal movimento de indução, embora não seja onipotente, tem gerado grandes influências nas escolhas feitas por essas gerações, interferindo em suas opções, na suas noções de “quem são”, em seus “projetos de vida” e em sua auto-estima. No caso específico da Identidade (a noção de “quem sou”), relacionando educação, família, meio social e outros tantos fatores, vemos no que se refere à questão étnica, que existem grandes obstáculos e dificuldades que ainda não estão superados. O Brasil, com o seu mito da democracia racial, construído pela elite dominante após o fim da escravidão, passou seus últimos três séculos, tratando a população afro-descendente e sua cultura, como “elementos de fora” do seu “projeto de modernização”, aceitando o negro apenas quando o mesmo se deixava aculturar (pondo de lado suas raízes, visões, gostos, crenças e práticas), ou tratando-o como “peça folclórica” (no sentido pejorativo da palavra), algo sem vida ou “utilidade prática”, ligado a um passado, inferior e primitivo.
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Daí surge o discurso cotidiano que o preconceito racial à brasileira vai chamar de “negro de alma branca” (que pode se desdobrar em “é negro, mas é limpinho”; “é negro, mas é trabalhador”; “é negro, mas cristão”; etc). O que na prática, é a negação da identidade afro-brasileira, reforçada na ausência de documentação sobre nossa história1, no eurocentrismo de nossos conteúdos escolares2 e no estereotipo do belo, que segue os padrões e gostos de um mercado cultural, amplamente influenciado pelos interesses que transformam tudo em negócio, inclusive os valores, a estética e os comportamentos, seja para brancos ou para os negros. “Fazer escova”, “arrumar o cabelo”, “fazer a chapinha” é exatamente a resposta que uma geração de afro-descendentes, com peles escuras ou claras, acaba dando, a fim de tentar se integrar a esse modelo que lhes nega ser aquilo que nasceram sendo. É como um Frankstein em busca de uma identidade que lhe é oferecida, e quando o mesmo estende a mão, lhe é negada. A sedução de ser aquilo que dizem que é o belo, mesmo que isso possa significar dor e sofrimento. Quantas vezes não se viram, e ainda se vê, as mães, cuja mentalidade também está sob a influência de todos esses mecanismos de indução já citados, pegarem as crianças, principalmente as meninas, ainda novinhas, e com aqueles pentes feitos para cabelos lisos puxarem e repuxarem os cabelos das pequenas, com dores que chegam à região dos olhos, amarrando e deixando-as com a pele do rosto e cabeça toda repuxada? Ainda com aquela expressão: “- Eita cabelo ruim!!!!” Achar que o cabelo crespo é ruim e o cabelo liso é bom é apenas mais uma expressão que denota esse preconceito e esse estigma já impregnado nas cabeças do brasileiro, e que o mercado de consumo aproveitou pra criar uma série de mecanismos (aparelhos, produtos, etc.) que vão “modelando” pra que as pessoas acreditem “ser” aquilo que dizem que elas “têm que ser”, ou que se sintam menores, por “não conseguirem ser”3. Para se contrapor a isso, uma idéia que já habita a cabeça de grupos de meninos e meninas, é dar vazão para o surgimento de uma estética de resistência, onde o natural, ou as belezas com bases em modelos menos estigmatizados, começa a surgir, nas tranças, nos Black’s, nas formas mais diversas que têm se ampliado, resgatando raízes, recriando diferenças... Se esse caminho, que tem partido de 1 Já que o então Ministro da Fazenda Rui Barbosa, mandou queimar a maioria dos registros sobre a escravidão no país, afim de não pagar aos ex-senhores de escravos, indenizações pela perda de sua “mercadoria”, gerando uma lacuna de informação sobre vários aspectos das nossas origens africanas. 2 Que partem sempre da história, da experiência e dos saberes europeus ou euro-descendentes para explicar e definir o que é a “verdade”, que segundo os mesmos é “neutra e infalível”, pois é a “ciência”. 3 Um exemplo simples disso é a quantidade de revistas presentes nos salões de cabeleireiros, sugerindo como a ‘fulana ou a beotrana’ estão arrasando no mundo da moda, (e logo, na vida), por usarem tal penteado, tal roupa, estarem em tais lugares. • • 18 anos, 20 histórias
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movimentos culturais dos próprios adolescentes, for paulatinamente entendido e assumido pela sociedade civil, pelas famílias e instituições de ensino, superando os velhos modelos padronizados, e dando margem para uma compreensão menos preconceituosa da beleza, teremos a possibilidade de no futuro poder tratar da diversidade, do encontro das culturas, de um modo não-hipócrita. E meninas como a Denise, e tantas outras, não terão mais que se “violentar” em nome de uma imagem falsa. Serão livres e belas, com seus cabelos bons, sem escovas... Não terão de arrumar nada... Serão lindas, sem precisar de nenhuma arrumação... Que o defeito está nos olhos de quem vê, por pura miopia cultural e ideológica.
* Formado em História, trabalha como educador na Rede Pública de Ensino desde 1996, realizando projetos relacionados às buscas por mudanças das realidades locais dos bairros de periferia onde vive, questões raciais, sociais e culturais. É músico autodidata, cantor, violonista e compositor, integrante da Banda Razallfaya. Além disso, faz parte do Grupo Semente do Jogo de Angola (Mestre Jogo de Dentro), onde aprende e ensina Capoeira Angola, sob orientação de Fábio Formigão. E-mail: zafrolanz@hotmail.com
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Direito à Saúde, um Direito à Vida Serviços Públicos: do acesso e da qualidade Ubiratan de Paula Santos*
Outra diferença é o serviço de saúde. O daqui é muito lento. Você vai em outubro marcar uma consulta e consegue em fevereiro. Aí em fevereiro, ou o aparelho quebrou ou o médico faltou. (Paola)
Quase todos os relatos dão conta das deficiências dos serviços de saúde, tanto pelo acesso aos serviços e demora no atendimento, quanto pela qualidade no atendimento. Mike narra com poesia sua história, de sua família e, em particular, do pai com quem se identificava. Chama atenção o início, onde relata a morte do pai por infarto do coração e ao final quando se refere a saúde, a falta de hospital e rememora que o atendimento a seu pai três anos antes fora precário. Manifesta convicção de que a morte poderia ter sido evitada com um atendimento mais rápido e melhor. Sua reivindicação é de que no bairro deveria ter hospital, apesar de relatar problemas de esgoto aberto, córrego sujo e terreno com acúmulo de lixo. Afirma a necessidade do hospital, provavelmente pela associação com a morte do pai e com a fama da má qualidade, tendo a mãe impedido que nele ficasse internado quando teve hepatite. Essa manifestação é reveladora da insuficiência dos serviços de saúde locais e da própria escola onde o tema da saúde não foi tratado como direito. Reforça a percepção de que as pessoas não tem a compreensão de como deva funcionar o Sistema de Saúde, porque ele assim não funciona. A escola inserida na comunidade tem papel relevante na formação dos jovens para interpretar e serem ativos na mudança da realidade onde vivem. Já Paola manifesta a insatisfação com o errado, a necessidade de reivindicar, a indispensável rebeldia dos jovens, que deveria permanecer amadurecida nos mais velhos. Na saúde reforça a crítica que aparece em pesquisas de opinião, pela experiência vivida: demora no acesso aos serviços de atenção primária e hospitalar e a qualidade ruim de ambos, onde faltam médicos, medicamentos e exames. Chega a afirmar que prefere ser deixada em casa pra morrer a ser levada para uma Unidade Básica de Saúde. Projeta a imagem do hospital privado, se não como solução, como melhor. • • 18 anos, 20 histórias
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Compara o atendimento aqui com o pouco tempo vivido no sul do país onde o atendimento foi mais ágil e melhor. Aponta, corretamente, a necessidade de reivindicar do poder público solução para a atual situação. Também chama atenção a crítica feita porque os jovens ficam menos doente do que os idosos e assim demandam menos pelos serviços. A crítica reflete sua percepção e provavelmente do meio onde vive, família e amigos, o que reforça sua relevância. Outro aspecto relevante é que a palavra SUS, Sistema Único de Saúde não é mencionada. Apesar de serem jovens, era esperado que comentassem algo, situação que reflete a precária relação que os serviços de saúde têm com os cidadãos. Saber que saúde é um direito do cidadão e um dever do estado é outro fator. A falta de compreensão da saúde como direito, como o trabalho, à educação, reforça, mais do que em outras áreas, a idéia do serviço privado, do convênio como solução, esquecendo que ao pagar um convênio paga-se duplamente, com tributos para o SUS e com mensalidades para o convênio. Isso reforça a percepção de que as pessoas não tem a compreensão de como deva funcionar o sistema de saúde, porque ele assim não funciona. A escola inserida na comunidade tem papel relevante na formação dos jovens para interpretar e serem ativos na mudança da realidade onde vivem. Todos os relatos referem-se à qualidade dos serviços de saúde, ou melhor, à falta dela. Na verdade, sem humanização no atendimento. Chama atenção em alguns depoimentos a relação dos médicos com os pacientes: nenhuma. Cabe discutir suas razões, desde à formação médica, às condições de trabalho, à falta de gestão pública e à precariedade da implantação do SUS na Cidade, que deveria contar com conselhos gestores em todos os serviços, a fiscalizar e lutar por melhores serviços. Os ecos dos problemas aqui levantados precisam chegar à sociedade, às instituições formadoras de profissionais de saúde, às escolas, desde as de primeiro grau, ao poder público, às entidades de representação. A saúde vai bem para uma parcela da população, que pode pagar o serviço privado. Estes serviços para se manterem e crescerem, mantém os procedimentos de maior custo, como os transplantes, tratamento oncológico, medicamentos de alto custo, além de toda atividade de prevenção sanitária, sendo pagos pelo SUS, viabilizando assim uma simbiose onde a manutenção e a pujança do setor privado se alimenta, em boa parte, às custas dos recursos públicos, que deixam de irrigar os serviços públicos que necessitam do dobro dos recursos que atualmente lhes são destinados pelas três esferas de governo, para atingir um patamar razoável.
*Médico formado pela FMUSP em 1978. Doutorado em Pneumologia pela FMUSP. Trabalha como médico Assistente do InCor-HCFMUSP.
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Direito à Vida e à Saúde
Políticas de Saúde e Saúde Coletiva: um campo possível de produção de modos de viver mais autônomos, criativos e alegres. Juliana Aline Pacheco*
A saúde não espera o próximo mês. (Lila)
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A organização do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) tentou condensar os anseios acerca do ideal de saúde pública para o país. O SUS foi formalizado no ano de 1988, junto com a Constituição Federal e é fruto de lutas históricas pelo acesso de todos, sem discriminações, a serviços de saúde gratuitos e de qualidade. Ao falar de acesso universal e de qualidade na perspectiva do SUS temos que nos remeter, também e necessariamente, a outras duas idéias que organizam o sistema: integralidade e equidade.
A noção de integralidade visa garantir que o conjunto dos serviços que compõem o sistema de saúde, bem como cada ação dentro de cada serviço leve em conta a totalidade das necessidades de saúde e de vida de quem procura assistência. Ou seja: a cada intervenção é preciso levar em conta que as pessoas carregam consigo, para dentro do serviço de saúde, questões biológicas, psíquicas, sociais, culturais, econômicas etc. e que é preciso mapear esta diversidade de necessidades e responder a cada uma ou a todas elas a depender das prioridades e entradas mais possíveis para cada situação. Do mesmo modo, o sistema é organizado levando em conta que um único serviço não pode dar conta da multiplicidade de necessidades que temos e, portanto, é preciso que haja uma organização de diversos serviços, cada um responsável por um nível de atenção à saúde – entre outros contamos hoje com Unidades Básicas de Saúde, Ambulatórios de Especialidades, Centros de Atenção Psicossocial, Centros de Referência em DST/ AIDS e Saúde do Trabalhador, além dos Hospitais Gerais e de Especialidades. A noção de equidade, por sua vez, visa garantir que o sistema funcione a partir do princípio • • 18 anos, 20 histórias
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organizativo de que é necessário tratar diferentemente pessoas com possibilidades de acesso e necessidades diferentes. A partir deste princípio, os serviços devem dar oportunidades de acesso diferentes conforme a maior ou menor necessidade de cada pessoa ou família. Pessoas com condições reduzidas de acesso devem tê-lo facilitado pelo Sistema. Também o acesso deverá ser priorizado para aquelas situações de saúde mais graves e emergentes. Nas falas dos dezoito jovens entrevistados, no entanto, vemos, a princípio, um quadro bastante diferente do quadro ideal apresentado acima: parece não haver acesso universal, nem tampouco de qualidade, muito menos uma assistência que leve em conta a equidade ou a integralidade. Vemos sendo realizada uma clínica extremamente degradada (Campos, 2003), bem como não há nenhuma postura de acolhimento frente ao sofrimento de quem procura os serviços - SUS. Como trabalhadora deste Sistema e fiel defensora da sua capacidade de produzir coletividades mais alegres e justas, confesso que ler todos estes trechos me deixa profundamente incomodada e entristecida. Poderíamos contextualizar estas falas, conhecer a realidade territorial de onde elas partiram, fazer um mapeamento micropolítico e institucional dos serviços aos quais elas se referem. E acho mesmo que este tipo de análise é fundamental para qualquer tentativa de melhorarmos os serviços e redes locais do SUS. Afinal, se continuarmos a chapar as leituras sobre nosso sistema de saúde continuaremos a produzi-lo de forma burocrática, centralizada, homogeneizada e, muito provavelmente, continuaremos sendo incapazes de responder às necessidades locais de saúde. No entanto, aqui não será possível empreender tal tarefa. Talvez com único intuito de não cair em uma fala que discorra sobre a noção de direito à saúde a partir do viés da falta – e para não falar de direitos unicamente a partir da noção de direito violado – deixo aqui uma contribuição que não visa desculpar o SUS por ter produzido experiências como as relatadas neste livro, mas que visa abrir algum caminho de potencialização de nosso Sistema de Saúde. Isto porque é preciso resistir ao discurso da resignação ou da denúncia servil. Abaixo-assinados não nos ajudarão a mudar o SUS, nem tampouco reclamações a ouvidorias mesmo que com queixas bem fundamentadas!! O SUS é a melhor formalização (até os dias de hoje) de nossas idéias de como bem organizar a assistência à saúde no Brasil. Reflete o ideal de que todos devem ter assistência gratuita de qualidade, mas também produtora de coletividades mais cidadãs e capazes de produzir, de forma autônoma, sua própria existência. Neste sentido, penso que nós, trabalhadores e usuários do SUS, vivemos com uma dupla tensão. É fato que é preciso oferecer assistência de qualidade, não podemos fazer saúde de pobre para pobre! É preciso sim dar possibilidade de que a população como um todo (não apenas aquela que paga de forma particular por serviços de saúde) tenha acesso à assistência médica, psicológica, nutricional etc. de qualidade e com resolutividade, que tenha acesso a serviços de especialidade e exames quando realmente necessário, a hospitais funcionais e competentes e assim por diante. No entanto, também faz parte do plano de se pensar uma saúde coletiva que ajude na potencialização das coletividades, subverter muitas das lógicas que ainda comandam o campo da saúde 264
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hoje em dia. É preciso subverter a lógica da especialização extrema da atenção e conseqüente fragmentação absoluta do corpo, do indivíduo e do sofrer. É preciso enfrentar a medicalização intensa da vida e das questões existenciais. É preciso, sobretudo, fazer do campo da saúde um campo de produção de vidas mais autônomas, críticas e criativas e não uma máquina de produção de dependência e adaptação. E é aí que encontramos, como já dito, uma dupla tensão. Muitas vezes, tendo como ideal o tipo de assistência que encontramos nos convênios ou serviços particulares, as pessoas exigem do SUS fragmentação, medicalização, alienação do seu próprio corpo e saúde. E nós, trabalhadores, teríamos que responder com muito acolhimento e oferecer espaços onde fosse possível realmente resgatar a autonomia, a criatividade, a cidadania e o desejo. Infelizmente – e aqui acabo como não queria começar – nas 18 falas que acabamos de ler não encontramos nem uma coisa, nem outra. Não vemos a satisfação por ver seu corpo embrenhado em fragmentações hightec e chek-ups semestrais, mas também não vemos produção alguma de autonomia e vidas mais alegres. Faz-se necessário, portanto, começar novamente do começo, rechaçar o ressentimento e a indiferença e lembrar que o SUS é construído por todos e a partir do princípio da participação social. E que se ele está assim, tão capenga quanto nos contam nossos 18 jovens, é nossa obrigação fazê-lo melhor.
* Graduada em psicologia pela PUC-SP e mestre em Saúde Coletiva pela UNICAMP. Atualmente trabalha no SUS como psicóloga em um Núcleo de Apoio à Saúde da Família na Brasilandia. E-mail: juliana.avp@gmail.com
Referências Bibliográficas CAMPOS, G. W. S. Saúde Paideia. São Paulo, HUCITEC, 2003.
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Direito à Vida e à Saúde Carta à Carolina e à Amanda (E a todos os adolescentes e jovens às voltas com a questão da gravidez) Maria Angela Santa Cruz*
É. Cada um tem um sonho. O meu sempre o mesmo. Desde pequena quero ser mãe. (...) Brincava pequena sempre de casinha... (Amanda)
No momento em que escrevo, vocês já devem estar vivendo um processo de construção de novas formas de viver. A chegada dos primeiros filhos sempre acarreta grandes mudanças na vida, seja na vida dos assim chamados adultos, seja na vida de adolescentes como vocês. Neste sentido, a mudança acontece para todos. A esta altura, vocês devem estar tendo que se adaptar a um novo ritmo imposto pela total dependência que os bebês têm de alguém que os alimente, aqueça, cuide, invista, ame: noites sem dormir direito; momentos de alegria por um sorriso do bebê, por uma nova gracinha que faz, por mamar bem, por fazer um lindo cocô amarelo; momentos de preocupação quando parece doentinho, quando o dinheiro está curto demais para as fraldas – são tantas -; momentos de tristeza quando temos que abrir mão daquela balada que poderia ser tão legal; momentos de angústia quando, às vezes, nos vemos com um encargo grande demais e duvidamos com quem podemos contar para poder compartilhar a responsabilidade. Até aqui, nada difere no caso de serem pai e mãe adolescentes, ou pai e mãe adultos. Aliás, não sei se vocês sabem, mas em outras épocas, como no século XIX até início do século XX, aqui mesmo no Brasil, as meninas se casavam com 12, 14 anos. Minha mãe mesmo conta que sua mãe, minha avó, se casou com 12 anos com meu avô, muito anos mais velho do que ela, e que era comum, quando este chegava em casa, encontrá-la brincando de boneca! Então, o que mudou, que tantas mudanças ocorreram que a gravidez em adolescentes causa tanto espanto entre os adultos, provocando muitas vezes indignação, críticas e condenações? Tanto para você, Amanda, 266
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como para você, Carolina, foi difícil contar a seus pais esse acontecimento inesperado, sendo que ambas foram consideradas “muito novas” para ter filhos. A gravidez na adolescência virou até um problema de saúde pública! Pesquisa recente (2003) - Perfil da Juventude Brasileira - realizada pelo Projeto Juventude/ Instituto Cidadania com uma amostra de 3501 jovens de 15 a 24 anos em todo o Brasil, de um universo de 34,1 milhões de jovens (20,1% da população brasileira) demonstra que 22% destes jovens têm filhos, sendo que este fenômeno afeta mais as “meninas” do que os “meninos”. No caso de vocês, Amanda e Carolina, a gravidez aconteceu como um “acidente de percurso” em relações de namoro relativamente estáveis, sendo que seus namorados, pelo que vocês contam, assumiram a responsabilidade pelos futuros filhos junto com vocês. Melhor para todos. Mas, segundo a pesquisa mencionada e várias outras como a de Aquino (2003), a maioria das adolescentes que engravidam acabam tendo que lidar com este fato sem a presença de um companheiro que se disponha a enfrentar junto esta nova realidade. Mas voltando à questão: o que mudou historicamente, culturalmente, para que a gravidez na adolescência tenha virado assunto de preocupação de pais, médicos, psicólogos, governantes? O mundo mudou! À época de minha avó, à mulher se reservava socialmente basicamente o papel de mãe, ao menos nas classes média e alta da população. A revolução sexual das décadas de 60 e 70 do século passado e o movimento feminista abriram novos horizontes profissionais, pessoais, sociais, existenciais para essas mulheres. Por outro lado, as mulheres das camadas mais pobres da população sempre tiveram que trabalhar, impondo-se a elas a árdua tarefa de conciliar trabalho e cuidado com os filhos, arte que só recentemente na história as mulheres das classes mais favorecidas tiveram que desenvolver. A adolescência, este tempo considerado de passagem entre a infância e a idade adulta, também é um fenômeno muito recente na história ocidental – data do século XX para cá - , sendo que as trajetórias juvenis são muito diversas: por exemplo, nas classes média e alta, esse tempo de passagem estende-se cada vez mais, o mesmo não ocorrendo nas classes mais pobres da população, que se vêem obrigadas a enfrentar a questão da sobrevivência muito precocemente. E aqui mais uma vez as pesquisas sobre a juventude brasileira trazem dados para pensar: ambas as pesquisas anteriormente citadas mostram que o fenômeno da gravidez na adolescência aumenta na população mais pobre e com menor grau de instrução; inversamente, nas camadas mais favorecidas e com maior instrução, o fenômeno da gravidez na adolescência diminui. O que estas afirmações nos convocam a pensar? Quais projetos, que perspectivas de vida estão sendo construídas para os jovens e pelos jovens em nosso mundo contemporâneo? Quando Amanda diz que desde pequena tinha o sonho de ser mãe, é importante lembrar que este sonho é marcante e presente no imaginário infantil feminino, ao menos em nossa cultura – basta ver o sucesso “eterno” das bonecas, principalmente daquelas que mais se assemelhem a bebês “verdadeiros”. Amanda até faz uma distinção interessante entre vontade e sonho: sonho de ser mãe versus vontade do celular, vontade tão imperativa que quase provoca um BO na loja, vontade da roupa de marca, vontades que quer satisfazer a qualquer custo. E é isso mesmo: as vontades duram o tempo de um picolé. Agora que • • 18 anos, 20 histórias
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Amanda é mãe, depois de ter “espalhado” para todo mundo seu sonho quando tinha 15 anos, realizando seu sonho “infantil” aos 18 anos, seria interessante perguntar a você, Amanda, quais são os projetos que você está construindo para sustentar a realização de seu sonho. Como realizá-lo da melhor forma possível? Para ser mãe, em certo sentido, a gente tem que deixar de ser filha, e conseguir conquistar certo grau de autonomia afetiva, financeira, “de cabeça”, para poder exercer a função de mãe sem “embebezar” com os filhos. Na criação de filhos ou na criação e recriação de si mesmo, a vontade apenas não é suficiente. Não há ninguém que possa dar o que precisamos para esse processo de criação: é um processo de busca e construção de ferramentas que possam operar transformações, sozinhos ou coletivamente, processo que exige renúncias a muitas de nossas vontades, convocando-nos o tempo todo a sair de nosso mundinho individualista. E como fazer isso, se vivemos em um mundo que nos convoca o tempo todo a só pensar em nós mesmos, solitariamente, um mundo que vive das aparências onde somos convocados a parecer ser os “mais legais”, com aquela roupa de marca, com aquele celular de última geração? A criação de si e de filhos requer mais do que aparências para se efetuar em toda sua potência. E você, Carolina, que, tal como Amanda, é tão fortemente ligada a sua mãe, vai nos contando como nossos projetos, mesmo aqueles que não estão sequer formulados, vão sendo contruídos com muitos elementos dessa ligação. “O sonho dela era ter uma menininha agora”, diz você referindo-se a sua mãe, que como você também diz... aquela ali pra mim é tudo. De quem é o sonho que está se realizando? Seu ou de sua mãe? É, a figura da mãe, em nosso mundo, é mesmo uma figura muito poderosa, a tal ponto que muitas vezes queremos ser como elas, muitas vezes acreditamos piamente até em suas brincadeiras – como você parece ter crescido acreditando que foi você quem não deixou que sua irmã gêmea nascesse. Acreditar nisso é acreditar que um bebezinho indefeso pode ser todopoderoso. E ninguém é assim tão poderoso – só os super-heróis dos filmes e das revistas em quadrinho. Mas você tem vários projetos já delineados, de investir na sua formação como webdesigner ou algo do gênero, você parece ter vários outros focos de investimento que podem ajudá-la na recriação de si como mulher e como mãe. Vale a pena apostar nisso, até porque todos sairão ganhando, principalmente a sua filha e você mesma. Para terminar, penso que vivemos em um mundo onde crianças, adolescentes e adultos têm vivido de forma muito infantilizada: não conseguem sustentar o custo de suas opções. A gravidez, tal como outras tantas situações da vida, é uma opção. Ter um filho é uma opção irreversível. Poder pensar com a própria cabeça é uma batalha a ser travada dia a dia, batalha de fundamental importância para que se consiga sustentar as opções feitas. Mas não é uma tarefa fácil. Exige de nós uma abertura para os outros, uma “vontade de potência”, uma disposição para criar redes e coletivos de inserção. E isto, que a escola não ensina, tem que ser aprendido na escola... da vida. Beijo carinhoso a vocês Maria Angela Santa Cruz 268
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*psicanalista, analista institucional. E-mail: mangelasc@gmail.com
Referências Bibliográficas AQUINO, E. M. L. et al. Adolescência e reprodução no Brasil: a heterogeneidade dos perfis sociais. Cad. Saúde Pública [online]. 2003, v. 19, suppl. 2. ISSN 0102-311X. doi: 10.1590/S0102-311X2003000800019. CALAZANS, G. “Os jovens falam sobre sua sexualidade e saúde reprodutiva: elementos para a reflexão”, in Abramo, H. W.; Branco, P. P. M. Retratos da Juventude Brasileira – Análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania/ Fundação Perseu Abramo, 2005.
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Direito à Vida e à Saúde Quando alguém se expressa...: Breve reflexão sobre Segurança Alimentar no Brasil Valmir Soares de Macedo *
Sempre fui uma criança desnutrida, pequenininha... Fui criada com a minha avó (em uma cidade no Piauí). A minha mãe passou acho que três meses me amamentando. Ela veio pra São Paulo e não pode mais me amamentar.
Seria “chover no molhado” dizer que o Brasil é um país de contradições, e que dentre tantas, destaca-se uma realidade sócioeconômica que privilegia poucos em detrimento de muitos. A questão é que vendo de longe, este discurso é só um discurso, uma situação normal que se pensa conhecer e que assim mesmo, o brasileiro é forte e que no fim de tudo se orgulha muito de ser brasileiro. Esse contexto assume um tom de realidade, de emoção, de “mão na consciência”, quando alguém se expressa, quando as Lilas se expressam, quando a gente se sensibiliza com a sensatez de alguém que luta desde quando é concebido, e luta contra uma realidade que tem a dimensão dos seus próprios limites, a dimensão de cada dia, da vida. Deixando de lado por um momento a complexidade da problemática social brasileira e dentro disso, a ação avassaladora de um sistema capitalista mundial, retorno a uma questão mesmo que interligada a tantos fatores, mas que tem suas especificidades, ou seja, o direito à alimentação e à convivência familiar e comunitária. A alimentação, a partir da industrialização ganha uma dimensão diferenciada, as políticas públicas se voltam para o empresariado e mais do que nunca deixam de lado o atendimento às necessidades básicas no campo da produção familiar. Com estes acontecimentos, dificulta-se produzir o próprio alimento e estimula-se a dependência ao emprego e a urbanização do país. O emprego passa 270
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a ser obrigatório, ou melhor, quase obrigatório a uma parte considerável da população brasileira (e isso é um acontecimento mundial, a diferença é que nem todo o mundo se adaptou e soube lidar com tal questão), e como não se tem a quantidade de empregos e nem as condições ideais de produção, sobretudo às populações que estão em regiões mais sacrificadas do país, por questões climáticas, de falta de políticas públicas adequadas e uma série de fatores, as famílias migram, vão em busca de um sonho, viver com dignidade. A partir de todo este contexto, coloca-se em risco as condições sócio-econômicas, a alimentação e a nutrição, o emprego, e tudo aquilo que uma família precisa para viver dignamente ou mesmo sobreviver, atendendo às suas necessidades físicas, mentais e sociais. Aí, já é a vida colocada em risco. O acesso ao alimento é vital, mas sabemos de acordo à realidade brasileira, não é possível a muitas e muitas famílias, e nestas, bebês ainda no ventre da mãe, crianças, adolescentes, adultos, idosos, homens e mulheres que são renegados por uma sociedade obcecada pela promoção individual, pelo acúmulo material, status e o reconhecimento pelo que se tem. A vida em família e comunidade depende de onde se encontra o emprego, porque afinal, ter um emprego ou profissão, é uma quase obrigação na atualidade, e essa obrigação se faz justamente porque diferentemente de se cumprir essa pré-determinação não se tem garantias de sobrevivência, a sobrevivência da família. Dessa forma, os rumos das pessoas e das famílias são dados conforme a realidade que os atinge e que não depende tão somente dos próprios esforços, mas de um contexto maior, político, econômico e por aí vai... A sociedade civil organizada, as famílias que lutam e suas conquistas, quando inclusive influenciam nas políticas públicas, merecem o respeito e os parabéns. Ao povo que luta não há condenação pelo pecado da omissão e sim o reconhecimento pelo que se faz. Viva às Lilas e aos CEDECAS tão determinados e resistentes, ao sonho e à luta.
