Reportagem Vox 53 - Espionagem

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Reprodução

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Escândalos de monitoramento de informações desestabilizam relações diplomáticas e colocam em xeque soberania de nações e segurança de usuários da internet André Martins e Lucas Alvarenga

Uma denúncia quase deixou a presidente Dilma sem argumentos. No dia 4 de novembro passado, a imprensa paulista escancarou a existência de um possível monitoramento da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) desde 2003. Os alvos foram diplomatas russos, iranianos, iraquianos e norte-americanos em serviço no país. A notícia veio a calhar para os Estados Unidos, sobretudo após virem à tona as informações de que o Brasil é a segunda nação mais espionada pela maior economia do mundo, ficando atrás somente dos próprios Estados Unidos. Mas, afinal, teria o governo brasileiro cometido um ato ilícito? “Quando você acha que existem espiões de potências estrangeiras atuando no Brasil, você deixa de espionar? Não. Você faz a contraespionagem”, declarou o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. A frase legitimava mais um ato da Abin. Em julho deste ano, a agência assumiu oficialmente que monitora as redes sociais para evitar novos protestos, como os que tomaram as ruas do país durante a Copa das Confederações. Com a identidade preservada, um diplomata com vivência na Organização das Nações Unidas (ONU) considera a espionagem brasileira uma mera ‘bisbilhotice’. Para ele, a inteligência do país busca informações econômicas e políticas de nações cuja postura gera certa desconfiança, como a Rússia. “O Brasil não consegue sequer monitorar as redes de telefonia celular em território nacional. Imagine as redes de grandes provedores, como a do Google!”, provoca. Para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), não houve nada de ilegal no monitoramento da Abin. Independentemente dos métodos empregados, a coleta de dados é comum no mundo globalizado. No 16 | www.voxobjetiva.com.br

entanto, nem todo monitoramento é considerado espionagem. “Informação é essencial aos governos. Você pode coletá-la por meio de pesquisas, dados comerciais e militares e resultados de eleições. Isso é normal. Mas quando essa coleta é feita de forma ilegal, falamos de espionagem, que pressupõe roubo de escutas telefônicas, monitoramento físico ou remoto de computadores e suborno”, explica Jorge Lasmar, coordenador do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

O começo No dia 20 de maio de 2013, Washington começou a empreender uma verdadeira caçada a Edward Snowden, responsável por revelar ao mundo os pormenores da espionagem norte-americana. Até o governo russo ter aceitado o pedido de asilo temporário do ex-técnico de segurança da Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos, Snowden permaneceu acuado por 40 longos dias em área de trânsito, nas pro-


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Sucesso mundial, a série Homeland retrata a espionagem da agente da CIA Carrie Mathison (Clair Danes) contra um prisioneiro de guerra americano suspeito de colaborar com o grupo terrorista Al-Qaeda

Mesmo com a tradição americana em espionagem, engana-se quem confere aos americanos o título de inventores da ‘arte da bisbilhotice’. Segundo Lasmar, doutor em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Sciences, a espionagem faz parte da história da civilização. “Há registros dos egípcios fazendo espionagem; dos assírios usando de imunidade diplomática; de espiões russos enviados por Pedro, ‘O Grande’, antes de invasões a outras nações; e do cardeal Richelieu, no século XVI, que montava a estrutura de informação da França”, enumera.

Álibi Mais recentemente, os atentados ao World Trade Center, em Nova Iorque, e ao Pentágono, em Washington, fizeram do dia 11 de setembro de 2001 uma sombra que até hoje povoa os Estados Unidos. O maior ataque terrorista da história comoveu pessoas de diferentes continentes e deu ao governo Bush uma justificativa para praticar a espionagem em todo o mundo. A principal delas: a implacável busca por Osama Bin Laden, líder e fundador da Al-Qaeda – grupo que assumiu a autoria dos atentados.

