Entrevista Vox 58 - Grupo 3 de Teatro

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“O teatro é o aqui e o agora” Encontros são a essência da união entre Débora Falabella, Gabriel Paiva e Yara de Novaes, fundadores do Grupo 3 de Teatro Texto: Daniela Rebello e Lucas Alvarenga Fotos: Felipe Pereira Quiseram os deuses do teatro cruzar o destino de três mineiros longe de suas raízes. Radicados em São Paulo e sob as bênçãos de ‘A Serpente’, texto de Nelson Rodrigues, nascia uma companhia em 2005. A união estabelecida quase que ao acaso deu continuidade à parceria teatral iniciada na capital mineira, no fim da década de 90. “Nós trabalhávamos na companhia da Yara de Novaes, a Odeon. A Débora Falabella fazia o infantil ‘Família Adams’, e eu, o ‘Ricardo III’”, rememora Gabriel Fontes Paiva. Extasiados pelo sucesso da peça, Débora, Gabriel e Yara resolveram transformar aquele encontro no Grupo 3 de Teatro. Amparada por um discurso político e contemporâneo, a companhia caminha rumo à sua primeira década de história, engenhosamente costurada por laços afetivos, teatrais e regionais. “Nós formamos uma família. Isso faz com que os laços fiquem mais fortes, inclusive no trabalho”, confessa Débora. Do ambiente familiar, os três herdaram o gosto pelas artes. Débora encontrou no pai, ator e diretor de teatro, e na mãe, cantora lírica, belos exemplos. Gabriel teve na mãe o contato com as artes plásticas. E a terceira fundadora do grupo cresceu cercada por música e literatura. “Lá em casa, a arte é encarada como um fundamento”, garante Yara. Em um dos cafés do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e em conversas por telefone, os três atores e diretores falaram com a Vox Objetiva sobre os rumos do teatro no Brasil, as dificuldades de adaptar um texto para os palcos, o prazer de fazer teatro nas periferias, as raízes mineiras e a essência política de ‘Contrações’. A mais recente peça do grupo deu a Débora e a Yara o prêmio de Melhor Atriz pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). O título nunca havia sido dividido. A primeira montagem do grupo foi ‘A Serpente’, de Nelson Rodrigues. Esse é o último texto dele – um

tipo de resumo da obra. O que levou vocês a fazer essa escolha? Débora: ‘A Serpente’ era um texto de que a gente gostava. A Yara veio com a ideia de montá-lo, e isso nos pareceu excelente. Esse é o texto mais compacto do Nelson e, talvez, o mais explícito e forte – justamente por ser o último. ‘A Serpente’ tinha um grande valor criativo para nós. Intuitivamente essa escolha acabou nos ligando às outras. E começar com Nelson Rodrigues é sempre começar abençoado! Yara: Ele é nosso pai dramático! O Ziembiński montou o ‘Vestido de Noiva’, do Nelson, e foi aquela revolução na cena brasileira. Mas quando você lê o texto, descobre que as rubricas do Nelson já são propositoras de uma cena revolucionária para a época. E o que nós temos no grupo é um diálogo honesto, direto e livre com esses autores, que também são propositores de cena. Gabriel: É curioso. Todos os quatro autores que escolhemos até então são ligados à forma e a determinantes da cena. E ‘A Serpente’ tem isso que vocês disseram: é um texto sintético, de um ato só, que dura uns 50 minutos. Um ano depois, vocês escolheram ‘O Continente Negro’, do psiquiatra chileno Marco Antonio De La Parra. Como foi explorar um texto que fala de forma tão sintética sobre a falta no sentido psicanalítico? Gabriel: Foi surpreendente! Uma professora da Faculdade de Letras da UFMG – a Sara Rojo – nos apresentou o De La Parra. Esse texto é um dos poucos que conheço feito por histórias entrecortadas que dialogam com o cinema e o hiperrealismo. As cenas que aparecem são sempre antes ou depois do momento mais dramático da peça: o clímax. É de uma sofisticação rara! Nós iríamos fazer outro texto. Lendo ‘O Continente Negro’, mudamos de ideia e fomos conversar com o Aderbal Freire Filho. Ele já conhecia o texto – |9


