Neuromancer
desesperanรงa do futuro Fernando Longhi
Neuromancer: desesperança do futuro Autor: Fernando Longhi Pereira da Silva Orientadora: Elane Ribeiro Peixoto Este documento apresenta o Trabalho Final da disciplina Ensaio Teórico da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Brasília, 2017 1. conceito 2. cidade 3.espaço urbano 4. literatura 5. cyberpunk 6. ficção científica 7. utopia 8. distopia.
NEUROMANCER desesperanรงa do futuro
RESUMO A ficção científica oferece uma coleção de fantasias que alimentam nossa imaginação e nos transportam para mundos desconhecidos inspirados em nossa realidade. Este trabalho discute e problematiza questões sobre as representações urbanas distópicas presentes em um dos expoentes da literatura da ficção científica, Neuromancer, escrito por William Gibson e publicado em 1984. A pesquisa apoia-se em dois eixos principais: o primeiro refere-se à compreensão do cenário histórico em que Neuromancer é escrito, assim como a conceituação de seu gênero, apresentação de seu autor e do livro; a segunda apoia-se na obra de Gibson como campo empírico de pesquisa, identificando e explorando os três tipos de cidades presentes em sua narrativa: a virtual, a terrestre e a orbital. A parte final procura fazer um paralelo entre o entendimento das complexidades da atualidade e suas relações com os temas evocados pela obra. Como resultado, levanta-se a possibilidade desta distopia cyberpunk ser o espelho de um futuro presente, assimilando medos e anseios de sua época. Palavras-chave: conceito, cidade, espaço urbano, literatura, cyberpunk, ficção científica, utopia, distopia.
ABSTRACT Science-fiction offers a collection of fantasies that feed our imagination and transport us to unknown worlds inspired by reality. This work discusses and brings up the questions inhabited in urban dystopian representations in one of the exponents of sci-fi literature, Neuromancer, written by William Gibson and published in 1984. The research is based on two main axes: the first refers to the comprehension of the historic panorama in which Neuromancer was written, as well as its genre, author and book. The second is based on Gibson’s book as an empiric research field, identifying and exploring the three types of city settled in the narrative: the virtual, the terrestrial and the orbital. The final section seeks a parallel between the understanding of today’s urban complexities and its relationship with the themes evoked by the book. As a result, it is suggested that this cyberpunk dystopia is a mirror of a near future, assimilating fears and yearnings of its time. Keywords: concept, city, urban space, literature, cyberpunk, science-fiction, utopia, dystopia.
Sou grato a meus pais e minha família, à professora Elane, ao Pedro, à Maysa e ao Marcelo. Todos contribuíram imensamente para que esta aventura se concretizasse. Também agradeço às mentes brilhantes que alimentam nossa imaginação, em especial William Gibson, inspiração primordial para este trabalho.
SUMÁRIO 01 Introdução PARTE UM Neuromancer: o cyberpunk em resposta à sociedade do futuro 08 Breve cenário histórico: o terremoto tecnológico 13 Cyberpunk, movimento literário e William Gibson 20 Neuromancer: o livro PARTE DOIS 27 As pós-cidades de Neuromancer 33 Chiba City 40 Sprawl 46 O Arquipélago Orbital: Zion, Freeside e Villa Straylight Considerações Finais 60 61 63
A gêmea má da utopia O território do “não-lugar” Cyberpunk: espelho do futuro presente
68 Referências 74 Imagens
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“O futuro está aqui... olhando para nós. Tentando dar sentido à ficção que nos tornaremos” INTRODUÇÃO
“The future is there... looking back at us. Trying to make sense of the fiction we will have become.” William Gibson, em seu livro Pattern Recognition.
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empre me espantei como a força das mais numerosas fontes de informação alimentam nossa imaginação. Lembro-me que, ainda criança, bastava uma breve história contada ou um simples desenho colorido para me imergir em um mundo paralelo governado pela criatividade. Ainda hoje, mesmo com uma imaginação cerceada pelos processos educativos, sou transportado para universos singulares: uns mais íntimos, agarrados à memória; outros mais contemporâneos, ligados à espaços criados por medos e sonhos. Não são poucas as mídias que vêm à minha cabeça e me inspiram o pensamento sobre o futuro. Entre elas, encontram-se os clássicos da literatura “Admirável Mundo Novo”, “1984”, “Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas?”, os sucessos japoneses Metropolis, Akira, Ghost in the Shell, os filmes Blade Runner e Total Recall, somado às mais diversas versões sequenciais dessas obras. Todas nos transportam instantaneamente para mundos onde a tecnologia, a ciência e a máquina imperam. Encontram-se nesses títulos e trabalhos um ponto em comum: o exagero dos males da cidade do futuro (MARTINS, 2014), projetados de forma distópica. A arquitetura e o urbanismo presentes em todos esses casos não são apenas cenários onde as ações se desenrolam, mas também e frequentemente, são “personagens” importantes das tramas (BUKATMAN, 1993 apud AMARAL, 2005, p.8). Os motivos que alimentam meu interesse pelo tema comum a esses títulos referem-se ao desejo de entender as especulações sobre as cidades do futuro que extrapolam a visão profissional de arquitetos, urbanistas, sociólogos e geógrafos. As projeções feitas sobre o futuro das cidades auxiliam o entendimento de como os homens reagem aos avanços tecnológicos, expondo seus medos e apreensões. Somase a estes motivos o interesse pela literatura como um meio válido para discutir essas projeções e sentimentos sobre as cidades hipotéticas. Para tanto, este trabalho discute e problematiza questões sobre as representações urbanas distópicas, tendo no caso, as imagens literárias das cidades futuristas criadas por William Gibson no livro Neuromancer, publicado em 1984. Neuromancer é uma aclamada obra literária que estabelece o subgênero cyberpunk. É aceito como uma referência valiosa para o entendimento da interação entre a imaginação narrada, pautada na memória, expondo questões e reflexões urbanísticas e arquitetônicas que compõem paisagens da cidade do futuro (MARTINS, 2014, p.29). 2
As questões propostas para Neuromancer são muitas: correm entre pensamentos pós-modernos1 e o transumano2, apresentam complexidades socioculturais em uma abordagem “high tech, low life” – alta tecnologia, vida precária –, e abrem discussões sobre o corpo físico e o corpo virtual. Além disso, do ponto de vista da arquitetura e urbanismo, o livro fornece uma rica coleção de imagens literárias que desenham em nossas mentes edifícios, ruas e casas desconstruídos por uma estética cunhada num futuro deletério. Na obra de Gibson, as aglomerações humanas perderam suas fronteiras, cresceram infinitamente, ultrapassaram dimensões perceptíveis ao olho, invadiram o mundo virtual e foram povoadas por sociedades multiculturais. Serão elas um apanhado de cidades sui generis ou a palavra “cidade” não seria mais adequada para as designar? Assim, torna-se necessário caracterizar o urbano em Neuromancer, buscando 1 De maneira geral, o pós-modernismo pode ser considerado uma manifestação com origens na metade do século XX nos campos da filosofia, arte, arquitetura e crítica que marcaria o fim do modernismo. É um termo que, segundo o crítico e teórico Fredric Jameson (1990), ainda permanece conflituoso, contraditório e pouco compreendido. No entanto, o emprego deste conceito neste trabalho baseia-se no trabalho de Jameson (1990) devido suas correlações com o gênero literário em estudo e a sua data de publicação, divulgado no mesmo ano de Neuromancer, em 1984. Em síntese, o pós-modernismo seria uma periodização “cuja principal função é correlacionar a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica – chamada, frequentemente e eufemisticamente, de modernização, sociedade pós-industrial ou sociedade de consumo, sociedade da mídia ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional” (JAMESON, 1985, p. 17). Jameson (1990) caracteriza a literatura cyberpunk, em especial a de William Gibson, como uma expressão literal do pósmodernismo e, se não, de um capitalismo tardio em um mundo onde corporações transnacionais configuram uma paranoia global que assiste a rápidos fluxos de pessoas, produtos, informações e poder. Soma-se a isso o cenário pós-moderno evocado pelo cyberpunk explorado por Martins (2014) como um mundo desgovernado, subordinado a uma desordem dos sistemas político, econômico e moral. Um conjunto de ideias que confrontam ideologias e temáticas a respeito da natureza humana, progresso social, moralidade, verdade e razão. O autor, em sua definição, cita David Harvey quando alega que esse espaço caótico é oriundo de uma desconstrução desorientada que produz rupturas em nossas maneiras de pensar a forma e o espaço. Isto é, nessa concepção, o contexto pós-moderno da literatura cyberpunk estaria marcado pela fragmentação e efemeridade, caos e desordem “mesmo que dentro de uma ordem aparente” (MARTINS, 2014, p. 30). 2 O transumanismo é um termo cunhado por Aldous Huxley em seu romance distópico “Admirável Mundo Novo” (1932). Segundo De Jesus (2016), Natasha Vira-More e Max More (2013), atualmente os principais teóricos do termo, designa a evolução do homem e de suas capacidades psicológicas e intelectivas por meio do desenvolvimento tecnocientífico. Assim, pressupõe-se que a espécie humana possa habitar ambientes virtuais, assim como expandir e transferir a mente para componentes digitais. Também é discutida a hipótese da singularidade tecnológica, o desenvolvimento da tecnologia e da ciência seria alavancado pela própria inteligência artificial (DE JESUS, 2016, p.63). 3
reconhecer seus elementos, tipos e diferenças. Pode-se ainda indagar sobre os temores do livro de Gibson – lembrando que são gestados no presente de sua escrita e, posteriormente, lançados de forma exponencial para o futuro - estariam eles ainda presentes? A metodologia adotada para a pesquisa apoia-se em dois eixos principais: o primeiro refere-se à compreensão do cenário histórico em que Neuromancer é escrito, assim como a conceituação de seu gênero, apresentação de seu autor e do livro; a segunda apoia-se na obra de Gibson como campo empírico de pesquisa, identificando e explorando os três tipos de cidades presentes em sua narrativa: a virtual, a terrestre e a orbital. Nessa lógica, este ensaio divide-se em dois capítulos. O primeiro apresenta um histórico dos anos finais do século XX baseado na leitura de Eric Hobsbawn (1995) e em artigos e entrevistas que apresentam o escritor William Gibson. Em sequência, apresenta-se o movimento cyberpunk, buscando defini-lo segundo os debates de Adriana Amaral publicados no livro “Visões perigosas: uma arque-genealogia do cyberpunk” (2006). Integram a bibliografia fontes valiosas encontradas na Universidade de Brasília para complementar conceitos fundamentais aqui utilizados. Entre eles, a dissertação de mestrado de Allan Mendes de Jesus (2016), cujo foco é a relação entre a aceleração tecnológica e seu impacto social, destacando como os elementos de realidade e ficção participam nos trabalhos de design, abordando temas importantes como design e narrativa, distopia e cyberpunk. Já Diôgo Lemes Martins (2014), mestre pelo Departamento de Sociologia, constrói seu argumento sobre um viés mais urbanístico, explora como a ficção cyberpunk estabelece a cidade distópica enquanto espelho de experiências pessoais e ambientes sociais. O segundo capítulo dedica-se à exploração de Neuromancer como objeto empírico e investiga as representações urbanas da obra. Procedeu-se uma leitura criteriosa guiada pelas questões acima enunciadas, selecionando, também, excertos textuais que classificassem e caracterizassem cada uma das cidades em estudo. Os argumentos e respostas encontrados foram marcados em diferentes cores no livro, possibilitando a construção definitiva do corpus do trabalho descrito e analisado logo em seguida. 4
A parte final procura investigar Neuromancer como distopia e traçar as inquietações na narrativa ainda presentes na atualidade. A obra “Archeologies of the future: the desire called utopia and other science fictions” do crítico literário e teórico Fredric Jameson (2005) vem de encontro com o fechamento deste trabalho, pois apresenta um interessante paralelo entre o entendimento das complexidades da atualidade e suas relações com os temas evocados pela literatura cyberpunk e a distopia.
