Reportagem Vox 55 - Carnaval em BH

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Felipe Pereira

Um grande palco pede um grande carnaval Após duas décadas, a popular festa pagã retorna à Afonso Pena para a alegria e ressalvas de foliões e sambistas da capital mineira Texto e fotos de Lucas Alvarenga É por pouco tempo. Mas esse período é suficiente para que o trabalhador se despeça da rotina e dê um alô ao prazer; para que o pobre e marginalizado se vista como manda a nobreza e o rico reverencie aquele reinado; para que a avenida das manifestações políticas se transforme em uma passarela de emoções e de beleza. O carnaval inverte situações cotidianas e reordena espaços. A rua ganha significado diferente na vida do brasileiro. De banalizada e violenta, cada via tem um papel num cenário que sempre encanta. E o que era público, torna-se uma extensão de cada lar. Quem dirá na vida do belo-horizontino, que, ano após ano, redescobre o prazer de promover ocupações públicas em nome da alegria.

“Os blocos caricatos e as escolas de samba são os grandes guerreiros do carnaval. Esses grupos estão na batalha há anos, independentemente da época ou de a população aderir ou não à festa”, admite o Luiz Felipe Barreto, diretor de Operações e Eventos da Belotur. O órgão responsável pelo turismo na cidade também é o organizador do carnaval 2014. O evento promete ser grandioso, segundo os organizadores. Serão R$ 5 milhões investidos, sendo R$ 3,5 milhões dos cofres municipais e o restante da iniciativa privada. Além disso, é claro, haverá o retorno dos desfiles de blocos caricatos e escolas de samba para a Afonso Pena.

Faz 23 anos que o cidadão da capital mineira acompanhou o último desfile de carnaval na avenida de todos os belo-horizontinos: a Afonso Pena. Pouco antes disso, a cidade ostentava o título de segunda melhor folia do país, atrás apenas do Rio de Janeiro. Eram as décadas de 70 e 80, quando os blocos caricatos, as marchinhas e as escolas de samba tomavam juntos a área central da cidade. Aos poucos, um espetáculo de cores e sons foi sendo abafado pelo tempo e por uma sequência de administrações municipais.

Reivindicação antiga dos sambistas da capital mineira, a volta ao palco histórico é festejada com ressalvas. O prestígio de desfilar no palco das manifestações sociais mineiras na segunda e terça-feira de carnaval minimiza a perda de recursos por parte das escolas. No ano passado, a prefeitura distribuiu R$ 37,5 mil para cada uma das seis escolas. Este ano, a verba será de R$ 25 mil, mesmo com o crescimento de 43% na arrecadação de recursos para a folia.

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Da esquerda para a direita: Mandruvá, Lulu do Império, Graveto e a Corte Momesca do carnaval de Belo Horizonte, eleita em 2014

“O carnaval de Belo Horizonte virou símbolo de resistência. Os recursos são escassos e sempre chegam atrasados”, cutuca José Eustáquio da Silva, o ‘Mandruvá’, intérprete da escola de samba Cidade Jardim. Na conta de Cremildo de Souza, o ‘Graveto’, o dinheiro parece ainda menor. “Um quilo de pluma custa R$ 1,5 mil. Um metro de pano sai por R$ 12. Uma folha de um metro quadrado de acetato não se compra por menos de R$ 30”, quantifica o carnavalesco da Cidade Jardim. Carioca, Graveto veio para Minas depois de ganhar vários carnavais pela Portela e pela Beija-Flor no Rio de Janeiro. O desejo dele é ver os entes envolvidos com a folia na cidade valorizados. “Aqui eles pagam R$ 140 mil para Ivete Sangalo, R$ 60 mil para um trio elétrico e R$ 25 mil para vestir 800 integrantes de uma escola como a Cidade Jardim. Assim as agremiações da capital vão acabar, mais cedo ou mais tarde”, lamenta. O sonho de ‘Graveto’ é encampado por outros artistas, como Lulu do Império. O intérprete da escola de samba Canto da Alvorada tentou levar a ‘Bateria Show Nota 10’, da qual Lulu faz parte, para um dos 12 palcos deste car-

naval. No entanto, a tentativa de estar entre as 70 atrações da folia em Beagá foi em vão. “Teremos sim atrações locais, mas o foco é a Mart’nália, o Diogo Nogueira e outros músicos de fora”, alfineta o puxador de samba. Ao gerenciar o carnaval, a ideia da Belotur é descentralizar a folia. Por isso, haverá palcos em cada regional, em especial na Savassi e na Pampulha. Esses palcos são considerados estratégicos, segundo Barreto, por servirem de ponto de encontro de foliões. “A iniciativa do município foi criar um carnaval 360º, capaz de envolver toda a cidade e tornar mais fácil a limpeza urbana e a prestação de serviços ao cidadão. Dessa forma, trabalhamos com um público proporcional à capacidade do espaço”, aclara o executivo. Sambista da velha-guarda da capital, Wilton Humberto Alves, o ‘Wilton Batata’, participou durante anos da organização do carnaval na cidade. Sucinto, o músico aposta em uma solução popular, assim como o carnaval: o empoderamento das comunidades e das entidades de bairro onde estão as escolas de samba. “A tarefa do poder público é criar mecanismos | 39


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para que o povo faça a festa e não para que ele a administre”, reflete. No entendimento de quem já fazia a festa acontecer em Belo Horizonte, alternativas existem. Uma delas é defendida por Mandruvá e Graveto: a maior participação da iniciativa privada no carnaval da cidade. Segundo os sambistas, algumas empresas sondaram para patrocinar a folia na cidade durante os últimos anos, mas a festa ainda não é suficientemente atrativa. Mesmo assim, Mandruvá não perde a esperança. “Eu não vou morrer sem ver o carnaval de Beagá com uma multinacional apoiando”.

