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A ECONOMIA POLITICA DO AMBIENTE

Fernando Pedr達o

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a Anya, o amor incondicionado

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No todo não há vazio. De onde poderia vir o que se lhe acrescentasse? Empédocles

Nada deriva do acaso, mas tudo de uma razão e sob a necessidade Leucipo

“Por mais importante que seja,,,, o incontestável imperativo da proteção ambiental se revelou inadministrável, em virtude das correspondentes restrições necessárias aos processos de produção em vigor exigidas para sua implementação. O sistema do capital se tornou impermeável à reforma, até mesmo de seu aspecto obviamente mais destrutivo” István Mészáros

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Sumário

Introdução 1.

A questão do ambiente em perspectiva histórica

2.

A formação do ambiente e a irreversibilidade

3.

Significado atual do ambiente e irreversibilidade

4.

Incerteza, risco e crise em ambientes instáveis

5.

Reprodução com mudanças de composição

6.

Presente e passado no mundo social

7.

Custos crescentes, rendimentos decrescentes

8.

Valorização, desvalorização

9.

A sustentabilidade social e ambiental

10.

Tecnologia e ambiente

11.

Política e políticas ambientais Bibliografia

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Introdução

As políticas de tratamento da questão ambiental, já sejam elas indicativas ou repressivas, preventivas ou corretivas, são manifestações de poder, que por esta razão estão carregadas de ideologia. Respondem a compreensões dos processos de produção e dos de dominação no mundo de hoje, que dependem de uma visão histórica atualizada do contexto mundial, com suas afirmações e contradições, desde o campo da política ao da ciência. Esta sensibilidade ao progresso do conhecimento e ao aperfeiçoamento de uma visão histórica que liga a generalidade dos movimentos de poder na escala mundial com a pluralidade de condições das sociedades nacionais torna-se essencial ao tratamento da questão do ambiente. Define-se uma visão quase religiosa dos processos do ambiente que se colocam como partes efetivas do modo de civilização que se desenhou como alternativa do império teocrático-militar do ocidente. A substituição dos valores dos dois impérios romanos – Roma e Bizâncio – por impérios não ilustrados – Carlos Magno e Barbarossa – deixou a civilização ocidental por conta de Estados nacionais representativos da ascensão dos interesses da burguesia como fundamento ideológico da civilização. A reviravolta religiosa do século XVI marcaria o tom de uma perspectiva de dominação, ou em nome da fé ou do bom senso, dando o rumo à expansão do capitalismo, desde o capital mercantil ao imperialismo do século XIX. Esse movimento reduziu os recursos naturais e os humanos a valores circunstanciais, que se tornaram essencialmente descartáveis. No capitalismo, homens, recursos e máquinas tornam-se descartáveis.A sociedade do capital criou o mundo dos preços, que deram objetividade à combinação do poder estatal de pilhagem com o poder econômico de explorar, tal como aconteceu com o monopólio do sal de Portugal no Brasil e da Inglaterra na Índia. Também, a normalização do chá transformou esse produto em mercadoria distintiva do Império Britânico, assim como o chocolate e a batata se tornaram produtos europeus. O desflorestamento da Europa na Baixa Idade Media precedeu o desmatamento da America em que a destruição da Mata Atlântica no Brasil foi das maiores catástrofes ecológicas dos Tempos Modernos por ter sido a mata mais diversificada do continente.

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Por trás do sistema de preços instala-se essa premissa de que tudo pode ser substituído. A substutibilidade se tornaria um argumento central na análise econômica do capital e peça chave na análise do ambiente. Daí, por um lado surge o pressuposto de escassez relativa, que vai fundamentar a teoria marginalista em economia com o pressupostos de substutibilidade irrestrita que entretanto depende de restrições tecnológicas. A substutibilidade irrestrita só se aplica quando tudo que pode ser descartado pode ser substituído, essencialmente porque há substituições disponíveis. O sistema do capitalismo opera trocando valores de permanência por valores de alienabilidade. Um exemplo clássico: casas familiares de pedra por casas que duram apenas o tempo da hipoteca inicial. Para operar, o sistema precisa controlar trabalho, mas para usar o trabalho controlado precisa usar recursos naturais cujo valor depende de seu preço atual. Desenvolve-se, portanto, uma desvalorização que começa com a dos trabalhadores e prossegue com a dos recursos vivos e dos minerais. O aprofundamento da produção industrial posto em marcha pelas duas guerras mundiais traduziu-se em usos crescentes de trabalho e de recursos, em que o uso do trabalho assalariado facilita a substituição de trabalhadores, enquanto a contratação de produtos agrícolas e mineiros leva a raciocinar em termos de aproveitar apenas terras e minas de baixo custo. Estaria aí, portanto, um mecanismo social de criação de uma tensão ambiental crescente da qual o sistema capitalista não teria como escapar. A enorme destruição causada pela segunda guerra mundial teve um importante papel nesse processo até agora pouco divulgado em aspectos tais como inutilização de terras para cultivo e destruição de equipamentos. Aparentemente não foram avaliados os efeitos dos prejuízos da guerra no desenvolvimento da economia mundial, mas parece haver poucas dúvidas que tiveram um papel importante no subsequente desmantelamento da União Soviética. As perdas dos norte-americanos tampouco foram levantadas mas, por exemplo, teriam perdido uns seiscentos navios na guerra contra o Japão. Neste trabalho, entende-se que a questão do ambiente é um problema social que não pode ser ignorado nem adiado, mas cujo tratamento terá que se apoiar em uma visão atualizada do desenvolvimento da ciência e em uma visão em perspectiva histórica das transformações da economia mundial. Há um pleito pendente relativo a distorções no modo de se apropriar socialmente do conhecimento científico apresentado

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como ideologicamente neutro, que de fato serve a uma apropriação desse conhecimento pelo Estado e pelas grandes empresas, servindo ao grande objetivo ideológico que é a consolidação do bloco de poder. Entende-se que a disputa pelo ambiente está carregada de tensão social e não tem muito sentido querer colocá-la como um campo ideologicamente ambíguo em que não há conflito de classes nem pressões imperialistas. O tema do ambiente tem sido objeto de uma insistente tentativa da grande mídia de apresentar como algo substancialmente consensual em que todos devem contribuir igualmente para um mundo melhor sem prejuízo de pressões de grandes potências nem interesses de empreiteiras, imobiliárias e agronegócios. No contexto do mundo da produção moderna há riscos crescentes e nem sempre visíveis. Esses riscos aumentam com o modo de expansão do capitalismo avançado, que não pode ser evitado, e em torno do qual se focaliza a disputa pelo controle do ambiente. Alguns deles são riscos técnicos, tais como aqueles que surgem da construção de usinas hidrelétricas, de usinas nucleares e de aeroportos, enquanto outros são riscos sociais, como os de epidemias induzidas por experimentos químicos ou de contaminação da sociedade por campanhas publicitárias de baixo nível e por igrejas que exploram a credulidade e o imediatismo de grupos sociais excluídos. No campo social, a noção geral de incerteza dá lugar a uma teoria social da incerteza que deve reconhecer a relação básica entre a estruturação dos sistemas produtivos e as condições conjunturais em que eles operam. A estruturação do sistema permite um determinado leque de possibilidades que se ampliam ou restringem a depender de condições externas que aparecem como reações gerais de mercado mas que respondem a condições especificas de produção. A conjuntura surge da internacionalidade do sistema em que as decisões locais de produção e de consumo são referenciadas por procura por demandantes em quaisquer outros lugares, já seja com sinais intensos ou tênues de demanda. Em economia, portanto, a incerteza está ligada à teoria do capital em seu sentido mais amplo, tal como indicou Adam Smith e não como veio a pretender Keynes, que a traria como parte da teoria do investimento. Na perspectiva smithiana a incerteza corresponde à aplicação da totalidade do capital enquanto para Keynes referese apenas à fração investida. Falta, portanto, fazer a ponte entre a incerteza no campo social e no da Física. Como é notório a moderna teoria da incerteza foi formulada na Física por Werner Heisenberg e encontrou eco em uma teoria do acaso por Jacques

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Monod em Biologia. Distinguiremos incerteza enquanto atributo do sistema e risco como atributo dos empreendimentos. Não se trata de incerteza dos investimentos nem da bolsa de valores, mas de seus efeitos nas sociedades organizadas. A percepção de incerteza e risco é essencial na compreensão do modo como evolui a produção capitalista no centro e nas periferias do sistema mundializado, com efeitos causados pelo aumento da população e pela expansão dos interesses do grande capital. A incerteza está associada ao risco porque a sociedade do capital realiza empreendimentos que reduzem a diversidade do sistema e concentram riscos em tempo e espaço. Assim, a partir do reconhecimento das condições históricas do dinamismo do ambiente, coloca-se a questão do ambiente em seu real sentido civilizacional, com as dimensões científicas e éticas do relacionamento do mundo social com o da natureza, reconhecendo que um e outro têm seu próprio dinamismo, determinando situações cujo significado muda no transcorrer do tempo. Há diferenças profundas na relação sociedade – natureza no mundo antigo e no moderno, assim como há diferenças insalváveis entre sociedades industriais e não industriais na atualidade. Destacam-se o controle do suprimento de alimentos e a variedade dos bens de consumo que é um patrimonio da sociedade moderna mas que se torna um controle da capacidade de consumir. Em sua formação o sistema produtivo desenvolve mecanismos destrutivos do ambiente que se tornam incontroláveis e acumulam efeitos residuais sobre os momentos seguintes do processo, tal como aconteceu com os grandes desmatamentos realizados desde a Idade Média na Europa. As diferenças entre sociedades industriais e não industriais não são seqüenciais, isto é, os não industrializados não necessariamente se industrializam e os industrializados não necessariamente

mantêm

suas

posições

relativas.

No

mesmo

rumo

dos

desenvolvimentos da tecnologia, os movimentos de uns e outros têm diferentes impactos no ambiente. Por isso, o modo mais seguro de desenvolver esta pesquisa é o de voltar aos fundamentos da relação entre a sociedade moderna e a natureza, com seus aspectos de concentração social de poder e de efetividade desse poder sobre o mundo natural. Na perspectiva histórica a questão social do ambiente se apresenta como um fato de poder.

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Desde o início de um pensar o mundo como princípio e como totalidade nova, há uma diferença entre ver o mundo social como unidade ou como pluralidade, com desdobramentos em posições teóricas e de método que desembocam em modos de ver a organicidade da vida social. A totalização social pressupõe uma crescente abrangência de nações, grupos e culturas, ao mesmo tempo que revela pluralidades e diversidades no contexto de cada uma delas. O divisor de águas entre umas e outras é o fundamento histórico do conhecimento, que alguns reconhecem como pano de fundo civilizacional necessário, que abrange as afirmações e as contradições do processo civilizacional mas que outros descartam em favor de dados factuais imediatos. O problema básico de Kant de determinar as possibilidades do processo de conhecer, pressupõe uma visão civilizacional do que se aceita como intuição e como experiência e que se remete às condições epistemológicas do movimento da formação de conhecimento. O movimento de conhecer não ficará isento das vontades que o animam e esta será a ponte entre a especulação e o conhecimento voltado para o mundo1. Diante da inevitabilidade de temas básicos da sociedade, tal como de encontrar um sentido satisfatório da vida, torna-se inevitável transferir o problema genérico de Kant às condições históricas em que se realiza a mobilização do conhecimento. Daí em diante é apenas um passo para chegar à teoria da história de Hegel na qual as relações imediatas de causalidade se combinam com efeitos indiretos cada vez mais complexos. A busca de relações de causalidade significativas será o traço distintivo da ciência social, em que haverá divergências sobre a delimitação dos significados mas não sobre sua necessidade. A abordagem de uma ciência integrada sob a denominação de Ecologia procura decodificar a relação entre o mundo social e o da natureza, junto com o reconhecimento das interações entre os dois sobre condições diferenciadas de tempo e de espaço. Observe-se que a proposta de integrar a ciência com um ideal ético, que reúne pensadores tão distantes uns dos outros como Goethe, Hegel, Marx, Steiner, mostra a necessidade de esclarecimentos iniciais sobre os dois que se referem ao seu sentido de finalidade. Tal esforço implica em voltar aos fundamentos da conceituação de mundo social e de natureza. Reconhecendo que o mundo natural evidente encobre processos

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Cabe entender que a ligação entre a razão pura e a razão prática é o caminho de Kant para enfrentar o problema levantado por Aristóteles com sua distinção entre conhecimento finalistico e não finalistico inseparável de juízos de valor.

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que não são visíveis é preciso ver que a natureza é a cara aparente do mundo físico, mas é mais que isso, é um contexto vivo que estabelece marcas próprias sobre as quais se formam as civilizações. A Grécia antiga não seria a civilização que foi se as montanhas e o mar não tivessem posto referências aos processos do povoamento e à formação do sistema de produção. Do mesmo modo as teorias do positivismo prussiano, de von Thunen a Max Weber não seriam generalizantes não fosse a geografia da Prússia como também a da Bélgica em teorias de espaços homogêneos2. A primeira limitação do positivismo vem de ter voltado as costas à relação com o mundo físico em prol de uma ciência sem geografia nem história. Seria preciso deslindar as duas raízes do positivismo, a de Lamarck e Claude Bernard, que pode ser assumida como científica e a dos diversos neo-kantianos, em que se encontra o centro do positivismo em economia, na linha estabelecida por Böhm-Bawerk e Karl Menger que são mais uma declaração de princípios metodológica. Daí, o positivismo se prerroga a posição de única fonte de conhecimento científico na realidade terminando por negar Kant. O desafio metodológico é um caminho de duas vias: aproximar-se da natureza na perspectiva do mundo social e entender as possibilidades e restrições dessa relação em ambientes físicos específicos, segundo os sistemas sociais de produção3 ou partir dos dados da natureza para enquadrar os processos sociais. A primeira dessas duas colocações, portanto, é que a economia do ambiente é a denominação do uso social de energia, que permite situar os modos sociais de uso de energia frente às condições objetivas de reprodução natural dos sistemas de recursos. O panorama atual dos usos de energia na realidade reúne as condições de transição dos diferentes segmentos da produção e as mudanças de posição dos diversos participantes. Logicamente, envolve todos os interesses organizados que controlam os usos de recursos. Por Economia Política do Ambiente entende-se essa análise econômica com suas implicações políticas. Em termos de Física, a economia do ambiente é uma economia de força: obter mais com menos esforço, menor desgaste dos sistemas de recursos com melhores resultados para a sociedade. Em termos sociais, a economia do ambiente trata com os conflitos pelo controle do uso dos recursos. Socialmente, a ecologia é um fato político. Assim, a Economia Política do Ambiente é mais do que uma teoria da eficiência no uso social de

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Vale citar a música de Jacques Brel sobre o país plano que diz ter catedrais como únicas montanhas da Bélgica. 3 Ver Eugene Odum e Gary Barrett, Fundamentos de ecologia (2007)

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recursos em dadas condições de preservação ou de perda de energia e se perfila frente a condições historicamente definidas do sistema produtivo. Será preciso distinguir entre a produção industrializada capaz de tomar iniciativas significativas em tecnologia e a das economias que estão submetidas a iniciativas de outras economias nacionais e de empresas que controlam a renovação tecnológica. Nessa perspective, será preciso avaliar o significado social e ambiental da ação de empresas multinacionais que controlam a produção agrícola por meio do controle da produção de sementes. A economia do ambiente encontra-se na necessidade de explicar o significado social dos processos de uso dos recursos com seus desdobramentos em usos econômicos futuros e em suas implicações em relações de poder e de controle da força de trabalho na realização das tarefas que a sociedade se dispõe a realizar. Subjaz que a economia do ambiente muda ao longo do tempo, na medida em que a reprodução do sistema produtivo requer maior quantidade de recursos extraídos de reservas decrescentes. Representa uma tendência geral perda de força do sistema, ou da conversão de formas de energia superadas por outras socialmente mais adequadas? A hipótese da perda inexorável de recursos torna-se uma hipótese inicial inevitável na análise do ambiente. Apesar de que a atividade produtiva é contínua, cabe considerar que as condições reinantes em qualquer momento inicial considerado serão restrições em qualquer modelo de análise. Tais modelos poderão ser deterministas ou caóticos se as condições iniciais se ajustam ou se mantêm invariantes durante a operação do modelo. Como condições iniciais há sempre um dado sistema de recursos naturais e uma certa organicidade do mundo social. Há condições naturais e condições sociais do uso de recursos e a eficiência ecológica é o resultado das duas, portanto, as políticas ecológicas só podem responder por uma parte do problema, que, entretanto, se torna cada vez mais importante na condução do conjunto. A percepção de problemas ambientais pode ser rastreada nas preocupações com sanidade pública no início do século XX, nos trabalhos de economia florestal e nos de economia dos recursos naturais, mas a oficialização do debate sobre o ambiente revelou diferenças substantivas entre as posições dos países ricos e as dos demais. Ao tempo em que mostrou contradições entre os pontos de vista das empresas e dos homens comuns e

