Reportagem Vox 57 - Haicais à brasileira

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Guilherme Bergamini

Fabrício Marques: ensaísta da obra de Paulo Leminski, um dos maiores escritores de haicais do país

Aclimatado Haicai ganha jeitinho bem brasileiro Lucas Alvarenga

Começar uma reportagem sobre haicais com um título seria um pecado. Essa forma de poema criada no Japão, durante o século XVI, abriga não mais que três versos sem rimas e 17 sílabas poéticas, divididas em cinco no primeiro verso, sete no segundo e cinco no terceiro. O haicai tradicional deve ser escrito no presente e conter também um ‘kigo’: palavra ou frase que remeta a uma estação do ano. Hoje universal, o mais famoso estilo lírico japonês só ganhou dimensão e popularidade a partir da segunda metade do século XVII, com os escritos de Matsuo Basho. Esse monge zen budista foi o responsável por aperfeiçoar o estilo e compor os haicais em apenas uma linha vertical. Mas o formalismo estético, por si só, não explica o que é um haicai. Para o escritor, professor e jornalista Leo

Cunha, o estilo seduz por sua concisão, pelo tamanho e pela grande capacidade de (e)vocação visual. A sofisticada elaboração imagética também fascina o pitanguense Maurício Guilherme Silva Júnior. Escritor, professor e jornalista, assim como o amigo de Bocaiuva/MG, Silva Júnior estreita a sua relação com os haicais clássicos a partir de pequenas coletâneas de poesia produzidas do outro lado do mundo e inspiradas na filosofia zen de contemplação das coisas. “Os haicais carregam muito do espírito oriental de observar a vida com paciência, além de discutir grandes questões da humanidade por meio de uma ironia particular”, discorre. Se hoje dois escritores mineiros e tantos outros conhecem os haicais, isso se deve em parte a Masuda Goga e a Teruko Oda. Ao imigrarem para o Brasil, os dois japone| 43


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dual de Campinas (Unicamp), Paulo Franchetti define o estilo milloriano de compor haicais. “O Millôr começou a escrever esse tipo de poesia na revista ‘O Cruzeiro’. Ele apresentava alguns tercetos de caráter satírico, cômico, lírico ou apenas espirituoso, que chamou de ‘hai-kais’. São quase sempre epigramas nos quais rimam o primeiro e o terceiro versos”. Segundo Franchetti, a proximidade do haicai milloriano com a cultura brasileira fica evidente nas inspirações do autor. “O tom coloquial e irônico do ‘hai-kai’ do Millôr o aproximava muito da poesia de Oswald de Andrade e do poema-piada criado pelo autor modernista”.

Arquivo pessoal

Mas ninguém abraçou com tanto vigor a produção de haicais no Brasil como o irreverente Paulo Leminksi. Com uma ironia peculiar, o curitibano – filho de pai polonês com mãe negra – recriou o estilo japonês de fazer haicais a partir de ‘Caprichos e Relaxos’, de 1983, até ‘O ex-estranho’, obra póstuma publicada em 1996. “O Leminski foi um grande divulgador da cultura japonesa

Maurício Guilherme e Leo Cunha: jornalistas, professores e escritores de haicais

ses trouxeram a estética estabelecida por Basho para o hemisfério sul. A herança desses autores inspirou Afrânio Peixoto a compor os primeiros haicais ‘tropicais’ em 1919. Os textos estão em ‘Trovas Populares Brasileiras’. Mas foi Guilherme de Almeida quem veio popularizar o estilo no Brasil, como esmiúça o jornalista e poeta Fabrício Marques. “Ele foi o primeiro a sistematizar uma produção brasileira de haicais entre as décadas de 30 e 40. O Guilherme aclimatou essa forma de poesia ao hemisfério sul. Diferentemente do que ocorre com o haicai japonês, ele procurou apresentar rimas internas e finais em sua obra”.

O legado de Almeida foi retomado por Millôr Fernandes décadas depois. Durante os anos 50, o jornalista se aproveitou do espaço que tinha na imprensa para promover uma segunda onda de popularização dos haicais, mas com o melhor estilo milloriano. O escritor publicou algo como “Passeio aflito; Tantos amigos. Já granito”, como se recorda Marques, fã confesso do escritor. Outro admirador da obra milloriana é o escritor pitanguense. “A poesia dele é despretensiosa e divertida. O Millôr influenciou a minha produção de haicais ao ter reestruturado a lógica do haicai clássico por meio de uma proposta mais informal: um abrasileiramento dessa literatura”, revela. Crítico de literatura e professor da Universidade Esta44 | www.voxobjetiva.com.br

Ignacio Costa


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e dos haicais. Produzir esse tipo de poesia no Brasil é uma forma de homenagear esse poeta e o legado da sua obra”, acredita Marques, autor do ensaio ‘Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski’.

dois anos resolvi selecionar alguns. Os responsáveis na editora Record gostaram muito e resolveram publicar. Ali há haicais inspirados nos clássicos japoneses e há poemas ao estilo de Millôr”, rememora Cunha.

