instituto de pesquisas sociais
A urbanização periférica contraditória Fernando Pedrão
Salvador 2007
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Sumário
Introdução I
O trabalho e as cidades
II
A produção de cidades
III A ordem do poder na urbanização contraditória IV. A urbanização periférica contraditória V O abismo que se abre Bibliografia
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Introdução Pretendo abordar aqui a urbanização como um processo de poder e a cidade como um campo de política. A urbanização é o principal processo social no continente americano que separou as formas simples e as formas complexas de povoamento que demarca os processos da civilização e que, na época moderna, se tornou a principal mediação entre as formas estabelecidas e as formas renovadas de poder, as quais modifica continuamente. Mas a urbanização hoje não é a mesma do século XIX nem mesmo a que se via como referência da industrialização após a II Guerra Mundial. Na busca de um fio condutor entre os modos e formas de urbanização ao longo do tempo, vê-se a urbanização aqui como o principal resultado da mobilização de trabalho e da concentração territorial de trabalhadores. Nem sempre se vê o contrário, mas é preciso reconhecer que é nas cidades que acontece a maior desmobilização de trabalhadores e onde maiores massas de capital acumulado se desvalorizam. Assim, as cidades guiam a renovação das formas de consumo ao tempo em que decretam a superação de formas estabelecidas. A urbanização depende do modo como as pessoas são engajadas na qualidade de trabalhadores e de como são excluídas do mundo do trabalho. No mundo da produção capitalista, o trabalho não se realiza de modo invariante, senão se faz como parte do movimento do capital que cria novas mercadorias e novos processos técnicos. A transformação do trabalho aparece em alguns grandes registros que são a indústria e a cidade. A primeira como representação da atividade produtiva em seu sentido mais amplo e a segunda como principal representação da sociabilidade. O trabalho que se vê através do funcionamento das cidades reúne os diversos modos de relacionamento entre o capital e o trabalho, fazendo com que a cidade seja, ao mesmo tempo, o lugar onde se consolidam práticas e o lugar onde se gestam inovações e onde surgem novas práticas. Por isso, as cidades são os lugares onde a sociedade alcança sua máxima convergência em alguns pontos e onde se encontra a maior pluralidade de situações de conflito e de adaptação. A urbanização em seu sentido mais amplo é um processo síntese que reflete as tendências gerais da política econômica, pelo que, no Brasil ela passou a registrar os efeitos indiretos da política econômica de equilíbrio macroeconômico e de privatização iniciada por Mario Henrique Simonsen com a denominação inicial de desestatização. No desenrolar dos acontecimentos conseqüentes dessa mudança estrutural, desde então, viu-se que setores estratégicos da economia brasileira passaram ao controle de empresas públicas de outros países, assim como o setor educativo registra uma participação incontrolada de interesses privados de outros países. No Brasil de hoje a urbanização projeta os conflitos acumulados pela convergência de tendências de destruição de emprego e de ruptura no mundo do consumo, cujo resultado final é o isolamento de diversos grupos de moradores e a conversão de uma cidade em vários lugares urbanos colaterais e articulados por ligações seletivas. Essas novas cidades protagonizam conflitos explícitos, cuja variedade descreve a pluralidade de conflitos de interesse.
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De modo sintético, as condições de vida das pessoas estão representadas na combinação de renda e mobilidade, que em seu conjunto constituem o contrário do principal esteio da vida urbana que é a permanência, isto é, a qualidade de vida dá lugar a mudanças na sociabilidade nas cidades. Cada cidade em cada momento representa uma combinação de comportamentos coincidentes e divergentes, com áreas de consenso e de conflito, com diferentes condições de acesso das pessoas às diversas partes da cidade. Os habitantes das cidades de fato se movem em circuitos restritos que refletem suas posições de classe e de renda e de suas preferências culturais. Nesse contexto, destacam-se as categorias de confinamento e isolamento, que são referências fundamentais de pobreza e exploração. O confinamento essencialmente é uma situação física enquanto o isolamento é uma situação social. Mas é preciso desentranhar a conexão entre os dois, que em seu conjunto perfazem uma restrição da vida social, que se dá através de situações limite de espaço. As habitações subnormais em geral, favelas e outros, são as formas físicas dessa situação limite de espaço, que entretanto são apenas o aspecto externo de limites internos no acesso a renda. O isolamento é a categoria que nos permite captar a falta de caminhos que caracteriza a vida urbana, onde os grupos assentados numa cidade de fato participam de circuitos restritos de movimentos, onde somente poucos têm acesso a movimentos irrestritos no espaço urbano e onde o isolamento combina uma realidade econômica e um cerceamento ideológico. O isolamento é o contrário do confinamento – excesso de pessoas por cômodo – mas é inseparável dele, porque o confinamento físico quase sempre denota falta de acesso a opções de renda e uma condenação inexorável ao isolamento social. O isolamento de grupos e de pessoas é o fundamento da formação de formas de poder alternativas ao Estado representante do atual modo de desigualdade e de exclusão. A violência urbana aparece como uma degenerescência do sistema local de repressão que, entretanto, se atualiza na medida em que encontra novas soluções técnicas para controle social. Esse tema se torna mais delicado quando se passa das formas diretas e rústicas de controle para formas mais sofisticadas e indiretas de um controle cada vez mais repressivo. Por todas essas razões, a análise da urbanização constitui uma chave para a explicação do mundo social contemporâneo. Há poucas dúvidas acerca do esgotamento do tipo de análise urbana que se organizou na década de 1950, que se consolidou nos anos seguintes como um positivismo aplicado ao mundo urbano e que se incorporou nas políticas urbanas que se ajustaram ao Consenso de Washington em 1986. Os fundamentos práticos vinham de políticas reformistas realizadas desde 1870, que incorporaram uma visão de poder estatal herdada do absolutismo, transferida para o poder da economia industrial, inclusive na combinação de monumentalismo e racionalidade imposta. Tal visão de poder central foi absorvida pelos autoritarismos do século XX, que continuou tratando as cidades como objetos de poder. No entanto, não há como negar que a emergência de tensões sociais concentradas nas cidades, especialmente nas cidades de grande porte, deu lugar a uma convergência de idéias de que as políticas urbanas têm sido insatisfatórias, tanto em sua abrangência como em
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sua capacidade de enfrentar os principais problemas sociais concentrados nas cidades. A falência da análise urbana convencional equivale a um reconhecimento tardio de uma crise urbana conseqüente do esgotamento do padrão mundial de acumulação de capital que se estendeu durante a década de 1960 e eclodiu em crises urbanas em 1968. A necessidade de renovação da análise urbana tornou-se inquestionável, mas recebeu diferentes respostas, desde uma fragmentação de políticas locais até um recuo temático do planejamento enquanto atividade de governo 1 . Os comentários sobre essa falência da política urbana surgem de observações práticas. Os bancos nacionais de habitação, que proliferaram na América Latina desde os anos 60 aos 80, e que foram parte de tentativas nacionais de planejamento urbano, cederam lugar a políticas urbanas ditas indicativas, que na prática não foram mais longe que contemporizar com as pressões dos grupos de poder nas cidades e alternam a regularização de tendências prevalecentes com a criação de oportunidades de novos investimentos de grande capital. Mais que antes, torna-se claro que há políticas de fato diferentes e contraditórias nas cidades, assim como, que as políticas de fato, incorporadas nos planos diretores representam composições de poder que nada têm de locais. Novos mecanismos de planejamento, integrados em nova institucionalidade do planejamento urbano2 , que se traduzem em diferentes percepções de tempo, entre a capacidade de pensar em um tempo de planejamento em longo prazo das sociedades mais desenvolvidas e a premência de pensar as políticas urbanas de modo imediato nas sociedades periféricas. A capacidade de pensar em longo prazo torna-se um mecanismo de poder, que tem conseqüências práticas sobre a pauta de investimentos que se realizam em cada cidade. As transformações econômicas, sociais e políticas ocorridas na América Latina durante o século XX correspondem a alguns grandes movimentos, tais como os de urbanização, de modernização seletiva da produção rural, bem como de industrialização, com resultados variáveis de um país a outro, que já foram objeto de tentativas de generalização. Esses movimentos têm sido vistos por seus aspectos econômicos, tecnológicos e políticos, porém raramente são tomados como um conjunto historicamente interdependente. Ao situar essas transformações no quadro mundial, portanto, ao vê-las como parte do movimento geral de acumulação de capital, torna-se inevitável que se associem os movimentos de transformação dos países aos movimentos de pessoas e de capital. As migrações internacionais tornaram-se parte integrante do ajuste dos mercados locais de trabalho, onde os países latino-americanos passaram a ver o mercado dos países ricos, especialmente dos Estados Unidos, como parte de seu mercado, que deixa de ser local para ser um mercado marcado por acessos locais e internacionais, onde o componente
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Ver Jean Lojkine, O Estado capitalista e a questão urbana (São Paulo, Martins Fontes, 1981) e também Harvey Perloff e Lowdon Wingo, Issues in urban economics, ( Resources for the future, Washington, 1968) 2 Ver Luis Portella Pereira, Estatuto da cidade, Salvador, 2001.
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externo se torna determinante. Desde os anos 90 o Brasil passou a desempenhar um papel duplo, por um lado emitindo grandes números de migrantes para os Estados Unidos e para a Europa, enquanto recebe vultosos números de migrantes da América Latina e do resto do mundo. Hoje, com a intensificação e o alargamento dos movimentos migratórios, com a recomposição das estruturas de poder político em muitos países, há espaço para estudos que sustentam uma análise atualizada das condições sociais das comunicações na América Latina, situando-as como parte dos movimentos historicamente definidos de formação do sistema econômico e político no continente. Assim, tornou-se necessário rever os fundamentos conceituais da urbanização, bem como seu sentido prático, sua praxeologia. A origem desse processo é parte necessária da explicação do que lhe é atual. As cidades do Brasil formaram parte dessa “orla ocidental da cristandade”de que fala Charles Boxer, quando nos mostra a originalidade do projeto imperial português.3 Pode-se dizer que esse fundamento imperial deu lugar a um certo tipo de urbanização – mercantil e escravista – no Brasil, que se compara com a urbanização gerada pelo Império Espanhol e que se compara com a falta de um modelo equivalente do escravismo tardio. Mesmo quando muitas das cidades pré-industriais se parecem umas com as outras,tais como Kingston, Colón e Guayaquil, seu papel regional é diferente em seu respectivo sistema. A textura das cidades que se modernizam mais depressa está perpassada de ligações internacionais que se assemelham aos subterrâneos das grandes cidades velhas, tais como Paris e Istambul, que conservam os estratos de épocas anteriores como subsolo das atuais. A funcionalidade das cidades passa ao largo do tamanho de sua população. Cidades como Frankfurt, Rotterdam, Gênova, Tel Aviv, são essencialmente internacionais, no sentido em que concentram majoritariamente atividades que não dependem de seus respectivos mercados nacionais. As grandes cidades que se modernizam lentamente mostram as diferenças de ritmos de tempo que também estão no subsolo das grandes cidades da periferia da economia mundial, e que contêm as rupturas entre as condições de renda daqueles que são parte do mercado de trabalho internacionalmente unificado e as condições de renda daqueles outros que sobrevivem e operam nos espaços urbanos fragmentados de que nos fala Milton Santos4. Não há como pensar em um mercado urbano em uma cidade, senão em mercados de bens e serviços e de trabalho, que por sua vez estão internamente esgarçados, atingidos pela oligopolização do comércio e da construção civil. A urbanização é o processo social de produção de cidades, que sempre se realizou com alguma margem de internacionalidade, porque as cidades sempre foram as bases de relações entre nações e entre regiões. Encontramos mudanças significativas nos modos de urbanização de cidades de porte médio 3
Charles Boxer, O império maritimo português, São Paulo, Companhia das Letras, 2002. Milton Santos, Maria Adelia de Souza, Maria Laura Silveira, Território, globalização e fragmentação, São Paulo, Hucitec, 1998.
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ligadas a redes internacionais, tais como Mendoza (Ar.) comparada com cidades como Assunção (Par.), que perderam essa qualificação. As cidades se fizeram em resposta às atividades que abrigam e sua funcionalidade local depende de seu alcance regional ou internacional. Para construir uma análise urbana representativa das condições atuais de vida é, portanto, necessário estabelecer quais são os elementos essenciais da estruturação de todas as cidades e distinguir as formas urbanas que surgiram ao longo do tempo, acompanhando a organização social da vida econômica e da vida política. A urbanização está sujeita a movimentos de continuidade e de descontinuidade, que se alternam e combinam. A continuidade da urbanização é a mesma dos processos de trabalho e eles estão condicionados pelo modo como são articulados pelos movimentos do capital. A ritmo das construções civis envolve grandes obras como metrôs e pequenas obras como residências de grupos de baixa renda. O capital se move nas cidades captando as oportunidades de aplicação oferecidas pela produção de serviços sociais de utilidade pública, ou aproveitando as vantagens estruturais oferecidas por cada cidade para localizar unidades produtivas. Isso fez com que a urbanização das grandes cidades criasse um mercado internacional, como de fato foi para os investidores britânicos nos sistemas de transportes urbanos em toda a América Latina e como hoje esse fenômeno se repete com a entrada maciça de capitais de origem européia em diversos pontos selecionados na América Latina. As referências conceituais ficam mais claras quando se examinam as situações de diferentes cidades no contexto das revoluções tecnológicas de 1850 a 2000. Olharemos para a composição do capital e para a funcionalidade das cidades, entendendo que essa funcionalidade depende de uma relação entre o capital instalado nas cidades e a composição do capital na economia nacional. Assim, a valorização do capital urbano varia segundo ele se adapta aos componentes essenciais do capital em seu conjunto. Com essa perspectiva, vamos encontrar cidades, tais como Milão, Barcelona e Bruxelas, cujo desenvolvimento acompanhou as sucessivas etapas do desenvolvimento da produção industrial, cidades como Manchester e Liverpool que se identificaram apenas com as primeiras etapas do desenvolvimento da indústria, cidades como Detroit cujo auge correspondeu a uma etapa da produção industrial automotora e cidades como São Paulo, que participam da produção industrial em suas modalidades mais recentes. Paralelamente, há cidades como Grenoble, Atlanta, que representam grandes concentrações de pesquisa e de negócios de grandes empresas, ou cidades como Boston e Houston, cujo poderio é inseparável da concentração de universidades e de pesquisas. Nesse quadro surgem novas cidades, tais como Washington, Beijing, Brasília, Berlin, México, cuja esfera de influência está determinada pela concentração de poder político. Com a organização do poder político internacional ressurgem cidades tais como Bruxelas, La Haya ou Dubai, que não teriam nenhuma outra expressão além de serem centros de órgãos internacionais. Finalmente, cidades como Paris, Londres e Nova York, que concentram elementos de uma influência cultural incomparável, além do poder econômico e financeiro que representam.
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Os fenômenos de concentração de poderio urbano nacional em cada país, tais como de Lima, Santiago do Chile, Caracas, Montevidéu, Buenos Aires, exprimem processos nacionais de concentração de capital e de poder político, que se tornam restrições decisivas para o mercado de trabalho. Megacidades da pobreza como Lima, que reúne cerca de 60% da população do país5 , ou como Bombay, tornam-se fatores de bloqueio do processo político nacional, chegando, como no Rio de Janeiro, a representar localmente no mundo das favelas, a ruptura de classes na sociedade urbana periférica nacional em seu conjunto. Essas cidades representam processos nacionais de concentração econômica e de macrocefalia urbana, com poucas possibilidades de desconcentração ou de reversão e combinam os ingredientes econômicos, políticos e culturais da concentração ligando a despesa pública com a concentração da despesa privada. São poucas as cidades como Nova York, Londres e Tóquio que reúnem os ingredientes de sucessivas etapas do processo industrial, mesmo quando operando em escalas fortemente diferenciadas em tamanho e complexidade. A noção de cidades mundiais, que cobre diversos dos aspectos essenciais desta classificação, tem o defeito de perder de vista os verdadeiros contrários das cidades mundiais, que são, precisamente, aquelas grandes cidades que têm um raio limitado de capacidades e de possibilidades de acompanhar os movimentos do capital. Assim, distinguiremos as cidades do mundo préindustrial e do mundo da indústria e identificaremos as cidades que se constituíram em centros do poder mundialmente organizado e as cidades que surgiram como centros da periferia da economia mundial. Seguindo as pegadas de Braudel6, teremos que reconstruir uma sucessão de mundos urbanos que não necessariamente carregam os elementos de memória que dão a continuidade histórica do mundo atual. A industrialização da produção em geral – e a do consumo – significaram a criação de grandes sistemas estruturadores da oferta de bens e serviços, que localmente aparecem como sistemas urbanos integrados, mas que representam redes internacionais, tal como são os supermercados, as empresas de construção civil, e, principalmente, as telecomunicações. As formas de consumo, que Baudrillard7 tomou como fios condutores da explicação pós-moderna dos modos de vida, são apenas terminais de redes de fios elétricos cuja origem torna-se impossível de localizar. Dentre eles, ainda, distinguiremos redes de comércio, tradicionais, de mercadorias de uso generalizado, redes de comércio que surgem da expansão dos sistemas de comércio liderados por supermercados e redes de negócios que se organizam sobre as compras e vendas de mercadorias para o mercado. Mas a industrialização e a expansão das formas financeiras e operacionais do grande capital desde a década de 1950 tornaram decisivas as 5
A rigor, a Cidade do México é o exemplo mais importante de todos, considerando-se que a verdadeira concentração de população é do Vale do México em seu conjunto, mas seus prováveis 20 milhões de habitantes representam uma proporção menor da população nacional que a de Lima no Peru, ou a de Montevidéu no Uruguai. 6 Fernand Braudel,Os jogos das trocas, São Paulo, Martins Fontes, 1998 7 Jean Baudrillard, As formas de consume, Lisboa, Presença, 1968.
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ligações internacionais do sistema produtivo e deram novos papéis às cidades. Algumas regras clássicas da análise urbana mecanicista, tais como a hierarquização das cidades por grupos de tamanho de população, ou a indicação de importância das cidades pela quantidade de estabelecimentos produtivos tornaram-se inadequadas para representar a influência regional das cidades, ou para refletir a participação das cidades em redes internacionais de prestação de serviços. A representatividade da análise é o primeiro passo para chegar a políticas urbanas historicamente pertinentes e social e ecologicamente compatíveis. A compreensão do processo urbano torna-se parte da compreensão do mundo internacionalizado. Numa visão em retrospectiva da análise urbana e da urbanização, vê-se que há uma brecha que se amplia entre as cidades que ganham capacidade de participar de redes internacionais de negócios e cidades que perdem esse tipo de prestância, tal como aconteceu com Montevidéu, sediando órgãos internacionais e Assunção tornando-se menos relevante na escala continental. A observação da história recente da urbanização, portanto, nos leva, a reabrir questão acerca da inter-relação orgânica entre o processo social de urbanização e os movimentos das relações internacionais nos planos, econômico, político e institucional. A urbanização sempre teve uma raiz internacional, mas tornou-se mais intensamente dependente de relações de mercado que se organizam sobre bases internacionais. O mercado de trabalho tornou-se mais internacional e mais fluido, mais sujeito a oscilações, mais formado sobre o curto prazo. Paises como Espanha e Portugal, que até há pouco eram componentes dependentes de uma Europa liderada pela Alemanha, tornaram-se exportadores de capital que precisam dos mercados latino-americanos para reproduzirem seu capital. Países como a Finlândia e a Suécia, que pareciam constituir uma modalidade colateral do capitalismo, revelaram-se investidores agressivos em setores ecologicamente estratégicos na América Latina, tal como o setor de celulose. Cai a máscara do capitalismo gentil, que se aproxima do capitalismo senil apontado por Beinstein8 e do modelo de capitalismo global e exclusão social descrito por Dupas9. O argumento ambiental faz a ponte entre as formas de reprodução internacional do capital identificadas com a segunda revolução industrial e as novas formas de reprodução, conduzidas por algumas grandes corporações, que exportam atividades poluentes, que se reservam os componentes de atividades de maior valor agregado e que criam circuitos de turismo controlados desde a origem, que extraem renda e induzem turismo emissivo dos países latino-americanos. Nesse ambiente de ocaso do horizonte promissor do planejamento cartesiano, as políticas urbanas deixam de ser manejáveis como fenômenos físicos locais, determinados por uma aparência de mercado local, para terem que registrar a internacionalidade das cidades. Passamos de horizontes fixos em médio prazo para horizontes fluidos em longo prazo. Assim como as cidades são os lugares onde se afirmam as maiores manifestações do poder 8
Jorge Beinstein, Capitalismo senile, a grande crise do capitalismo global, São Paulo, Record, 2001. 9 Gilberto Dupas, Economia global e exclusão social, São Paulo, Paz e Terra, 1999.
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do grande capital, são tambÊm os espaços onde se manifesta a pluralidade do mundo social e onde surgem elementos de resistência ao imperativo ordenador do capital.