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em torno de como as sociedades nacionais absorvem os custos que são causados pela destruição do ambiente. A subseqüente popularização da discussão do ambiente envolve uma globalização da manipulação da opinião pública com valorações que se situam além dos dados materiais imediatos do ambiente físico, que refletem interesses das nações mais ricas e poderosas das demais nações e combinações de objetivos que envolvem esses dois grupos de nações. O ambiente deixa de ser uma questão adjetiva, para tornar-se um tema centralizador de metodologias. Por isso, existe uma necessidade de assentar a economia do ambiente sobre bases sólidas de análise ecológica, assim como também se torna indispensável analisar a racionalidade do problema ambiental no contexto das políticas sociais4. Esse conceito robustecido de ambiente registra o envolvimento civilizacional com a totalidade do mundo físico, revelado através de uma funcionalidade que ultrapassa a forma física como tal. A natureza é a cara visível do mundo físico que tem modos de reproduzir-se que nem sempre são evidentes. Essa relação global é acionada por interesses internacionalizados mas o modo como ela se organiza é através dos modos gerais de produção e da formação social, econômica e política de cada país. O desmatamento para extrair madeiras de lei e instalar pecuária é um modo de criar uma participação no mercado que não tem como retroagir. Desse modo, tanto como o ambiente reflete um controle dos usos sociais de recursos, ele é aquela expressão de poder que envolve aspectos combinados, positivos, de proteção e preservação e aspectos negativos de desgaste e destruição, que, em seu conjunto, dão um significado metafísico ao ambiente. O controle dos recursos é um fato de poder. A conferência do Rio de Janeiro em 1992 foi o momento crucial de desvendamento do jogo de poder incorporado nas políticas internacionais do meio ambiente, ao colocarem-se limites entre o que as grandes potências aceitam discutir e o que elas efetivamente praticam. Se as principais nações poluidoras mantêm seu uso maciço de carvão, tal como fazem os EUA e a China, não há muito o que os ambientalistas realmente possam fazer. Como e enquanto relação de poder o ambiente compreende os ingredientes culturais e políticos da sociedade moderna, onde há uma progressiva destituição de referências

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Enrique Leff, Racionalidade ambiental (2007) trata dos problemas de racionalidade como de reapropriação da natureza, que envolve novas compreensões de sociedade e de natureza.

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anteriores, e onde o poder de controle – controle do trabalho, do consumo e dos riscos do capital – é o fundamento da propriedade dos meios de produção e é a força motriz da alienação. O ambiente social como e enquanto uma relação de poder reúne promove uma progressiva subordinação e desqualificação de formas e de símbolos de sistemas anteriores, junto com a imposição de novos valores dos vencedores. A relação essencial de poder aparece no controle do processo do capital, que se concretiza no do trabalho, e, por meio dele, no dos recursos naturais incorporados à produção. O controle de trabalho contratado se projeta diretamente sobre a força de trabalho no ambiente do emprego e indiretamente pelo domínio das oportunidades de ocupação remunerada. A subordinação dos trabalhadores por meio de sua dependência de renda atual e futura determina situações em que a concorrência entre eles estimula comportamentos individualistas em que muitos deles se identificam com os interesses e os pontos de vista de seus contratantes. Esse é um mecanismo de alienação aparentemente voluntária sobre o qual se constrói o mecanismo social da alienação no ambiente do trabalho contratado que consiste essencialmente em alienação coagida. O que caracteriza o discurso oficial da alienação é a busca de uma neutralidade ideologia acima dos conflitos sociais – um bem genérico – que representa a proposta de uma nova neutralidade axiológica, desta vez fundada no discurso supostamente inquestionável da salvação da humanidade através da proteção do ambiente. Se a velha neutralidade revelou-se ingênua esta se mostra capciosa. Esta alienação se identifica com uma falsa consciência das elites que são cooptadas mediante mecanismos do individualismo5. A alienação geralmente se estende sobre situações de renovação técnica e continuidade de poder, alimenta-se de mecanismos de penetração de artefatos ideológicos exógenos e mediante comportamentos de grupos nacionais que derivam suas posições internas de sua adesão aos dispositivos externos: intelectuais subalternos frente a centros universitários de países líderes, homens de negócios que identificam posições internas de classe com padrões de cópia cultural, etc. A alienação torna-se mais complexa e procura meios de legitimação que respondam aos modos operacionais

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Ocupam um papel especial os sistemas de intercâmbio cultural, principalmente aqueles que introduzem relações familiares, a deificação dos métodos e dos sistemas de ensino, na ampla liga do pragmatismo com o neokantismo e o positivismo que fornecem a base epistemológica da nova ortodoxia central.

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dos centros mundiais do capital. Internamente, em países periféricos como no Brasil desenvolve novos canais de realização pretendendo uma originalidade que não tem,

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1.

O ambiente em perspectiva histórica

O problema social do ambiente Não deve haver mais dificuldade em reconhecer que o ambiente é o principal tema que ligará o século XX com os subseqüentes, mas está igualmente clara a diversidade das percepções da problemática do ambiente e sua subordinação aos interesses do grande capital associado

aos estados nacionais. Longe de que essa compreensão leve à

unificação de um campo temático, o ambiente se tornou um espaço aberto em que se desenvolvem contribuições, principalmente técnicas e emocionais, em que se processa uma coisificação de conflitos profundos e em que se pretende ter superado ideologias. Por essa mesma razão o mecanismo do discurso ambiental tornou-se um aparelho ideológico de justificativa de empreendimentos danosos aos sistemas sociais e físicos do ambiente. A questão ambiental seria apanágio de um mundo posterior à crítica socialista do capitalismo, ou constituiria uma dissonância dentro do capitalismo que em caso algum contesta. O ambiente do qual se pensa hoje é aquele em que entram novos fatores de alto risco e crescente incerteza e não mais o da Conferência de Estocolmo de 1972. Desde aquele momento aconteceram as duas crises do petróleo, várias crises econômicas em países da periferia avançada, o fim da União Soviética e a ascensão da China. Como corolário, aconteceu a grande crise financeira iniciada em 2008 e que continua reverberando na Europa. Na nova economia mundial de crise e desemprego, a proteção do ambiente perdeu prioridade de fato, tornando-se mais uma prioridade condicionada. A construção de novas grandes barragens para usinas hidrelétricas, mais irreversíveis que usinas nucleares, confirma esse uso da expressão prioridade nacional. Nessas condições a luta para defesa do ambiente seria uma manifestação civilizacional, agora mais clara quando a ascensão da China mostra redobrada voracidade de consumo de recursos de outros países e contribui para o quadro geral de riscos crescentes com que convive o mundo globalizado de hoje. A premência por energia faz com que as nações mais avançadas estejam dispostas a incorrer em maiores riscos no mesmo tempo em que fazem tentativas com energias alternativas supostamente não poluentes e não arriscadas. Paralelamente, se aceita que a biotecnologia seja utilizada por multinacionais

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que tendem a controlar a oferta mundial de alimentos mediante procedimentos que tornam mais difícil a sobrevivência de pequenos produtores de alimentos. Nas sociedades periféricas ascendentes como o Brasil, a questão do ambiente aparece hoje por meio de algumas teses indiscutíveis, como a do aquecimento global e a dos efeitos da poluição industrial, que parecem óbvias e desviam a atenção do fato de que é a cara aparente de processos complexos que envolvem o modo de funcionamento da economia mundial em seu conjunto e que têm raízes em uma infinidade de organizações locais identificadas com certas culturas e certos preconceitos. Na perspectiva da cultura “ocidental” do capitalismo6, a questão do ambiente tem funcionado principalmente como uma cortina de alienação que afasta o debate sobre as origens e as conseqüências sociais das transformações do ambiente7. Oficialmente, não se pode recuar, porém nenhum investimento importante deixará de ser realizado por considerações ambientais. Desde seu início formal no fim da década de 1960 o debate do ambiente tem sido palco de um grande reducionismo oriundo da própria compreensão do ambiente. Esse debate seria uma conseqüência geral dos processos do sistema sócio-produtivo em seu conjunto, sem entrar no mérito do significado das agressões ao ambiente e das políticas ambientais como fatores de distribuição da renda e de influência na mobilidade social. É indiscutível que a questão do ambiente transcende os campos disciplinares das ciências. Apresenta desafios que se colocam ao nível da civilização como um todo, mas que dependem de políticas dos Estados nacionais, por maiores que sejam as influências que se organizam na esfera internacional, de órgãos multilaterais e de entidades não governamentais. Há um impasse entre interesses nacionais e controle do ambiente, em que as nações mais ricas exercem uma sistemática ambigüidade, manifestando-se a favor dos princípios gerais de defesa do ambiente, mas omitindo-se de políticas que contrariam seus interesses. Essa contradição poderia em princípio ser superada se houvesse condições de estabilidade da economia mundial, mas obviamente registra as tensões relativas ao suprimento de energia e de alimentos, que revelam a fragilidade da base de recursos que sustenta a opulência das sociedades ricas. Assim, enquanto avança o conhecimento organizado dos processos do ambiente e apesar das múltiplas fraturas

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Os asiáticos revelaram-se mais “ocidentais” que os próprios europeus. Em alguns momentos o cinema tem furado esse bloqueio como no caso do filme O jardineiro fiel.

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da compreensão do problema, decorrentes das diversas abordagens disciplinares, desenvolve-se uma complexa rede de interesses de empresas em sua maioria oriundas dos países e das regiões mais ricas, que exploram o mercado criado pela destruição do ambiente. Herdamos danos futuros. À destruição causada por impactos das indústrias, por agrotóxicos somam-se aos efeitos de concentração de pobreza, formando um quadro integrado em que predominam os grandes interesses e a urbanização. Incidentes que acontecem na ponta inferior desses processos, tais como assassinato de lideranças locais ou problemas localizados de contaminação por mineração e por indústrias são apenas o aspecto mais evidente, com apelo emotivo, de movimentos em grande escala do grande capital, que afetam as condições de condução de programas de ciência e tecnologia e de direcionamento de grandes programas de investimento. Assim, há um embate de grandes interesses contraditórios com o discurso humanista professado pelos ambientalistas, ao tempo em que há uma difusão de princípios de ecologia, que são transmitidos como parte de um código ético que se apresenta como superior a divisões de classe e crença, capaz de ser aceito por ateus e religiosos e por fanáticos de diversos tipos. Essa plasticidade do discurso ambiental torna-se um atrativo para uma leitura de pessoas de boa vontade que estão dispostas a defender a causa do ambiente mas revelase incapaz de absorver a dura realidade da sociedade do capital. Torna-se, portanto, evidente que ao contrário do que reza o discurso ambientalista oficial, há um fundamento ideológico da questão do ambiente cujo esclarecimento se torna necessário para determinar rumos historicamente adequados para uma Economia Social do Ambiente. Nesse sentido, coloca-se, desde já, a disjuntiva entre conter e reverter tendências negativas, preservar para gerações futuras e aproveitar oportunidades de negócios. Desde já, a compreensão que os impactos de projetos considerados um a um não podem refletir os grandes problemas de desgaste e perda de energia, integrados no ambiente.

As políticas ambientais defensivas, que foram

adotadas pelos órgãos internacionais – para mitigar efeitos negativos de determinados empreendimentos – chegam ao âmago da questão que consiste em procurar um estilo de desenvolvimento da produção que incorra em menor desgaste dos sistemas de recursos físicos. Os problemas do ambiente são historicamente situados, já que seu peso na vida social depende de quando e onde acontecem. Pertencem a diferentes condições de organização

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social e não são os mesmos em todos os momentos e todos os lugares. São problemas historicamente específicos que variam de modo negativo e positivo ao longo do tempo e em diferentes lugares. Problemas de diminuição prolongada de chuvas têm diferente significado quando acontecem em regiões normalmente semi-áridas ou em regiões cuja hidrometria é geralmente elevada. Na prática, os problemas do ambiente são sempre mais impactantes quando surgem de mudanças bruscas e surpreendem a capacidade de adaptação da sociedade. Neste estudo procura-se distinguir o significado de choques bruscos no ambiente, que podem variar desde aspectos climáticos a migrações numerosas em períodos curtos do significado de deslocamentos graduais nas condições de reprodução dos sistemas de recursos, entendendo que em sua maioria são estes últimos que modificam decisivamente as condições de vida. O caso específico da região semi-árida do Nordeste brasileiro é um desafio fundamental da sociedade brasileira pelo que representa como tendência a um desastre irreversível. Com a aceleração da industrialização na segunda metade do século XX houve um agravamento dos problemas do ambiente, por um conjunto de razões que vão desde a incidência de fatores climáticos a de vulcanismo junto com uma atividade mais intensa de grandes potências e de seus associados na exploração de recursos minerais. É uma época especialmente tensa na relação da economia mundial com o ambiente 8. Por isso, tratamos aqui dos problemas do ambiente como eles se nos apresentam desde a segunda metade do século XX, considerando as desigualdades inerentes à divisão dos poderes econômicos, políticos e militares no mundo de hoje. No ambiente do fim da Guerra Fria e sob o impacto de um conjunto de relatórios que mostravam os limites do modelo econômico internacionalizado de acumulação, os países ricos descobriram alguns grandes mecanismos de ajuste, dentre os quais se destacam o controle da natalidade e o do ambiente. A “questão” ambiental não é

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O conceito de tensão ambiental é essencial na argumentação que se desenvolve neste estudo, entendendo que há uma tensão básica decorrente da relação entre unsos totais de recursos e recursos disponíveis e em que há sempre dois níveis ou situações de tensão, sendo a primeira dada pela relação entre o sistema produtivo e os sistemas de recursos e a segunda pelas diferenças de disponibilidade de recursos em lapsos de tempo tomados para o planejamento da economia. Por exemplo, o tempo em que se pode contar com reservas de urânio considerando a taxa atual de exploração desse minério. Ainda, por exemplo, a mesma intensidade de usos entre situações estacionais de abundancia de água e situações de seca.