O curitibano e sua esposa, Alice Ruiz, adotaram a filosofia zen como forma de vida. O interesse do poeta e crítico literário pela cultura japonesa o levou a conquistar, inclusive, uma faixa preta no judô. Alice, por sua vez, continua a produzir haicais com uma pegada pop e a disseminar o estilo por meio de cursos literários. “Caetano Veloso já via na obra do Leminski um ‘haicai da formação cultural brasileira’. Pudera: ele uniu o orientalismo zenista, que marcou a contracultura da segunda metade do século XX, à abordagem técnica da poesia concreta”, esclarece Franchetti.

Assim como o autor de ‘Haicais para filhos e pais’, Silva Júnior se aventurou a criar haicais. A produção literária começou como um desafio entre amigos. O pitanguense e o jornalista Frederico Alberti sempre tentaram criar uma série de coisas em parceria. Um dia, Alberti colocou no ar um site para os chamados ‘Jogos de haicais’, uma tentativa de criar poesias com temas diários. “Então vamos retomar aquela tradição millôriana dos ‘kaikais’, que são haicais mais despretensiosos?”, questionou Silva Júnior na época. O amigo aceitou o desafio, e eles começaram a ‘diversão’. “Naquela época, eu me via entrando e saindo do banho, do carro ou da sala de aula pensando em pequenas jogadas de palavras”, brinca o pitanguense, estudioso da poesia curta nacional.

Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari foram só alguns poetas concretos a estudar os haicais, como lembram Cunha e Marques. Para o escritor de Bocaiuva e autor de ‘Haicais para filhos Cada dia, um determinava e pais’ (2013), o interesse O livro de Leo Cunha foi o vencedor da categoria ‘infantil’ do o tema a ser composto. Mas contemporâneo por essa Prêmio da Biblioteca Nacional (Foto Reprodução) a ideia ganhou força com forma de poesia japonea retomada do projeto, não sa tornou o gênero respeitável em vez de somente uma mais no site, mas no facebook. “Por lá, a reação é em temmera excentricidade. A admiração pelos haicais no Brapo real, e o impacto nos pareceu ainda mais interessante”. sil é grande e chega a ponto de o baiano Goulart Gomes Alberti já transformou alguns desses haicais em imagens, se inspirar em Oswald de Andrade e deglutinar a poesia devido à vocação visual desse tipo de poesia. A ideia da oriental, criando o Movimento Poetrix, em 1999. Por dupla é selecionar os poemas divulgados e publicar um meio dessa corrente lírica, chegou-se a um haicai com livro com os ‘jogos de haicais’. título e sem as exigências formais que tornam o estilo quase dialético, segundo Marques: com uma tese, uma O que leva esses escritores a criar haicais, sejam eles antítese e uma síntese. orientais, sejam ‘tropicais’? Para Cunha, o estilo está ‘antenado’ com o espírito dessa época: de busca por conciO fascínio brasileiro pelos haicais levou Leo Cunha a são, urgência, leveza e visibilidade. Silva Júnior vê os haiescrever ‘Haicais para filhos e pais’. O livro deu ao escais como formas de discurso universal. “Os haicais são critor mineiro o Prêmio da Biblioteca Nacional, na catemuito oníricos. Eles falam dos nossos sonhos e do nosso goria ‘literatura infantil’. “Eu não tenho o hábito de criar inconsciente. Essa poesia consegue construir, inclusive, haicais ligados às estações do ano – a forma mais trapequenas epifanias. Não tem como não se sentir tocado dicional de compô-los. Sempre compunha algo ligado a diante de uma criação imagética tão complexa e sofisticatemas urbanos, às relações humanas e à minha vivência. da”, acredita. Marques sintetiza essa sensação. “O haicai Desde que a minha filha nasceu, há 14 anos, escrevi diajuda a dizer o máximo com o mínimo e a pensar em coiversos haicais a partir dessa experiência de ser pai. Há sas amplas e profundas. Por isso, ele é universal”. | 45


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