* Natural de Turmalina – Vale do Jequitinhonha – Minas Gerais 30 anos. Técnico em economia popular solidária – 1999 a 2003 – CAV. Coordenador Geral do CAV – 2003 a 2009. Acadêmico em administração pela UFLA. E-mail: valmirmacedo11@yahoo.com.br
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Direito à Moradia Explorando caminhos do que é este Direito Marcos Barreto*
Pra mim, o lugar onde eu moro é bom porque tem pra onde ir, padaria, mercado, farmácia. A escola é praticamente do lado. É bom, mas precisa melhorar. (Mike)
O desejo de ter uma moradia, morar bem, em segurança e com qualidade de vida é um desejo muito presente, sobretudo após a humanidade organizar sua vida em cidades. No Brasil podemos identificar facilmente o tema da moradia em antigos sambas e músicas populares que imortalizaram temas como o despejo (Saudosa Maloca e Despejo na Favela de Adoniran Barbosa); a violência na favela (Favela Sinistra, dos racionais MCs) ou, ainda, a vida no campo (Casa no Campo, imortalizada por Elis Regina). Importante observar que estamos falando de moradia no conceito mais amplo, que não apenas de um imóvel. Ninguém vive num imóvel, mas sim num contexto urbano onde o imóvel está inserido. Morar bem significa morar numa casa adequada e cercada por equipamentos e serviços públicos de qualidade. Como exemplo, de nada adianta morar numa ótima casa se ela estiver distante demais do trabalho, sem uma adequada rede de transporte público; localizada num bairro extremamente violento; ou, ainda, sem praças e áreas de lazer nas proximidades. Infelizmente a realidade das grandes cidades do Brasil, com destaque para São Paulo, dificulta o acesso à moradia com qualidade de vida. Por uma lógica perversa e multiplicadora da desigualdade social, os bairros melhores localizados e com melhores instalações de infra-estrutura urbana, diga-se de passagem, realizados com investimentos públicos (ruas pavimentadas e arborizadas, iluminação pública, escolas, parques, esgoto tratado, espaços culturais) são destinados as classes sociais mais ricas. O aumento do preço da terra nessas regiões e a ausência histórica de mecanismos por parte do poder público para impor limites à especulação imobiliária, produziram um ciclo vicioso que empurrou os mais pobres para as áreas mais distantes e menos preparadas do ponto de vista urbano. 272
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Os números impressionam: dados da prefeitura estimam que existam cerca de 2 mil favelas em São Paulo, onde moram cerca de 1 milhão de pessoas. A esse número podemos somar outros 3 mil loteamentos clandestinos com cerca de 3 milhões de pessoas. Outras 600 mil pessoas habitam cortiços, moradias em geral melhores localizadas, mas com condições espaciais de habitabilidade ainda piores. Mesmo que os números possam ser imprecisos, a soma deles sugere que 4,6 milhões de pessoas em São Paulo moram de forma precária (SÃO PAULO, 2008). Em termos de grandeza, esse número é quase o dobro da população da terceira maior cidade do Brasil: Salvador na Bahia. Se essa população formasse uma cidade separada, ela seria a terceira maior cidade do Brasil, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro! A preocupação com a qualidade de vida e de moradia se faz intensamente presente no relato de vários dos personagens desse livro. Interessante observar que muitos, ainda que tenham nascido em 1990 - portanto há apenas 18 anos - relatam o processo de ocupação da terra, a chegada tardia de alguma infraestrutura urbana e a ausência de serviços essenciais, com destaque para o saneamento básico. Mesmo jovens, suas histórias se misturam com as histórias das ocupações da periferia da cidade. Vários relatos tocam no problema da ausência de saneamento básico. Não é de estranhar já que a região sul, muito próximo as áreas de mananciais (que ironicamente abastecem de água os distritos centrais e mais ricos da cidade) onde se concentram loteamentos clandestinos ou ilegais, praticamente um terço dos domicílios não tem ligação com a rede de esgoto. Caminhar ou mesmo brincar entre filetes de esgoto a céu aberto é uma realidade cotidiana de parte significativa da população pobre da zona sul de São Paulo. Para que se tenha uma noção da desigualdade dessa situação em São Paulo, na região central (distrito da Sé) apenas 0,75% dos domicílios não dispõem de acesso a rede de esgoto, em Capela do Socorro esse número é de 32,60% e em Parelheiros chega a 56,88% dos domicílios (MOVIMENTO NOSSA SÃO PAULO, 2008) A luta pela reforma urbana e pelo direito à moradia já avançou bastante no Brasil. Temos uma legislação avançada, mas assim como acontece com o Estatuto da Criança e do Adolescente, muito do que está escrito na lei ainda carece de exercício na realidade. A Constituição Federal estabelece já em seu artigo 6°, a moradia como direito social e em 2001, após 11 anos de lutas e mobilizações dos movimentos de moradia pelo país, foi sancionado o Estatuto das Cidades (BRASIL, 2001) O Estatuto estabelece instrumentos que induzem a utilização social da terra; permitem regularizar loteamentos ilegais ou clandestinos e ampliam a participação da população na gestão e nos destinos das cidades. Em São Paulo, o Plano Diretor aprovado no governo do PT na cidade (2001 a 2004) fez parte de vários desses instrumentos previstos no Estatuto das Cidades para promover a justiça social, além de explicitar o entendimento do que seja a moradia digna que busca promover: Moradia digna é aquela que dispõe de instalações sanitárias adequadas que garantam as condições de habitabilidade, e que seja atendida por serviços públicos essenciais, entre eles: água, esgoto, energia elétrica, iluminação pública, coleta de lixo, pavimentação e transporte coletivo, com acesso aos equipamentos sociais básico (SÃO PAULO, 2002, p. 51) • • 18 anos, 20 histórias
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Essa mesma lei utiliza instrumentos urbanísticos para evitar que se perpetue a especulação imobiliária e o jogo de poderosos e dos endinheirados que transformam terra em um produto qualquer e expulsam para as áreas mais degradadas da cidade a população mais pobre. Como vimos, o caminho para conquistar o direito à moradia digna é longo. Mas temos ótimos instrumentos, assim como acontece com a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes e o ECA (BRASIL, 1990) cabe a nós zelar e transformar a letra da lei em uma realidade mais acolhedora, justa e fraterna. Que Beatriz, Mike, Line, Paloma e tantos outros possam comemorar seus 40 anos em condições menos desiguais e com mais qualidade de vida urbana.
*40 anos, foi Diretor da EMURB - Empresa Municipal de Urbanização (2002 e 2003)onde coordenou o programa de reabilitação do centro de São Paulo e Secretário Municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo (2004). Atualmente é Presidente da Fundação CSN.
Referências Bibliográficas BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069 de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/ L8069.htm>. Acesso em: 25 ago. 2009. BRASIL. Lei 10.257 de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/LEIS/LEIS_2001/L10257.htm> Acesso em: 25 ago. 2009. MOVIMENTO NOSSA SÃO PAULO. Indicadores Zona Sul1. Disponível em <http://www. nossasaopaulo.org.br/portal/node/537>. Acesso em: 24 ago. 2009. MOVIMENTO NOSSA SÃO PAULO. Indicadores Zona Sul2. Disponível em <http://www. nossasaopaulo.org.br/portal/node/537>. Acesso em: 24 ago. 2009. SÃO PAULO. Lei nº 13.430, de 13 de setembro de 2002. Institui o Plano Diretor Estratégico e o Sistema de Planejamento e Gestão do Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo. Disponível em <http://sempla. prefeitura.sp.gov.br/pde/LEI_13430-13.09.02.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2009. SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Habitação. Regularização de Loteamentos no Município de São Paulo. Departamento de Regularização e Parcelamento do Solo (RESOLO), 2008. Disponível em <http://portal. prefeitura.sp.gov.br/noticias/sec/habitacao/2008/10/0002>. Acesso em: 24 ago. 2009.
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Direito à Moradia Reflexões sobre o Meio urbano e Rural, a partir dos relatos de Mariana,da Bahia e Lila, do Piauí e suas vi(n)das à São Paulo Márcia Mara Ramos*
Eu não parava pra pensar na minha vida assim, como era antigamente. Eu acho até estranho (risos). Nessa época, da casa num lembro, porque não tenho lembranças de ficar em casa, nem do resto da família. Lembro mais das nossas aventuras, eu e meus irmãos. Lembro que não tinha televisão, só rádio. (...) Enfim, a gente não ficava em casa... ficava andando no meio do mato. (Mariane)
A história da sociedade brasileira separa o campo da cidade. É verdade que existe uma especificidade, mas é verdade também que o campo foi tratado de certa forma como “atraso” na civilização, onde o acesso às políticas públicas não foram prioridades. O acesso a direitos, que historicamente foi uma conquista a partir da luta social; em pleno século XXI, precisa ser reivindicado para que seja implementado, ainda nesse tempo, o mínimo para a sociedade. Esses direitos que foram instituídos por lei em nome da civilidade e da cidadania, deveriam estar voltado a sua gênese, na qual a origem é o progresso, a instrução para uma boa educação e cultura social, para o cidadão e cidadã. Esse acesso é inexistente. Ter casa, ter comida, ter trabalho e acesso à cultura, faz parte da dignidade humana. É direito em qualquer sociedade em qualquer parte do mundo. No relato de Mariane, suas lembranças, reafirmam que o campo entendido como “rural”, a moradia é invisível, mas as brincadeiras a mata, estão presentes. De fato essa invisibilidade por conta da distância, das estradas que são de difícil acesso, das políticas públicas educacionais e da cultura, que não chegam até o campo, deixa uma possibilidade de apresentar que o campo sempre esteve vivo e em permanente movimento. Aqui entendendo que a dimensão de casa é outra. E o espaço valorizado é a mata, que permite ser lembrado, o lugar da brincadeira é marco fundamental na vida de Mariane. O campo, permite que sua comunidade valorize as brincadeiras, a convivência e o mais simples, porque são • • 18 anos, 20 histórias
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poucas as possibilidades estabelecidas e a maior parte nesse espaço nem tem escola e muito menos o acesso. O campo é colocado em confl ito com a cidade numa disputa pelo trabalho e principalmente pela sobrevivência. Lila na suas lembranças traz duas realidades campo e cidade e se relaciona com a perversidade do público e privado. Um espaço construído no meio de uma classe que não tem acesso e preciso pagar para acessar, certamente que esse lugar não é para todos e nem de todos. A vida urbana é uma coletividade “desorganizada” no aspecto da luta pelos direitos. O aglomerado do espaço concebido pela população que precisa construir, não ter arquitetura que de conta. Essa realidade se dá por falta de projeto social de urbanização. Pois se pensou a fábrica, a indústria e hoje a mais avançada e alta tecnologia. Só não pensaram no humano, nas pessoas que vivem. É preciso acessar o mínimo que é o direito à dignidade, à vida! O campo e a cidade vivem em permanente luta pela sobrevivência, seja pelo trabalho, pela educação, pela comida ou pela moradia. Pra que esse espaço ganhe vida é preciso que ele seja entendido como espaço delimitado pelas relações de saber e poder político, que o coletivo proporciona e se apropria desse espaço, produzindo socialmente e reelaborando na prática vivida, relações que busca a construção de uma sociedade humanizadora e construtora de um projeto emancipador. A intervenção da luta na busca pela dignidade, justiças, reivindicando os direitos sociais e humanos, possibilita a construção de uma identidade, de pertencimento e de busca a sua sobrevivência nesse espaço e território que está permanentemente em conflito pelas relações sociais antagônicas estabelecidas pelo sistema capitalista. O espaço só vai ganhando forma, função num processo que se constrói a partir de uma outra relação com a vida, na qual a ocupação do espaço se dá pelo poder da pressão social, ao mesmo tempo em que organiza o território, demarcando-o com as linhas políticas da luta pelo direito coletivo ao acesso. Diante desses relatos, que são vivências tão importantes na vida do nosso país e que retratam um contexto social entre o campo e cidade, na qual não se diferencia as condições e sim os problemas, afirmam que o mais importante não está na separação de ambos e sim no pensar a vida no campo e na cidade dentro de uma perspectiva de projeto da classe trabalhadora e de políticas agrícolas e sociais que permitam a formação do sujeito social na oportunidade em mudar o mundo. É preciso acreditar na construção de outra sociedade. É preciso que o campo e a cidade sejam protagonistas de um projeto que tenha como princípios a igualdade em todos os aspectos, os direitos humanos e sociais, a ruptura total desse sistema opressor que só visa o lucro. É preciso lutar todos os dias dentro de uma prática que possibilite transformar a sociedade e ter a justiça social, o humanismo e o poder popular como direção de nossos projetos. *Educadora do MST - Coletivo Nacional de Educação do MST 276
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Direito à Cultura A cultura vista do lado de cá Kleber Luis Gonçalves da Silva* Paulo Albano Silva Antunes** Rodrigo Gomes Pedroso***
Já tive vontade de ter a oportunidade de sair grafitando na rua, fazer desenhos, livre. Tipo, a polícia vai passar e não vai embaçar. Com certeza, isso é o que eu queria para mim. A polícia pára, mas você explica direitinho... Queria ter a liberdade de sair por aí, grafitando. (Jorge)
Sou espírito em carne Não preciso só de pão Quero cultura, informação e diversão Quero o que é meu Direito de rir de chorar e de criar Ensinaram-me a trabalhar Mas não me ensinaram a gorjear Mostraram – me o caminho do chicote Mas não me mostraram o caminho da rede Sou espírito em carne Não preciso só de água Quero preservação, conhecimento e cultura Quero o que me tiraram Tradições, ensinamentos ancestrais, lembranças Hoje estou em periferia Hoje sou periferia por saber quem vai chorar Hoje o peito regozija (Antunes, P. A. S.)
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São Paulo é uma das maiores metrópoles do mundo em tamanho e riquezas. Proporcional ao seu tamanho são as desigualdades sociais típicas de países de terceiro mundo. Do extremo sul de São Paulo, lugar onde se concentra grande parte das zonas pobres da cidade, sai à maioria dos trabalhadores que fazem com que esta cidade seja uma das metrópoles mais ricas do mundo. Entretanto, os espaços culturais não estão nestas áreas, não devem beneficiar o local que jorra o óleo que faz com que a engrenagem funcione. Muito longe de termos equipamentos públicos de cultura e um sistema educacional eficiente, o cenário que vemos hoje no extremo sul da cidade é a falta de saneamento básico, de acesso a saúde, esgoto a céu aberto em meio a vielas e ruas de terra, casas de tijolos vermelho e telhado cinza sobre intermináveis morros, a quase inexistência de espaços comuns de convivência como parque e praças, bem como casas de culturas, teatros, museus, entre outros equipamentos, o que faz com que as pessoas não se apropriem do espaço onde moram, como um espaço comum e de organização popular. Assim os bairros da zona sul acabam sendo bairros dormitórios e as pessoas que aqui moram, não enxergando nas grandes periferias espaços de lazer e cultura em potencial, buscam, para sua diversão, desenvolvimento e entretenimento, locais que geralmente estão fora da periferia. Outro fator que contribui para que as pessoas busquem para sua diversão, locais e atividades que estão fora da periferia, não vão necessariamente de encontro com as questões sociais e econômicas de organização de nossa cidade. Mas sim de fatores externos a nossa formação cultural ou daquilo que compramos por meio de uma tela ou outras expressões midiáticas, instrumentos de poder que determinam nosso modo de pensar e agir, mas não um poder político como costumamos pensar. É uma forma de poder ideológico, que permite que as produções culturais de ímpeto capitalista sejam aceitas passivamente. Um grande exemplo disso é a constante produção da cultura de massa (FACA, 2008) que longe de ser uma cultura popular, faz com que vejamos o mundo sobre a ótica do dominador e que estejamos sempre na condição de espectador dos fatos, e incapazes de discernir entre cultura e aculturação. Entretanto sobre todas as situações de miséria e contradição entre as classes sociais existentes nas grandes metrópoles, existem inúmeros grupos, coletivos e movimentos, que vêem na arte e na cultura a possibilidade de criação e luta contra todas essas situações de injustiças e desigualdades, utilizando-se das ferramentas que tem em mãos para transformar o seu cotidiano, não como representantes do povo, mas sim como responsáveis por “produzir” dúvidas e questionamentos onde só havia certezas. Assim, estes grupos seguem na contramão de tudo aquilo que é corriqueiro e utilizam-se dos meios e possibilidades que conseguem, para criar espaços de resistência cultural nas periferias, enfrentando o modelo imposto de cultura passiva de massa, com um modelo participativo, livre e plural. Na sociedade em que vivemos quem define o que é cultura? Quem tem acesso a ela? Qual é a cultura que nós desenvolvemos?
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Pensando em respostas para essas perguntas, chegamos a uma reflexão: É cultura ou são culturas? Não será que a forma de cultura de massa tem um ímpeto manipulador, moldando e reprimindo, diminuindo oportunidades de desenvolvimento e de canais para disseminação da cultura realmente popular? Nós temos certeza que criamos cultura de diversas formas (diferentes, mas não inferiores) na humanidade como um todo. Porém, em grupos de pessoas onde se acredita ter “grau de intelectualidade mais elevado” dentro de nossa sociedade, desenvolve-se um pseudo-conceito de arte, que muitas vezes dana a imagem e a aceitação da cultura popular, por não estar dentro destes padrões acadêmicos. Os “senhores” acadêmicos desconsideram os meios que possibilitam à cultura emergir das zonas periféricas, como sendo uma cultura legítima da intelectualidade humana, e tratam-na com excentricidade, soltando frases do tipo “olha só, apesar de ser pobre é um bom cantor”, como se fosse possível definir, por razões da estrutura social, quem é culto e quem é inculto. Só pra considerar a possibilidade de acesso, um jovem morador do Grajaú, que queira assistir a uma simples peça de teatro, não encontra na região, nem no entorno, nenhum teatro ou casa de cultura, mesmo privados. Embora o Grajaú tenha quase 500 mil habitantes, a distribuição de recursos pela prefeitura é dada diretamente pala receita de impostos obtida em cada região. Ou seja, o Morumbi, com 33 mil habitantes mais ou menos, por ter empresas, comércios, condomínios de luxo, etc., arrecada muito mais em impostos que a região do Grajaú, predominantemente habitacional (SEADE, 2000) A distribuição se torna injusta e desproporcional, pois dificulta o direito básico de acesso à cultura do jovem de periferia, pela falta de investimento governamental, e amplia o acesso do jovem burguês, que já tendo possibilidade econômica de acesso a meios privados, conta, também, com maior investimento público.
*Formado em história e pós-graduando de História, Sociedade e Cultura, na PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica . Atua como Educador Social no Núcleo de Mobilização Comunitária do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - CEDECA Interlagos. Também é integrante da banda Delenda est Imperium, e ex-integrante dos coletivos: Exxxtremo sul Hardcore e coletivo FACA – Foco de Ação Cultural Alternativa. **ex-militante do MTST – Movimento dos Trabalhadores sem Teto/ SP. Participou de cinco coletivos juvenis e atualmente é permacultor do Projeto Anchieta. E-mail: pedroso.gomes@hotmail.com
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***Formado em História, estuda antigas Culturas Africanas, ex-integrante do coletivo cultural FACA – Foco de Ação Cultural Alternativa. Desde o ano de 2008 é integrante da Casa Rastafari de Menelik, e da comunidade quilombola de Sião. Atualmente trabalha como educador social do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - CEDECA Interlagos. Site: http://coletivofaca.blogspot.com/
Texto produzido coletivamente pelo coletivo cultural FACA Foco de Ação Cultural Alternativa
Referências Bibliográficas FACA. Funk: do poder de criação. Disponível em <http://coletivofaca.blogspot.com/2008/11/funk-dopoder-criao.html>, 2008. Acesso em 21 ago. 2009. SEADE. Índice de Vulnerabilidade Juvenil, 2000. Disponível em <http://www.seade.gov.br/produtos/ ivj/ >. Acesso em: 24 ago. 2009.
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Direito à Cultura Refletindo sobre Cultura, a partir de minha caminhada. Robson Bomfi m Sampaio*
(...) nada no bairro que dá pra falar que é cultura mesmo, (...) só na igreja. A biblioteca só agora começou a funcionar... Acho que devia ter mais local pras crianças brincarem, mais cultura... Um lugar mais seguro (...). Ainda estamos esperando... (Denise)
Primeiramente gostaria de agradecer o convite do CEDECA Interlagos para a construção de uma reflexão coletiva sobre Política Nacional de Cultura. Esta reflexão tenho feito há algum tempo. Desde 1995, quando aos 16 anos comecei a me engajar na militância política participando do movimento estudantil, estudando e trabalhando em Campinas. A única pauta do movimento era a educação, seu sucateamento e a falta de vagas. Fizemos muitas passeatas em Campinas. Às vezes saíamos a pé da escola e íamos ao centro da cidade onde encontrávamos outros estudantes de outras escolas periféricas e marchávamos em direção a Prefeitura para conversar com o Prefeito e com o(a) Secretário(a) Municipal de Educação. Lá apresentávamos nossa pauta reivindicatória, sempre tendo em torno de 5 a 10 mil estudantes mobilizados. Era um tempo bom de militância forte e politizada, hoje em dia já não é mais assim. Mas o sentimento na época é de que faltava algo a mais na nossa reivindicação... Este algo era espaço de lazer e acesso a cultura. Me formei na escola, ainda não consegui entrar na Universidade Pública. Às vezes me questiono se acabei me dedicando muito tempo com a militância e não dei prioridade para entrar na Universidade Publica e fazer o curso de Artes Plásticas ou de História: minhas duas paixões depois da política. Trabalhei em vários lugares e acabei fazendo no ano 2000, assessoria política para um Deputado Federal do PT de Campinas. Eu optei desde os 16 anos por participar da sociedade de forma organizada, militando e me filiando ao um partido de Esquerda que discutia o Socialismo, mas hoje em dia este partido ficou cor-de-rosa (social-democrata-populista) e acabei me decepcionando com os rumos políticos do mandato do deputado qual participava. • • 18 anos, 20 histórias
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Comecei a seguir meu sentimento e busquei outros espaços, entrando em 2001 no grupo de teatro e danças populares “Urucungos, Puítas e Quijengues”, vivenciando intensamente a cultura, participado de encontros e apresentações de danças de culturas populares. Este grupo vivia na época como nômade, faltava infra-estrutura para ensaio sem sede própria, vivia indo de um lugar para outro, hora aqui hora ali, hoje temos uma sede própria. Em Campinas imperava a política de cultura para poucos, pois mesmo a Prefeitura sendo do campo Democrático e Popular (PT) não debatia política pública de cultura a fundo ela meio tímido este debate em Campinas, somente eventos. Depois percebi que não só aqui, mas também em outros municípios e estados do Brasil não existia política de acesso e muito menos de construção coletiva da forma e do que era prioritário para comunidade em termos de cultura, as ações se pareciam mais para “inglês ver” do que ações que de fato políticas publica de cultura que poderiam se tornar permanentes. Comecei a freqüentar fóruns e encontros propostos pelas Secretarias de Cultura em todos os níveis: Regional, Municipal, Estadual e Nacional, onde se debatiam projetos já antigos e poucos inovadores no sentido de agregar mais pessoas na sua construção, uma vez que as pessoas que os apresentavam eram figurinhas carimbadas no meio cultural. Havia pouca participação de jovens e muito menos das comunidades onde gostariam que houvesse abrangência. Em 2002, conheci uma Casa de Cultura autônoma, sem recursos do poder público, que só possuía a vontade de transformar a sociedade em motor. A Casa era o sonho e reencantamento da transformação. Chamada Casa de Cultura Tainã, sediada em Campinas, uma entidade na periferia próxima da casa da minha mãe, que tinha (e tem) muita atuação com ações comunitárias desde oficinas de dança, percussão, maracatu, teatro, oficinas de convivências, letramento Digital, informática com Software Livre, articulação em rede, e debate político com a comunidade, para realizar ações que resolvessem ou minimamente diminuíssem a exclusão da sociedade de onde ela está. Foi então que comecei acentuar a reflexão de que o Estado não vai dar nem construir política pública de cultura para nós, se nós não formos os autores destas políticas. A Casa de Cultura Tainã acaba sendo meu referencial de ações comunitárias autônomas. Pude observar a prudência desta se envolver com o desenvolvimento de uma política publica do Ministério da Cultura que foi (antes) apresentada com um formato que não se parecia e nem se identificava com ela, mesmo sendo boas as intenções dos governantes de trazer algo pronto e acabado. Como dizia minha avó “de boas intenções o inferno está cheio”. A Casa de Cultura foi desconstruindo este projeto e repensando outra forma de ser um Ponto de Cultura. Desta maneira tivemos uma participação na elaboração do Programa Base de Apoio a Cultura e depois virou Programa Cultura Viva, este que considero pelo menos um acerto entre várias incoerências deste Governo Federal. Mesmo estando em outros governos nunca havia percebido como nós, seres humanos, poderíamos participar de sua construção. Ainda tem muita coisa para ser feita no Governo Federal e muito a ser transformado em Política de Estado. Em 2005, com o lançamento do Programa e Edital de 282
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Ponto de Cultura pelo Ministro Gilberto Gil no Rio de Janeiro, várias entidades como a Tainã e o CEDECA Interlagos apresentaram projetos para se tornarem Pontos, já que antes do edital já desenvolviam ações como pontos de cultura sem recursos, através de parcerias e apoios comunitários. No Ministério da Cultura se construíram secretarias para gestar recursos e projetos de incentivo. Tivemos um avanço Nacional, mas e no local? Ainda temos pouco entendimento dos gestores públicos sobre o que é cultura e sua importância para transformação social. A cultura como garantia de direitos humanos está em debate em várias instâncias como UNESCO, ONU, Mercosul, em intercâmbios internacionais de ações políticas de cultura do Governo Federal, no entanto ainda não temos políticas públicas de cultura de Estado. Permanecem medidas paliativas para favorecer o acesso a população, assim, são publico alvo apenas as pessoas que vivem próximas às entidades contempladas. Ou seja, não funcionando como uma política de redes de colaboração, nem fomentando a autonomia para criar. Logo, ao mesmo tempo em que temos recursos de programas governamentais nos deparamos com a superficialidade das relações. Em 2008, tivemos o I Fórum Nacional de Pontos de Cultura e a III TEIA no Complexo da República em Brasília, realizados pelos Pontos de Cultura. Houve dois anteriores, em São Paulo (Bienal TEIA 2006) e em Belo Horizonte (Palácio das Artes -TEIA 2007). Em 2008 o tema central eram os Pontos de Cultura com o sub-tema “Direitos Humanos: Iguais na Diferença”, o diálogo com vários outros atores sociais sobre política pública possibilita superarmos questões relativas somente a convênios através de editais e abre janelas para outros Ministérios, abre janelas para juntos pensarmos em maior participação e construção de mecanismos de acesso ao espaço de deliberação das políticas públicas. Pensando na falta de (infra)estrutura dos espaços públicos dentro das comunidades e até na falta total de espaço de cultura e lazer para nossas crianças e adolescentes, vemos cada vez mais as organizações não governamentais assumirem o papel do Estado, tanto como assistência quanto sóciopedagógico ou espaço de cultura. São medidas como as já apontadas: paliativas, só resolvem a curto ou até médio prazo, mas não para longo prazo e a sociedade vive a longo prazo, diferentemente das políticas de governo que só funcionarão quando a comunidade for gestora naquele mandato. As ações não têm continuidade pelos políticos caso não sejam reeleitos no outro pleito (eleição), a política é interrompida, gerando total segmentação de ações sem ponto de encontro com a comunidade “assistida” e “passiva”. Não bastam apenas artigos na Constituição e no ECA que indiquem garantia de políticas culturais para nossa comunidade, em especial às crianças e adolescentes que são as grandes vítimas do sistema e da própria sociedade que pela ignorância dos direitos das crianças e adolescentes negam o essencial que é o acesso aos equipamentos públicos na comunidade onde elas vivem. É através da Cultura no sentido antropológico que nos constituímos como indivíduos, seres completos e ainda há muito o que avançar no Estado e na Sociedade nesta construção! Construção que tem que ser coletiva e não só de uma parte. Para que assim aconteçam políticas efetivas de acesso e ação cultural na comunidade. Temos que participar, tendo informação de como podemos participar. • • 18 anos, 20 histórias
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Ainda falta unir a cultura com outro espaço fundamental na construção dos valores humanos: a estrutura educacional, desde a escola básica a superior, tendo também este espaço sua reforma ou substituição de formato político-pedagógico. Por enquanto a sociedade tem como aliados nesta luta algumas organizações não governamentais, sindicatos, movimentos sociais, porém todos têm que se colocar como atores ativos e propositivos da mudança do paradigma social que vivemos. Quero em minhas considerações finais destacar que a Política Nacional tem vários caminhantes de acúmulo e sabedoria que estão juntos na construção de um Brasil que tem mais a nossa cara. Obrigado caminhante CEDECA Interlagos pela oportunidade destas reflexões, mais um pouco da experiência de vida e conhecimento construindo coletivamente. Finalizado, o movimento dos Pontos de Cultura poderá ser um farol para um porto seguro nas reflexões colaborativas para uma sociedade justa e fraterna.