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socialmente neutra, senão equaciona formas de concentração de poder que se organizam em torno do controle de recursos naturais. O que se colocou desde então e principalmente é a visão dos problemas do meio ambiente tal como percebida pelos países ricos. Nesse entendimento vê-se que a Economia Social do ambiente tem duas grandes referências que são as de rever criticamente os fundamentos conceituais da análise econômica das transformações do ambiente e de estabelecer referências para políticas de controle e de prevenção de deterioramento do ambiente. Ambas envolvem interesses de classe e afetam as condições de distribuição da renda e de mobilidade social. A primeira leva a trabalhar sobre a ligação entre os progressos da ciência e as condições de análise da situação e das condições do ambiente. A segunda leva a procurar determinar possibilidades de política, distinguindo os pontos de vista das sociedades nacionais ou outras. A revisão dos fundamentos científicos distingue o que são princípios e o que são modos operacionais de análise. A ciência que questiona princípios coloca-se no modo de responsabilidade ética pleiteado por Kant e defendido de outras formas por Poincaré: uma ciência responsável pelo saber. A ciência que se restringe à justificativa técnica reduz-se ao que Giddens denomina de saber perito, que é meramente instrumental. Sobre essas bases consideram-se criticamente as três grandes linhas de política do ambiente que são princípios reguladores, políticas de compensação e educação ambiental. Princípios reguladores surgem de movimentos sociais que alcançam legitimação formal, em legislação efetivamente aplicada ou em consenso cultural que, portanto, têm força suficiente para impor normas. As políticas de compensação são as que se desenham para cobrir perdas de projetos que se considera inevitáveis, quando, portanto, entram em jogo interesses para definir quais projetos seriam necessários e com quais critérios. Finalmente, a educação ambiental é o movimento geral necessário que fica por ser melhor definido, já seja como responsabilidade local ou de governos nacionais. Nesse contexto coloca-se o papel do Estado. Sob a pressão da lógica neoliberal de conter gastos públicos e de demonizar o funcionalismo público, passou-se a ver o papel do Estado como mínimo ou como árbitro entre interesses do grande capital e da

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sociedade em geral. Com isso, desvia-se a atenção do fato histórico em que a hipertrofia do Estado é um falso dilema, quando o Estado está impregnado de influências de interesses privados e em que os pequenos capitais têm poucas oportunidades para fazerem valer seus pontos de vista. Veremos, adiante, que o verdadeiro problema consiste em uma defasagem do Estado como entidade operacional para realizar as políticas e medidas em geral que são demandadas pelo capital. Também é uma tese ambígua, considerando-se que tem sido justamente o Estado nos países não centrais que tem feitos os investimentos e as políticas necessárias para viabilizar a modernização das empresas. Há, realmente, uma consagração indireta dos capitais internacionalizados, em que se combinam os interesses de capitais localmente formados com capitais formados em outros países. Entende-se que os princípios reguladores são atribuição do Estado, mesmo quando sobre eles pesam pressões internacionais porque, além da exclusividade institucional sem decisões de Estado as decisões de grande política não são registradas 9

. Assim, o grande marco regulatório de políticas do ambiente é essencialmente político

e, por isso, carregado de ideologia. As políticas de compensação surgem principalmente como projeção de interesses privados mesmo quando são apoiadas como políticas de interesse nacional. Finalmente, educação ambiental é mais um desdobramento de educação em seu conjunto e reflete uma combinação de fatores políticos, ideológicos e técnicos que terão que ser examinados um por um. Mais que em diversos outros campos de interesse, as políticas ambientais representam um contexto de poder cada vez mais disputado, mais apropriado por contra-discursos de empresas profissionais das consultorias e das gestões de apoio aos projetos de compensação, que encontram racionalizações superficialmente convincentes. São razões de sobra para as políticas convencionais do ambiente que devem ser avaliadas por sua pertinência e sua exeqüibilidade. O método

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É preciso distinguir entre as condições históricas da formação dos Estados europeus, que alimentaram os trabalhos de Poulantzas, Hirsch e outros ( O Estado em crise, 1977) e as que marcam as condições do Estado brasileiro, desenhadas por Helena Motta (Crise e reforma do Estado brasileiro, 2000).

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Conceitua-se método como modo de pensar e fazer, entendendo que toda teoria da ação carrega implícita uma teoria do conhecimento. O método se decide em função do que se pensa do objeto de estudo. A primeira observação sobre o ambiente é que ele muda. Muda de modo inercial ou de modo induzido. Para uma análise social do ambiente é preciso vê-lo como resultado da ação combinada de processos sociais e naturais em que serão os motivos das ações sociais que definirão o modo como se desenvolvem os processos e os problemas do ambiente. Será esse condicionamento histórico que guiará os estudos do ambiente. Nesta perspectiva parte-se de processos históricos para deles extrair observações e chegar a generalizações controladas. Será preciso atribuir essas observações a situações concretas de espaço-tempo. Isso significa rejeitar a suposta neutralidade ideológica dos estudos do ambiente e registrar que se formam por conta de intervenções e de alterações do ambiente. Desflorestamento pode ser resultado de mudanças climáticas em determinados períodos e pode ser resultado de expansão colonialista ou ainda ser conseqüência da ação de empresas multinacionais. A perspectiva social do ambiente é necessariamente histórica e descola perguntas tais como: Um mesmo ambiente físico pode ser diferente para diferentes grupos sociais? Tal como em qualquer outro departamento da vida social, o controle monopolístico de recursos naturais determina as condições de controle do ambiente, pelo que é preciso tratar de dois elementos essenciais que são a localização e o controle monopolístico dos recursos naturais e o controle social das tecnologias com que eles são aproveitados. Por extensão, é preciso reconhecer que questão ambiental se apresenta de diferentes modos para os diversos grupos, pelo que é preciso situar a relação com o ambiente como um processo de poder que se exerce mediante a memória organizada das tradições e o controle do saber científico e tecnológico. A condição histórica da relação com o ambiente implica na pluralidade de posições das classes e dos grupos organizados, dependendo de como eles são partes integrantes de sociedades industriais tradicionais, de sociedades industriais avançadas, de sociedades industriais tardias ou de sociedades que não alcançam a modernização industrial. Não á como separar a questão do ambiente da do colonialismo e da pressão de uns países

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sobre outros 10. Não há como substituir a percepção dos pobres pela dos ricos sem que ela se torne veículo de dominação. As definições de interesses surgem de combinações provenientes de organizações com diferentes datas iniciais, que convivem na composição do bloco de poder. O relacionamento atual da sociedade com o ambiente é o resultado de uma progressão de formas de organização, em que a colonização é um divisor de águas entre colonizadores e colonizados, com correspondentes efeitos sobre os modos de uso dos recursos. Por isso, em vez de partirmos da população com suas habilidades e sua cultura e vermos como ela participa dos processos de produção como fez Marx, começamos por ligar o modo de controle dos recursos à capacidade para explorá-los. Com a colonização chega-se a uma qualificação decisiva da apropriação de recursos. Não só há um sistema de apropriação privada dos recursos como ela é realizada por um poder ausente. Essa dupla subordinação resulta em uma valorização externamente determinada dos recursos, que é o primeiro passo para que sua exploração seja separada dos possíveis objetivos de desenvolvimento internamente escolhidos. O plano do livro Com estes antecedentes, este trabalho se organiza em três partes. A primeira, nos capítulos de 1 a 4, oferece elementos de interpretação dos problemas de ambiente na perspectiva latino-americana à luz das transformações da economia mundial. A segunda, por meio dos capítulos de 5 a 8, apresenta mecanismos de análise dos processos sociais identificados com a gestão do ambiente. Finalmente, a terceira traz indicações acerca de políticas ambientais. No conjunto, indica-se uma crítica da razão ecológica do desenvolvimento material da sociedade, que transcende as fronteiras deste ensaio

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A nova onda de intervenções na África comandada pelos mesmos três países que continuam exercendo poder discricionário colonial – Estados Unidos, França e Inglaterra – é sempre para proteger civis que eles mesmos bombardeiam e para desqualificar governos que os enfrentam como agora na Libia.

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2. A formação do ambiente e a irreversibilidade Cada processo singular começa de um algo aparentemente imediato.

Hegel Sedentarização e civilização Para um pensamento consolidado sobre a questão social do ambiente será necessário introduzir uma visão em perspectiva civilizacional, isto é milenar, que nos permita estabelecer comparações em profundidade com os processos atuais. Desde os inícios da sedentarização há trocas fundamentais nos modos de adequação das sociedades ao seu meio físico. As primeiras urbanizações significativas já introduziram concentrações de uso de água, de uso de alimentos e de materiais de construção que alteraram a relação entre a reprodução cotidiana e a consolidação de grandes assentamentos em longos períodos. Os grandes saltos civilizacionais

se realizaram mediante soluções para

concentrações urbanas, que se basearam na capacidade da produção rural para alimentar os produtores e os moradores das cidades e depois, para condicionar a capacidade produtiva no meio rural às soluções da vida urbana. O aparente descolamento entre o urbano e o rural significa simplesmente que se encontraram as soluções técnicas suficientes para reduzir a população rural enquanto aumenta a produção rural para usos urbanos. Entretanto esse grande objetivo civilizacional não considerou os efeitos acumulativos da perda de recursos do mundo rural para a continuidade do sistema. Dependência de maquinização da produção, redução do número de espécies vivas, vegetais e animais, concentração dos usos de água, todos esses fatores constituem uma pressão crescente sobre o sistema produtivo que não são parte da análise econômica ortodoxa que trabalha apenas com os horizontes de tempo dos investimentos. Pensamos o ambiente na perspectiva da relação entre a reprodução da vida social e a do meio natural. Como se trata de processos que combinam desgaste de recursos naturais com transformações do meio social é preciso começar por identificar a perspectiva ideológica da análise, assim como definir que se trata de processos irreversíveis, que se realizam mediante mudanças de composição do lado do meio social e do lado do meio físico. Os fatos do mundo dos minerais, tanto como os do mundo da biologia, informam

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a decodificação central do processo do ambiente que é social no sentido mais amplo desse termo. Afinal, a queda de um meteoro na Sibéria em 1904 afetou menos a sociedade mundial que o tsunami que atingiu a Tailândia em 2007, porque este último atingiu fortemente as redes de turismo européias. A questão ambiental evolui segundo responde a modos de organização social. Há problemas ambientais visíveis quando se concentra poluição determinada por produção industrial, mas não se vê igualmente o efeito destrutivo da substituição de campos de produção de alimentos por campos de golfe. A produção de alimentos sempre foi descartável para o sistema de produção de mercadorias e só foi prioritária em sua qualidade de mercadorias e não de alimentos. O princípio geral explicativo do aparecimento de um problema ambiental é a fixação de números crescentes de pessoas em áreas restritas e pelo aumento progressivo da carga de moradores em espaços limitados e pelo aumento da dependência de energia socialmente produzida11. Historicamente, a sedentarização significa aumento da pressão sobre sistemas de recursos físicos em determinados pontos e em certos períodos, bem como a conseqüente subordinação de espaços cada vez maiores às concentrações demográficas. A urbanização é o prolongamento da sedentarização, e, ao longo do tempo, introduziu mudanças estruturais no modo de concentração de pessoas, refletindo-se em novos modos de produção de um ambiente social contínuo. Nas condições da urbanização de hoje esse pressuposto de continuidade tem que ser revisto, dada a segmentação das cidades com espaços controlados por grandes capitais e pelo crime organizado. Supõe-se que a natureza desenvolve processos que geram biodiversidade e que a atividade social age no sentido de reduzir essa biodiversidade em que o planejamento de uso de recursos para produzir se faz sobre objetivos de produção, que só se ajustam com os planos de consumo durante sua execução. É um mecanismo de tempo que é controlado por previsões de mercado e contratos antecipados, mas que envolve os riscos de frustração de demanda. Nesse movimento, a busca de matérias primas, que é o modo como o sistema atinge a natureza, funciona com outro tipo de inércia, que é dada pelas condições de concorrência por matérias primas. Há, portanto,

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A densidade da população urbana chega a cifras aparentemente incompatíveis com uma vida social “normal”, tal como 9.000 pessoas por hectare em certos bairros de cidades brasileiras como Copacabana no Rio de Janeiro e Pituba em Salvador. A concentração demográfica urbana enfrenta limites na capacidade dos sistemas de infra-estrutura para atender esses grupos urbanos e limites na deterioração da qualidade de vida prejudicada pelo confinamento.

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um mecanismo da produção industrializada que leva às pressões de superprodução e que, ao mesmo tempo, se converte em pressão incontrolada sobre a natureza. Logicamente, essa focalização da pressão nos usos de recursos leva a um tipo de desequilíbrio entre o processo social e o econômico que terá algum efeito em algum momento, mas que desde logo cria zonas de influencia em expansão, que fazem com as cidades em expansão liderem regiões cada vez maiores12. A sedentarização deu lugar a uma progressão de formas de moradia, chegando a uma sucessão de patamares técnicos da verticalização e de integração de funções nas residências, a qual atingiu a moradia, com diferenciais de densidade dos equipamentos de consumo que acentuaram a pressão sobre os recursos. Essa tendência geral encaminha a observação que as transformações do ambiente são regidas por princípios da Física e por tendências históricas das relações sociais. Historicamente, a sedentarização da população representou a superação de problemas imediatos de alimentação

e de moradia permanente. Instalou-se aí a base para a

construção de sistemas políticos estáveis, que assumiram formas de cidades Estado e de impérios

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. Surgem, portanto, sistemas históricos concretos que significam perdas de

energia e tendências à dispersão de força14, que constituem dois aspectos opostos e complementares de um movimento geral de perda da energia inerente ao sistema natural. Alternativamente, se vê como movimentos de conversão de força, tal como acontece com um aumento de produção em solo criado ou obtido mediante o uso de energia plenamente renovável. A civilização é uma máquina de entropia, inclusive no sentido freudiano de constranger e conduzir o desenvolvimento individual mediante repressões. Substitui formas de vida baseadas em espaços amplos e recursos naturais

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O mapeamento dessas pressões surge do modo de desenvolvimento da produção industrial e não tem relação alguma com acaso nem é um movimento aleatório. A idéia do efeito do bater de asas de uma mariposa não pode ser ignorada. 13 Mais uma vez, é preciso voltar aos exemplos de experiências antigas. Os imperios mais antigos como o de Sargão já foram o resultado de prolongadas e complexas experiências de cidades como Ur, Eriddu e Lagash. Por estranho que pareça o império de Sargão é a culminação de um processo social, técnico e politico cuja base são as cidades da Sumeria. 14

Alude-se aqui ao principio de conservação de energia descrito pela termodinâmica e à presença de estruturas dissipativas, tal como elas foram apontadas por Prigogine. Diz Prigogine que “O reaparecimento do paradoxo do tempo deve-se essencialmente a dois tipos de descobertas. O primeiro consiste na descoberta das estruturas de não equilíbrio também chamadas de dissipativas”(2002, pp.21)

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por formas de vida organizadas em espaços fortemente limitados e com uso de recursos socialmente elaborados. Na perspectiva secular da história, a sedentarização significa o desenvolvimento de modos de organização estáveis e de contradições de interesses estabilizados, em que o mundo social se organiza sobre as restrições antepostas pelo mundo natural. Ao propiciar o adensamento demográfico a sedentarização põe em marcha esforços para subordinar a reprodução do mundo natural aos objetivos da sociedade, inclusive utilizando os recursos da natureza além de suas possibilidades de se reproduzirem. Logicamente, alguns grupos conseguiram dar esse salto, mas quase sempre sem a garantia de dispor de alimentos ou de moradia suficientes. Os antigos impérios, desde o egípcio ao romano, representaram soluções duradouras das condições de alimentação e de moradia, com um gradual distanciamento entre sua capacidade de proverem suas necessidades e seu consumo. A revolução agrícola da Idade Média na Europa e a incorporação da América ao sistema produtivo europeu foram dois eventos decisivos na marcha pela alteração mais profunda entre a capacidade de produzir e a consumir. Desde o fim do século XVIII surge uma nova coorte de problemas ambientais determinada pela emergência da urbanização, da produção industrial e da construção de sistemas de serviços de utilidade pública. O consumo coletivo determina usos maciços de recursos, especialmente de água, concentrados em cidades. A noção moderna de ambiente descola de tudo que foram os modos de vida das civilizações pré-industriais e decorre das tendências da produção capitalista industrial, que expande e aprofunda a concentração demográfica e os usos de recursos, gerando pressões irreversíveis nos sistemas de recursos. A visão da natureza através da realidade social da produção capitalista junta os aspectos gerais do modo essencial de reprodução da natureza com os aspectos da reprodução no âmbito da sociedade moderna. Numa leitura interpretativa e sintética da contribuição da análise marxista desse problema, Jacques Monod15 estabelece os seguintes pontos: (a) O modo de existência da matéria é o movimento; (b) o universo, definido como totalidade da matéria, encontra-se em perpétua evolução; (c) todo conhecimento verdadeiro do universo contribui para a compreensão dessa evolução; (d) esse conhecimento só é obtido na interação entre o homem e a matéria,

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Jacques Monod, O acaso e a necessidade, Petrópolis, Vozes (1970) 2006.

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portanto, todo conhecimento é prático; (e) a consciência se relaciona com essa interação cognitiva; (f) já que é parte e reflexo do movimento universal, a lei do pensamento e a do universo são dialéticas; e (g) a dialética é construtiva, portanto, a evolução do universo é ascendente e construtiva. Deveremos entender que esses preceitos desenham um quadro evolutivo em que as perdas em quantidade de recursos são compensadas por ganhos em qualidade das condições de vida civilizacionais. É uma hipótese que depende de condições incertas de reposição, já que as perdas correspondem a certos perfis de qualidade e que os novos recursos tecnológicos representam outras situações de encaixe no sistema. O problema geral de reposição é muito mais complexo que o de substituição, porque abrange todos os aspectos de estruturação do sistema produtivo.