Quadra da Escola de Samba Cidade Jardim (acima) e a rainha do carnaval de Beagá em 2014 (abaixo)

O carnavalesco da Cidade Jardim levanta outra bandeira: conceber uma federação vinculada à Secretaria de Cultura, retirando da Belotur a competência pela organização do desfile das escolas de samba. “De que adianta dar um terno de linho número 48, sem cinto, para alguém que veste 40? Ele vai ter que segurar as calças”, ilustra o sambista ao se referir à volta do carnaval para a Afonso Pena, mas sem a organização desejada pelas escolas. Única escola de samba da capital com quadra própria, a Cidade Jardim realiza eventos toda semana no barracão. Deles participam membros do Conjunto Santa Maria, onde fica a agremiação, e pessoas vindas de outras áreas – ou do asfalto, como Graveto prefere chamar. “Os eventos na escola movimentam dinheiro, ajudam a gente a fazer o carnaval mais bonito e a manter 50 pessoas trabalhando conosco. Além disso, o pessoal que vem do asfalto traz um respeito enorme pelo samba, que é a nossa raiz”, esmiúça o carnavalesco. Se a ida de foliões da Zona Sul para a escola ajuda a sustentá-la, por outro lado, nem sempre esse movimento acontece em mão dupla. “Não creio que seja ruim esse processo de elitização do samba, saindo da Zona Sul e indo para o morro. Porém, deve haver uma inversão comum aos dois lados. A Zona Sul pode subir o morro, mas o morro não pode ir à Zona Sul?”, questiona o produtor de eventos Wallison Oliveira. Oliveira vê com bons olhos o esforço da prefeitura para organizar a folia na cidade e oferecer o mínimo de infraestrutura para que a festa transcorra sem problemas. Mas, em tom de alerta, o produtor de eventos chama a atenção para um detalhe da organização: “O carnaval não pode ser tratado somente como um ponto da agenda anual da prefeitura. É necessário fazer da festa um atrativo da cidade. Afinal de contas, uma cidade com mais de 2 milhões de habitantes merece

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uma festa adequada para o evento de maior expressão cultural do país”. Os esforços dos organizadores do carnaval também foram observados por Rafael Barros com algumas ressalvas. O ativista cultural, folião e responsável pelo bloco ‘Filhos de Tcha Tcha’ vê um trabalho mais efetivo para a organização da festa, embora defenda que o processo não tenha partido de uma construção conjunta com a cidade. “Não que não haja conversa com o poder público. Mas a construção não foi desde sempre partida do zero. A prefeitura pensou em um modelo de carnaval e o levou para a cidade”, argumenta. De fato, o carnaval organizado pela Belotur foi logisticamente estruturado em quatro pilares: a eleição da corte momesca, os desfiles de escolas de samba e blocos caricatos, os blocos de rua e os palcos e as estações do samba. Com isso, a empresa de turismo espera mais de um milhão de foliões nas ruas da capital mineira e cerca de 200 blocos, ciente de que haverá demanda – sobretudo após eventos, como a ‘Noite Branca’ e a ‘Virada Cultural’. Até o momento, 137 blocos se inscreveram no site da Belotur. No ano passado, apenas 52 blocos preencheram o formulário disponibilizado pelo órgão municipal.

Blocos tocando na Praça da Estação (acima) e o destaque da escola de samba Canto da Alvorada, campeã de 2013 (abaixo)

Talvez mais espontânea e atenta à cultura local, a festa da inversão arrancasse ainda mais sorrisos de Rafael Barros, Wallison Oliveira, Mandruvá, Lulu do Império e Wilton Batata. Se o fizesse, a administração local ia atingir o objetivo defendido por Barreto de ‘realizar o melhor carnaval possível, com segurança e alegria’, desenvolvendo neste ano uma expertise para o futuro. Assim, quem sabe a cidade poderia receber turistas de todos os cantos, movimentando o setor hoteleiro e gastronômico? Pessoas como Graveto ficariam felizes e se sentiriam acolhidas na cidade, que tenta recuperar o posto que lhe é de direito: de uma cidade-foliã.

Carlos Hely

Diante do histórico recente de manifestações populares na cidade, Barros interroga se a escolha por um carnaval em que a relação palco-público prevaleça foi a melhor opção. “A opção da Belotur foi por estruturar de forma muito mais organizada, mas criando um carnaval grandioso e espetacular. Gosto da ideia de um carnaval descentralizado; é um ponto positivo do poder público. No entanto, seria interessante se abrissem mais espaço para a espontaneidade, para a experiência festiva de rua, da interação com as pessoas, de grupos comunitários. Isso seria fundamental para ir fortalecendo os blocos caricatos tradicionais e as escolas de samba em um projeto de longo prazo”, discorre o ativista cultural.

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