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pelo diálogo que mantém com o teatro latino-americano – e tinha um desejo enorme de montá-lo. Yara: Essa coisa do clímax é interessante. O autor responde aos anseios e desejos da personagem nesse momento. Como ele trabalha com a linha psicanalítica, as coisas são mais veladas, escondidas e obscuras. Daí o nome de ‘O Continente Negro’ – um lugar longínquo, de que não se tem notícia. Assim como a Grace é a diretora ideal para o ‘Contrações’, ele foi o diretor adequado para ‘O Continente Negro’. Débora: Além disso, enquanto em ‘A Serpente’ os atos eram completamente explícitos, em ‘O Continente Negro’ era o contrário. Continuamos falando de relações humanas e amorosas, mas de forma talvez menos apaixonada, mais triste e sem esperança. Aliás, esses temas se repetem no Rubião. Falando em Murilo Rubião, ele foi um dos raros representantes brasileiros do realismo fantástico. Como foi reproduzir a atmosfera onírica de três contos dele em ‘O Amor e Outros Estranhos Rumores’ (2010)? Débora: Nós tivemos uma excelente adaptadora: a Silvia Gomez, sobrinha da Yara. Quando começamos a discutir o Rubião, foi difícil fazer escolhas. A obra dele é muito rica, apesar de curta – só 33 contos. Por isso, escolhemos três textos que cabiam naquilo que queríamos dizer. Os escolhidos foram: ‘Memórias do contabilista Pedro Inácio’, ‘Bárbara’ e ‘Os três nomes de Godofredo’. Cenicamente, talvez fossem os mais interessantes. Escolher o Rubião foi afirmar nossas raízes e lançar o desafio de adaptar a literatura para o teatro. Gabriel: Adaptar em si já é bem mais difícil do que montar um texto feito para teatro. Você tem a responsabilidade de trabalhar com o que está no imaginário das pessoas, e elas têm de lidar com possíveis frustrações. Yara: Eh... Normalmente você faz pequenas mudanças ao longo do espetáculo. A gente fez duas ou três peças diferentes durante do processo. Foram readaptando ao estilo Rubião? Yara: Ao estilo Rubião! O Gabriel brincava: “Que carma nós herdamos dele!” (risos). Nós mudamos o elenco, o cenário e readaptamos o texto. Assim como o Rubião chegou ao fim só porque morreu, nós tínhamos certeza de que não chegamos a alcançar o cerne da obra dele. 10 | www.voxobjetiva.com.br


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O teatro é o lugar da magia e da convenção. Nele você condensa o tempo e o espaço e salta na geografia e nas épocas. Nós tínhamos que ir além dos códigos teatrais. Chegávamos perto de algo mágico, mas que não era o realismo fantástico para o teatro. A palavra, ainda mais no realismo fantástico, tem mais força que a imagem. Yara: Nós descobrimos exatamente isso: que precisávamos lidar com a palavra como um elemento organizador do realismo fantástico do Rubião. Em alguns momentos, a palavra diria o que tinha que ser. Não poderíamos colocar a Bárbara pesando toneladas, mas a palavra, de certa forma, poderia. O Rubião exigiu uma experimentação de linguagem única. Ele usa muita metáfora. E a gente imagina que as linguagens codificadas são difíceis de ser comunicadas. Mas as pessoas sonham e desejam, e isso é codificado. O David Lynch, no ‘Meditação Transcendental’, cita que as pessoas diziam pra ele: “Nossa, não entendi nada do seu filme!”. Então ele perguntava: “Mas o que você entendeu?”. A pessoa respondia e ele arrematava: “Mas é isso aí, ué!”. Gabriel: Nós fomos nos aprofundar na linguagem do Rubião durante a Mostra Mineira de Arte Contemporânea que promovemos no Sesc Pompeia, em São Paulo. Levamos pra lá 300 artistas mineiros num momento em que a companhia buscava uma identidade. Na mostra, descobrimos que o Rubião é estudado até na USP. Então fizemos uma exposição interativa sobre os contos dele. Quando viemos a Belo Horizonte, promovemos um simpósio na UFMG e uma mostra de filmes no Sesc Palladium sobre essa obra. Depois disso, fizemos a peça, que mais tarde foi para as periferias de São Paulo e algumas cidades do interior. Foi muito bom! Houve acadêmicos que questionaram: “Murilo Rubião na periferia?”. Sim! E funcionou muito bem. Surgiram interpretações incríveis nesses locais.

linguagem com que ela está acostumada: a da televisão. Mas o teatro exige muito mais de quem o frui. Nos trabalhos na periferia, explicamos e falamos sobre os elementos constitutivos da cena, a cenografia, a iluminação,... E existe um público ávido por teatro: o da periferia. Enquanto nos centros de alto poder aquisitivo as pessoas buscam a risada fácil, nas periferias há um público mais participativo, que deseja mais após a ascensão político-econômica. Yara: Esse deslocamento foi importante também pra nós. São Paulo é uma cidade muito separatista, com uma periferia realmente periférica. Lá as pessoas viajam 40 quilômetros, duas horas ou mais para se locomover. No Jardim Ângela, nós ouvimos de um cara o seguinte: “Quantas vezes eu fui ver o grupo de vocês lá no Teatro Tuca. Uma vez eu gastei uma grana porque tive que pegar um táxi! Vocês não imaginam como é bom vê-los aqui no meu bairro!”. Esse deslocamento é simbólico. Alguns espetáculos que fizemos na periferia foram até superiores aos promovidos nos centros burgueses. Nesse contato, tivemos a certeza de que não tinha sentido fazer teatro com preços caríssimos. A preocupação de vocês com a acessibilidade é notória. Débora: Nosso interesse é no grande público. Se a gente não faz espetáculos gratuitos, fazemos a preços

Vocês creem que essa experiência tenha refletido na vida pessoal de cada um? Gabriel: Sim. O teatro é o aqui e o agora. A peça acontece no encontro do público com o palco. É por isso que há a queixa constante sobre a falta de público e sobre como as pessoas têm se desinteressado pelo teatro. Por um lado, as escolas e as faculdades teatrais continuam formando atores. Por outro, há cada vez menos público. Por isso, é essencial saber quem assiste às nossas apresentações. No Brasil, a maioria nunca foi ao teatro, independentemente da classe social a que pertença. Quando vai, às vezes procura por uma | 11