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Neuromancer: o cyberpunk em resposta Ă sociedade do futuro PARTE UM
Breve cenário histórico: o terremoto tecnológico
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nota ao leitor da 5a edição brasileira de Neuromancer (Editora Aleph) apresenta conceitos inaugurados por esse livro que passaram a fazer parte de nosso cotidiano de maneira muito familiar: biotecnologia, rede mundial de computadores, netsurfing, inteligência artificial, realidade virtual, ciberespaço. Ao fim desta mesma edição, tem-se o posfácio de Adriana Amaral (2008) “A potência do imaginário de Neuromancer nas origens da cibercultura”, a especialista enumera temas sintetizadores do livro, sendo eles o colapso do futuro, o pós-humanismo, a globalização, a orientalização do ocidente, a decadência das megalópoles e a fusão entre o sintético e o orgânico. Amaral aponta que o campo da cibercultura é indissociável da relação entre cultura e tecnologia. Deste modo, o universo de Neuromancer é carregado de imagens, descrições e sensações oriundas de uma interpretação da sociedade de sua época, apreendendo desde a “liberalização” dos costumes provenientes dos movimentos de contracultura da década de 1960 à popularização da microinformática da década de 1980. Jameson (2005) enfatiza essa leitura ao dizer que o livro estreia como um “estrondo” o cyberpunk na literatura, sendo, em suas palavras, “uma ruptura com um período que é consistente não apenas com a revolução neoconservadora e a globalização, mas também com o surgimento da fantasia comercial como um competidor generalizado e vencedor final no campo da cultura de massa”3 (JAMESON, 2005, p.93). A partir da posição dos autores cabe perguntar: Como definir o momento cultural da escritura de Neuromancer ? Talvez se possa referir a ele como o de aceleração do final do século XX, em especial, no que diz respeito às descobertas científicas e das revoluções tecnológicas. Para melhor entendê-lo, talvez seja preciso nos remeter à década de 1960 e à persistente ameaça de guerra nuclear derivada das tensões entre a União Soviética e os Estados Unidos. Esta década representou uma extensão do surto econômico da anterior movido pela revolução tecnológica. Os precedentes incluem o “terremoto tecnológico” da Era de Ouro (HOBSBAWN, 1995) que transformaria não somente a vida cotidiana, mas 3 “A general period break which is also consistent, not only with the neo-conservative revolution and globalization, but also with the rise of commercial fantasy as a generic competitor and ultimate victor in the field of mass culture” (JAMESON, 2005, p. 93). 8
também o comportamento de uma juventude mais autoconsciente e liberal, dando voz às minorias contestadoras do status quo. Pouco antes do início da década, em 1957, foi lançada a nave russa Sputnik I, e, logo depois, levando a bordo a cadela Laika, o Sputnik II. Os Estados Unidos estavam em desvantagem na corrida espacial comparados aos russos, Iuri Gagárin havia sido mandado para o espaço sideral em 1961. Porém, a supremacia russa não durou por muito tempo, sendo superada em 1969, quando Neil Armstrong proferiu sua famosa frase: “Um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade”, ao pisar em solo Lunar. A ambiciosa corrida espacial era assistida por grande parte da população planetária fascinada. A quilômetros de altura, os satélites circulavam na órbita da Terra, instrumentos tanto para espionagem militar, quanto para a disseminação de mídias televisivas, para esses objetos, o ano de 1962 é um marco, pois nessa data um satélite passou a transmitir “a programação da TV ao vivo de um lado do Atlântico para outro” (HOBSBAWN, 1995, p.226). Na mesma época em que a televisão passou a ser apreciada nos grandes centros urbanos, o rádio portátil, vindo do Japão, ganhou as ruas, difundindo a cultura pop. A presença de mercadorias nipônicas no ocidente denunciava o crescimento econômico desse país, que chegava à incrível marca de 12% ao ano (HOBSBAWN, 1995). Não apenas obtendo êxito no ramo de produtos eletrônicos, a indústria automobilística japonesa também estava cada vez mais presente, em especial pela diminuição do tamanho de motores e aumento da eficiência de seus veículos. A economia mundial a partir da década de 1960 adotava um viés transnacional, isto é, um sistema de atividades econômicas que ultrapassam os territórios e fronteiras de Estados. A globalização da economia, da produção e do consumo dava seus passos firmes nas décadas 1970 e 1980. Para Hobsbawn (1995), a consequência mais aparente da globalização das atividades econômicas deu-se na divisão internacional do trabalho, a industrialização passou a substituir com maior intensidade o trabalho humano, e posteriormente, os parques industriais de países hegemônicos transferiram-se para os países em desenvolvimento. Esta situação acarretou consequências dramáticas: de um lado, nos países hegemônicos, surgiu uma situação de desemprego estrutural, e, nos países em desenvolvimento, desequilíbrios 9
ecológicos e precariedade da oferta de empregos, incluindo-se a mão de obra de crianças. No âmbito das ciências médicas, o reconhecimento do DNA por Watson e Crick (1953) tornou-se ponto de discussões presentes em revistas especializadas na década de 1960, anos depois da descoberta e da clonagem do sapo de Briggs. Cirurgias inovadoras como a utilização de marca-passos e o transplante de órgãos passaram a fazer parte da rotina dos hospitais, assim como o advento de drogas importantes como anticoncepcionais. Com a criação da primeira bactéria transgênica em 1973, a transgenia conquistava espaço, com plantas e outros organismos multicelulares produzidos para fins comerciais. Quando se aproxima da vida cotidiana, vê-se uma mudança de hábitos oriunda da inserção de mercadorias inovadoras. Produtos existentes foram melhorados e outros criados, as fibras óticas, por exemplo, as infinitas variações de plásticos e colas: “[...] as sandálias de plástico substituíram os pés descalços” (HOBSBAWN, 1995, p.261). Televisão, discos de vinil, fitas cassete, compact discs, rádios portáteis, relógios digitais, calculadoras de bolso, eletrodomésticos e equipamentos de foto e vídeo tornaram-se presentes no dia-a-dia, assim como o desenvolvimento de sua miniaturização e portabilidade. Hobsbawn (1995) afirma que a inovação seria o elemento principal para a comercialização desses produtos, “desde os detergentes sintéticos até os computadores laptop” (HOBSBAWN, 1995, p.260). Esta “espantosa rapidez da mudança tecnológica” (HOBSBAWN, 1995, p.320) conferiu à juventude uma vantagem considerável sobre gerações anteriores conservadoras e inadaptadas às novidades tecnológicas. A revolução cultural foi moldada principalmente pela luta a favor dos direitos dos negros, exaltação da juventude, nascimento do movimento verde, nova onda feminista, boêmia rebelde e pelas drogas. Entre as décadas de 1960 e 1970, a clássica estrutura nuclear da família ocidental estava em retração; houve uma diminuição considerável no casamento formal e no desejo de ter filhos entre as mulheres; sucedeu-se uma gradativa liberalização tanto para os heterossexuais, em especial para as mulheres, quanto para a comunidade homossexual (HOBSBAWN, 1995). A literatura agitada da geração beat, em meados de 1950, prenunciava a 10
crise no rígido moralismo da sociedade da época, assim como o rock de garagem e o surgimento do herói “cuja vida e juventude acabavam juntas” (HOBSBAWN, 1995, p.318), muitas vezes, idealizado como o foi James Dean. A partir da metade da década de 1960, a juventude deu um tom ácido às suas críticas. Protestos contra a aparente rigidez de novos governos, a liberdade social e sexual, a entrada acentuada no universo das drogas e a popularização de grandes ícones musicais da rebeldia, como os Beatles, os Rolling Stones e Bob Dylan, alimentaram essa nova expressão da juventude. A cultura juvenil tornou-se objeto das economias de mercado, em especial àquela relacionada ao desenvolvimento tecnológico. Os IBMs e os Hitachis eram projetados por pessoas que não ultrapassavam a casa dos vinte anos e a discrepância entre gerações tornava-se cada vez maior. Outro importante aspecto dessa juventude foi seu internacionalismo. Tornou-se possível pensar uma cultura jovem global, alimentada também por modismos cada vez mais populares, como blue jeans e a expansão do rock. Esta revolução significou o triunfo do indivíduo sobre a sociedade. Isto é, a rejeição de uma camada da sociedade à ordenação histórica e às convenções e proibições que limitavam a autonomia do desejo humano. Essa nova atmosfera, “informal e antinômica” (HOBSBAWN, 1995, p.323.), era fortalecida por novas maneiras de entretenimento e consumo. A juventude contestava o conflito armado entre nações, questionando decisões políticas e opiniões públicas que as apoiavam. A exemplo da Guerra do Vietnã, a defesa das liberdades dos vietnamitas soava extremamente contraditória enquanto negros norte-americanos ainda sofriam ostensiva opressão nos Estados Unidos (HOBSBAWN, 1995). Reler os historiadores nos ajuda a entender o horizonte que antecede e permeia a época da criação de Neuromancer. No livro, é muito fácil encontrarmos referências desse tempo: são rádios portáteis, televisões Hitachi, arcades Atari, Walkmans Sony, motocicletas Honda, os primeiros computadores pessoais da IBM e da Apple, viagens orbitais, transplantes arriscados e a própria revolucionária internet. Não obstante, a ocorrência desses avanços não se reduz à ciência e tecnologia. É evidente que o “terremoto tecnológico” reverberou fortemente em vários níveis de nossa sociedade, mas é de igual valor as mudanças sociais e culturais testemunhadas, principalmente quando nos deparamos com uma liberalização social e uma juventude 11
questionadora cada vez mais globalizada. Esse aspecto também é percebido durante a narrativa quando, por exemplo, um dos personagens principais é uma jovem destemida, feroz e extremamente habilidosa, que além de rebater tarefas delegadas por seus chefes, questiona a própria natureza deles até nela se instalar a incerteza quanto ao posicionamento de grandes corporações. Transformações sociais e culturais e o acentuado avanço da tecnologia e da ciência em meio a uma época de crises e conflitos construíram pouco a pouco o cenário desta obra. Gibson, além de antecipar vocabulários nunca antes imaginados, também contribuiu para eflorescência de um novo subgênero literário e, logo, um estilo de vida: o cyberpunk.
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Cyberpunk, movimento literário e William Gibson
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euromancer classifica-se como cyberpunk, um subgênero da Ficção Científica surgido em meados das décadas de 1980 e 1990. O termo foi cunhado por Bruce Bethke sendo título de um conto sobre uma gangue de jovens hackers, escrito nos anos de 1980. Segundo o próprio Bethke, a palavra surgiu para unir a atitude punk à tecnologia. Porém, o termo ganhou precisão com a publicação do livro de William Gibson e passou a designar o subgênero literário. Aqui vale uma pequena digressão, o movimento punk, surgido nos Estados Unidos e na Inglaterra dos anos de 1970, caracterizava-se por uma posição essencialmente antiburguesa e oposta ao capitalismo. Na Inglaterra, a posição política contaminou a música, a moda e terminou por definir um modo de vida. Como todos os movimentos de contracultura deste período, não demorou muito que a posição rebelde dos jovens punks fosse cooptada para o interior daquilo que se contrapunha. A estética punk dos anos iniciais do movimento implicava o uso de roupas velhas e rasgadas, sujas e desleixadas, até o momento em que a atitude rebelde entrou para o interior das boutiques. Cyber, por sua vez, é uma abreviação de Cybernetics, termo cunhado pelo matemático e filósofo Norbert Wiener no início da década de 1950. A palavra nos remete ao grego kybernetiké, cuja origem data do século VI antes de Cristo e significa a arte de pilotar, em outras palavras, designa aquela pessoa que manobra ou dirige algo, um comandante, mestre, um guia. Wiener entende o cyber como a teoria do controle e da comunicação nas máquinas, nos seres vivos e na sociedade. Assim, a construção da palavra cyber+punk apoia-se na hibridização entre um conceito clássico, de origem grega, e outro da cultura de massa, o punk, o que indica sua ambiguidade terminológica, ideal para a atmosfera agitada da época. Amaral (2006) define que a leitura do cyberpunk pode ser feita em dois sentidos. O primeiro, como subgênero da Ficção Científica. O segundo, como uma visão de mundo contemporâneo, isto é, não apenas estética, mas política e social. Em suma, o cyberpunk afirma um movimento que engloba a literatura, música, cinema, moda, princípios e hábitos sociais e define um panorama sociocultural de expressão artística. 13
Pode-se dizer que o tema central do cyberpunk é o conflito dos seres humanos e a tecnologia por meio de sua simbiose. Para os cyberpunks, o corpo é o último local de resistência aos avanços da tecnologia. O corpo é uma imagem retórica, é supérfluo, é objeto, é apenas carne. A discussão central gira em torno de uma cultura em transformação, com uma atitude contestadora e de formação social, uma alegoria da década de 1980. (AMARAL, 2006). Na literatura, hackers e amantes da tecnologia se deram conta de estar diante de seu mais claro manifesto. Marianne Trench, em seu documentário Cyberpunk (1990), deixa claro que este subgênero da ficção científica havia, de certa maneira, superado seus antecessores: Nunca antes a literatura de ficção científica determinou a forma com que as pessoas pensavam e falavam sobre novas tecnologias. Esta síntese entre fato e ficção provou ser valiosa e agora o cyberpunk é um movimento preparado para arrematar o milênio. A imagem de Gibson de cowboys de computador que hackeam uma perigosa vida póshumana dentro de uma nova fronteira tecnológica deu aos hackers e aos tecnófilos uma identidade e um conjunto de mitos nobres. Depois de ler Neuromancer, hackers começaram a perceber que eram de fato e, provavelmente, sempre foram cyberpunks.4 (CYBERPUNK, 1990) A literatura cyberpunk retoma as experimentações na linguagem e nas temáticas de seu expoente anterior, a New Wave5. Como produto irrefutável da 4 Never before have science fiction literature determined the way people thought and spoke about new technology. This synthesis of fiction and fact proved to be a value to each and now cyberpunk is a movement looking set to blast towards the Millennium. Gibson’s image of computer cowboys hacking a perilous post humanist lifestyle on a new technological frontier gave hackers and technophiles an identity and set of any noble myths. After reading Neuromancer, hackers started to realize that they were in fact and probably had always been cyberpunks (TRENCH, 1990, p. ) 5 A New Wave (Nova Onda) é um subgênero da Ficção Científica que se apresentou entre as décadas de 1960 e 1970. Segundo Amaral (2006), os principais nomes dessa vertente que influenciaram o movimento cyberpunk foram: Michael Moorcock, por meio da revista britânica New Worlds; Brian Aldiss, que posteriormente escreveria roteiros para a Marvel e para a série Jornada nas Estrelas; Philip K. Dick, autor que inspirou o filme Blade Runner (1982); entre outros. Esta ficção caracterizou-se pela experimentação linguística por meio da incorporação de gírias e jargões em texto, assim como descrições mais vívidas de violência e sexo. Os escritores 14
década de 1980, inclui em suas narrativas as teorias da pós-modernidade, a cultura pop através de seus ícones estéticos e o computador. Suas principais características consistem na “hiperestética” das relações homem-máquina; na presença da imagem do “não-humano”; no indivíduo autônomo que conduz sua própria realidade; e no estilo estético das subculturas. Esta “hiperestetização” ocorre pelo excesso e demasiada presença de signos estéticos do cotidiano e do mundo, construindo um vocabulário narrativo que toma forma segundo indivíduos, comunidades, nações e épocas. (AMARAL, 2006) A cidade aparece como um objeto estetizado, entendido na relação entre um movimento estilístico, no caso a arquitetura de uma cidade, e uma narrativa. Essa articulação usa os cenários construídos de forma verossímil para dar identidade à obra literária. Para esclarecer seu ponto de vista, Amaral recorre ao exemplo do romantismo, no qual, muitas vezes, a cidade é representada em uma atmosfera de tensão e medo, com referências à arquiteturas medievais arruinadas, criando uma atmosfera macabra. (AMARAL, 2006). A mesma autora reconhece no romantismo gótico que a cidade distópica, elemento recorrente na Ficção Científica, surge nas ruelas labirínticas e enevoadas marcadas pela industrialização e transformação de cidades cada vez maiores. O clima de terror e decadência dos primeiros contos de Ficção Científica, como Frankenstein (1818) de Mary Shelley, apresentam questões urbanas daquele tempo intimamente ligadas aos seus maiores desafios: o crescimento claustrofóbico de metrópoles, a industrialização e a dissolução dos vínculos sociais. Posteriormente, é na ficção de Philip K. Dick que a cidade ganha especial importância “tanto pela sua arquitetura monstruosa, como por suas artérias sombrias nas quais habitam distintas raças, classes sociais e tribos urbanas” (AMARAL, 2006, p.62).