*Atualmente é Colaborador e Articulador Político - Casa de Cultura Tainã e Colaborador Técnico de Tecnologia Informação e Comunicação - TIC no Ponto de Cultura Nos Caminhos de São Paulo/Urucungos em Campinas. Representante da Região de Campinas estendida à Itu dos Pontos de Cultura na Comissão Paulista de Pontos de Cultura, Representante Paulista dos Pontos de Cultura na Comissão Nacional de Pontos de Cultura. Autodidata em Artes Plásticas. Autodidata em TICs - Tecnologia das Informações e Comunicações em GNU/ LINUX Usuário Avançado das Costumizações: Arch Linux e Debian. E-mail: redectio.ad.ethos@gmail.com
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Direito ao Esporte Que direito é esse? Maykell Araújo Carvalho*
Pra me divertir no meu bairro não tem quase nada, tem futebol, mas eu não sou muito de jogar futebol. (Line)
Dizem que temos direito. E está escrito em vários lugares que temos direito ao esporte, a ..., ao... , à... Aprendemos isso, como tantas outras coisas, não importa como e o quanto. O certo é que sabemos disso, sabemos de tantas outras coisas, aprendidas pela vida afora. Aprendemos de várias maneiras, em diversos lugares e épocas. Dizem, e está escrito, que a aprendizagem se dá de duas formas básicas: livre, espontânea e quase que a todo momento ou de forma mais organizada, planejada e em momentos mais específicos. Ambas são importantes e se complementam. A primeira é chamada de incidental ou não sistemática e acontece meio que por acaso, e a segunda, de intencional ou sistemática e acontece quando queremos atingir determinado objetivo. E aprendemos, mais de uma forma ou de outra, basicamente porque somos estimulados. Estímulos que podem ser chamados de oportunidades, ou então, de direito garantido. Teoricamente, no sentido biológico, o caminho da aprendizagem é igual para todos. Só que a aprendizagem tem um ritmo, como a vida! E cada pessoa tem o seu. Até o direito hoje em dia tem ritmo, imaginem! E valor também! Se alguém diz: “Vamos jogar bola no campinho, brincar na pracinha, andar de bicicleta, brincar de pega-pega em algum lugar?” Alguns respondem : “Eu vou!” “Eu posso!” “Minha mãe não vai deixar!” Outros dizem: “Eu não posso!” “Preciso trabalhar!” “Tenho que olhar meu irmão!” “É perigoso lá!” “Agora não dá!” Uns comentam: “Não tem lugar!” “Tá um lixo só lá!” “Não tem mais o campinho!” “O pessoal está dizendo que construíram um novo prédio! Vão fazer uma padaria, bar ou uma fábrica de doces no terreno do campinho! Puxa vida! Mas pelo menos o bairro está melhorando, o progresso está chegando!” É o progresso que vem com seu ritmo avassalador. Espaços de consumo crescem vertiginosamente. Já os espaços de aprendizagem, de prática esportiva, de exercício dos direitos, passam sempre pelo crivo do valor. Quase nunca pelo valor social: aquele que visa qualidade, outros caminhos em um contínuo processo • • 18 anos, 20 histórias
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de construção de novos valores e de uma prática renovada, mais participativa e educativa. Valor social também é aprendizagem, e aprendizagem é diversidade, é escolha, é estímulo, é oportunidade, é direito! E direito já disseram, está escrito, e todo mundo sabe, toda pessoa tem! Então, direito ao esporte, livre ou orientado, é natural que se tenha. E já está escrito... Mas nem sempre tem, ou muitas vezes os equipamentos, os espaços são insuficientes, mal conservados, não oferecem estímulos, não dão opções de escolha. Assim não dá para aprender esporte, para curtir. Que direito é esse? Está faltando valor social nesse direito!
* Licenciado em Educação Física pela Escola de Educação Física e Esportes da Universidade de São Paulo. Educador do Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (CEPEUSP), membro da equipe de coordenação do Programa de Formação e Estudo em Desenvolvimento Humano pelo Esporte (parceria USP / Instituto Ayrton Senna). E-mail: talento@usp.br
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Direito ao Lazer Pequena conversa: Da vida, da alegria e do aprender junto. Aldaíza Sposati*
Os meninos improvisam lá! Eles fazem campinho, jogam futebol lá. Porque de lazer, pra criança, pra adolescente, não tem nada! Ah! Tem uma rua que tem um muro e uma bica que fica caindo água. Quando tá muito calor as criancinha fica lá. Só que não é muito saudável né? Um monte de criança tomando banho. A minha mãe não deixa meu irmãozinho ir lá não. (Lila)
Há um tempo atrás em conversa no centro de São Paulo, com uma adolescente de 12 anos que estava com sua mãe em uma reunião - era um tempo de Olimpíadas - ela me perguntou: tia você acha bonito nadar? Respondi logo: acho muito bonito. Ela me perguntou a seguir: você acha que a criança deve aprender a nadar? Outra vez eu respondi concordando: claro que sim. Então tia porque minha escola não ensina a nadar? Porque minha escola não tem piscina? Daí eu não tinha mais qualquer resposta além de me juntar a tristeza daquela menina. Quando se luta pela escola no bairro e se diz: toda criança tem direito a escola! Está na hora de falar um pouco mais dessa escola. A Lila quando nos conta como era a escola e sua vida na cidadezinha de Arraial do Piauí, ela fala da amizade dos colegas da escola, do conteúdo que aprendem. Fala de um jeito que a escola parece ter vida, ou melhor, relação entre as vidas das pessoas. A escola que ela hoje freqüenta em São Paulo começa do vazio da caixa d’água, o vazio da sala de aula, o vazio do professor, o vazio de conteúdo e o vazio que vai criando na vida da Lila. Parece que a escola não é daquele lugar, que não por raiz, daí não se alimenta do lugar e fica sem vida. Confesso que fiquei muito assustada. Daí a pergunta não é mais porque a escola não tem piscina, mas é porque a escola está perdendo vida, e a vida dos que nela chegam. A escola não tem festa, não tem alegria. Acho que a pergunta é essa: onde está o direito a alegria e a felicidade? • • 18 anos, 20 histórias
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Todos dizem: onde está a praça? Onde está o lugar para o encontro? Quando é que se pode encontrar? A noite, depois do trabalho? O medo do escuro, da falta de segurança, da violência, não permite a liberdade do encontro. A Laissa diz: fico no meu quarto? O problema é que rir sozinho parece coisa de quem está endoidando. O bom é rir com os outros. Como continua Laissa a dizer: onde moro só tem poste. Não tem árvore, o show da praça deixou de ter, futebol deixou de ter, festa da igreja as vezes tem. O medo é o de ficar de bobeira, pensando coisa estranha, sem fazer nada e de repente entrar na roda da droga. Aperta o coração de pensar nessa solidão. Direito ao lazer não é ficar na frente da televisão. Tem que ser muito mais do que isso. O Mike fala que o bairro dele tem escolinha de futebol para menino e menina. Já é alguma coisa, mas ainda é pouco. E os teatros onde estão como diz a Lila? Porque os CEU’s não continuam a ter espetáculos? Afinal se São Paulo é a capital da cultura, porque seu acesso fica escondido da juventude? Tenho lutado nesses 18 anos pelo direito a ter direito. Mas acho que às vezes a luta pelo direito fica mais ocupada com as piores situações. O relato destes jovens é uma denúncia de que deles está sendo tirada a juventude. Aquela da risada fácil, de encontrar o amigo e gostar da amizade, de sonhar junto, falar da música, do baile, da descoberta ou do segredo. A juventude está pedindo paisagem. Estão saturadas de poste, poste, rua, rua, casa, casa, terreno, casa, casa, violência da política, poste sem luz, casa, casa. Parece que só se ouvia o barulho do tranco ou do trunc, trunc. Não tem som é só ruído duro. O que sinto ouvindo esses jovens é que ter direito a lazer é ter direito a vida: da natureza, das relações, do encontro. É direito a cor, ao som, a água, ao vento, ao riso, ao encontro. Parece que direito ao lazer é como sair de um mundo cinza começar a por cor, temperatura, sensibilidade, cheiro. Minha síntese é: direito ao lazer significa direito do jovem ter juventude.
*Professora titular da PUCSP, coordenadora do Nepsas – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social (PUC), coordenadora do Cedest – Centro de Estudos das Desigualdades Socioterritoriais (PUC/INPE). E-mail: aldaíza@sposati.com.br
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Direito à Educação E nós? Reflexão acerca da interface entre as 18 histórias, o Direito à Educação e a Educação formal Bel Santos Mayer*
Ele (sobrinho) chega da escolinha e diz: - Madinha, madinha, me ajuda a fazer a lição? Tenho que levar pra escola, se não a professora briga. Começo a ajudar e ele diz: - Não, mas eu quero pintar dessa cor. - Não, Dedê, a professora mandou pintar dessa, digo, tentando convencê-lo. Ele vai direto ao ponto: - Caramba, esses professores tudo chato! Por que não deixa pintar do nosso jeito? A lição é nossa ou é deles? (Carolina)
Aceitei o desafio de comentar em poucas linhas, as interfaces entre os 18 relatos, o direito à educação e a educação formal. Poderia (e gostaria) de comentar cada parágrafo, cada causo, todos os silêncios e frases interrompidas por reticências, mas, neste momento, é preciso e importante ser breve. Mais que explicar as falas, proponho-me a evidenciá-las, iluminá-las, refleti-las no mesmo espelho onde se encontram nossos olhares de estranhamento ou de concordância. Nesse esforço de síntese pedi ajuda a dois educadores-poetas ou poetas-educadores: Drummond e Paulo Freire. Drummond (1987, p.82) nos lembra que “Brincar com crianças não é perder tempo, é ganhá-lo; se é triste ver meninos sem escola, mais triste ainda é vê-los sentados enfileirados em salas sem ar, com exercícios estéreis, sem valor para a formação do homem.” A Educação Infantil - chamada de “parquinho”, “prezinho”, “escolinha” e outros “inhos” e “inhas” – reivindicou, por décadas, ser incluída efetivamente no Sistema de Ensino. Se as creches faziam parte da Assistência Social, a Educação Infantil já pertencia à Educação, no entanto, não era vista com um lugar para aprender, mas um lugar para as mães deixarem as crianças brincando. O lúdico ou o aprender brincando, não tinha o status que tem hoje. Houve um tempo em que se pensou que a Educação Infantil não tivesse sua própria identidade; acreditava-se que ela devesse preparar as crianças para entrar no primeiro ano: ensinar a • • 18 anos, 20 histórias
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andar em fila, a se comportar, a pintar com as “cores certas”, a aprender a pegar no lápis etc. Tudo que facilitasse a entrada na escola “de verdade”. Já as crianças, não tinham dúvidas, sabiam que era preciso um tempo para brincar junto com gente diferente: “Fiz o Jardim de infância primeiro. Foi legal estudar assim, fazendo bagunça de criança” (Carolina); “Era a maior alegria ficar brincando. Não fazia nada de lição” (Beatriz). Foram anos de debates e teorias com o objetivo de integrar a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, evitando um grande choque na passagem de um estágio para outro, a exemplo do que acontecia, também, da quarta para a quinta-série, quando de um/a professor/a passava-se a ter vários, um/a para cada matéria. A organização das escolas em ciclos e não mais em séries, a inclusão das creches e da Educação Infantil no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, a substituição do curso de magistério pela faculdade de pedagogia, o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE etc, devem ser lidos como esforços do Estado para a extensão da Educação Infantil como um direito das mães e como direito das crianças. Apesar das vagas em creches terem aumentado em 13,7% de 2006 para 2007 apenas 1,7 milhões de crianças de zero a seis anos de um total de cerca de 11 milhões estão matriculadas, isto significa dizer que apenas 15,5% das crianças brasileiras conseguiram sair da fila de espera das creches (Censo Escolar 2006, INEP). É muito pouco! Os movimentos sociais continuam lutando para que todas as crianças tenham a primeira etapa de sua educação garantida. Outras leis já citadas nesta publicação e que estão ou na terceira idade (60 anos) como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) ou chegando à vida adulta (20 anos) como a Constituição Brasileira (BRASIL, 1988) ou adolescendo (13 anos) como a LDBEN 9.394 (BRASIL, 1996) falam da educação como direito e como condição para a liberdade e o desenvolvimento humano. E não é qualquer educação, não! Só serve a educação onde se aprende a ser, a conviver, a fazer e a aprender. Conhecidos como os quatro pilares da educação (UNESCO, MEC, Cortez Editora, 1999), estes princípios sintetizam as estratégias e o sentido da educação para as crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos, familiares, comunidade e sociedade como um todo. São os pilares da educação como projeto de futuro. Parte dos relatos sobre a escola aponta o quão distante a experiência escolar pode estar destes pilares. Como aprender a ser e a conviver, quando a escola não valoriza, nem ensina o respeito à diversidade? Quando deixa ou espera que a inclusão faça parte da iniciativa individual dos estudantes? O relato de Sofia ilustra bem isto: “(...) acho que na escola a gente vê bastante preconceito (...) o pessoal tem bastante preconceito com negro, com homossexual, com tudo, sabe? (...) tinha uma menina na minha sala que era negra e todo mundo tratava ela mal, tanto é que tentei incluir ela no nosso grupo (...) Isso é a segunda coisa mais desagradável que existe quando você está no colégio: não ter um grupo pra fazer um trabalho”. Outros relatos nos apontam a dificuldade de encontrar e definir uma “boa escola”, um bom educador, uma boa educadora. Por vezes a escola boa é apresentada como a escola particular, aquela que “é mais puxada”, “que tem um nível”. Outras vezes, como a escola que “tem regras e mais punição”; que tem biblioteca, laboratório e computadores funcionando. Só como informação: de cada 100 escolas públicas, 73 não têm biblioteca e só 28 tem quadra esportiva. Uma parte significativa do grupo acredita 290
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que a boa escola “tem poucos alunos”, porém, Carolina nos diz que às vezes “o professor incentiva a ficar em casa. Ninguém vai. Na sala tem quarenta, você entra na sala e tem dez, o professor não tá nem aí, não vai cobrar nada mesmo. A gente vai e o professor fala para não encher o saco. Como é que pode estudar deste jeito? Como que tem vontade?”. Educadores e educadoras são lembrados muitas vezes, confirmando as pesquisas que apontam estes e estas como pessoas significativas, como referências, como marcas em nossas vidas. São citados, do/a educador/a que humilha, persegue, ignora, não pensa no futuro ou só se preocupa com o salário, ao/à educador/a que motiva, “abre o olho”, compreende, partilha a vida. Li e reli as histórias. Notei que pouco se falou do aprender a fazer e do aprender a aprender. Afinal, o que se aprende na escola? Para que serve a escola? Chego então à segunda frase inspiradora, do mestre Paulo Freire: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda” (FREIRE, 2000). Precisamos de uma escola que entre outros: a) promova o estudo da realidade; b) valorize os saberes dos/das jovens; c) construa oportunidades concretas de melhoria de vida e de participação local, articulada com o que acontece na cidade, no país e no mundo; d) favoreça e estimule o diálogo e a convivência; e) valorize a diversidade (gênero, raça/etnia, orientação sexual, de origem etc); f) respeite as especificidades locais (rural, urbana, quilombola, indígena, metropolitana, periférica etc); g) ofereça oportunidades de formação profissional em cursos técnicos ou na universidade; h) amplie as parcerias com as instituições locais e a comunidade; i) favoreça o senso crítico; j) desperte a curiosidade; k) utilize múltiplas linguagens na construção do conhecimento; l) favoreça que jovens se tornem sujeitos da própria história e da história de sua comunidade; m) desenvolva responsabilidades e n) seja espaço de aprendizagem. De acordo com o Ministério da Educação (BRASIL, 2008) mais de 50% dos jovens entre 15-17 anos, não estudam e engrossam o coro de Carolina: “Escola?! Vixi Maria! Eu não gosto da escola”. E nós? Gostamos da escola? Queremos a escola? Qual escola?
*Educadora social, formada em Ciências Matemáticas pela Universidade São Judas Tadeu e tem especialização em Pedagogia Social pela Universitá Salesiana di Roma. Desde 1988 atua em organizações não-governamentais. Fundou e coordenou CEDECA’s, foi educadora de escolas públicas de São Paulo. É co-coordenadora do Programa de Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – IBEAC. É empreendedora social da Ashoka e membro da Comissão Nacional de Educação de Jovens e Adultos – CNAEJA (SECAD/MEC), representando o segmento étnico-racial. Associada ao CEDECA Interlagos.
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Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em <http://www.senado.gov. br/sf/legislacao/const/Brasília: Senado>. Acesso em: 25 ago. de 2009. BRASIL. LDBEN Nº. 9.394/1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm>. Acesso em: 25 ago. 2009. BRASIL. Ministério da Educação, 2008. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/index.php>. Acesso em: 25 ago. 2009. DRUMMOND, C. O Avesso das coisas. Ed. Record, São Paulo, 1987. Freire, Paulo. Pedagogia da indignação: carta pedagógica e outros escritos. São Paulo, UNESP, 2000. INEP. Censo Escolar, 2006 e 2007. Disponível em http://www.inep.gov.br/basica/censo/Escolar/Sinopse/ sinopse.asp. Acesso em 04 de set. 2009 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em <http://www.onu-brasil.org.br/ documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em: 25 ago. 2009. UNESCO, MEC. Educação: um tesouro a descobrir, São Paulo. Cortez Editora, 1997 - 2ª edição 1999.
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Direito à Educação Educação para o futuro de hoje Marilene Felinto*
Tinha vontade de astronomia... Meu sonho era fazer isso, começar aqui no Brasil, fazer intercâmbio e terminar no exterior. NASA... só crânio mesmo... Também tinha ... vontade de ser médica de criança, daí eu também achei a faculdade muito cara, sou de classe baixa, não tenho dinheiro pra pagar faculdade cara, aí fui pra administração, vou ficar louca com tanto número! Quero fazer primeiro o curso e depois a faculdade. USP não paga, eu sei que quero fazer faculdade e ter um futuro melhor pros meus filhinhos... (Line)
Quando o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) prevê em seu Capítulo IV , Art. 53 que a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para a cidadania e qualificação para o trabalho, considera, em outros termos, que é preciso dar ao sujeito em formação oportunidade de conhecer todos os caminhos que o aproximem de seu sonho quando não da realização do mesmo. É preciso, portanto, entender o campo dos direitos do adolescente na educação também como garantia à informação e ao conhecimento sobre o conjunto de possibilidades de crescimento com qualidade, de conscientização sobre suas potencialidades e os modos de desenvolvê-las para sua satisfação pessoal e para o bem da coletividade. Trata-se aqui de alertar para a necessidade de se aprofundarem os direitos dos milhões de jovens pobres do país, estudantes de escolas públicas, que não terão acesso à continuidade dos estudos ao término do ensino médio. E que não terão acesso sequer à informação sobre seus direitos de inserção em um curso superior público ou a um curso técnico profissionalizante público. São milhões de jovens que crescerão apartados de seus sonhos, que não passarão nos exames vestibulares de universidades públicas este ano nem no próximo, nem no outro. Não passarão até mesmo porque desconhecem processos e trâmites. Todo o descaso para com a educação do adolescente pobre • • 18 anos, 20 histórias
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passa pela deterioração do ensino público, especialmente o de nível médio. Dezenas de depoimentos de jovens que oferecem seus perfis a esta publicação do Cedeca Interlagos tratam de sonhos e desconhecimento: “Só depois eu fiquei sabendo que o governo podia pagar uma faculdade”. “Meu sonho é fazer uma faculdade.” “Antes eu tinha um sonho que era trabalhar na Microsoft.” “Meu maior sonho é ter minha casa, meu trabalho.” “Antes eu queria ser fotógrafa, mas não dá futuro.” Cinco anos de trabalho com estudantes do ensino médio público da Zona Sul de São Paulo foram para mim reveladores do quanto estes jovens não sabem porque a eles nada é informado – desde a diferença entre ensino público e privado até os processos de inserção em outros níveis de estudo e profissionalização via políticas públicas. A escola pública, um instrumento do Estado, omite a informação e recusa a orientação. Ao contrário do jovem das classes altas, que desde cedo está em contato com todas as possibilidades que uma educação de qualidade lhe proporciona, o adolescente pobre ainda ficará relegado à posição de que concluir o ensino médio é “terminar os estudos” e ponto final. Garantir a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade da educação de crianças e adolescentes, conforme prevê o ECA, é também garantir o direito aos níveis superiores de ensino e profissionalização. É preciso conscientizar o jovem pobre da injustiça social que o vitima no campo mais decisivo de sua vida – o campo da educação. É preciso fornecer-lhe ferramentas para alterar esta situação. É preciso que ele saiba ainda que uma formação/profissão/ocupação não é apenas uma via de realização pessoal, nem tampouco a reprodução mecânica das “demandas de mercado”, dos modismos impostos pela sociedade de consumo – deve ser mais do que isso, deve ser uma contribuição para o esclarecimento do enigma humano, dos destinos desta civilização de homens duros, vingativos, superficiais, perdidos. Ora, a época de sonhar com “um futuro” começa na adolescência. A possibilidade de concretizar estes sonhos (gostos, desejos, aptidões) que se manifestam nesta época deve ser um direito garantido ao jovem. O futuro, afinal, é o que se souber sobre o futuro – muito mais do que o que se venha a fazer nesse tempo irreal, enfim, hipotético, nem sempre vindouro.
* Escritora, tradutora e coordenadora de projetos na área social nãogovernamental. Associada ao CEDECA Interlagos
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Direito de Ir e Vir Migrações: Sobre trajetos de crianças e adolescentes neste Brasil... Maria das Graças de Jesus Xavier Vieira*
Eu tinha apenas 16 anos, não conhecia nenhum lugar além de Arraial, no Piauí. Eu tava com muito medo. Tinha que viajar sozinha. Passei três dias na estrada. No caminho ligava direto pra minha mãe, pro meu pai (...). Quando começou a entrar na cidade mesmo, em São Paulo, eu me dizia: ‘Cara aqui tudo é grande. (Lila)
“Minha vida é andar por este país, pra ver se um dia descanso feliz” Luiz Gonzaga
Em 2008 fez 18 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, 18 anos da ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, 20 anos da Constituição Federal e 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou seja, este ano temos muito que comemorar, porém temos que refletir sobre a efetivação dos direitos da criança e do adolescente e se de fato estão sendo cumpridas todas as garantias de seus direitos. Ser criança e adolescente é viver plenamente coberta de direitos e deveres. Direito a ter uma vida plena desde a moradia digna, até ter uma família desde sua gestação e poder crescer sem interrupção da convivência familiar sem quebrar este laço que marca por toda a nossa vida, no dia-a-dia. Sabemos que no Brasil a realidade é completamente diferente para muitas famílias. Como no caso de Lila, muitas mães são obrigadas a deixar seus filhos recém-nascidos com seus familiares se distanciando e dificultando a manutenção dos laços e vínculos afetivos, em busca de emprego em outras regiões. Sobrevivência. Observamos tais situações nestes depoimentos de adolescentes ao Cedeca Interlagos. Um exemplo é da piauiense de 18 anos Lila, que relata a pura realidade de diversas crianças e adolescentes que passam por essas mesmas dificuldades. • • 18 anos, 20 histórias
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A União dos Movimentos de Moradia do estado de São Paulo1 vem trabalhando em busca do reconhecimento dos direitos da população de baixa renda. No Brasil são mais de oito milhões de famílias que não tem uma moradia digna! Moradia esta que perpassa outros direitos. Para que as famílias possam ter o direito à convivência familiar e comunitária e à cultura, por exemplo, e que não precisem quebrar os laços familiares e culturais. Para que todas as pessoas possam viver, conviver e exercer a sua cidadania praticando os direitos e deveres e exigindo do poder público e da justiça que sejam de fato cumpridas todas as leis aprovadas e sancionadas em nosso país. Para que cada criança e adolescente possa ter melhor qualidade de vida juntamente com seus familiares. Para que adolescentes como a Lila não tenham que viver o tempo todo em confl ito por não conviver com sua mãe, fazendo com que ela sofra por este tipo de migração, por uma hora estar no nordeste e outra hora no sudeste. Sem contar as relações de amizade que adolescentes como Lila sofrem por não manter um laço permanente. O processo de adaptação com a própria mãe, ao novo lar, as novas amizades, seriam de fundamental importância assim influenciando na sua formação, pois vivemos em um país onde hoje o que mais se vê é a violência. Tenho a plena consciência do conflito que gera para o resto de suas vidas por experiência própria. Eu vim para São Paulo aos 14 anos de idade em busca de trabalho e para ajudar minha família, se eu não tivesse uma base familiar tenho certeza de que não conseguiria fazer um terço do que faço hoje. Em busca de formação e informação para melhor exercer meu papel de cidadã. Neste momento que o ECA (BRASIL, 1990) completa 18 anos os tratados da criança e do adolescente e a Constituição Federal (BRASIL, 1988 fazem aniversário temos muito que comemorar como, por exemplo, os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sabemos que no marco legal temos todas estas conquistas, porém temos que lutar para que todos e todas tenham pleno conhecimento que temos que cobrar e exigir para que de fato nossos direitos sejam cumpridos diariamente. Eu interagindo com alguns adolescentes e me pondo no lugar deles, por já ter sofrido o mesmo descaso ponho uma estrofe como manifesto: “Somos jovens e temos os nossos direitos. Somos jovens e merecemos respeito!”
1 (UMM, 2009): A UMM foi fundada em 1987 com o objetivo de articular e mobilizar os movimentos de moradia, Sua atuação iniciou-se pela capital e Região Metropolitana e hoje atinge a outras regiões do estado. Sua forma de organização tem uma forte influência da metodologia das Comunidades Eclesiais de Base, de onde se originam grande parte de suas lideranças. 296
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*Formada em direito na Universidade Paulista – UNIP, Especialização em políticas públicas – PUC, mais de 20 anos de militância em movimentos populares, Empreendedora social – Ashoka, Coordenadora da união dos movimentos de moradia – UMM, Membro do Conselho da Coalizão Internacional do Habitat- hic, Rede mulher e habitat.
Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, (1988). Disponível em <http://www.senado. gov.br/sf/legislacao/const/Brasília: Senado>. Acesso em: 25 ago. de 2009. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069 de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/ L8069.htm>. Acesso em: 25 ago. 2009. UMM. História, 2009. Disponível em <http://sp.unmp.org.br/index.php?option=com_content&task=vie w&id=12&Itemid=31>. Acesso em: 25 ago. 2009.