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I. O trabalho e a cidade Preliminares Ao realizar tudo que é materialmente necessário para a vida em cidades, a urbanização representa seqüências de escolhas do que deve ser feito, convertendo-se em uma concentração seletiva de trabalho, que depende de condições de permanência de pessoas que assumem o papel de trabalhadores e de condições de fixação de formação de capital, tanto para os sistemas de equipamentos urbanos como os empreendimentos que geram renda. A seleção de trabalho também é a seleção de trabalhadores, que depende da circulação de pessoas, compreendendo sua permanência e sua mobilidade. A capacidade de permanecer e o poder de mudar tacitamente significam, permanecer garantindo renda e mudar para obter renda e em ambos os casos, a capacidade de decidir sobre quanto e como trabalhar. Para que as pessoas sejam trabalhadores é preciso que se insiram ou que sejam inseridos em um determinado sistema de produção que nunca está completamente determinado em cidade alguma, mas cujas determinações se completam no ambiente de cada cidade. Tal inserção nunca foi automática e passou a depender de novos requisitos de pessoal ditados pela renovação tecnológica. A seleção de trabalho, portanto, muda ao longo do tempo, segundo muda a composição do capital e segundo variam as condições conjunturais de operação do sistema produtivo. A seleção de trabalho é o modo pelo qual os interesses de capital realizam seu controle sobre a divisão do trabalho e onde, portanto, demarcam os espaços que podem ser ocupados pelas diferentes classes de trabalhadores. A leitura da urbanização como de um processo complexo de trabalho remete-nos a um campo temático central do tempo no ambiente ultramoderno da produção, que é a relação entre a precarização do trabalho e as condições de sustentação da cidade como tal. Na prática, não há uma separação efetiva entre as formas de engajamento de trabalho de uma etapa da acumulação de capital e as da seguinte, senão há combinações de políticas de seleção de trabalhadores, que são praticadas por empresas em diferentes condições de capitalização e de participação em mercado. Assim como acontece na economia periférica em seu conjunto, nas grandes cidades da periferia convivem condições contratuais muito diferentes umas das outras Estes sinais aparecem com mais força e urgência nas grandes cidades da periferia da acumulação mundial de capital, não porque elas constituam um sistema inconcluso, como querem alguns autores, mas porque elas resumem processos de valorização do capital concentrado que se reproduz a expensas do uso de trabalho desqualificado – mal pago e precarizado – e que mantém proporções crescentes de população de baixa renda constrangida ã marginalização.
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A principal questão desta época, que envolve os aspectos materiais das condições de vida e os de liberdade e de autodeterminação das pessoas, é o futuro do trabalho, que significa o futuro de todos aqueles que dependem de trabalhar para sobreviver. Novos trabalhos que falam da diluição das formas de trabalho assalariado (Antunes, 2002) podem anunciar uma auto-suficiência do capital ou podem, com mais propriedade, sinalizar novas condições concretas de exploração do trabalho subsumidas na superação do fordismo (Mello e Silva, 2007). Logicamente, o movimento generalizado de desemprego tem uma contrapartida na ocupação incerta e na renda irregular, cujo final é a fragilização da posição dos trabalhadores frente aos que podem contratá-los. A gravidade desse movimento tornou-se evidente. A emergência do poderio financeiro das drogas, especialmente na década de 1990, mostrou que os conflitos radicados nas cidades são muito mais amplos e profundos que aqueles simetricamente identificados na análise convencional do que transcorre no espaço das cidades. Os efeitos acumulados da diminuição do efeito emprego dos investimentos e dos efeitos da concentração de capital difundem-se na sociedade, condicionando as formas de acumulação de capital e de acumulação na qualificação dos recursos humanos e regulando as condições de vida, presentes e futuras, dos diversos grupos sociais. Essa grande questão tem aspectos que são comuns aos paises grandes e aos pequenos, aos ricos e aos pobres, mas assume diferentes perfis nos países que já acumularam mais capital frente aos que não acumularam capital suficiente para alcançar uma situação confortável entre capital disponível e condições de vida da maioria. O primeiro passo no tratamento desse tema consiste em distinguir os aspectos gerais relativos ao capital em seu conjunto, dos aspectos específicos, próprios da concretização de formações sociais específicas que aparecem na escala nacional e na de regiões. Um segundo passo consiste em reconhecer que há problemas que não podem ser ignorados nem adiados enquanto há outros que podem ser esquivados, tal como tem feito a ciência social associada à concentração de poder, mas que não podem ser substituídos, tal como tentam fazer os herdeiros do modo de pensar dos povos que se sentem parte do centro do poder. Há problemas sociais cujo tratamento é imperativo, porque atingem a reprodução do sistema de poder nos planos econômico e político, tal. Trata-se de olhar de frente para a cara do monstro e não de explicar os olhares com que se podem olha monstros. Nessa substituição perderam-se grandes talentos, de Althusser a Jameson e a Mezsaros, que perderam de vista ou optaram por não considerar a essencialidade histórica do trabalho, que consiste em reconhecer a realidade atual das condições contratuais de emprego como conseqüência de um processo de engajamento seletivo de pessoas na produção dirigida para o mercado. A história não para e não podemos reduzi-la, nem a momentos passados selecionados, nem à estreiteza da visão etnocentrista européia. É preciso distinguir as peculiaridades das cadeias de eventos e é preciso reconhecer quais são os movimentos que se geram desde a internacionalidade do processo e os que são gerados desde suas raízes locais. Há tensões internas e externas que convivem e que se combinam nos diversos lugares em que se realiza o processo do capital. Convivemos com as conseqüências de cento e cinqüenta anos de concentração do capital e de modernização conservadora, que criaram diferentes raízes nas regiões do centro e nas da
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periferia do capital. A concentração assumiu uma progressão de formas, no centro e na periferia, com disputas entre os integrantes do centro e com o exercício de seu poder sobre aqueles outros que contrariam a reprodução de seu poder. O modo como a concentração de capital nos atinge refere-se à relação entre os usos de trabalho e engajamento de trabalhadores, que está na base da desigualdade social. O trabalho é essencial para todos, para os que o realizam e para os vivem do trabalho de outros. O esforço de Marx para elucidar o papel do trabalho refere-se ao papel do trabalho na constituição do capital, isto é, como fundamento da sociedade do capital.10 Assim, tal como Hegel, teria que focalizar na universalidade do trabalho, que seria a única atividade capaz de definir o modo de constituir-se da sociedade. Mas, diferentemente de Hegel, não ficaria no domínio dos conceitos, senão organizaria os conceitos através uma ponte estendida desde as formas de organização social. Ao tomar como referencia esta sociedade produzida pelos movimentos do capital em contextos sociais que ele passa a desintegrar, tornase necessário ver o trabalho de dois modos: como criador de valor e como meio de obter renda. Está claro que há trabalho que se realiza na esfera comandada pelo capital e trabalho que é determinado por necessidades imediatas de pessoas que dependem de sua própria iniciativa para sobreviverem. Mas, ainda como esclareceu Marx, o trabalho produtivo para o sistema do capital é aquele que contribui para o processo da acumulação de capital. Ao cabo de cento e cinqüenta anos de concentração do capital, não há como desconhecer que o capital só emprega aqueles que são necessários a sua reprodução, que é um modo de dizer que jamais se pretendeu empregar ninguém, ou que o emprego é uma circunstância da reprodução do capital. Igualmente, não há como ignorar que as condições de engajament0 do trabalho são diferentes entre os centros da acumulação mundial e os espaços periféricos onde o capital se expande. Nesse contexto, a exclusão de pessoas que dependem das rendas do trabalho é parte inerente do sistema de produção que, desse modo, põe essas pessoas na situação de terem que obter renda por separado das oportunidades oferecidas pelo capital. Isso significa que há uma formação de valor que se insere no conjunto total da produção, que constitui um campo em que as pessoas procuram resolver problemas de subsistência e tentam transformar uma parte de seu valor de uso em valor de troca. No momento em que a força de trabalho incorporada na esfera doméstica é usada para gerar renda, ela necessariamente se converte numa mercadoria que é produzida e controlada pelos trabalhadores, que escapa das possibilidades de controle dos que comandam as opções de aplicação do capital. Essa produção de valor não pode ser tratada como um resíduo da produção pré-capitalista, que é engolida e superada pela produção capitalista, senão como um componente de produção dominada, cuja presença é, progressivamente, reajustada durante a evolução do processo. No contexto de uma economia capitalista mundializada, 10
Esse caráter ontológico do trabalho incorporado à socialização conduzida pelo capital já aparece claramente nos Manuscritos econômico filosóficos, mas está plenamente exposto nas Contribuições à críticva da Economia Política de 1859.
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há uma variedade de situações que não podem ser completamente explicadas pelas regras gerais de relações de trabalho em mercado, senão que resultam das transformações da relação básica entre a esfera doméstica e a esfera de mercado. Ao reconhecer que a esfera doméstica responde a condições específicas de sobrevivência, admite-se de fato que suas transformações interagem com as transformações comandadas pelo capital e não são mero espaço inerte sujeito às pressões do capital. A questão central na urbanização periférica de hoje está na relação entre esse movimento geral do capital e a espacialidade do processo social. Novos grandes bairros amuralhados e sistemas de segurança cada vez mais sofisticados respondem ao fato de que os conflitos de classe mostram-se mais profundos. O discurso da segurança dos grupos de maiores rendas encobre o fato de que os mais pobres são as maiores vitimas da insegurança. 11 O que leva a identificar uma problemática especial na expressão espacial do processo social, é o fato de que não se pode negar que os processos sociais criam espaço em geral mediante a criação de espaços específicos, de diferentes modos e com diferentes conseqüências para as condições de vida das populações e para a formação de riqueza. A transformação do sistema produtivo resulta numa crescente diferenciação dos espaços criados e da capacidade de produzir espaços, traduzindo-se, finalmente, em reordenamento dos espaços em seu conjunto. Por isso, em qualquer momento que se considere há uma diferença entre as implicações espaciais dos desenvolvimentos do sistema produtivo em seu conjunto e em seus diversos subconjuntos; e as transformações específicas dos espaços sociais, em suas dimensões regional, urbana e rural. Em tudo isso, o essencial é a espacialidade do processo, já que não há como conceber processos sociais que não tenham efeitos espaciais (Santos, 1997), apesar de que a territorialidade dos processos sociais não se resume a espaços concretos específicos ( Ray, 1993). Por isso, precisa-se de uma análise que contemple os modos de espacialidade do processo, isto é, que tratem de como o processo social gera espaço, de como gera espaços específicos diferenciados e de como esses espaços interagem na continuidade do processo. Há interações entre os componentes do processo, bem como há interações entre os componentes do processo que se desenvolvem em espirais de complexidade entre os âmbitos urbano e rural. Por isso, há uma diferença fundamental entre as análises das implicações territoriais das transformações do sistema produtivo em seu conjunto e a formalização de teorias específicas, tanto de regiões como de cidades. O papel do controle do solo na produção capitalista A formação da produção capitalista surge mediante uma progressão de formas de controle social, seguindo pelo controle do trabalho, do consumo, dos 11
Recentemente a mídia divulgou a informação de que nos primeiros nove meses de 2007 a polícia de São Paulo matou 834 pessoas, a maioria em confronto direto.
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recursos naturais e finalmente de controle dos meios políticos para conduzir a produção (Pedrão, 1995). Nesse sentido, a produção capitalista é a continuidade contraditória de processos autoritários pré-capitalistas que assumem novas formas no mundo moderno. A formação de sociedades estáveis, indicativa de uma civilização12, surgiu junto com dois fenômenos básicos, que são a constituição de uma agricultura estável e o aparecimento de cidades. As duas interagem, sendo que a estabilização da agricultura depende de formas de produção que controlam ou reduzem incerteza. A transformação da agricultura é um processo de apropriação progressivo de técnicas e de produtos, em que a combinação de poder militar e religioso teve um papel fundamental no controle do trabalho e na regularização das práticas. A realização de obras permanentes de grande porte é a primeira manifestação do poder dessas sociedades, onde a centralização do poder foi o modo de mobilização de força de trabalho que adiante criou a infra-estrutura urbana.13 A urbanização surge como contraponto dessa mudança da agricultura, organizando-se segundo padrões que atenderiam a essa reprodução do poder, que já não se limitava ao controle do trabalho na agricultura. A cidade surge do poder, tanto como centro administrativo e comercial da produção agrícola. Assim, o controle da terra surge como uma determinação do sistema político, econômico e administrativo, compreendendo, igualmente, o controle das terras das cidades e do campo. Vemos que a absorção de terras agrícolas de alta qualidade pelas cidades é um fenômeno da maior importância na América Latina, onde algumas capitais, como Santiago do Chile, Bogotá e México, expandiram-se a partir de 1960 ocupando terras cobertas com culturas altamente rentáveis. Historicamente, esses elementos de controle político foram instrumentais para o aparecimento das formas de controle do trabalho que guiaram a urbanização e sentaram as bases para a formação do capitalismo. A realização da produção capitalista envolve espaço em dois sentidos: pela espacialidade da produção social e pelo condicionamento da vida coletiva aos espaços historicamente criados. A espacialidade da produção significa a produção de espaços progressivamente mais complexos, porque mais carregados de significado, representando a acumulação de experiência. Quando se desenham fábricas, portos, estradas, escolas, museus, trabalha-se com conhecimento de outros tantos empreendimentos que foram realizados antes. Ao mesmo tempo, a realização de cada uma dessas intervenções resulta em novos dados da realidade específica em que vivem as sociedades, digamos, nacionais. Em síntese, cada sociedade vive hoje sobre seu próprio passado, o que quer dizer, sobre o composto de elementos recuperados desse passado, que se obtém com forte participação de pesquisas feitas com olhares
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A síntese oferecida por Darcy Ribeiro do processo civilizatório (1992) ajuda a armar um quadro simplificado de processos que se revelam cada vez mais complexos quando novas escalas de tempo a montante das nossas referencias, tal como nos mostrou Vernant (1994) e como se ligam os achados mais estratégicos do cotidiano com as explicações do papel social das religiões (von Glasenapp, 1984) e da organização militar ( Soustelle, 1954). Veremos adiante que pensar em termos do continente americano exige trabalhar referencias de tempo desiguais com os demais continentes, portanto, com uma outra valorização do processo civilizatório. 13 Nesse particular são essenciais os trabalhos de Angel Palerm sobre as obras hidráulicas pré hispânicas no México.
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externos, pertencentes a sociedades mais ricas que olham esse passado como algo diferente do presente, portanto, externo. A trajetória da recuperação do passado reflete o modo como a sociedade capitalista de hoje encontra uma linguagem de acesso às demais civilizações e reconstrói, com a ajuda delas, seu próprio fundamento histórico. No limite, a capacidade de captar experiências de outros é a principal diferenciação do processo civilizatório, cujo horizonte de referências se alarga e aprofunda. Nesse sentido, a ampliação do horizonte de conhecimento da história é o grande diferencial, que sinaliza a especificidade de sociedades hoje periféricas que, entretanto, têm a disponibilidade de tomar conhecimento da variedade e do conjunto das experiências das demais sociedades, comparado com a visão preconceituosa de sociedades mais velhas que resistem a reconhecer a produção de outros, mesmo quando são seus vizinhos. Desse modo, o controle da realização de espaço torna-se um passo fundamental na constituição de poder, com uma expressão econômica e política. Há aspectos históricos e da atualidade que devem ser revistos, segundo se consolidam no referencial espacial da atualidade. O controle da terra é a principal alternativa da pilhagem na formação de um corpo de riqueza suficiente para sustentar um movimento significativo de acumulação. O controle da terra não se reduz a sua expressão no capitalismo, mas constitui um mecanismo de poder que faz a ponte entre as modalidades pré-capitalistas e as capitalistas. Controlar a terra é o ponto de partida para fixar sistemas duráveis, capazes de sustentar relações de trabalho prolongadas o bastante como para permitir a acumulação de capital. A polaridade entre permanência e precariedade, ou o leque das diferentes durações que se combinam na produção capitalista, assinala as duas situações básicas que representam as condições em que se forma capital. Há dois aspectos a destacar nesse processo. O primeiro deles é a diferença entre as condições gerais da formação de capital no contexto da produção capitalista e as condições específicas de cada formação social. O segundo deles representa o espectro de peculiaridades que as diversas formações sociais ensejam ao longo de seu desenvolvimento. Se os aspectos gerais, tais como a mercantilização dos produtos do extrativismo, reaparecem de um momento a outro do desenvolvimento do capital mercantil, há diferenças decisivas que surgem, à medida que as formações sociais absorvem experiências localmente formadas. A primeira diferença decisiva entre as leituras desse tema, decorre do modo de ver o colonialismo e a escravidão. A visão do centro, mesmo quando sendo socialmente eqüitativa, vê o colonialismo como uma tendência natural da expansão do poder econômico e registra a escravidão como um fato da história econômica e política cujos efeitos não necessariamente são internalizados na fundamentação ética da sociedade de hoje. Para os paises da periferia de hoje que foram colônia no passado e que hoje se deparam com os efeitos de nova expansão do capital, torna-se necessário rever todos os processos que estão na base do monopólio do poder econômico e político e que representam restrições ao desenvolvimento futuro.
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A urbanização na formação do capital Nas seções anteriores vimos como a urbanização ocupou determinadas posições em diversas expressões de civilização e como teve um papel especial na consolidação de padrões de acumulação de capital que garantissem a concentração de capital e de trabalho qualificado suficiente para a formação do capitalismo periférico. Por isso, desde o primeiro momento, há uma relação direta entre urbanização e formação de monopólios econômicos. No que vieram a ser as regras próprias destas sociedades periféricas está uma concentração de poder que primeiro foi o modo como se substitui o sistema colonial por estruturas políticas comandadas pelo controle da terra e depois foi o modo como se organizaram relações econômicas e políticas apoiadas em privilégios obtidos através do controle do Estado. A urbanização não é só o processo de produção de cidades, porque também é o processo como se realizam as alianças formadoras do bloco de poder que governa as nações e como se definem relações entre os detentores do poder e os diversos grupos dos trabalhadores. A relação entre a produção, o poder e o consumo envolve o conjunto dos modos de vida urbanos, tornando necessário combinar as diversas análises especializadas do meio urbano com uma visão histórica integradora desse processo. A urbanização configura modos de comportamento que envolvem os relacionamentos determinados pelo consumo e pela produção, mas que mobilizam recursos que podem ser canalizados para outras formas de produção de valor, portanto, viabilizando movimentos de diversificação da esfera econômica. A produção de cidade representa o movimento negativo da dialética da formação de valor, porque passa o capital de uma forma plenamente móvel, que é a forma dinheiro, para formas imobilizadas que não necessariamente se incorporam de volta ao processo produtivo. Primeiro, a urbanização ocupa um papel na formação da sociedade de hoje, que não pode ser reduzido a sua relação com a industrialização, inclusive, porque se torna o principal veículo de substituição de formas urbanas cristalizadas. Assim, tornou-se necessário resgatar a complexidade das causas que determinam mudanças na urbanização e no urbanismo. A urbanização que veiculou a formação do capitalismo representa uma nova era civilizatória 14 e tem suas raízes em contradições da sociedade anterior, com suas manifestações no mundo capitalizado da Europa e nos diversos momentos da organização colonial. É mais apropriado colocar que os movimentos contraditórios na relação economia-política na sociedade feudal deram lugar a concentrações urbanas que a princípio foram funcionais à reprodução da ordem absolutista e que ensejaram condições propicias à formação do capitalismo no sentido estrito do termo. Por isso, neste estudo surge a necessidade de trabalhar com diferentes modos de urbanização e com diversos modos de subordinação de alguns modos de urbanização na formação dos modos subseqüentes mais complexos. 14
A “nova era” urbana foi a imagem utilizada por Miller e Gackenheimer em sua abordagem das políticas urbanas na América Latina, quando contrastaram as perspectivas ideológicas e as limitações tecnológicas da política urbana.
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Na América em geral há uma experiência que se acumula sobre uma variedade de formas e de modos de urbanização, que são descontinuas sobre grandes escalas de tempo e que correspondem a diferentes movimentos de capital e de população desde o período colonial. Não se podem descartar as formas anteriores de urbanização pré-ibéricas, porque não há como ignorar que elas representaram uma demarcação de território que jamais foi contradita pelas formas impostas pelo sistema colonial. A visão em retrospectiva secular permite dar um outro sentido aos aspectos de continuidade e de descontinuidade – ou de rupturas – que situam a urbanização além dos condicionantes imediatos de formas específicas de capital, mas ao mesmo tempo revelam a consistência de uma dessas formas de produção. A dificuldade que se encontra nesta análise consiste em articular a análise econômica da sociedade capitalista com a análise dessas outras formas sociais, em que a organização da vida econômica está oculta sob os elementos de organização das sociedades pré-capitalistas, teocráticas e patrimoniais. A rigor, precisa-se de uma teoria social que compreenda os diversos mundos não capitalistas, para situar o próprio capitalismo, tal como fez Marx.15 Trata-se de um problema de análise histórica da urbanização onde se combinam elementos formais de método e de reconhecimento das condições materiais da análise social. É um tema de grande envergadura teórica, que se encontra na raiz mesmo da determinação de objetivos da análise urbana. No entanto, é uma questão que pode ser formulada de modo simples. A urbanização começa a ser produzida por sociedades onde as formas de cooperação são anteriores às do capitalismo, mas que passam a ser incluídas de modo subordinado no próprio capitalismo. A urbanização capitalista passa a conter essas outras formas, que são superficialmente contraditórias, mas que passam a ser usadas de modo auxiliar. Por isso, nesta análise, não se trata de construir uma conceituação de urbanização, senão de recuperar a conceituação que está latente nas experiências historicamente concretas que ocorreram até hoje. Assim, qual seria a conceituação de urbanização que emerge da experiência latino-americana? Essa conceituação evidentemente surge da história da urbanização e do urbanismo, isto é, da história da produção de cidades. Ela surgiu como resultado de duas atividades convergentes, que foram a criação de estruturas de poder que precisaram de aglomerados urbanos para se desenvolverem e da concentração de atividades que fixaram o povoamento. A metamorfose do capital e do trabalho na cidade moderna Na cidade moderna enfrentam-se os elementos de transformação caótica e de transformação orgânica, bem como os movimentos de reprodução da subalternidade e de emancipação, resultando na formação de tecidos sociais urbanos em que se encontram perfis especiais de comportamento do 15
Convém ver a edição das notas de Marx sobre as formações econômicas pré-capitalistas que vem acompanhada de introdução de Hobsbawm, que situa o papel dessa abordagem intertemporal como um meio de compreender a pluralidade do presente.