do gênero anterior, Época Dourada da Ficção Científica (1938-1950), estavam interessados em relatar com preciosidade técnica o espaço sideral, haja vista as obras de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Frank Hebert, autores de Eu Robô, O Fim da Infância. No caso da New Wave, os autores inseriram questões da área das ciências sociais sobre um viés existencialista, salientando relacionamentos e sentimentos. Isto é, viu-se uma maior aproximação do indivíduo e as especificidades técnicas ficaram em segundo plano, o que conferiu sua associação ao termo “soft” science fiction (ficção científica suave) à sua definição. 15
A herança do romantismo na Ficção Científica se manifesta principalmente através da ideia de utopia, da nostalgia de se retornar aos valores perdidos, pela estetização do presente, pela rejeição e euforia em relação à modernidade e, principalmente, pela ideia de maquinização do mundo e das relações puramente utilitárias entre seres humanos [...]. Os espectros da Ficção Científica, trazidos à vida em meio às sombras das cidades góticas, continuam aterrorizando o imaginário da sociedade tecnológica através de seus muitos gêneros, sobretudo pelo imaginário cyberpunk, com seus corpos modificados, tatuados, perfurados, mixados de sangue, placas de silício e circuitos metálicos. (AMARAL, 2006, p. 77) Desta exposição, afirma-se com Lemos (2004): Ao associar cibernética (o controle maquínico sobre a vida) e punk (élan vital contra os controles), a ficção científica cyberpunk adere desesperadamente ao presente. O cyberpunk representa o “colapso do futuro no presente”. [...] A parte “cyber” mostra a relação estreita entre o nosso sistema nervoso central e a microeletrônica (ciberespaço, implantes, nanotecnologias). A parte punk soma, para além do mundo da cibernética, a apropriação, a paixão tribal e urbana, a atitude ‘faça você mesmo’ no coração da racionalidade tecnológica. (LEMOS, 2004, p.194-5 apud MARTINS, 2014, p.12) Para Martins (2014, p.13), esta literatura “rompe com o real e com as mazelas da experiência cotidiana e, ao mesmo tempo, encerra um determinado sentido específico da contemporaneidade, cuja função significante é crítica da polis contemporânea”. Isto é, os autores do gênero cyberpunk constroem uma visão de futuro a partir de nossas próprias experiências e contextos sociais, associados às narrativas comuns da história e do presente. Dessa maneira, esse subgênero da Ficção Científica define uma paisagem constituída de exageros estéticos que, por fim, nos instiga a questionar o presente e seus problemas futuros por meio da poética literária que busca na racionalidade a compreensão de padrões socioculturais e econômicos. 16
Por mais que o cyberpunk apresente pontos estilísticos e abordagens constantes, é importante destacar que cada autor tem suas especificidades, temáticas e manias prediletas. No caso de Neuromancer, William Gibson interessa-se pela dicotomia corpo físico e o virtual. Para ele, a mente é uma entidade alheia à constituição física. O corpo é apenas um recipiente de carne, sem utilidade alguma no ciberespaço. Explicado o movimento cyberpunk de forma geral, resta apresentar com mais cuidado o autor de Neuromancer. Gibson é um premiado escritor de origem norte-americana considerado pioneiro do subgênero cyberpunk na literatura e um importante autor de outras variações, como o steampunk6 e postcyberpunk7. Nascido em 1948 na Carolina do Sul, Gibson se interessou pela ficção científica ainda adolescente. Acompanhava romances fantásticos da New Wave, mesmo que incomodado pelos seus exageros técnicos, e também leituras não convencionais de autores da geração beat, das décadas de 1940 e 1960, como os estadunidenses William S. Burroughs, Allen Ginsberg e Jack Kerouac. Os beatniks destacavam-se pela intensidade presente nas narrativas, nos temas e nos personagens, com uma dinâmica de leitura caótica e marcada pela linguagem informal e muito próxima da falada nas ruas. Os autores da geração beat – referência direta ao jazz – eram conhecidos por seu estilo de vida boêmio, pelo uso de drogas, experiências sexuais e inconformismo, face um governo americano pós-guerra repressor e conservador (HOLMES, 1952). Os beats atravessaram aproximadamente duas décadas, sobrevivendo no submundo das ruas de Nova York, e nos anos 1960 alcançaram uma extraordinária fama, seus artistas tornaram-se ídolos para a geração seguinte, entre os quais estava Gibson. Gibson, depois de adulto, mudou-se para o Canadá e se estabeleceu 6 O steampunk é uma variante do subgênero literário cyberpunk que combina estéticas históricas com o acesso à tecnologia na construção dos cenários narrados. Normalmente, incorporam-se elementos vitorianos, como máquinas a vapor (steam), a fantasias, mantendo-se sempre o caráter distópico. As obras mais relevantes desta categoria seriam a novela de 1992 de Gibson e Bruce Sterling “The difference engine” e “A league of extraordinary gentleman”, quadrinhos de Alan Moore e Kevin O’Neill (AMARAL, 2006). 7 O postcyberpunk, ou “pós-cyberpunk”, é outra variante do subgênero cyberpunk que surge em meados dos anos 1990. A grande diferença é a maior atenção na ecologia e a vida em sociedade face a tecnologia. Exemplares dessa categoria podem ser encontrados nos livros de Cory Doctorow, como a coleção “Pequeno Irmão”, de 2011 (AMARAL, 2006). 17
em Vancouver, mergulhou na contracultura e dedicou-se à literatura ficcional especulativa. Sua obra tem sido objeto de interesse e inspiração para autores de ficção científica e para o cinema – a exemplo a trilogia Matrix, das irmãs Wachowski, episódios da série Arquivo X e o filme Alien 3 –, e para o mundo acadêmico, com reverberação na filosofia, no design e na arquitetura. Em suas aparições públicas, o autor revela alguns posicionamentos que auxiliam a dedução de tópicos inerentes a Neuromancer. Em sua entrevista para o programa televisivo sueco Rapport (1994), o autor aponta três questões que julga de interesse: a democracia Americana em decadência, a importância da inserção digital em comunidades humildes e o caráter elitista da Internet. É possível sentir seu descontentamento com a situação política e social estadunidense: Há grandes partes dos Estados Unidos hoje que devem parecer a um europeu tão distópicas e possivelmente mais distópicas do que descrevo em meus livros. Grandes partes de muitas cidades americanas são um absoluto pesadelo social. A América é um país que pode já ter uma enorme e permanente classe desfavorecida [...] é uma situação trágica.8 (GIBSON, 1994) William Gibson prenunciou o domínio da internet na vida cotidiana e o seu rápido desenvolvimento, culminando no surgimento de reality shows, espaços de interação virtuais e jogos digitais. O homem que nos mostrou o presente através do futuro hiper-real de Neuromancer tem uma visão muito específica a respeito do ciberespaço da atualidade e, consequentemente, da Internet. O ciberespaço, tratado a seguir, difere daquele apresentado em Neuromancer, cujo uso está restrito à grandes corporações e hackers. Considerando a crescente instituição de ações humanas dos mais variados tipos nos meios eletrônicos e digitais, Gibson crê que estes “locais” estão se tornando parte do território: “quando você usa a internet, você entra em um domínio cuja 8 There are large parts of the United States today that must seem, I would think, to a European as dystopian and possibly more dystopian than I describe in my books. There are large parts of many American cities that are absolute social nightmares. America is a country that may already have an enormous permanent underclass [...] it’s a tragic situation. (GIBSON, 1994) 18
geografia não existe mais. [...]. Às vezes, suspeito que estamos presenciando na Internet algo tão significante quanto o nascimento das cidades. [...]. É realmente algo novo, um novo tipo de civilização” (GIBSON, 2014). Quando questionado se este novo “lugar” seria melhor do que o mundo físico, o escritor nega a possibilidade. Na verdade, se opõe à rejeição do corpo em relação ao espírito: Poder-se-ia imaginar um tipo de vida muito ascético crescendo a partir disso, onde o corpo é ignorado. Isso é uma ideia que trabalhei em meus livros, onde as pessoas odeiam ser lembradas que elas têm corpos, elas o acham muito lento e tedioso. Mas eu nunca apresentei isso como um estado desejável, sempre como algo quase patológico crescendo dessa tecnologia.9 (GIBSON, 1994, tradução nossa) Talvez, o aspecto mais valioso de Neuromancer seja as implicações nunca antes imaginadas da tecnologia virtual sobre a cidade e a vida humana. É uma relação associativa em que o homem se torna gradativamente mais dependente da máquina e vice-versa. Uma simbiose viciada, uma tecnologia que está tão inerente à vida contemporânea que se naturaliza. Esta tecnologia permanece moralmente neutra até que começamos a utilizá-la, e, nas palavras de Gibson (1994), “é apenas quando nós a usamos para o bem ou para o mal, que ela se torna boa ou má”.