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Direito à Mobilidade O transporte público que não transporta: mais um reflexo da desigualdade social brasileira Tuto B. Wehrle*
Ah, e o transporte!? Aqui eu espero muito tempo na fila. Um dia, esperei mais de uma hora em pé, pra esperar o ônibus da primeira fila chegar, pra conseguir passar pra quarta fila. Peguei cinco filas. Achei um absurdo. Eram seis horas, horário de pico, mas mesmo assim, né? (...) passar mais de uma hora em pé esperando um ônibus é um absurdo. E aí, se você fala: ‘Não, eu vou no ônibus mesmo sem lugar pra ficar sentada, eu vou em pé’, você fica esmagada. Às vezes tira um pé do chão pra descansar um pouquinho, quando você tenta abaixar de volta não tem espaço. Muito cheio. Pouco ônibus. Não é suficiente porque tem muita gente. Transportes ruins. Ônibus lotado. Nós tentamos fazer um abaixo assinado. Pegamos assinatura de todo mundo do bairro, foi aquela correria. Mandamos um ofício pra prefeitura e não adiantou nada. Não sei o que fi zeram com o ofício e nem com as assinaturas, mas continua sem ônibus. (Paola)
Para compreender a realidade social do Brasil, basta folhear o Atlas do Desenvolvimento Humano. Ele visualiza o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) elaborado pela Organização das Nações Unidas - ONU para qualificar o olhar estatístico e fugir do meramente quantitativo representado no Produto Interno Bruto – PIB. Este mede exclusivamente a produção econômica. O IDH possibilita um olhar mais qualitativo, pois leva em conta aspectos sociais, educacionais e o nível de renda da população. Ao olhar o mapa do mundo, encontramos todos os países divididos em três grupos. O primeiro com índices de alto desenvolvimento, o segundo com médio e o terceiro com baixo desenvolvimento humano. E vejam a surpresa: o Brasil consta no grupo de países com alto desenvolvimento humano. Contentes e confusos pela constatação, seguimos folheando o mapa para olhar apenas a realidade do Brasil. O país que no conjunto do mundo era todo com a cor do alto desenvolvimento aparece agora como uma colcha de retalho cheia de todas as cores indicando os três níveis de desenvolvimento. Mas o Estado de São Paulo mantém a mesma cor que antes era do Brasil inteiro. Quando folheamos para o mapa deste Estado, a 298
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mesma experiência se repete. O Município de São Paulo continua ostentando a cor do alto desenvolvimento e grande parte dos outros municípios do Estado retoma cores de níveis de desenvolvimento mais baixos. Então eu quero morar em São Paulo, deve pensar um leitor desavisado. Calma! Vamos olhar o Município de São Paulo para ver se fica mesmo essa maravilha toda. Claro que não... A mesma experiência se repete mais uma vez. Há pequenas ilhas dentro do Município de São Paulo que têm realmente um alto ou um altíssimo índice de desenvolvimento humano, mas no mesmo tempo aparecem extensas áreas que correspondem a várias Ouagadougous (capital do Burkina Faso, país da África do Oeste que ostenta um dos piores IDH do mundo) escondidas na média do alto desenvolvimento de São Paulo. Essa simples caminhada pelo Atlas do Desenvolvimento Humano mostra de forma espantosa um dos aspectos fundantes da realidade social do Brasil: a desigualdade. Quem não quer vê-la se atém às médias e se contenta com a constatação ilusória de o Brasil fazer parte do seleto grupo de países de alto desenvolvimento humano. Mas em um contexto de desigualdade, a média dos valores esconde a verdadeira face e distorce a compreensão da realidade. Fica igual àquelas duas pessoas que entraram em um restaurante. O primeiro comeu um frango inteiro, o segundo não comeu absolutamente nada. A média, no entanto, de um frango inteiro para duas pessoas, isto é, meio frango para cada um, esconde que um se empanturrou e o outro passou fome. Na média, os dois estão bem alimentados... Exatamente nisto consiste a perversidade da desigualdade social brasileira. Pois se existe um frango inteiro para duas pessoas, o problema entre elas não é a inexistência de alimentos, mas unicamente a falta total de distribuição justa dos bens e serviços existentes. E passar fome em um contexto onde existe um frango inteiro para duas pessoas é perverso e escandaloso. A desigualdade social no Brasil não é, portanto, um fato inexorável, uma fatalidade da história, algo que é assim porque é assim... Ao contrário, a desigualdade social no Brasil é assim porque ela foi construída historicamente desta forma. O processo histórico de produção e reprodução das relações sociais consolidou uma forma de ser da sociedade brasileira que se afirma dentro da moldura jurídica de um Estado de Direito com a garantia jurídica da igualdade de todos os cidadãos. Mas dentro do quadro desta moldura formal, co-existimos com a sistemática aniquilação da dignidade humana da maioria da população brasileira. Esta maioria desaparece na mais absoluta invisibilidade social que acaba por naturalizar a desigualdade existente. Se “a sociedade egípcia, que fazia pirâmides, era uma pirâmide” (GALEANO, 2008, p.19), fica evidente que a sociedade brasileira, que é profundamente desigual, também vai consolidar uma vivência das relações sociais a partir de estruturas e serviços que são também profundamente desiguais e, pior, reproduzem sistematicamente esta mesma desigualdade. Se olharmos a questão do transporte, por exemplo, verificamos exatamente esta realidade. Ao compararmos as estruturas existentes para o transporte individual e privado de um lado com os serviços do transporte coletivo e público de outro lado, verificamos que São Paulo simplesmente não possui um sistema lógico de transporte público que assegure uma mobilidade decente entre centro e periferia da cidade.
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A política de transporte privilegiou historicamente o transporte individual e privado, portanto a mobilidade daqueles que possuem automóvel. Governos de esquerda e de direita têm sistematicamente priorizado a visibilidade de obras que vendem avenidas duplicadas, passagens subterrâneas e viadutos megalomaníacos como soluções do problema do transporte, quando, na verdade, apenas resolvem o problema das construtoras monopolizadas que se enriquecem através de obras públicas. Alguns vão me corrigir e dizer que agora o trem existe até o Grajaú e o metrô também chegou a Capão Redondo. Primeiro, o trem não vai até o Grajaú. Apenas entra timidamente no início do distrito do Grajaú e continua distante dos territórios mais populosos. E, segundo, o metrô que vai até Capão Redondo chega apenas até Santo Amaro e não segue para o centro da cidade. Finalmente, o trem do Grajaú e o metrô de Capão Redondo continuam sem acesso à rede de metrô que, comparada com o tamanho da cidade, é absolutamente irrisória. Além disso, todas as obras até hoje vendidas como soluções para o problema do transporte público sempre tiveram um potencial menor que o efetivo crescimento da curva explosiva da demanda por transporte. Portanto, na linha do tempo, o problema tende a se agravar. Os relatos nas histórias de Mariane, Lina e Paola mostram a triste realidade de um transporte público que não transporta. As três falam das filas enormes, da espera escandalosa e dos ônibus sempre lotados. É o lamento cotidiano de toda a população que habita a periferia desta cidade gigantesca. Pois os descaminhos da mobilidade do tráfego imobilizam as pessoas. E pior: não é apenas o transporte público que não transporta. É todo o sistema de transporte – baseado na prioridade dada ao transporte individual e privado – que vive um colapso diário. Destarte, a cidade é um corpo em convulsão que morre diariamente de tromboses anunciadas. A insistência histórica em um paradigma que pensa o transporte a partir dos interesses de uma pequena elite não é apenas inviável, mas é efetivamente suicida. Isto é, nem o individualista no carro privado nem o morador da periferia no ônibus lotado conseguem andar. Mas, é claro que as conseqüências desta aberração é mais sentido pelos usuários dos ônibus lotados. Quem anda de carro fecha o vidro, liga o ar condicionado e finge não ver. Assim, o transporte público que não transporta contribui para imobilizar as esperanças dos moradores da periferia, é uma cota diária de tortura, aumenta o cansaço existencial, mina a resistência necessária e aniquila a força transformadora da mobilização da maioria. Line relata que “o que cansa mais não é o serviço, mas o ônibus é uma viagem daqui pra lá”. Mas a inexistência de um transporte público decente não é apenas uma negação de “um direito do cidadão e um dever do Estado” (como vinha escrito nos ônibus da extinta CMTC – Companhia Municipal de Transporte Coletivo), mas constitui uma violência sistemática, pois reduz o potencial de desenvolvimento da população. A imobilidade do transporte público contribui para a redução da mobilidade social. Paloma percebe bem essa conexão. “Acho que eles pensam que a gente não tem casa, nem família, que a gente não tem o que fazer”, relata ela. Claro que eles – os gestores da política pública de transporte – sabem que Paloma tem casa e família. Mas certamente não querem que Paloma - junto com toda juventude 300
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da periferia – faça alguma coisa para mudar esta realidade. No entanto, o Movimento Sem Terra em seus vinte e cinco anos de existência nos ensina que direitos não se ganham, direitos se conquistam. Por isso, não há alternativa à constante busca por mobilizar a população imobilizada e lutar contra a invisibilidade social. Ou como diz a campanha do CEDECA Interlagos: sou gente e tenho direitos!
*Secretário-Geral de E-Changer. Sócio-fundador do CEDECA Interlagos
Referências Bibliográficas ONU. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, ano. Disponível em <http://www.pnud.org.br/atlas/>. Acesso em: ago. 2009. GALEANO, E. Espelhos. Uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.
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Direito à Convivência Familiar e Comunitária Famílias na construção das relações sociais . Concepções de famílias Francisca Rodrigues de Oliveira Pini*
Minha família é família boa, é gente boa. Moram, eu, a minha mãe, meu pai e meus dois irmãos: Thaissa e Ricardo. Minha irmã, a Nadine, é casada, mora num bairro diferente, na casa dela com o meu sobrinho, mas é perto. Dificilmente a gente fica distante, só pela rotina de serviço e de curso é que a gente fica separada, mas tirando isso, quando tem tempo, todo mundo vive junto, enchendo o saco, bagunçando... (Carolina)
O depoimento da Carol retrata um importante princípio da convivência familiar, que é o afeto e, por meio dele, a construção da vida comunitária. É possível afirmar que o sentido da convivência familiar e comunitária como espaço necessário ao desenvolvimento da criança e do adolescente tem conquistado espaço do ponto de vista legal, nestes 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), mas em termos dos investimentos em políticas sociais para às famílias, ainda há uma distância na sua efetivação. É necessário recuperar as transformações ocorridas ao longo da história em relação à família para compreendermos as diferentes concepções. A concepção de família moderna centrada na figura masculina se estabeleceu no ocidente, como modelo considerado ideal, durante o século XX. Esse modelo conviveu com diversos arranjos familiares que o questionou, em face das mudanças na economia, na cultura, na política e nas relações sociais. Podemos considerar diversas razões para a coexistência de outros modelos familiares, dentre eles: a inserção da mulher de forma intensa no mercado de trabalho, as transformações no mundo do trabalho e a dinâmica do capitalismo. Ser diferente em uma sociedade considerada pacífica, ordeira e estruturada era assumir os rótulos de desobediência, conflituosa e desestruturada. Esse estigma perseguiu e persegue as famílias até os dias de hoje, visto que há uma busca pelo padrão estabelecido, por meio do núcleo composto por um homem, uma mulher e os filhos. 302
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A qualidade da relação e o significado social da convivência em família historicamente foi desconsiderado. A família, espaço social em que se experimentam as angústias, as regras, a alegria, o medo, a coragem, dentre outros sentimentos passou a ser reconhecido pelas instituições a partir de um único ponto de vista, a configuração nuclear. O não reconhecimento por parte das instituições estatais e não-governamentais de outros arranjos familiares tem dificultado a permanência de crianças e adolescentes em outras composições familiares, o que tem acarretado diversos problemas emocionais e comportamentais prejudicando o pleno desenvolvimento e a não garantia da prioridade absoluta. Carol jovem como o ECA (BRASIL, 1990), hoje já mãe, e para ela o referencial de mulher, mãe e cuidadora é sua própria mãe, que esteve sempre ao seu lado, lhe protegendo e juntamente com ela ensinando e aprendendo com os confl itos do cotidiano. O papel desempenhado pela família da Carol em relação à construção dos princípios de convivência familiar foi determinante para que ela pudesse se desenvolver respeitando sua família, seus colegas na comunidade e a sociedade em geral. Sendo assim, Carol e seu companheiro que tem uma criança, conseguirão assegurar a ela o cuidado, o afeto e a sustento, sempre tendo em vista os demais integrantes da família, como parte constitutiva de uma rede de proteção. Desse modo é preciso compreender que há no contexto familiar papeis diferenciados para cada um de seus integrantes e tê-los bem definidos é necessário para que cada um saiba como conviver, negociar e se relacionar consigo e com os outros. A família a partir da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1990), segundo o artigo 227, em conjunto com a sociedade e o Estado, têm o dever de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
Um princípio que foi assegurado na Constituição Federal de 1988, foi a articulação em rede, e aqui colocamos o complemento rede de proteção social, a qual compreendemos como relações sociais tecidas no contexto comunitário e que se interrelacionam com os serviços públicos de forma organizada, complementar e potencializadora de formulações de estratégias dialogadas e por meio das políticas publicas para assegurar os direitos sociais. O desafio que está posto nesta sociedade é o de aproximar a realidade das garantias previstas em lei, pois a distância entre lei e realidade é a grande dificuldade de efetivação dos direitos humanos em • • 18 anos, 20 histórias
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nosso país. Dessa forma, compreendemos que o compromisso de promover o desenvolvimento pleno da criança e do adolescente é de todos e todas. De tão importante que é a convivência familiar, no ano de 2006, após sucessivos encontros, debates e reflexões com a sociedade, as instâncias responsáveis pela formulação das políticas públicas finalizaram o documento intitulado “Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária” (BRASIL, 2006), documento orientador da política de atenção à criança e ao adolescente, tendo como centralidade a família, para seu pleno desenvolvimento. A construção de uma sociedade justa, mais fértil de vida, deve ser pautada na ética para a Vida, na criticidade, na participação1, no respeito, na compaixão, no afeto, na “boniteza”, na “corporeificação das palavras pelo exemplo” e no “inédito viável”, como nos dizia Paulo Freire nessa construção as famílias ocupam um papel fundamental. A forma poética e filosófica com que Paulo Freire escreveu Pedagogia da Autonomia (1997) nos convida a refletir sobre vários saberes essenciais à prática educativa. Um deles é a necessária relação entre a ética e a estética. Ele faz referência ao exercício educativo aliado ao caráter formador de valores, ou seja, aprendemos conteúdos, mas, é função também do educador/a trabalhar a dimensão da existência humana, portanto, valores como: respeito, atitudes solidárias, cooperativas e saber conviver com as diferenças, sempre vendo no outro um igual. O fato de estarmos refletindo o significado social do convívio familiar significa que estamos completamente convencidos que urge pensarmos novas estratégias de intervenção com as famílias, assegurando à elas o direito de falar, de expressar, de propor e, acima de tudo de deliberar sobre o que faremos e como faremos. O desafio está posto e para iniciá-lo será preciso ressignificar as intervenções pautando-se por uma educação que conceba o ser humano como sujeito da sua própria história, como um ser capaz de analisar o seu “estar sendo no mundo”, de compreender a realidade vivida e de agir sobre a realidade, transformando-a para melhor. Nesse sentido, os procedimentos metodológicos não pressupõem ações “para” as famílias, mas “com” elas. Não serão feitas “por” elas, mas “junto” com elas. Não serão levadas propostas “prontas”, mas discutidas até encontrar coletivamente as alternativas. Assim a história da Carol que retrata parcela significativa de outras histórias, vai contribuir para que as intervenções com famílias privilegie a qualidade afetiva e sustentável das relações familiares e que a institucionalização seja o último recurso para uma criança e adolescente.
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No sentido etimológico da palavra: “tornar-se parte da ação” CEDECA Interlagos • •
*Mestre e doutora em políticas sociais pela PUC-SP, sócia fundadora do CEDECA Paulo Freire, professora de políticas sociais e movimentos sociais da Faculdade de Mauá e Coordenadora da Coordenadoria da Educação Cidadã do Instituto Paulo Freire. Associada ao CEDECA Interlagos
Referências Bibliográficas BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, 2006. Disponível em: http://www.mds.gov.br/suas/guia_creas/avisos-e-documentos/copia-de-pncfc-28-12-06-documentooficial.pdf/view . Acesso em: 25 ago. 2009. CARVALHO. M. C. Brant (org.). A Família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC. Cortez, 2003. FREIRE. P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GOHN, M. G. O Protagonismo da Sociedade Civil. Movimentos sociais, ONGs e redes solidárias. São Paulo: Cortez, 2005. GUTIERREZ, F. e PRADO C. Ecopedagogia e Cidadania Planetária. São Paulo, Cortez, 1999. LOUREIRO, C. F. B. Trajetória e fundamentos da educação ambiental. São Paulo: Cortez, 2004. MUNÕZ, C. Pedagogia da vida cotidiana e participação cidadã. São Paulo: Cortez, 2004. PINI. F. R. O. A construção das relações sócio-afetivas na família e seu papel na educação dos filhos. Programa de Formação Continuada a Distância: NTC/PUC/SP, FENABB e Fundação Banco do Brasil, 2003. TORRES, C. A. Pedagogia da luta. Da pedagogia do oprimido à escola pública popular. Tradução Luzia Araújo, Tália Bugel. Campinas: Papirus,1997.
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Direito à Convivência Familiar e Comunitária Abandonos Vanice Aparecida Alves*
Como se nada tivesse acontecido. Foi embora! Minha mãe trabalhava e ele ficava em casa com a gente. Largou minha irmã lá na escola e me deixou lá, com uma toalha na boca pra estancar o sangue. Foi embora... Quando minha mãe chegou, não tinha ninguém em casa, só eu, toda cheia de sangue. Minha mãe desesperada, já me levou pro hospital e depois, quando chegou em casa do hospital, com mais calma, viu que ele tinha deixado um bilhete, dizendo que não dava mais, pra ele ali. (Carolina)
São muitos os ABANDONOS... expressos em nomes, e nos relatos de 18 anos de histórias, de vidas, de encontros, e desencontros, neles encontramos a marca do desencanto: o ABANDONO. Abandono este que traz conseqüências à história da pessoa, misturando muitas vezes sentimentos de raiva, rejeição, revolta, desprezo. Nesse sentido, os relatos das histórias apresentadas expressam o abandono seja na ausência da figura paterna que muitas vezes não tiveram o DIREITO de conhecê-lo, ou porque “largaram” prematuramente essa responsabilidade, ou porque foram embora num determinado momento da vida das crianças e/ou dos adolescentes, ou porque à distância fez deste contato o próprio abandono, ou em outras palavras por conta de fatores mais complexos, deixando assim a marca do abandono na trajetória desses jovens, o qual podemos dizer que adquire sinônimo de desproteção, que supomos ser este o sinônimo da trajetória de muitas crianças, adolescentes e jovens brasileiros. Mas na verdade o que poderíamos chamar de abandono? Ou qual trajetória do abandono na vida das crianças e adolescentes? Primeiramente é necessário pontuarmos que antes dos dispositivos legais como a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente ECA de 1990, as crianças e os adolescentes não eram vistos como SUJEITOS DE DIREITOS, essas conquistas se deram após muitas lutas dos movimentos sociais da infância somados as lutas gerais por uma outra sociedade de DIREITO, estes movimentos pressionaram 306
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para a superação de leis e regulamentações arcaicas às conquistas dos direitos. Com isso avançou-se também na concepção de FAMÍLIA, da qual incorporou entre as suas funções o DEVER de CUIDAR e PROTEGER seus integrantes principalmente aqueles que necessitam destes cuidados e proteção, seja por estar em condições peculiar de desenvolvimento, seja devido alguma deficiência, seja por ser idoso. Nesse sentido podemos então considerar que o abandono se caracteriza pelo oposto da proteção: a “DESPROTEÇÃO” daqueles que necessitam de cuidados e proteção, no sentido de não atender as suas necessidades básicas e afetivas. Entretanto é necessário assinalarmos também que o abandono não pode limitar-se apenas ao indivíduo, ou seja, na ausência da figura paterna nas relações da criança e do adolescente, ou na ausência de outras figuras de referência, mas o abandono também se expressa na ausência ou precária presença do ESTADO, por meio das POLÍTICAS PÚBLICAS que garanta a real proteção à família nas áreas da assistência social, saúde, habitação, educação, trabalho, cultura, lazer, esporte, mesmo porque a proteção não é responsabilidade apenas da família, mas de todos incluindo o Estado, conforme previsto no ECA (BRASIL, 1990) no artigo 181. Considerando que temos um Estado mínimo para responder as expressões das questões sociais presentes em nosso cotidiano, ou seja, Estado este que reduz as garantias dos direitos da população em favor da política econômica ($) é que nos deparamos com as diversas expressões do abandono. Haja visto, as expressões dos integrantes das famílias que por conta de não terem garantindo as vagas nos equipamentos de educação2 têm que permanecer em casa para cuidar das crianças e/ou adolescentes, ou deixá-las em casa sozinhas para submeter-se ao precário mundo do trabalho o qual passam horas, enquanto as crianças e/ou adolescentes permanecem sozinhas em casa ficando assim expostos às situações de riscos, nesse sentido percebemos que as condições reais também não permitem que seus responsáveis cumpram com o seu papel de “protetores”, pelo fato de não terem tido acesso aos recursos necessários para garantir a proteção de suas crianças e adolescentes, seja garantindo-lhes os equipamentos públicos, políticas de trabalho, assistência social ou de outras demandas necessárias para seu cumprimento. Nesta perspectiva então podemos pontuar que para a família responder a sua função de proteção é necessário que ela também tenha condições para isso, e quando não, devido a sua fragilidade, também deve ter assegurado pelo Estado a sua proteção. Agora caso a família tenha tido os acessos assegurados e/ou as condições objetivas e subjetivas para assumir a sua função, e mesmo assim não assumir com a sua responsabilidade, demonstrando assim à intenção de descumpri-la, nesse sentido podemos apontar como ‘ABANDONO’ de sua(s) responsabilidade(s), portanto em condições de responder pelos seus atos, devido ter violado os DIREITOS de seus integrantes que necessitam da proteção de seus responsáveis. 1 Estatuto da Criança e do Adolescente. Título II. Dos Direitos Fundamentais. Capítulo II - Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade. Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. 2 Conforme previsto no ECA . Título II. Dos Direitos Fundamentais. Capítulo IV – Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer, nos artigos 53 à 59. • • 18 anos, 20 histórias
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Neste caso identificamos os responsáveis pelo abandono quando o responsável pela proteção está na família, mas e quando é o Estado? Neste caso o Estado também tem que ser responsabilizado pelo o seu ABANDONO, mesmo porque temos um Estado de “desproteção”, que viola os DIREITOS HUMANOS desde que optou por uma política econômica e não por uma política de direitos. Estado este que deparamos todos os dias o seu descumprimento: quando “oferta” precários equipamentos públicos e mínimos a políticas sociais; quando se apropria dos territórios privilegiados deixando os territórios vulneráveis à população pobre; quando se utiliza da opressão e da violência para manter-se no poder; e quando não é punido por sua “desproteção”. Portanto sob o abandono devemos construir mecanismos para enfrentarmos os desafios apresentados neste contexto, que dê conta dos aspectos político, econômico, social e cultural da sociedade em que vivemos, pois de um lado se exige as responsabilidades das famílias, e de outro lado tem-se um Estado mínimo que não garante condições dignas para a população viver e assim garantir o DIREITO DE PROTEÇÃO das crianças e dos adolescentes.
* Assistente Social, Mestranda em Políticas Sociais, Conselheira do CRESS/SP 9º Região – Conselho Regional de Serviço Social -, Coordenadora do Núcleo de Criança e Adolescente do CRESS/SP e militante do movimento da infância. E-Mail: dialetica@hotmail.com
Referências Bibliográficas BRASIL. Estatuto da Criança e Adolescente ECA.Lei nº 8.069, de 13 jul. de 1990. Brasília. DF.1990 VOLIC, Catarina. BAPTISTA, Myrian Vera. Aproximações ao conceito de negligência. Revista de Serviço Social e Sociedade: Criança e Adolescente, nº 83, Ano XXVI, Especial, 2005. São Paulo: Cortez, p.147-156.
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Direito à Convivência Familiar e Comunitária Reflexões sobre o fenômeno da violência doméstica Cláudio Hortêncio*
“Acho que isso não vai mais acontecer, ele não vai mais precisar me bater...” (Carolinas de qualquer lugar do Mundo!)
Frente a um dos fatores multideterminantes sobre o fenômeno da violência doméstica – de vítima a algoz – os sentimentos ambíguos provocam uma lacuna que pouco o Sistema de Justiça, quanto uma rede de atenção a estes tipos de violência podem dar conta, ou responder objetivamente a partir de equações. Estamos falando de uma violência que se esconde sob mantos de processos “educativos”, que encontram ecos em uma grande parte da sociedade, como percebemos em frases historicamente reconhecidas por nós: é de cedo que se torce o pepino, conversa de adulto não interessa para criança, criança e tamanco para debaixo do banco, apanhei e hoje sou um homem!, dentre outras. Podemos afirmar sem muitas buscas teóricas conceituais que sem a violência as pessoas se desenvolvem melhor, se tornam pessoas melhores, para si e para o mundo. Pela narrativa percebemos que a rede de atenção, tampouco percebeu os equívocos que o cenário e o tempo podem provocar, uma vez que os procedimentos judiciais, já apontados por alguns autores, continuam colocando a vítima, quando criança ou adolescente em uma posição de subordinação às vontades dos adultos, mais um fator que alude ao fenômeno: a “coisificação da infância”, aparecendo como mero coadjuvante em uma história onde a vítima não se reconhece enquanto vítima, mas sim como um provocador da violência – situação muito comum nos processos deste tipo, envolvendo crianças ou adolescentes – a negação, o medo, o crédito ao adulto; ainda que entendendo que neste momento ela coloca a sua “vida” nas mãos daqueles que tem por competência legal a proteção e o cuidado – fato comum, trabalhado na construção da identidade da criança desde a mais tenra idade, eu diria, ainda que no ventre da mãe – as mães acariciam, conversam com seus filhos, quando no período da gestação. Deve-se pensar em processo de potencialização, de protagonismo, na perspectiva do reconhecimento do sujeito criança e adolescente, no que tange especialmente ao processo de • • 18 anos, 20 histórias
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desenvolvimento, empoderando-os a partir de espaços coletivos, como escola, comunidades religiosas, espaços de formação, onde estes temas podem ser trabalhados de forma séria e honesta, reconhecendo os processos de re-vitimização, objetivando minimizá-los no que diz respeito aos rompimentos de ciclos violentos, identificado por alguns autores no âmbito de algumas família, compreendendo também que não será fácil a reversão destas situações, uma vez que culturalmente nunca fomos preparados para este tipo de debate com processos que possam garantir uma emancipação do sujeito, para que ele possa construir e reconstruir suas trajetórias. No entanto, quando falamos de infância e adolescência e o ambiente doméstico, a situação se intensifica – Alguns pais se acham “donos” dos filhos, diferente de responsáveis e revestidos deste sentimento de propriedade provocam este tipo de violência, cuidadosamente relatado por uma adolescente vítima, que ‘desocupa’ o lugar de vítima - talvez para conseguir viver melhor!!!
*Advogado. Mestre em Direito das Relações Sociais pela faculdade de Direito da PUC-SP. Consultor na área de infância e juventude. Professor do Mestrado em Adolescência em conflito com a lei da UNIBAN. Associado ao CEDECA Interlagos.