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capital e do trabalho. As grandes cidades da periferia da acumulação mundial combinam as contradições da modernização com os problemas decorrentes da atualização dos sistemas tradicionais de poder, que se infiltram no modo de conduzir investimentos. O significado moderno de modernização cedeu lugar a um significado ultra-moderno que não se presta à compreensão já ortodoxa do que seja pós-moderno (Harvey, 1998). A literatura urbana tem se referido principalmente a aspectos externos das cidades, aí compreendidos os sinais externos do processo de urbanização e os do urbanismo. Os modos de urbanizar e as formas das cidades. A questão urbana aparece de modo completamente diferente quando é observada pela genética da produção de cidades, isto é, quando focaliza nos aspectos sociais das cidades, situando-as como integrantes da formação social da região ou do país; ou quando se vê através de seus aspectos terminais que são os espaços construídos. Como são as pressões da vida urbana que conduzem a formação e a transformação dos espaços construídos, eles sempre representam um momento anterior dessas pressões. Na genética urbana distinguimos três movimentos essenciais, que são os de diferenciação das funções do solo, de fixação de valor e de transformação das formas físicas. Em seu conjunto, esses três movimentos resultam na formação de espaços sociais compactos, cuja densidade não necessariamente cresce, mas que não podem regredir abaixo de certos níveis sem perder sua qualidade de urbano. Todos eles são conduzidos pela canalização de trabalho, que é realizada como uma determinação da formação de capital. A valorização do solo tem uma funcionalidade frente ao modo como se incorporam espaços em cada cidade. Por exemplo, a construção de centros cívicos urbanos ou a construção de áreas de serviços especializados, tais como são áreas onde se concentram museus, torna-se um fator de diferenciação no movimento de valorização do solo que por sua vez enseja a formação de monopólios. Vê-se que a valorização do solo ganha novas características ao mudar a combinação de tamanho e funcionalidade das cidades, que é, precisamente, o que acontece quando as cidades ultrapassam certos padrões de tamanho, por exemplo, quando passam a barreira do milhão de habitantes, quando passam dos três milhões de habitantes, ou quando se convertem em metrópoles. Há diversas conceituações de metrópole, mas geralmente se aceita que esse termo descreve situações em que uma cidade absorve funções de diversas outras. A formação de uma metrópole, ou de mais de uma metrópole, altera qualitativamente o movimento de urbanização, porque inibe o crescimento de um dado conjunto de cidades, do mesmo modo como a formação de uma área de grandes negócios em uma cidade inibe o crescimento dos negócios em alguns bairros em volta. Pode-se dizer que tem havido certa banalização da análise dos processos de metropolização, quando essa análise se restringe aos aspectos físicos da formação de metrópoles, descuidando de seus efeitos qualitativos indiretos no movimento da urbanização em seu conjunto. Modos e formas de trabalho na produção urbana
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A urbanização apresenta um desafio específico de explicar o funcionamento do trabalho no meio urbano, no que corresponde ao trabalho socialmente necessário, ao funcionamento da cidade como tal e ao trabalho que se mobiliza para as atividades que confluem para as cidades e que se instalam nelas. Logicamente, há interdependências entre o sistema econômico da cidade como tal e as unidades produtivas que se instalam nela, porque estas últimas pressionam a oferta de serviços sociais de utilidade pública e desse modo, alteram a composição dos investimentos públicos nas cidades. A distinção entre a economia da cidade e a economia na cidade (Pedrão, 2002)dá lugar a uma análise das inter-relações entre esses dois níveis. São duas ordens de problemas da espacialidade do capital, que se completam em seus desdobramentos operacionais, mas que correspondem a processos nitidamente distintos. O trabalho necessário à reprodução da cidade, com suas diferenças e peculiaridades, está pré-determinado pelas tecnologias e pelas escalas de tamanho dos sistemas de serviços urbanos. São diferentes formas de trabalho e de condições sociais em que os trabalhos são realizados, que fazem com que a pluralidade formal das cidades de fato denote uma combinação de processos de diferente intensidade. Por sua vez, o trabalho vinculado às atividades instaladas na cidade segue as pautas de investimentos determinados por prioridades de capital que não necessariamente correspondem às condições do mercado identificado com a reprodução da cidade como tal e que podem estar a outro patamar de tecnologia. Vamos ter que tratar com o mercado urbano não legal paralelo que abrange a área da contravenção e da criminalidade e que tem ligações com meios tolerados de poder. Essa clivagem entre os tipos de investimento que se encontram numa mesma cidade terá que ser examinada à luz das condições que imperam no desenvolvimento do sistema produtivo em seu conjunto. Vemos as cidades como centros de consumo e como partes ativas do sistema produtivo. A novidade é que as cidades se tornaram centros de formas de consumo que antes não existiam e que são parte de redes internacionais; e que estão articuladas através de atividades produtivas internacionalizadas e de atividades internacionalizadas que dificilmente podem ser rotuladas como produtivas, mas que passam a integrar o sistema de acumulação do capital mediante novas formas de comercialização, tal como acontece com serviços de telefonia a distancia ou com serviços personalizados a turistas, ou pura e simplesmente as redes de serviços ligados ao crime organizado.
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II. A PRODUÇÃO DE CIDADES Preliminares Este estudo aponta a um campo específico da análise urbana e regional, que é o da interação entre cidades e regiões, tal como acontece na periferia da acumulação de capital. Nele, toma-se como referência a experiência de Salvador. O ensaio focaliza nas interações entre cidades e entre cidades e campo, mesmo quando as diferenças atuais entre uns e outros são mais profundas, quando incorporou e perdeu, sucessivamente, capacidade de produção e quando o “campo” tornou-se o lugar de outro mundo da produção. Assim, Salvador aqui se vê em seu relacionamento com a constelação de cidades que constituem o espaço regional baiano. A heterogeneidade da urbanização aparece, simultaneamente, no modo como se organiza o crescimento desta cidade e como ele se comunica com os movimentos da urbanização na região em seu conjunto. Esta abordagem apóia-se numa visão histórica da formação das cidades e das regiões Além dos aspectos descritivos da mecânica do funcionamento das cidades, encontra-se a necessidade de conhecer as inter-relações do dinamismo espacial na esfera das cidades, tal como ele se dá em diferentes tipos de cidades e nos processos que formam e modificam regiões. O foco do trabalho são as inter-relações entre as transformações das cidades e as das regiões, que se vêm como antecedentes de políticas para cidades específicas. Esta proposta coloca-se frente a uma situação peculiar da urbanização, em que coincidem, a difusão de novas formas de industrialização das cidades, conduzidas pela revolução das comunicações; a criação de novas formas de consumo de massa, facilitadas pela informatização e pela industrialização do lazer; e a concentração de capital no consumo dos grupos superiores de renda, com seu conseqüente distanciamento dos grupos médios de renda, depois da já irrecuperável distância com os grupos de baixa renda. Este último fenômeno tem sido agravado pelo aprofundamento da distância entre os grupos superiores e os grupos médios de renda. No cenário brasileiro, tornou-se claro que esses desdobramentos da urbanização revelaram diferenças aparentemente irreversíveis, em relação com as perspectivas que alimentaram as propostas de política urbana de 1960 e mesmo de 1970. Com a chamada flexibilização dos contratos de trabalho, tornou-se necessário um novo olhar sobre a questão urbana em seu conjunto, no Brasil em especial, capaz de reconhecer que as cidades estão menos sujeitas à racionalidade instrumental da tecnoburocracia do que se supunha antes, e que a produção de cidade resulta de um complexo jogo de interesses, que se remete ao mercado nacional de solo urbano e que compreende a participação de interesses internacionais.
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Em 1960 as perspectivas da urbanização eram, principalmente, de recompor déficits habitacionais, e de planejar as grandes cidades, frente a crescentes pressões imigratórias, originadas de números de população rural muito superiores às médias dos países e das regiões mais industrializadas. A diminuição da população rural significou uma diminuição dessas migrações, alterando, decisivamente, as tendências de crescimento das cidades. Durante a década de 1960 formaram-se os elementos de crise que se tornaram visíveis desde 1968, em diversos lugares, de diversos modos. Tornou-se inevitável pensar a urbanização como um processo que se desenvolve mediante uma crise, ou que se identifica com uma crise da acumulação de capital que torna as cidades os lugares de novas formas de conflito, ou de aprofundamento de formas de conflito já existentes. Tal como ficou patente através de certa literatura da crise urbana, houve uma mutação nos processos urbanos do capital, que levou a uma superação brusca do organicismo que vinha caracterizando a análise urbana em geral e que, desde então, passou a caracterizar a análise urbana reacionária. 16 Na década de 1970 os objetivos anteriores da análise urbana ficaram defasados, dado o peso da crise do padrão de acumulação, tal como revelada pela crise energética e pela elevação da taxa de juros, que inviabilizaram o planejamento urbano convencional, regulatório e demiúrgico, bem como, que eliminaram o sonho da casa própria. As análises de custos da urbanização, montadas sobre os padrões da década de 1950, tornaram-se irrelevantes. 17 Evidenciaram-se outras necessidades de política urbana, bem como se tornaram visíveis outras restrições, a serem atendidas pela sociedade urbana e pelo poder público. Mas desaparecia a presunção de que a política urbana fosse de decisão exclusiva do Estado e que os planos e as políticas urbanos fossem decididos e realizados pela burocracia governamental, com uma racionalidade externa à dos interesses envolvidos. A falência dessa racionalidade técnica, essencialmente autoritária, revelou processos mais profundos de distanciamento entre os interesses do grande capital e a operacionalidade do Estado, que levou, adiante, às privatizações. Esse aspecto de crise de objetivos do planejamento urbano foi passado por alto por algum tempo, talvez por ter correspondido a um período em que prevaleceram pontos de vista autoritários na maioria dos países latinoamericanos. Mas correspondeu a uma mudança substantiva das condições materiais para a política urbana, entre as décadas de 1970 e de 1980, em que o crescimento da dívida pública externa neutralizou as pretensões transformadoras do planejamento urbano. Nas políticas urbanas substitui-se 16
Dentre outros, podem ser citados, Manuel Castells, Crisis urbana y cambio social (1973), David Harvey, Urbanismo y desigualdad social (1977), Jean Lojkine, O Estado capitalista e a questão urbana (1977). 17 Há uma extensa literatura latino-americana sobre custos da urbanização, desenvolvida nas décadas de 1950 a 1970, que trabalha, basicamente, com composições de custos, a partir dos custos da habitação, a seguir incorporando custos indiretos de infra-estrutura. Esses estudos de custos da urbanização estiveram, de fato, ligados às condições operacionais dos sistemas de financiamento de casa própria, por sua vez, apoiados em certos dados básicos de um mercado financeiro aparentemente estável a longo prazo. Ficaram obsoletos com as transformações do mercado financeiro da década de 1970, tornando-se necessários revisá-los desde suas bases.
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uma racionalidade instrumental, de um poder público que se toma como um dado, por uma racionalidade sustentada na comunicação entre os agentes urbanos, em condições em que o poder público passa por mudanças decisivas para a reprodução do sistema de poder em seu conjunto. Mas desaparecia a presunção de que a política urbana fosse de decisão exclusiva do Estado e que os planos e políticas urbanos fossem decididos e realizados pela tecnoburocracia com uma racionalidade externa à dos interesses envolvidos. A falência dessa racionalidade técnica revelou processos mais profundos de distanciamento entre os interesses do grande capital e a operacionalidade do Estado, que levou adiante as privatizações. Esse aspecto de crise de objetivos do planejamento urbano foi passado por alto por algum tempo, possivelmente por ter correspondido a um período em que prevaleceram pontos de vista autoritários na maioria dos países latinoamericanos. Mas correspondeu a uma mudança substantiva das condições materiais para a política urbana, entre as décadas de 1970 e 1980, em que o crescimento da dívida pública neutralizou as pretensões transformadoras do planejamento urbano. Nas políticas urbanas substitui-se uma racionalidade instrumental, de um poder público que se toma como dado, por uma racionalidade sustentada nas comunicações entre os agentes urbanos, em condições em que o poder público passa por mudanças decisivas, tanto na esfera do Estado em sua totalidade como nas expressões locais de poder público. No Brasil, tornou-se necessário tomar em conta que o governo federal não teria condições de cobrir adequadamente o território temático do planejamento urbano no país em seu conjunto, e que o poder público municipal não teria condições para superar os déficit quantitativos, nem para gerar a visão interurbana necessária para sustentar o planejamento de cada grande cidade. Por isso, esse planejamento urbano passaria por alto aquelas modificações do tecido social urbano, causadas pela desregulamentação do mercado de trabalho e pelo desemprego crônico. Naqueles países latino-americanos em que houve uma industrialização significativa, a urbanização passou a refletir as mudanças em curso no padrão de acumulação de capital da economia internacionalizada. As transformações do processo urbano alcançaram cidades das regiões mais ricas e das mais pobres, cidades de grande e de pequeno porte, introduzindo ou ampliando problemas que apenas se anunciavam na década de 1960, exigindo uma renovação drástica no modo de pensar as cidades. A insolvência das cidades generalizou-se, junto com o envelhecimento dos equipamentos que atendem às maiorias. Por contraste, tornaram-se mais evidentes os impactos da incorporação de equipamentos de alta tecnologia de consumo, junto com os efeitos da popularização do transporte individual. No essencial, há um alargamento das diferenças entre as condições de equipamento dos grupos superiores de renda e as dos grupos dos excluídos do mercado de trabalho, que resulta na urbanização negativa, que se realiza mediante uma degradação das condições de vida de numerosos grupos. Trata-se, portanto, de rupturas na trajetória da urbanização, que se traduzem em mudanças na formação de cidades específicas, segundo ela se materializa em formas e modos de organização física das cidades e em
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circuitos de participação dos diversos grupos de renda, no funcionamento de uma cidade em seu conjunto. No Brasil, durante a década de 1980 esse tipo de descolagem se aprofundou, tornando-se patente que as grandes cidades, que passaram de uma etapa de combinação de tecnologias a outra, tornaram-se capazes de absorver as mudanças organizacionais necessárias para conviver com os novos padrões de relacionamento da esfera pública com a esfera privada, mas que não necessariamente foram capazes de transformar esse domínio de tecnologias em resultados socialmente disponíveis. No plano das relações urbanas concretas essas alterações compreendem as do realinhamento do Estado e as da composição da esfera privada. Para a análise urbana, esses dois elementos coincidem, mas correspondem a diferentes processos. Na esfera pública, por trás dos movimentos evidentes de retração do Estado, há uma troca de funções e de funcionalidade, na medida em que as competências operacionais do governo correspondem a novas necessidades de operacionalidade da gestão local e em que os problemas de reaparelhamento da gestão municipal se colocam com igual dificuldade para o estado e para os municípios. Assim, a administração urbana visualizada na década de 1970 devia ser capaz de gerir sistemas de transportes integrados em grande escala, mas não estava em condições de administrar sistemas de prestação de serviços organizados para atender cidades segmentadas. Tampouco teria competência para substituir seu público, integralmente composto de moradores permanentes, por públicos compostos de uma diversidade social, em que se encontra um crescente componente de usuários transitórios e de moradores recentes, em todo caso, de pessoas sem compromisso com a preservação da cidade. Por sua vez, a administração pública urbana, tal como foi contemplada na década de 1990, tem que tratar com maior número de agentes privados capazes de influir nos objetivos do crescimento urbano, desde empresas concessionárias a organizações civis sem fins lucrativos e a igrejas socialmente mais influentes e a associações de moradores. A competência para gerir grandes sistemas de serviços tem que ser qualificada pela competência para negociar e para induzir as práticas desses agentes. A representatividade da análise urbana depende de que ela seja capaz de refletir a dimensão prática da questão regional no Brasil, pelo menos por duas razões. Primeiro, porque muitas vezes essa análise se vale de observações cuja representatividade empírica primária não tem condições operacionais de controlar; e segundo, porque a própria estruturação das informações captadas não reflete as condições e tendências de mudança, mesmo quando informa razoavelmente bem sobre a estruturação atual da vida urbana. No entanto, para alcançar essa representatividade, a análise urbana precisa renovar-se em suas premissas teóricas e na avaliação de suas necessidades operacionais, o que, no essencial, significa uma renovação de método e de orientação de pesquisa. Essas limitações da análise urbana constituem um desafio da pesquisa regional, que, por sua vez, obriga a rever aspectos da operacionalidade da análise regional. Justamente, por seu necessário caráter transdisciplinar, por
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colocar-se como alternativa da análise social setorializada, deve registrar os processos concretos de organização da produção e do consumo em sua dimensão histórica, com seu correspondente resultado em mercadorias materiais e simbólicas. As cidades são focos de decisões internacionais e agora mudam mediante processos liderados pela industrialização dos serviços e do consumo, além da localização de fábricas. No meio urbano coincidem processos de criação e de destruição de espaço, que compreendem a criação de espaços novos e a revalorização de espaços existentes, junto com a destruição, material ou funcional, de espaços existentes. As cidades das sociedades industriais mudam com mais rapidez que aquelas produzidas pelo capital mercantil; e os lugares que foram sacramentados pela legitimação religiosa do poder, foram desqualificados pela mercantilização do equipamento urbano. O turismo tornou-se o mecanismo de mercado condutor dessa mercantilização. A dessacralização da cidade é um fato que altera o cotidiano dos seus moradores, substituindo os velhos âmbitos de solidariedade pór situações transitórias e emergenciais de coesão. Em vez da permanência das entidades de beneficência, há programas municipais para desabrigados. Em Salvador, os nichos de espaços sagrados correspondem às duas religiões mais antigas - a católica e a afro-brasileira – que foram capazes de criar representações ideológicas capazes de alcançar um imaginário mais amplo que o de sua própria funcionalidade. Por isso mesmo, na visão do turismo, são produtos diferenciados, que podem ser vendidos de modo sistemático. Por isso, são reintroduzidos no dinamismo da vida urbana mediante alterações de sua imagem e do modo de transmiti-la aos moradores da cidade. Tanto porque as celebrações religiosas perdem seu caráter sagrado , transformando-se em outras tantas mercadorias, como porque o modo de vida local passa a ser justificado por ser aceito pelo olhar do turista. No entanto, há um importante componente da produção de cidade, que se sustenta sobre esses elementos de religião, que denota as diferenças entre os coletivos participantes da vida urbana, em suas ideologias e em seus meios materiais de produzir moradia e de encontrar emprego. Em Salvador, a presença dos negros, ligada aos vestígios da sociedade escravista, marca grande parte da forma da cidade e dos modos de urbanização, tanto como o modo da sociedade urbana de conviver com a cidade em seu conjunto. Não é somente o modo de construir moradia dos grupos discriminados de baixa renda, senão é o modo como as soluções habitacionais desses grupos interagem com as soluções dos grupos de maiores rendas. Aqui há uma experiência concreta acumulada através das transformações da sociedade escravista e do ambiente pós escravismo, que representa a formação de uma sociedade negra que incorpora sua experiência em seu modo de vida urbano. Observe-se que os escravos africanos que vieram ao Brasil eram provenientes de um meio rural comunitário e que desenvolveram uma experiência urbana própria no Brasil. As transformações em curso das cidades são as mais variadas e mais rápidas que as anteriores ao advento da indústria e mesmo, que as das
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primeiras etapas da industrialização. Levam a novas formas de heterogeneidade dos diversos grupos de renda, determinando situações em que predominam tendências à aproximação entre os diversos coletivos urbanos e outras que consolidam distanciamentos entre elas, ou que criam novas condições de separação social. No conjunto, a reprodução dos grupos de baixa renda tornou-se mais complexa, incluindo um maior peso de mecanismos não legais. Mecanismos informais de solidariedade, trazidos do ambiente pré-industrial funcionam como amálgama de ambientes de pobreza que criam seu próprio modo de acumulação. É o que se vê, por exemplo, na prosperidade de centros comerciais de bairros pobres. Paralelamente, a escassez de empregos aumentou o controle sobre os trabalhadores, veiculado pelo comando de oportunidades de emprego e de qualquer ocupação remunerada transitória. Finalmente, no recinto das cidades esses fatores consolidaram, sob novas formas, as distâncias entre os que participam do circuito de produção que se capitaliza e os que ficam à margem dele. A produção urbana torna-se mais diferenciada, respondendo a circuitos industriais e artesanais de produção de moradia, assim como, respondendo a situações em que as esferas de produção doméstica ou de produção de mercado são, respectivamente, majoritárias ou minoritárias no uso da força de trabalho. O reconhecimento da existência desses circuitos e da ampliação e da renovação da esfera doméstica na cidade industrializada, são aspectos fundamentais da produção da cidade tal como ela se dá hoje. Essa compreensão da dinâmica da esfera doméstica é que nos permite distinguir a análise urbana moderna da análise de Aristóteles, que toma essa distinção entre as esferas doméstica e pública como categorias da vida social, que não são modificadas por um dinamismo irreversível da cidade como tal. Marx decola com esse argumento em busca da teoria do valor e só volta a nos dar pistas dessa transformação do ambiente social da produção doméstica quando trabalha a teoria da renda da terra como uma renda promovida pela penetração do lucro extraordinário na produção de valor na terra. O tratamento da questão urbana a partir dessa dinâmica das esferas doméstica e de mercado permite-nos apreciar as transformações que acontecem no binômio segmentação territorial – exclusão social, vendo que os movimentos da urbanização têm variados alcances e que nas áreas ocupadas por grupos de baixa renda as perspectivas de urbanização são mais limitadas que nas áreas ocupadas pelos grupos de rendas mais altas. Tanto as restrições da verticalização dos edifícios como as limitações da incorporação de atividades comerciais funcionam nesse sentido. Com estas referências, neste ensaio pretende-se limitar e subdividir o campo temático da pesquisa, estabelecendo que é principal e que é secundário na análise das cidades, bem como definindo que é necessário e que é acessório. As peculiaridades da pesquisa, tais como quantidade e qualidade das informações, e como a variabilidade dos objetos de análise, tais como as alterações territoriais da cidade, têm que ser enfrentadas de modo explicito, como parte necessária do esforço de captar a realidade atual da urbanização.