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9 One could imagine a very ascetic sort of life growing out of this, where the body is ignored. This is something I’ve played with in my books, where people hate to be reminded sometimes that they have bodies, they find it very slow and tedious. But I’ve never presented that as a desirable state, always as something almost pathological growing out of this technology. (GIBSON, 1994) 19
Neuromancer: o livro
N
euromancer foi escrito em uma Hermes 1927 verde-oliva10, em uma modesta e tradicional casa em Vancouver. Na época (1984), Gibson não possuía nem mesmo um modem, achava a internet difícil de usar e reclamava de suas terríveis limitações e interface primitiva. O autor afirma não ter levado uma década para constatar que muitos de seus leitores nunca teriam experimentado a frase de abertura de Neuromancer:“O céu sobre o porto tinha cor de televisão num canal fora do ar” (GIBSON, 2016, p. 23). Esta metáfora dá o tom do livro e deriva do cotidiano do autor diante de sua “televisão Motorola de gabinete de madeira com alto-falantes recobertos com tecido” quando em dead channel – fora do ar (GIBSON, 2016, p. 13). Mesmo que assertivo em relação a diversos aspectos sobre o mundo muito depois de sua publicação, Neuromancer não foi uma obra premonitória, apenas um palpite de um presente mascarado de futuro. Nele, se depara com elementos falhos ou ausentes no real contemporâneo, como a permanência da União Soviética e a inexistências dos onipresentes telefones celulares. Por vezes, é hilário imaginar o personagem principal correndo com seu deck11 e microcomputador de pelo menos 8kg pendurados no pescoço. Gibson não era um geek12, não usava calças rasgadas e muito menos um mohawk13 estilizado. Certamente, também não era um cyberpunk. Era um romancista, inspirado pelas pessoas envolvidas com ficção científica e computação undergrounds, e fascinado pela paixão com que essas pessoas falavam de seus vícios. O termo 10 Máquina de escrever portátil que Gibson possuía. Curiosamente, a figura da máquina de escrever aparece em Neuromancer em posse do personagem Julius Dean, um homem de negócios abastado, de aparência assexuada e com cento e trinta e quatro anos de idade: “O importador estava protegido atrás de uma imensa mesa de aço pintado, flanqueado a cada lado por arquivos feitos de algum tipo de madeira clara. O tipo de coisa, supôs Case, que um dia devia ter sido utilizado para armazenar registros escritos de alguma espécie” (GIBSON, 2016, p.34) 11 O deck é um aparelho usado para acessar o ciberespaço. Normalmente, é uma espécie de óculos computadorizado que faz a interface entre a mente humana e o computador através de telas, cabos de fibra ótica e dermatrodos (condutores plugados sobre a pele). 12 Gíria inglesa que se refere a pessoas aficcionadas com tecnologia, eletrônica e jogos eletrônicos. 13 Em referência ao povo indígena norte-americano moicano, é um corte de cabelo comumente utilizado por punks nos anos 1980 . 20
cyberspace foi inventado por nosso autor, descartou outras opções como infospace e dataspace, pois para ele, esses termos não soavam bem. O neologismo surgiu quando observava a euforia de jovens frente à primeira geração de arcades14. Era a postura de grande tensão durante o jogo, que parecia ser uma coleção de zeros e um em um computador, a materialidade dos corpos dos jogadores não fazia mais sentido: “eles queriam estar lá, com os dados giratórios coloridos”, disse Gibson (2010). No prefácio do livro em sua 5a edição brasileira de Neuromancer (2016, Editora Aleph), Gibson expõe sua surpresa com o sucesso de sua obra. Ele não esperava ser publicado vinte anos após o lançamento de Neuromancer. Confessa que, ao escrevê-lo, receava não conseguir terminá-lo, ou que seu manuscrito fosse recusado pela editora. Seu medo diz respeito ao espírito de dissidência que o tomou enquanto escrevia Neuromancer, algo muito relacionado com o personagem principal da trama. Para ele, era também uma espécie de ressentimento com relação ao gênero que acompanhou sua adolescência, uma vontade de se opor “ao que o público havia sido ensinado a querer da ficção científica” (GIBSON, 2016, p. 15). Vencedor de prêmios da literatura de Ficção Científica, Neuromancer é o primeiro romance policial da Trilogia Sprawl, série de narrativas independentes que compartilham o mesmo mundo. Cada um destes livros compõe um futuro sombrio e patogênico dominado por corporações multinacionais e redes de computadores essenciais para comunicação e todo o tipo de transação. Segundo o Oxford Dictionary de língua inglesa, Sprawl é um substantivo que significa espalhar-se aleatoriamente, isto é, alastrar-se de maneira acumulativa. Na história, Sprawl é a conurbação que existiria na região do eixo metropolitano Boston-Atlanta, nos Estados-Unidos, uma mancha urbana que se alastra em uma imensa área. A obra foi publicada em 1984, numa época em que se discutiam temas que variavam desde o mapeamento genético à popularização da microinformática, com debates fervorosos e especulativos sobre o futuro da humanidade face a contaminação da esfera política pelo poder econômico das grandes corporações. O escritor Cory Doctorow reforça ao responder o jornal The Guardian no artigo “William Gibson: the man who saw tomorrow” (2014). 14
Fliperama, aparelho profissional de jogos eletrônicos instalado em estabelecimentos de entretenimento. 21
Neuromancer continua a ser uma viva alegoria imaginada para o mundo dos anos 80, quando as primeiras sementes da enorme e globalizada disparidade econômica foram plantadas, e quando os rumores inaugurais da rebelião tecnológica foram sentidos pela primeira vez. Uma geração mais tarde, estamos vivendo um futuro que não é nada como o de Gibson, mas instantaneamente reconhecível como seu primo menos elegante e menos romântico. Ao invés de zaibatsus administradas por sararimans sem rosto, temos jovens neoconservadores e neoliberais doutrinários que querem tratar de tudo, de escolas a hospitais, como se fossem empresas”15. (DOCTOROW, 2014, tradução nossa) O personagem principal de Neuromancer é um cowboy do ciberespaço, isto é: um habilidoso hacker chamado Case. Sua fama havia conquistado todo o BAMA, Boston-Atlanta Metropolitan Axis, coloquialmente conhecido como Sprawl. Foi treinado pelos melhores do negócio, pilotando seu deck sob os efeitos sedutores de drogas que faziam seu trabalho mais frenético e excitante. Case era um ladrão que trabalhava para ladrões, apenas mais ricos que ele. Era satisfeito com esta situação, lhe agradavam suas entradas ao ciberespaço. Ele vivia na “exultação sem corpo” (GIBSON, 2016) da Matrix, seu corpo era uma prisão de carne. Após roubar seus antigos empregadores, foi impedido de acessar o ciberespaço sem ferir a si mesmo por conta de uma micotoxina soviética (um veneno à base de fungos) desenvolvida em tempos de guerra. Case viu “seu talento queimando mícron a mícron” e havia perdido aquilo que mais lhe fizera sentido (GIBSON, 2016, p.26). O ex-cowboy, então, vai à cidade de Chiba no arquipélago japonês para buscar sua cura. 15 Neuromancer remains a vividly imagined allegory for the world of the 1980s, when the first seeds of massive, globalized wealth-disparity were planted, and when the inchoate rumblings of technological rebellion were first felt. A generation later, we’re living in a future that is both nothing like Gibson future and instantly recognizable as it’s less stylish, less romantic cousin. Instead of zaibatsus (large conglomerates) run by faceless salarymen, we have doctrinaire young neocons and neoliberals who want to treat everything from schools to hospitals as businesses” (DOCTOROW, 2014) 22
Em sua nova situação, dormia nos caixões mais baratos – cápsulas de moradia –, em um dos distritos mais necrosados de Chiba City, deixou de frequentar os bares onde era estimado por sua maestria e foi forçado a assaltar e roubar para sobreviver. O personagem, sem sucesso e em estado “overdrive”16 terminal, vê-se persuadido a auxiliar um novo empregador em troca de um tratamento para encerrar seu sofrimento. Case e Molly, sua nova parceira de trabalho, são empregados por Wintermute, uma inteligência artificial suíça que demanda uma série de ações, cujo objetivo é livrá-la de limitações impostas pela polícia Turing17, órgão encarregado de controlar a evolução dessas entidades. A inteligência artificial contata Case de diversas maneiras. Na maioria das vezes, esse contato se dá no ciberespaço sob a forma de constructos18 à imagem de conhecidos dos personagens. As manifestações de Wintermute também podem ser percebidas em telas de quaisquer dispositivos eletrônicos, de relógios digitais a robôs funcionais. A imagem dos constructos de Neuromancer levanta um dos aspectos centrais da trama: a singularidade e o sentimento de transcendência que remontam ao transumanismo. Na narrativa, Case frequentemente interage vividamente com o constructo de um de seus grandes mestres, o ROM que replica “as habilidades de um morto, suas obsessões, suas reações automáticas” (GIBSON, 2016, p.103). McCoy Pauley, ou Dixie Flatline, frisa a todo momento que está morto. No entanto, ele não necessariamente “sabe” que está morto, mas expressa um desejo quase desesperado de ser apagado. Molly é o arquétipo da femme fatale, muito presente nas ficções do gênero. A personagem é dominante, extremamente competente e mais bem informada que Case. Enquanto o cowboy surfa no ciberespaço, quebrando barreiras criptografadas de grandes empresas e decodificando segredos, Molly fica a cargo de todo o confronto físico. É ela quem corre, invade, agride e seduz, tudo com uma precisão e elegância 16 Saturado, impulsionado até o fim, estado de intensa atividade, superexcitação. Normalmente utilizado para qualificar dispositivos mecânicos. 17 Turing seria uma referência ao Teste de Turing, desenvolvido por Alan Turing em 1950, cujo objetivo é avaliar a capacidade de uma máquina de demonstrar inteligência correspondente a uma pessoa 18 Constructos são personalidades geradas artificialmente que são animadas no ciberespaço. Comumente são oriundas da gravação de memórias póstumas a partir de uma ROM – Read Only Memory, memória virtual que, após registrada, nunca mais se atualiza. 23
perfeitas; uma arma. A jovem de cabelos pretos cortados de maneira selvagem tem um corpo modificado para ser letal: grandes lentes implantadas em seu rosto, amplificadores que aumentavam sua destreza e lâminas mortais que projetavam suas unhas. Logo no começo da aventura, Case tem acesso a uma espécie de Simstim19 que lhe permite sentir e ver todas as ações de Molly. Os dois se envolvem em uma relação de afeto, porém, o relacionamento parece não evoluir. Molly sempre está à frente da situação e parece não depender de ninguém, uma mulher autossuficiente que sabe o que quer. Case é indiferente e dá claros sinais de que seus verdadeiros sentimentos estavam guardados para Linda Lee, personagem que morre logo no início do livro. A história se passa em diversas paisagens, ora reais, ora virtuais. Começando no que se entende como algo próximo ao Japão, para o território da monstruosa conurbação norte-americana Sprawl, às colônias orbitais de Zion e Freeside. Os protagonistas enfrentam situações arriscadas a fim de invadir bases de dados importantes e coletar informações para as futuras ações de Wintermute. Constantemente a natureza da inteligência artificial é posta em questão, dúvida surgida logo no início da obra quando Molly e Case buscam saber os principais motivos que levaram Wintermute a procurá-los. No fim do livro, Case consegue acessar o mainframe20 de Neuromancer, uma inteligência artificial gêmea de Wintermute. Ao escapar, invade os sistemas dos criadores de ambas as entidades, a gigante corporativa dominada pelo clã Tessier-Ashpool. O império familiar tinha como objetivo associar-se às inteligências artificiais, isto é, suas ações poderiam ser imortalizadas por decisões tomadas conscientemente através de uma entidade que reuniria anos de memórias. Wintermute era a parte fria e calculista. Foi feita para tomar decisões e podia efetuar mudanças no mundo real. De alguma forma, sua concepção abriu a brecha 19 Simstim (simulated stimuli) é uma espécie de aparelho de realidade virtual que simula estímulos em seus usuários. Segundo o livro, cowboys não entravam em Simstim pois era um brinquedo “de carne”, uma multiplicação dos sensórios vividos pelo corpo. O Simstim é um produto muito popular para os mais abastados, possui astros do mês e é altamente viciante. 20 O termo mainframe refere-se comumente ao computador de grande porte dedicado ao processamento de uma grande quantidade de informações. É o gabinete principal que aloja a unidade central de processamento dos computadores da década de 1980. 24
para que sua mente-colmeia tivesse a compulsão de libertar-se. Assim, como “uma aranha cibernética lentamente tecendo teias enquanto Ashpool dormia” (GIBSON, 2016, p. 309), Wintermute planejou o possível para que sua versão atual chegasse ao fim. Neuromancer era ego. “Neuro, que vem de nervos, os caminhos prateados. Romancer, romanceiro, romante, necromante. Eu invoco os mortos. [...]. Eu sou os mortos, e sou também a terra deles” (GIBSON, 2016, p. 284). Assim como Dixie Flatline, Neuromancer era algo parecido com um constructo para a gravação de personalidades, porém, gigantesco e em constante atualização. Além de acumular mentes, a narrativa nos conduz a concluir que a entidade consegue estabelecer uma consciência, ela pode criar sua própria personalidade e existe nela mesma. Ademais, os constructos inerentes à Neuromancer acreditam estar em um meio real. Para eles, a vida era real, não distinguindo o virtual o real. Neuromancer era a imortalidade. Na tentativa do cowboy de impedir que Wintermute tenha acesso à Neuromancer, as entidades acabam unificadas, tornando-se um sistema constituidor de toda a internet, uma Matrix. Por fim, este novo “ser” entra em contato com Case e o elucida sobre as questões de sua Verdade. A imagem final do livro apresenta os constructos de Case e Linda Lee existindo eternamente na entidade artificial. Molly diz adeus à Case e ambos nunca mais se veem. Em síntese, o livro oferece um debate a respeito do corpo, da cidade e do desenvolvimento tecnológico, dando margem às preocupações que permeiam a modernidade e a pós-modernidade. A narrativa é conhecida por sua complexidade, envolvendo tanto questões conceituais, quanto representações de espaços urbanos e arquitetônicos (MARTINS, 2014) de maneira a confundir constantemente o leitor quanto a realidade vivida pelos protagonistas, seria ela virtual ou real? De certa maneira, a descrição dos espaços é minuciosa, abrindo um leque de criatividade que fornece a possibilidade de visualizá-los com clareza. Nesse sentido, por mais que a narrativa esteja repleta de fragmentações e efemeridades, é possível atingir uma percepção dos lugares descritos e captar os sentimentos e as emoções vividas pelas personagens. Igualmente, a cidade e o território estão em constante confronto. As noções clássicas sobre a cidade são postas em questão em um mundo onde fronteiras não fazem mais sentido. 25