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Direito à Convivência Familiar e Comunitária Dos sentidos da vida: Uma reflexão sobre institucionalizações e o direito Eduardo Rezende Melo*
Quantas coisas poderiam dizer o silêncio? Não saberemos. Mas ele diz. (Educadora)
Luanda, como tantas crianças e adolescentes neste país, podem ter suas histórias lidas por suas privações, violações, falta de cuidado e de atenção. Muitas delas talvez de fato o sejam. Mas Luanda nos traz embutido um outro olhar, quase resiliente, de uma menina que, a despeito de tanta solidão, parece ainda acreditar. Leio a história de Luanda como uma história de luta, porque ela lutou como pôde para sair, mais que da solidão, de um isolamento em que a colocaram, ela parece ter lutado para construir laços e sentidos para sua vida. Será que Luanda acreditava no direito, um direito intuído, mas que a mobilizou a procurar saídas, potencialidades, possibilidades? Ela parece ter procurado, antes de tudo, proteção. Abandonada pela mãe, ela busca o Conselho Tutelar. Esperava, talvez, que procurassem sua família, afinal tinha duas irmãs mais velhas, não teria talvez também avós, tios, padrinhos e madrinhas, pessoas que poderiam acolhê-la? Não teria sido esta sua busca • • 18 anos, 20 histórias
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se tivesse lido o art. 5º1 da Convenção, se tivesse sido instruída sobre os arts. 3º2 , 4º3 e 1014 do ECA? O Conselho Tutelar e o juiz talvez tenham sido incapazes de entender a busca de Luanda. Abrigar parece tão protetor, é tão simples, rápido, tem comida, tem cama, o que mais seria preciso para gente que não tem nada...? Mas Luanda parecia saber que era preciso mais. Ela queria afeto, vínculos, queria se sentir amada, queria amar, mesmo que para isso tivesse de sofrer castigos, sofrimentos, discriminação, tivesse de lutar e cumprir medidas em punição. Luanda intuía que seu direito ao desenvolvimento tem muitas dimensões, mas a humana, a espiritual e emocional, estão entre as mais fortes. Elas estão ligadas à sua dignidade e respeito, à sua singularidade como pessoa. Era isso que se pensava quando os artigos 5º e 275 1 Convenção sobre os Direitos da Criança. Parte I. Art. 5° - Os Estados Partes respeitam as responsabilidades, direitos e deveres dos pais e, sendo caso disso, dos membros da família alargada ou da comunidade nos termos dos costumes locais, dos representantes legais ou de outras pessoas que tenham a criança legalmente a seu cargo, de assegurar à criança, de forma compatível com o desenvolvimento das suas capacidades, a orientação e os conselhos adequados ao exercício dos direitos que lhe são reconhecidos pela presente Convenção. 2 Estatuto da Criança e do Adolescente. Título I – Das disposições preliminares. Art. 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. 3 Estatuto da Criança e do Adolescente. Título I – Das disposições preliminares. Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. 4 Estatuto da Criança e do Adolescente. Título II – Das medidas de proteção. Capítulo II – Das medidas específicas de proteção. Art. 101° - Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - abrigo em entidade; VIII - colocação em família substituta. Parágrafo único. O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade. 5 Convenção sobre os Direitos da Criança. Parte I. Art. 27° - 1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a um nível de vida suficiente, de forma a permitir o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social. 2. Cabe primacialmente aos pais e às pessoas que têm a criança a seu cargo a responsabilidade de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades econômicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança. 3. Os Estados Partes, tendo em conta as condições nacionais e na medida dos seus meios, tomam as medidas adequadas para ajudar os pais e outras pessoas que tenham a criança a seu cargo a realizar este direito e asseguram, em caso de necessidade, auxílio material e programas de apoio, nomeadamente no que respeita à alimentação, vestuário e alojamento. 4. Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas tendentes a assegurar a cobrança da pensão alimentar devida à criança, de seus pais ou de outras pessoas que tenham a criança economicamente a seu cargo, tanto no seu território quanto no estrangeiro. Nomeadamente, quando a pessoa que tem a criança economicamente a seu cargo vive num Estado diferente do da criança, os Estados Partes devem promover a adesão a acordos internacionais ou a conclusão de tais acordos, assim como a adoção de quaisquer outras 312
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foram inscritos na Convenção e depois repetidos nos artigos 3º e 15 6 do ECA. Quem o sabia senão Luanda? Não foi por outro motivo que ela resistiu ao retorno à casa e à mãe, de voltar ao ponto de partida. Só pode ser insensata uma adolescente que não deseja retornar para a família, devem ter pensado as assistentes sociais, a promotora e o juiz. Mas ela tentava, de uma derradeira forma, apontar que sua luta era por sentidos, era por um outro começo, como se soubesse que podia ir além. Afinal, não teria ela o direito de ser informada sobre seus direitos, sobre as várias formas de sua garantia, de ser escutada e sua decisão devidamente considerada? Não é isto, afinal, que mandam o art. 127 da Convenção e o 288 do ECA? Mas Luanda não foi ouvida. De volta à casa, ela só tem o direito de resistir, de não nos contar sua história a quem se furtou a lutar por ela, a quem não a respeitou como pessoa e não permitiu que pudesse ser autora de sua história. Luanda muda de nome, Luanda resiste e insiste a contar a sua história apenas para quem possa ouvi-la, ela quer ver garantido um respeito que talvez só pudesse encontrar no art. 17 9 do ECA se um dia pudesse tê-lo lido. Luanda vira João. Luanda tem muito a nos ensinar. Será que ela não nos mostra nosso próprio isolamento, nossa incapacidade de trabalhar, antes de tudo, com ela própria, com Luanda e para Luanda? Luanda como centro, como condutora de sua história, a nos dar o caminho de sua proteção, de seu desenvolvimento, de sua emancipação...? Falarmos em Sistema de Garantia de Direitos não pode ter outro significado: de que a articulação de atores nesta história só tem sentido quando Luanda tem o direito de ser a protagonista, de assumir a condição de regente e de inclusive se tornar João. Promoção, defesa ou controle da garantia de direitos só medidas julgadas adequadas. 6 Estatuto da Criança e do Adolescente. Título II – Dos direitos fundamentais. Capítulo II - Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade. Art. 15° - A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. 7 Convenção sobre os Direitos da Criança. Parte I. Art. 12° - 1. Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade. 2. Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional. 8 Estatuto da Criança e do Adolescente. Título II – Dos direitos fundamentais. Capítulo III – Do direito à convivência familiar e comunitária. Seção III - Da Família Substituta. Subseção I - Disposições Gerais. Art. 28° - A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei. § 1º Sempre que possível, a criança ou adolescente deverá ser previamente ouvido e a sua opinião devidamente considerada. § 2º Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as conseqüências decorrentes da medida. 9 Estatuto da Criança e do Adolescente. Título II – Dos direitos fundamentais. Capítulo II - Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade. Art. 17°. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
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têm sentido quando estruturados na abertura a que a vida chama cada uma dessas crianças e adolescentes a construir a sua própria história. Luanda nos ensina o quanto, como instituições, ainda temos de incorporar uma lógica toda outra de ação. Uma lógica que vai além de um papel meramente institucional, de tomada de providências prescritas por lei. O que está em jogo é um processo de luta conjunta por e com alguém que busca se afirmar neste mundo, como pessoa, como gente, aqui, agora, ainda criança, porque se cria e se faz gente sendo criança, nos fazendo pensar em sentidos múltiplos que a vida pode gerar. Luanda nos desafia a acreditar nos sentidos que o direito pode trazer para a vida e no papel que podemos ter para crianças e adolescentes neste país. Acreditemos em Luanda.
* Formado em direito (USP) e filosofia (PUC/SP). Especialista em direito penal e criminologia - USP. Mestre em filosofia - PUC/SP. Mestre em estudos avançados de direitos da infância – Universidade de Friburgo/Suíça. Juiz em SP desde 1991, ocupa atualmente a 1ª Vara Criminal, de Crimes contra a Criança e o Adolescente, e da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul/SP. Presidente da ABMP - Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude. Coordenador do Centro de Estudos de Justiça Restaurativa da Escola Paulista da Magistratura. Coordenador de projetos pilotos nacionais de justiça restaurativa e comunitária na comarca de São Caetano do Sul/ SP. Membro da Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ex-integrante do Conselho de Administração da Fundação Abrinq pelos direitos da criança.
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Referências Bibliográficas BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069 de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/ L8069.htm>. Acesso em: 25 ago. 2009. ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança. 1989. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/doc_ crianca.php > Acessado em: 25 ago. 2009.
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Direito à Convivência Familiar e Comunitária Desaparecimento e fuga: faces de uma mesma moeda? Marcelo Moreira Neumann*
O desaparecimento de pessoas não é um fenômeno atual, mas bastante recorrente na sociedade moderna. Tratando da questão do desaparecimento infanto-juvenil as estatísticas são alarmantes, demonstrando que o problema precisa ser enfrentado. No Estado de São Paulo, a média anual é de aproximadamente 8.000 desaparecimentos de crianças e adolescentes. Estima-se que no Brasil anualmente são registrados em torno de 40.000 Boletins de Ocorrência nas delegacias de polícia de todos os Estados. Na verdade a quantidade de desaparecimento pode ser bem maior, visto que muitas destas situações não são notificadas ou denunciadas às autoridades competentes. A falta de notificação, denominada de sub-notificação é um grave problema, pois, inviabiliza melhorar o sistema de informação sobre as violações dos direitos da criança e do adolescente e consequentemente deixa-se de investir em políticas públicas para área. A primeira hipótese é que a sub-notificação ocorre por uma falta de entendimento do que seja desaparecimento. Grande parte dos operadores de direitos da criança e do adolescente, incluindo os conselheiros tutelares, não relaciona o desaparecimento com a fuga de casa. A fuga do lar por parte de crianças e adolescentes são motivadas por diversas razões. Existe uma alta incidência de fugas por conflitos familiares e de violência doméstica: situações de negligência, abandono, violência física, psicológica e abuso sexual. Há também fugas motivadas por aventura, relações amorosas, opção sexual, religião, drogas, álcool e falta de dinheiro. Já o desaparecimento pode acontecer não só pelas fugas, mas também por situações de rapto, seqüestro, subtração de incapaz, catástrofes, tráfico de pessoas entre outras. Todavia tanto a fuga como o desaparecimento por outros motivos, rompe com os vínculos afetivos e de responsabilidade. Desta forma seria de suma importância que na situação de perda total de contato, os responsáveis procurassem a delegacia mais próxima de casa e abrissem um Boletim de Ocorrência. Existe um mito de esperar 24 ou 48 horas para lavrar um Boletim de Ocorrência. Todavia é assegurado pela Lei 11.259, de 30 de dezembro de 20051, o direito de fazer um registro, logo após o desaparecimento 1 Lei 11.259. Art. 1o § 2o A investigação do desaparecimento de crianças ou adolescentes será realizada imediatamente 316
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da pessoa. O caso é mais grave quando se trata de crianças muito pequenas, que normalmente não tem documentos e não possuem discernimento sobre seus reais responsáveis. Crianças com menos de 03 anos de idade se acostumam facilmente com outra família, embora possam estranhar nos primeiros dias. Verifica-se nos noticiários que há sempre situações de subtração de bebês ou de trocas de bebês nas maternidades. Mas deve-se considerar também um número grande de jovens que são mortos nas periferias das grandes cidades, que não entram nas estatísticas de desaparecimento. A mortalidade juvenil é alta nas periferias das grandes metrópoles, a desigualdade social, somada a falta de investimento de saneamento básico, educação, saúde, lazer, profissionalização, contribuem para o aumento das estatísticas do fenômeno. Essa falta de políticas básicas leva muitos adolescentes ao consumo e o tráfico de drogas. Muitos deles são mortos por dívidas contraídas pelo tráfico ou são mortos em confronto com a polícia. Alguns “desaparecem” de suas comunidades, ou buscam a proteção do Estado ou de sua família, outros são massacrados e enterrados como indigentes. O Projeto Caminho de Volta do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo2, trabalha na busca de solucionar os casos de desaparecimento infanto-juvenil no Estado de São Paulo. O Projeto funciona em parceria com o Departamento de Homicídio e Proteção a Pessoa – DHPP, no centro da capital e conta com uma equipe especializada. Além de acompanhar os casos de desaparecimento, promove apoio psicológico às famílias. Aplica-se um questionário para aprofundar sobre as causas do desaparecimento e colhe-se material biológico para traçar o perfil de DNA das famílias e conseqüentemente do desaparecido. Isto tudo ocorre com o consentimento livre e esclarecido de cada participante (Gattás & Figaro-Garcia, 2007). É de competência da polícia, investigar cada caso de desaparecimento. Todavia o trabalho realizado pelo Projeto Caminho de Volta é complementar aos serviços realizados pela polícia. Uns dos desafios a ser enfrentado é a cultura dos funcionários que trabalham nos distritos policiais que se negam a abertura do Boletim de Ocorrência, pois entendem que aquele caso é de fuga. O contexto esclarecido do reclamante sobre o desaparecimento na delegacia pode levar o funcionário a desestimular a abertura de uma ocorrência, prejudicando o processo de busca . Para que possamos ter um quadro mais próximo da realidade brasileira sobre os desaparecimentos de crianças e adolescentes, deve-se sensibilizar as autoridades competentes a fazer os registros, mesmo sabendo que os “fugitivos” possam imediatamente voltar para suas casas. É necessário educar os operadores de direitos a associarem a fuga de casa com o desaparecimento, para diminuir a subnotificação. Conscientizá-los que a fuga do lar é apenas a ponta do iceberg, que tem por baixo a violência, os maus tratos e os conflitos familiares. após notificação aos órgãos competentes, que deverão comunicar o fato aos portos, aeroportos, Polícia Rodoviária e companhias de transporte interestaduais e internacionais, fornecendo-lhes todos os dados necessários à identificação do desaparecido.” (NR) 2 Acesse http://www.caminhodevolta.fm.usp.br/ • • 18 anos, 20 histórias
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Assim, entende-se que a fuga é uma possibilidade de escape para muitos indivíduos que não suportam a violência vivenciada no cotidiano, como também deve considerá-la como parte de um processo social, histórico e cultural de negação de direitos que pode levá-los ao desaparecimento de forma definitiva.
*Psicólogo, mestre em Psicologia Social e doutorando em Serviço Social pela PUC-SP. Professor do curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Membro do Projeto Caminho de Volta do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Email: neumann.marcelo@yahoo.com.br
Referências Bibliográficas BRASIL. Lei 11.259 de 30 de dezembro de 2005. Acrescenta dispositivo à Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, para determinar investigação imediata em caso de desaparecimento de criança ou adolescente. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11259. html >. Acesso em: 25 ago. 2009. GATTÁS, G. J. F. & FIGARO-GARCIA, C. Caminho de Volta: Tecnologia na Busca de crianças e adolescentes desaparecidos no Estado de São Paulo. SEDH-CONANDA, 2007.
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Acesso à Justiça SEU Jorge e a NOSSA política socioeducativa Fábio Silvestre da Silva*
Qualquer coisa eles dão de cabeça na parede. Cabeça na parede é assim, eles, tem uma risca lá, tipo no meio do corredor. Paralela à parede, mas afastada. Aí mandam você por o pé nessa risca e encostar a cabeça na parede. Dói bastante. (Jorge)
Comemoramos, sem dúvida, todos os dias 13 de julho, os aniversários do Jorge e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)1, ambos nascidos em 1990. Jorge é, aparentemente, um brasileirinho comum, cuja história reflete a de tantos outros patriotas sofredores com a pobreza endêmica e com as desigualdades sociais que empurram milhões de crianças e Jorges à institucionalização. Já o ECA, pouco conhecido como o Jorge, pode ser considerado como um dos filhos diletos da gravidez democrática no país, na medida em que a concepção, a gestação e o parto ocorreram em meio à formulação da Constituição Cidadã de 1988. Como a paternidade e a maternidade são discutíveis, neste caso, é preciso dizer que a mobilização social, a luta pela redemocratização e a forte aliança social fecundaram o ECA, hoje com 18 anos. O Jorge tem a mesma idade da Lei que, em tese, tem como função a Proteção Integral dos seus direitos humanos e fundamentais. Mas lendo sua história e acompanhando os acontecimentos em todo o território nacional é fácil constatar que, mesmo passados 18 anos de vigência, a implementação de políticas de atendimento ao adolescente autor de ato infracional é uma das maiores lacunas do ECA. As marcas são punitivas de controle e exclusão social, como atestam as graves violações dos direitos nas instituições socioeducativas. O sistema judicial, bem percebido pelo nosso protagonista, tende pelo crescimento das medidas privativas de liberdade, mesmo sendo o perfil predominante de delitos de baixo potencial ofensivo. Isto sugere que tal medida deixou de ser excepcional e de breve duração pela lógica vingativa contida em muitas sentenças. Outro aspecto a ser considerado é a baixa implementação da municipalização das medidas em meio aberto, que em 2006, por exemplo, contava com apenas 12 capitais, sendo ampliada para as 26 capitais apenas em 20082. 1 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal nº 8069 de 13 de Julho de 1990. 2 Fonte: Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos • • 18 anos, 20 histórias
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São constatações que ilustram uma crise visível de interpretação e de implementação na área socioeducativa, pois no imaginário social das nossas 250 unidades de privação de liberdade3, 211 ainda estão muito distantes de serem considerados “estabelecimento educacional”, tanto no aspecto arquitetônico quanto no pedagógico, como propõe o ECA. O Jorge, ao entrar na unidade, afirmou logo “lá, na FEBEM, é diferente”. Ou seja, o cenário é de reiterada violação dos direitos humanos dos adolescentes e dos funcionários “que ficam no corredor sempre vigiando os quartos”. Vale lembrar, que pensar o atendimento socioeducativo pressupõe, antes de mais nada, abrir a cidade justamente ali onde ela tende a se mostrar cada vez mais segregadora, tanto na periferia quanto nas áreas de convivência das elites. É preciso deixar esclarecido que há sinais promissores com o surgimento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)4. Ele nasceu também de uma construção coletiva e sua plataforma inspiradora são os acordos internacionais em direitos humanos em que o Brasil é signatário. O Sinase propõe uma política nacional com articulação em rede e de integração de políticas intersetoriais que o Jorge sempre teve direitos, mas que foram negados como saúde, educação, assistência social, trabalho/ emprego, previdência social, cultura, esporte, lazer, segurança pública, entre outros. Sua ênfase se dá pela afirmação da natureza pedagógica da medida e pela erradicação de todas as formas de maus-tratos e tortura, como foi o exemplo da “cabeça na parede”. Sendo mais específico, é evidente que se faz necessário adotar algumas estratégias para superar os desafios que estão colocados neste sistema, tais como, a ampliação das varas especializadas e descentralizadas; a integração dos órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança pública e Poder Executivo, na operacionalização do atendimento inicial; fortalecimento da defesa técnica destes brasileiros; atuação contundente dos conselhos de direitos e tutelares; capacitação inicial e formação continuada para os operadores do sistema, incluindo os juízes; erradicação dos maus tratos; vigilância constante aos descumprimentos dos prazos dos adolescentes em internação provisória; incentivo a novas e boas práticas; garantia do controle social e monitoramento das políticas; qualificação dos sistemas de informação; e destinação privilegiada dos recursos para o reordenamento institucional necessário ao fim, por completo, não só do nome, mas do “Modelo FEBEM”.
Humanos da Presidência da República. Avaliação feita pelo autor, juntamente com a equipe do Programa de Implementação do SINASE, mas não foi publicada. 3 Fonte: Levantamento Nacional das Medidas Privativas de Liverdade de 2006 da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Avaliação feita pelo autor, juntamente com a equipe do Programa de Implementação do SINASE. Disponível em: http://www.presidencia.gov. br/estrutura_presidencia/sedh/spdca/prosinase/Pesquisas_MSE/ 4 Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução nº 119, de 11 de dezembro de 2006 - Dispõe sobre o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e dá outras providências. 320
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Por fim, alguém poderia afirmar que o Sinase está na contramão da crescente demanda social pelo agravamento das medidas. Felizmente está. A história do Jorge deve nos imprimir outro ritmo na sua implementação tendo o olhar no futuro, mas consciente que a ação deve ser para o aqui e agora. Neste sentido, sabemos que vem se tornando cada vez mais indefensável a lógica carcerária em nosso país, por isso precisamos, com sensibilidade, diálogo e ousadia, experimentar métodos, novas tecnologias, reunir esforços das várias áreas de conhecimento, como propõe essa publicação, e estabelecer parcerias suprapartidárias. Essa é a nossa esperança e o Jorge nos faz esse convite.
*Psicólogo. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Especialista em Psicologia do Esporte pelo Instituto Sedes Sapientiae. Gerente de Projetos da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. E-mail: psilvestre@uol.com.br Associado ao CEDECA Interlagos
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Direito à Segurança Sentidos dessa palavra: Segurança Valdênia Aparecida Paulino Lanfranchi*
Acho que devia ter mais local pras crianças brincarem... É tipo, pra dar pra criança e o pai falar: “Não, o meu filho está seguro naquele local. (Denise) “O nível de desenvolvimento humano de um país é também medido pelo perfil de sua polícia.” Hélio Bicudo
Ao tratar do tema segurança pública precisamos antes refletir sobre estas duas palavras separadamente, porque afinal as palavras têm força própria. Quando pergunto às pessoas de diferentes idades o que elas pensam sobre segurança quase sempre as pessoas, como resposta, descrevem situações em que se sentiram agredidas. Falam de frequentes assaltos, de abordagens truculentas por parte de policiais. Sempre no contexto da violência e da criminalidade por parte de civis ou policiais. Atrás destas respostas as pessoas querem dizer que segurança é não sofrer violência por parte de criminosos comuns ou por parte da polícia. Sem dúvida que esta é uma parte da resposta e que vai ao encontro ao dicionário “ABC dos direitos humanos”. publicado pela UNICEF – Bahia (ONU, 2000) que define segurança como: situação de quem está afastado de todo perigo. Para o Direito, é o conjunto de meios pelos quais devem ser garantidos os direitos fundamentais da pessoa como a vida, a liberdade e a incolumidade física ou moral. É a previsibilidade que a lei oferece
A grande armadilha está justamente em reduzir o conceito de segurança à segurança policial e/ ou judicial. Nunca se fez tão necessário ampliar o conceito de segurança, pois é a partir daí que se constrói a política da segurança pública. Vamos entender melhor. Quando pergunto às mesmas pessoas acima 322
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a quem cabe trabalhar para romper com a violência que elas descrevem como insegurança, ou falta de segurança, logo respondem que segurança é responsabilidade primeira da polícia. Resposta certa se continuarmos com uma idéia restrita do que é segurança, pois a própria Constituição Federal de 1988 em seu artigo 144 diz: “Segurança Pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos para preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas”. Neste conceito limitado de segurança se usa o termo público. E o que se entende como público? Vamos trabalhar aqui com o conceito dado pelo dicionário Aurélio: “público, relativo ou destinado ao povo, à coletividade. Que é do uso de todos. O povo em geral”. Quando falo da armadilha, falo de como o Estado, mesmo o denominado Estado Democrático de Direitos, pensa e executa a política de segurança pública. Nós sabemos que o Estado pensa a segurança, mas não a pensa para o público em geral, para toda a coletividade. Pensa para uma parcela do público. Pensa a segurança para àquela parcela da população que possui acúmulo patrimonial. Quantas vezes ouvimos dizer que a código civil que cuida de bens patrimoniais é para ricos e o código penal que cuida de codificar os crimes é para pobres? Este dito aponta para o princípio do pensamento da política da segurança pública no Brasil. Trata-se de uma política para proteger o patrimônio antes mesmo das pessoas. A ordem pública de que trata o tão importante princípio constitucional é a comodidade da elite, dos latifundiários, dos grupos econômicos mais fortes. Do contrário o que justificaria atacar e prender professores em uma manifestação pacífica por melhores salários? O que justificaria criminalizar lideranças do Movimento Sem Terra por reivindicarem o cumprimento da Constituição Federal no item da reforma agrária? O que justificaria a prisão de tantas pessoas inocentes pela simples condição de sua situação de pobreza e pela cor negra de sua pele? A segurança pública além de ser pensada para a elite, e particularmente o grupo branco da elite, ela traz outros elementos, pois quando o senso comum pensa segurança, pensa na prevenção e no combate a violência. Em ambos os casos ela parte do pressuposto de quem tem que ser protegido e de quem tem que ser combatido. Se a política de segurança é para proteger o patrimônio da elite econômica, qualquer pessoa ou grupo que reivindique uma sociedade mais igual, mais eqüitativa será o inimigo. Nesta linha, as pessoas que vivem em situação de pobreza, que não têm moradia digna, acesso à saúde, à educação com qualidade, à cultura, ao transporte, que não tem assegurado o direito à defesa, todas são inimigos em potencial. Assim, fica mais fácil entender porque um jovem negro, morador de um bairro de periferia, se dirigindo para sua casa ou saindo da escola é abordado com palavras de baixo calão, tem seus documentos destruídos e não raras vezes perde a vida nestas abordagens feitas por policiais. Porque ele é o inimigo a ser combatido. A figura deste jovem representa os grupos que não fazem parte da política de segurança para serem protegidos. Ao contrário, ele representa a maior parte da população que pela própria condição de vida busca o acesso aos direitos fundamentais. Direitos que só serão assegurados um dia se conseguirmos romper com o acúmulo patrimonial criminoso das classes altas da população brasileira. • • 18 anos, 20 histórias
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Se reduzirmos o conceito de segurança apenas à segurança pública, conforme à ordem constitucional, estarão sempre fora dela como sujeitos de direitos aquelas pessoas que não têm poder econômico. Para usufruir da segurança pública você terá que ter uma moradia em um endereço aceitável que não poderá ser de favela, conjunto habitacional popular ou cortiço, e muito menos você poderá ser morador de rua. Terá que ter uma boa educação formal e não apenas ter o acesso à matrícula escolar. Terá que ter um trabalho que lhe permita criar relações sociais que o mercado informal não lhe garante. Por isto insisto que pensar segurança é pensar na indivisibilidade dos direitos humanos, ou seja, segurança é ter as condições que me garantem o acesso à educação, ao lazer, ao trabalho, à justiça, à moradia, à saúde, ao meio ambiente saudável, à cultura, à alimentação, ao vestuário, ao desenvolvimento. Enquanto estes direitos, que são constitucionais e que são para todos, não estiverem assegurados, a parte da população privada destes direitos será vista como o perigo, será o inimigo a ser combatido, perseguido, até executado. É preciso pensar na segurança pública sem ingenuidade, pois a elite não ignora seus inimigos. Todos os dias ela pensa em como combatê-los. Além de algumas armas já conhecidas como a impunidade para si mesma e a criminalização de lideranças sociais e de pessoas que vivem em situação de pobreza, ela criou um contingente de homens na dita segurança privada que hoje comporta um número muito, muito maior que a segurança dita pública. As duas estão a seu serviço de forma muito harmônica. Vejamos. É muito comum a abordagem de pessoas, principalmente de jovens negros, nas periferias ou quando estes se encontram em bairros de classe média e alta, por parte de policiais militares que deveriam cuidar da prevenção da criminalidade. Cada vez que os policiais abordam alguém eles pedem documento e anotam numa planilha o nome da pessoa e o número do documento. Junto com este procedimento tem se tornado cada vez mais comum tirar fotografia da pessoa abordada, seja na rua ou quando levada para a delegacia de polícia. Ainda que a pessoa não esteja sendo procurada pelo Sistema de Justiça ou em situação de flagrante delito, estas anotações vão para o chamado sistema único de segurança. Quando tem sorte de ser apenas abordada sem que forjem drogas ou armas para incriminá-la, a pessoa é dispensada, mas seu nome ficou no sistema como averiguada. Todos estes procedimentos são consensuados pelos “doutos” do Sistema de Justiça como prática legal de segurança pública, para manter a ordem pública. Enquanto isso, a segurança privada, responsável conjuntamente com a segurança pública pelo patrimônio da elite, tem em seus quadros os policiais da segurança pública. Enquanto os policiais sem graduação trabalham na segurança propriamente dita, os policiais graduados, delegados e coronéis são os donos das empresas de segurança privada. Embora na segurança privada, eles têm acesso ao sistema da segurança pública. Assim quando uma pessoa vai procurar trabalho, orgulhosa de ter o atestado de antecedentes criminais limpo, ela estará incorrendo em erro, pois a equipe que cuida do quesito segurança na loja, na fábrica, no escritório, na escola privada ou na empresa privada de segurança (que cuida da segurança de prédios do poder público onde a pessoa foi procurar trabalho), levantará que a pessoa foi averiguada várias vezes. Mesmo sem antecedentes criminais ela será descartada e considerada um criminoso em potencial. 324
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Enquanto tivermos uma política de segurança pública pautada pelos interesses das classes ricas que insistem em privilegiar o patrimônio como bem maior, e uma norma constitucional que legaliza a militarização do policiamento preventivo e ostensivo, não será possível dizer que a política de segurança pública é para todos. Só será possível a alteração deste quadro se ampliarmos nosso conceito de segurança e passarmos a fazer esta discussão de forma mais sistemática e sem ingenuidade nos espaços que freqüentamos juntos aos movimentos sociais, pois não podemos ignorar que o tema segurança pública no Brasil envolve interesses da indústria das armas e da segurança privada que, para se sustentarem, não medem esforços para cooptar ou eliminar qualquer um segundo suas conveniências.
*Mestre em Direito Social -PUC/SP, Empreendedora Social/Ashoka, Sócia Fundadora do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba.