ximidades do principal aeroporto de Moscou. A meio mundo de distância, ele acompanhava as investidas americanas para tê-lo de volta. São claras as razões para as autoridades estadunidenses se preocuparem em colocar as mãos em Snowden o mais rápido possível. Por intermédio dele, informações de vigilância a governos, como do Brasil e da Alemanha, vêm vazando na mídia e desestabilizando relações diplomáticas. A essa altura, talvez só o ex-analista de inteligência e Washington saibam o real potencial de dano da divulgação das informações vazadas – e que, possivelmente, ainda estão por vazar. Antes de esse escândalo envolvendo a CIA vir à tona, a série americana Homeland revelava ao mundo os mecanismos e meandros da espionagem praticada pela inteligência dos Estados Unidos. A obra narra o monitoramento realizado pela agente Carrie Mathison (Claire Danes) ao ex-fuzileiro de guerra Nicholas Brody (Damian Lewis), convertido ao Islã e suspeito de colaborar com o grupo terrorista Al-Qaeda.

Imersa numa crise psicológica e sociológica sem precedentes, a sociedade americana permitiu que o governo flexibilizasse os direitos individuais logo após os ataques, por meio do Ato Patriota, que retirava garantias constitucionais dos cidadãos. “Com o ato, foi criada a desculpa para violar, sempre que preciso, a privacidade e a liberdade individuais. É aquela ideia de onde passa um boi, passa uma boiada”, ilustra Diogo Costa, professor de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais em Minas Gerais (Ibmec-MG). Para o diplomata ouvido pela Vox, esse momento de fragilidade da sociedade americana gera certa dubiedade, antes perceptível durante as guerras da Coreia e do Vietnã. “Internamente os americanos condenam o governo, mas se aliam a ele em qualquer episódio internacional. Além disso, a sociedade americana se vê hoje em um estado policial que a agrada. Afinal, isso traz uma segurança interna pessoal imensurável”, avalia o relações internacionais. Logo no primeiro mandato como presidente, Obama suspendeu o habeas-corpus, sob a desculpa de que | 17


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suspeitos de terrorismo deveriam ser detidos indefinidamente, mesmo sem julgamento. Para Diogo Costa, que também é mestre em Teoria Política pela Columbia University, foi esse estado de pânico que solidificou a permanente vigilância americana. “Agora, com a espionagem, o que vemos é um inchaço da capacidade do Estado de violar a privacidade de seus cidadãos e de outros mundo afora”, atesta. Se o medo chancelou avanços na espionagem americana, o que faz o Brasil ser rotineiramente monitorado? A postura brasileira contrária aos interesses estadunidenses no Conselho de Segurança da ONU e a relação do governo Lula com inimigos dos Estados Unidos tornaram o Brasil uma incógnita, como garantiu o diplomata. “Na América do Sul, Lula se alinhou com Venezuela e Equador e se colocou como protetor de Evo Morales. O governo firmou com o Irã um laço diplomático questionável, inclusive dentro do Itamaraty, na época em que se discutia o enriquecimento de urânio feito por lá”. Embora não seja propalado, o Brasil tem problemas com o terrorismo, mas as pontuais ocorrências não justificam a atitude espiã dos Estados Unidos. Para Lasmar, o país foi alvo de espionagem por questões econômicas. “É difícil não pensar que esse monitoramento vise interesses sobre o pré-sal e o programa nuclear brasileiro”. Além do grampo no celular da presidente, a Petrobrás e o Ministério de Minas e Energia tiveram dados acessados. Ironicamente o escândalo estourou durante o anúncio da descoberta do valioso e promissor Campo de Libra. Como efeito cascata, as denúncias provocam uma desconfiança generalizada no mundo e dão provas da ‘erosão da liderança norte-americana’. Ainda assim, Lasmar acredita que as denúncias sejam incapazes de ameaçar a soberania estadunidense em curto prazo. “Antes de estourar esse escândalo, alguns países tentaram criar uma convenção mundial sobre telecomunicações e uso da internet, mas o processo foi barrado. Os Estados Unidos e a União Europeia não apoiaram”, lembra. Ainda que Brasil e Alemanha hasteiem bandeiras contra os excessos praticados na rede, uma regulamentação em nível internacional vai encontrar forte resistência, como entende o docente.