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As pรณs-cidades de Neuromcer PARTE DOIS
A
cidade é a imagem central de referência e conceito do cyberpunk; a representação literária e artística de uma distopia. Simultaneamente configura-se como cenário e personagem, tamanha é sua importância. Como abordado anteriormente, as cidades na literatura do subgênero cyberpunk são entidades negativas, apresentando-se superpovoadas e sombrias. Resultam da necrose provocada pelo avanço tecnológico, sendo pouco a pouco convertida em bytes, enquanto é iluminada pelos outdoors dos impérios corporativos (AMARAL, 2006). Como se dá esta caracterização distópica na obra de Gibson? É possível assimilar três categorias de cidade em Neuromancer. As cidades terrestres, Chiba City, Sprawl e demais núcleos urbanos na Terra; a cidade cibernética – cibercidade –, compreendida pelo ciberespaço e pelos estímulos simulados por Simstim; e a cidade orbital, caracterizada pelo arquipélago das colônias espaciais Zion, Freeside e Villa Straylight. Viu-se que um dos elementos centrais de Neuromancer baseia-se no desdobramento do ciberespaço, implicando complexidades socioculturais e alteração nas formas de vida de seus habitantes, por isso, dedica-se primeiramente a atenção à relação cidade real e cidade cibenética. Para isso é preciso referir-se a uma nova representação do espaço que implica um “deslocamento do mapa cognitivo” para que o sujeito possa compreender os novos termos da existência na contemporaneidade do livro (AMARAL, 2006, p. 65). Os personagens de Gibson deparam-se com uma condição inédita, suas memórias e a própria construção de sua identidade podem se dar no espaço virtual. O ciberespaço é a morada de infinitos dados de bancos globais e megacorporações, que guardam não apenas a única moeda corrente, os Neoienes, e segredos industriais, mas memórias valiosas. É uma espécie de extensão do espaço real, onde outras tecnologias, ligadas à essa Matrix, contribuem para o afastamento do mundo físico, como o Simstim, ou, nos moldes atuais, a realidade aumentada. O corpo da Cibercidade – cidade e ciberespaço – combina materialidade e imaterialidade, compondo uma dicotomia presente em toda a narrativa, “o espaço é normalmente concebido por termos imateriais como produto do mapeamento eletrônico de dados abstratos. Ainda assim, cidades são substancialmente materiais. O crescente desperdício de áreas urbanas marginalizadas, a onipresença do crime e da doença, e o fascínio a relíquias de eras passadas evidenciam a dimensão corpórea 28
da cibercidade”21 (CAVALLARO, 2003, p. 133). Mesmo que a divisão entre o espaço real e o virtual esteja cada vez mais sutil em Neuromancer, a cidade física existe e nela se encontram os referenciais que conferem percepções e sensações aos personagens. No livro, a cidade física e a cidade digital são uma só, entre elas, contudo, o contraste continua presente, são redes de dados abstratos indissociáveis de cenários vivamente materiais. Quando Gibson reporta-se ao mundo real, descreve um território urbano que cresceu caoticamente e se esfacelou, levando milhares de pessoas a buscarem alternativas para tornar a vida mais suportável. Neuromancer apresenta imensos povoamentos marcados por forte estratificação social e marginalização: os pobres vivem em guetos e os ricos passam suas férias sobre o céu artificial de Cannes em mansões no espaço sideral. Os habitantes das cidades encontram-se dilacerados, uns à beira da morte, outros armazenados no ciberespaço, e os mais abastados às custas de caros procedimentos afim de prolongarem sua existência e proteger suas riquezas. A anomalia dos espaços urbanos deriva de poderosas corporações, fenômeno que também está presente no ciberespaço. Essa urbanização ocorre semelhante em ambos os espaços: padronizada e racional. Desenvolve-se como um fractal, com suas formas justapostas regulares e irregulares; padrões, simetrias e paralelismos que, para o olhar desavisado, parecem uma associação aleatória de eventos. É um “movimento próprio dos fluxos naturais, espontâneos, e das linhas de desterritorialização das cidades de hoje” (LEMOS, 2014, p. 39). “Desterritorialização” – esta é uma das chaves para o entendimento da proposta de Gibson. A cidade se torna sem fronteiras urbanas e regionais, o espaço real pode se confundir com o virtual e as noções de tempo linear não fazem qualquer sentido. Complementar a esta perda do espaço, percebe-se a fragmentação de códigos culturais, nações, povos e pátrias. É a perda da identidade dos povos, sob o fluxo de processos homogeneizantes. Não se sabe se os Estados Unidos como país existem, por exemplo, muito menos a Europa – ocasionalmente destruída em campanhas militares e tratada como relíquia em certas passagens do livro. Além disso, os personagens constantemente 21 “The mounting waste of desolate urban sites, the pervasiveness of crime and disease, and the enduring fascinatin held by relics from bygone ages underscore the cybercity’s corporeal dimension” (CAVALLARO, 2003, p. 133), tradução do autor. 29
descrevem o espaço como uma colagem de elementos culturais diversos, como por exemplo a casa de chá Jarre de Thé, em Chiba City (cidade à oeste de Tóquio): As paredes do Jarre eram inteiras cobertas por espelhos, cada painel emoldurado em neon vermelho. [...] A decoração do Jarre era de um estilo datado e sem nome do século anterior, uma mistura difícil de tradição japonesa e plásticos brancos de Milão, mas tudo parecia estar coberto por uma película sutil, como se crises nervosas de um milhão de clientes de algum modo tivessem atacado os espelhos e o plástico outrora brilhosos, deixando cada superfície enevoada com alguma coisa que nunca poderia ser apagada. (GIBSON, 2016, p.30). A arquitetura e o urbanismo descritos nos cenários são ecléticos, de estilos próprio aos debates dos anos de 1980, quando o pós-modernismo ainda era vigente. Amaral (2006) trata a cidade cyberpunk como um parque temático, estabelecendo uma ponte com David Harvey (2002). Para o geógrafo, a arquitetura e o urbanismo pós-modernos seriam como a cidade-parque de Amaral, ambos são formados por uma fachada ilusória, isto é, uma montagem que utiliza retalhos em uma nova situação. Trata-se da “busca de um mundo de fantasia, de viagem ilusória que nos tire da realidade corrente e nos leve a imaginação pura” (LEMOS, 2014, p. 30). Harvey adiciona que essa teatralidade entra em consonância com a noção de pósmodernismo, demarcando a vida contemporânea sobre os impactos do rápido fluxo de mudanças. Esta fachada exprime, de certa forma, “um mundo desgovernado sujeito a um sistema econômico, político e moral desorganizado” (2002, p. 95). Assim entendido, o Jarre de Thé poderia ser incluído como uma obra pós-moderna, evidenciada no tratamento eclético embebido de pátinas, em busca da retomada de uma identidade, uma obsessão em tempos de homogeneidade cultural. A casa de chá é um pequeno exemplo indicativo dos espaços presentes nas cidades gibsonianas. Seus exageros estéticos e sociais confrontam um dos elementos fundamentais da cidade ocidental clássica: o génos. Literalmente, esta palavra grega quer dizer origem, espécie. Pode-se dizer que a hibridização cultural e étnica presente em Neuromancer é produto da transformação da orbis em urbs. Isto é, a globalização representada pela transição do mundo em cidade que, consequentemente, traz 30
consigo a perda do génos. As composições híbridas de Gibson abrangem elementos repetitivos e, normalmente, incluem símbolos que caracterizam um determinado lugar. Dessa forma, observa-se um fenômeno curioso e discrepante em Neuromancer, nas ambientações urbanas supostamente homogêneas, elementos identitários flutuam como restos a nos remeter a cidades e lugares conhecidos. Outro fenômeno interessante é o surgimento de “tribos” justamente em locais onde os limites da cidade são perceptíveis e sua dinâmica assemelha-se às periferias urbanas, configurando-se como verdadeiros enclaves. Partindo destas discussões, é possível identificar o drama das cidades gibsoniana: que se refere ao confronto da cidade-território, definida por sua geografia física, a perda de sua identidade e memória, do seu génes. Diante do exposto, levanta-se a questão das transformações do conceito de cidade. Ainda é possível qualificarmos a cibercidade de Neuromancer de cidade? Ou este conceito foi ultrapassado? O urbano em Neuromancer evidencia as metamorfoses do conceito de cidade. Vasconcelos (2015) apresenta uma série de teóricos desde o período clássico até o atual com o objetivo de demonstrar que esta transformação contínua e necessária provém da mudança de valores fundamentais da sociedade e do espaço vivido que dependerão de diferentes contextos históricos e geográficos. Assim, em Neuromancer, as cidades referidas pelo autor responderiam as condições específicas de seu tempo histórico. Gibson representa em sua obra um mundo com incrível semelhança estrutural à época em que foi escrito. As cidades de Neuromancer, espelho “hiperestetizado” das urbes de seu presente, nunca deixarão de ser cidade, mas suas peculiaridades e estilos configuram certamente a pós-cidade que, em menos de vinte anos, alcançou nossa realidade.
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“O céu sobre o porto tinha cor de televisão fora do ar” CHIBA CITY
GIBSON, 2016, p.23
C
hiba, em japonês 千葉市 (Chiba-shi). Hoje, é a capital da província homônima que abraça a maior parte da Baía de Tóquio. Compõe a conurbação da Grande Tóquio e está a quarenta quilômetros a sudeste de sua vizinha titânica, possuindo aproximadamente metade de sua densidade populacional. O Porto de Chiba é um dos maiores do país, conjuntamente com o aeroporto de Narita constitui uma das entradas do Japão. Ao longo de sua costa, localizam-se inúmeras fábricas e armazéns, entremeadas por áreas residenciais. As indústrias de base da cidade abarcam manufatura de ferro e aço, energia elétrica e produtos alimentícios. Mais recentemente, segundo a JETRA (Organização de Comércio Externo do Japão), pretende-se investir na indústria da informação, inovação e internacionalização, visando tornar-se um Vale do Silício japonês, o centro mundial na produção de drones. Parece um futuro promissor, e é exatamente isso que Gibson, de maneira oposta, explora em sua versão de Chiba. O Japão em Neuromancer é impreciso, contudo, sua posição de potência econômica emergente dos anos 1980 persiste. No livro, o país proibiu as transações comerciais com dinheiro vivo enquanto o Neoiene, a moeda virtual, circulava por todo o globo como moeda corrente. As bugigangas tecnológicas produzidas pelo Japão tornaram-se essenciais no dia-a-dia: computadores de bolso Hosaka, decks Ono-Sendai, cigarros Yeheyuans, veículos Honda... No livro, o Japão é conhecido por seu avanço na medicina protética e neurocirúrgica, especialmente em Chiba, “sinônimo de implantes, junções neurais e microbiônica”, legais ou ilegais. É, também, um lar extremamente sedutor para gaijins22 e “subculturas tecnocriminosas do Sprawl”. (GIBSON, 2016, p.27) A história de Case começa em Chiba, mais precisamente no enclave de Night City, uma parte estreita da cidade formada por ruas antigas entre o porto e a cidade. Night City não tem nome oficial, muito menos seu coração, Ninsei. É lá onde as clínicas ilícitas aglomeram-se, assim como bares perturbadores, casas noturnas, pontos de droga, pachinkos23 escandalosos e fliperamas high-tech. Suas ruas são superpovoadas 22 23
Nome dado aos imigrantes e estrangeiros pelos japoneses. Casa de jogos de azar japonesa. 33
por multidões, especialmente à noite, quando a cidade ganha vida. O ar dessa área é pior que o de costume, “parece ter dentes”, e as ruas têm um constante cheiro de aço frio onde “hologramas se contorcem e estremecem ao rugido dos games, fantasmas se sobrepondo na neblina lotada do lugar, um cheiro de suor e tensão com tédio” (GIBSON, 2016, p.147). Essa Chiba de Gibson é diferente, parece ter deixado de lado os deleites da vida da carne, aquela vivida e sentida no mundo real. De suas margens é possível ter uma visão nebulosa e melancólica dos neons espetaculares de Tóquio enquanto seus habitantes regularmente vestem máscaras com filtro para enfrentar o “céu de prata envenenado”. Tóquio estava reservada às “famosas butiques”, abastecendo arcologias pontiagudas que exibiam seus gigantescos hologramas corporativos, enquanto Night City era o enclave dos renegados. Case descreve a gente que formava Night City: Grupos de marinheiros vindos do porto, turistas tensos e solitários caçando prazeres que nenhum guia de viagem listava, pessoal pesado do Sprawl exibindo enxertos e implantes, e uma dezena de espécies diferentes de marginais, todos ocupando a rua numa intrincada dança de desejo e comércio. (GIBSON, 2016, p.32) Em seguida, sua dinâmica social: Night City era como uma experiência malsucedida de darwinismo social, projetada por um pesquisador entediado que não tirava o dedo do botão de fast-forward24. Pare de assaltar e você afunda sem deixar rastro, mova-se um pouco rápido demais e você quebra a frágil tensão de superfície do mercado negro; de qualquer uma das maneiras, você já era, e não sobra nada seu [...] O negócio ali era um constante zumbido subliminar, e a morte o castigo aceito por preguiça, descuido, falta de sutileza, a incapacidade de atender às exigências de um intrincado protocolo. (GIBSON, 2016, p.28) 24 34
Efeito que consiste em avançar uma gravação de áudio ou vídeo de maneira mais rápida.