O todo e a totalidade A capacidade de ver o mundo como totalidade e de reconhecer o significado do todo e de aspectos ou de partes do todo é um dos temas mais antigos da reflexão filosófica, quiçá o tema que dá sentido aos demais. Para Empédocles a capacidade de perceber o todo é essencial para perceber-se como individualidade. A questão gnosiológica da totalidade interessa igualmente a físicos, filósofos e cientistas sociais, constituindo uma referência inicial necessária dos estudos do ambiente. Enquanto a teoria do ambiente precisa do conceito de totalidade para construir sua abordagem metadisciplinar, a análise do ambiente procura expurgá-lo, mediante sucessivos reducionismos, para colocar-se ao nível das demandas imediatistas das empresas ou das reivindicações quase religiosas e não científicas do ambientalismo burguês. Ver o ambiente a partir de uma noção de todo significa um compromisso radical com o processo de saber, que se remete a uma linha de indagações, aparentemente começada por alguns filósofos jônicos, que viram a natureza como um princípio ativo, que permanece como princípio da química da civilização. Em que, portanto, haverá uma diferença entre a noção antiga e a moderna de ambiente.

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A noção moderna de ambiente é a de uma totalidade que compreende a esfera da reprodução da natureza e a esfera da reprodução social, encontrando seu sentido de finalidade numa composição das práticas sociais com o meio físico onde elas se realizam. Entende-se, desde logo, que os estudos do ambiente dependem das análises de totalidade, tanto no campo das ciências físicas como no campo das ciências sociais, onde, portanto, se encontra um fundamento sistêmico na relação entre o todo e as partes. É sempre uma totalização,não é um todo genuíno. Um todo com quais partes e quais partes que compõem um todo que muda. Uma visão ultra-moderna – que se desembaraça da rigidez do moderno sem perder os fundamentos históricos dos processos sociais – terá que se ocupar mais de regras de mudar que de fatos específicos de mudança16. Desde que esse campo de interesse se consolidou no início dos 70, tem havido um notável enriquecimento de conotações da conceituação de ambiente, acompanhando um progressivo esclarecimento dos interesses envolvidos na análise e nas políticas ambientais. O interesse em políticas ambientais pode significar uma revisão das políticas sociais em seu conjunto, ou uma fragmentação do agir social, e, junto com esses movimentos, pode significar um esvaziamento dos conteúdos ideológicos das políticas sociais, ou ainda pode ser um movimento esclarecedor da operacionalização das tensões ideológicas contidas no jogo do poder mundial. Em sua essência, a perspectiva ecológica questiona a departamentalização do conhecimento e impõe a necessidade de uma reflexão sobre a ciência como tal e sobre a cientificidade do conhecimento organizado e apresentado como científico. A matriz da ciência moderna é um questionamento radical do sentido de finalidade do trabalho científico (STENGERS, 2002). O ambiente é o lugar da vida social, que atribui valor à natureza segundo os elementos da natureza são determinantes da vida social, ou de acordo como a natureza é o fundamento prévio de qualquer sistema de produção. A evolução do conceito de natureza, desde a physis dos gregos à noção moderna de um campo a ser controlado

16

Parece ser necessário contrapor um pouco de bom senso à moda de pós-modernismo que pressupõe sociedades posteriores aos interesses industriais, hoje cada vez mais fortes, incorporados ao poder das multinacionais. O que foi superado foi o modelo de fábricas integradas, substituído por unidades determinadas por funções fabris e dispersa em função de custos operacionais.

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pelo homem e à compreensão ecológica, há um trajeto a ser reconhecido, em que há avanços, recuos, continuidades e descontinuidades. O pressuposto de continuidade dos processos da natureza desconhece eventos que interrompem a continuidade e permitem pensar na história do ambiente como uma história de rupturas à la Foucault antes que em processos entrópicos ininterruptos. A teoria do ambiente tem se desenvolvido como uma teoria essencialmente pobre no relativo a captar o contexto histórico da vida social, mas não pode se eximir de conter, subjacente, uma teoria da vida social, isto é, uma explicação da vida social em sua espacialidade e indica o envolvimento da teoria social com as condições materiais concretas de sobrevivência. A noção de ambiente construiu-se a partir do reconhecimento progressivo do conjunto da vida social com a reprodução do mundo natural, com seus componentes vivos e inanimados. Carrega, por isso, uma noção de capacidade de sustentação das pessoas, isto é, de habitabilidade. Nisso interferem aspectos do desenvolvimento da ciência moderna. A compreensão de que o mundo físico está sujeito às leis da termodinâmica, onde há uma perda geral de energia e que os usos de energia se realizam em sistemas sujeitos a entropia, faz com que prevaleça a noção de que a vida é um gasto de energia e que os modos de reposição dos sistemas naturais estão fora do alcance da sociedade. No contexto do desenvolvimento da ciência moderna, a compreensão de ambiente está referenciada pelos seguintes conceitos básicos: (a) um conceito de espaço herdado de uma polêmica formada no século XVIII entre uma concepção de espaço como um estado absoluto e uma outra de espaço como atributo da vida do homem no que “não representa nenhuma propriedade das coisas” (Kant, 1970) em que uma conceituação social de espaço sempre indica experiências localizadas. Na mesma linha de reflexão, o espaço é sempre irreversível; (b) o conceito de irreversibilidade no desgaste dos sistemas, que significa que os sistemas naturais não mudam para serem como já foram antes. Daí, que as novas configurações dos sistemas de recursos refletem uma variedade de situações, que acompanham a perda de energia do sistema e que leva a que ele assuma sempre novas formas e novos modos de se reproduzir17. No relativo à

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A noção muito moderna de irreversibilidade trazida pela Física no final do século XIX – Ludwig Bolzmann – envolve uma dificuldade relativa a sua confirmação das condicionantes estatísticas de sua

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irreversibilidade na biosfera, acolhemos a observação de Jacques Monod, de que “a evolução na biosfera é um processo necessariamente irreversível que define uma direção no tempo, direção que é a mesma que aquela que impõe a lei de crescimento da entropia, isto é, o segundo princípio de termodinâmica”18; (c) o conceito de entropia – perda de energia nas passagens entre formas de energia – que significa que os sistemas se tornam entrópicos quando se tornam mais complexos. Significa que há um problema a ser esclarecido relativo a saber se a entropia é invariante ou se varia acompanhando a perda de componentes do sistema. A hipótese de que a entropia aumenta segundo alterações de composição do sistema e não só de variações quantitativas é o que levará, adiante, a questionar o significado prático da biodiversidade. Significa, também, que há uma questão a esclarecer, que consiste em saber se o movimento de entropia pode se atenuar segundo a composição do sistema se torne mais eficiente; (d) o conceito de um universo friccional, em que os movimentos dos corpos são alterados pela resistência do ambiente onde se realizam, portanto, de um universo que não pode ser completamente previsível nem igualmente previsível em todos os momentos. A teoria do universo friccional levou logicamente à do espaço negro, que torna inseparáveis matéria e movimento. Seria preciso voltar às incursões de Bergson sobre as conseqüências da teoria da relatividade para uma filosofia do cotidiano; (e) o conceito de estruturas dissipativas, que se reproduzem mudando de forma, em que os sistemas tendem a ampliar seus próprios espaços, num movimento que dá lugar ao aparecimento de espaços menos densos19. Torna-se indispensável para uma leitura do ambiente como e enquanto contexto dinâmico; e (f) o conceito de incerteza, em que o conhecimento do estado da matéria e do movimento dos corpos nunca é completamente igual. Desde Zenon a Heisenberg a incerteza é um desafio à inteligência. O conceito de incerteza leva a entender que as teorias são aproximações de conhecimento, onde as certezas são

demonstração, mas tem antecedentes imemoriais no inferno das antigas religiões. Com toda carga de danação, a irreversibilidade é o reconhecimento de que tudo terminará como um mundo frio e escuro. 18 Jacques Monod, op. cit. A noção de irreversibilidade relativa alude às condições em que se encontram processos específicos irreversíveis. Depende mais das condições de demonstração do que se descobre como lei do universo. 19 O movimento de dissipação é sempre limitado ao momento no qual a energia da expansão se iguala ao espaço ocupado, que é, também, o momento em que o desvanecimento causado pela expansão cria novas condições de concentração. Somos tentados a rever as idéias de Prigogine, considerando que as possibilidades de trabalhar com o conceito de dissipação são mais filosóficas que dependentes de demonstrações. No campo social somos levados a pensar em termos de uma dialética da dissipação, que seria acionada pelos efeitos criativos da dissipação de forças conflitantes que permitem espaços de convivência.

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superadas20. Para lidar com a diferença entre a incerteza do ambiente e os efeitos imprevistos desencadeados pela ação social, distinguiremos incerteza e risco, em que a incerteza é da natureza e o risco é causado por iniciativas da sociedade. Nada disso permite pensar que haja situações incidentais mais importantes que o substrato de relações necessárias. O que é incidental se torna importante quando gera relações sistemáticas. O sistema só é sistema porque nele prevalecem relações sistematizantes, isto é, há elementos de coesão maiores e mais eficientes que os elementos de dissolução. A conseqüente questão relativa a por quanto tempo se mantém essa situação de coesão situa os espaços no tempo. Nas palavras de Aristóteles, o espaço é uma propriedade do tempo21. Desde então a polêmica sobre o tempo se sofisticou e passou a abrir novas possibilidades de tempo, mas não escapou da relação necessária entre espaço e tempo22. Para Kant o espaço não é um conceito empírico senão é anterior a nossas experiências porque é uma propriedade das coisas enquanto elas existem23. Diremos que o ambiente se situa na ordem do tempo, em espaços temporalmente definidos. A conseqüente questão relativa à duração dos elementos de coesão situa o ambiente no tempo. Por extensão, estabelece que todos espaços são datados 24. Essas conceituações levam a entender que o meio ambiente sempre está sujeito a alterações e que a compreensão das alterações próprias da natureza é um passo inicial necessário para saber como se comportar para estabelecer políticas ambientais. Nessa condição, a leitura do conhecimento do mundo social está exposta a uma dupla crítica, tal como a formulada por Hegel em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas, em que

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Ilya Prigogine, O fim das certezas, São Paulo, Unesp, 1996. Nesse livro traz uma primeira leitura da noção de estruturas dissipativas, que está ligada ao principio geral de universo friccional, onde sempre há perdas de energia. 21 Aristóteles, Obras completas, Madrid, Aguilar, 1950. 22 Da vasta bibliografia sobre este tema, selecionamos três títulos representativos de abordagens significativas no campo da ciência, que são A natureza do espaço e do tempo de Hawking e Penrose, Tempo, espaço e filosofia, de Christopher Ray e O que é o tempo, G. Whitrow. Para nosso programa de pesquisa neste trabalho é importante ver como o debate entre o absoluto e o relativo e entre premissas de aplicabilidade da termodinâmica, fica uma brecha conceitual - que exploramos adiante – na conexão entre o tempo genérico e o histórico, o que imaginamos e o que fazemos parte. Somos tentados a submeter essas excursões de cientistas modernos ao crivo da questão levantada por Leucipo. O que há é necessário. 23 Emanuel Kant, Crítica da razão pura, 1970. 24 Logicamente, esta observação invalida os supostos de uma teoria regional montada em pressupostos de análise estática.

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discute o mundo natural e o do espírito25. Com ser essencialmente histórico o mundo social absorve a historicidade do mundo natural, criando uma continuidade entre a vida na natureza e na sociedade. Mas o mundo social tem sua própria historicidade que não pode ser reduzida aos termos do mundo natural. Não se pode esquecer que as políticas ambientais são parte de políticas sociais e que o modo de ver o ambiente reflete posturas perante a história. Para tratar estes temas torna-se, portanto, indispensável trabalhar a noção de tempo, em que a ordem do tempo social não pode ser separada de seus fundamentos naturais. No tratamento desses temas é fundamental contar com uma noção de tempo em que se considerem diferentes escalas de duração, desde o tempo geológico, de grande duração, ao tempo social relacionado com a vida humana em sociedade, em que aparece a esfera do cotidiano. O tempo, então, está associado ao espaço, tratando-se do espaço-tempo dos processos e em que há uma temporalidade dos espaços, isto é, trata-se de espaços que estão situados nos tempos dos processos sociais. Diferentes abordagens teóricas do tempo, como as de Heráclito, Empédocles e de Hegel terão que ser lidas como atuais, ao lado das Hawking e Penrose. O paradigma de Leucipo, de negação do acaso e de reconhecer relações necessárias torna-se o eixo central deste trabalho.

Incerteza e risco A noção de risco é característica da sociedade capitalista avançada em que a produção se realiza mediante elencos invariantes de substâncias. A natureza projeta elementos de incerteza sobre a vida social em geral e sobre o sistema produtivo, que são parâmetros de seu desempenho. Países sujeitos a furacões, terremotos, secas etc., convivem com referências de incerteza radical, enquanto outros processos como os de perda de qualidade de solos acumulam efeitos desapercebidos sobre períodos mais longos. Movimentos de longa duração combinam-se com movimentos de curta duração em determinados pontos no tempo que não necessariamente podem ser antecipados. As condições de incerteza aparecem no plano social, representando a falta de certezas

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A Enciclopédia das Ciências Filosóficas [1830] (1997) é a obra síntese do corpo central da filosofia de Hegel, em que ele se propõe articular todo o conhecimento mediante a perspectiva da história.

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suficientes com que opera o sistema sócio-produtivo, no que ele está exposto a causas naturais, tais como vulcanismo e tudo que está com ele associado e no que surgem de comportamentos de massa não racionais. Os fanatismos em geral, os comportamentos religiosos radicais e obscurantistas que assolam a sociedade moderna caem nesta última categoria. Há diferentes condições de incerteza que descrevem a iminência de condições adversas fora de controle, tal como é a incidência de atividade vulcânica, que compreende terremotos de proporções catastróficas, como estes mais recentes do Haiti e do Chile. Cada país convive com um quadro complexo de incerteza cujo perfil nunca está completamente claro, mas sobre o qual sempre se dispõe de elementos suficientes para distinguir um campo de incerteza na escala de catástrofes e de sobrevivência e uma escala de incertezas que podem ser absorvidas, mesmo com danos que bloqueiem o desenvolvimento do sistema, como acontece em sistemas de semi-árido moderado. Por trás do problema mecânico da incerteza há um problema de custos sociais para conviver em ambientes de incerteza crônica. Por exemplo, podem-se definir políticas de longa duração para adaptar o sistema produtivo às condições hídricas da região semi-árida, mas não há justificativa alguma para supor que o clima da região semi-árida melhore de modo significativo em tempo razoável. A incerteza, portanto, é um dado próprio do sistema, que incidirá sobre as condições de vida e constituirá um antecedente para os riscos de cada empreendimento. Entretanto não se deve confundir incerteza com acaso. A incerteza é uma condição de conhecimento que é parte da esfera do que é necessário, enquanto o acaso indica situações inesperadas que não são previsíveis porque não são necessárias em relação com processos anteriores. Chamaremos de incerteza ambiental, ao quadro de incerteza tal como ele chega à sociedade em seu conjunto e em função das necessidades de sobrevivência que respondem pela coesão da sociedade. Logicamente, há práticas que elevam as margens de incerteza, porque interferem na reprodução de processos ativos que nem sempre são plenamente conhecidos. A incerteza ambiental terá sempre as duas conotações de impacto na vida social e de efeitos acumulativos no próprio ambiente natural. O desaparecimento de espécies vegetais e animais pode ser uma indicação essencial neste sentido do mesmo modo como a perda de tradições e a monotonização da vida moderna constituem perdas das condições de vida das maiorias.