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Aspectos de método na análise urbana O propósito deste ensaio é desenvolver uma reflexão sobre o significado territorial da urbanização tal como ela acontece hoje em grandes cidades no ambiente socialmente desigual da periferia da acumulação de capital. Com essa finalidade, toma-se como objeto concreto de análise a Cidade de Salvador, capital do Estado da Bahia, que ocupa uma superfície de 709,5km2, cuja extensão é de 567.295 km2. Estimativas do IBGE para 1998 indicam que essa cidade tem 2.274.167 habs., que a nosso ver representa uma considerável subestimação, dadas diversas estimativas parciais dos bairros da cidade. Também segundo dados oficiais, Salvador conta com uma renda per capita 4.438 reais e umas 500.000 habitações, que representam uma área construída equivalente a uns 70% da superfície total do município de Salvador. A cidade tem, ainda, três características físicas decisivas: um relevo montanhoso acentuado, uma falha geológica que acompanha toda sua orla interior e um grande reservatório subterrâneo de água. Os riscos dos assentamentos precários na cidade antiga e os problemas de contaminação de solo e água estão ligados a esses dois antecedentes. A gravidade dos riscos dos assentamentos precários aumenta com o passar do tempo, sendo que as estimativas dos assentamentos de risco variam entre 50.000 e 200.000 pessoas, segundo as definições de riscos atuais e de riscos potenciais. Com a acumulação de intervenções anárquicas nas localizações instáveis nos morros, os riscos dos assentamentos aumentam, em vez de diminuírem com a criação de moradias de material permanente. Outros riscos indiretos surgiram, da proliferação de assentamentos precários de grupos de baixa renda nas áreas mais elevadas dos divisores de águas entre a parte oriental e a parte ocidental da cidade. Tais assentamentos, principalmente na parte norte-noroeste da cidade, resultem em infiltrações subterrâneas de resíduos líquidos, que passaram a contaminar o subsolo até a orla litorânea. É o principal problema enfrentado pelos programas de saneamento da cidade, que procuram reverter esse quadro de contaminação profunda. A heterogeneidade de Salvador resulta de fatores topográficos, sociais, econômicos e culturais, aprofundando-se à medida que a expansão territorial da cidade envolve a incorporação de áreas rurais, modificando os padrões de construção com que aumenta a densidade dos assentamentos. A renovação urbana de zonas tradicionais, cujo principal exemplo é o bairro do Pelourinho, é um movimento abrangente, que aparece sob diversas formas, em vários lugares, modificando as condições de vida em bairros em que aparentemente houve estabilidade dos assentamentos durante décadas. Reconhecendo tacitamente a desigualdade da urbanização, a Prefeitura de Salvador estabeleceu regiões administrativas, com escritórios administrativos locais, mas não necessariamente reconhecendo as transformações dos bairros estáveis. Mas, ao procurar atender necessidades atuais, as regiões administrativas
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consagraram mudanças das posições relativas dos bairros na urbanização em Salvador. A questão é que essas soluções administrativas se enfrentam com peculiaridades da urbanização que devem ser explicitadas, e que resultam dos movimentos alternados de industrialização e de desindustrialização da cidade. O reconhecimento desse fenômeno leva a registrar a composição das atividades produtivas de modo a captar as inter-relações entre as indústrias e as demais atividades produtivas tecnologicamente mais simples. As atividades industrializadas estão sustentadas por um componente de atividades manufatureiras e artesanais, muitas das quais são realizadas na esfera doméstica, desde a produção de alimentos e vestuário, à autoconstrução civil e ao extrativismo. A continuidade do processo se dá no mercado de trabalho. O controle do mercado de trabalho é o mecanismo que garante o controle da produção social da urbanização. A experiência de Salvador é reveladora, porque esta cidade sediou um movimento de industrialização que se fez captando trabalho da esfera préindustrial e utilizando um mercado de trabalho sempre saturado pela entrada de trabalhadores reduzidos à penúria no interior do estado. Grande parte dos produtos que suprem a demanda dos grupos integrados no mercado capitalista é realizada em formas primitivas de exploração do trabalho. O reconhecimento dessa situação mostra um problema imediato e fundamental da análise urbana, que consiste em explicar o funcionamento interno da informalidade, com suas regras, sua hierarquia, seus modos de reproduzir-se, sua formação de capital e de trabalho qualificado, sua própria acumulação de capital. Sob as pressões da carga tributária, da taxa de juros e da destruição de postos de trabalho regular, a esfera da informalidade se diversifica, se expande, passa a incluir novas formas de articulação entre grupos de rendas médias e superiores e desempregados e excluídos. Aumenta o número daqueles que combinam atividades formais com atividades informais, desde os níveis inferiores aos superiores de renda. Substitui-se a noção de uma separação entre mercado formal e informal de trabalho pela percepção da teia de inter-relações entre essas duas esferas e da fluidez com que o capital e o trabalho transitam entre essas duas situações. Por exemplo, a maior parte das ligações clandestinas de energia em Salvador tem sido feita por empresas e não por moradores de favelas. Ao revelarem-se os mecanismos internos de reprodução e de transformação da informalidade, que compreende a entrada de novos grupos urbanos, junto com os deslocamentos de posição dos moradores da cidade, torna-se clara a necessidade de explicar como os grupos de baixa renda desenvolvem estratégias próprias de sobrevivência, que procuram compensar sua exclusão do mercado formal de trabalho. Por isso, é imperativo superar a abordagem descritiva do funcionamento econômico da informalidade, para ir aos mecanismos econômicos e sociais que determinam a reprodução do componente de informalidade. A permanência de atividades de extrativismo e a pesca utilitária artesanal indicam que se trata realmente de que as atividades da esfera integrada ao mercado formal de trabalho jamais são suficientes, em
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magnitude e em composição, para absorverem todos os que precisam de trabalhar. Assim, a informalidade responde ao conjunto dos mecanismos que expulsam pessoas do meio rural e dos mecanismos que bloqueiam o assalariamento, ou que substituem o assalariamento convencional por outro, seletivo e discriminativo. Por isso, a análise do mercado urbano de trabalho trata com situações cambiantes e com referências provisórias. Essa incerteza do mercado urbano de trabalho envolve os demais aspectos da sociedade do trabalho, especialmente, o cruzamento dos mecanismos capitalistas do assalariamento com os elementos de discriminação étnica. Tudo isso se funde numa relação do que é local com o que é internacional. Desde seu início, Salvador tem sido uma cidade sede de relacionamentos internacionais, que se realizaram em concomitância e de modo independente dos caminhos seguidos pelas demais partes do país. Salvador foi um porto estratégico na estruturação do império português e foi a sede de um circuito de capital escravista, que se desempenhou em concorrência com o do Rio de Janeiro, assim como foi o núcleo político de um movimento de expansão territorial, que se desenvolveu em concorrência com o movimento de bandeiras partido de São Paulo. Finalmente, Salvador representou uma associação em o Império Português e com o Império Brasileiro, que a tornaram símbolo de um antagonismo com as pretensões de Pernambuco de liderar o Nordeste em nome de uma herança holandesa e de um confronto com o Império Brasileiro. Esses fatores ajudaram a consolidar uma aliança entre um bloco regional de poder, escravista e controlador da economia pós-escravista, em torno do eixo constituído pela combinação de capital mercantil e poder rural, em que o primeiro ficou basicamente sediado em Salvador e o segundo compreende a oligarquia assentada sobre o controle da água e da terra no interior do estado. Problemas iniciais de método. A urbanização em Salvador reflete, portanto, uma sucessão de deslocamentos de posição de grupos organizados, numa composição regional de poder sobre um território equivalente ao dos demais estados nordestinos somados, assim como, sobre uma capacidade de exportar que geralmente tem sido maior que a desses estados. Isso significa que Salvador nunca foi apenas uma capital de estado, senão foi a sede de uma região cultural e econômica claramente diferenciada das que a rodeiam, com a única exceção de Sergipe, com quem tem mais semelhanças que diferenças. A análise da urbanização enfrenta hoje um leque de situações diferentes das de décadas anteriores, tanto em aspectos quantitativos como qualitativos, que se devem, principalmente à incapacidade das grandes cidades, de oferecerem serviços adequados à maioria de seus moradores, e de sofrerem crescentes pressões decorrentes de seus problemas sociais. Tais problemas – desigualdade de renda e pobreza aguda da maioria – se agravam com a perda de capacidade das cidades para absorverem os contingentes de migrantes das cidades do interior do estado. Em Salvador esses problemas tornaram-se determinantes, tanto pela convergência de fatores conducentes à urbanização,
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como pela fragilização da economia do interior do estado, que se traduziu em aumento da pressão demográfica sobre a capital. As pressões de urbanização são geradas pelo crescimento da população e pelos interesses do capital para sua valorização, convertendo-se, os dois, em compras, monetizadas ou simbólicas, de espaço urbanizado. A concentração dessas compras em determinados pontos-momentos da formação da cidade constituem impulsos de urbanização que alteram, de modo pouco reversível, os modos de funcionamento das cidades. Assim, esses impulsos de urbanização se realizam ao longo do tempo, determinando mudanças de forma da urbanização. Por isso, as cidades são estudadas a partir dos processos que as formam, entendendo-se que sua organização social é conseqüência deles. Daí, há um problema de método a ser resolvido. A principal observação inicial a fazer nesse sentido é que a intensificação da atividade econômica, que é criadora de cidades, também gera um estilo de urbanização e um perfil regional, que, por sua vez, passa a condicionar a formação da cidade. As cidades crescem com um perfil físico, com certas tecnologias e com certos modos de organização de suas respectivas áreas de influência. Tais perfis, além disso, são característicos de cada época. As cidades que contêm fábricas são diferentes das que concentram serviços avançados, assim como as cidades dos trens são diferentes das cidades dos ônibus. Essa observação leva a uma abordagem da questão da espacialidade da economia, pela qual, sucessivamente, diluem-se as diferenças entre a esfera urbana e a regional e se define uma abordagem de análise social da urbanização como de um processo que se alimente de seus próprios resultados, desenvolvendo transformações culturais, tecnológicas e ideológicas, que são reabsorvidas na economia das cidades. Adiante essa observação torna necessário explicar que se entende como estilos de urbanização e como tratar com as esferas do urbano e do regional. Não há nada de novo em explorar as implicações regionais do crescimento das cidades, mas ressaltam-se aqui as conseqüências desse movimento em termos de complexidade e de desigualdade. Produzem-se cidades que se afastam dos padrões que regeram a industrialização da produção e do consumo, onde hoje se acumulam tensões nas relações de classe, que se materializam na perpetuação do desemprego e em mudanças qualitativas na estruturação social, que se estendem, simultaneamente, nas diferenciações entre cidades e entre os espaços de uma mesma cidade. Este último processo ganha novos contornos, dados pela conjuntura da economia mundial. Junto com a queda do emprego formal, e com o aumento de escala do capital envolvido nos sistemas de infra-estrutura para as grandes cidades, consolidam-se formas de urbanização realizada por grupos de baixa renda, que condicionam o perfil da demanda urbana, resultando em modificações no multiplicador entre as despesas de empresas e de famílias, que deverão ser explicadas como passo prévio a uma explicação do significado
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das políticas urbanas.18 Nesse contexto encontra-se o problema de inserção dos bairros no conjunto de cada cidade, onde se destacam, como principais referências da análise social a relação capital/trabalho e a relação moradia/trabalho, com seu desdobramento em local de moradia e local de trabalho e distinguindo as atividades da esfera doméstica e as da esfera de mercado. Contrariamente à impressão inicial causada pela industrialização, as grandes cidades das sociedades desigualmente industrializadas, tais como a brasileira continuam funcionando com um grande componente de atividades da esfera doméstica. A experiência de Salvador mostra que há um recrudescimento da contratação de trabalho doméstico, propiciada pelo desemprego agudo e crônico das regiões empobrecidas próximas da capital. Assim, a explicação do processo urbano compreende elementos da formação da cidade em seu conjunto e da formação de cada uma das suas grandes partes, que em princípio se denominam aqui de regiões urbanas, especialmente daqueles que respondem por proporções significativas do povoamento e que adquirem características sociais e culturais diferenciadas. Esta percepção do problema ganha especial importância quando se comparam grandes bairros tradicionais de Salvador, como o da Liberdade, com bairros também populosos mas de criação recente. A multifuncionalidade ou a unifuncionalidade dos bairros tornaram-se uma parte necessária de seu urbanismo, já que alguns bairros conseguiram alcançar uma diversificação suficiente para criar atividades remuneradas, enquanto em outros o comércio e as manufaturas são insignificantes. Os impulsos de urbanização. A proposta de explicar a urbanização como decorrente de impulsos econômicos e culturais, tem a principal vantagem de vincular os movimentos das cidades aos ciclos da economia, que se expandem em tempo e espaço, incorporando-se ao dinamismo espacial da sociedade, convergindo ou confrontando com as tendências em curso. Diversas evidências empíricas apontam no sentido de que o crescimento das cidades tem sido irregular no tempo e no espaço, portanto, que não pode ser plenamente explicado mediante uma análise de variáveis que se comportam de modo regular. Há um espaço especifico para a análise de comportamentos regulares outro espaço para as análises que procuram registrar o inesperado e o irregular. As evidências são, também, de que a variabilidade é desigual ao longo das experiências das diversas sociedades. Encontram-se situações em que os impulsos de urbanização são contínuos ou quase contínuos, portanto, há continuidade do processo de urbanização e da difusão regional de seus efeitos, ao lado de situações em que esses impulsos são claramente descontínuos, em que, portanto, o processo de urbanização se torna intermitente, em que seus efeitos regionais são, também, incertos. A intermitência do processo surge 18
O reconhecimento dessa pluralidade de movimentos concomitantes de urbanização é uma transposição ao mundo das cidades capitalistas periféricas de hoje daquela pluralidade apontada por José Luis Romero entre as cidades fidalgas e as cidades mercantis do mundo colonial. A percepção de que a urbanização das cidades compreende diferentes e concomitantes movimentos de urbanização é essencial para explicar o funcionamento das cidades de grande porte da periferia da acumulação da periferia.
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como o resultado de uma combinação de movimentos determinados por diferentes combinações de interesses. O modo de urbanização do velho sistema primário exportador foi substituído por uma urbanização conduzida por novos interesses industriais e rurais e foi atingida por novas pressões demográficas. Salvador constitui uma experiência representativa de uma urbanização descontínua, sujeita a uma alternância entre valorização e desvalorização. Os períodos de maior continuidade têm sido os da expansão da atividade econômica, ficando desde já por esclarecer se se trata de coincidência ou de causalidade entre essas duas ordens de fenômenos. Metodologicamente, os aspectos de coincidência devem ser distinguidos dos de concomitância, isto é, entre os que são incidentais e os que refletem relações de causalidade. Mas está claro que são ordens de fenômenos a comparar, dado que a formação de espaços economicamente significativos, já sejam eles rurais ou urbanos, interage com a expansão dos negócios, do mesmo modo como interage com a expansão de movimentos ideológicos. O principal desse processo é que a expansão urbana se faz mediante mudanças de composição do sistema produtivo e dos sistemas de consumo, que as eventuais continuidade ou descontinuidade decorrem de situações historicamente novas. Daí ser possível acompanhar a mudança social urbana mediante a observação de seus aspectos tecnológicos e de qualificação, mas não há muito sentido em querer expressar esse processo mediante a descrição de situações que são, por definição, superadas. Essas observações têm que ser examinadas à luz das necessidades da sociedade urbana, cujo atendimento requer uma análise pertinente e oportuna. A pertinência é um requisito de bom senso (Myrdal, 1968; Santos, 1998) que faz parte de uma abordagem científica desprendida das regras de legitimação e dominação. A análise urbana deve refletir a realidade e não apenas verificar a consistência lógica de modelos desenhados a priori sobre condições experimentais que não podem ser controladas, ou que não podem ser repetidas. A análise urbana não pode se afastar do bom senso simplesmente porque não há substituto para ele. A relevância da análise urbana depende de sua capacidade de perceber o aspecto de sentido de oportunidade com que a política urbana tem operar, que, por sua vez, depende de uma percepção afinada dos processos das cidades. O aspecto de oportunidade envolve uma referencia à capacidade da análise social para refletir o momento histórico que dá sentido aos eventos de atualização da qualificação do trabalho, de substituição de tecnologias e ajuste de instituições. Por exemplo, a difusão de sistemas de ônibus tem hoje um significado diferente do que teve há trinta anos, ou a difusão do acesso a energia elétrica e o esgotamento sanitário. A difusão desses serviços hoje nas cidades brasileiras assinala um efeito regional indireto maior e mais profundo que o das ampliações e atualizações de sistemas padronizados entre cidades que crescem de modo desigual e diferenciado, tanto porque enfrentam novos perfis de demanda, como porque tratam com novas condições de consumo.
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No Brasil em geral e especialmente na Bahia, acumularam-se atrasos na dotação de serviços nas cidades, especialmente para os grupos de baixa renda, onde se concentram os efeitos negativos da urbanização. A queda das condições sociais de vida aparece como resultado do aumento da proporção de grupos de baixa renda e como resultado de perda de poder aquisitivo por parte de uma proporção cada vez maior da população das cidades. Essa insuficiência da renda familiar disponível nas cidades e para financiar sistemas de serviços públicos maiores e mais caros é a cara externa de processos de destruição de postos de trabalho e de perda de capacidade dos poderes locais para prover os investimentos necessários nesses campos. Uma parte do problema se materializa através das relações entre classes nas próprias cidades, em que os grupos médios de renda deixam de empregar trabalhadores dos grupos de rendas inferiores. Mas outra parte reflete o modo como as cidades são integradas e subordinadas pelo modo geral de acumulação de capital, que se traduz em padrões de investimentos por parte das grandes empresas que lideram a formação de capital. A originalidade do processo urbano de hoje é o modo como os processos locais são articulados por decisões externas e ao mesmo tempo, como impõem suas peculiaridades a essa expansão do capital. As cidades protagonizam processos condicionados de urbanização, mas que representam processos sociais próprios delas, que não podem ser reduzidos às determinações dessas influências externas. Complexidade e diferenciação . A principal questão aqui é que se trata de um tipo especial de complexidade, que envolve a trajetória dos grupos urbanos organizados e seu modo de resolver seus problemas de moradia, circulação e lazer. A produção de espaço urbano é um modo de realizar valor, que é apropriado pelos segmentos da sociedade que combinam o controle da terra e o dos meios de produção da construção civil. Mas a mercantilização dos espaços urbanizados constitui outra esfera de mercado, controlada pelos capitais que operam na circulação urbana de bens e serviços. Dadas as especificidades da construção civil, há diferentes circuitos de mercado na produção urbana, que se intersectam na formação do valor das habitações. As habitações, os sistemas de infra-estrutura, são os componentes básicos da formação dos espaços volumétricos em que se materializa o valor urbano criado. A constituição do valor urbano pode ser expressa pela fórmula vc=e.d(t), onde vc significa valor criado, e representa a extensão do espaço físico apropriado e d representa a densidade de capital adscrito a esse espaço, admitindo, ainda, que a extensão compreende a metragem do solo e dos demais níveis de solo construído. Nessa fórmula considera-se ainda, que a densidade de capital é corrigida por um fator de tecnologia representado por t , que afeta aos diversos componentes do capital. Graficamente, essa fórmula significa que um mapa de valorização se desdobra em camadas de valor agregado, segundo as posições dos espaços construídos na cidade; e que a escala de valores na volumetria da cidade resulta em equivalências entre os pontos de solo da área construída , sempre que se trate de situações em que a verticalização seja técnica e economicamente possível e em que seus custos sejam equivalentes.