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populares. Queremos formar uma plateia. Não que seja errado cobrar ingressos, mas, primeiro, temos que despertar na pessoa o interesse pelo teatro. O último espetáculo em que a gente cobrou ingressos mais caros foi há uns cinco, seis anos. Gabriel: Prezamos pela gratuidade e pelos preços populares. É claro que o ingresso cheio traz independência, pois, quando a bilheteria não paga a produção, alguém está pagando. Quem paga escolhe pra você. O teatro tem ficado muito dependente do patrocínio. Às vezes, você vai a um grande centro e pratica um ingresso barato, mas quem vai à peça é o pessoal de poder aquisitivo alto, que poderia pagar bem. Isso é diferente de atender à periferia. Por isso, uma parcela das entradas é gratuita. Yara: Nós, que somos subvencionados, temos a obrigação de fazer ingressos mais baratos. Ganhamos uma grana para montar a peça. Agora, ser gratuito não é sinônimo de ser legal. Em um Centro Educacional Unificado (CEU), em São Paulo, a pessoa que queria ir à peça tinha que dar o nome. Caso faltasse sem justificativa, não ganharia mais ingresso naquele ano. Para haver gratuidade, é preciso ter comprometimento e dar valor à arte. ‘Contrações’ sugere o retorno a alguns temas abordados nas outras montagens, como as relações humanas, a dominação e o amor. A peça veio coroar a trajetória de vocês? Yara: ‘Contrações’ é a peça mais política que fizemos até então. Nós escancaramos várias portas com ela. Em todos os locais em que nos apresentamos, o público diz: “Como é urgente que se fale disso”. Quando pedimos para ler o texto, a gente já sabia que era ele pelas críticas e sinopses. É um texto fundamental que se aproveita dos silêncios e do gestual para discutir a questão feminina. ‘Contrações’ nos faz pensar como a mulher transita entre a vida pessoal e a profissional. Por isso, o prêmio APCA que a Débora e eu ganhamos coroa o trabalho do grupo. O movimento artístico da peça se encerra em nós. É como se pensassem: “Não tem APCA para o grupo? Então vamos dar para essas atrizes” (risos). Gabriel: Com o texto do Mike Bartlett, continuamos a abordar questões como as relações existenciais e de dominação. Em ‘Serpente’, elas são pelo sexo. Em ‘Continente Negro’, são pelos relacionamentos afetivos. Em ‘O Amor e Outros Estranhos Rumores’, são pelas obsessões e neuroses. Em ‘Contrações’, elas 12 | www.voxobjetiva.com.br

migram para o trabalho – uma discussão extremamente contemporânea. Débora: Nesse texto, as relações acabam se tornando mais políticas – algo presente, inclusive, na concepção de arte da própria companhia. Em ‘Contrações’, a gente teve um retorno maior para aquilo que nós queremos fazer no teatro. O trabalho é uma resposta à seguinte questão: “A gente faz arte pra quê?”. Vocês já começaram a ‘flertar’ com outro texto? Pensam em buscar na arte mineira a matéria-prima para uma futura peça? Débora: Sempre estamos voltando a Minas. É nosso sangue, nossa essência! Os artistas mineiros sempre vão estar conosco. É mais forte do que a gente (risos)! Gabriel: Minas e Bahia são o Brasil profundo. O artista mineiro tem um envolvimento quase subliminar com a arte. E a nossa relação com Minas Gerais nunca acabou. A Yara saiu de Minas Gerais com uma carreira estabelecida. A Débora e eu consolidamos a nossa lá fora. Mas há uma identificação com os artistas daqui. É inegável! Yara: E eles são bons também. Se a gente conhece, gosta, admira e confia neles, por que não vamos trazê-los para trabalhar conosco? A gente não é fechado! Tivemos o Fábio Namatame como figurinista, o Fabio Retti como iluminador, o Morris Picciotto na trilha sonora,... Nenhum deles é mineiro. Agora, quando você forma um grupo artístico, há algo familiar nisso. E a confiança é fundamental. Fazer teatro e andar com teatro pelo Brasil é um negócio que exige uma ligação entre famílias. A Débora tem a filha dela – a Nina –, e nós precisamos que ela esteja conosco. Da mesma forma, os meus filhos estiveram comigo, e o Gabriel tem o Artur por perto. Gabriel: Quanto ao futuro, ainda não tivemos uma ideia dos próximos artistas com os quais iremos trabalhar, mas cada vez me encanto mais com o Milton Nascimento. Ele é um revolucionário. Com o Clube da Esquina, o Milton trouxe batidas de tribos africanas que vieram só para Minas. Yara: O Milton é uma entidade! Vi uma apresentação dele com o ‘Tio Vânia’, e a impressão foi de que eu estava de frente para algo além do visível. Ele é imantado! E não é que eu gostei desse negócio do Milton! (risos).


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