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A questão essencial da irreversibilidade A questão central subjacente em toda a economia do ambiente é a irreversibilidade, que constitui uma tendência geral à qual estão submetidos todos os sistemas naturais em diferentes intensidades. A irreversibilidade atinge o sistema sócio-produtivo simultaneamente de diversos modos e com intensidade variada, com compensações introduzidas pela sociedade sobre períodos e espaços definidos. Por exemplo, os grandes sistemas de irrigação e de canais que foram desenvolvidos gradualmente em países europeus como na Holanda modificam radicalmente as condições de habitabilidade, assim como já tinha acontecido no Peru e no México antigos. Para os fins práticos de uma análise social do ambiente distinguem-se três situações segundo os efeitos finais da irreversibilidade, que são os seguintes. Primeiro, situações em que a irreversibilidade se realiza sobre períodos mais longos, ou em todo caso que excedam os horizontes de tempo de reposição do sistema produtivo, portanto, em que é uma referência geral de estratégia em muito longo prazo. Corresponde às estratégias de industrialização com recursos importados, que são praticadas pelas grandes potências, principalmente nos usos de minerais. O desenvolvimento de novas fontes energéticas substitutivas do petróleo é o movimento mais importante nesse sentido. Segundo, uma situação em que a irreversibilidade atinge sistemas essenciais do sistema produtivo, em que o aspecto mais importante é o uso de água, que condiciona a operacionalidade de todos os sistemas instalados. Nesta situação colocam-se as avaliações de programas regionais e setoriais que podem ser redirecionados. É o plano por excelência em que se podem

formular

estratégias

ambientais.

A

terceira

situação

corresponde

a

empreendimentos específicos em que convergem os efeitos dos anteriores e de cada um desses próprios empreendimentos em que há efeitos lineares e interativos. Vê-se, portanto, que o desafio representado pela irreversibilidade transcende o escopo de qualquer programa em particular, mas que todos os empreendimentos com porte suficiente para afetar a operacionalidade do sistema sócio-produtivo precisam contar com referências das condições de irreversibilidade em que operam. Há efeitos de empreendimentos isolados e efeitos por agregação, que logicamente se estendem no tempo. Efeitos de grandes barragens e efeitos de concentração de pequenos

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empreendimentos, como o desmatamento para uso doméstico de lenha ou o desmatamento para produção de carvão por parte de grandes empresas. A complexidade dos fatores que afetam a irreversibilidade ambiental do sistema sócioprodutivo leva a buscar referências de comparabilidade de processos sujeitos a entropia, ou em que se identificam com processos sistêmicos de perda que deslocam os sistemas de modo irreversível. Desse modo revela-se o significado histórico da relação entre o sistema sócio-produtivo e sua concretização no sistema tecno-produtivo. Como passo inicial de aproximação ao tema cabe considerar o uso de um coeficiente de irreversibilidade que indicaria a relação entre as perdas gerais de um sistema e a entropia a que ele está submetido. As perdas gerais levam incluídos os efeitos da organização social, onde a irreversibilidade seria uma propriedade específica em cada sistema específico enquanto a entropia refletiria os efeitos físicos finais do processo que combina os usos de recursos e seus efeitos sobre o potencial de recursos disponível. Mas, obviamente, a entropia atinge sistemas específicos e seus efeitos incidem na composição do sistema produtivo, identificando-se com as mudanças de rumo de tecnologia que se realizam em cada sociedade. Além disso, entende-se que as condições específicas de irreversibilidade em cada sistema variam no tempo, refletindo interferências do sistema natural e das condições sociais de uso dos recursos. Em suma, trata-se de como a irreversibilidade é socialmente processada e que é atingida pelos novos fatores de risco que incidem sobre o sistema durante o “desenvolvimento das forças produtivas”. Em suma, a irreversibilidade tem a cara do tempo em que acontece.

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3. O significado social do ambiente e a irreversibilidade A meta da ciência é entender a diversidade da natureza. John Barrow

O ambiente do mundo social O ambiente é significativo e significante para o mundo social como lugar e condição da vida social e não de uma presença genérica do homem individualmente considerado. Há uma relação orgânica entre a visão histórica e a percepção dos problemas atuais e imediatos que se identificam como de ambiente. O que dá sentido ao ambiente é sua socialidade, o modo como ele modula a formação da sociedade e se torna imperativo aos indivíduos. A polarização temática do ambiente desenvolve novo relacionamento entre o coletivo e o individual, entre movimentos sociais e situações pessoais. O essencial é a relação entre formas de organização social e modos de uso do ambiente, onde se distinguem os aspectos diretos e imediatos da organização social e aqueles outros em que ela representa estruturas de poder que não estão localmente visíveis. Bancos proprietários de empreendimentos de fazendas de produção de óleo de dendê não estão localmente visíveis, tal como não se vê localmente o verdadeiro significado das plantações de seringueira para fábricas de pneus, mas a presença deles condiciona o funcionamento de comunidades de pequenos produtores e determina condições específicas de reprodução do ambiente. Há um controle visível das relações das sociedades nacionais com o ambiente e um controle oculto, que se realiza através das redes de financiamento e dos mecanismos de cooptação cultural. A verdadeira internacionalidade da produção cacaueira, que determina as formas de produção encontra-se no controle internacional da comercialização e em que a excelência na produção de chocolate é controlada por empresas multinacionais em dois ou três países europeus. O ambiente da região semi-árida modula os hábitos das pessoas, mas são pessoas habituadas ao semi-árido que concebem sua vida cotidiana que é influenciada pela mobilização da região semi-árida para produzir produtos de exportação. Sem uma referência explícita ao sistema mundial de poder a questão do ambiente fica indeterminada, do mesmo modo como fica indefinida sem um fundamento científico.

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Perde-se a combinação de aspectos quantitativos e qualitativos da produção e do consumo. Por exemplo, não se pode avaliar o significado social da perda de biodiversidade causada pela proliferação de matas de eucalipto se ela não é comparada com o processo histórico de destruição da mata atlântica. A organização da vida social envolve uma solução constante de problemas de sobrevivência, que é a razão do funcionamento da vida econômica e da formação e conservação de poder, que está na origem da formação dos impérios e das grandes empresas. Ao reduzir a sociedade a um homem genérico exclui-se a historicidade da vida atual e tomam-se os comportamentos dos grupos sociais somente por suas manifestações imediatas. No entanto, é a visão histórica que nos permite apreciar as mudanças na relação entre a sociedade e o mundo natural. Mostra as soluções dos problemas imediatos de sobrevivência frente às condições não imediatas em que as gerações futuras devem sobreviver, pelo que as soluções imediatistas se tornam problemas, tal como acontece com a adução crescente de água para uma cidade, que pode gerar novos problemas para a região onde ela se encontra. Os problemas sociais do ambiente vêm em crescendo desde o início da primeira revolução industrial, alcançaram novos patamares com as duas guerras mundiais e com a generalização dos usos de petróleo. Com a grande urbanização chegaram a pontos de ruptura definitiva da civilização com as ameaças nucleares, com o alastramento da pobreza crítica e com o modo destrutivo da produção industrial. Há um aumento exponencial da produção mineira e do desmatamento nas regiões periféricas da economia mundial, que corresponde ao fim de um ciclo de exploração intensiva de recursos nos países europeus. No Brasil, as cifras que se publicam de variações do desmatamento não refletem o fato de que esse desmatamento opera em escalas muito superiores ao de décadas atrás e responde a diferentes abordagens do grande capital. Hoje, as duas grandes exceções desse movimento são os Estados Unidos e a China, que continuaram explorando intensamente recursos não renováveis altamente contaminantes como carvão, segundo estratégias políticas de produção econômica. A distância entre os discursos oficiais e as opções de poder tornou-se tão clara que passou a agir contra a credibilidade das grandes potências. A questão certamente não está na quantidade de armamentos, porém na ideologia relativa ao seu uso, que logicamente não se limita à competência técnica para usá-los. Os países potencialmente

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beligerantes precisam de uma ideologia que justifique seu uso de violência contra outros ou como ferramenta para controle do ambiente. A manobra que sempre foi usada para essa finalidade é a de encontrar um inimigo, externo ou interno, que pode ser estabelecido como potencialmente agressor, mesmo quando não tem condições técnicas para agredir, como foi o caso da invasão do Iraque governado por Saddam Hussein. Politicamente, o mundo hoje tem passado por mudanças profundas no relativo à definição de esferas de influência e modos de poder direto e indireto, tornando-se impossível ignorar o advento de uma nova multipolaridade. Como tese essencial à argumentação que se apresenta neste estudo entende-se que o poder está organizado entre focos de irradiação, espaços nacionais invioláveis e espaços politicamente abertos. Por fora dos espaços oficiais de poder, encontram-se espaços de poderes interpenetrados com os governos, que são as grandes empresas e espaços de criminalidade organizada, que têm se mostrado resistentes às políticas de repressão, mesmo das maiores potências26. Os grandes cartéis de traficantes não possuem armas nucleares, mas causam mortes como se as tivessem e não poderiam ser eliminados com armas nucleares. O aumento da população e a urbanização determinaram mudanças irreversíveis nos usos de recursos, especialmente de energéticos, na sobrevivência da população mas conduzidos e agravados pelos efeitos da concentração de riqueza. A industrialização aprofundou e tornou irreversíveis diversas tendências de transformação do ambiente, criando novos conceitos da vida em sociedade e de suas limitações. Na linguagem do poder mundializado, a hipótese de uma guerra nuclear tornou-se uma alternativa que não se descarta e pode representar a eliminação de grande parte da humanidade. Em resumo, a questão ambiental se agrava inexoravelmente pela combinação de aumento da

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Nestes termos, coloca-se o essencial de uma abordagem das relações políticas internacionais, que contempla as posições relativas das grandes potências e dos diferentes grupos de países em um contexto mundial, que dificilmente poderia ser visto como caótico. Este novo sistema de poder sistema de poder combina aspectos políticos, econômicos e sociais – migrações espontâneas ou orientadas – com componentes de poderio militar ligado a controle social e de tecnologia. Há movimentos concomitantes e contraditórios que se concentram em algumas nações, que se tornam focos de irradiação de poder, independentemente de que sejam hegemônicas ou não. França e Alemanha não são hegemônicas, mas irradiam influência de modo proporcionalmente maior que os Estados Unidos que têm a hegemonia militar e constituem o maior centro de atração de capitais e de consumo. A influência da Itália na civilização ocidental transcende em muito seu poderio econômico e militar. Somos levados a apreciar o significado da pluralidade nas participações das nações no mundo em geral, que se distancia dos esquemas simplificados e destinados a rotular as nações em grupos identificados pela nação mais poderosa.

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população com aumento de consumo, com perda de recursos naturais e com controle político dos usos dos recursos disponíveis. Revela-se plenamente o caráter político do problema. A polêmica acerca do ambiente reflete o modo como os usos de recursos são percebidos por diferentes grupos e processados como instrumento de poder.

A

construção de uma visão do ambiente como um meio de se contrapor aos desequilíbrios e às perdas irreparáveis de recursos é um modo de poder que se identifica com a emancipação dos povos, mas que se confunde com uma rejeição à modernização, que é outro modo de recuar para uma visão campestre do mundo, voltando-se para manter formas primitivas de vida, sem perceber que esse é, justamente, o modo de condená-los ao extermínio. Defender a proteção radical do ambiente é um modo de discordar dos rumos seguidos pela revolução industrial, entretanto sem ter uma opção válida para a expansão da indústria. Passados quarenta anos da conferência sobre meio ambiente do México27, pode-se chegar a uma apreciação preliminar de que a disputa pelo ambiente reflete as lutas sociais pelo poder e a conseqüente constituição de uma ordem política que controla a relação da sociedade com a natureza. As crises do padrão de acumulação e as disputas pela supremacia mundial resultam em modificações radicais no modo de tratar com o ambiente. Por isso, desde seu primeiro momento, o discurso sobre o ambiente carrega os conflitos de interesses focalizados nas relações entre a concentração social de poder e a relação da sociedade com o meio natural.

Significa uma reversão do discurso

iluminista da modernidade que se propõe controlar a natureza e não a se adaptar a ela28. O discurso das nações ricas sobre o ambiente contém uma doutrina de como as demais nações devem se comportar em matéria ecológica, mas não prevê sanção alguma àqueles países ricos e poderosos que são os campeões da poluição. O discurso das nações ditas emergentes conflita com interesses nacionais no binômio crescimento do produto social - níveis de vida e não há razão alguma para supor que esses conflitos de 27

Surpreende constatar que a Primeira Conferencia Latino-americana Sobre Ambiente realizada no México em 1971 e onde se decidiu pela criação do PNUMA é solenemente ignorada pela literatura especializada, que só reconhece a Conferencia de Estocolmo. 28 Por exemplo, a diferença entre encontrar um estilo de produção adequado ao semi-árido ou desenvolver um sistema de irrigação que aproveita apenas algumas terras e cria uma diferença entre produção irrigada e não irrigada. Ora, um estilo de produção adequado significa combinações de formas de organização social da produção com soluções técnicas, envolvendo desde seleções de espécies a manejo de materiais de construção e práticas de trabalho, em seu conjunto tornando necessárias modalidades específicas de qualificação dos trabalhadores.

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interesse sejam contornados com soluções paliativas. O estudo da economia do ambiente envolve análise e política, que é como a sociedade se manifesta em relação com a reprodução do ambiente. Hoje está claro que há uma diferença entre políticas ambientais defensivas e políticas que modificam a dinâmica da relação entre o mundo social e o da natureza. A política de mitigar efeitos negativos no meio ambiente, aceita como referência dos órgãos internacionais, representa uma aceitação tácita da inevitabilidade dos efeitos negativos da produção industrializada, que é, justamente, o que se pretende questionar desde Kyoto. Tais diferenças serão abordadas adiante no capítulo sobre estratégias ambientais. A questão em pauta é a capacidade dos governos de imporem restrições de uso que sejam mais importantes que os objetivos individuais de uso para renda. A noção de ambiente situa a vida social no meio natural, isto é, ancora a vida social em condições naturais específicas, onde a natureza retoma o significado próprio, funcional, que teve originalmente29. Mas sempre em relação com novas situações de população e de tecnologia. A presunção de que a população sempre cresce geralmente está correta, mas não se aplica a todos os povos e a todas partes do mundo, tal como se vê hoje que diversos países europeus têm taxas negativas de crescimento demográfico. O argumento malthusiano de que o crescimento da população é uma tendência inevitável e uma praga da civilização foi um argumento de poder que serviu para sustentar políticas de controle de natalidade. Mas a reversão da tendência de crescimento demográfico certamente não foi obra dos órgãos internacionais senão de preferências de grupos sociais pressionados pelos desejos de consumo e pela incerteza de renda. A tendência espontânea das sociedades atingidas pela industrialização a terem menos filhos soma-se à higiene e à medicina preventiva reduzindo a taxa de natalidade e negando o argumento básico malthusiano.

O erro básico de tratar a população como um simples quantitativo

isolando a análise demográfica da social revela-se de um simplismo incompatível com a complexidade do fenômeno social.

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Uma revisão penetrante desse tema foi feita por Alfred North Whitehead, em seu Sobre el concepto de naturaleza (Madrid, Gredos, 1968).

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As transformações do meio físico são percebidas segundo elas atingem a vida social e sua territorialidade, isto é, o modo como a vida social cria, continuamente, os espaços onde se realiza. Assim, a territorialidade surge da combinação dos processos sociais com situações em que os processos naturais são os elementos iniciais de processos de produção e de consumo sobre os quais se organiza a vida econômica. Mas o fundamento do interesse social pelo ambiente decorre da capacidade de controlar os usos do ambiente, que é um poder político que surge da formação de poderes capazes de aglutinar interesses nacionais. A rigor a função produção econômica é uma manifestação de poder político de organizar o trabalho e os recursos naturais.

Política e poder O conceito social de ambiente surge, portanto, de uma leitura política da natureza. O discurso político do ambiente é exatamente o contrário da suposta despolitização dessa disciplina, que se torna um mecanismo de composição entre interesses econômicos e riscos ambientais. A percepção da relação da sociedade com o ambiente é, a seguir, a percepção de políticas ambientais, que são reconhecidas como manifestações de esferas de poder controlando o acesso a recursos. O discurso político do ambiente transmite uma relação de dominação que estabelece o escopo e a efetividade das políticas ambientais. Quais problemas são reconhecidos, quais políticas são indicadas e quais são executadas? Muitos países têm excelentes legislações ambientais, como o Brasil, mas o maior problema enfrentado em política ambiental é a distância entre a legislação e a execução das leis que são evadidas ou contornadas30. A explicação do significado social do ambiente é uma tarefa que ultrapassa o escopo das disciplinas que estudam o ambiente e chegou ao centro de uma leitura ultra moderna da reprodução social (TAYLOR, 2004), pelo que o reconhecimento da tensão ambiental passa para uma antropologia da emancipação. Emancipação se entende como a do ser social em sua condição de integrante de sociedades ao contrário de subordinação, que tem uma relação genética com colonialismo. 30

O caso mais notório é o das políticas de compra de carbono, que se tornam verdadeiros cheques em branco aos grandes capitais para a realização de empreendimentos poluidores.