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Por trás disso há, portanto, um problema econômico, social e técnico, relativo às condições materiais em que se realiza a verticalização dos edifícios, que é o da capacidade econômica para verticalizar. Os custos da verticalização, que parecem ser ignorados pelos megaedificios das grandes cidades, desde os custos de projetamento aos dos equipamentos necessários, desde elevadores a sistemas mais complexos de água, luz e segurança, estabelecem uma clara separação entre as possibilidades de verticalização das habitações dos grupos de baixa renda e dos grupos de rendas superiores e das médias. Mesmo com menores índices de densidade de ocupação por cômodo, a verticalização fica com aqueles que podem pagar os custos indiretos da verticalidade. Numa distribuição da população urbana por grupos de renda encontramse restrições determinadas pelos patamares mínimos de capital necessários para verticalizar as construções e deseconomias representadas pela construção de espaços com baixa intensidade de uso, tanto de espaços de baixa intensidade de uso, tanto públicos como privados. Assim, as concentrações dos assentamentos de baixa renda representam, também, situações de capitalização abaixo das médias da cidade, para incorporar serviços às habitações multifamiliares. Com essas duas referências colocam-se os elementos que sustentam uma escala de custos sociais da moradia. Tais elementos são a relação entre o solo apropriado e a área construída e a relação entre a intensidade da ocupação e a disponibilidade de serviços básicos. Com esses elementos deverão ser construídas tabelas classificando os bairros e as correspondentes condições de vida da população estável de moradores. Paralelamente, a autoconstrução e o consumo clandestino de energia são soluções de consumo urbano que substituem essas carências com meios alternativos a que a população tem acesso. Pesquisas específicas sobre a construção civil e sobre o sistema de energia elétrica em Salvador mostraram que esses dois grupos de atividades representam uma alteração da composição do sistema de produção urbano, cuja expressão regional torna-se maior que a sugerida pelas cifras oficiais de produção. Desse modo, em cidades com população majoritariamente pobre tal como em Salvador, a construção civil exerce uma influência regional que excede em muito aquela que pode ser inferida de suas atividades formalmente organizadas. Essa influência regional dissimulada da cidade corresponde à influência exercida a outro nível, da concentração de conhecimento especializado. A cidade pode ter o maior número de empresas de informática e de advogados trabalhistas, como pode ter uma escola de música de alta qualidade, ou os únicos cursos competentes de grego e de Física teórica. O maior número de especialidades em temas procurados por pequenos números de pessoas dá um diferencial a Nova York, Paris, Londres ou São Paulo e em pequena escala faz uma diferença insuperável entre Salvador e as frágeis cidades do Estado da Bahia.
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O mercado urbano em Salvador. As cidades são mercados cuja escala e composição tem sido determinante na expansão dos sistemas de produção, que, portanto, devem ser explicados. No ambiente da urbanização no Brasil torna-se indispensável distinguir a economia das cidades enquanto sistemas de sistemas, que operam de modo desigual e combinado e irregularmente integrados, do sistema de produção localizado nas cidades, constituída de estabelecimentos de empresas e de produtores individuais. Sobre essa distinção coloca-se outra observação, de que esse mercado está formado em sociedades com diferentes situações de desigualdade e de exclusão social, com uma esfera de demanda de consumidores que se situam acima da linha das necessidades de reprodução da força de trabalho e outra esfera de demanda dos consumidores que ficam abaixo dessa linha e até uma zona de reprodução precária. Noutra perspectiva, o mercado urbano está formado de um componente de atividades que se realizam na esfera doméstica e outro de mercado, mas onde muda, de modo significativo o modo de mobilizar a força de trabalho da esfera doméstica. A esfera doméstica é invadida por aparelhos elétricos que liberam tempo e por formas de contrato de trabalho que estimulam trabalho nas residências. Na análise urbana de Salvador, que se reporta a sua origem escravista, combinando uma economia mercantil com uma base rural especializada, esses elementos de constituição de mercado local são fundamentais, tal como se demonstrou mediante sua primeira etapa de industrialização, entre 1870 e 1910. O modo como a cidade se reproduz se resolve mediante certas combinações de tecnologia nos sistemas de serviços de utilidade pública e no modo de funcionamento das moradias. A administração das cidades tem que mudar para se adaptar a esses novos equipamentos, tal como acontece com a substituição dos sistemas de transportes públicos e com o manejo do lixo. O desenvolvimento desses sistemas abre novas oportunidades de investimento e condiciona outros investimentos que podem optar entre localizações em diferentes cidades. Assim, a economia da reprodução da cidade induz a localização de capitais, que podem operar sobre essa base de mercado e atender uma demanda mais ampla. Assim, há algo de peculiar na formação do mercado urbano, que depende do modo como a cidade se desenvolve, no que isso representa incrementos das rendas dos seus grupos de renda. Torna-se, portanto, necessário rever o dinamismo da relação entre os pobres e os ricos e dos espaços que as classes médias ocupam. Certos dispositivos da vida urbana, tais como o tempo de permanência na cidade e como o tempo de participação em atividades regulares. A composição de classes é simultaneamente afirmada e negada, segundo se modifica a relação entre os espaços estáveis e os espaços precariamente organizados. Ricos e pobres são designações genéricas que assumem formas específicas e datadas, com participantes com diferentes condições de mobilidade e de permanência. Na prática, os mais ricos são os que concentram o controle do capital, cuja posição privilegiada depende de que mantenham esse controle, portanto, de que sejam capazes de se adaptarem às novas condições técnicas do capital. Dentro da aparente continuidade dos grupos dos mais ricos em Salvador encontram-se modificações profundas, em
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que grande parte das famílias dos grandes comerciantes tradicionais, originários da produção escravista, perderam recursos e posições, enquanto ascenderam outros, enriquecidos com as novas culturas de exportação tais como fumo e cacau, e com contratos com o governo.19 O dinamismo dos grupos superiores de renda em sua magnitude e em sua composição denota um quadro geral de movimentação de capital que indiretamente indica o ambiente de ocupação remunerada em que se encontram os mais pobres. A criação de oportunidades de ocupação remunerada, perfazendo o contexto do mercado local de trabalho, corresponde à composição de atividades disponíveis no mercado urbano, em que a demanda de trabalho remunerado depende de despesa pública e de renda gerada pelas vendas realizadas pelos agentes econômicos representados na cidade. Assim, o tamanho da cidade é um dado que não pode ser ignorado, mesmo quando significa uma população com uma elevada proporção de pessoas muito pobres. Mitos e ideologia na revelação da cidade O contexto social urbano. A análise mecanicista do funcionamento das cidades revelou-se insuficiente para dar conta da complexidade das cidades contemporâneas, especialmente naquelas cidades em que o crescimento demográfico e as transformações tecnológicas se fizeram sem uma correspondente elevação das condições de vida da maioria. Os problemas de pobreza nelas encobrem um espectro muito mais amplo e complexo de conflitos, que se projetam na estruturação dos espaços urbanos. O componente de exclusão disputa com um componente de afirmação que procura se firmar sem tomar conhecimento do significado da exclusão. Assim, o foco da análise da urbanização periférica tem que estar na inter-relação entre o plano material e o não material da vida urbana. A compreensão da vida urbana envolve o reconhecimento de seu fundamento cultural, com seus mitos e suas ideologias, com a configuração de interesses e modos de tratar com a subjetividade. O modo como os integrantes da cidade a percebem constrói-se, progressivamente, segundo eles são parte de grupos organizados. Nesse sentido, o espaço ocupado pela cultura negra em Salvador – originariamente fragmentada – tornou-se um contexto que se unifica e ganha novas qualificações em sua participação na sociedade brasileira. A suposição de que a cidade seja decodificável pela explicitação de uma racionalidade com que ela funciona se confronta com outra suposição, de que as cidades contêm um componente anárquico cujo reconhecimento é um passo inevitável até se chegar a perceber com qual racionalidade ela efetivamente se reproduz.20 Esse é um dado essencial em uma realidade urbana que muda rapidamente de composição, levada pelo fato de que a luta pela sobrevivência 19
Os contratos de obras públicas e de serviços públicos já desempenham esse papel desde o fim do Império e beneficiaram a combinação de política e comércio. 20 Vale aqui uma referência ao ensaio de Paulo Marchelli sobre Racionalismo e anarquismo (2004) que avalia as condições em que as correntes teóricas sobre esses dois encabeçamentos se tornam parte do discurso metodológico da ciência.
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num ambiente de desemprego crônico gera uma variedade de relações desiguais inseridas no contexto geral das classes, onde se desenvolvem formas alternativas de associação e de defesa frente à pressão constante da busca de renda familiar. Essa é uma razão para entender que a presença negra na sociedade baiana é muito mais complexa e estruturante que o que pode inferido de condições de renda. A fixação de posições na sociedade escravista e as alterações que surgem nos processos da sociedade pósescravista dão conta de uma profundidade cultural incomparável com os números da demografia e com os das condições de renda. A conquista de um imaginário que se desprende das práticas diretamente determinadas pela produção tem tudo a ver com a permanência dos participantes do processo social. A criação da cidade em Salvador fez-se com a introdução de mitos, ideologias e interesses dos portugueses, que trouxeram um imaginário de expansão política religiosamente sustentada, que deu vazão a um projeto econômico internacionalista, baseado na combinação da produção açucareira com o extrativismo e com a pecuária. O objetivo de expansão política projetava a ideologia medieval. O projeto econômico inicial, claramente mercantilista, correspondia à organização comercial da economia mundial no século XVI, que representava uma cadeia de interesses centrada na esfera econômica. A exposição desse projeto à pressão holandesa, então máxima representante do capital mercantil em ascensão, significou o choque dessa proposta medieval com a expansão do capital, na passagem do centro da acumulação mundial de capital do Mediterrâneo ao Atlântico norte (BRAUDEL, 1983). Mas criou um mecanismo de processamento de relações constantes e fortuitas entre participantes permanentes e transitórios e regidos por regras de desigualdade. A colônia criou suas próprias regras de inclusão e de exclusão de grupos e de pessoas, estabelecendo sinais que permitiram atribuir aqui status dos reconhecidos na metrópole, assim como permitiu valorizar sinais de poder que aqui tiveram pesos diferentes dos exibidos em Portugal. As estratégias de poder e de sobrevivência encontraram linguagens novas em novas versões de autoritarismo e de permissividade, em reconhecimento e em negação dos outros como interlocutores ou como parceiros. A cumplicidade serviu para encobrir a destruição sistemática dos grupos que poderiam representar uma negação da colônia, especialmente dos índios. A base ideológica da colônia formou-se mediante a constituição de uma elite local a partir dos elementos de poder transferidos, absorvendo elementos locais gerados na própria produção escravista, compreendendo a representação da oligarquia açucareira e pastoril e a representação da burocracia urbana. A formação social local deu lugar a uma polaridade entre homens livres e não livres, com a diferença entre a cidade proposta e produzida pelo grupo dominante e a cidade que começou a ser feita extra muros pela sobrevivência dos demais. Essa polaridade permitiu abrigar grupos marginalizados na Europa e dar novos focos de legitimidade, inclusive aos perseguidos europeus, como os cristãos novos e os ciganos. A sociedade mercantil tornou-se contraditória com os preconceitos da sociedade feudal.
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Os requisitos do exercício desse tipo de poder em Salvador levaram à imposição de uma ideologia de cidade, adequada para perpetuar uma estratificação diferenciada nos segmentos de população incorporada ao sistema de poder político e econômico de população separada dele. Tal movimento resultou numa cidade constituída de espaços diretamente utilizados pelo grupo proprietário, combinados com espaços criados e utilizados pelos grupos dominados. Nesse contexto, a dominação compreende a totalidade dos espaços dos dominados, desde as senzalas às casas de cômodos, becos e invasões, ao controle dos lugares permitidos para moradia e tolerados para cultos religiosos. Tradicionalmente, escravos e libertos ocuparam espaços marginais adstritos aos sobrados, onde os becos foram uma forma típica de Salvador pré-industrial, afeitos à residência de pessoas que prestaram serviços às famílias. No urbanismo do escravismo, os escravos formaram parte da organização do bairro dos senhores. O panorama social mudou radicalmente do escravismo ao pósescravismo. O ambiente social pós-escravista passou a reger-se por regras não escritas, entretanto muito claras, já que delas dependeu a sobrevivência da sociedade mercantil. A distância entre a moradia dos pobres e a dos empregados tornou-se um custo que foi arcado pelos empregados, que passaram a ter que se deslocar aos seus locais de trabalho por sua conta. Ao longo da história esse urbanismo resulta em movimentos de valorização que sustentam uma estratificação constituída de espaços que operam segundo diferentes regras de reprodução. As diversas reformas desde o século XVIII às do século XX realimentaram o projeto de cidade funcional ao poder organizado, dando lugar a uma hierarquização na esfera dos dominados. A organização da moradia em torno dos palácios e igrejas e a eventual ruptura desse padrão de espacialidade, já no século XIX quando surgiram as fábricas desempenhando esse papel, são referências dos modos de articulação da cidade dominante com a cidade dominada. Numa visão em perspectiva histórica da formação da cidade, os dois principais fatos de ruptura de padrões de urbanização foram a constituição do complexo fabril, comercial e de transportes da Calçada no último quarto do século XIX, cujos efeitos prosseguem até hoje, e a reforma urbana de 1970, que abriu novos caminhos de expansão da cidade, estendendo seu território e criando novas opções de urbanismo. Os projetos urbanos e a produção do urbanismo oficial alimentaram a imagem da cidade, que responde aos ideais de civilização incorporados ao urbanismo oficial, no qual não se incluíam as situações de moradia, lazer e circulação dos que não participam dessa esfera. No entanto, essa outra cidade produziu-se, continuamente, com suas próprias combinações de urbanidade e de inclusão de componentes rurais, cuja absorção no meio urbano mudou de forma ao longo do tempo. A industrialização da cidade representada pela construção de sistemas de infra-estrutura, especialmente em transportes, modificou o padrão de urbanismo deixado pela sociedade escravista, causando novos modos de entrelaçamento entre as diferentes propostas de cidade. Desde a Segunda Guerra Mundial surgiram elementos constitutivos de uma cidade da maioria, em cuja concepção a classe média passou a ser
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significativa. Esse novo componente da sociedade urbana surgiu da junção de alguns elementos aportados pelo Estado Novo, especialmente, a profissionalização e a ampliação do serviço público, com a expansão dos sistemas de transportes. Foi subsequentemente reforçado na década de 1950 pela expansão do sistema de transportes, pela entrada da Petrobrás, pelos efeitos do financiamento especializado do Banco do Nordeste e por coincidente ampliação da atuação local do governo. Constituiu-se, assim, uma massa de empregos para trabalho não manual que deu sustentação a uma nova classe média, reconduzindo ou neutralizando a tendência até então prevalecente de emigração dos quadros qualificados formados no estado. Essa classe média foi sustentada pela continuidade da despesa pública, pela industrialização e pela concentração em Salvador dos efeitos da formação de capital no Estado da Bahia em seu conjunto. Apesar de serem claramente minoritários na composição da sociedade urbana em Salvador, os grupos de rendas médias e superiores foram estimados em 1994 em uns 100.000 empregos, o que, de qualquer modo, coloca Salvador como principal mercado urbano do nordeste do país. No atual ambiente de crescente incerteza de renda e de alternância entre atividades, a posição dos grupos de rendas médias é determinante do mercado de trabalho informal, a consistência e as perspectivas de classe média em Salvador são, também, incertas, em princípio ameaçadas pela retração do Estado na avalanche neoliberal, e pela conclusão da expansão industrial iniciada na Bahia na década de 1950. Há uma grande rotatividade nos grupos de rendas superiores e médias, que por uma parte foram atingidos pela retração do Estado e em parte são beneficiados pelos mecanismos de controle político da economia. A concentração de órgãos públicos e de bancos em Salvador, junto com os efeitos finais do controle político dos municípios, que tem dado lugar a enriquecimento de prefeitos e deputados. A pluralidade dos grupos.
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O dinamismo urbano A urbanização na periferia da acumulação do capital reflete as contradições do poder econômico e político, que explora as oportunidades de investimento criadas pela demanda de espaço no mercado oligopolizado de terra urbana. Este fundamento contraditório da urbanização se revela nos dois níveis de materialização de espaços de conflito e na revelação de linhas de tensão entre os tecidos de relações estruturantes dos espaços urbanizados no modelo pretérito de cidades projetadas pelos interesses das classes médias – e o aparecimento de espaços de poder formados no universo da marginalidade. A urbanização da periferia no ocaso da produção fordista enfrentou uma nova contradição nos movimentos incontrolados de valorização e de desvalorização de terrenos, segundo progridem as estratégias dos interesses dos grupos urbanos de poder. A urbanização em seu conjunto se revela como um campo de força sintetizador de um espaço social muito maior que o criado pela industrialização, porque recolhe os elementos expulsos pela reestruturação tecnológica da indústria. Essa nova unidade contraditória urbana ganha novas dimensões de identidade quando o informal se formaliza, ou quando a ilegalidade constrói redes de interesse e de controle social que se tornam mecanismos de poder. O lugar da urbanização em principio é a cidade, onde ela se manifesta numa variedade de situações, que se desdobram no tempo de cada cidade. As cidades de grande porte como Salvador representam sociedades subindustrializadas, ou que simplesmente crescem com aumento do número de pessoas mais pobres, representam experiências anteriores, pelo modo como resolvem seus problemas de apropriação de recursos e por sua experiência de formação da própria população urbana. A urbanização de hoje tem que ser entendida à luz dessa combinação de aspectos genéricos e de peculiaridades das diversas cidades de hoje. Primeiro, a industrialização, depois a aceleração das comunicações, modificaram a combinação de componentes gerais e peculiares que se organizam em cada cidade, chegando a certos bloqueios que alteram a movimentação dos recursos da cidade. Um exemplo claro desse fenômeno são as estações rodoviárias, que se tornam pequenas demais para as necessidades, ou os grandes conjuntos habitacionais planejados, que passam a condicionar a valorização dos terrenos e indiretamente, condicionam os modos de organização do trabalho, dados os movimentos entre moradia e local de trabalho. Na análise dos problemas urbanos específicos não há, portanto, como descartar a compreensão dessa combinação do geral com o específico. Em seus aspectos genéricos, a cidade se faz com insumos e produtos materiais e ideológicos, que se distinguem por suas formas, portanto, pelo modo como absorvem técnicas. O componente de tecnologia aparece na forma dos produtos e na qualificação do trabalho que os realiza. O componente cultural incorpora e transmite o que a cidade tem de peculiar, isto é, o que permite entre cidades que usam tecnologias semelhantes e têm desempenhos diferentes. Assim, é preciso pensar em termos de como a urbanização se
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realiza em cidades de grande porte desigualmente capitalizadas. As duas vertentes da urbanização, a econômica e a cultural, obrigam a situar as experiências concretas de urbanização frente aos dois grandes filtros, tecnológico e organizacional na prática contrastando os movimentos da urbanização com seus resultados no urbanismo, isto é, na configuração física da cidade. Não se pode esquecer que a urbanização se refere a experiências de diferentes sociedades e de diferentes épocas. A experiência de Salvador é reveladora dessa situação de periferia contraditória em dois aspectos, de que a maioria de sua população não tem renda suficiente para pagar pelos serviços de utilidade pública que se consideram como essenciais à cidadania; e que as receitas do poder público municipal são sempre inferiores às despesas mínimas necessárias para atender à prestação desses serviços. A urbanização é conduzida por forças sociais que operam no âmbito da cidade, mas não necessariamente envolvem todos seus moradores. De fato, são forças que mobilizam recursos humanos e técnicas em torno de propostas de produção, atingindo uma pluralidade de configurações de mercado, desde a referência mais simples, que é a concentração demográfica, até referências mais complexas, que são as de concentrações locais de movimentos internacionalmente gestados. A presença de centros de pesquisa, tanto como da sede de empresas multinacionais, agrega um componente qualitativo, que se revela descontínuo em relação com os componentes habitualmente encontrados em um mesmo grupo de tamanho de cidades. Tais movimentos se fazem mediante uso de energia, de diversos tipos, para a produção material e para a intelectual, em formas organizativas capazes de comandar os usos específicos de energia. Trata-se aí, portanto, de um modo urbano de produzir, com determinadas composições de trabalho e de meios de produção. A energia física se coloca em termos de um modo energético da produção. A energia intelectual põe-se em termos de captação de trabalho qualificado. A análise da urbanização enfrenta problemas de grande complexidade para traduzir esses elementos em uma linguagem comum, que permita ver os aspectos de equivalência entre as cidades. Em principio essa equivalência surge da produção de valor, mas há problemas adicionais de operacionalidade da análise, relativos a como reconhecer as formas urbanas de valor, entre as que chegam plenamente ao mercado, as que se realizam na esfera doméstica e as que tomam a forma de patrimônio cultural. O estudo de uma cidade específica apóia-se em referências genéricas da urbanização e em referências das experiências dos grupos integrantes da cidade, que constituem sua cultura. Genericamente, o dinamismo das cidades traduz-se em movimentos de estruturação e na continuidade de processos do urbanismo. No plano material, Salvador experimenta alterações de sua estruturação, que se distinguem pelo menos em dois aspectos, que são os de deslocamento de seu principal centro político e econômico e de construção da infra-estrutura que possibilitou seu crescimento na direção norte, rompendo com o padrão de organização do território surgido na colônia. No plano cultural e da formação de ideologias, Salvador registra dois fenômenos marcantes em sua trajetória: o crescimento de seitas religiosas e o aumento do componente de imigrantes do interior do estado, impelidos pela falta de emprego e pelas secas.