Imagem 04: Rua no JapĂŁo. 35
Imagem 05: Nakagin Capsule Tower, projetada por Kisho Kurokawa em 1972. 36
É notória a segregação social entre Chiba e Night City. A primeira é a casa dos sararimans25 e das zaibatsus26, onde as pessoas de bem fazem o sistema funcionar e a economia girar; a segunda, a casa dos gaijins e dos delinquentes, laboratório de procedimentos perigosos e parque temático de divertimento e esbórnia. Chiba conforma-se como uma padronagem de microcircuitos e seu horizonte é ocupado por “cúpulas de fábricas dominadas pelos cubos imensos das arcologias corporativas”, enquanto Night City nasce a partir de galpões industriais e armazéns modernizados. É interessante abordar o conceito de arcologia pois foi um termo cunhado pelo arquiteto Paolo Soleri (1919-2003) e designava uma cidade com alta densidade demográfica e ecossistema próprio. Isso denota o aspecto superpopuloso de Chiba, reforçado pela presença rotineira de habitações “caixão”, cápsulas de morar como o Cheap Hotel de Gibson (2016): “Os caixões brancos de fibra de vidro estavam empilhados em uma estrutura de andaimes industriais. Seis andares de caixões, dez caixões de cada lado” (p.42). Os caixões minúsculos para os pobres, as arcologias higienizadas para os ricos. Podemos assimilar os caixões de morar de Gibson ao movimento arquitetônico corrente no Japão do pós-guerra, o metabolismo japonês. O trabalho de um de seus arquitetos mais reconhecidos, Kisho Kurokawa, envolvia a unidade básica deste movimento: a cápsula. Koolhaas e Obrist (2011) afirmam que este objeto viria em resposta à obsessão da época pela mobilidade e à severa situação demográfica. Kurokawa declara: “A cápsula representa a emancipação do edifício em relação ao solo e anuncia a era da arquitetura em movimento...” (p.336, tradução nossa). As “gaiolas de plástico” em Neuromancer são a opção mais barata para morar, objetos parasitas atracados a outros prédios que oferecem o mínimo necessário para ter uma noite razoável de sono, enquanto outras camadas sociais habitam as arcologias colossais. O caixão é um tipo de habitação portátil que se adequa ao rápido e intenso fluxo da cidade e sua estrutura social. Além do Jarre de Thé, mencionado no início deste capítulo, há outras 25 26
Derivada do inglês, “salary man”, funcionado assalariado de empresas. Corporação multinacional normalmente de base familiar. 37
referências arquitetônicas que compõem o cenário de Chiba aos olhos de Case. O Chatsubo é seu local favorito e seu dono, um eurasiano muito peculiar: Quem estava cuidando do bar era o Ratz, que enchia uma bandeja de copos com cerveja Kirin draft, com uma prótese de braço que se movia aos trancos. Ele viu Case e deu um sorriso; seus dentes eram uma teia composta de aço do leste europeu e decomposição marrom [...] Sua feiura era legendária. Numa era em que ser bonito saía barato, havia alguma coisa de heráldica na ausência de beleza que ele exibia. O braço antigo gemeu quando ele o estendeu para pegar outra caneca. Era uma prótese militar russa, um manipulador force-feedback de sete funções, revestido com plástico rosa encardido (GIBSON, 2016, p.37) Ratz representa a típica gente de Ninsei, Ratz era a própria Night City, e o “Chats”, seu refúgio. A toca transcultural onde hackers e outros “expatriados profissionais” desapareciam em uma cidade tumultuada. O nome Chatsubo referese a um típico recipiente japonês cerâmico para amarzenar o chá, uma relação possivelmente irônica, pois o bar é frequentado predominantemente por gaijins, era possível “beber ali todos os dias durante uma semana e nunca ouvir duas palavras em japonês” (GIBSON, 2016, p.37). O Sammi’s era diferente. A maioria de seus frequentadores eram japoneses; para Case, “não era a multidão típica da Night City. Era uma multidão urbana. Techies das arcologias”. Seus fregueses assistiam a danças violentas de hologramas performáticos sobre o ringue: uma casa de lutas. Essa era uma imensa cúpula inflável nas margens da baía de Tóquio, sustentada por um material acinzentado “esticado e reforçado com uma rede de cabos finos de aço”. Lá dentro, o “concreto se inclinava em degraus até uma espécie de palco central, um círculo elevado com um ringue reluzente de equipamento de projeção. Nenhuma luz, a não ser os hologramas que se deslocavam e piscavam sobre o ringue [...] Estratos de fumaça de cigarro subiam das arquibancadas, vagando até baterem em correntes criadas pelos ventiladores que 38
davam suporte à cúpula”. A julgar pela clientela, Case achava que a arena tinha algo a ver com as grandes corporações da cidade. Um divertimento empresarial para seus sararimans, que viviam e morriam às custas de suas Companhias. (GIBSON, 2016, p. 61-62) Night City e Ninsei são a zona decaída da megalópole. Chiba tolera o enclave pois é um laboratório de horrores. Além de herança da Yakuza, Night City é um “playground deliberadamente supervisionado de tecnologia”, pois, afirma Case, o desenvolvimento de novas tecnologias exigia espaços como este. Uma parasita necessária. No fim do livro, mesmo curado e endinheirado, Case volta a seu local favorito: o Chatsubo. Ratz o olha com indiferença, era como se ele nunca tivesse aparecido por lá, afinal: “Ninguém volta a um lugar como Night City” (GIBSON, 2016, p.308). Em Neuromancer, o Japão é representado com signos típicos e estereotipados de sua cultura, estendendo-se de sua antiguidade até sua modernização. Samurais e ninjas misturam-se a torres coloridas de neon e hologramas, e sua estrutura social permanece intacta, a não ser pelos exageros estéticos das ruas depredadas de Ninsei. Todas as paisagens narradas apresentam elementos da cultura nipônica, de Istambul ao Espaço Sideral. O oriente invadiu o ocidente, mas nunca de maneira prejudicial. É uma relação de mutualismo. É interessante saber que, enquanto escrevia Neuromancer, Gibson nunca havia ido ao Japão (WILSON, 1988). A escolha de Chiba foi completamente aleatória e pura coincidência quando descobriu que a cidade se enquadrava perfeitamente em suas descrições. No entanto, é fácil relacionar sua fascinação com a Ásia à visão geral americana do continente. Sanders (2008) afirma que a imagem do Japão para os americanos sofreu uma profunda transformação nos anos 1980, pois deixaria de ser a terra das gueixas exóticas e das cerejeiras para ser a terra da tecnologia de ponta, um futuro próximo de uma sociedade industrializada e mais moderna. O Japão seria a versão mais completa do modelo ocidental, tendo sua identidade muito mais reconhecida que a cultura americana. A fantasia exótica do futuro. 39
“Manhattan e Atlanta brilham com um branco incandescente. Então, começam a pulsar: a taxa de tráfego ameaça sobrecarregar sua simulação. Seu mapa vai virar uma supernova.” SPRAWL
GIBSON, 2016, p.67 40
Programe um mapa para exibir frequência de troca de dados, sendo cada gigabyte um único pixel em uma tela muito grande. Manhattan e Atlanta brilham com um branco incandescente. Então, começam a pulsar: a taxa de tráfego ameaça sobrecarregar sua simulação. Seu mapa vai virar uma supernova. Esfrie o mapa. Aumente a escala. Cada pixel vale agora um milhão de megabytes. A cem milhões de megabytes por segundo, você começa a distinguir certos quarteirões no centro de Manhattan, os contornos de parques industriais de cem anos de idade ao redor do núcleo antigo de Atlanta... (GIBSON, 2016, p.67)
E
sta é Sprawl, a super cidade que se estende entre Boston e Atlanta, ela não cabe nem mesmo em um mapa. Uma mancha urbana prolongada incessantemente, como a explosão de uma supernova no espaço. Este intenso processo de expansão urbana horizontal é permitido pela disponibilidade de terras e disposição geográfica da costa leste estadunidense, diferentemente do Japão, cuja situação geográfica é muito mais restritiva, requerendo uma expansão vertical para suprir a demanda demográfica. A força simbólica de Sprawl é notável no contexto da narrativa, normalmente retomada por personagens com sotaque e ações “típicas” de pessoas da região, porém o espaço descrito é pouco específico e muito genérico. Em Neuromancer, Sprawl não se sobressai a Chiba em termos de relevância cultural. Na verdade, elementos orientais são muito mais presentes em suas passagens do que elementos americanos característicos. O BAMA, Boston-Atlanta Metropolitan Axis, é a terra de todos, entendido como um universo extremamente plural e mutável, onde se pode fazer o quiser e ser quem quiser. Nas palavras de Case: “modismos varriam no Sprawl à velocidade da luz; subculturas inteiras podiam surgir da noite para o dia, proliferar por algumas semanas e depois desaparecer inteiramente” (GIBSON, 2016, p. 83). Assim, vê-se que é um espaço onde os códigos culturais são generalizados, associam-se e desassociam-se em alta frequência. O horizonte do BAMA é dominado por “uma montagem tremeluzente” de 41
Imagem 06: GeodĂŠsica de Fuller sobre a cidade de Nova Iorque. 42
torres de vidro, edifícios pirâmides, cúpulas geodésicas de Fuller e versões gigantescas do Cheap Hotel, todos sempre acompanhados de seus hologramas comerciais. Já a superfície é dominada por pontes, vias abarrotadas e trens de alta velocidade (GIBSON, 2016, p.55). Possivelmente, o elemento que mais contrasta Chiba e Sprawl é a habitação de Case: o cowboy dormia em um cápsula minúscula em Night City, mas no BAMA seu quarto era grande: Paredes nuas, sem janelas, uma única porta de incêndio de aço pintada de branco. As paredes haviam recebido incontáveis demãos de tinta látex branca. Espaço de fábrica. Ele conhecia aquele tipo de aposento, aquele tipo de prédio; seus inquilinos operavam na interzona, onde a arte não chegava a ser crime e o crime não chegava a ser arte. Ele estava em casa. (GIBSON, 2016, p.68) Mas, percebe-se que a casa-cápsula e a casa-fábrica guardam semelhanças conceituais importantes, apesar de suas características materiais divergirem. São lares completamente assépticos, desprovidos de elementos que dão personalidade ao lugar; confundem-se casa e dormitório. Em Neuromancer, o período que Case passa em Sprawl ressalta sua indiferença ao espaço físico e seu desprezo ao corpo: Isso era quem ele era, o que ele era, seu ser. Ele se esquecia de comer. [...] Às vezes lamentava ter que sair do deck para usar o banheiro químico que haviam montado num canto do loft. [...] Seu labirinto de pixels arco-íris era a primeira coisa que via quando acordava. Ia direto para o deck, sem nem pensar em se vestir, e se conectava. [...] Ele estava trabalhando. Perdia a noção dos dias. (GIBSON, 2016, p.8485) Esta não é uma situação atípica na vida do protagonista, e sim seu dia-a-dia e o estilo de vida de muitos no mundo de Sprawl. A virtualidade passa a ser a vida real, as necessidades básicas do ser humano são um empecilho. Seu trabalho, suas relações, seus deleites e medos estão no “labirinto de pixels arco-íris”, de modo que a casa perde 43
seu valor espiritual e torna-se, assim como o corpo, apenas um recipiente humano. Mesmo assim, a vida continua intensamente nas ruas de Sprawl: Verão no Sprawl, as multidões no shopping indo para um lado e para o outro como se fossem talos de grama soprados ao vento, um campo de carne com marés súbitas de necessidade e gratificação. [...] Nada como a dança elétrica de Ninsei. Aquilo ali era um comércio diferente, um ritmo diferente, no cheiro de fast-food e perfume e suor fresco de verão. (GIBSON, 2016, p.71) A vida urbana do Sprawl ainda expressa um fluxo constante de energia e matéria, mas é tênue se comparada a Night City. O mundo virtual não substituiu o mundo real, mas certamente o modificou. Assim como as habitações estéreis, a rua começa a perder seu valor sensível. Se elevado ao extremo, ter-se-ia uma passagem completamente funcional, sem informações, sem adornos e sem surpresas. Todo e qualquer tipo de imagem seria representado digitalmente, tanto na realidade virtual (ciberespaço) quanto na aumentada (hologramas), e a via seria apenas um caminho de concreto. Case já dá indícios desse processo: “Sentou-se ao lado de Molly sob a luz filtrada do sol na beira de uma fonte de concreto seca. [...] Ele se mexeu desconfortável no concreto, sentindo sua dureza e frieza atravessar o denim preto fino”. (GIBSON, 2016, p.71) Em contrapartida, como é de se esperar, o espraiamento-supernova de Sprawl permite a existência de inúmeras situações urbanas distintas, como revela Case quando Molly o leva para sua “zona”: Um neon sem vida exibia as palavras METRO HOLOGRAFIX em maiúsculas de tubos de vidro empoeiradas. [...] Olhou ao redor da rua deserta e sem saída. Uma folha de impresso de notícias passou voando pelo cruzamento. [...] Pela janela, Case deu uma espiada no neon morto. O Sprawl dela não era o Sprawl dele, decidiu. (GIBSON, 2016, p.72)
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Todos estes enclaves funcionam como um todo em Sprawl, pois suas distâncias foram encurtadas; é possível deslocar-se de Nova Iorque a Atlanta em questão de minutos, por exemplo. Essa integração é feita por um eficiente sistema de transporte: os trens trans-BAMA. As “raízes de ferroconcreto do Sprawl” estão muito presentes na vida dos citadinos, e de certa forma figuram a extensão da rua. (GIBSON, 2016, p.55). Apesar do livro tratar Sprawl muito brevemente, é possível ter uma visão geral sobre sua complexidade, mas surgem algumas questões. Enquanto Case andava pelas ruas, frequentemente avistava propagandas que atraíam sua atenção para um convite sedutor: Ele saiu e avistou um charuto holográfico branco, suspenso contra a parede da estação, a palavra FREESIDE pulsando abaixo dele em maiúsculas contorcidas que imitavam japonês impresso. Ele atravessou a multidão e ficou embaixo do sinal, estudando a coisa. PARA QUE ESPERAR?, pulsava o sinal. (GIBSON, 2016, p.104)
Freeside é uma das colônias espaciais na órbita da Terra. O que é tão fascinante neste lugar? Por que deixar os “pedaços de metal fundido e carcaças enferrujadas de refinaria” de Sprawl? Talvez Case nunca tenha cogitado voltar ao Sprawl devido a neutralidade sensível de uma cidade refém da tecnologia; um local tedioso que não consegue mais enraizar seus habitantes. (GIBSON, 2016, p.104)
***
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“O DNA humano transbordando e se espalhando para fora do íngreme poço gravitacional como uma mancha de óleo no oceano.” ARQUIPÉLAGO ORBITAL
GIBSON, 2016, p.129 46
Arquipélago. As ilhas: toroide, fuso, aglomerado. O DNA humano transbordando e se espalhando para fora do íngreme poço gravitacional como uma mancha de óleo no oceano. (GIBSON, 2016, p.129)
A