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O ambiente torna-se socialmente relevante naquilo em que representa um parâmetro da reprodução social, portanto, segundo a trajetória de mudanças na relação entre a sociedade e o meio físico. Um tsunami numa região deserta e remota torna-se relevante quando seus efeitos chegam às regiões habitadas. O esfriamento que aconteceu nos primeiros quinhentos anos da Era Cristã determinou migrações que resultaram em invasões na Europa e na Mesoamérica. O atual aquecimento tem o potencial de alterar as condições de povoamento do hemisfério norte. Mas as nações ricas presumem que controlam as migrações e nações periféricas, como o Brasil, não reconhecem que as migrações são problemas insolúveis, apesar de não disporem de estudo algum que considere o conjunto dos diversos movimentos migratórios e de seus efeitos sobre os padrões de povoamento. O caso mais polêmico é o do afluxo de migrantes de diversos países aos Estados Unidos, que resulta de uma pressão constante, alimentada por desigualdade de renda e de opções de ocupação, que combina fatores de atração e de expulsão, bem como interesses em contratar trabalhadores baratos, ao tempo em que contêm uma invasão de efeitos incalculáveis31. Importa como a sociedade absorve as transformações do meio físico e as converte em regras sociais. Para isso, ela terá que trabalhar com cenários de totalidade dos movimentos sociais e considerar que os diversos movimentos das pessoas não são somente movimentos de trabalhadores, mas compreendem transferências que modificam de modo irreversível os padrões de usos de recursos. Por exemplo, os movimentos do século XIX da Europa para as Américas determinaram modificações nos padrões de povoamento e da formação cultural nos países receptores, que vão muito além de efeitos no mercado de trabalho. As alterações do ambiente que se realizam em longo prazo parecem ser menos urgentes que as imediatas. Entretanto, um melhor conhecimento das inter-relações entre os fenômenos do ambiente pode mostrar que aquelas alterações atribuídas ao longo prazo podem tornar-se mais imediatas e que a noção de tempo tem que ser revisada continuamente. Em cada momento coincidem processos de diferentes durações, em que 31

Na verdade essa invasão já determinou mudanças profundas no relacionamento dos Estados Unidos com as nações emissoras dos migrantes, cuja presença foi decisiva na formação da sociedade industrial.

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o curto e o médio prazo estão impregnados de relações de causalidade do longo prazo. O tempo é uma referência uniformizada da produção industrial, que ganha novos significados ao mudarem os tempos do processo de produção. Mas ganha novas dimensões quando se alteram as referências sociais de emprego. Na prática uma inovação tecnológica só se torna socialmente relevante quando se conhecem seus efeitos em termos de emprego e renda. A consciência dos tempos das alterações do ambiente se completa com uma consciência de suas escalas espaciais. Há processos de alcance mundial com maior incidência em certos lugares e há processos cujo impacto local é determinante da vida social. O desenvolvimento da Geologia e da Meteorologia desde 1960 deu lugar a novos projetos de pesquisa que alteram a compreensão dos movimentos dos continentes e seus efeitos locais. Os efeitos do vulcanismo parecem ser muito localizados em suas manifestações imediatas, mas os efeitos da acumulação de gelo em algumas partes do planeta têm efeitos indiretos maiores que os imediatamente visíveis. Socialmente, o ambiente se vê segundo ele é objeto de um sistema de poder que estabelece aqueles que são beneficiados do uso de recursos e aqueles que são afetados negativamente por esses usos. Em torno do ambiente sempre há conflitos de interesses que nem sempre têm solução à vista. A relação da sociedade com a natureza sempre foi uma relação de poder, que define quais grupos sociais lucram com o domínio da natureza e quais outros são prejudicados por ele. Isso significa que os estudos do ambiente, bem como as políticas do ambiente são eventos impregnados de ideologia e refletem os sistemas de interesse da sociedade de hoje, com sua internacionalidade e com suas áreas de poder local. Uma leitura atual do valor social do ambiente leva a considerar os efeitos dos processos de colonização, que fizeram com que os recursos de uma parte do mundo fossem apropriados por poucas nações, assim como leva a rever o significado político da desigualdade econômica, que vai desde desmatamento a mineração e esgotamento de reservas minerais. O reconhecimento de que há uma tendência à aceleração do esgotamento de reservas não renováveis põe por terra as análises econômicas baseadas em escassez relativa que não contemplam a alternativa de esgotamento total de determinados recursos.

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Pode-se considerar que a noção de ambiente que foi absorvida pelos governos dos países ricos desde 1972 foi produzida por órgãos internacionais e nacionais representativos de nações poderosas, mas que foi modificada, desde quando foi apropriada por grupos sociais de nações emergentes e por grupos dissidentes dentro das nações poderosas. É preciso registrar que a adoção do tema do ambiente pelos países mais ricos no momento em que pretextavam limites do crescimento foi tomada como uma manobra imperialista de desviar a atenção dos problemas de desenvolvimento econômico emancipado. Essa visão tornou-se inoperante porque excluiu os aspectos de conflitos de interesse que se transferem de uma situação a outra com diferentes ordens de custos locais. Assim, toma-se aqui necessário introduzir um conceito de custos de transferência para designar os novos custos sociais que surgem de transferirem-se custos atuais para o futuro. Há custos de transferência que são optados pela sociedade e outros que passam, sub-repticiamente, por interesses de grupos poderosos. Entende-se que se trata de desenvolver toda uma nova análise de custos sociais, que escapa ao plano deste trabalho, mas que se torna uma peça necessária para a construção de uma política do ambiente socialmente orientada. Hoje há um significado de reivindicação de correção de perdas causadas pelos países industrializados, bem como de proteção de áreas consideradas mais sensíveis. As opiniões das nações ricas tornaram-se muito menos importantes para os demais, que reconhecem nelas a herança do colonialismo e passaram a considerá-las, em grande parte, como manifestações hipócritas de interesse e o significado essencial do imperialismo (IANNI, 1974). Ao mesmo tempo, há políticas dos países mais poderosos de transferirem para os mais pobres a mineração mais contaminante como tem feito o Canadá e em geral, de realizarem sua produção com recursos dos países mais pobres, tal como vem fazendo a China.

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As teses veiculadas sob o título geral de “limites do crescimento”32 definem uma capacidade das nações mais ricas para estabelecerem que são fiadoras dos recursos do mundo e que têm o poder de decidir dos usos de recursos por parte das demais nações. Em suma, a noção de ambiente é uma noção politicamente determinada, que progride segundo se desenham os meios e os modos de uma transformação social plural, em que se manifestam pontos de vista de grupos sociais até então ignorados. A formação de um conceito de ambiente por parte da sociedade civil que incorpore as diferenças de percepção de classes sociais é um processo que se descolou do primeiro, mas que tomou outros rumos, marcados pela reação de organizações locais contra os efeitos localizados do grande capital. Alguns exemplos mais destacados dessa luta estão na reação contra a poluição de rios e do mar por parte das grandes empresas, especialmente de exploração de petróleo e a agressão a florestas, que revelam uma complexidade de comportamento que não pode ser ignorada.33 Entretanto é uma constatação que revela as tensões entre os objetivos de sobrevivência que em muitos casos incorrem em destruição ambiental – sobre exploração de fauna e flora e desmatamento – e os objetivos da acumulação de capital que coisificam os sistemas de recursos e subordinam seu aproveitamento aos interesses articulados do capital.

O controle de água e energia Água e energia são as duas grandes referências que nos permitem situar a questão do ambiente. São constantes, mas será que se comportam sempre do mesmo modo? A divagação de Barrow (1994) sobre constantes variáveis ajuda a ver como os papéis desses elementos mudam, não só por razões quantitativas como por condições qualitativas das variações quantitativas. Se sempre houve um ambiente não se sabe qual foi seu papel na determinação das mudanças de muitas sociedades. Se os maias efetivamente se mudaram por falta de água, a maior parte das outras civilizações americanas se consolidou mediante controle de situações de água. Se tomarmos essas civilizações do altiplano andino e da meseta mexicana, seremos tentados a propor uma

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Daniela Meadows, Dennis Meadows, Jorgen Randers, William Behrens, Los limites del crecimiento, (México, Fondo de Cultura Económica, 1972) 33 Ver meu próprio trabalho sobre o problema causado pela produção de celulose no sul da Bahia

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inversão de atitude da análise ambiental, que deveria tomar como variável o consumo de recursos e como constante o interesse social no controle de um desses recursos ou na combinação dos dois. O epicentro dos problemas do ambiente é o controle de água e energia que se tornou um problema de ordem mundial, quando ficou evidente que algumas das nações mais ricas não têm água suficiente para sustentar seu atual sistema socio-produtivo e já recorrem a estratégias extremas para garantir seu suprimento de água34. O significado estratégico do controle de água e energia já estaria colocado desde a Segunda Guerra Mundial, que em grande parte foi uma guerra pelo controle do petróleo. Os golpes de Estado que assolaram o Oriente Médio na década de 195035, assim como a luta pelo petróleo em países africanos testemunharam essa disputa de poder. No mesmo sentido é inevitável entender que a pressão da OTAN sobre a Libia nada tem a ver com defesa de civis mas representa os interesses neo-colonialistas liderados pela França 36. O desdobramento desse conflito em torno das chamadas fontes alternativas de energia ficou registrado em congresso realizado pelas Nações Unidas sobre formas alternativas de energia em 1960. Desde então, diversos documentos oficiais coincidem com as principais tendências de pesquisa científica que apontam a um bloqueio do sistema socioprodutivo, com pontos de maior tensão nas grandes cidades. O controle de energia tornou-se o fundamento da geopolítica mundial (KHANA, 2008; FONT & VICENTE, 2006), tendo como centro o uso de petróleo e derivados, mas envolvendo composições cada vez mais complexas de fontes e usos de recursos. Os desenvolvimentos de ciência e tecnologia para produção e transporte de energéticos37 levam ao encaminhamento do planejamento energético, começando com

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Noticias de que navios chineses vêm buscar água fora dos limites territoriais do Brasil na foz do Amazonas, com equipamentos de tratamento de água, são parte dessas estratégias extremas. 35 A disputa pelo petróleo do Irã e o golpe de Estado que derrubou o Dr. Mossadegh foi, possivelmente, o conflito de maior escala nesse contexto, mas certamente foi parte de uma estratégia global de controle das principais fontes de petróleo. 36 Para uma leitura mais circunstanciada do colonialismo cabe ver de Marc Ferro, História das colonizações (2006) que focaliza nas aventuras internacionais dos países europeus, inclusive da Rússia, mostrando a reiterada ambigüidade do discurso colonialista. 37

Observe-se que somente na virada da década de 1960 para 1970 surgiram super petroleiros, substituindo navios de 30.000 tons. por outros de 100.000 e 150.000 tons. A revolução dos transportes modificou a logística e o impacto ambiente do setor petróleo, refletindo, adiante, em uma opção

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um quociente de variação de reservas sobre variação de consumo e continuando com um indicador de eficiência no aproveitamento da capacidade instalada. Encontra-se aí uma colocação relativa aos aspectos quantitativos de disponibilidade e custo da energia e aspectos qualitativos do modo de uso de energia, que significam um compromisso com a qualidade do ambiente. Sobre uma tabela técnica de efeitos de poluição – por exemplo, desde o uso de carvão ao de energia solar - pode-se trabalhar com medidas de dano ambiental correspondendo ao custo social de manter ou aumentar a disponibilidade de energéticos. No entanto, para uma política social de energia seria necessário traduzir essa tabela em termos de acessos aos serviços de energia, que é um modo de tratar de uma distribuição real da renda. A conexão entre os problemas de energia e os de água é evidente em vários aspectos, mas não em todos. Trata-se de usos diretos e indiretos de água colocados em termos de compatibilizar o curto e o longo prazo. No relativo a água o privilégio do desperdício é fundamental, quando há um custo socializado da água que entra nos sistemas urbanos38. Água para gerar energia e energia para aduzir, usar e expulsar água39. Os dois grandes fatores de restrição – a localização da água e a dos energéticos – combinados dão em uma malha de potenciais e restrições de usos de recursos que situa o perfil dos problemas do ambiente. Custos crescentes de transporte de água se comparam com os custos de práticas de economia de água, compreendendo reciclagem e moderação de consumo. O crescimento inercial do consumo, que se infere da tendência histórica de crescimento demográfico e de difusão de padrões de consumo, completa esse quadro, indicando a pressão social que se exerce sobre esses dois componentes básicos40.

estratégica de focalizar a produção em grandes campos e aceitar grandes obras de infra-estrutura para transporte. 38 O desperdício de água no Brasil é geralmente três vezes superior ao que os sistemas de água potável podem suportar economicamente, mas os usos suntuários de água, que representam as distâncias sociais, são ainda maiores e não são objeto de controle social além dos preços que costumam ser inferiores aos custos de produção. 39 Finalmente, o saneamento básico é um uso de energia para expulsar água que será adiante objeto de novos usos de energia para reciclagem ou que será descartada do sistema. Na formulação clássica desse problema os dois usos de água seriam complementares em um modelo técnico integrado que reflete a composição social de usos. A leitura social do problema mostra que o desperdício é um ato de poder da classe dominante ou tolerado pela classe dominante. 40 A pressão social sobre o meio natural pode ser representada em uma função como segue: P (f) r.t Onde p significa a pressão sobre o sistema de recursos, r representa o quantum de recursos e t as tecnologias com que eles são aproveitados. O perfil gráfico da função pressão tenderá a mudar de

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inclinação quando se encontram novas reservas de recursos ou quando surgem alterações da base tecnológica que permitem reavaliar o aproveitamento dos recursos disponíveis.

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4. Incerteza, risco e crise em ambientes instáveis

Desde a grande crise de 1930, a sociedade burguesa ocidental sabe que vive em um ambiente marcado pela incerteza, em que as condições de antecipação de comportamentos dos agentes econômicos estão sujeitas a variações imprevistas e a mudanças de rota. As políticas de controle das crises têm alcançado resultados variáveis e a custos sociais elevados, principalmente na forma de desemprego, redução das expectativas de vida profissional com inúmeros efeitos colaterais, além de não conterem a tendência central à concentração do capital. A incerteza no mundo social é mais complexa que a apresentada pela Física, porque envolve fatores comportamentais, dentre os quais as condições de independência dos agentes sociais e o poder incontrolado do grande capital. Essa incerteza era atribuída a fatores que alteram as condições de operacionalidade do atual sistema produtivo ou a eventos abruptos, como vulcanismo, que são externos ao sistema produtivo. Os efeitos em longo prazo das substituições de tecnologia não estão claramente explicados e é preciso admitir que em um horizonte secular elas significam uma queda do efeito emprego dos investimentos novos. O fator incerteza ou a acumulação de riscos, que pressionam a incerteza, tornouse um dado do problema que não pode ser ignorado, mas que continua latente. O reconhecimento de processos caóticos, com o pleito por uma nova ciência do caos (GLEICK, 1989) simplesmente mostrou a necessidade de buscar leis do caos (PRIGOGINE, 2002) que superam a concepção inicial de que o caos é um universo cujas regras não conhecemos41. Passa-se a falar de caos em relação com condições especiais de previsibilidade, que variam no espaço-tempo dos processos sociais. O ambiente pode ser apresentado por meio de modelos caóticos deterministas e por modelos não deterministas segundo a definição dos problemas ambientais se torna mais 41

Diz Prigogine (2002), que o caos não é necessariamente imprevisível, mas é conseqüência de fatores de instabilidade. Também já nos tinha dito que há mais instabilidade na periferia que no centro dos sistemas. No relativo ao sistema da economia mundial será preciso fazer a correção de reconhecer que coexistem movimentos instabilizantes gerados no centro com movimentos oriundos da periferia. Instabilidade que aparece em sistemas altamente industrializados, que não conseguem ajustar seus programas de produção à demanda internacional e instabilidade começada em sistemas menos industrializados, em que as colheitas de produtos demandados pelo centro são inesperadamente afetadas pelo clima, tal como acontece com as safras de cana de açúcar.