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A produção de cidade na periferia latino-americana A urbanização nos países periféricos da industrialização trouxe notáveis surpresas desde a década de 1960, destacando-se dois ou três de seus principais traços, tais como o rápido crescimento de algumas metrópoles, tais como a Cidade do México e São Paulo, que superou o crescimento das metrópoles dos paises mais ricos e o aparecimento de novo tipo de cidade, como Campinas, onde a urbanização passou a ser conduzida pela concentração de entidades de alta tecnologia. Outras capitais, como Lima e Santiago do Chile explodiram em crescimento demográfico – Lima concentra cerca de 60% da população do Peru – acumulando problemas crescentes de pobreza crítica e exclusão social. Mesmo em cidades como Buenos Aires e Montevidéu, que não sofreram um crescimento demográfico comparável, o agravamento da desigualdade social é inquestionável. Informações da mídia de 2007 indicam que aumentou o número dos moradores de rua em Buenos Aires, apesar da recuperação da economia argentina. No último quarto do século XX a urbanização mudou de feição, porque passou a fazer-se com maior mobilidade física das pessoas. A cidade passou a conter equipamentos de consumo coletivo, como os supermercados e os shopping centers, que modificaram decisivamente o modo de consumir. A urbanização é a produção de cidades. Nessas novas condições, a urbanização projeta duas grandes questões: quais forças sociais conduzem o crescimento das cidades e como ele se realiza. Com a predominância dos novos grandes equipamentos de consumo, torna-se evidente que o crescimento das cidades não está garantido nem é contínuo. O crescimento das cidades passou a ser comandado pela lógica do grande capital diretamente no comércio e indiretamente na indústria. É a combinação dos capitais instalados no grande comércio e na indústria que induz as despesas em serviços de utilidade pública e finalmente resulta em serviços públicos e em despesa pública.
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III. A ordem do poder na urbanização periférica A política como organização do poder Trata-se aqui dos processos sociais de poder em seu conjunto, compreendendo o poder legalmente legitimado e o poder in natura tal como se gera na generalidade da vida pública. Se a vida social é essencialmente política em intuitos e em sua finalidade, é nas cidades que ela se afirma e onde ganha sua linguagem própria. Antes da industrialização já as cidades reuniam as mudanças na organização do poder que permitiria realizar as novas alianças entre o capital e o Estado. A conquista das grandes cidades por parte do poder absolutista, junto com a criação de novas cidades para veicularem os modos de mando absolutista, resultou no final na formação de cidades mais complexas, que se tornaram os principais lugares de instalação do poder econômico e financeiro da burguesia. Daí, surge a inevitável noção de que as cidades são essencialmente complexas e que sua complexidade aumenta mais que sua importância econômica ou política. Mas não é uma complexidade dada. É um processo de complexificação que funciona como um espelho do movimento do capital. Observe-se, por exemplo, que a maioria esmagadora das casas de residência nos Estados Unidos compõe-se de casas aparentemente simples, formalmente monótonas. Mas essas casas são uma mera aparência – enganosa – se um sistema complexo de moradia, cujo tecido financeiro e tecnológico se ocultapor trás dessa monotonia formal. A verdadeira complexidade urbana não se resolve localmente senão se define no espaços da estruturação da vida urbana, que excedem em muito o espaço físico das cidades. De fato, a cidade é onde a troca exerce sua função de viabilizar uma produção alienada, onde as se tornam efetivamente trabalhadores e onde o movimento das trocas se converte em meio de realização dialética do capital, que passa por formas de organização econômica mediante formas políticas. Ao acompanhar a substituição de formas urbanas de produção podemos ver como o sistema do capital expurga formas de atividade que se tornam disfuncionais com a acumulação urbana – tal como faz, por exemplo, com formas artesanais de construção civil – e como introduz e dá novos usos a técnicas conhecidas, tal como fez com a realização de serviços a famílias por parte de trabalhadores menos qualificados ou socialmente discriminados. O reconhecimento desses dados da realidade urbana moderna exige uma reforma profunda da análise de cidades, que deve ultrapassar o nivel da análise formal para embrenhar-se no movimento dialético da urbanização. Em geral se reconhece que a urbanização é um fenômeno polifacético, que exige um tratamento multidisciplinar. Entretanto, a análise urbana costuma ser organizada a partir dos aspectos físicos das cidades ou das relações próprias da urbanização, ignorando ou simplificando os fundamentos políticos da vida social urbana. Os processos sociais do poder geralmente são vistos mediante seus aspectos formais ou formalizados na esfera institucionalizada da política e não em termos de que as atividades socialmente organizadas têm uma expressão política
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A ordem urbana do poder em perspectiva histórica O desenvolvimento de sua obra pode-se dizer, vai das coisas do além a um intenso interesse por fatos concretos da natureza e da história e a convicção de que a forma e o sentido do universo não estão separados em sua matéria. W.Ross Aristóteles. A urbanização é um processo de poder cuja origem é uma metamorfose da vida social conduzida por formas de organização do capital, que se traduzem na criação de espaços progressivamente mais complexos e o poder sempre encontra alguma forma de organização, que se torna reguladora do cotidiano das cidades. O poder tem fundamentos econômicos e desenvolvimentos políticos. Isso quer dizer que a urbanização historicamente muda segundo as condições de desenvolvimento do sistema produtivo, com formas, desenhos e materiais que se tornam disponíveis em cada cidade e em resposta de movimentos da esfera da atividade política propriamente dita. Essa combinação é que o sentido de atualidade da urbanização. Não só não se encontram razões hoje para realizar formas urbanas do passado, como elas seriam incompreensíveis à luz das condições materiais da vida urbana de hoje. Vista desse modo, a análise urbana é um campo onde pode se realizar uma prática de desalienação da análise social. Assim como não se pode saber de antemão como se darão as relações entre participantes cuja identidade é afetada, tampouco se pode prever como progredirão os mecanismos urbanos do poder. Distinguiremos as soluções pretéritas de poder e as que correspondem ao mundo urbano de hoje, mas teremos que trabalhar com diferenciações entre a formação de poder nas cidades pré-industriais e nas cidades da industrialização. As cidades sempre foram a principal representação dos processos de poder, que encarnaram de diversos modos e gerando formas consentâneas com a formalização do poder, já fosse ele mais ou menos transitório ou mais ou menos duradouro. Enfrentam-se hoje as conseqüências acumuladas das diferenças entre a urbanização da produção pré-industrial e a da urbanização da industrialização, onde esta última cria fatores de permanência essencialmente diferentes dos anteriores, e, além disso, da urbanização periférica, que combina o mecanicismo da sociedade industrial com o personalismo das relações de dominação herdadas da sociedade patrimonial. No mundo latino-americano, que se originou de uma situação de colônia e passou a uma situação periférica em relação com organização do mundo capitalista industrial, a ordem do poder tem que rastreada em seu fundamento na ordem colonial – internacional – que aparece como ponto de partida do mundo urbano moderno. Desde o primeiro momento da colonização, as cidades são os pontos fulcrais da afirmação e das disputas de espaços de
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poder. Os que vieram para dominar trouxeram um principio de ordem política que incluía a muitos em forma diferenciada e que excluía a muitos outros. A ordem política do colonialismo contemplava papéis para os colonizados, que supunham a possibilidade de uma sociedade colonial invariante, regida por regras externamente colocadas. Tal pressuposto bateu de frente com as contradições do sistema colonial, que foi sucessivamente abalado pelos conflitos entre os interesses de classe e a sustentação do Império Português, que foram enfrentadas sem sucesso pela reforma pombalina21 ; e pela progressiva inviabilização do sistema escravista, que se revelou incapaz de conviver com os movimentos de renovação tecnológica. Distinguiremos essas contradições internas do sistema colonial das modificações do quadro mundial de poder, que registrou a passagem do poder da aristocracia ao absolutismo e o conflito entre o poder patrimonial e o mercantil. Do lado das colônias esses processos do poder levaram ao aparecimento de proderes localmente constituídos – cabildos, câmaras de vereadores – que vieram a ser os aparelhos institucionais que sustentaram os movimentos da independência política (Halperin, 2000). A urbanização surge como um processo síntese de arranjos forçados de convivência que se incorporam ao modo operacional regular das cidades e que se tornam os alicerces de nova vida política. Nesse novo mundo da política urbana formaram-se sistemas de poder complexos e plurais, onde o poder estruturado e concentrado pela combinação de capital mercantil com produção primária opera com números limitados de trabalhadores. Esse é um dado essencial da questão atual da formação de poder nas cidades, que indica a fonte das organizações de interesse dos circunscritos a posições secundárias nesse sistema e dos que são formalmente excluídos desse sistema. A sociedade urbana periférica latino-americana desenvolveu-se nessa matriz de ambigüidade do sistema de poder, em que as limitações do espaço do poder dominante surgem de seu próprio desenho e de sua própria iniciativa e onde as condições de organização do segmento restringido e excluído ficam condicionadas a sua capacidade de se adaptar e de resistir ao modelo dominante de poder. Nessas condições, a vida política não é apenas uma projeção das atividades que se realizam na esfera do poder dominante, senão que compreendem o conjunto dos conflitos e ajustes entre a esfera dos dominantes e a dos dominados. Ora, esta depende do controle social efetivamente exercido pelo bloco dominante. Ao reconhecer que o ambiente social da colônia foi uma combinação de conflitos controlados, somos levados a ver essas relações políticas coloniais como um campo de tensões cuja principal tendência é a negação do poder da metrópole. A reprodução do sistema dominante de poder político local dependeu sempre da articulação cujo fundamento econômico variou junto com a relação comercial, mas que trouxe, junto com ela, os apelos ideológicos da identificação com as metrópoles e depois, com as nações hegemônicas. Nessas condições, a identidade dos integrantes do bloco dominante não se reduz ao perfil de uma burguesia subalterna, mas envolve os diversos elementos de complexidade do circuito social em que eles estão inseridos. 21
Frédéric Mauro (coord.), O império luso-brasileiro 1620-1750, Lisboa, Estampa, 1991.
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Infere-se, portanto, que a progressão histórica dos processos que se formaram sobre o fim do colonialismo trouxe elementos de uma pluralidade contraditória que está nos fundamentos dos processos urbanos de poder. Nessa perspectiva, cabe distinguir dois tipos de cidades que são aquelas que reproduzem e modificam os processos de poder e aquelas outras que funcionam como meras retransmissoras na cadeia do poder político. O grande problema que enfrentamos na análise urbana de hoje consiste em reunir essas duas vertentes de análise social e revelar seu potencial para a sociedade em seu conjunto.
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IV. A urbanização contraditória A entrada do labirinto é imediatamente um de seus centros, ou melhor, não sabemos mais se existe um centro, o que é um centro Cornelius Castoriadis Vimos como a urbanização avança no contexto de um processo de concentração de capital e de desassalariamento, onde aumenta a incerteza de renda em geral e onde as oportunidades de emprego são controladas por um número menor de empregadores. A mundialização do capital transforma as cidades em sistemas de vasos comunicantes, onde o mercado urbano de terras se torna objeto de referência de capitais internacionalizados, tanto para localização de investimentos – endereços comerciais, hotelaria etc. como para compra de lotes. Os movimentos de valorização e de desvalorização de terras refletem combinações de interesses que ultrapassam a esfera de qualquer cidade. Nesse ambiente, a urbanização periférica contemporânea é um mecanismo de perda de visibilidade e logo de perda de identidade do sujeito dos processos sociais localizados nas cidades. Paralelamente, funciona como um catalisador de conflitos que se formam na sociedade nacional em seu conjunto. A urbanização na periferia da acumulação reflete as contradições do poder econômico e político, que explora as oportunidades de investimento criadas pela demanda de espaço no mercado oligopolizado de terra urbana. Este fundamento contraditório da urbanização se revela nos dois níveis de materialização de espaços de conflito e na revelação de linhas de tensão entre os tecidos de relações estruturantes dos espaços urbanizados – no modelo pretérito de cidades de uma classe media em ascensão – e o aparecimento de espaços de poder formados no universo da marginalidade. A urbanização da periferia no ocaso da produção fordista enfrentou uma nova contradição nos movimentos incontrolados de valorização e de desvalorização de terrenos, segundo progridem as estratégias dos interesses dos grupos urbanos de poder. A urbanização em seu conjunto se revela como um campo de força sintetizador de um espaço social muito maior que o criado pela industrialização, porque recolhe os elementos expulsos pela reestruturação tecnológica da indústria. Essa unidade contraditória urbana ganha novas dimensões de identidade quando o informal se formaliza, ou quando a ilegalidade constrói redes de interesse e de controle social que se tornam mecanismos de poder. Há uma formalidade não oficializada da informalidade, que é reconhecida nos espaços de troca dos agentes econômicos nas cidades. Diante da revelação dos limites e das contradições da urbanização na periferia da acumulação mundial do capital, tornou-se evidente a necessidade de uma leitura historicamente renovada da urbanização, que a tome como parte do movimento geral do capital e não mais como um evento social separado de sua base econômica. Especialmente, a urbanização moderna
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progride junto com as transformações da industrialização e com as dos sistemas de prestação de serviços que decolam do ambiente da industrialização. Não há uma urbanização genérica, universalmente repetitiva, porque 0s conflitos e os ajustes de interesses se realizam em ambientes que se tornam cada vez mais complexos. A questão urbana no Brasil revelou-se cada vez mais grave e complexa desde a década de 1960, quando começou a urbanização moderna do país, aprofundaram-se as diferenças entre as cidades das regiões mais ricas e as das mais pobres e tornaram-se claras as dificuldades para alcançar condições de vida aceitáveis nas grandes cidades. Progressivamente, surgiu uma urbanização seletiva, em que a maioria das cidades apenas tenta mitigar problemas ou superar urgências, procurando expandir a capacidade instalada para prestar serviços, mas sem projetos de reestruturação econômica que alterem o sistema produtivo das cidades. Finalmente, a expansão dos centros urbanos com carências crescentes e concentração de grupos em condições de pobreza crítica e crônica, definiu-se como uma urbanização negativa, em que o agravamento dos problemas sociais estende-se à destruição do meio ambiente e à inviabilização material das próprias cidades. As contradições da urbanização afloram, mostrando a necessidade de uma economia política crítica urbana, capaz de tratar com os conflitos e ajustes inerentes a essas contradições das cidades. No ano 2000 já estava evidente que as maiores cidades brasileiras representam uma polaridade patética entre a concentração de grupos e de formas de consumo de alta renda e a concentração da favelização mais violenta do país. Tornou-se, também, evidente que as políticas urbanas se concentraram quase exclusivamente nas grandes cidades, distanciando-se da realidade urbana do país, em que há uma pluralidade de situações e de tendências de cidades de médio e de pequeno porte. Esse viés da política urbana nacional instalou-se desde o início do período autoritário, em 1967, com a experiência do SERFHAU e dos planos para as regiões metropolitanas, que ignoraram as demais cidades. Mas permaneceu, sustentado pela incapacidade da quase totalidade das cidades para realizarem um planejamento urbano significativo e pertinente. A experiência acumulada nas décadas de 1970 até 2000 mostra que o processo de urbanização no país em seu conjunto veio a incluir uma diversidade de tendências que não podem ser atribuídas ao tamanho das cidades senão a sua especialização. Contrariando a análise convencional, verifica-se que não há um único formato de urbanização, senão há vários tipos de urbanização e diversas condições de urbanismo. Definiram-se cidades de porte médio e de pequeno porte, com elevada concentração de capital e especializadas em certos conjuntos de atividade, que dão lugar a perfis bastante definidos de concentração de recursos humanos.22 Paralelamente, há 22
Na Bahia esse desempenho não foi diferente. Cabe ver a análise de Silva & Rocha para o período de 1940 a 2000. As linhas gerais de hierarquização no sistema de cidades encobertam importantes mudanças de composição de atividades, que se refletem no papel regional das cidades. Cidades como Vitória da Conquista, que foi centro de uma zona cafeicultora e como Ilhéus, que foi sede de negócios de cacau, tornaram-se, respectivamente, um centro medico e
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cidades de grande porte que não conseguiram consolidar posições em especialização de seu sistema produtivo e que perdem capacidade de atrair capitais para produzir. Há diversos exemplos de ambas as situações. Cidades como Uberlândia (Mg), Toledo (Pr), Juazeiro (Ba), ganham posição mediante a presença de atividades econômicas dominantes enquanto outras, tais como Recife e Belém, dependem de combinações de atividade com pouca especialização. Há uma inegável relação entre a estruturação da cidade em seu conjunto e sua capacidade de avançar em alguma ou em algumas linhas de especialização. No essencial, trata-se de que há cidades que atraem capitais, fixam capacidade de produção e que atraem e retêm trabalho qualificado; e de que há cidades que não conseguem reter a renda que geram e que perdem trabalhadores qualificados. Esses movimentos estão identificados com diferentes momentos da progressão de renovação de tecnologias e de composição dos capitais integrados na produção, com as atividades por cujo intermédio a acumulação se realiza.23 As cidades podem não ser especializadas em educação e finanças, mas não há cidades especializadas que não estejam bem situadas nesses dois campos. A capacidade de prestar serviços qualificados depende de uma acumulação que compreende indústrias e serviços. Por isso, envolve a qualificação dos trabalhadores em seu conjunto. Serviços médicos e hospitalares dependem de tecnologia industrial tanto como serviços de informática e serviços de transportes. O nível geral da acumulação de capital integra atividades com diversas concentrações de capital, portanto, que dependem de combinações que dependem do desenvolvimento industrial e da capacidade de usar os produtos da indústria. As cidades têm que fazer chegar a indústria aos serviços. Isto significa dizer que a economia urbana é a economia da formação e das transformações do sistema produtivo instalado nas cidades, que é inseparável do sistema produtivo das regiões em que as cidades se encontram. Compreende o aspecto técnico e o aspecto social da organização da produção, isto é, é um problema de relações sociais e de relações técnicas de produção, que se realizam, concomitantemente, nas esferas da produção formal e da informal. Assim, no panorama das cidades brasileiras de médio e de grande porte há problemas fundamentais de fortalecimento do sistema produtivo e de valorização social, que são muito mais complexos e abrangentes que os aspectos mais imediatos de criar postos de trabalho e de alcançar melhores hospitalar e uma cidade voltada para turismo e para novas indústrias. Em ambos casos é fundamental a importância do setor educativo, como aglutinador de trabalho qualificado. 23 Já em 1970 tornara-se clara a necessidade de penetrar na relação entre o progresso técnico e a reestruturação social. Como disse então Lucien Goldmann, “ É provável que os países que ficarão na ponta do progresso técnico serão aqueles nos quais as classes dirigentes aceitarão modificações de estrutura, orientadas para a participação de uma camada maior de assalariados na gestão das empresas, para assegurar um apoio decisivo de um amplo setor de técnicos e trabalhadores especializados “ (Marxismo e ciências humanas, 1970)
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condições aparentes de vida. É chocante, mas necessário reconhecer que a economia paralela da contravenção gera grande quantidade de ocupação, inclusive, grande número de postos de trabalho regulares. Trata-se, melhor, da capacidade de acumular e de criar postos de trabalho na esfera legalizada da economia, que depende do desenvolvimento de novos termos no relacionamento da esfera pública e da privada. Assim, no campo dos estudos urbanos em geral, há um conjunto de problemas da formação das cidades, que ganharam novos matizes nas últimas décadas, ao acentuarem-se as diferenças entre os modos de funcionamento das cidades enquanto integradas no modo de organização da segunda revolução industrial e já quando funcionando com os novos padrões de internacionalidade, posteriores à segunda guerra mundial. Não que realmente haja algumas poucas cidades mundiais e uma infinidade de cidades locais: o que há é que as cidades se internacionalizaram e que há cidades pequenas que operam em circuitos mundializados de relacionamentos, enquanto outras cidades, de médio e de grande porte têm menos vínculos externos. A dificuldade para perceber essa fluidez da urbanização resulta da filiação doutrinária da análise urbana. No Brasil, a análise urbana tem sido prejudicada por um viés mecanicista, que tende a obstruir a historicidade da produção social de cidades e a ignorar os modos de relacionamento entre capital e trabalho que estão no subsolo das formas de urbanismo. Esse vício da análise urbana resulta, em parte no apego à análise de aspectos formais e departamentalizados da questão urbana; e em parte, na subordinação da análise urbana aos objetivos instrumentais do poder público e das empresas. É um desvio dos objetivos necessários de uma economia política urbana que, entretanto, já estavam claramente colocados em trabalhos de autores como Singer (1973), Kowarick (1979) e Quijano (1970). A perda de visão de totalidade é um retrocesso da análise urbana que, em sua maior parte, tornouse uma análise factual e descritiva, que se volta mais para situações e para problemas específicos, que para processos. A submersão da análise social urbana nessa perda de relevância agravou-se com as novas urgências do planejamento urbano – representadas pela lei do Estatuto das Cidades – que evidenciam a contradição entre objetivos gerais e condições operacionais locais. No entanto, esse “novo” planejamento tem que reconhecer as condições do conhecimento hoje disponível sobre as cidades, bem tem que tomar em conta as condições de socialização de conhecimento prevalecentes, dado o desenvolvimento das forças sociais urbanas. Isso significa “ouvir” os participantes das cidades e reconhecer que suas vozes exprimem os coletivos de que eles são parte. Apesar da precariedade da pesquisa urbana direta na maior parte do país, torna-se insustentável continuar repetindo o gestual do planejamento urbano e limitando-se a elaborar documentos de planejamento físico, sem aventurar-se a trabalhar com uma análise social criativa. No Brasil de hoje, a urbanização foi o processo síntese de mudanças de condições de vida que canalizou as relações de interesses antagônicos e que se bifurcou entre uma urbanização realizada segundo os interesses do capital
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que se organiza como capital imobiliário e os interesses de moradores-usuários que se convertem em proprietários e funcionam como uma demanda pulverizada de capital e que ativa o mercado urbano. Para planejar, o Estado terá, necessariamente, que sair de sua atual condição burocrática e usar sua capacidade de comunicação com a sociedade urbana, isto é, reconhecer-se como estrutura de poder historicamente formado e dotado de certa capacidade de agir. Comunicação aí envolve distinguir as linguagens da oficialidade e dos grupos sociais urbanos e desenvolver canais de comunicação entre eles. Não se trata de ampliar nem de reduzir o aparelho de Estado, senão de adequar os aparelhos do Estado e os das empresas às necessidades de mobilidade do capital e do trabalho. 24 A eficiência surge como uma medida da adequação dos aparelhos públicos e privados às necessidades do sistema produtivo, e já não como simples medida microeconômica dos empreendimentos. Impõe-se, portanto, trabalhar nos fundamentos da compreensão de cidade com que se convive. Tornou-se lugar comum que a maior parte da população das grandes cidades brasileiras não aufere renda suficiente para pagar pelos serviços necessários para garantir condições de vida mínimas satisfatórias. Igualmente, nas cidades se concentram grandes fortunas que são inconcebíveis para o cidadão comum. Não há acesso econômico nem de linguagem entre os moradores dos bairros densamente capitalizados e os moradores dos bairros pouco capitalizados. A verdadeira extensão da desigualdade dificilmente é percebida pela quase totalidade dos moradores de uma cidade, porque poucos deles se movem na cidade em seu conjunto, ou dispõem de informações que permitem visualizar a totalidade da cidade. O poder público teria que desempenhar esse papel de refletir a visão de totalidade para o tratamento de problemas específicos. Como ambientes de vida para grandes coletivos, as cidades brasileiras tornaram-se combinações de espaços fortemente diferenciados, onde aumentam os sinais de exclusão e onde a mobilidade da maioria das pessoas se limita a uma pequena parte da cidade. A formação de áreas exclusivas, definidas por formas de consumo de alta renda e por amuralhamento de diversas formas, corresponde à formação de bairros de baixa renda também restritos, controlados por grupos locais de poder, submetidos ao poder da criminalidade. 25 A corrupção torna-se um problema profundamente arraigado, 24
As críticas da burocratização são dirigidas quase sempre aos aparelhos do Estado. No entanto há problemas de concentração de poder, ineficiência e burocratização das empresas, que se reproduzem como parte de privilégios de monopólio, que permitem manter modos contraditórios de comando e como parte da gestão política das empresas. Não se pode esquecer que a maior parte das empresas brasileiras, inclusive das empresas multinacionais, é de empresas familiares. Não há condições de tratar adequadamente este no espaço deste ensaio, mas ele deve ser indicado, como parte de uma correção de curso de uma tendência hoje prevalecente, de reduzir os problemas de acumulação a problemas de gestão e de reduzir problemas históricos de formação das empresas a situações sistêmicas atuais. 25 Comentário de um anônimo na Bahia: Preto na Bahia batuca e dança e em São Paulo vira segurança e manobrista.