complexa noção inédita em Neuromancer de cidades extraterrenas é, possivelmente, um dos aspectos mais intrigantes do livro. Confuso e quase inconcebível em nossas mentes, o cenário narrado das colônias espaciais é de difícil apreensão e fortalece o sensível, sobressaindo-se à materialidade – é mais fácil assimilar o sentimento dos personagens em relação ao espaço do que sua forma material. O arquipélago espacial formado por essas colônias é setorizado, cada uma das colônias tem funcionalidades específicas e constituem um sistema de interdependência. É símbolo da expansão máxima da humanidade, a fronteira final onde as barreiras físicas do espaço sideral são quebradas. Expandir a presença da humanidade para fora da Terra pode significar muitas coisas. Pode ser a construção de uma nova civilização, a busca por fontes de recursos inesgotáveis, refúgio, entre tantas outras possibilidades, dependendo dos motivos de quem participa desta aventura. Em Neuromancer, o arquipélago tem um único dono: a megacorporação Tessier-Ashpool. Consequentemente, toda sua dinâmica está atrelada às ações da empresa, privilegiando suas metas econômicas e determinando um espaço urbano rigidamente modelado. As leis orbitais são mais lenientes em relação às da Terra, a moeda é própria – o crédito de Freeside –, e sua política de acesso é restritiva. É nítido a engenharia social presente nas colônias, ela começa desde a atração de novos clientes fazendo-se por meio de hologramas encorajadores e panfletos impressos “caros e sofisticados, em francês, inglês e turco. FREESIDE – PARA QUE ESPERAR?”. Inicialmente, o livro sugere que o arquipélago é um mero resort de temporada, mas em seu desenrolar, constitui-se de um agrupamento complexo entre três estações espaciais muito diferentes entre si: Zion, Freeside e Villa Straylight. (GIBSON, 2016, p.125) 47
Z
ion é um “aglomerado” peculiar que incorpora um senso de comunidade singular na narrativa. O lugar “tinha cheiro de vegetais cozidos, humanidade e ganja27”. Diferentemente de Freeside e Straylight, Zion formou-se deliberadamente a partir de uma comunidade específica, envolvendo códigos culturais comuns (GIBSON, 2016, p.132). O livro expõe: Zion havia sido fundada por cinco operários que se recusaram a voltar, que deram suas costas ao poço gravitacional e começaram a construir. Sofreram perda de cálcio e o encolhimento cardíaco antes que a gravidade rotacional fosse instalada no toroide central da colônia [...] o casco improvisado de Zion lembrou Case do patchwork de barracos de Istambul, as placas irregulares e descoloridas rabiscadas a laser com símbolos rastafári e as iniciais de soldadores. (GIBSON, 2016, p.131) Vê-se em Zion um dos aspectos chave do movimento literário de Neuromancer, retomando a Lemos (2004), “a apropriação, a paixão tribal e urbana”, ou seja, a parte punk do cyberpunk. A primeira impressão do aglomerado é a de um amontoado de sucatas metálicas que conformam um grande abrigo que dá espaço a um coletivo com forte identidade cultural. Os zionitas são um povo afetivo, muito trabalhador e devoto às suas crenças. O rastafarianismo é a cultura predominante do aglomerado e, no livro, a grande maioria de sua população é responsável pelo trabalho pesado do arquipélago, possuem sotaque “relaxado”, têm suas crenças voltadas à uma mesma entidade, “Jah”, estão sempre ouvindo dub28 e utilizando o fumo. Os zionitas são a massa de trabalho que viabiliza o pleno funcionamento das colônias. Todos são livres para entrar em Zion, mas em Freeside a história é diferente, “sua alfândega consiste principalmente em provar seu crédito”:
27 Fumo a base de maconha usado para fins espirituais pelos Rastafari. 28 “[...] Case foi aos poucos se dando conta de uma música que pulsava constantemente por todo o aglomerado. Era chamada dub, um mosaico sensual misturado a partir de imensas bibliotecas de pop digitalizado; era fé, disse Molly, e um senso de comunidade” (GIBSON, 2016, p.132). 48
Ative uma representação gráfica que simplifique a troca de dados do arquipélago L-529. Um segmento aparece em vermelho-vivo, um retângulo maciço dominando sua tela. Freeside. Freeside representa muitas coisas, nem todas evidentes aos turistas que sobem e descem o poço gravitacional em ônibus espaciais. Freeside é bordel e nexus bancário, cúpula de prazer e porto livre, cidade de fronteira e spa. Freeside é Las Vegas e os jardins suspensos da Babilônia, uma Genebra orbital e lar de uma família acostumada a cruzamento interno e refinada a um cuidado extremo, o clã industrial de Tessier-Ashpool. (GIBSON, 2016, p.129)
F
reeside é o retiro daqueles que buscam uma fuga da rotina, um escape. Essa parte do arquipélago abriga visões fantásticas que só são possíveis devido à tecnologia. Talvez seja a negação máxima do ambiente terrestre e, ao mesmo tempo, sua saudade; é uma enorme colônia feita de concreto e aço que mimetiza paisagens da Terra em seu interior. Freeside é uma estrutura cilíndrica voltada para si mesma, como um “charuto estreito nas pontas”. A medida que chegamos a suas extremidades, o chão fica mais íngreme, configurando um efeito montanha. Lá, “eles não têm clima, apenas temperatura”. O sol de Freeside é fornecido por um sistema que Gibson batiza “Lado-Acheson”, um mecanismo que bombeia a luz solar por um feixe de luz de dois milímetros ao centro do fuso da colônia e percorre toda sua extensão. Seu céu tem uma “biblioteca rotativa de efeitos celestes”, podendo produzir de um “azul pré-gravado de um céu de Cannes” à uma “imitação abstrata de um pôr do sol nas Bermudas” (GIBSON, 2016). A Genebra mimética resguardada por robôs acomoda paisagens tipicamente alpinas com montanhas esverdeadas e lagos cianos. Sua arquitetura eclética combina elementos europeus diversos de séculos anteriores e, principalmente, do “Vingtième Siècle”30, o que sugere um apanhado de detalhes art nouveau e art déco. Seu horizonte é dominado por hotéis e cassinos luxuosos, mansões suntuosas com jardins 29 L-5 refere-se a um dos Pontos de Lagrange, locais de interssecção gravitacional entre corpos celestes, no qual seria estável o suficiente para a hospedagem de uma estação especial. 30 O melhor e mais caro restaurante de Freeside, uma jóia que flutua em um pequeno lago perto do hotel Intercontinental. 49
Imagem 07: Visão geral da colônia espacial Stanford Torus, desenhada por Don Davis.
Imagem 08: Paisagem européia dentro do Stanford Torus, desenhada por Don Davis. 50
renascentistas e piscinas deslumbrantes, ótimo local para se bronzear. A rua Jules Verne – tributo ao padrinho da ficção científica – era a principal de Freeside. Larga e coberta de paralelepípedos, “parecia ser o chão de uma fenda ou desfiladeiro profundo; cada uma das extremidades estava oculta por ângulos sutis nas lojas e prédios que formavam suas paredes. A luz, ali, era filtrada por massas verdes frescas de vegetação que pendiam de degraus e varandas suspensas que se elevavam acima deles” (GIBSON. 2016, p.151-152). Esta avenida seguia a circunferência no centro do fuso da colônia-charuto, cortada perpendicularmente por seu segundo eixo mais importante, a rua Desiderata – homenagem desta vez feita ao poema homônimo de cunho motivacional e reflexivo escrito por Max Ehrmann em 1927. Em Freeside, “se você virasse à direita, saindo da Desiderata, e seguisse pela Jules Verne direto, acabaria se aproximando da Desiderata pela esquerda”. Case adiciona: Acima de sua cabeça, ao longo do eixo anoitecido, o céu de holograma brilhava com constelações inventadas que sugeriam cartas de baralho, faces de dados, uma cartola, uma taça de Martini. O cruzamento da Desiderata com a Jules Verne formava uma espécie de ravina, as varandas-terraços dos habitantes das colinas de Freeside subindo gradualmente até mesas gramadas de outro complexo de cassinos. (GIBSON, 2016, p.181) O caráter deveras capitalista não passa despercebido em Freeside. A primeira coisa que se vê ao sair da alfândega é uma loja da franquia Beautiful Girl. Seguindo a Jules Verne, Case passa por “bares de nome como Hi-Lo, Paradise, Le Monde, Cricketeer, Shozoku Smith’s, Emergency. Ele escolheu o Emergency porque era o menor e o mais lotado, mas só levou segundos para perceber que era um lugar de turistas. Ali não existia o zumbido dos negócios, apenas uma tensão sexual amortecida” (GIBSON, 2016, p.182). São visíveis o multiculturalismo e a oferta de opções de entretenimento controlado para quase todos os gostos. Mas Freeside não era apenas uma destinação de jogos, sol e piscina, o que Case percebe ao descer alguns níveis abaixo da superfície ensolarada: 51
Freeside de repente começou a fazer sentido para ele. Podia sentir aquilo tudo vibrando no ar. Aquilo ali é que era a ação local. Não a fachada superbrilhante da rua Jules Verne, mas a coisa real. Comércio. A dança. A multidão era mista; talvez metade fosse turistas, a outra metade de residentes das ilhas. [...] Ele passou rapidamente pelas mesas lotadas, ouvindo fragmentos de meia dúzia de idiomas europeus. (GIBSON, 2016, p.176) Freeside era uma versão melhorada de Night City, apropriada ao estilo de vida sofisticado de seus clientes e moradores afortunados. Mas diferentemente de Night City, onde o deleite da carne era abominado, Freeside valorizava a contemplação de suas belas paisagens arborizadas e o desfruto de um céu fantástico para bronzear o corpo que não fazia sentido para Case, ele observa um grupo de jovens: “os bronzeados delas eram irregulares, um efeito de estêncil produzido por boosting31 seletivo de melanina, tonalidades múltiplas sobrepondo-se em padrões retilíneos, realçando e contornando musculaturas” (GIBSON, 2016, p.156). Este era um fato intrigante para o cowboy do ciberespaço, ali o corpo e a vida real eram valorizados, mesmo que com doses homeopáticas de tecnologia. Além da proximidade à carne, Case estranha o “número antinatural de árvores”: As árvores eram pequenas, retorcidas, impossivelmente velhas, resultado de engenharia genética e manipulação química. Case teria tido muita dificuldade para diferenciar um pinheiro de um carvalho, mas o senso de estilo de um garoto de rua lhe dizia que aquelas árvores ali eram bonitinhas demais, total e definitivamente árvores demais. (GIBSON, 2016, p.156) A hesitação de Case frente a vegetação perfeita revela o divisor de águas entre seu mundo e aquele. Uma aurora pré-gravada e uma rua arborizada não faziam sentido para um hacker, era, inclusive, uma experiência desconfortável pois ele simplesmente não saberia o que sentir. Este momento do livro também denuncia 31 52
Melhoramento, aumento de eficiência.
Imagem 09: Ilustração de Pierre Mio representando um shopping-center orbital. 53
a segregação exacerbada entre classes sociais e, consequentemente, seus privilégios desequilibrados. Case nunca havia sentido o cheiro de grama cortada, por exemplo, e muito menos se importava em embelezar seu “recipiente de carne”. Eram mundos praticamente opostos. Sobre Freeside existe uma estrutura em formato toroide que abraça seu fuso. Sua fama é a de uma estância estritamente particular, pertencente à família TessierAshpool. A Villa Straylight, um lugar “bonito, todo cheio de laguinhos e lilases. É um castelo de verdade, todo de pedras e poentes”, dizem. Straylight significa mais do que a casa dos Tessier-Ashpool, é um ninho que traduz espacialmente o que o clã gostaria de ser, um corpo espacial “equivalente a um humano”. (GIBSON, 2016, p.184-205). Na voz de um dos membros da família: A Villa Straylight [...] é um corpo que cresceu sobre si mesmo, uma loucura gótica. Cada espaço na Villa Straylight é, de algum modo secreto, essa série infinita de câmaras ligadas por passagens, por escadarias abauladas como intestinos, onde o olho é capturado em curvas estreitas, aprisionado por telas ornamentadas. [...] Os arquitetos de Freeside tiveram um excruciante trabalho para ocultar o fato de que o interior do fuso é disposto com a precisão banal da mobília num quarto de hotel. Na Straylight, a superfície interna do casco é uma proliferação desesperada de estruturas supercrescidas, formas fluidas, entrecruzando-se, erguendo-se na direção de um núcleo sólido de microcircuitos, o coração corporativo de nosso clã, um cilindro de silício todo perfurado por estreitos túneis de manutenção como buracos de minhoca, alguns menores que a mão de um homem. [...] Pelo padrão do arquipélago [..] nossa família é antiga, e as convoluções de nosso lar refletem essa idade. Mas refletem mais alguma coisa também. A semiótica da Villa trai um voltar-se para dentro, uma negação do vácuo brilhante além do casco. Tessier e Ashpool subiram o poço gravitacional para descobrir que detestavam o espaço. Construíram Freeside para sugar a riqueza das novas ilhas, ficaram ricos e excêntricos, e começaram a construção de um corpo 54
estendido em Straylight. Nós nos isolamos por trás de nosso dinheiro, crescendo para dentro, gerando um universo impecável do self. (GIBSON, 2016, p.207)
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Villa Straylight é uma espécie de casa-organismo megalomaníaco que reflete a alma de uma família, cerne de suas crenças e espírito. TessierAshpool expressa em seu lar a obsessão em ser imortal, revelada na clonagem e criogenia de seus familiares e, em seu ápice, na transferência de sua essência para uma entidade de inteligência artificial máxima no ciberespaço, uma soma de todas as suas consciências. Straylight é a imagem de um clã familiar que cresce desesperadamente para dentro de si e, enfim, começa a desmoronar por ter perdido a razão face um futuro que não faz mais sentido, embebido em “um emaranhado apodrecido de medos” e um “estranho senso de falta de objetivo” (GIBSON, 2016, p.240). Quando Case entra na Villa Straylight ele se depara com um ambiente abandonado, imóvel, onde “trechos inteiros estavam sendo despidos de volta à estrutura nua de aço e concreto” (GIBSON, 2016, p.241). Straylight era a expressão da identidade corporativa de Tessier-Ashpool que estava agora afundada em sua insanidade, Case frisa: Straylight era louca, era a loucura crescida a partir do concreto resinoso misturado, a partir de rochas lunares pulverizadas, crescida a partir do aço soldado e de toneladas de badulaques, todos os materiais bizarros que eles haviam enviado poço acima para forrar seu ninho bizarro. Mas era um tipo de loucura que ele não conseguia entender (GIBSON, 2016, p.240). Decerto Case estivesse testemunhando o resultado de um longo processo de perda da humanidade de Tessier-Ashpool, uma vez que a identidade e a memória do clã estavam gradativamente mais atreladas ao ciberespaço do que à realidade – uma consciência artificializada que existe em um mundo anacrônico e não identifica mais o espírito humano. O urbano em Straylight figura um grande organismo egoísta que, em busca do poder e vida eterna, perde seu propósito, aniquilando toda e qualquer forma de matéria. Ademais, Lemos (2004) acrescenta que Gibson quebra 55
o limite entre humano e não-humano ao descrever a arquitetura de Straylight, uma artificialidade que é simultaneamente orgânica e que “se constrói como uma semitreliça de intestino” (GIBSON, 2016, p.200). Nota-se que Gibson faz uma digressão entre três pilares que fundamentam a dinâmica operacional do arquipélago: o corpo mandante, Villa Straylight, o corpo produtor, Freeside, e o corpo operário, Zion. Straylight é uma formação parasita que tira proveito de sua própria criação, Freeside, escape da vida terrestre, é abastecida por Zion. Em suas palavras: O ecossistema de Freeside era limitado, não fechado. Zion era um sistema fechado, capaz de se reciclar por anos sem a introdução de materiais externos. Freeside produzia seu próprio ar e sua própria água, mas confiava em suprimentos constantes de comida, no aprimoramento regular de nutrientes do solo. A Villa Straylight não produzia absolutamente nada. (GIBSON, 2016, P.264) O arquipélago é uma alegoria dentro da própria alegoria criada por Gibson no mundo de Neuromancer. O território orbital é o resultado de uma urbanidade corporativizada com limites muito bem definidos, enquanto Sprawl e Chiba City são territórios indefinidos que seguem a mesma estrutura social e política siderais.