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refinada e considera mais hipóteses de incerteza. A questão se coloca em termos de identificar quais variáveis são indispensáveis para definir a reprodução de um sistema ambiental e quais outras podem ser descartadas. Continuando com o exemplo dos sistemas hídricos não há como descartar a interferência de processos de açoreamento de barragens, assim como não se pode ignorar que a escolha de culturas agrícolas tem efeitos indiretos na carga de agrotóxicos. Da torre de observação das ciências sociais, percebem-se processos com diferentes velocidades e que mudam de percurso às vezes de modo inexplicável. Mas se são percursos de processos reconhecidamente necessários, como os da produção de trigo ou de feijão, então há referências previsíveis e confiáveis em qualquer sistema, que podem balizar um dimensionamento do risco e definir políticas de controle de risco. Nesse contexto situam-se hoje as atividades de multinacionais que controlam a produção de sementes, contribuindo para reduzir as variedades de espécies, em um encurtamento da biodiversidade que se torna um inegável fator de poder. Recuperar o controle sobre as variedades de cereais e leguminosas torna-se um objetivo necessário das nações ascendentes que terão que enfrentar interesses de grandes capitais. Nesta linha de raciocínio vê-se que a incerteza em geral toma a forma de horizontes de incerteza específicos em tempo e lugar, semelhantes aos que são encontrados por aviões em vôo, por isso, que passaremos a denominar de horizontes móveis. É possível traçar mapas de incerteza, mediante análises de probabilidades com cenários alternativos e análises de sensibilidade para identificar a quais variáveis os sistemas são mais sensíveis. Mas o problema social consiste em identificar as condições de liberdade dos agentes, com suas respectivas visões de futuro para influírem nos seus respectivos horizontes móveis. A incerteza em geral toma a forma de horizontes de incerteza específicos em tempo e lugar, semelhantes aos que são encontrados por aviões em vôo, por isso, que passaremos a denominar de horizontes móveis. Segundo uma progressão de situações específicas é possível traçar mapas de incerteza, mediante análises de probabilidades com cenários alternativos e análises de sensibilidade para identificar a quais variáveis os sistemas são mais sensíveis. Mas o problema social consiste em identificar as condições de liberdade dos agentes, com suas respectivas visões de futuro.

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Estas são observações gerais que interessam igualmente a todos, mas passamos a descobrir que há diferenças sensíveis entre a percepção de condições de incerteza por parte de nações que têm o poder de interferir na incerteza e pelas que são apenas objeto desses movimentos. Há diferentes margens de liberdade em certos campos específicos, mas alguns campos são determinantes dos outros, como é o caso da energia nuclear. Por isso é tão interessante a revisão da teoria do risco, tal como ela se desenvolve na Europa. A percepção de que o sistema sócio-produtivo mundial enfrenta riscos crescentes e incontroláveis ganhou espaço desde o acidente de Chernobyl, que nada mais fez que alertar sobre políticas de risco empreendidas pelas nações mais ricas, por um conjunto de razões que vão desde a defesa de seu status de poder até os níveis de conforto a que estão habituados e a pressões de grandes empresas. É um acidente identificado com os usos, inclusive inadequados, de uma fonte de energia, que tem sido característica de alguns países ricos, que agora lucram com a exportação de equipamentos para países não ricos, procurando reter o controle tecnológico do setor. Os riscos, tratados por autores como Beck, Habermas e Giddens, passaram a ocupar o primeiro plano de um questionamento que deve começar por argüir as condições de incerteza em que o sistema funciona. É uma teoria européia do risco que precisaremos decodificar frente a nossa experiência. Os maiores riscos, como de fracasso do projeto de poder da multilateralidade restrita dos países mais ricos, não são mencionados nesse contexto, no qual, entretanto, fica mais claro que a conta de energia do inverso dos países europeus se torna mais difícil de pagar. Não há como não que a tendência recorrente à crise na economia européia está ligada a sua deficiência energética e a sua dificuldade para adquirir energia a preços que não comprometam sua eficiência econômica. Basicamente, a Europa se torna dependente da economia superavitária da Rússia que hoje controla seus próprios recursos. Diremos que há realmente uma acumulação de riscos novos sobre riscos com que o sistema já operava e em que há um problema de maior escala a ser tratado, relativo a como as sociedades nacionais e as regiões processam os riscos com que vivem. A novidade é que a nossa percepção de riscos é muito diferente da dos europeus e norte-americanos, dado que o maior risco de esgotamento de recursos acontece aqui onde nossos recursos têm sido vistos como fonte abastecedora daqueles outros países.

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Cabe argüir que há realmente uma acumulação de riscos novos sobre riscos com que o sistema já operava e em que há um problema de maior escala a ser tratado, relativo a como as sociedades nacionais e as regiões processam os riscos com que vivem. Nesse sentido, ainda, cabe introduzir um conceito de tolerância ao risco, que varia ao longo do tempo em função da adequação do sistema produtivo ao sistema de recursos naturais. A novidade é que a nossa percepção de riscos é muito diferente da dos europeus e norteamericanos, dado que o maior risco de esgotamento de recursos acontece aqui onde nossos recursos têm sido vistos como fonte abastecedora daqueles outros países. Ao mesmo tempo, na medida em que se comprovam novas reservas na América Latina, como as do pré-sal no Brasil, aumenta a tolerância ao risco sinalizando melhores condições de opção para o futuro. Os riscos precisam ser colocados como partes de um sistema social do ambiente que depende das condições gerais do sistema do capitalismo e que, por sua própria índole, está sujeito a altos e baixos, ampliações e contrações, principalmente a oscilação entre momentos de prosperidade e de depressão que têm se alternado com variada intensidade. A produção capitalista tem se tornado progressivamente mais instável a medida que a reprodução do sistema produtivo depende de uma demanda gerada por um universo de demandantes proporcionalmente menor no conjunto da população total, ou que a produção crescente depende de um número relativamente menor de compradores. O mercado mundial do capitalismo foi primeiro dimensionado pela demanda européia e deu seu grande salto com a demanda norte-americana. Depois da Segunda Guerra Mundial, o capitalismo precisaria de um reajuste da demanda suficiente para sustentar sua expansão e a grande manobra então realizada foi a recuperação das economias da Alemanha e do Japão. O recrudescimento da tendência à crise, iniciado com a recuada da economia norte-americana no fim da década de 1960 foi sucedido por uma série de crises na periferia avançada do sistema. Com o desmantelamento da URSS houve uma recomposição do sistema a partir de crises de energia, mas enfrentando dificuldades crescentes na falta de dinamismo do bloco europeu e do Japão. Esse quadro de tendências só foi alterado com a expansão da economia chinesa, que passou a desempenhar o papel de motor industrial da economia mundial ao tempo em que de grande demandante de materiais energéticos. Neste novo realinhamento da economia mundial, em que a crise se transferiu para o centro norte-americano da economia mundial, a Índia ocupa lugar de destaque e o Brasil tem suas oportunidades alargadas,

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torna-se inevitável uma revisão da questão ambiental em nova composição de interesses. O desenvolvimento do conceito de crise desde Marx desencadeou uma extensa literatura que mapeou diversos pontos de vista, mas não se libertou de uma divisão entre causas naturais e causalidade interna do sistema produtivo (HABERLER, 1958). A noção de crise, já seja como tendência à estagnação ou como propensão a uma crescente instabilidade, é essencial à economia capitalista moderna. Este reconhecimento do caráter cíclico do capitalismo é um legado da grande polêmica do século XIX, que opôs historicistas a positivistas, ou que colocou socialistas contra positivistas. A noção de risco traz novas dimensões à questão orgânica da crise e coloca o questionamento ambiental no clube seleto da alta teoria que trata de crise. A sociedade do risco (BECK, 1995) enfrenta situações herdadas enquanto cria novas situações com escolhas sobre temas que têm alternativa, como é o caso da energia nuclear. A rigor há mais alternativas para os riscos de saúde, mas que obrigariam a encerrar atividades das multinacionais que manipulam defensivos agrícolas, controlam sementes e decidem quais alimentos estarão ao alcance das maiorias. É uma disputa pelo poder econômico que não aparece como tal para os debates sobre o meio ambiente. Haverá, portanto, uma questão ambiental ostensiva e outra velada, que são conduzidas de diferentes modos segundo as estratégias das empresas e as da mídia. A questão ambiental está latente nas teorias econômicas que apontam a tendência a usos crescentes de recursos escassos e à perspectiva dos custos sociais de uma produção mineira de recursos não renováveis. Mas eclodiu desde a Primeira Guerra Mundial que mostrou uma destruição sem precedentes de terras comprometidas com a produção organizada de alimentos. O problema se agravou ao longo do século XX e com os efeitos da Segunda Guerra Mundial e as sucessivas crises que ela gerou. A conclusão do ciclo de desenvolvimento montado sobre as bases da reconstrução da Europa e do Japão, durante a década de 1960, mostrou a grande contradição entre expansão econômica, uso de energia e distribuição da renda, em um mundo cuja pluralidade se revelava irreversível42. Na prática, se os países pobres passam a usar recursos como os

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Na prática temos aqui um pleito por uma revisão das teorias do desenvolvimento, no que elas tiveram que se abastecer de referências históricas de processos concretos de subdesenvolvimento, mas não ofereceram respostas satisfatórias para as diversas situações intermediárias que surgem durante as

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ricos não haverá recursos suficientes para todos. Os países que conduziram a industrialização e que pretenderam estender a ordem colonialista a seu favor encontramse com a ascensão de novas potências e com uma reorganização política do mundo industrializado. A economia entra em novos contextos de incerteza. Encontra-se aí algo a ser revisto. De fato, a consciência social das condições específicas de incerteza foi aguçada por progressos científicos na tecnologia, desde a dinâmica do fundo dos oceanos à meteorologia, que deram novo significado prático às teorias da incerteza. A incerteza é do sistema natural, mas é modificada pelos fatores de risco introduzidos pelos empreendimentos da sociedade. Os fatores de risco estão perfeitamente localizados como em Chernobyl ou podem modificar as condições de incerteza, tal como acontece com o desmatamento da região semi-árida. A percepção dos problemas de incerteza e risco foi progressiva nos diversos campos das ciências. A noção de risco em economia foi colocada por Frank Knight em 1926, a teoria da incerteza de Werner Heisenberg é de 1935 e a relação entre acaso e necessidade foi apresentada por Jacques Monod em 1967. Mas essas marcas de milha indicam processos de trabalho que são acionados por processos políticos desencadeados pela industrialização. Ora risco não é somente da globalização e acontece em economias locais, nas quais se combinam efeitos da grande industrialização e riscos típicos de problemas locais. A diferença agora está em que se reconhecem os modos como a expansão do capital industrial cria novos canais de risco e de instabilidade do sistema. Não só se precisa de uma nova teoria do Estado como de uma nova explicação do modus operandi dos interesses privados internacionalizados em sua dupla ação de penetrar os sistemas de poder político e o aparelhamento ideológico das maiorias. Coloca-se a necessidade de desenvolver uma análise social a partir da percepção da combinação de incerteza e risco em ambientes sociais sujeitos a crises econômicas.

transformações internamente empreendidas nem menos para as novas pressões de países em desenvolvimento por economias mais poderosas. O novo contexto de economias nacionais abertas, expostas a todo tipo de investidas de grandes capitais. A expressão recolonização torna-se uma parte inevitável desta nova polêmica. Na prática o Brasil exporta energia na forma de etanol, na de soja, na de celulose para empresas internacionais que em nada contribuem para a industrialização deste país. A ideologia de economias abertas é uma extensão do neoliberalismo que é a filosofia política do grande capital.

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Desenha-se, assim, um cenário de precariedade contratual entre capital e trabalho43, que vai além da racionalidade tecnológica universalizante, que pressupõe a generalização irrestrita dos benefícios do capitalismo44. Essa racionalidade positivista foi transportada para a polêmica sobre desenvolvimento pelos setores mais conservadores, que advogaram por uma simetria do progresso econômico que está muito longe da concentração de capital em curso. A teoria do desenvolvimento mostrou como o crescimento baseado em concentração tem produzido desigualdade e exclusão e destruição de recursos. A hipótese de incerteza se converte na de instabilidade desigual45 dos sistemas – maior instabilidade na periferia que no centro do sistema mundial – derruba a tese da difusão dos efeitos positivos do desenvolvimento. Entra-se, portanto, em outro patamar da análise de riscos, agora de riscos ambientais, que se acumulam, seguindo o rumo da concentração dos efeitos de tecnologias. Diferentemente dos sistemas naturais, no relativo ao ambiente passa-se a ter que considerar cenários de riscos cumulativos incorporados nos sistemas de equipamentos em que a concentração de riscos se torna um fator de crise. Por exemplo, os sistemas de barragens em uma mesma bacia hidrográfica representam um aumento de sensibilidade à crise em que uma queda de vazão atinge ao sistema em seu conjunto. Agora, se não há opções para construir as barragens em outras bacias e dispersar o risco, é preciso assumir que se trata de riscos crescentes cumulativos inevitáveis que é preciso se preparar para enfrentar. Nesse caso, o desenvolvimento de tecnologias e de políticas para controlar a oferta de água torna-se essencial.

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A precariedade se vê como uma característica geral do sistema que envolve a duração dos equipamentos e a vida profissional das pessoas, que convive com uma preferência do capital por empreendimentos que dêm resultados rápidos e que aceita os desperdícios conseqüentes do abandono de equipamentos e instalações. Do mesmo modo, aceita como inevitáveis os custos sociais do desflorestamento. Por exemplo, a precariedade modificou a paisagem da produção rural, em que nos campos há menos árvores e a monotonia da produção contribui para agravar a fragilidade econômica dos pequenos produtores. A precariedade é um retorno a condições de habitação sem garantia de permanência, que, incidentalmente, é a vida das favelas. 44 Nesse contexto não há porque omitir o fato que nos Estados Unidos não há uma legislação do trabalho propriamente dita permitindo aos capitalistas agirem sem compromisso algum com os trabalhadores. 45 Trata-se de instabilidade estrutural dos sistemas e não de situações incidentalmente instáveis. O sistema sócio-produtivo se torna progressivamente instável pelo modo como se realiza a acumulação de capital, pelo modo como é afetado por fenômenos naturais e pelas conseqüências das desigualdades sociais. As rotas seguidas pela seleção de tecnologias, que obedece a critérios de interesse de grande capital focaliza em seqüências de alta densidade de capital e na demanda dos grupos de alta renda. Não há fundamento algum em supor uma instabilidade apenas por razões naturais, mas não há como ignorar que a freqüência de fenômenos como El Niño e terremotos compõem um quadro de instabilidade. Temos que trabalhar com a noção de riscos combinados que representam sucessivas e diferentes combinações.

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As teorias do risco chegaram por diferentes caminhos ao mundo social, seja por um lado definindo condições ambiente de mercado (BECK, 1998) ou condições naturais, sintomaticamente, passando por alto os riscos de emprego e renda e junto com eles os riscos de saúde que afetam a maioria. Para uma teoria socialmente orientada dos riscos seria preciso inverter essa ordem e tomar o risco social como fundamento de uma teoria geral do risco. As rupturas forçadas com as regras tradicionais de vida, junto com transferências de riscos, tornam-se parte essencial no modo de reprodução da sociedade de hoje, que oscila entre condições de modernidade, precisando determinar um referencial ético de validade incontestável.