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que decorre de um individualismo perverso, proveniente da desidentificação dos grupos médios de renda com a reprodução do poder político e do econômico. O avanço da urbanização no Brasil, desde a década de 1970, intermediou uma concentração da renda e da capacidade de obter rendas regulares, que precipitou grande parte da população a condições de vida precárias e instáveis. 26 Os requisitos de qualificação dos postos de trabalho são cada vez maiores, em contraste com a fragilização do ensino público e com os custos elevados da educação privada. Maior número de pessoas é atingido pelo desemprego tecnológico, ao tempo em que os jovens com educação formal enfrentam dificuldades crescentes para ingressar no mercado de trabalho. As transformações do mundo do trabalho são muito mais amplas e complexas que a simples destruição de postos de trabalho regulares. A desqualificação do trabalho se concentra nas cidades, onde há contingentes cada vez mais numerosos de pessoas que estão excluídas de perspectivas de melhoria de vida. Ao mesmo tempo, não há dúvida que as cidades são os espaços onde se realiza uma valorização específica dos capitais, que aproveita a concentração demográfica para obter uma renda territorial superior às que poderia obter em espaços não urbanos. As cidades tornam-se os lugares onde se estabelecem novas formas de diferenciação social, impostas pela desigualdade de acesso a renda e a serviços. Os próprios serviços tornam-se mecanismos de desigualdade. Serviços de transportes de má qualidade indiretamente estimulam o uso de veículos particulares por parte dos grupos médios de renda, reduzindo o componente dos usuários que podem pagar. Serviços insuficientes de água e de esgotamento sanitário sustentam-se por usuários que representam uma pequena parte dos que podem pagar. A energia elétrica chega a maior número de pequenos usuários, mas a maior parte dos usos clandestinos de energia é praticado por empresas e por grupos médios e superiores de renda. No entanto, as cidades constituem um mercado estável, na medida em que seu funcionamento determina um grande número de empregos, portanto, de capacidade de compra. Os empregos urbanos vão desde garis a engenheiros de tráfego e desde ajudantes de enfermagem a médicos. Os diversos funcionários dos serviços sociais de utilidade pública e os que atendem a serviços às famílias constituem um núcleo do mercado, que torna as cidades especialmente atrativas para a modernização do comércio, apesar da desigualdade de renda. O principal dado da urbanização na década de 1990 no Brasil é, justamente, a modernização do comércio, que se estende do grande ao pequeno comércio, com elevada mobilidade social entre os comerciantes.
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Torna-se agora necessário reconduzir o debate sobre emprego e desemprego no Brasil a sua real condição histórica na formação social brasileira, como resultante da combinação das transformações que tiveram lugar nos grandes setores da produção (Helga Hoffmann, 1980). O desemprego urbano é próprio do ambiente do que denominamos de urbanização negativa, isto é, contraditória com a reprodução das forças produtivas (Pedrão, 2002) e que Helga Hoffmann aborda desde outro ângulo como urbanização sociopática.
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A modernização surge como resultado de interesses internacionais, tal como a modernização dos bancos, e como resultado de interesses locais, tal como a informatização do sistema tributário. Mas, em seu conjunto, é um movimento que torna os serviços urbanos discriminativos dos que não têm acesso a educação. O manejo de caixas eletrônicos dos bancos é um claro exemplo desse movimento. Ampliam-se as estruturas de serviços para os grupos de maior renda; e a ocupação dos grupos de menor renda torna-se, cada vez mais, dependente da demanda dos grupos de maior renda. A fragilização da classe média determina o agravamento do desemprego dos grupos de baixa renda. A esfera social dos excluídos dos empregos regulares ultrapassou as formas isoladas de informalidade e deu lugar à formação de uma esfera econômica complexa, constituída de uma variedade de formas de vida, que mostra novos desvãos dos conflitos urbanos. Temos uma urbanização que gera informalidade e uma informalidade que é essencialmente urbana. Como a informalidade aparece como uma contradição da cidade, precisamos começar por perguntar que é a cidade e em que se converte a cidade, quando seus componentes materiais e ideológicos são modificados . A questão da espacialidade surge no plano interno das cidades e no plano regional, onde se trata de influências entre cidades, que está na raiz do aparecimento de regiões. A compreensão critica da cidade não se completa na compreensão de seus aspectos materiais, já que as formas urbanas são representações de interesses, cuja permanência compreende a consolidação de algumas formas, junto com mudanças que alcançam conteúdos e formas. As cidades são lugares de convergência de visões de mundo, isto é, são totalizações históricas. A consciência englobante de Jaspers acontece em cidades. 27 Nessa perspectiva, as experiências urbanas constituem uma camada no tempo e no espaço, em que a experiência formada em cada país interage com a experiência de outros países em cidades com algum tipo de equivalência. O problema de método enfrentado pela análise da urbanização, decorre da necessidade de expor as razões ocultas, as tendências constitutivas e destrutivas da sociedade urbana, integradoras e desintegradoras, que surgem junto com as práticas da produção de cidades. Os ingredientes ideológicos da produção de cidades vão além da mobilização de recursos humanos e chegam aos objetivos implícitos que sustentam essa mobilização de pessoas. Na América Latina o crescimento das grandes cidades – Santiago do Chile, Bogotá e outras - fez-se mediante a destruição de terras agrícolas especiais, portanto, numa manobra que funcionou contra a continuidade do modelo econômico colonial. A urbanização desencadeia processos que se tornam contraditórios com os mecanismos de reprodução das cidades coloniais. Na Bahia, que foi sede de um dos principais circuitos do escravismo, ela teve uma conotação dominante de centro de controle administrativo, militar e principalmente financeiro. Desde o início do período colonial, a urbanização no Brasil desenvolveu mecanismos locais de sustentação, mas dependeu dos impulsos externos. 27
Refere-se ao conceito de consciência englobante posto em circulacao por Karl Jaspers (1956)
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Na linguagem confusa da discussão do desenvolvimento na periferia, periférico significa reflexo, destituído de poder gravitatório próprio. A urbanização no período colonial no Brasil conteve elementos que a diferenciaram da urbanização na Europa. O processo foi conduzido pelo sistema internacional de produção de açúcar, com seus complementos de extrativismo de madeiras e com o tráfico de escravos, que em seu conjunto determinaram funções para as cidades. Salvador foi um centro mundial desse sistema, tanto por sua posição como controle do segmento rural da produção açucareira e fumageira, como por sua posição no comércio internacional do sistema colonial em seu conjunto (LAPA, 1985). A decadência do sistema colonial – provavelmente com maior influência de fatores internos que o que geralmente se admite – modificou os papéis das cidades na região baiana, reduzindo a expressão internacional de Salvador, ao tempo em que transferindo o centro de decisões econômicas para o Rio de Janeiro. A internalização de decisões de que nos fala Celso Furtado, referindo-se a época mais moderna, teve um papel decisivo naquele final do sistema colonial, quando os móveis internacionais da urbanização foram substituídos por um aprofundamento das raízes locais do poder político. A urbanização foi um mecanismo que permitiu projetar os modos de vida da metrópole sobre a colônia e deu à colônia a capacidade de se diferenciar da metrópole. O que se veio a reconhecer como cidade tradicional é a expressão urbana da consolidação do sistema colonial. A urbanização mudou seguindo as transformações do modelo econômico do país em seu conjunto, acompanhando a combinação de industrialização e modernização do Estado. Esse movimento tem as duas caras de criação de novos grupos de renda e de ajuste entre as demandas de serviços A capacidade de prestar serviços qualificados depende de uma acumulação que compreende indústrias e serviços. Por isso, envolve a qualificação dos trabalhadores em seu conjunto. Serviços médicos e hospitalares dependem de tecnologia industrial tanto como serviços de informática e serviços de transportes. O nível geral da acumulação de capital integra atividades com diversas concentrações de capital, portanto, que dependem de combinações que dependem do desenvolvimento industrial e da capacidade de usar os produtos da indústria. As cidades têm que fazer chegar a indústria aos serviços. Isto significa dizer que a economia urbana é a da formação e das transformações do sistema produtivo instalado nas cidades, que é inseparável do sistema produtivo das regiões em que as cidades se encontram. Compreende o aspecto técnico e o aspecto social da organização da produção, isto é, é um problema de relações sociais e de relações técnicas de produção, que se realizam, concomitantemente, nas esferas da produção formal e da informal. Assim, no panorama das cidades brasileiras de médio e de grande porte há problemas fundamentais de fortalecimento do sistema produtivo e de valorização social, que são muito mais complexos e abrangentes que os aspectos mais imediatos de criar postos de trabalho e de alcançar melhores
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condições aparentes de vida. Trata-se, melhor, da capacidade de acumular e de criar postos de trabalho, que depende do desenvolvimento de novos termos no relacionamento da esfera pública e da privada. Assim, no campo dos estudos urbanos em geral, há um conjunto de problemas da formação das cidades, que ganharam novos matizes nas últimas décadas, ao acentuarem-se as diferenças entre os modos de funcionamento das cidades enquanto integradas no modo de organização da segunda revolução industrial e já quando funcionando com os novos padrões de internacionalidade, posteriores à segunda guerra mundial. Não que realmente haja algumas poucas cidades mundiais e uma infinidade de cidades locais: o que há é que as cidades se internacionalizaram e que há cidades pequenas que operam em circuitos mundializados de relacionamentos, enquanto outras cidades, de médio e de grande porte têm menos vínculos externos. A dificuldade para perceber essa fluidez da urbanização resulta da filiação doutrinária da análise urbana. No Brasil, a análise urbana tem sido prejudicada por um viés mecanicista, que tende a obstruir a historicidade da produção social de cidades e a ignorar os modos de relacionamento entre capital e trabalho que estão no subsolo das formas de urbanismo. Esse vício da análise urbana resulta, em parte no apego à análise de aspectos formais e departamentalizados da questão urbana; e em parte, na subordinação da análise urbana aos objetivos instrumentais do poder público e das empresas. É um desvio dos objetivos necessários de uma economia política urbana que, entretanto, já estavam claramente colocados em trabalhos de autores como Singer (1973), Kowarick (1979) e Quijano (1970). A perda de visão de totalidade é um retrocesso da análise urbana que, em sua maior parte, tornouse uma análise factual e descritiva, que se volta mais para situações e para problemas específicos, que para processos. A submersão da análise social urbana nessa perda de relevância agravou-se com as novas urgências do planejamento urbano – representadas pela lei do Estatuto das Cidades – que evidenciam a contradição entre objetivos gerais e condições operacionais locais. No entanto, esse “novo” planejamento tem que reconhecer as condições do conhecimento hoje disponível sobre as cidades, bem tem que tomar em conta as condições de socialização de conhecimento prevalecentes, dado o desenvolvimento das forças sociais urbanas. Isso significa “ouvir” os participantes das cidades e reconhecer que suas vozes exprimem os coletivos de que eles são parte. Apesar da precariedade da pesquisa urbana direta na maior parte do país, torna-se insustentável continuar repetindo o gestual do planejamento urbano e limitando-se a elaborar documentos de planejamento físico, sem aventurar-se a trabalhar com uma análise social criativa. Para planejar, o Estado terá, necessariamente, que sair de sua atual condição burocrática e usar sua capacidade de comunicação com a sociedade urbana, isto é, reconhecer-se como estrutura de poder historicamente formado e dotado de certa capacidade de agir. Comunicação aí envolve distinguir as linguagens da oficialidade e dos grupos sociais urbanos e desenvolver canais de comunicação entre eles. Não se trata de ampliar nem de reduzir o aparelho
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de Estado, senão de adequar os aparelhos do Estado e os das empresas às necessidades de mobilidade do capital e do trabalho. 28 A eficiência surge como uma medida da adequação dos aparelhos públicos e privados às necessidades do sistema produtivo, e já não como simples medida microeconômica dos empreendimentos. Impõe-se, portanto, trabalhar nos fundamentos da compreensão de cidade com que se convive. Tornou-se lugar comum que a maior parte da população das grandes cidades brasileiras não aufere renda suficiente para pagar pelos serviços necessários para garantir condições de vida mínimas satisfatórias. Igualmente, nas cidades se concentram grandes fortunas que são inconcebíveis para o cidadão comum. Não há acesso econômico nem de linguagem entre os moradores dos bairros densamente capitalizados e os moradores dos bairros pouco capitalizados. A verdadeira extensão da desigualdade dificilmente é percebida pela quase totalidade dos moradores de uma cidade, porque poucos deles se movem na cidade em seu conjunto, ou dispõem de informações que permitem visualizar a totalidade da cidade. O poder público teria que desempenhar esse papel de refletir a visão de totalidade para o tratamento de problemas específicos. Como ambientes de vida para grandes coletivos, as cidades brasileiras tornaram-se combinações de espaços fortemente diferenciados, onde aumentam os sinais de exclusão e onde a mobilidade da maioria das pessoas se limita a uma pequena parte da cidade. A formação de áreas exclusivas, definidas por formas de consumo de alta renda e por amuralhamento de diversas formas, corresponde à formação de bairros de baixa renda também restritos, controlados por grupos locais de poder, submetidos ao poder da criminalidade. 29 A corrupção torna-se um problema profundamente arraigado, que decorre de um individualismo perverso, proveniente da desidentificação dos grupos médios de renda com a reprodução do poder político e do econômico. O avanço da urbanização no Brasil, desde a década de 1970, intermediou uma concentração da renda e da capacidade de obter rendas regulares, que precipitou grande parte da população a condições de vida precárias e instáveis. 30 Os requisitos de qualificação dos postos de trabalho 28
As críticas da burocratização são dirigidas quase sempre aos aparelhos do Estado. No entanto há problemas de concentração de poder, ineficiência e burocratização das empresas, que se reproduzem como parte de privilégios de monopólio, que permitem manter modos contraditórios de comando e como parte da gestão política das empresas. Não se pode esquecer que a maior parte das empresas brasileiras, inclusive das empresas multinacionais, é de empresas familiares. Não há condições de tratar adequadamente este no espaço deste ensaio, mas ele deve ser indicado, como parte de uma correção de curso de uma tendência hoje prevalecente, de reduzir os problemas de acumulação a problemas de gestão e de reduzir problemas históricos de formação das empresas a situações sistêmicas atuais. 29 Comentário de um anônimo na Bahia: Preto na Bahia batuca e dança e em São Paulo vira segurança e manobrista. 30 Torna-se agora necessário reconduzir o debate sobre emprego e desemprego no Brasil a sua real condição histórica na formação social brasileira, como resultante da combinação das
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são cada vez maiores, em contraste com a fragilização do ensino público e com os custos elevados da educação privada. Maior número de pessoas é atingido pelo desemprego tecnológico, ao tempo em que os jovens com educação formal enfrentam dificuldades crescentes para ingressar no mercado de trabalho. As transformações do mundo do trabalho são muito mais amplas e complexas que a simples destruição de postos de trabalho regulares. A desqualificação do trabalho se concentra nas cidades, onde há contingentes cada vez mais numerosos de pessoas que estão excluídas de perspectivas de melhoria de vida. Ao mesmo tempo, não há dúvida que as cidades são os espaços onde se realiza uma valorização dos capitais, que aproveita a concentração demográfica para obter uma renda territorial superior às que poderia obter em espaços não urbanos. As cidades tornam-se os lugares onde se estabelecem novas formas de diferenciação social, impostas pela desigualdade de acesso a renda e a serviços. Os próprios serviços tornam-se mecanismos de desigualdade. Serviços de transportes de má qualidade indiretamente estimulam o uso de veículos particulares por parte dos grupos médios de renda, reduzindo o componente dos usuários que podem pagar. Serviços insuficientes de água e de esgotamento sanitário sustentam-se por usuários que representam uma pequena parte dos que podem pagar. A energia elétrica chega a maior número de pequenos usuários, mas a maior parte dos usos clandestinos de energia é praticado por empresas e por grupos médios e superiores de renda. No entanto, as cidades constituem um mercado estável, na medida em que seu funcionamento determina um grande número de empregos, portanto, de capacidade de compra. Os empregos urbanos vão desde garis a engenheiros de tráfego e desde ajudantes de enfermagem a médicos. Os diversos funcionários dos serviços sociais de utilidade pública e os que atendem a serviços às famílias constituem um núcleo do mercado, que torna as cidades especialmente atrativas para a modernização do comércio, apesar da desigualdade de renda. O principal dado da urbanização na década de 1990 no Brasil é, justamente, a modernização do comércio, que se estende do grande ao pequeno comércio, com elevada mobilidade social entre os comerciantes. A modernização surge como resultado de interesses internacionais, tal como a modernização dos bancos, e como resultado de interesses locais, tal como a informatização do sistema tributário. Mas, em seu conjunto, é um movimento que torna os serviços urbanos discriminativos dos que não têm acesso a educação. O manejo de caixas eletrônicos dos bancos é um claro exemplo desse movimento. Ampliam-se as estruturas de serviços para os grupos de maior renda; e a ocupação dos grupos de menor renda torna-se, cada vez mais, dependente da demanda dos grupos de maior renda. A
transformações que tiveram lugar nos grandes setores da produção (Helga Hoffmann, 1980). O desemprego urbano é próprio do ambiente do que denominamos de urbanização negativa, isto é, contraditória com a reprodução das forças produtivas (Pedrão, 2002) e que Helga Hoffmann aborda desde outro ângulo como urbanização sociopática.