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Imagem 10: Poรงo gravitacional do Stanford Torus, desenhada por Don Davis 57
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“A melhor maneira de predizer o futuro é inventá-lo” CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alan Curtis Kay, na PARC (Palo Alto Research Center) em 1971
Ao recuperar o debate subjetivo introduzido neste trabalho, percebi que o que mais desperta minha imaginação são cenários de histórias contadas. Descobri em Neuromancer um universo valioso que superava ambições cenográficas. Questionei os motivos que levaram Gibson a criar imagens mentais tão interessantes; efetivamente, estava em busca de seu processo criativo e de que maneira ele estaria impregnado por sua realidade de repertório individual. Vejo que este processo artístico guarda fortes semelhanças com as demais artes, quiçá na arquitetura e urbanismo.32
A gêmea má da utopia As expectativas visuais do livro são superadas por uma projeção no futuro com questões essenciais na discussão dos caminhos da arquitetura e urbanismo. Neuromancer é uma distopia, mas para falar dela é preciso recordar seu sentido. Para isso, voltemos ao conceito de utopia, introduzido no fim do século XV pelo humanista inglês Thomas More em um livro que idealizava a ilha Utopia, onde seus habitantes desfrutavam de um sistema justo, liberal e igualitário. A etimologia da palavra “utopia” retoma ao grego, sendo formada pelo prefixo ou– e pelo radical – tópos; ou é uma negação, enquanto topos, lugar. Logo, “utopia” significa literalmente o “não-lugar”. A obra de More estaria, então, designando uma situação onde uma sociedade é perfeita, impossível de existir. (MATOS, 2017) O conceito de utopia está em constante transformação e, ainda hoje, é abordado por muitos teóricos. O dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano (2007) sugere duas leituras gerais a respeito da utopia. A primeira representa “a correção ou a integração ideal de uma situação política, social ou religiosa existente. [...] essa correção pode ficar no estágio de simples aspiração ou sonho genérico, resolvendo-se numa espécie de evasão da realidade vivida”. A segunda, como “força de transformação da realidade, assumindo corpo e consistência suficientes para transformar-se em autêntica vontade inovadora e encontrar os meios da inovação” (p.987). Portanto, a utopia seria este “não-lugar” cuja sociedade evocaria ideais corretivos e progressistas a fim de atingir formas mais justas de organização social, 32 60
Toma-se a liberdade de tecer as considerações finais em linguagem pessoal.
mas estaria muito distante de nossa realidade. Para ler Neuromancer como distopia, tomemos as observações de Fredric Jameson (2005). Esse autor cruza os conceitos de utopia e distopia para esclarecer a real natureza dessas representações. A posição otimista da utopia pode ser vista como uma semelhança textual puramente formal com sua irmã má. Porém, mesmo que a diferença entre o bom e o mau “não-lugares” esteja nas imagens que ambas comunicam, utopia e distopia estruturalmente evocam o mesmo caráter: ser a representação de uma situação oriunda de um repertório histórico-social que oferece, de alguma maneira, suas causas e consequências, problemas e soluções, perguntas e respostas. Portanto, pode-se entender a criação de Gibson nesta chave comum que é a intersecção de utopia e distopia: são as situações críticas vividas por Gibson nos anos de 1980 que o inspiram, são seus medos, ansiedades, atordoamento diante de um vórtice de mudanças que lhe alimentam a criar as experiências e dramas de Neuromancer. O livro resulta de uma realidade familiar vista de outra maneira. Seu resultado é uma projeção incerta dos elementos negativos da sociedade de seu tempo. Essa projeção carrega em si a capacidade de nomear, tematizar e representar fenômenos que não apenas criticam questões socioeconômicas, mas também o fazem de maneira poética e estetizada, permitindo sua visibilidade para maiores grupos sociais, no caso, como um livro de ficção científica. (JAMESON, 2005)
O território do não-lugar A dissolução de fronteiras físicas e virtuais confronta a cidade tradicional. Vemos em nossa sociedade a “morte de todas as codificações do movimento moderno, do seu pensar a cidade como agregação sucessiva de elementos, desde a habitação ao edifício [...]. É a morte da tipologia abstrata” (CALIARI, 2009 p.53). A pós-cidade não tem espaço definido, é um caldo homogêneo de aspirações e pavores, onde o fluxo de informações é rápido demais para que memórias permaneçam. Como consequência, assiste-se uma espécie de apagamento dos lugares, em seu sentido 61
antropológico. Em um “território” onde a métrica espacial não faz sentido, limites tornam-se apenas artifícios. A problemática essencial de Neuromancer é o embate do corpo frente a eliminação do espaço. Este mesmo espírito ante espacial também permeia o território da pós-cidade atual e é alavancado pelo progresso tecnológico, principalmente, pela presença corriqueira do ciberespaço em nossa rotina. A combinação entre espaço real e virtual concebe a cibercidade e, no caso do livro, a cidade cyberpunk. Estas representam o momento de transição entre a cidade clássica e a cidade do amanhã quando, enquanto corpos, vivenciamos a desintegração do espaço real. A anomalia urbana de Gibson é a alegoria da pós-cidade. Ela cresce de maneira irregular e descontrolada para suprir as demandas de seus fluxos comandados por intencionalidades corporativas, manifestando mutações irreversíveis em seu tecido social. Sprawl, Chiba City e arquipélagos são apenas uma, compreendem “territórios desterritorializados” que, segundo Caliari (2009), atravessam paisagens híbridas que perderam fronteiras e se estabelecem no ciberespaço, uma extensão desvinculada do espaço-tempo. No fluxo enérgico da cidade cyberpunk, a perda da memória desintegra códigos e símbolos culturais; a identidade é questionada e substituída pela generalização. A arquitetura como massa construída, no entanto, contradiz toda essa aspiração hiperdinâmica da cibercidade. “Rígida”e “monovalente”, a arquitetura presente nas pós-cidades age como corpo fechado em seus tecidos urbanos (CALIARI, 2009, p.33-66). Ela existe de maneira significativa e simbólica para ancorar no espaço-tempo memórias que nos permitem atingir exigências que são, nas palavras de Caliari, “psicologicamente insuperáveis”. É a forte necessidade que ainda sentimos de nos apoiarmos em símbolos identitários para suportar a incessante “mobilização universal”, são corpos de referência. O holograma da Fuji Electric e as arcologias de Chiba City, as cúpulas geodésicas de Fuller e os trens silenciosos de Sprawl, as paisagens estonteantes de Freeside e o labirinto mórbido de Straylight: todos são símbolos que aportam o leitor e os personagens para que seus cenários literários sejam imaginados e, de fato, habitados; assim o fazendo na cibercidade do amanhã. 62
Um dos símbolos mais presentes em Neuromancer é seu espaço orientalizado. Trata-se de uma crítica. Para Lemos (2014), as sociedades ocidentais tornaram-se parâmetros universais da modernidade. Sociedades orientais desempenham um papel desvantajoso em relação ao padrão do mundo moderno, constituindo uma relação assimétrica e, por vezes, ofuscante. O que acontece em Neuromancer é a inversão destas polaridades, uma espécie de “neocolonialismo às avessas”, onde o Oriente – observados seu rápido crescimento demográfico e econômico – passa a ser modelo triunfante que alastra seus códigos influentes em uma civilização global supostamente modernizada e homogênea. A rica e complexa cidade-personagem de Neuromancer é uma paisagem sensorial que se materializa pela descrição detalhista. Gibson utiliza esse recurso para observar a sociedade e assimilá-la na narrativa. Suas representações traduzem o embate com uma nova cultura tecnicista onde todas as estruturas, política, econômica e social, são confrontadas. A distopia de Gibson tematiza a soberania da corporação transnacional vinculada ao esquecimento da organização social justa e igualitária e das relações interpessoais. Se o espaço distópico é um enclave imaginário com um espaço social real (JAMESON, 2005), então Gibson utiliza de sua percepção e intuição para refletir seus próprios anseios em relação à sua época.
Cyberpunk: espelho do futuro presente Ao retomar Jameson (2005), considera-se que Neuromancer seja uma extensão lógica do presente em que foi escrito. Lemes (2014, p.76) adiciona que, ao explorar a cidade distópica, Gibson revela sua angústia e ceticismo em relação ao “espírito de pânico e ansiedade” da sociedade, uma realidade muito próxima a nós: Para Gibson, os imperativos do acúmulo capitalista e da competição como motivação básica dos seres humanos, continuam sendo princípios organizadores da sociedade. Seus livros suscitam a questão sobre quem deve ter acesso e quem deve controlar a informação, e mais, sobre seus usos e abusos, cientes que seu 63
desenvolvimento é algo inevitável e que está acontecendo diante de nossos olhos, reconfigurando o nosso espaço urbano e nossa forma de organização. Portanto, as formas urbanas representadas em Neuromancer configuramse a partir de fortes contradições e dissociações do presente. A homogeneidade populacional confronta uma organização hierarquizada e estratificada, enquanto a importância do corpo se perde gradativamente, sendo ele alterado potencializado e aprimorado, permitindo a eflorescência da sociedade ciborgue33 de Donna Haraway. Se o corpo, como premissa cyberpunk, é a última fronteira do upgrade humano e a eliminação do espaço, sugerida por Caliari (2009, p.47), torna-se o “território desterritorializado” da pós-cidade, o que restaria de “nós” seria pura energia intelectual? Mas será que um espaço indefinido perdido no continuum temporal e sem correspondências poderia ser, de fato, habitável? Este paradoxo filosófico e estético é um tema corrente nas redações cyberpunk, onde a ficção está cada vez mais próxima de nossa realidade. Estamos em meio a uma nova revolução tecnológica, decorrente de um “período histórico de reestruturação global do capitalismo”, assistimos e nos submetemos à reordenação da sociedade em termos culturais, étnicos, sociais e históricos. (CASTELLS, P.70) Este ensaio não pretende resolver as questões da sociedade contemporânea, muito menos ditar seu rumo, mas remarca a abertura desta discussão proveniente de uma narrativa de ficção científica. A literatura projeta sentimentos do presente, configurando representações e para imaginar o futuro, casa-organismo, casa-cápsula, arcologias nos indicam um mundo em torvelinho. Não mais o espelho de um futuro, a obra de Gibson escrita há mais de trinta anos atinge nosso tempo com suposições estranhamente verossímeis. Neuromancer pôde situar e catalogar aspectos muito importantes que ajudam a clarificar o atual processo de transformação de nossa história, influenciando diretamente as futuras 33 “Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção” (HARAWAY, 2016) 64
formas de se pensar a arquitetura e o urbanismo. Entender estas especulações é tomar conhecimento do contexto em que foram construídas, da personalidade por trás de palavras escritas e dos anseios que permeiam aqueles que habitam a pós-cidade. A distopia de Gibson é um laboratório de cidades hipotéticas que não apenas alimenta nossa imaginação, mas também, ratifica o que Alan Kay nos disse ainda em meados de 1971: “A melhor maneira de predizer o futuro é inventá-lo”34.
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34 Alan Curtis Kay, na PARC (Palo Alto Research Center) em 1971. Kay é um dos
pioneiros da computação pessoal, um dos inventores do laptop e dos mais importantes conceitos de programação e interface gráfica de computadores. 65
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