Retratação As animosidades diplomáticas começaram após a publicação, em “O Globo”, de que o Brasil vinha sendo alvo da CIA e da Agência Americana de Segurança Na18 | www.voxobjetiva.com.br

cional (NSA). O governo brasileiro exigiu uma resposta de Obama, que, em nota, apenas lamentou o fato e se comprometeu a solicitar uma revisão dos métodos empregados pela inteligência americana. No calor da situação, Dilma cancelou uma visita aos Estados Unidos marcada para setembro. Pouco antes, ocorreu o encontro dos países-membros do G20, grupo das 19 maiores economias mundiais mais a União Europeia. Na ocasião, a presidente deu um ultimato a Obama: “Eu quero saber tudo em relação ao Brasil. Tudo”, enfatizou Dilma na fria capital russa. Lasmar salienta que a postura da presidente foi mais uma resposta à sociedade brasileira do que uma ameaça ao governo norte-americano. “O programa Ciência sem Fronteiras continua enviando estudantes para os


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Estados Unidos, e os acordos de cooperação bilateral foram mantidos. Se o Brasil quisesse adotar uma medida realmente dura, poderia, por exemplo, ter proibido a participação de empresas americanas nos leilões para a exploração do pré-sal”, atenta o docente.

Crédito: Roberto Stuckert Filho PR

Se o Brasil não retaliou os Estados Unidos, a Alemanha – tradicional parceira comercial norte-americana e principal economia do Velho Continente – pode fazer diferente. A chanceler alemã Ângela Merkel reconheceu que o comércio entre os dois países pode ser revisto. A mandatária vinha sendo criticada, em seu país, por não ter sido mais dura diante das denúncias de que havia sido espionada. Washington negou que esteja praticando ou venha a praticar espionagem contra a Alemanha. No entanto, não ficou claro se houve o monitoramento.

Fator tecnológico A ‘novela’ sobre as denúncias de espionagem dos Estados Unidos ganhou um novo capítulo com a divulgação da contraespionagem brasileira, realizada durante os governos petistas. Embora se trate de um mero monitoramento, a atitude da Abin pode implicar a perda de uma importante ‘cartada moral’. “Quando Dilma se levanta como uma das grandes vozes por uma regulamentação do uso da internet e das telecomunicações, ela está levantando uma bandeira moral. O Brasil não poderia ter telhado de vidro”, critica Costa. O professor do Ibmec-MG diferencia as ações de monitoramento americanas das brasileira. “A inteligência brasileira faz uma coisa que parece ser mais focada. Ela busca um alvo. Já os Estados Unidos fazem uma espionagem preventiva. Saem espionando todo o mundo. Se eles tiverem alguma desconfiança de alguém, já têm posse da informação”, esclarece. Se o limite da espionagem passa pela tecnologia desde Marconi, inventor do telégrafo sem fio, hoje o mundo assiste ao ápice desse momento. A internet revolucionou o modo como a informação é armazenada e trouxe novos desafios para os serviços de inteligência mundo afora. Os avanços tecnológicos permitiram aos espiões invadir sistemas para descobrir dados sigilosos, algo comum atualmente. Mas, se todos estão mais vulneráveis, qual a saída para a espionagem? A questão não é simples, como ressalta Patrick Tracanelli, especialista em segurança da informação. O fato de os servidores estarem em território brasileiro poderia diminuir a exposição dos dados de brasileiros à mira jurídica dos Estados Unidos. Afinal, os servidores estão lá, e as empresas responsáveis pelas informações estão submetidas às leis americanas. Além disso, seria evitada a sobrecarga de vias, e a qualidade do acesso seria melhorada. Outras questões jogam contra a vinda de servidores para o Brasil. “As empresas avaliam custos e benefícios para isso. E sob o ponto de vista de quem invade os sistemas de segurança, trazer esses dados para servidores nacionais não vai melhorar em nada a segurança da informação”, atesta Tracanelli.