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fragilização da classe média determina o agravamento do desemprego dos grupos de baixa renda. A esfera social dos excluídos dos empregos regulares ultrapassou as formas isoladas de informalidade e deu lugar à formação de uma esfera econômica complexa, constituída de uma variedade de formas de vida, que combinam participação no mercado formal e no informal, assim como criam uma cultura de sobrevivência que constitui uma resposta ao controle do Estado por parte dos grupos de maiores rendas. Proliferam mecanismos de reação frente à instabilidade do emprego e à carga tributária, que vão desde a construção civil informal à prestação informal de serviços e ao uso de mecanismos informais por parte do comércio e da indústria formais. Repete-se uma disputa de poder entre a mentalidade tributarista herdada do sistema colonial e a velha tradição do contrabando e da evasão. Enquanto o Estado, conduzido pela esfera federal sente-se livre para taxar, a sociedade civil desenvolve mecanismos de defesa, cujo significado final é indicar a perda de representatividade de um Estado que se vê como mais preocupado com seu próprio equilíbrio financeiro que com as urgências sociais.31 Esse distanciamento é agravado pela percepção de que se fortalece uma nova tecnoburocracia nos principais partidos políticos, cada vez mais uniformizada por uma linguagem tecnicista e por levar a cabo políticas que consolidam os interesses de grande capital frente aos dos pequenos capitais; e que beneficiam as regiões mais ricas em contraste com as regiões mais pobres. Por todas estas razões, a economia urbana está muito longe de ser uma disciplina consensual. Há aspectos permanentes e aspectos temporários a serem considerados num ambiente de cidades que mudam, segundo mudam as principais técnicas, que têm maiores efeitos indiretos na composição do capital em seu conjunto. Mas a economia urbana é inevitavelmente dinâmica e trata com formas de valorização que se sucedem no tempo e que dificilmente se repetem. O adensamento do capital incorporado no sistema viário das cidades ultrapassa os usos imediatos da superfície dessas vias; e passa a refletir o adensamento de capital no subsolo e no conjunto dos usos de solo e subsolo. As grandes cidades drenam água de regiões cada vez maiores e gastam mais, para obterem água purificada e para dispor de seus resíduos. O manejo de resíduos, líquidos e sólidos, envolve soluções regionais. A gestão das grandes cidades é um problema regional. A crise da década de 1960, que foi identificada em vários países como uma crise de 1968, criou um fosso entre a velha visão mecanicista, que pensava em termos de tamanho ótimo de cidades, de custos de urbanização e de vantagens de aglomeração; e as novas necessidades da análise econômica das cidades, que precisa registrar problemas reais e precisa
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Alguns anos atrás tratei desse tema num ensaio intitulado Finanças públicas e crescimento tolerado (1988), que infelizmente permanece atual.
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encontrar modos de análise compatíveis com essa realidade. 32 Essa análise urbana precisa reconhecer que há conflitos de interesse que se manifestam em torno do controle da valorização do solo e do acesso a serviços; e que as composições de interesse geralmente resultam em fortalecimento dos grupos que controlam a valorização do solo. Noutras palavras, há uma linha de tensão entre os que querem usar as cidades como meio de acumular capital e aqueles que precisam usá-las como fontes de consumo, tanto de moradia como de acesso a serviços. Num segundo momento, há um conflito entre aqueles que privatizam a cidade como meio de consumo e aqueles que participam da cidade como meio de produção. Os conflitos de interesse obrigam a situar a análise urbana em termos de relações de classe e considerando as condições etnoculturais da formação social brasileira. Não só há negros e não negros, inclusive brancos, como há inúmeros movimentos de mudança de posição entre os diversos matizes de cor que constituem o espectro de etnocultural. A experiência das cidades brasileiras desde a década de 1970 é de um alargamento da distância entre os que dispõem de renda suficiente para igualar e superar os níveis de renda de sua geração anterior e os que são submetidos a mecanismos de instabilidade e de empobrecimento, que se reproduzem na esfera da sobrevivência. Basicamente, para a maior parte dos grupos de rendas médias, predomina a sensação de um encurtamento de sua capacidade de compra e de perda de capacidade para garantir a renda futura de seus filhos. O estreitamento de horizontes torna-se um dado contraditório com as cifras de aumento da expectativa de vida e com o aumento da renda per capita. Assim, há peculiaridades que devem ser consideradas, para estabelecer em que consistem os problemas urbanos do Brasil de hoje. No último quarto do século XX a maior parte das grandes cidades capitais realizou importantes investimentos em transporte de massa, 33 assim como empreendeu grandes investimentos em saneamento público, quase sempre mobilizando mais recursos que sua capacidade direta de endividamento. Em todas essas 32
Essa necessidade de trabalhar a partir do registro da realidade em vez de pensar a partir de tipos ideais e de formas ideais foi registrada, de diversos modos, por autores que se notabilizaram naquele período, tais como Manuel Castells (Crise urbana e mudança social), Henri Lefebvre (A cidade do capital), David Harvey ( Urbanismo e desigualdade social) Jean Lojkine (O Estado capitalista e a questão urbana), que substituíram a anterior visão mecanicista da urbanização por uma visão histórica, com variada fundamentação na análise marxista, mas que no conjunto passou a ver a cidade como o foco da tendência do capitalismo à crise. A disposição de desenvolver um pensamento sensível ao dinamismo da desigualdade tornou obsoletas as análises locais e territoriais que se apresentam com linguagens infensas à análise do capitalismo como modo social. A visão pós moderna da urbanização envolve uma compreensão realista dos limites do poder dos grupos dominantes para impor uma urbanização unitária, bem como as limitações das abordagens disciplinares tradicionais para explicarem as cidades. A desdogmatização da ciência e a retomada do sentido comum, como diz Boaventura Santos (1989) tornam-se elementos essenciais da construção de um saber científico socialmente convalidado. 33 Há exceções notórias. O principal símbolo do transporte de massa é o metrô que, entretanto, não se instalou em Salvador, que vem a ser a terceira cidade do país. Cresce a incerteza sobre a capacidade de garantir que esse tipo de transporte se instale em todas as cidades onde ele é reconhecido como necessário.
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cidades, verificaram-se defasagens entre os programas de habitação empreendidos na década de 70 e os resultados econômicos e sociais alcançados nas décadas seguintes. 34 Em todas essas cidades, o aumento da informalidade determinou um notável incremento das habitações consideradas subnormais e correu em paralelo com um aumento dramático da violência. Violência, drogas e contravenção em suas diversas formas tornaram-se as principais referências da urbanização na década de 1990.35 Mas a luta por espaço urbanizado nas grandes cidades levou a aceitar como inevitáveis certos padrões de confinamento que antes descreviam apenas as moradias subnormais. Sem dúvida, o projeto social de urbanização formado na segunda metade da década de 1950, isto é, que combinou a herança funcionalista – da escola urbana de Chicago e de Parsons – com a incorporação dos componentes culturais do processo, bem representada em autores como Perloff, Wingo e Friedmann, enfrentava crescentes dificuldades para compatibilizar sua proposta de racionalidade planejadora com a dura realidade das cidades divididas, guiadas por processos de segmentação, mostrada por autores como Milton Santos, Louis Lefebvre e outros. A ligação entre o sentido crítico e a criatividade desses autores girou em torno de algumas bifurcações fundamentais no eixo teoria – método, em que eles refletiram a contradição entre as tentativas dos primeiros, de progredir sobre as bases idealistas do Círculo de Viena e da fenomenologia; e as tentativas dos segundos, de ultrapassar o mecanicismo sem sair de seus limites. A recondução da análise da tecnologia aos seus termos históricos, em sua relação com o mundo do trabalho, distingue as contribuições Castells, Harvey, e de Jean Paul de Gaudemar, que mostram a urbanização como uma exteriorização de processos do capital, que avançam, simultaneamente nas cidades e no campo. A visão cartesiana da cidade sucumbia perante a avalanche de problemas que se precipitou através de crises que se alastraram desde Washington D.C. a México D.F., justamente em 1968. Desde a década de 1960 os sistemas de poder político e financeiro passaram a dar aos problemas urbanos uma importância que jamais tinham dado. O mecanicismo das
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Como é notório, a questão habitacional no país está praticamente sem solução, em parte porque os programas de financiamento de moradia popular se esgotaram, e em parte porque as habitações populares, mesmo as de pior qualidade passaram a ficar localizadas em lugares inacessíveis para as opções de trabalho. Paralelamente, houve um notável deterioramento dos padrões habitacionais, onde há órgãos públicos responsáveis de políticas nessa área que tomam como referência habitações de menos de 40m2 para famílias de quatro pessoas. 35 Certamente, há um problema extremamente complexo relativo a violência, que até hoje não foi tratado de modo integral, constatando-se fragmentação e perda de eficácia das políticas, desde a falta de integração entre o poder judiciário e as polícias, até a falta de eficiência no controle direto da criminalidade, com inúmeras evidências de corrupção e de infiltração de interesses da criminalidade no aparelho de Estado. Algumas formas de controle, como o controle de armas, resultam ingênuas, simplesmente porque não alcançam os infratores. Há um fundamento de relações de classe na marginalização e na repressão, que se tornam aparelhos de repressão que só atingem os grupos de baixa renda e os negros, enquanto há elevados índices de impunidade da criminalidade praticada por grupos médios e superiores de renda.
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políticas revelou-se inoperante, também, diante da brecha habitacional que se acumulou nas cidades periféricas de grande e de médio porte desde então, num conjunto de problemas que envolvem a perda de capacidade das classes médias para garantirem-se moradia e a favelização da moradia dos trabalhadores. Finalmente, a crise da década de 60 mostrou a fragilidade econômica das classes médias, que em sua maioria foram proletarizadas e perderam sua capacidade de sustentar a estrutura política de poder. O que se pode denominar de crise das classes médias apareceu como efeito indireto da destruição de postos regulares de trabalho e deu lugar a novas formas de populismo, com um novo papel de eleitores dos moradores desempregados das periferias urbanas. As classes médias perderam seu lugar privilegiado, temporariamente conquistado, nas relações de poder com o grande capital. Tornam-se um elemento de negociação entre o bloco de poder e as maiorias, e, ao mesmo tempo, um segmento que deve encontrar novos modos de preservar sua renda. Este, aliás, pode ser um argumento de peso, para explicar a disposição para emigrar das classes médias dos países latinoamericanos. Na prática, acontece que não se pode pensar as cidades segundo padrões cartesianos, quando se trata de cidades que crescem aprofundando desigualdades e enfrentando monopólios de terras que se traduzem numa produção de escassez de espaço. O planejamento urbano brasileiro permaneceu caudatário do mecanicismo, porque ele é um instrumento aparentemente simples e não conflitivo de realizar um tipo de planejamento que se limita a legitimar tendências e a eliminar arestas nos conflitos sociais urbanos. A redução do planejamento a atividade meramente técnica, isto é, que não tem estatuto político, significou que ele deixou de poder registrar os conflitos de interesse que acontecem nas cidades. Daí, o papel central da escassez de espaço na formação do capital imobiliário. Por isso, e porque a formação do capital imobiliário se faz, exatamente, sobre o controle dessa escassez, encontra-se a necessidade de reconhecer que a urbanização se realiza em ambientes de acumulação monopolista. O monopólio se faz pelo velho mecanismo de compra de terras para estocagem e pela compra seletiva de lotes em pontos estratégicos que passam por uma valorização superior à da média dos terrenos. Assim, há uma nova situação de custos da urbanização, que se coloca em termos de custos sociais de uma urbanização negativa que atinge a maior parte da população do país. Não se trata de custos para o erário público nem de custos para as empresas. Pelo contrário, revela-se que os custos sociais surgem do modo como as empresas e o Estado privatizam as cidades, criando vantagens monopolísticas na formação do capital imobiliário e para a exploração de serviços urbanos de utilidade pública. Esta complexidade da vida urbana no Brasil exige um estilo de análise econômica diferente daquela que nos vem sendo oferecida pela economia ortodoxa. Em vez de tentar aplicar, ou mesmo de adaptar, modos de análise generalizada, organizada nos países mais ricos, trata-se de rever os
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fundamentos da generalização introduzindo elementos representativos da pluralidade de experiências das sociedades periféricas. É preciso ter em conta que a urbanização nos países periféricos ex colônias como o Brasil, sempre se fez em dois contextos diferentes: no de cidades determinadas por atividades internacionalizadas e pela presença do Estado; e em cidades formadas por atividades e interesses locais. A participação na economia internacional no período colonial e sua posterior atualização, foram determinantes da formação de cidades qualitativamente diferenciadas, naquilo em que puderam reunir competências técnicas e condições de representação cultural que as outras não tiveram, e no que contiveram uma estruturação de classes que não pode ser explicada apenas em termos de conflitos locais de interesse. A urbanização se faz com um aspecto de internacionalidade das cidades que não surge como antes, de uma hierarquização, senão de estratégias de renda, de empresas e de pessoas, que buscam alternativas de mercado e de emprego mediante relacionamentos internacionais. As novas regiões agrícolas produzem cidades que funcionam mediante redes internacionais de negócios. As relações locais de classe estão condicionadas por essa internacionalidade que logicamente atinge a estrutura do emprego e a mobilidade dos trabalhadores. Com estas referências, a economia urbana compreende os aspectos internos e os externos da reprodução do capital e da força de trabalho , que envolvem os usos de capital e de trabalho na esfera doméstica e na esfera de mercado, com os movimentos de entrada e de saída de trabalhadores do mercado e com suas estratégias de sobrevivência mediante inclusão de trabalho na esfera doméstica. O desemprego é um dado necessário do sistema capitalista, que, finalmente, é conduzido pelo movimento de capitais privados, que empregam o menos que podem e que trabalham para reduzir o emprego necessário para produzir. A esfera doméstica funciona como viabilizadora da força de trabalho que recebe rendimentos insuficientes para se manter, ou que permanece desempregada, convertendo tempo ocioso em bens e serviços que entram no mercado como atividades informais. Assim, aproveitar as oportunidades disponíveis para obter renda na esfera da informalidade é a parte do jogo de poder que está ao alcance de todos aqueles que só podem participar do mercado mediante a venda de trabalho. Isso implica em reconhecer que há diversos conjuntos de capacidade instalada para prestação de serviços para os diferentes grupos sociais nas cidades, que incluem equipamentos especializados e trabalho especializado, que também representam condições diferenciadas de acesso a serviços em quantidade e qualidade e em tempo oportuno. São notórias as dificuldades que sofrem os grupos de baixa renda nas cidades brasileiras, para acesso a serviços públicos de saúde, a transportes etc., além das dificuldades de acesso a serviços privados tais como os de bancos. Os grupos de baixa renda são pior
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atendidos em serviços de menor qualidade, expostos a humilhação em filas intermináveis. Assim, numa leitura histórica do problema, a economia urbana é a economia da esfera urbanizada do sistema produtivo, que hoje se desenvolve sob a pressão de uma crescente concentração do capital. Entretanto, essa análise da economia urbana não pode passar por alto os limites territoriais das cidades, que envolvem limites significativos do que se reconhece como o espaço das cidades e o espaço de suas áreas de influência. A análise da economia urbana no Brasil de hoje enfrenta essa tensão constante entre os movimentos da acumulação e os da sobrevivência, percebendo que ambos se valem de combinações das esferas de trabalho formal e informal e que ambos tratam com a formação do capital imobiliário e do trabalho qualificado. O capital flui para as maiores cidades e, nelas, concentra-se nas regiões urbanas dos grupos de rendas mais elevadas. As cidades padecem do atraso de investimentos nos sistemas de serviços de utilidade pública que atendem às maiorias, enquanto surgem grandes conjuntos de serviços para coletivos privados selecionados. Não só os ricos moram em bairros amuralhados, como criam áreas exclusivas de consumo e desenvolvem mecanismos de segregação urbana. Estão aí os grandes guetos da pobreza, que se tornam território do poder paralelo da contravenção. A discriminação social torna-se uma ruptura da estruturação física das cidades e define as distâncias entre classes e entre subgrupos dentro de cada classe. As contradições da urbanização envolvem o cotidiano das pessoas, que lutam pela preservação de sua renda e de suas condições de vida, procurando superar as tendências negativas da urbanização. A economia política urbana crítica terá que trabalhar com estas referências. Deve estruturar-se a partir do reconhecimento das contradições e desenvolvendo uma teoria social do conflito urbano e já não negando o caráter contraditório das cidades em planos urbanos superficialmente harmoniosos.
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V. O abismo que se abre Como síntese do que foi exposto, trata-se de examinar o sentido de finalidade da urbanização periférica. Ela representa a energia do processo urbano e o resultado da decomposição do sistema da produção rural esua substituição por novas formas de capital. Tanto como ela é irreversível, a urbanização mostra cenários de desigualdade e conflito que se agravam e configuram um abismo que compromete a capacidade do Estado de funcionar como fator de equilíbrio entre interesses diferentes e contrários. O desgaste da posição do Estado aqui é parte de um processo crítico que se distingue do tipo de crise que tem chegado para as grandes cidades dos países mais ricos, já que a capacidade do Estado para realizar políticas urbanas socialmente abrangentes e em longo prazo jamais foi suficiente para superar as tensões causadas pela desigualdade social. No ambiente da modernização, basicamente na segunda metade do século XX, a defasagem entre a ação do Estado e as pressões da urbanização projetou uma imagem de fragilização do poder localizado do Estado, que só em parte corresponde à realidade, e que deve ser avaliada em função dos objetivos dos sistemas de poder que prevalecem em cada cidade. A fragilidade local do Estado aparece primeiro pela insuficiência de recursos financeiros para atender necessidades reconhecidas. Mas essa é apenas a superfície de um problema cujo centro está na separação entre os objetivos de política urbana dos grandes interesses, que representam a capacidade de controlar a mídia e influir nas despesas públicas e as estratégias de resistência dos grupos de baixa renda. A urbanização realizada pelos pobres, que aumenta o número de moradias sem serviços básicos, torna-se um processo contrário ao da urbanização. Como a valorização dos terrenos é conduzida pela capacidade de usá-los, há uma concentração do capital imobiliário em tornos dos grandes empreendimentos que funcionam como peças de um jogo de regulação do mercado imobiliário, influindo na progressão das despesas públicas com as cidades. Junto com o reconhecimento de que a análise urbana tem que partir de uma compreensão da crise do padrão de acumulação mundializado de capital que se configurou durante a década de 1960 e que tomou as formas de uma crise energética e de revoluções nos transportes e nas comunicações e desaguou na precarização do trabalho, infere-se que há um esgotamento da análise mecanicista que vê as cidades numa perspectiva positiva do funcionamento de cada cidade de modo isolado. A progressão de processos que combinam mudanças nas relações entre grupos participantes das cidades com mudanças em seus modos de usos de recursos tornou necessário ver as cidades como entidades participantes do movimento de globalização diferenciada. O mundo da urbanização na periferia da acumulação capitalista representa hoje uma experiência cujo significado mundial aumenta na proporção em que seus problemas se tornam mundiais, isto é, que não se contêm nas fronteiras das nações periféricas e se tornam parte do sistema de vasos comunicantes que abrange a todas as nações .
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Mas essa urbanização está marcada pelo signo da irreversibilidade, que se manifesta de diversos modos, no plano físico e no da organização social. A irreversibilidade se percebe, segundo a expansão de cada cidade envolve a incorporação de equipamentos que não podem ser trocados e que tampouco podem ser desativados, tal como acontece com os trens subterrâneos, com os sistemas de água potável e com muitos dos grandes edifícios. Por trás desses aspectos materiais a irreversibilidade aparece nos modos de organização da vida urbana, que absorve novas diferenciações nas posições dos grupos urbanos e ganha em complexidade, mas não regride a formas mais simples. A irreversibilidade pode não ser linear e conter descontinuidades, por exemplo, quando desaparecem indústrias, ou quando uma cidade perde funções, tal como aconteceu com o Rio de Janeiro quando deixou de ser a capital nacional, mas a complexidade não desaparece e a cidade prossegue em sua trajetória de identidade cultural e de modos de relações de classe. Reconhecer que a urbanização significa mudanças qualitativas de modos de vida leva a examinar quais sejam essas mudanças nas grandes cidades periféricas, bem como a rever as inter-relações entre cidades de grande, médio e pequeno porte. Nelas, e especialmente depois das grandes mudanças da década de 196, encontra-se que a urbanização é um processo que incorpora e descarta equipamentos e pessoas, que se torna mais concentradora de consumo e que supera formas de consumo, tal como aconteceu com os clubes sociais surgidos no início do século XX e que ficaram abandonados em sua quase totalidade. A raiz da questão está em que os processos das cidades abrem oportunidades para novos participantes e para novos papéis dos atuais participantes. O sistema político é o principal barômetro dessa tendência, onde a urbanização tem estado associada a movimentos alternados de estruturação e desestruturação de relações de poder que polarizam as alterações ideológicas da esfera nacional. Não é por acaso que os principais movimentos populistas surgiram no controle da exclusão social das grandes cidades e que o aparecimento de formas alternativas de poder aparece como continuidade de lutas por sobrevivência que escapam dos padrões de controle social projetados nas primeiras etapas da revolução burguesa (Fernandes, 2005). A questão fundamental que se manifesta na urbanização periférica é a contradição entre a atualização do sistema de poder e os custos econômicos do fundamento político do sistema socioprodutivo, onde há custos legalmente assumidos – mesmo quando sejam instrumentos de injustiças – e outros custos não legais, que aparecem como corrupção, crime e ligação entre corrupção e crime. No final, concretamente pelo maior peso de fatores dispersivos e pela maior dificuldade de ver o funcionamento da urbanização frente a reprodução do capital em seu sentido mais amplo, torna-se necessário ver o processo como um conjunto historicamente formado. Há uma contradição entre os movimentos gerais que conduzem a urbanização e seus efeitos fragmentários. A urbanização desencadeou forças sociais que não respondem aos controles políticos que foram desenhados para acompanhar a industrialização. No ambiente social do desemprego, o sistema político perde o controle sobre os não empregados que não têm perspectivas de emprego. A transferência para o exterior de proporções crescentes da capacidade de decidir sobre a economia nacional
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mostrou as novas cores da subordinação e os modos como as grandes cidades da periferia tornam-se partes de sistemas mundializados de poder. A urbanização surge como um meio de formação de identidades e como um mecanismo de destruição de outras. O aspecto físico das cidades torna-se cada vez menos importante e menos original nesse processo, por mais que constitua o principal registro das desigualdades econômicas.
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