Referências Bibliográficas ONU. ABC dos direitos humanos, 2000. Acesso em: 25 ago. 2009. Publicado pela UNICEF – Bahia
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Direito à Segurança Comentários sobre segurança na perspectiva de meninas e mulheres, na família e no bairro Jalusa Silva de Arruda*
É bem escuro do lado do terreno, é escuro... Já ouvi falar que aqui ao redor, tem pessoas que pegam meninas. Pra violentar, essas coisas. Só que comigo, com fé em Deus, não vai acontecer nunca. Perto da linha do trem falam que é perigoso, mas não acho que tem perigo ali não, passa carro e gente toda hora. Mas as meninas falam que já tiveram casos de meninas que foram pegas por homens ali, que tentaram violentá-las, mas comigo nunca aconteceu e nem há de acontecer. (Lila)
O artigo 227 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) possibilitou, por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente, a priorização absoluta dos direitos da criança e do adolescente, devendo ser assegurados pela família, pela sociedade e pelo Estado. A família é a primeira instituição que surge em nossas vidas: é o primeiro lugar de inserção do sujeito. É na família que temos nossas primeiras referências, que buscamos proteção e cuidado. Mas, infelizmente, nem sempre a família representará lugar de aconchego, proteção e segurança: poderá ela ser algoz de sérias violações de direito de seus próprios membros. Ao longo da história, a família mudou muito. Acompanhando as transformações sociais e recebendo interferência de uma multiplicidade de elementos políticos e culturais que foram determinantes para tais mudanças, a família assumiu novas características, formas de organização e composição. Para essas mudanças, a dinâmica entre a relação da família com o Estado e a sociedade como um todo foi muito importante (talvez até determinante!). A Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948) reconhece como direito humano poder “fundar uma família”; ao Estado cabe a proteção desta instituição que é essencial à constituição da sociedade. Mas atualmente em nosso país, infelizmente, não é isso que se vê. Vimos hoje muitas famílias reproduzindo nos seus membros, principalmente crianças e adolescentes, a negligência sofrida pelo Estado. Está na nossa Constituição Federal (BRASIL, 1988) que é dever do Estado promover saúde, 326
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educação, moradia, trabalho, segurança... Mas quantas mães não conseguem um atendimento pré-natal adequado? Quantas vezes faltam vagas nas escolas dos bairros? Por que o ensino anda tão precário, faltando professores(as), estrutura e até segurança nas escolas? Quantas pessoas para conseguirem uma vaga para atendimento médico precisam dormir nas filas? Por que tantas crianças e adolescentes têm sido criminalizados(as)? Por que tanta crianças e adolescentes têm sido vitimados(as)? Por que sofremos tanto com a criminalização e com a falta de segurança, que chega em nossas escolas, em nossas casas e em nossa comunidade? Vivemos no sistema capitalista, que tem por base a divisão desigual das riquezas e promove, conseqüentemente, várias mazelas à sociedade. Algo que sentimos bem de perto é a desigualdade social e a inacessibilidade à direitos básicos como saúde, educação e segurança. Esse complexo de adversidades sofridas pela população, alguns (mas) estudiosos(as) chamam de violência estrutural e sistêmica. Para Maldonado, a violência estrutural e sistêmica
se refere às condições adversas e injustas da sociedade para com a parcela mais desfavorecida de sua população” e que “se expressa pelo quadro de miséria, má distribuição de renda (salário mínimo que não cobre as necessidades básicas), exploração dos trabalhadores, crianças nas ruas (mendigando, roubando, trabalhando indevidamente, prostituindo-se), falta de condições mínimas para a vida digna (moradia, alimentos, saneamento básico, etc.), falta de assistência em educação e saúde. (MALDONADO, 1997, p. 09)
A violência estrutural se erguerá pela divisão da sociedade em classes, onde a contradição, a exploração, a desigualdade condicionam a toda sorte de sofrimentos e dificuldades aqueles que estão à margem das bem-aventuranças do mundo globalizado e capitalista. Entretanto, é comum que condenemos as “violências periféricas particulares” (Santos, 2003, p. 55) e deixemos de analisar a violência como estrutura, que na verdade está “na base da produção das outras e constitui a violência central original” e que é promovida pelo Estado. Na história da corajosa Lila a gente consegue enxergar muito bem como que todas essas adversidades vão combinar e poderão dificultar o desenvolvimento saudável e a proteção dos direitos de crianças e adolescentes, interferindo diretamente na dinâmica de suas vidas. Isso sem falar na exposição a situações de violência, como a sexual. Concordando com o que dizemos acima, Motti, Contini e Amorim afirmam que violência sexual contra crianças e adolescentes está inserida • • 18 anos, 20 histórias
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em um contexto histórico-social de violência estrutural e de profundas raízes culturais. A realidade da sociedade brasileira tem revelado que, dentre as situações mais graves de exclusão, vulnerabilidade e risco social a que estão submetidos crianças e adolescentes, se destacam a exploração sexual comercial e o abuso sexual. (MOTTI, CONTINI e AMORIM, 2008, p.17)
A violência sexual é uma das piores formas de violência. Ela subjuga a autonomia que cada um de nós tem sobre seu próprio corpo e sexualidade, além de proporcionar momentos de extrema angústia às vítimas. Infelizmente, as estatísticas que falam de violência sexual mostram que a maioria dos(as) abusadores(as) são pessoas da família, que tem convívio ou estão muito próximas das vítimas. Crianças e adolescentes acabam se tornando alvos ‘mais fáceis’ desse tipo de violência por serem mais vulneráveis na relação de poder importa pelo(a) abusador(a). É também uma violência onde as questões de gênero são de grande relevância, uma vez que a maioria das vítimas são pessoas do sexo feminino e a maioria dos abusadores, do sexo masculino. Para o combate a esta forma de violência, precisamos repensar as relações sociais e a forma como organizamos nossa sociedade. Enquanto as desigualdades (sociais e de poder) forem centrais em nossas relações, não erradicaremos tais males. E Lila tenderá a continuar se perguntando em que mundo ela está, continuará a dizer que esse mundo não é dela... Que pensemos e construamos um lugar melhor para Lila e todas as outras crianças e adolescentes.
Eu não sou da sua rua, Eu não sou o seu vizinho. Eu moro muito longe, sozinho. Estou aqui de passagem. Eu não sou da sua rua, Eu não falo a sua língua, Minha vida é diferente da sua. Estou aqui de passagem. Esse mundo não é meu, Esse mundo não é seu. (Branco Mello e Arnaldo Antunes, 1991)
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* Advogada popular, consultora jurídica do CEDECA/BA e mestranda do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. E-mail: jalusa_arruda@yahoo.com.br
Referências Bibliográficas MALDONADO, M. T. Os Construtores da Paz: Caminhos da Prevenção da Violência. São Paulo: Moderna, 1997. MOTTI, A. J. A., CONTINI, M. L. J., AMORIM, S. M. F. (organizadores). Consolidando a Experiência do PAIR. Campo Grande: Editora UFMS, 2008. ONU. Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948. Nela, são enumerados os direitos que todos os seres humanos possuem. Disponível em <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em: 25 ago. 2009. SANTOS, M. Por uma outra globalização - do Pensamento Único à Consciência Universal. São Paulo: Editora Record, 2000.
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Direito à Segurança Um breve olhar histórico-cultural sobre o papel da polícia na história do Brasil Pedro Pereira*
Nessas épocas qualquer pessoa que ao olhar eles suspeitam, querem prender pelo menos parar assim pra revistar. Isso é normal. Qualquer pessoa que a polícia suspeita, quer parar, qualquer um. É normal. (Jorge) “Se eu pudesse dar um toque em meu destino não seria um peregrino nesse imenso mundo cão”1 “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro” 2 “A carne mais barata do mercado é a carne negra. Que fez e faz história, segurando esse país no braço, o cabra aqui não se sente revoltado, porque o revólver já está engatilhado e o vingador é lento, mas muito bem intencionado e esse país vai deixando todo mundo preto e o cabelo esticado” 3 “NEGRO DRAMA, tenta vê, e não vê nada, a não ser uma estrela, longe meio ofuscada” 4
Um breve olhar histórico-cultural sobre o papel da polícia na história do Brasil nos remete a chegada da corte portuguesa, tendo como uma das primeiras iniciativas a criação da primeira instituição policial brasileira. 1 GUARÁ e FERNANDINHO. Problema Social. Disponível em <http://vagalume.uol.com.br/ana-carolina-seu-jorge/ problema-social.html> . Acesso em: 25 ago. 2009. 2 YUKA, M. Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. Disponível em <http://letras.terra.com.br/o-rappa/77644/ >. Acesso em: 25 ago. 2009. 3 JORGE, S., YUKA, M. E CAPELETE, W. A Carne. Disponível em <http://letras.terra.com.br/elza-soares/281242 >. Acesso em: 25 ago. 2009. 4 RACIONAIS MC’S. Negro drama – O Círculo. Disponível em <http://letras.terra.com.br/o-circulo/1016284 > . Acesso em: 25 ago. 2009. 330
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De acordo com o Prof. Leonardo Freire Marino a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil, criada no dia 10 de maio de 1808, na Cidade do Rio de Janeiro, apresentava como principal objetivo implantar a ordem em uma cidade marcada pela presença negra e pelas péssimas condições de salubridade. Em sua origem a atividade policial apresentava características muito variadas e diferentes da atual, sendo responsabilidade da polícia, ações como a preservação dos espaços públicos, o abastecimento de água e a limpeza urbana, além da manutenção da ordem vigente. Portanto, a primeira missão destinada a polícia no Brasil foi a de “manter a ordem” tendo como prioridade a vigilância de escravos e negros libertos que na visão da época eram “potencialmente perigosos” e “ameaçavam” parte da nobreza, como afirma Marino:
O medo por parte da nobreza em viver em uma cidade com grande predomínio de negros escravos fez com que, um ano após a chegada da corte, fosse criada a Guarda Real de Polícia – GRP, corpo encarregado especificamente pela segurança e manutenção da ordem na cidade. A GRP estabeleceu medidas bem definidas de disciplinarização e controle, objetivando preferencialmente os escravos e negros libertos, sendo a truculência e a violência marcas fundamentais de tratamento e operacionalização dos seus objetivos.
(MARINO, 2008, p. 01)
Mesmo após a abolição, o Código Penal da República de 1890 dedicou um capítulo XII para tratar dos chamados “vadios e capoeiras” que em seu artigo 402 previa como criminosa a seguinte conduta: Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena de prisão cellular por dous a seis mezes. Paragrapho unico. E considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta 5. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro. 5 A palavra “Malta” segundo o dicionário Aurélio tem o seguinte significado: “Multidão de pessoas desprezíveis, ou de malfeitores; súcia, malta, matula, caterva, bando, récua.’ • • 18 anos, 20 histórias
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Segundo Sergio Verani (2001) trata-se de um exemplo de norma racista, uma lei racista. Se o capoeira fosse ligado a alguma comunidade organizada, a um grupo “de condição inferior”, porque ele era negro e capoeira, a pena agravava, portanto a mobilização comunitária constituía circunstância agravante. Verani conclui afirmando que “o racismo continua em nossas práticas jurídicas, no modo de aplicação e interpretação da lei. e que os descendentes de escravos continuam sendo exterminados, mortos, torturados e sem proteção do aparelho do Estado”. No mesmo sentido o Prof. Joel Rufino dos Santos (2005) afirma que:
Os quase 400 anos de escravidão foram vividos sob o medo da insurreição escrava, amplificado mil vezes, e que decidiu, pelo menos, o rumo de dois fatos decisivos: a formação do Exército, na guerra contra o Paraguai, e a Abolição. Vêm depois os medos do “capoeira”, do “macumbeiro”, do “arruaceiro”, do “pivete”, do “trombadinha”, do “arrastão”, do “traficante”, do “menino de rua”... Medos em penca para engendrar a fantasia de que a lei e a prisão podem controlar, afastar, limpar, embelezar a sociedade, tornando-a “de Primeiro Mundo”.
(RUFINO, 2005, p.24)
Passados 200 anos da instituição da polícia no Brasil e apesar da Constituição Federal destinar um capítulo a Segurança Pública6, persistem ainda velhos mitos7 com argumentos segundo o qual “o respeito pelos direitos humanos é incompatível com a efetivação aplicação da lei”, “que para aplicar a lei, capturar o delinqüente e garantir a sua condenação, é necessário ‘ludibriar’ um pouco a lei”, o que justificaria a “utilização da força excessiva para controlar manifestações”, ou “pressão física para obter informação dos detidos” ou ainda “excessivo uso da força para garantir uma captura”. Entendemos não haver qualquer incompatibilidade no cumprimento da lei e respeito pelos direitos humanos na execução da política pública de segurança pública, em especial pelas forças policiais8, que ao contrário têm como deveres fundamentais o respeito e obediência as leis, respeito à dignidade da pessoa humana, respeito e proteção dos direitos humanos. 6 BRASIL (1988). Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. 7 Mito de acordo com o Dicionário Aurélio é: “Idéia falsa, que distorce a realidade ou não corresponde a ela.” 8 “os policiais devem receber salários significativamente maiores” e “os Governadores, Secretários de Segurança Pública, Comandantes e Delegados-Chefe devem figurar como líderes e deixar publicamente claro que haverá tolerância zero quanto ao uso excessivo da força e a execução, pelas polícias, de suspeitos de serem criminosos” (ALSTON, 2008, p. 38). 332
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Quando um responsável pela aplicação da lei viola a lei, o resultado é, não apenas um atentado à dignidade humana e à própria lei, mas também um erguer de barreiras à eficaz atuação da polícia. As violações da lei por parte das forças policiais têm múltiplos efeitos práticos: diminuem a confiança no público; agravam a desobediência civil; isolam a polícia da comunidade; resulta na libertação dos culpados e na punição dos inocentes. (ONU, 2001, p.06)
*Advogado popular. Mestre em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes. Pós-graduando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Curso de Serviço Social da Faculdade Flama. Coordenador Executivo do CEDECA – Rio de Janeiro. E-mail: pedrorspereira@hotmail.com
Referências Bibliográficas ALSTON P. Relatório do Relator Especial de Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias. Disponível em <http://www2.ohchr.org/english/issues/executions/docs/A_HRC_11_2_Add_2PORT.pdf>. Acesso em: 21 ago. 2009. ARANTES, E. M. M. ; VERANI, S. ; BALDEZ, M. ; ACSELRAD, G. ; ROCHA, E. ; SILVA, A. C. S. Programa Cidadania e Direitos Humanos: extensão universitária e movimentos populares. Interagir (UERJ), Rio de janeiro, v. 1, p. 29-35, 2001. BRASIL. Código Penal da República. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049> . Acesso em 21 ago. 2009 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, (1988). Disponível em <http://www.senado. gov.br/sf/legislacao/const/Brasília: Senado>. Acesso em: 25 ago. de 2009. MARINO, L. F. As origens da violência policial no Rio, 2008. Disponível em <http://www.comunidadesegura.org/?q=pt/node/38992>. Acesso em: 21 ago. 2009. ONU. Direitos Humanos e Aplicação da Lei - Manual de formação em direitos humanos para as forças policiais, 2001. Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/Manual1.pdf . Acesso em: 21 ago. 2009. SANTOS J. R. “A fantasia do controle absoluto” in DRACH, D. Argumentos Perdidos – Reflexões críticas sobre as práticas jurídicas dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente. Rio de janeiro, Associação Beneficente São Martinho, 2005.
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Direito à Segurança RISCO DE VIDA e RISCO DE MORTE: Quantos lados têm uma vida? Carlos Nicodemos*
Risco de vida ou risco de morte? Os letrados de plantão certamente não deixariam passar este erro lingüístico que povoa um sem número de colocações do cotidiano, especialmente quando alguém pretende se referir a um terceiro que efetivamente encontra-se em risco de morte. Verdade seja dita, a referida expressão outrora era dita muito menos do que no presente. Propriamente pelo que testemunhamos na atualidade em termos de vidas de jovens que se vão, na velocidade do nosso erro de português. Mas seria possível empregar a expressão risco de vida? Esteticamente a boa literatura não autorizaria, mas pedimos passagem para uma breve reflexão de mérito do alegado. A história registra nos seus arcabouços justificantes, fundamentos que transcenderam os Estados e as culturas para ponderar que, sem vida não há como seguir adiante. De um lado, a religião tratou de sacramentar de maneira verticalizada que, o que Deus concebe ninguém pode tirar. Se Deus provêm a vida, a ninguém é dado o direito de retirá-la. Na modernidade, este direito (a vida) divinamente concebido passou a ser reconhecido pelo Estado e como uma extensão da mão de Deus, mais uma vez se normatizou: o que Deus concebe, o Estado protege e ninguém pode retirar. Já na pós-modernidade, no campo da filosofia-jurídica, com a “morte” de Deus, a vida como direito passou a ser reconhecida como uma realização histórica e política. Resultado de uma continua e dialética transformação. Daí a necessidade de sua normatização no campo das leis, instrumento de alta densidade e formalidade que proporcionaria a proteção secularmente sonhada. Com isso a vida (como direito) ganhou tratados, convenções, constituições de estados, leis, etc. E assim, consolidamos, do Céu ao Estado aquele que é considerado a essência da nossa existência, a razão da humanidade, o direito à vida. 334
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Mas onde está o risco que anunciamos no início desta resenha? O risco que aqui foi colocado como uma provocação a literatura, encontra-se na própria condição existencial que se encontra a vida de milhares de milhões de jovens brasileiros, ou seja, como uma simples e grande expectativa. A condição de milhares de criança e adolescentes que estão no “corredor da morte”, ou seja, vivendo em profundo estado de vulnerabilidade social, transformam todos os argumentos históricos aqui apresentados num outro erro da literatura ou mesmo uma mentira da letra da lei: Todos têm direito à vida! Sabemos pelo que enxergamos que isto não é verdade, pois uma grande massa de nossa juventude não gozou e não gozará este direito. A ausência de uma política de Estado (governo e sociedade) para a juventude brasileira, com foco neste setor e fora do argumento genérico, difuso e coletivo das ações públicas, tem impulsionado milhares de jovens para este invisível (nem tanto) corredor da morte. Por outro lado, grande parte daqueles que são “anistiados” por este corredor da morte, atravessam sua existência neste plano, num genuíno “risco de vida”. Ou seria de viver?! Risco de vida, por não ter uma escola que possa recebê-los para o desenvolvimento de um projeto pessoal de crescimento fora das concepções meramente controladoras-educativas do Estado. Risco de vida, por não ter a oportunidade de desfrutar o direito à convivência familiar da forma que seu núcleo familiar de apresenta. Sem sofrer as discriminações que a sociedade impõe em razão da ausência ou distância de um membro. Risco de vida, por não ter o direito à convivência comunitária com a realização de atividades musicais e esportivas que expressem sua história e sua raça. Risco de vida, pela falta de um projeto de profissionalização que possa efetivamente protagonizálo como cidadão e não amarrá-lo na condição de “mais valia” da modernidade, em categorias que sequer podem ser chamadas de profissão. Risco de vida por não poder sair a qualquer hora da noite sem ser confundido pela polícia como traficante, pelo simples fato de negro, pobre e favelado. Risco de vida ou de viver numa sociedade que estabeleceu vários lados para a vida de milhares e milhões de jovens brasileiros. Entre o “Corredor da morte” e o “Risco de vida (de viver!)” que lado seguir? Gritamos pelos mortos, pelos que morrerão e pelos que sobreviveram ao “Risco de vida”. O que se exige é o respeito à dignidade de milhares e milhões de jovens negros e favelados que querem vida, mas com direitos, com alma.
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E isto só será possível através de uma política que efetivamente promova as rupturas culturais, sociais e políticas necessárias. Por fim, fica a seguinte pergunta: Estado, religião, ciência, para que lado vocês seguirão?
*Advogado. Coordenador Executivo da ODH- Projeto Legal. Membro do Conselho Estadual da Criança do Rio de Janeiro. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ.
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Direito dos Povos Indígenas Sobre nós, os povos indígenas Olívio Jekupé*
Eram mais de 2 milhões de habitantes, Imagina mil tribos diferentes! Já hoje, segundo levantamento dos juruás, que são pessoas não indígenas, existe por volta de 350 mil habitantes. De mil, hoje são 218 povos diferentes. São 180 línguas diferentes. O meu povo fala o guarani.
(Elisabeth)
É importante saberem que no Brasil temos várias etnias, por exemplo, guarani, xavante, kaiapó, terena, bororo, kaingang, pataxó e muitas outras. Cada uma com sua língua própria e com a religião de seu povo (religião tradicional ensinada pelos antepassados antes da invasão dos portugueses). A maioria das aldeias tem escolas dentro da própria aldeia, uma escola diferenciada, isto é, onde nossos adolescentes ou jovens aprendem além de tudo, a sua própria cultura, com professor da própria comunidade e com direito garantido através das lutas pelos nossos líderes do passado. Quero dizer que nossos parentes adolescentes e jovens têm que ser fortes na cultura porque dependemos deles para que a cultura continue firme. Porque vivemos num País com uma imensa população, cheia de tecnologia ao nosso redor e que não podemos deixar que sejam afetados por tudo isso, por outra cultura dominante. Acredito que esses jovens de hoje precisam aprender que somos um povo, uma nação diferente, mas não inferior e muitas vezes acontece que uns sentem vergonha de ser índio e não querem seguir a cultura do seu povo. Por isso nós, que somos pais, temos que educar bem nossos filhos para que cresçam com sabedoria e valorizando o que são. Uma das coisas que mais fortalece a preservação da cultura indígena é a língua e a religião, por isso, desde criança tem que falar a língua de cada povo e outra coisa é seguir a religião, por exemplo, o guarani tem a sua própria. Muitas vezes outras religiões entram nas aldeias e tentam pregar dizendo que nossa religião está errada, e por isso é que temos que educar nossos adolescentes ensinando nossa cultura e valorizando para que não seja massacrada pelas conversas dos não indígenas. • • 18 anos, 20 histórias
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Por isso quero dizer que temos que ensinar nossos adolescentes a valorizarem tudo isso que vivemos culturalmente e valorizar principalmente o nosso modo de vida, de vivermos no meio da mata, de caçar, de pescar, de fazer uma fogueira para fazer uma comida, não ter vergonha de andar descalço. Essa forma de gostarmos de viver no meio da mata, acredito que é uma das grandes importâncias para o mundo e temos que continuar assim, porque com isso os adolescentes continuarão preservando a mata. Já os não índios criticam dizendo que os índios não vão fazer nada com a terra e por que tanta terra? Muitos não entendem que a floresta está correndo um risco imenso de ser acabada, porque os não índios estão destruindo. E quanto a nós indígenas devemos continuar educando nossos adolescentes e jovens a continuarem assim, porque vivendo assim estamos salvando o mundo. O aquecimento global está aí na cara de todos e mesmo assim muitos não prestam atenção. Sendo assim, quero dizer aos nossos adolescentes e jovens: o futuro de nossas culturas e meio ambiente estão em suas mãos, sejam fortes. Por exemplo, quem conhece o Mato Grosso sabe que hoje é um estado deserto, sem floresta, onde existe floresta pode-se dizer que é nas áreas indígenas, por isso que é importante o modo de vida indígena de viver culturalmente no meio da mata sem ter que destruí-la, do contrário Mato Grosso não teria mais nenhuma árvore. Por isso seria interessante que os adolescentes não indígenas pudessem aprender a valorizar a mata também do mesmo modo que nossos adolescentes para o bem de nosso planeta, e que é de todos, índios e não índios.
*Escritor de literatura indígena, Aldeia Krukutu, Mestiço Guarani
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Direito dos Povos Indígenas Conversando com nossas histórias Lumena Celi Teixeira *
Eram mais de 2 milhões de habitantes, Imagina mil tribos diferentes! Já hoje, segundo levantamento dos juruás, que são pessoas não indígenas, existe por volta de 350 mil habitantes. De mil, hoje são 218 povos diferentes. São 180 línguas diferentes.
(Elisabeth)
1. Interculturalidade, Identidade e Meio Ambiente.
O primeiro sentimento que me despertou a leitura da história de Elisabeth foi uma grande satisfação pelo fato dela ter orgulho da própria identidade. Isso poderia parecer lugar comum, afinal, espera-se que tenhamos orgulho de sermos quem somos. No entanto, quando se trata da identidade indígena, a questão infelizmente não é tão simples assim. Nós, os não-índios, carregamos uma responsabilidade histórica nesse sentido. Desde o “descobrimento” do Brasil (que as lideranças indígenas preferem, acertadamente, chamar de “invasão”) a relação entre os europeus que aqui chegaram e os povos nativos que aqui viviam foi estabelecida com base na dominação da cultura branca sobre as demais. A negação da diversidade cultural desses povos expressa pela denominação inespecífica de “índio” a todos eles é, por exemplo, uma das manifestações dessa relação de dominação que perdura até hoje. Raras pessoas admitiriam hoje, de pronto, que vivemos em um país multiétnico e pluricultural. Estamos acostumados a dizer que aqui se fala apenas uma língua, o português, ignorando por completo um grande número de povos, com suas línguas e costumes, que igualmente são brasileiros apesar de diferentes de nós, além de diferentes entre si. Essa diversidade cultural, ao contrário de ser vista como um problema, deve ser considerada como um fator de enriquecimento cultural da nação. O direito à • • 18 anos, 20 histórias
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diversidade cultural é uma conquista dos povos indígenas, após anos de luta pelo direito à diferença e também pela participação de seus representantes nas decisões que impactam seus modos de vida. A imagem do “índio”, cristalizada no imaginário social, é a de um ser genérico, que vive nu, enfeitado com pinturas e adornos de penas, tem cabelos lisos e pretos, sobrevive da caça e da pesca, assim como foi descrito há 500 anos atrás. Para a maioria é difícil imaginar, por exemplo, um “índio” cursando universidade, usando celular e voando de avião, a idéia que se tem é que nessas condições ele já teria deixado de ser índio. Ignora-se por completo o processo histórico de transformação cultural através do contato com outras culturas, em curso desde sempre e em todas as partes do globo. Por exemplo: se eu, brasileira, passasse a viver em outro país, falando uma língua estrangeira de forma fluente, adquirindo hábitos próprios dessa outra cultura, etc, com isso deixaria de ser brasileira? Não! Continuaria reconhecendo minha identidade original, ainda que com traços culturais diferentes, adquiridos no contato com aquela nova cultura. Com os indígenas podemos dizer quer o processo é semelhante: não deixam de sê-lo porque moram em casas de alvenaria, falam o português, assistem TV ou utilizam celular. Estão usando novos artefatos e novos bens que podem auxiliá-los no enfrentamento da realidade pós-contato. No entanto, essa confusão não assola apenas os juruás, mas também os indígenas, em especial os jovens. Já ouvi de diversas lideranças a queixa de que muitos jovens passam a ter vergonha da sua identidade originária, não se interessam mais por aprender as tradições do seu povo, fazendo questão de usar elementos da cultura branca ou mesmo tentando esconder suas origens. O que isso revela? Se tiver vergonha de ser quem sou é porque assimilei uma auto imagem negativa, mas como isso se deu? “De repente” passei a achar que minhas origens são inferiores? A psicologia nos ajuda a compreender esse processo: sabe-se que a noção de identidade é construída através das relações sociais cotidianas, estabelecidas desde o nosso nascimento. Se, por repetidas vezes, eu for olhada como um ser inferior, termino por “me convencer” disso e acreditar que sou como os outros de fato me vêem. No caso dos nossos indígenas, que vivem uma longa história de desvalorização de suas culturas e mesmo de aniquilamento de inúmeras etnias, não é difícil compreender porque tantos jovens renegam suas origens. Esta difícil condição, aliada a outras questões, está na base dos problemas de ordem psicossocial que hoje acometem muitos desses indivíduos, como o uso abusivo de álcool e outras drogas. Isto me fez lembrar da conversa que tive outro dia com um amigo, que me perguntou: — Afinal, por que nós, não-índios, temos que nos preocupar com o destino dos povos indígenas, se ao longo da história tem sido assim mesmo, ou seja, as sociedades, civilizações, tribos se transformam sempre, inevitavelmente? Sendo esse o caminho já esperado da história, por que deveríamos intervir para preservar determinados modos de vida (dos indígenas) se a integração entre as culturas é inevitável e os índios um dia deixarão de ser índios? A conversa não foi fácil, pois à primeira vista seu raciocínio tinha lógica, ele estava certo quanto ao processo permanente de influência das diferentes culturas entre si, que provocam transformações nos modos de ser de cada povo. No entanto, a questão que se coloca se refere ao tipo de relação intercultural ali estabelecida. No caso, o que historicamente tem acontecido na sociedade brasileira é a dominação 340
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da cultura branca, européia, ocidental, sobre as culturas nativas. Não tem sido uma relação pautada na ética, no respeito à diversidade e na autodeterminação de cada povo, mas sim uma relação com base na expropriação de territórios, de massacres, de desorganização social das aldeias. Não de trata, como meu amigo temia, de “voltarmos no tempo” para garantir aos indígenas que vivam como séculos atrás, mas sim de lhes permitir que decidam, por si mesmos, como querem viver daqui para frente! 2. Reconhecimento e lutas pelo território
Na década de 70 a política do governo militar tinha como objetivo efetivar o projeto de “integração nacional”, consolidando um processo civilizatório em que a categoria índio era vista como transitória. A meta oficial era de que no ano 2000 não deveria mais haver povos indígenas no Brasil (!!), todos deveriam estar integrados em uma mesma identidade nacional. Na década de 80 começam as assembléias locais e regionais de povos indígenas distintos, em torno da conquista da terra, com o objetivo de unir forças para reconquista dos territórios. Em 1986 ocorreu a ocupação do Congresso Nacional pelo movimento indígena organizado, cuja força política garantiu um capítulo sobre os povos indígenas na Constituição Brasileira de 1988. Ali, no artigo 231 consta que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
Menos da metade de nossas tekoas (aldeias) estão regularizadas pelos juruás (não-indígenas). Em muitos desses lugares existem fortes conflitos com fazendeiros e garimpeiros, mesmo nos lugares reconhecidos pela FUNAI.