A presidente Dilma Rousseff e a chanceler alemã Angela Merkel tiveram os telefones celulares grampeados pela inteligência americana | 19


Arquivo pessoal

Tracanelli, o “hacker do bem” Ele viola sistemas, descobre falhas, rouba informações e, como se não bastasse, eventualmente expõe seus ‘feitos’ a quem possa interessar. Esse é o ganha-pão de Patrick Tracanelli. Com essas poucas informações, ele pode até parecer a pior espécie de internauta que habita o mundo virtual, mas as aparências enganam. Especialista em Unix pela Universidade da Califórnia e em Gestão de Segurança da Informação pela Universidade Fumec, Tracanelli usa seus conhecimentos para evitar que pessoas mal-intencionadas causem prejuízos na grande rede. O fundador da FreeBSD Brasil Ltda., empresa especializada em segurança da informação, conversou com a Vox Objetiva sobre esse trabalho e a necessidade de proteção virtual em uma era em que informação tornou-se, mais do que nunca, sinônimo de poder. O que faz um “hacker do bem”? O termo ‘hacker’ vem do verbo ‘to hack’, que pode ser traduzido como ‘modificar’, ‘alterar’. Um hacker é um curioso em sua essência. Todos os hackers são do bem. Os hackers do mal são marcados por uma distorção social, ética e moral. Esses são chamados “crackers”, expressão que vem do inglês “to crack”, os que tendem a quebrar, destruir. Se buscarmos os especialistas do bem, que focam em combater, mitigar ou evitar ação dos crackers, vamos encontrar especialidades mais bem definidas. Destacam-se os Security Researchers e os Penetration Testers (Pen Testers). O primeiro grupo é composto por pesquisadores que investem tempo estudando e descobrindo como os sistemas funcionam e buscando identificar pontos fortes e fracos sobre a segurança deles. Já os Pen Testers atuam como crackers, mas não causam danos e agem de forma ética. São contratados por empresas que visam o aperfeiçoamento de seus sistemas. Você testa sistemas de órgãos públicos? Como tem sido a procura após os escândalos envolvendo a espionagem americana? Sim, temos testado agências de inteligência ligadas

ao governo federal, sistemas e agências de interesse militar, tribunais de justiça, centros estaduais de processamento de dados e órgãos mais específicos associados a serviços públicos. Com os recentes escândalos de espionagem, a iniciativa pública tem se movimentado mais. Temos percebido também o interesse de órgãos públicos em capacitar e treinar seus servidores. A saída contra a espionagem realizada pelos governos está em organizações da sociedade civil? Está na seriedade com que empresas e o próprio governo tratam a segurança da informação, as melhores práticas e a educação interna de seus profissionais e usuários de internet. As falhas e vulnerabilidades são conhecidas; as soluções também. Então, por que governos e empresas continuam tão suscetíveis a esses ataques? Por falta de cultura de segurança da informação. Só depois dessa etapa é que a sociedade civil vai poder olhar mais a fundo as causas-raiz e os problemas mais perigosos. O que o cidadão comum pode fazer para garantir a privacidade na rede? Ele não pode fazer nada para garantir a privacidade, mas pode fazer muito para dificultar e minimizar os riscos. O Comitê Gestor da Internet no Brasil tem uma excelente cartilha de fácil e agradável leitura que pode ser acessada no site www.cartilha.cert.br. Colocar em prática as dicas dessa cartilha melhoraria muito os níveis de responsabilidade do próprio usuário. Cultura e educação devem vir em primeiro lugar. Nesse momento, este deveria ser o foco do cidadão comum: procurar se educar.


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