(Elisabeth)
No entanto, mais de 20 anos após, ainda é recorrente a noção de que a demarcação de terras indígenas é uma ameaça à soberania nacional. Essa idéia, difundida por diversos políticos, militares e jornalistas, esconde os verdadeiros interesses em jogo: questões econômicas, interesses principalmente do agronegócio, madeireiras e exploradoras de minérios. Ainda que a lei dê garantias sobre o direito às terras tradicionais, para que os povos indígenas possam (re)organizar suas sociedades, representantes daqueles setores contam com o apoio de políticos e da grande mídia para veicular uma imagem distorcida da situação e manipular a opinião pública contra a causa indígena. • • 18 anos, 20 histórias
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Dessa maneira, acredito que a ajuda mais efetiva que podemos oferecer aos indígenas hoje é contribuindo com o debate público sobre a questão. Difundir e valorizar suas culturas, contribuindo com o fortalecimento de suas identidades, para que eles prossigam desenvolvendo estratégias para seguir lutando pelos seus direitos. Aliás, o campo da cidadania é necessariamente um campo de luta; a cidadania não é uma dádiva, mas sempre uma conquista. Interesses divergentes estão sempre em campo e esse é o jogo político, que depende de organização, boas alianças e clareza de propósitos. E aqui os jovens têm um papel especial, representam a nova geração, aqueles que devem se apropriar da história do seu povo para dar continuidade às suas lutas. Um fator importante a se considerar em toda relação intercultural é a diferença de cosmovisões. Cada povo desenvolve uma maneira própria de conceber o mundo, o ser humano, a natureza. No caso aqui em jogo, há diferenças enormes, por exemplo, com relação ao significado da terra. Para nós, ocidentais e capitalistas, a terra tem valor de mercadoria, é produto de compra e venda voltado à geração de riquezas. Para os indígenas, a terra tem valor sagrado. Ela significa vida, a mãe terra que supre as necessidades do seu povo. O respeito ao meio ambiente, portanto, é uma atitude natural, muito diferente da postura prevalente entre os juruás. Depreende-se daí mais um erro de avaliação muito comum: quando indígenas defendem seu direito ao território, não estão preocupados com o lucro (mesmo futuro) que aquele pedaço de terra pode gerar, mas sim com a manutenção das condições que garantirão a vida da sua comunidade e das gerações futuras. A terra é o bem maior das economias indígenas, pertence à coletividade e não pode ser apropriada por ninguém individualmente. 3. Valorização da infância e continuidade da cultura
Talvez seja especialmente difícil, para muitos de nós, acreditar que existam cosmovisões tão diferentes da nossa. E, ainda, que tais cosmovisões possam trazer mais felicidade que a nossa! Isto é o que cientistas sociais chamam de etnocentrismo, que é a idéia, bastante arraigada, de que a nossa cultura, nossos valores, são melhores do que os outros. Uma relação intercultural que se paute pela ética, como seria o ideal, é aquela em que ambos os lados saem ganhando, ou seja, absorvem os elementos considerados positivos daquela outra cultura porque encontram sentido nessa experiência e não por coação ou desespero, como acontece nas relações de dominação. Muito temos ainda o que aprender com os povos indígenas. De tão acostumados que estamos com nossa sociedade individualista, perdemos há muito o senso de coletividade, que os povos originários preservam tão bem. Assim como a importância atribuída à infância, que ali também é um valor central. Estamos comemorando 18 anos do ECA, sendo que os eixos fundamentais dessa lei ainda não foram assimilados pelo conjunto da sociedade, quando a criança, para os diversos povos indígenas, jamais deixou de ser elemento central de cuidado e proteção compartilhada por todos. Desde cedo acompanha os pais nas tarefas diárias, assimilando os costumes, aprendendo a ser independente e a tomar gosto pelo trabalho. 342
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Sempre morei aqui e está sendo muito difícil de resgatar a natureza. Mesmo com tudo isso as crianças estão felizes, brincando pela aldeia, pelo menos eles estão com saúde, é isso que importa pra gente. O que tem de importante pra gente é preservar nossa floresta, nossos costumes. (Elisabeth)
O afeto pelas crianças salta aos olhos no relato de Elisabeth, assim como os problemas de saúde que elas têm enfrentado. Estudos apontam que entre os indígenas a mortalidade infantil é o dobro da média nacional, e os índices de desnutrição também são altos. É o que revela o Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil 2006/2007, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário – Cimi, entidade ligada à Igreja Católica que acompanha a questão indígena há 36 anos e desde 1998 publica o relatório bianual. Como historicamente as terras indígenas foram encaradas como espaços transitórios, em que os grupos pudessem viver até serem integrados, essas terras nunca foram pensadas como espaço suficiente para garantir o modo de vida tradicional desses povos. Falta espaço para esses grupos se reproduzirem, o que gera problemas como a desnutrição e outras doenças. Concluindo, gostaria de reforçar a idéia de que contamos hoje com bons instrumentos legais, capazes de humanizar nosso processo civilizatório, mas esses instrumentos por si só não são suficientes para produzir transformações sociais efetivas. A sociedade precisa assimilar esses “novos” conceitos de maneira que se traduzam em mudanças nas atitudes. Isto significa alteração de mentalidades, transformações culturais, os quais são processos que demandam empenho e persistência, ao mesmo tempo em que requerem paciência histórica. Cabe a todos nós prosseguir na luta pelo respeito aos direitos humanos, ao direito à diferença, aos direitos das crianças e adolescentes, e persistir “mantendo acesa a chama”, mesmo quando as condições se apresentem adversas. E, acima de tudo, a exemplo dos nossos irmãos indígenas, cuidar e investir nas novas gerações: crianças, adolescentes e jovens, que a exemplo da Elisabeth, farão a diferença se tiverem a chance de desenvolver uma boa auto estima e suficiente auto determinação, tendo a ética e os interesses coletivos como parâmetros para suas ações.
* Psicóloga (USP) e mestre em Psicologia Social (PUC-SP). Co-fundadora e coordenadora de projetos do Centro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescência (São Vicente, SP). Professora e supervisora de estágios na UNIP Santos. Conselheira do Conselho Regional de Psicologia (2004-2010) e coordenadora do GT Psicologia e Povos Indígenas. E-mail: lumenact@terra.com.br • • 18 anos, 20 histórias
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Referências Bibliográficas CIMI. Violência contra os povos indígenas no Brasil. Relatório 2006-2007. Disponível em www.cimi.org. br. Acesso em 21 ago. 2009. Conselho Regional de Psicologia SP. Página eletrônica do Grupo de Trabalho Psicologia e Povos Indígenas. Disponível em www.crpsp.org.br/povos
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Direito dos Povos Indígenas Crianças indígenas: dignidade ameaçada Ana Celina Bentes Hamoy*
Menos da metade de nossas tekoas (aldeias) estão regularizadas pelos juruás (não-indígenas). Em muitos desses lugares existem fortes conflitos com fazendeiros e garimpeiros, mesmo nos lugares reconhecidos pela FUNAI. Somos Guarani M’Bya e nossos antepassados sempre passaram por essa região onde hoje está nossa tekoa – lembram que tekoa significa aldeia? Eles paravam aqui pra descansar. É, porque percorríamos as trilhas na mata a caminho das tekoas de nossos parentes, tanto no interior, como no litoral. Acabou, que com a chegada dos europeus este meio do caminho começou a ficar difícil e nossa parada de descanso virou uma tekoa. No final do século passado, os nossos antepassados se mobilizaram para conseguir o direito de permanecer neste local.
ou
A Casa de Reza é nosso cantinho, onde a gente vai dançar, cantar, dentro tem instrumento musical como violão, rabeca, chocalho, e outros instrumentos. Desde pequena já tinha me empolgado com a Casa de Reza. É da Casa de Reza que nós trazemos a força, alegria para as crianças.
(Elisabeth)
1. Uma triste constatação
A exclusão social atinge fortemente as comunidades indígenas brasileiras. Não raras vezes, somos surpreendidos com fortes denúncias de discriminação, negação de cidadania, violência física, etc. Todo o processo de exclusão é bastante estimulado por equivocadas idéias, muitas vezes • • 18 anos, 20 histórias
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repassadas por uma “mídia” que pouco conhece a vida e a cultura de comunidades indígenas - como o mito do “índio que quer viver às custas do governo, porque é preguiçoso, é alcoólatra...” -, produzindo na sociedade um imaginário distorcido, discriminador, que em nada contribui com o respeito à valorização da cultura e às tradições, que são de suma importância para a dignidade das populações indígenas. O Brasil, segundo informações da Fundação Nacional do Índio, possui diversidade étnico cultural e lingüística entre as maiores do mundo, tendo 215 sociedades indígenas, com mais de 55 grupos de índios isolados e 180 línguas pertencentes a mais de 30 famílias lingüísticas diferentes. Isso demonstra a riqueza cultural que a nação brasileira possui, mas que pouco respeita e valoriza. O IBGE/2000 informou que a população indígena brasileira era de 734.131 índios e índias. A partir desse contexto, as crianças indígenas são bastante afetadas pela ausência de uma política garantista do respeito aos seus direitos humanos e às suas especificidades culturais. O Conselho Missionário Indigenista (2006) publicou em seu relatório que crianças e adolescentes figuram em grande parte dos casos de violências sexual, suicídios, desassistência à educação escolar indígena, mortes por desnutrição, além claro, de serem vítimas da mortalidade infantil. Segundo o relatório, nas violências causadas por agentes particulares e do poder público, houve presença de crianças e adolescentes nos casos de tentativas de assassinatos e homicídios dolosos e culposos. Além de todas as formas de violência relatadas no citado documento, não se pode olvidar que a mortalidade infantil indígena no Brasil é gravíssima, com uma média de 50,85 por mil nascidos vivos, número que por si só demonstra a ausência do Poder Público e, consequentemente, de políticas de garantia do direito à vida. Não bastassem as constatações de ausência de direitos, não há como negar o sofrimento das crianças e adolescentes envolvidos e marcados pelos conflitos dos povos da floresta por suas terras - como se isso fosse uma luta que precisasse ser travada com os não índios (se é que existem não índios no Brasil, pois, como já dizia Nilson Chaves, “tudo índio tudo parente”1), na verdade um conflito que resulta da negação pública ao direito de viver com dignidade em uma terra que, em sua essência, sempre lhes pertenceu. Isso foi o que se viu na disputa pela área Raposa Serra do Sol, em Roraima, hoje reconhecida pela Justiça como terra indígena. O acesso à educação para crianças indígenas tem como um de seus principais problemas a insuficiência de professores indígenas, o que dificulta o repasse dos conteúdos com base na referência cultural, além de, muitas vezes, impedir que os meninos e meninas indígenas estudem. Também não há como negar que os poucos professores indígenas sofrem com a falta de valorização e de apoio para que possam desenvolver um processo educacional compatível com a história de suas etnias. Enfim, não são poucas as violações aos direitos humanos das crianças indígenas, apesar de esforço de indigenistas, organizações da sociedade civil e até mesmo ações do poder público. 1 CHAVES, N. “Tudo índio tudo parente”. Disponível em < http://letras.terra.com.br/nilson-chaves/217038/> . Acesso em: 21 ago. 2009 346
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2. Breve reflexão sobre o direito das crianças indígenas.
Muito se tem debatido sobre qual a base normativa para assegurar os direitos de crianças indígenas. Para alguns especialistas o Estatuto da Criança e do Adolescente é plenamente aplicável (CANTU, 2009)2, para outros isso não é possível. Ora, será que ainda precisamos de maior base normativa quando já temos a própria Constituição Federal (BRASIL, 1988), a Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente3 (ONU, 1989) e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (1969), ambas ratificadas pelo Brasil, a Lei 6001/73 e a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (BRASIL, 1996) É óbvio que esse debate não pode encontrar justificativas que coloquem em xeque a certeza de que a normativa aí estabelecida deve assegurar a qualquer criança indígena todos os direitos fundamentais. O importante de tudo é o entendimento de que a coerência e o respeito à diversidade da cultura indígena não podem se transformar em justificativas para o abandono de direitos; ao contrário, devem ser a base de qualquer ação que respeite a dignidade e os fundamentos de toda a normativa brasileira de respeito aos direitos humanos. Não é com um debate de base monocultural ou discriminador que se irá respeitar e entender as diferenças que construíram e constroem a sociedade mundial, mas sim entendendo que o fundamento da isonomia é o respeito às diferenças. A violência contra os povos indígenas é operada por essa forma limitada de lidar com as diferenças, ou mesmo com um discurso que busca no equivocado entendimento do princípio da igualdade de que, para acessar direitos, as comunidades indígenas devem sofrer toda e qualquer forma de interferência em suas culturas. É inegável que o movimento de defesa das populações indígenas não tem se calado contra esse processo e conseguiu que a Constituição Federal de 88 garantisse direitos às comunidades indígenas, como o direito de ter suas terras demarcadas. Porém, grande parte da sociedade brasileira ainda não consegue perceber a população indígena como sujeitos de direitos e culturas diversas. Boaventura de Sousa Santos (2003) destaca que o multiculturalismo é um espaço, na condição de projeto, de lutas políticas. Ele afirma ainda que não existe um só conhecimento, mas muitos outros - como o indígena, o negro, o popular, o religioso - com os quais se deve dialogar. O grande desafio é impulsionar um debate em que a compreensão do multiculturalismo e aceitação de novos saberes possa ser propulsor da construção de uma política de respeito à diversidade e a garantia dos direitos às crianças indígenas. 2 CANTÚ, A. F. Crianças indígenas - excluídos dentre os excluídos. Disponível em <http://www.asmmp.org.br/ upload/01/1831373979.pdf >. Acesso em: 21 ago. 2009. 3 Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente. Art.29. 1- Os Estados Partes reconhecem que a educação da criança deverá estar orientada no sentido de: d) preparar a criança para assumir uma vida responsável numa sociedade livre, com espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade de sexos e amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos, e pessoas de origem indígena. • • 18 anos, 20 histórias
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Não reconhecer que a criança indígena tem direito à vida digna, a uma educação que respeite a sua cultura, que possa nascer e crescer sem o risco da morte precoce, não sofrendo qualquer tipo de discriminação, enfim com acesso a todos os direitos fundamentais, é ferir não só os princípios que estão consagrados em nossa Constituição Federal (BRASIL, 1988), mas também toda uma normativa internacional que se inclui hoje no ordenamento jurídico brasileiro, cuja base é o respeito aos direitos humanos, além disso, é admitir e tolerar a violência como algo banal que não instiga a indignação de uma sociedade. A história de Elisabeth bem retrata essa falta de respeito às diversas culturas e o acesso a direitos básicos, como educação e saúde, mas também nos ensina como as comunidades indígenas conseguem estimular em suas crianças e adolescentes o respeito ao coletivo, ao aprendizado e ao respeito aos mais experientes e de como vibram com suas histórias e tradições. Talvez se a arrogância com que, muitas vezes, os não índios vêem o saber e o conhecer indígenas não estivesse tão introjetada na sociedade brasileira, as crianças não índias pudessem ser as maiores beneficiadas com a compreensão de que a vida em coletividade traduz bem estar e crescimento, sem o individualismo tão presente nas relações sociais de hoje. O desafio que se tem hoje não é só romper com esse imaginário hegemônico distorcido e discriminador com os quais as populações indígenas são vistas pela sociedade, mas principalmente fazer com que as políticas públicas levem em consideração que não existe uma unicidade de povos e culturas, com crianças de mesma referência, mas sim o valor de uma grande diversidade de seres capazes de construir um mundo de diferenças e convivências de respeito e dignidade.
*advogada do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente - Emaús, no Pará, Pós-graduada em instituições jurídicas e sociais da Amazônia, pela Universidade Federal do Pará, Membro do Conselho Estadual de segurança Pública do Estado do Pará.
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Referências Bibliográficas ABONG. O papel da sociedade civil nas novas pautas políticas. Abong, 2004. BRASIL. Fundação Nacional do Índio. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/indios/conteudo. htm#IDENTIDADE>. Acesso em: 21 ago. 2009. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2000. Disponível em <http://www.ibge.gov.br/ censo/ >. Acesso em: 26 ago. 2009 BRASIL. LEI N° 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Disponível em <http://www.lei.adv.br/6001-73.htm >. Acesso em: 25 ago. 2009. BRASIL. Lei Nº. 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm>. Acesso em: 25 ago. 2009. CANTÚ, A. F. Crianças indígenas - excluídos dentre os excluídos. Disponível em <http://www.asmmp. org.br/upload/01/1831373979.pdf >. Acesso em: 21 ago. 2009. CONSELHO MISSIONÁRIO INDIGENISTA. Desassistência na área escolar indígena. Relatório de violências 2003-2005. <www.cimi.org.br>. Acesso em: 21 ago. 2009. OEA. Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em . www.dhnet.org.brAcesso em: 26 ago. 2009. ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/ doc_crianca.php> Acesso em: 25 ago. 2009. SOUSA SANTOS, B. (Org.). Reconhecer para Libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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Direito das Pessoas com Deficiência A janela Margarida Maria Marques*
Nunca fui na escola. Nunca. Não sei como é a escola. Não faço a mínima idéia. A escola é grande. Disso sei. Um colega meu estudava, mas não consigo imaginar. Ou melhor, imagino, mas não sei. Acho que as pessoas entram na escola com dezessete anos. Meu primo, acho, que entrou com quinze. Acho que as pessoas vão lá aprender. Deve ser pra aprender a ler e escrever. Eu não aprendi a ler. Nunca fui à escola, porque eu tinha um problema na cabeça. Não sei como é que chama. Só minha mãe que sabe. Só ela que sabe mesmo.
(Cauãn)
A janela. A TV. A moldura. A fresta. Por onde assisto a festa. Todo o mundo deve caber na janela Na TV Na moldura Na fresta A brincadeira que os outros brincam A canção que outros cantam O medo que outros dizem sentir Os sonhos que outros carregam As histórias que outros contam. (Margarida M. Marques) 350
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1. Por que ninguém enxerga ou se incomoda? Será o deficiente invisível?
O que mais me marcou ao ler os depoimentos dos jovens com deficiência foi à naturalização com seu lugar no mundo. Um lugar à parte. Ninguém põe em dúvida se este é mesmo o lugar em que deveria estar tão pouco, ninguém pergunta se poderia ser de outro modo. É dessa percepção da invisibilidade, da solidão e da dependência, que faço minhas reflexões. Os dados do IBGE(censo 2000) informam a existência de 24,5 milhões de pessoas com deficiência no país, número correspondente a 14,5 da população brasileira, percentual bastante superior a levantamentos anteriores. Por onde andará toda essa gente? Parece um número bastante relevante então por que não enxergamos essa população de brasileiros e brasileiras no nosso dia-a-dia? Os direitos das pessoas com deficiências ganharam maior visibilidade nos últimos anos. A maior visibilidade tem contribuído para que se perceba de outro modo, que não mais baseado na caridade, as pessoas com deficiência. Por outro lado avanços também podem ser traduzidos na normativa jurídica e podemos destacar, por exemplo, o Decreto 3298 de 20 de Dezembro de 1999, que dispõem sobre a Política Nacional para Integração das Pessoas Deficientes; o Decreto 3956 de 08 de Outubro de 2001 que promulga a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas deficientes; a Lei 10098 de 19 de Dezembro de 2000 que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das Pessoas Deficientes. Apesar deste e de outros avanços ainda não podemos dizer que estão superadas as barreiras para integração plena das pessoas com deficiência na sociedade. Até hoje ainda predomina entre nós um conceito de que de que aqueles que nascem ou adquirem alguma deficiência não são produtivos, e podem ser um estorvo. Este tipo de visão, construída, no nosso caso, em um país de desiguais, vem contribuindo para desenvolver a do ser humano que não conta, alimentando a cultura de pedintes, dos que sobrevivem da caridade por conta de suposta incapacidade. É por isso que apesar da população de pessoas com deficiência ser tão numerosa, aparentemente não as enxergamos. O que pode significar ser invisível em meio à multidão para um jovem de 18 anos. Qual o peso de conviver com essa herança histórica de um lugar apartado? 2. “Eu ficava olhando eles brincando. Não gosto de brincar.”
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Junto com a invisibilidade, a solidão é outra condição imposta aos deficientes. Acostumar a ser só, fazer as coisas sozinho, espiar os outros: “Só os meus irmãos ficavam brincando.” Eu ficava assistindo TV no quarto da minha avó lá em cima. “Eu não brincava de nada”. “Brincavam de pega-pega, esconde-esconde e andavam de bicicleta. (Laissa). Aprender a ser sozinho, a olhar o mundo como se dele não fizesse parte, aceitar que por alguma razão ele não está inscrito neste universo que inclui cotidiano e coletivo, sonhar ou fazer planos, conhecer coisas novas, gostar ou não gostar das coisas. Nesse código de não integração o que não é deficiente também aprende a não integrar, aprende a não contar o deficiente e a não sentir falta da nãopresença do deficiente. O deficiente não está convidado. “No meu bairro tem tanta coisa, que eu não sei nem por onde começar. Lá só fico dentro de casa mesmo” 3. Deixar de ser expectador. O deficiente quase nunca atua, só assiste.
Ter autonomia ser dono do próprio nariz, ficar no lugar da casa que quiser ir para os lugares que tem vontade. A autonomia está relacionada à acessibilidade. A casa, a rua, o bairro, a cidade, devem estar de tal modo organizado que possibilite que todo e qualquer um de nós possamos ir e vir, fazendo nossas escolhas. A garantia da acessibilidade surge como um atributo toma a dimensão de direito humano, uma vez na sociedade, deve permitido a todos e todas as iguais condições possam desfrutar das mesmas oportunidades em educação, saúde, trabalho, lazer, turismo e cultura São vários os níveis de barreiras que precisam ser eliminadas para que o deficiente possa ter direito de viver com plena autonomia. Barreiras físicas (arquitetônica, urbanística ou de transporte), que se caracterizam por obstáculos ao acesso existente em edificações de uso público ou privado. As barreiras urbanísticas são as dificuldades encontradas nos espaços ou mobiliários urbano (desníveis, revestimento nas calçadas, que dificultam a locomoção com cadeiras de rodas, muletas desníveis entre meio-fios, calçadas estreitas, com obstáculos difíceis de serem detectados, falta de vagas, especiais, mobiliários com altura adequada, como telefones, caixas de correios. E as barreiras de transporte, que são as dificuldades apresentadas pela falta de adaptação dos veículos particulares ou coletivos. A responsabilidade pela adoção de normas que eliminem as barreiras de acesso das pessoas com deficiência as edificações, espaços urbanos e meios de transporte é dos estados e municípios (BRASIL, 1989). No entanto, se observarmos como estão organizada a nossas cidades vamos perceber que alguns espaços como prédios e shopping de luxo, estão planejados de maneira diferente da maioria das escolas públicas, do transporte publico, as praças, as ruas na periferia,das praças. Não somente o direito a ter acesso à educação, saúde, moradia de qualidade está prejudicado, mas o acesso à cultura, ao lazer também passam a ser um privilégio somente permitido a quem tem melhores condições financeiras e não como um direito universal. 352
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A informação deve ser a principal ferramenta das pessoas portadoras de deficiências, e suas famílias, no sentido de fazer seus direitos e a total integração na sociedade. No Brasil a situação de pobreza priora as condições de milhares de deficientes, fazendo com seus direitos sejam ainda mais violados e mais que isso se naturalize um conceito, que é o daquele que não tem direito a ter direito. A outra barreira, essa não tão visível, que ainda precisaremos derrubar, diz respeito à superação dos conceitos que ainda teimam em vincular deficiência e incapacidade, Neste sentido reconhecemos o papel que tem jogado os meios de comunicação que tem contribuído muito para alterar essa percepção em relação a pessoas com deficiência. Somente com mais informação as famílias e aos deficientes, maior controle social sobre os gastos públicos, no sentido de monitorar como estão sendo cumpridas as normativas legais e maior investimento público poderemos dar conta de superar a desvantagem que vive as pessoas com deficiência no Brasil. Hoje, por exemplo, 27,61% não possuem escolaridade contra 24,6% entre população sem deficiência. “A escolaridade média das pessoas portadoras de deficiência é inferior a média da população brasileira (4,81 anos de estudo As pessoas com deficiência são menos instruídas, deteriorando as chances e as condições de ingresso no mercado de trabalho formal.” que nos apontam a necessidade de discutir este tema relacionado com a superação das desigualdades em todos os sentidos. 4. “Qualquer maneira de amar valerá”
Por fim é a Laissa que nos fala de outra dimensão que não damos conta: a afetividade. Estamos falando de jovens, e desse tempo de descoberta, de novas experiências, de apaixonar, sofrer, estar em grupos, de participar. Falamos em todos os direitos, saúde, educação, lazer, cultura, convivência familiar, mas quando se faz 18 anos, além de tudo isso, há outras coisas que sonhamos e desejamos muito. Que é amar: “Eu acho que o Jean tá preocupado comigo. Ele vai me esperar lá fora. (...) Gosto dele. Ele gosta de mim. (...). Aí a gente fica juntinho ali fora, esperando até a minha perua chegar...” (Laissa)
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*Assessora Comunitária. Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará - CEDECA/CE. Rua Deputado João Lopes, 83, Centro, Fortaleza/CE. Tel: (85)3252-4202 E-mail: margarida@cedecaceara.org.br / cedeca@cedecaceara.org.br Site: www.cedecaceara.org.br
Referências Bibliográficas BRASIL. Lei n° 7.853 de 24 DE Outubro de 1989. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/L7853.htm. > Acesso em: 25 ago. 2009.
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Direito à Participação Assombrações atrás da porta: Uma reflexão sobre Justiça e órgãos de proteção na vida de crianças e adolescentes Maria Luiza Moura Oliveira*
No Conselho Tutelar nunca fui, não sei como é, então de noite, às vezes, nem conseguia dormir pensando nesse negócio. Eu chegava da escola, mas não ficava em casa, sempre arrumava desculpa pra sair. Ia jogar bola, ficava até a noite fora de casa, com medo de eles chegarem lá a qualquer hora. Com medo deles me levarem pra FEBEM.
(Jorge)
Construir reflexões sobre o que viveu Carolina e Jorge me fez reencontrar com o que escreveu o escritor brasileiro Graciliano Ramos em “Infância”, seu livro autobiográfico. Pois, o autor se expressa corajosamente em trechos que nos tocam profundamente:
As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. (...) E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra”.
(Ramos, 2002, p.32).
Lembrei de Graciliano Ramos por que ele fala de um tema que é de extrema importância quando menciona: “Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça”. Pode-se perceber que milhares de crianças e adolescentes muitas vezes se vêem diante de situações em que a justiça lhes é apresentada assim camuflada de medo e de difícil acesso, meio intocável. Parece que não são raros às vezes os tons ameaçadores em que os órgãos de proteção são • • 18 anos, 20 histórias
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apresentados para crianças e adolescentes tornando-se assim o avesso da proteção. Caso clássico vivido por Jorge e Carolina, apresentados aos conselhos tutelares de forma aterrorizante e revestida de chantagens e ameaças. Apresentação que expõe meninos e meninas a um mundo confuso e mediado pela ambivalência que contribui para o adiamento do encontro dos sujeitos com os órgãos instituídos para garantir seus direitos fundamentais e efetivar sua participação como atores sociais. Neste sentido reeditamos as assombrações atrás da porta, o bicho papão e o lobo mau que a qualquer momento vem te pegar. E assim, milhares de crianças e adolescentes vêm atravessando, em sua experiência de vida na sociedade, situações e sendo poupadas de conhecer a verdade sobre um Sistema de Garantia de Direitos construído para lhes proteger integralmente. Nisso faz sentido, o que escreveu Graciliano Ramos que veio nos ajudar nesta reflexão, sobre o que ele em sua infância já sentia e viveu intensamente. Por isso a importância de sermos verdadeiros e trabalhar para que cada pessoa assuma sua autonomia na construção democrática de um mundo justo e digno para todos e apontem para a trajetória da cidadania das crianças e adolescentes brasileiras.
*Psicóloga, com mestrado em Psicologia Social pela Universidade Católica de Goiás (UCG), onde coordena o Instituto Dom Fernando: Especializado nas temáticas da infância, adolescência, família e juventude. Atualmente é - Conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o representa no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda); compõe a Coordenação colegiada do Comitê Nacional de Enfrentamento a Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. É pesquisadora do Núcleo de pesquisa da Infância, Adolescência e Família (Niaf ) da UCG cadastrado no CNPq. Atualmente coordena o projeto de pesquisa: AÇÕES DE ENFRENTAMENTO A VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL: Atendimento psicoterapêutico ao autor de violência sexual contra crianças e adolescentes. E-mail: malumoura@gmail.com
Referências Bibliográficas RAMOS, Graciliano, 1892-1953. Infância. 35. ed. São Paulo: Record, 2002.
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Direito à Participação Mobilização, participaçãoe diálogo com poder público. Rudá Ricci*
“Sempre gostei de manifestação, só que na maioria das vezes, as pessoas falam: “mas eu? fazer manifestação? sair de casa? ir lá pra frente de não sei aonde? tenho que cuidar do meu filho, fazer janta pro meu marido”.
Esta frase de Paola me chamou a atenção. Fiquei pensando o que motivaria, hoje, um jovem de 18 anos a gostar de manifestações públicas, como algum dia muitos gostaram de debates nas assembléias da Grécia Antiga. Algo ocorreu nestes séculos que separam as experiências das assembléias e Ágora1 do mundo das massas urbanas. Uma contradição estranha, já que quanto mais o mundo mergulhou nos mares das multidões, menos motivou as manifestações públicas. O mundo ficou mais intimista, mais grupal, mais comunitário. Os jovens tornaram-se tribais. Justo quando a multidão visível poderia conferir mais força ao jovem aparentemente perdido entre tantos rostos. Mas Paola diz que sempre gostou de manifestação. Diz mais. Diz que acredita que se deve cobrar todos governos. E aí se revela ainda mais: “não sei se é mandando carta pra secretaria de ensino, não sei se é através do diretor que vai lá e fala, não sei se fazendo abaixo assinado funciona, não sei se fazendo uma manifestação na frente da secretaria de ensino, mas é preciso fazer alguma coisa pra eles saberem como isso está e o que precisa. Tem que ser feita uma cobrança do governo, porque não adianta ficar falando mal aqui e não fazer nada.”
Então é assim que percebemos melhor a distância entre a intenção e gesto. A motivação para 1 A Ágora era o nome que se dava às praças públicas na Grécia Antiga reunindo cidadãos em assembléias (que se chamava Eclésia) onde os cidadãos debatiam assuntos relacionados ligados à vida da cidade.
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fazer valer seus direitos permanece. Como em maio de 68. Como nas passeatas dos “caras pintadas”. Mas a certeza da forma para fazer valer seus direitos já não é tão clara e certa como antes. E esta incerteza ocorre por vários motivos, submersos no mar da multidão. Um deles é positivo: os modos e lugares de participação são, hoje, muito diversos. Temos conselhos de direitos espalhados pelo país. Mais de 30 mil, segundo dados oficiais. Há experiências que pipocam por este “imenso Portugal” com participação direta de jovens, como no Orçamento Participativo Criança, ou Orçamento Participativo Jovem ou Adolescente, em Rio das Ostras (RJ), Lauro de Freitas (BA), Recife (PE), Governador Valadares (MG). Há parlamentos juvenis. Há escolas da cidadania de adolescentes. Há grupos teatrais, de rua. Há artistas que utilizam muros como telas. Ainda há um outro motivo positivo: o interior brasileiro começou a falar e inovar. A multiplicar formas de participação de jovens. O sertão, muitos falaram no Brasil, só apareceria quando virasse mar. Foi isto que Antonio Conselheiro2 disse. Mas a democracia e o mundo globalizado deram originalidade e poder ao interior do país. Não se inova apenas nas capitais e grandes cidades. Pelo contrário: o orçamento participativo, por exemplo, ocorre com maior freqüência em cidades pequenas do nosso país. O direito à participação inclui, em muitos depoimentos, mobilização, participação e diálogo com o poder público que ocorrem de maneira muito diversificada, ao longo do país. Lila afirma com todas as letras este poder em seu depoimento direto. Diz como, em Arraial no Piauí, não tinha pavimentação, nem saneamento básico, mas os moradores faziam as coisas. Isto não é pouco. Para quem viveu no interior deste país gigante, sabe o quanto se sente a voz abafada, por vezes. Abafada pelo olhar da vizinhança, pelos olhares de reprovação, pela rede muda de conselheiros anônimos. Também é difícil se fazer ouvir em lugares distantes de tudo. Mas isto vem mudando. E deve mudar mais. A voz, pouco a pouco, se faz ouvir por vários meios de comunicação. E aqui ou ali o direito parece ser maior que as intimidações de antes. E o direito a se manifestar vai se revelando de várias formas: na música, nas passeatas, nas visitas à Prefeitura, nas reuniões de bairro ou das igrejas, nas tribos, nos grafites, nas poesias escritas na solidão e trocadas entre amigos, na dança, no teatro, nas conversas de esquina. Denise relata como o pessoal de seu bairro fez um abaixo assinado por algum equipamento que atendesse as suas crianças. Mas não qualquer espaço: um centro de cultura, uma biblioteca, uma oficina de teatro ou de pintura. Este depoimento revela algo de novo no nosso país, não? Mas também há motivos negativos. Maya destaca a falta de interesse. “O povo não corre atrás do nosso direito, só reclama”. A psicóloga argentina Alicia Fernandez já ensinou, num dos seus livros, que a mera queixa desmobiliza, porque não é crítica. O alerta de Maya é este: quando só se reclama, nem sempre 2 Antonio Conselheiro (13 de março de 1830 a 22 de setembro de 1897) foi um histórico líder social brasileiro que viveu indignado com as injustiças cometidas contra o povo do Sertão. Lutou para formar uma comunidade igualitária, Canudos. No entanto, suas ações deram origem a maior guerra campesina do século XIX. 358
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se mobiliza, porque a queixa satisfaz a alma. Como se eu afirmasse: “Sei que poderia ser melhor e que estão usurpando algo que é meu. Portanto, eu sei, não sou bobo, mas não dou o passo seguinte.” Por quê? Talvez porque o Brasil tem na sua história poucos momentos em que a maioria governou. Mas sempre protestou. Ainda estamos construindo esta possibilidade, de qualquer cidadão ser dono do seu poder real. Mas talvez isto ocorra por desconfiança, por falta de exemplos conhecidos e públicos do que se faz em muitas localidades do Brasil. Já fazemos muito, mas não sabemos. Por este motivo que alguns dos depoimentos que lemos neste livro afirmam e reafirmam situações onde todo mundo reclama (“dá até dor de cabeça”, diz novamente Paola), porque enquanto se queixam, não acontece nada. Então, ficamos assim: este país vem mudando. Mas não vem mudando como se fosse uma linha reta, uma história que a gente já sabe o final. O interior do país já fala alto e já se mobiliza. Mas nem todos sabem que isto ocorre. Alguns jovens gostam de manifestações, mas não todos. O Brasil vem mudando. Os jovens brasileiros vem mudando nesses últimos anos. Mas precisam se conhecer mais. Se reconhecer nos desejos e ações. Precisam se conhecer como iguais que são diferentes. Iguais porque são jovens de um país que abriu uma brecha para serem compreendidos como sujeitos de direitos. Mas diferentes porque toda juventude é múltipla, busca sua identidade na multidão, é muito colorida, fala alto e canta músicas de muitos estilos. Têm certezas absolutas que podem durar alguns minutos ou para o resto da vida. Isto faz a juventude: ser eterna enquanto dure. E nós, adultos, temos que aprender com os jovens que sua participação se faz assim: diversa, em grupos de confiança e afeto, tortuosa, nem sempre racional, muitas vezes expressando em cores dramáticas, artísticas. Ainda buscando fazer sua voz ser respeitada. Mas que já se faz ouvir.
* Sociólogo, Doutor em Ciências Sociais, Diretor Geral do Instituto Cultiva (www.cultiva.org.br), do Fórum Brasil do Orçamento e Observatório Internacional da Democracia Participativa. E-mail: ruda@inet.com.br
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Referências Bibliográficas FERNÁNDEZ, Alicia. A mulher escondida na professora. Porto Alegre: ArtMed, 1994. RICCI, Rudá & Matos, Michelle Nunes. OP Criança: Projeto Pedagógico para a Cidadania. Belo Horizonte: Autêntica, 2008
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Direito à Participação Participação e Políticas de Saúde Maria Ermínia Ciliberti*
Saímos pra tentar em um posto novo que fizeram, depois de um abaixo-assinado da comunidade.
(Beatriz)
Em 2008, os jovens protagonistas deste livro completaram 18 anos, juntamente com todo o arcabouço legal que, a partir da Constituição de 88, resultou no Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse mesmo ano também atingiu a maioridade a Lei que trata da participação popular na gestão do SUS – Sistema Único de Saúde (BRASIL, 1990). Dos depoimentos colhidos entre os jovens que nos fornecem a matéria prima para a reflexão sobre o tema, a primeira constatação a fazer, com alegria, é a de que eles incorporaram os princípios que devem orientar a participação nas políticas de Saúde. E dentre estes princípios um se destaca: o da solidariedade. Vivendo em comunidades consideradas carentes, esses adolescentes não pretendem abandonála como forma de atingir outra condição social. Ao contrário, deixam clara a perspectiva de que devem exercitar sua cidadania para melhorar não apenas as próprias vidas, mas a de todos com os quais se vinculam por laços familiares e comunitários. Exibem a consciência cristalina de que apenas o esforço coletivo pode garantir o Direito à Saúde, por meio de políticas públicas. Os depoimentos demonstram todo o potencial dos jovens para atuar na formulação das políticas públicas e no controle de sua execução. Na próxima década eles podem e devem se integrar às instâncias formais de participação, como as Conferências e os Conselhos de Saúde, para os quais contribuirão trazendo a visão das necessidades da comunidade em que vivem. Porém, mais do que isto, a intervenção desses jovens na comunidade, com a contribuição trazida por seus sentimentos, valores e por sua capacidade de mobilização, levará a própria Saúde Pública a se renovar neste País, ampliando seu papel de apenas curar doenças para preveni-las, promovendo a saúde em sua dimensão maior, que passa por melhores condições de moradia, educação, lazer, transporte, segurança e proteção ambiental. • • 18 anos, 20 histórias
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*Psicóloga, especialista em Saúde Pública. Militante e defensora do Sistema Único de Saúde E-mail: erminiaciliberti@gmail.com
Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, (1988). Disponível em <http://www.senado. gov.br/sf/legislacao/const/Brasília: Senado>. Acesso em: 25 ago. de 2009. BRASIL. Lei 8080/90 de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/LEI8080.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2009. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069 de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm> . Acesso em: 25 ago. 2009. BRASIL. Participação da Comunidade na Gestão do SUS. Lei 8142 de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS} e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/Lei8142.pdf> . Acesso em: 25 ago. 2009.
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Direito à Participação Participação das Crianças e Adolescentes na construção de políticas: Um olhar para as políticas de Lazer, Cultura e Esporte Marcos Vinicius Moura e Silva*
Podia fazer tipo o Ibirapuera mesmo. Brinquedo pras crianças... Sala com cursos pra comunidade... Teria quadra, parque, playground... posto de saúde... um tipo de museu com exposição de arte... teatro...
(Maya)
O que falta para implementar políticas públicas vinculadas à participação da população? São espaços para mobilização? São recursos financeiros? São espaços para construção de mais equipamentos públicos? As falas dos jovens autores deste livro mostram que não, e nos fazem refletir a respeito. Numa visão simples, de senso comum, a primeira impressão é a chamada falta de “vontade política”. Olhando bem, reflete a dificuldade em ceder o poder, em compartilhar, em ouvir. E esses são aspectos essenciais para a relação das pessoas, que são singulares e, portanto, precisam desenvolver a prática do falar e do ouvir para um convivência profícua. E os espaços, bocas e ouvidos para que isso ocorra existem? É possível que as políticas de lazer, cultura e esporte estejam inclusas em políticas de participação da população? Creio que sim, mas essas práticas devem ser contínuas para que na construção, manutenção e mudanças das políticas, todos se sintam parte do que está sendo feito e revisto. Mas para isso, também é necessário pensar na própria mobilização de uma parcela significativa da população. O poder legislativo - a democracia representativa - não consegue focar sua atuação na discussão e proposição de políticas públicas junto a todos os cidadãos. A participação popular - a democracia participativa - não pode reproduzir esse mesmo erro e ouvir apenas parte da população ou a chamada sociedade civil organizada (pois a maioria da sociedade está desorganizada). Essas políticas ficam, em sua maioria, ao gosto do poder executivo e, portanto, predominam políticas de Governo e não políticas de Estado. É preciso primeiro desenvolver mecanismos para que todas as pessoas possam • • 18 anos, 20 histórias
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se manifestar e, depois, sem reduzir as opiniões apenas ao “vamos votar e a maioria simples ganha”, é necessário entender o que se diz, discutir as possíveis causas - muitas vezes ocultas nas falas - e construir as soluções coletivas e consensuais. Torna-se imperioso contemplar os vários saberes, inclusive e principalmente, o olhar da criança e do adolescente, que traz uma perspectiva de futuro e, ao mesmo tempo, de simplicidade e de inovação. Na temática em questão, também é necessário abranger as diversas possibilidades de manifestações artísticas, esportivas e de lazer. E, compreendendo isso, provavelmente concluiremos que uma comunidade, um bairro, não dará conta de todas as manifestações e, então, torna-se necessário pensar a região, pensar a cidade como um todo. E aí está o próximo desafio: essas políticas não podem ficar restritas aos aspectos locais, isolando as pessoas em “guetos” um pouco mais agradáveis para se viver e que se restringem à cultura local e conhecida pelos seus habitantes. É necessário que as políticas atinjam e envolvam a todos, e não apenas sejam um favor para os chamados “menos favorecidos”. É preciso garantir a manifestação da cultura local, mas também o acesso a outras formas culturais que possam despertar a curiosidade, a criatividade, a compreensão. A falta de políticas de participação amplas e integradoras reforça ainda mais a formação de um povo que se individualiza e se corporativiza, lutando apenas por direitos de parcelas da população. Se os direitos não são para todos, fatalmente tenderão a não ser de ninguém.
*Licenciado em Educação Física pela Escola de Educação Física e Esportes da Universidade de São Paulo. Educador do Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (CEPEUSP), membro da equipe de coordenação do Programa de Formação e Estudo em Desenvolvimento Humano pelo Esporte (parceria USP / Instituto Ayrton Senna)
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Direito à Participação Participação: Reflexões sobre o papel da escola na construção da Democracia Vera Lion*
Tem professor que fala assim: - Não, esse é bom, ele fica quieto no canto dele.
(Mike)
Herbert de Souza, o Betinho1 dizia que participação, um dos cinco princípios para construir e consolidar a democracia, é condição para concretizar os outros quatro: igualdade, liberdade, diversidade e solidariedade. Hoje com tantos desencantos na área da política, a participação está em crise entre jovens e adultos. No entanto, existe uma movimentação da sociedade civil e de algumas instâncias governamentais, em busca de mais transparência nas informações e de possibilidades de controle social das políticas e recursos públicos. Esses são alguns caminhos para exigir e concretizar direitos à participação, à educação, à saúde, ao meio ambiente, ao trabalho, ao desenvolvimento social. O direito à participação é garantido pela Constituição Federal e pelo ECA a todas e todos os jovens, que podem e devem participar nos espaços em que vivem - na família, na escola, no bairro, na cidade, no país. Na perspectiva de exercício e vivência democráticos, a escola tem potencial para estimular a participação juvenil e garantir espaços e apoio às estruturas existentes, como grêmio e conselho de escola. No entanto, pesquisas avaliam que poucas escolas públicas têm desempenhado o papel pedagógico de formadoras para a cidadania e autonomia juvenis. 1 Herbert de Souza (03/11/1935 - 9/08/ 1997) foi um sociólogo e um ativista na luta contra as injustiças brasileiras no Brasil. Teve imensa contribuição na luta contra o HIV/Aids. • • 18 anos, 20 histórias
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A escola, primeiro espaço público freqüentado cotidianamente por crianças e jovens, é um local privilegiado de interação com o mundo adulto. Nela educadores poderiam estar mais conscientes das problemáticas que afetam as jovens e os jovens, mais conectados com temas de interesse juvenil e capacitados sobre as temáticas de desigualdades de classe, diversidades de gênero, de raça/etnia e de orientação sexual. As políticas públicas educacionais têm necessariamente que investir nessa direção, sob risco de afastar as jovens e os jovens das escolas, ainda que elas e eles valorizem a escola pelo aporte de conhecimentos e para seu futuro profissional. No entanto, ao falar sobre o que acham das escolas, elas aparecem como distantes não só do mundo juvenil e seus interesses específicos, mas do local onde estão inseridas (Retratos da juventude brasileira, 2005). Pesquisas e observatórios sobre a juventude revelam que se as jovens e os jovens têm participado pouco da política, eles têm participado de forma mais alternativa e constante de grupos religiosos, esportivos e artísticos. Seria importante e interessante, que as escolas apoiassem e compartilhassem com as jovens e os jovens essas atividades e projetos esportivos e artísticos. Para participar, as jovens e os jovens têm direito à informação, a conhecimentos e saberes sobre a realidade do bairro e da cidade, as conjunturas municipal, estadual e nacional, as políticas públicas que afetam seu cotidiano, as oportunidades presentes e futuras, as legislações. É importante estar informado e antenado para qualificar a participação e a escola pode criar e oferecer boas condições de pesquisas, acesso à Internet, bibliotecas bem equipadas, aulas interessantes. Além da informação, a escola tem que garantir a escuta. Os jovens querem participar e sabem o que querem. Na pesquisa Juventude Brasileira e Democracia (2005) as jovens e os jovens expressaram desejos e reivindicações para suas escolas – mais estrutura física, mais formação e melhor remuneração dos professores, aulas mais dinâmicas, laboratórios de informática que funcionem, currículos que dialoguem com a realidade, metodologias e métodos diferenciados. É disso que falam Beatriz, Lila, Mariane, Mike, Rodrigo, ao contar suas histórias de vida. Escutá-los e apoiá-los na concretização do direito à participação, é nosso dever de educadores.
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* Socióloga, mestre e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Desde 1983 trabalha no Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário – IBEAC, onde a partir de 1997 coordena o Programa de Direitos Humanos. Atua como educadora social, assim como na elaboração, mobilização, organização, negociação, captação, coordenação, monitoramento e avaliação dos projetos e ações do Programa. Participa da construção de materiais didáticos e metodologias de formação e intervenção do Programa. E-mail: veralion@uol.com.br
Referências Bibliográficas ABRAMO, H. W.; BRANCO, P. P. M. Retratos da Juventude Brasileira – Análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania/ Fundação Perseu Abramo, 2005. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, (1988). Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/Brasília: Senado>. Acesso em: 25 ago. de 2009. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069 de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm> . Acesso em: 25 ago. 2009. INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS & INSTITUTO DE ESTUDOS, FORMAÇÃO E ASSESSORIA EM POLÍTICAS SOCIAIS – PÓLIS. Juventude Brasileira e Democracia: participação, esferas e políticas públicas. Relatório final. Rio de Janeiro: [s.n.], 2005. Disponível em: <http://www.ibase.br/pubibase/media/ibase_relatorio_ juventude.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2009. SILVA, Maria Lúcia Carvalho Da; RODRIGUES, Vera Maria Lion Pereira. Grupos juvenis na periferia: recompondo relações de gênero e de raça/etnia. São Paulo: Tese de doutorado em Serviço Social. PUCSP, 2005, págs 114 a 133.
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Direito à Participação Participação e Políticas de Transporte: Contando as lutas da população de Parelheiros e Marsilac Rosamar Maria Coelho*
Um documento que você pega com assinatura de trezentas pessoas, falando que elas não concordam em tirar o ônibus dali, porque elas precisam desse ônibus, porque essas pessoas usam esse ônibus, e, de repente, o governo recebe isso e não dá a mínima importância? Abaixoassinado é um meio, se eles tiverem consciência. Porque ninguém vai perder tempo, procurando assinatura de trezentas pessoas, ninguém vai perder tempo escrevendo uma carta, se não for uma coisa útil. Muitas vezes o governo não ouve o povo, porque sabe que o povo fala, fala, mas também não faz nada.
(Paola)
Conto aqui uma experiência coletiva na luta pelo nosso direito de ir e vir na cidade de São Paulo. Sou moradora de uma região periférica desta cidade, assim como todo o coletivo que compõe esta experiência de luta cotidiana. Estamos no extremo sul, mais especificamente nos distritos de Parelheiros e Marsilac. Nesta região temos áreas urbanas e rurais e ela toda se constitui uma Área de Proteção Ambiental – APA. A política de transporte para região sempre foi deficitária, sem estudo e projeto de transporte adequado. No ano de 2006, um grupo de pessoas da comunidade participaram do curso de orientador jurídico popular ministrado pelo Movimento do Ministério Público Democrático em parceria com o Centro de Direitos Humanos e Participação Popular do Jd. Ângela (CDHEP). Após a finalização deste curso formamos o Fórum Permanente em Defesa da Vida da Região de Parelheiros e Marsilac e a partir dele foi surgindo a necessidade de constituir comissões de saúde, de educação, meio ambiente, segurança pública, transporte e infra-estrutura, moradia, etc. As pessoas foram para as comissões nas quais se 368
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identificavam mais, sendo que a grande maioria já vem de lutas nos movimentos populares existentes no país. Assim nasceu a Comissão de transporte e Infra-estrutura, formada por pessoas que já estavam engajadas nesta luta na região desde os anos 80. Vou dar exemplos concretos do que são essas pequenas conquistas e de seus significados para a população: Abertura de Comunicação com a SPTRANS
A comissão de transporte reiniciou dentro do fórum esta luta buscando a abertura de comunicação com a Secretaria Municipal de Transportes1 e a SPTtrans2. Depois de muita insistência conseguimos marcar a primeira reunião com a SPTrans, que ocorreu no final do ano de 2007, em Parelheiros. A partir daí, uma vez a cada dois meses, um representante da SPTrans e do Poder Público vem a Parelheiros para ouvir o povo, só assim vão se sensibilizando e percebendo a real necessidade do povo, por que ficar atrás de uma mesa analisando papéis ou programa do computador do modelo de funcionamento do sistema jamais condiz com a realidade do que o povo vive no dia-a-dia. A exemplo disso é o depoimento de Paola e sua indignação e frustração de perceber que as iniciativas que fizeram não alcançaram o resultado esperado pelos usuários. Mas este é inicio de uma luta, temos que tentar todos os caminhos. Assim conseguimos dar continuidade às nossas negociações e desta maneira tivemos pequenas conquistas. Criação de linhas de ônibus:
Para muitos que não usam transporte coletivo ou moram nas regiões centrais, a conquista da troca dos micros-ônibus por ônibus da Linha Baragem-Parelheiros pode parecer bobeira, mas o bairro Barragem fica a mais ou menos uns 20 quilômetros do centro de Parelheiros, que é um bairro com características urbanas e rurais. Desta maneira, é em Parelheiros, que muitas pessoas do Barragem fazem por exemplo, suas compras cotidianas. No horário de pico, quando muitas pessoas retornam de seus trabalhos e estudos é grande o aumento de passageiros que (espremiam) espremem nos corredores estreitos de pequenos micro-ônibus, assim mesmo, como sardinha em lata!
1 Órgão da Prefeitura de São Paulo responsável por todos os assuntos relacionados ao gerenciamento da operação do sistema viário e ao transporte público na cidade. 2 Empresa que exerce o gerenciamento técnico e operacional do Sistema de Transporte Urbano. • • 18 anos, 20 histórias
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Outra conquista foi a Linha Vargem Grande-Terminal Varginha. Este bairro, que é densamente ocupado, possuía apenas uma linha de ônibus. Uma única linha de ônibus para toda a população desta região era insuficiente. Vejam só, que mesmo após a criação desta linha, ela continua sempre lotada. No entanto, já foi alguma melhora os moradores terem a opção de ir até o terminal Varginha e embarcar em outro ônibus sem desespero. Atendimento de vira3
Ainda existem bairros onde não há linhas de ônibus e os moradores destes bairros têm que utilizar as linhas que vêm de outros lugares e passam pelo trajeto destes bairros. Era o caso dos bairros de Jd. Silveira, Jd. Iporã e Jd. Progresso. Conseguimos atendimento no horário de pico da manhã, mas o grande problema é que nesse horário, quando os ônibus passam por estes bairros, as pessoas não conseguem entrar, pois estão lotados e não param. As pessoas sabendo que vão chegar atrasadas no trabalho, ficam nos pontos desesperadas. Por causa dessa situação muitas pessoas já perderam empregos, consultas e exames. Este tipo de situação causa indignação, estresse e revolta. Também conquistamos o atendimento de vira para o bairro do Jd. das Fontes, mas com o tempo os usuários, tinham grande necessidade de antecipação do horário de partida para 3h50min. O atendimento de vira ocorria ás 4h10min, mas mesmo sendo pequena a diferença de horário muitas pessoas estavam chegando atrasadas no trabalho, pois moramos uns 70 km do centro. As pessoas saem de madrugada para chegar a tempo nos locais de trabalho. Responsabilização de uma empresa pelo transporte de uma linha
Paese (Plano de Apoio entre Empresas em Situação de Emergência) é um sistema de transporte acionado em casos chamados de emergência. São linhas substituídas temporariamente. A empresa responsável pelo transporte da Linha Jd. Herplin-Praça da Árvore, em 2007, foi destituída do sistema de transporte pela SPTrans e ficou mais ou menos um ano com este modelo de operação. O ruim deste modelo é que quando ocorre algum problema na linha o usuário não tem como cobrar da empresa operante, porque na prática, cada dia uma empresa diferente operava a linha, apesar do sistema de consórcio responsável pela região ser um só. Assim, dificilmente as empresas assumiam as responsabilidades. 3 Aumenta-se o número de ônibus, no horário de pico, para dar conta da demanda. 370
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Nossa conquista foi a definição da empresa que ficou com a linha. Agora tem como os usuários reclamarem com a empresa responsável, por isso a importância desta conquista. Estes exemplos contam um pouco de nossas lutas. A Comissão de Transporte e Infra-Estrutura tem um grande desafio por estarmos numa região de proteção ambiental, onde há bairros urbanos e outras áreas rurais. Os moradores destas áreas rurais na sua grande maioria têm plena consciência da importância da preservação ambiental, mas por outro lado estão excluídos de muitos direitos, entre estes o de transporte, em alguns locais as pessoas tem que caminhar até 9 quilômetros para chegar a algum lugar com transporte. Os jovens que moram nestas regiões não têm a oportunidade de buscar emprego fora, pois não há transporte e nem a região oferece oportunidade de trabalho para estes jovens que já completaram o segundo grau e estão sem alternativa de ganho de renda. O poder público não chegou ao bom senso de estudar alternativas diferenciadas de transporte para estas regiões, a fim de que seja garantido a estas pessoas o direito do transporte de qualidade. O outro grande desafio é trazer o transporte de massa para a região, que a linha C da (CPTM), o trem de Osasco a Grajaú, chegue até o bairro de Colônia. A comissão já entregou documentos e abaixo assinado ao governador, reivindicando este benefício que vai ajudar a melhorar o transporte, trazendo a redução de tempo e de gasto nas viagens, além da melhoria do trânsito nas principais avenidas da zona sul! ‘Transporte um direito do cidadão e dever do Estado‘, temos que fazer valer o que a nossa Constituição garante, mas temos que lutar por este direito ainda não conquistado!
* Voluntária, Pastoral da Criança. Militante, no Fórum em Defesa da Vida da Região de Parelheiros e Marsilac. Desde os anos 80, militei nos movimentos populares na região, ( saúde, educação, transporte). E-mail: rosimarrisss@yahoo.com.br
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Muitos trajetos de luta foram evidenciados nestas páginas. A luta de crianças, adolescentes, jovens e adultos. A luta nas ruas, vielas, comunidades, nas periferias estigmatizadas e nos condomínios de luxo. A luta nas conversas, nas histórias e nas reflexões. Tão importante quanto comemorar as conquistas normativas é garantir os direitos de crianças e adolescentes diariamente.
Vamos pelas ruas e vãos da cidade, somando nossas potências e ecoando:
“Somos Gente, Temos Direitos!” 372
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