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5. Reprodução com mudanças de composição Os sistemas sociais e a natureza Na análise da sociedade moderna há um problema que não pode ser evitado relativo a como o sistema se reproduz, com seus componentes de continuidade e de descontinuidade que se manifestam no plano das relações materiais de produção e nas relações ideológicas. O mundo moderno jamais foi unificado como se supôs ser nem foi subitamente substituído por um mundo pós-moderno fragmentado que funciona guiado pelas regras difusas da globalização. Na realidade, o mundo da modernidade funcionou sobre rupturas entre ricos e pobres e colonizadores e colonizados com diferentes condições de acesso a renovação tecnológica. A unidade moderna só existiu na perspectiva do poder representado pelas nações poderosas e pelo grande capital, manifestando-se como uma projeção cultural das nações dominantes46 e corresponde a outro momento do poder do grande capital. Por exemplo, diferentes formas de produção industrial que vão junto com diferentes mentalidades e atitudes de industriais e de operários. No plano da economia as formas de produção correspondem a configurações de procura de bens e de serviços. Na prática, trata-se de uma relação entre o que querem vender os produtores e o que podem comprar os consumidores. O ajuste entre oferta e demanda se faz mediante um complexo mecanismo de comercialização, que não escapa do fato de que a máquina produtora luta para se reproduzir e o sistema do consumo depende da renda dos consumidores e dos programas de produção das próprias empresas. Mas as formas de produção correspondem a ideologias do modo como há uma ideologia de produtores rurais de empresas familiares e em torno de símbolos nacionais. Assim, cabe perguntar se a reprodução do sistema pode ser alcançada com as energias próprias do sistema ou se depende de ações externas a ele. Será ela espontânea ou

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É a visão simplificadora que criou a imagem de o negro e o índio, desconhecendo a pluralidade de nações africanas escravizadas e de nações indígenas reduzidas a servidão. Estudos sobre a África anterior à invasão européia do século XVI, como os de Costa e Silva, denunciam a visão superficial da África criada pelos colonizadores escravistas e mostram a necessidade de trabalhar com a real pluralidade das civilizações africanas.

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demanda intervenções organizadas para essa finalidade? Para responder a esta pergunta é preciso (a) reconhecer as indicações da reprodução do meio natural; (b) identificar os modos de comportamento do mundo social; e (c) distinguir como o modo de reprodução do mundo natural condiciona o mundo social. A simples pesquisa sobre esses pontos representa uma mudança de atitude comparada com a revolução industrial que pôs a natureza irrestritamente a seu serviço. Entende-se que os efeitos do mundo social sobre o mundo natural partem sempre de pré-condições estabelecidas pelo mundo natural. Sobre essa base aumenta continuamente a presença das intervenções da sociedade no mundo físico, com efeitos tais como concentração de usos de energia e de água, concentração de consumo de materiais não renováveis, eliminação de espécies animais e vegetais, contribuindo para alterações do meio físico que, em um número crescente de lugares, se torna irreversível. A percepção do mundo social envolve uma abrangência de visão histórica que se constrói sobre experiências que alargam ou estreitam horizontes com variadas perspectivas de duração. A visão histórica compreende as de tempos contínuos ou de certos períodos do tempo ou de certos momentos mais relevantes. Em algumas épocas e situações tudo parece provisório enquanto em outras tudo parece estável. A visão de mundo possível no Império Romano certamente foi mais ampla e organicamente constituída que a realizada no posterior mundo do feudalismo e por mais interessantes que sejam as lendas arturianas não passam de contos de uma província abandonada do império e os contos heróicos da Europa medieval não escondem sua fragilidade perante a expansão otomana. A possibilidade de ver a história como sistema depende de que haja sistemas, tem um fundamento na própria reflexão social e outro na observação de sistemas vivos não humanos. A visão social sistêmica tem uma longa história no relativo à sociedade moderna tem uma dívida com Marx e com sua teoria da reprodução. A visão biológica tem as contribuições seminais de von Bertalanffy e de Jacques Monod, mas resulta na construção de uma teoria comportamental não ideológica que já levou a que se pretenda explicar o mundo social através do comportamento dos cupins. No fundo, presta um serviço inestimável aos apólogos do autoritarismo que desprezam individualidade e autonomia. Mas a incorporação da análise de sistemas no campo social tem outras referências do próprio mundo social, em campos de atividade essenciais ao capitalismo moderno, como são os estudos de

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conjuntura econômica e do mercado financeiro, como fez André Marchal47. A passagem do capitalismo manufatureiro ao da grande indústria traduziu-se na construção de fábricas e de conjuntos de fábricas que foram articuladas como sistemas pela comercialização. O contexto de interesses de classe e a cultura organizacional dão a substância ideológica dos sistemas de produção. O foco nas propriedades sistêmicas geralmente significa um distanciamento dos conflitos de interesse, em que a lógica da reprodução do sistema pode ser uma espécie de mecânica social, justamente comparável ao comportamento misterioso dos cupins. Essa biologização dos comportamentos sociais contamina a análise do ambiente, na qual passa a haver uma inversão da relação meios-fins, em que a preservação do sistema se torna um objetivo superior a quaisquer propósitos de bem estar social. A economia política do ambiente terá que trabalhar necessariamente com uma teorização dos conflitos sociais de diversos tipos. Alguns trabalhos demarcatórios surgidos nas décadas de 1950 (MARCHAL, 1955) e de 1960 (von BERTALANFFY, 1961) erigiram a visão sistêmica como essencial na análise científica, de fato trazendo novos elementos de corroboração da abordagem já estabelecida por Marx em 1859 em sua Contribuição à critica da Economia Política. A noção de que a produção e o consumo são partes de um sistema socioprodutivo que se reproduz transformando-se, revela-se essencial para entender a lógica própria da reprodução do sistema, quando se pretende decodificar os problemas do ambiente em suas expressões científica e popular. O campo de temas relativos ao ambiente refere-se a movimentos de sistemas de recursos naturais integrados com sistemas sociais cuja reprodução é essencial para sua continuidade. Há movimentos naturais de reprodução do meio natural e movimentos sociais de reprodução do meio social, alguns deles em escalas seculares e outros que se tornam perceptíveis no cotidiano. A desorganização na relação entre essas duas esferas resulta em perdas por usos inadequados de recursos e em perdas nas condições materiais de vida das maiorias. Por exemplo, o movimento geral de aquecimento é da escala planetária, mas há inúmeros movimentos, próprios da civilização material, que envolvem usos maciços de energia e alteram as condições climáticas de cidades específicas. Não se pode pensar que o aquecimento seja conseqüência de um único

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André Marchal, Systémes et structures economiques, 1959.

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processo linear de uso de recursos, senão que ele é determinado por um conjunto variável de causas, algumas das quais são exclusivamente da órbita da natureza enquanto outras são da esfera da atividade social. A reprodução envolve regras do campo físico e do campo social que se combinam em situações comuns e em situações extremas, por exemplo, tal como acontece com a continuidade do sistema da região semi-árida ou com sistemas sob a tensão de terremotos48. A capacidade dos sistemas produtivos para absorverem tensões pode ser ampliar ou restringir mas as variações em sua capacidade de conviver com tensões se resolve no plano social e não no técnico. Claro que qualquer sistema pode sofrer tensões anormais, como é o caso das secas prolongadas, quando a deficiência hídrica se converte em catástrofe. As regras do campo físico estão sujeitas às leis da termodinâmica enquanto as regras do campo social se inferem de relações de classe qualificadas por condições culturais49. A economia política do ambiente será por força a leitura de economia que abrange esse escopo temático. Há duas abordagens possíveis sobre o tema, que são as de procurar conhecer e explicar a estruturação atual do sistema ou a de conhecer as regras de mudança às quais ele está submetido. Tacitamente, entende-se que as regras de mudança mudam elas mesmas e que a possibilidade de antecipar sobre a estruturação do sistema se coloca sobre horizontes de confiabilidade decrescente. O problema central da reprodução é o que permite visualizar o significado e as limitações dessas duas abordagens, pelo que será necessário analisar as condições atuais da reprodução do sistema. Cada uma das ciências que se ocupa de problemas do ambiente gera uma visão própria dos processos do ambiente e das condições de cooperação entre ciências, ou mesmo da multidisciplinaridade com que o ambiente deve ser tratado. Sem dúvida as questões ambientais são de todos, mas há diferentes abordagens da visão do conjunto que se refletem no modo como se encaminham estudos de problemas específicos. De todos os modos, a ciências se encontram com problemas relativos à reprodução do meio físico e

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Torna-se necessário incluir a hipótese que além de certo limite de escassez de água o semi-árido se torna árido e que um aumento da freqüência da atividade sísmica torna impraticável a habitação. 49 Uma referência especial deve ser feita a Anthony Giddens, com seu Novas regras do método sociológico (1978) que oferece uma visão sintética desse problema.

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do meio social, em que é preciso considerar o relativo à conservação de energia, isto é, aos problemas de perda de energia dos sistemas. A explicação desses processos envolve uma compreensão das escalas de tempo com que se raciocina, pelo que os pressupostos de tempo podem ser um guia comum a todos, mas,

como as diferentes ciências trabalham com diferentes escalas de tempo e a

questão converge aos problemas do tempo da vida social, a História é a referencia necessária comum a todos. Os espaços não são homogêneos como nos mostrou François Perroux, mas as regras da heterogeneidade não estão dadas pelos atos de poder que realizam empreendimentos específicos, são parte de acordos políticos muito mais abrangentes, tal como dito pelo próprio Perroux. Os pressupostos de tempo podem ser comuns a todos, mas são trabalhados de diferentes modos pelas diversas ciências. Neste estudo entende-se que a única possibilidade de integração dos diferentes pontos de vista é por meio de uma compreensão da historicidade do problema, isto é, tomando a história como ciência articuladora do trabalho interdisciplinar. Numa perspectiva histórica pode ser elaborada uma cronologia dos eventos ambientais de modo a mostrar a aceleração dos eventos mediante o encurtamento dos intervalos de tempo. Por exemplo, se prossegue o desmatamento do semi-árido é possível acompanhar a diminuição dos intervalos de tempo das secas e indicando a população que elas atingem. Na origem do problema, do lado das ciências da natureza há uma abordagem geológica e outra biológica, em que cada uma delas tem uma contribuição ao fundamento do esclarecimento do problema para todos. A abordagem biológica da ecologia trabalha com uma visão sistêmica dinâmica, com pressupostos demonstrados, portanto, com sistemas onde os fluxos são conhecidos ou previsíveis (ODUM, 1998). É um conjunto necessário de elementos, que devem ser avaliados sob dois pontos de vista: como fundamento das análises sociais e como um campo próprio de explicação. Corresponde à relação entre o meio vivo em seu sentido mais amplo e o meio inerte. A visão social do ambiente inverte essa perspectiva levando em conta que o ambiente é o cenário viabilizador da sociedade e que a vida social já é uma intervenção inevitável no ambiente físico. A visão social compreende as variantes de uma visão sociológica, de uma visão antropológica e da econômica. Mas na prática só se integra com a perspectiva histórica dos processos que atingem o ambiente.

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A abordagem biológica é um encaminhamento necessário, mas não substitui a análise econômica do ambiente, que trata dos efeitos da produção e do consumo no meio vivo em geral e no meio físico. A análise biológica do ambiente não substitui a análise social, primeiro, porque se limita à mecânica da reprodução do meio biofísico e segundo, porque não tem como penetrar no componente ideológico do agir social sobre a natureza. O fundamento ideológico e o jogo de poder envolvidos na análise e nas políticas ambientais são essenciais em uma abordagem da economia do ambiente. Ao procurar estabelecer os fundamentos de uma análise social desse tipo

nos

encontramos com a necessidade de distinguir esses campos de análise, ao reconhecer que a análise social tem um componente de imprevisibilidade inevitável e que o fundamento histórico pode modificar a perspectiva do presente quando introduz processos de tempos diferentes daqueles da produção industrial. Por exemplo, a leitura de ciclos climáticos que pode mudar os pressupostos com que se analisa o semi-árido, desde quando se comparam os tempos da agricultura tradicional com a irrigada e agora com o de usinas nucleares. A hipótese de um sistema fechado em matéria do ambiente é a hipótese do Estado nacional, com sua esfera de autoridade e poder e com um fundamento de soberania. As relações entre os Estados nacionais teriam que ser introduzidas nesse raciocínio como suplementares e não como parte necessária da formação desses Estados. O meio ambiente, em última análise, nesse caso, é um campo que está sujeito a intervenções sistemáticas decididas com o apoio da autoridade. A soberania – autoridade do soberano, ou autoridade soberana – tal como o nome indica, é um poder que se coloca acima dos indivíduos. A rigor, os sistemas nacionais não são fechados e se situam no quadro mundial. A questão prática que se coloca consiste em saber quanto podem se reproduzir baseados em escalas nacionais. Torna-se possível pensar em termos de uma economia do ambiente desde quando se distingue uma diferença entre a totalidade dos recursos da natureza e os conjuntos de recursos que estão ao alcance dos usos da sociedade. Logicamente, essa relação varia, segundo o aumento dos recursos engajados pelo sistema produtivo corresponde a perdas no sistema dos recursos em geral. O sistema de recursos engajados na produção, por definição, é um sistema aberto, mas opera em relação com restrições de variedade e de

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quantidade que são inerentes à finitude do planeta. Localmente, todos os sistemas constituem mapas de restrições que podem ser lidos inicialmente como mapas de indiferença e a seguir, como mapas efeitos irreversíveis, que podem ser individualmente insignificantes, mas que se tornam significativos em cada sistema em seu conjunto. O pressuposto de sistemas fechados submetidos a

exploração crescente leva,

necessariamente, ao pressuposto de que o sistema de recursos opera em condições de reprodução decrescente, com mudanças de composição e com o aparecimento de contradições no modo como se reproduz. Será preciso estabelecer sobre os efeitos progressivos dessa redução de escala. Supondo uma diversidade total dos recursos do planeta em seu conjunto, supondo ainda que não haja criação de recursos naturais novos, todos os usos de recursos correspondem a movimentos na direção de esgotamento que passam por mudanças antecipáveis de composição. O sistema de produção tende, necessariamente, a ser entrópico, isto é, a perder energia mais que aquela que é capaz de recompor. A principal referência de uma análise da economia do ambiente é o reconhecimento de que os usos dos sistemas de recursos tendem a se enfrentar com perdas na capacidade de reprodução dos sistemas de recursos, levando a horizontes de custos crescentes. Esse processo acontece em história. Num sentido muito amplo, os sistemas estão sujeitos a perda de energia; e essa perda de energia acontece junto com alterações na composição de cada sistema, onde as alterações de composição nunca são neutras.50

Um aspecto de método A análise da economia ambiental depende de uma opção entre uma abordagem estática ou dinâmica e de uma visão sistêmica ou de uma visão a-sistêmica ou casuística. Por exemplo, o grave incidente que acaba de ocorrer com derramamento de petróleo de um poço profundo no Golfo do México pode ser tomado como um evento esporádico ou

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A teoria econômica convencional costuma trabalhar com uma simplificação que consiste em reduzir a complexidade da substituição de técnicas por uma noção de progresso técnico, onde há progresso técnico positivo, neutro ou negativo, procurando sempre registrar variações de quantidade, mas raramente ligando as variações de quantidade a condições qualitativas dessas variações.

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como um incidente probabilisticamente analisável, onde os aspectos de falha humana deveriam filtrados por análises de variações das condições do ambiente físico. Cabe supor que muitas margens de risco podem ser eliminadas mediante avaliações progressivas de uma mesma tendência. A opção entre uma abordagem estática ou dinâmica é o antecedente necessário para estabelecer se trabalhamos com uma compreensão da historicidade do ambiente, ou se nos mantemos numa visão da positividade do ambiente, que significa ignorar a formação do ambiente. Socialmente o ambiente não se reproduz. A abordagem sistêmica implica em reconhecer que os sistemas sociais se reproduzem em ambientes sujeitos a crises, com movimentos oscilatórios e tensões que se desdobram no tempo, tal como se vê nas grandes crises da economia mundial. A diferença entre uma abordagem estática e uma abordagem dinâmica do ambiente consiste em que a primeira se limita a constatar uma situação atual com elementos atuais de mudança, enquanto a segunda identifica processos que se desdobram desigualmente no tempo e no espaço, com variações de intensidade. Será preciso pensar em termos de processos do ambiente que se realizam com intensidade e velocidade que variam no tempo, tal acontece com as mudanças nos bosques. Sem muita dificuldade, pode-se considerar que os quadros de uma análise estática do ambiente são retirados de um contexto dinâmico, ou que são representações de uma análise insuficiente de uma realidade dinâmica. O conceito de sustentabilidade, que está associado aos conceitos de longo prazo e de complexidade, torna necessário trabalhar com uma análise dinâmica, isto é, com uma análise que focaliza em variações de velocidade antes que em alterações de situação. Dinâmica neste contexto será a teoria que trata de transformações sistêmicas e não aquela que trata de um movimento linear do produto social como acontece no ambiente da teoria econômica ortodoxa. A noção de sistema leva a decidir entre uma visão de sistemas abertos que podem se reproduzir segundo regras com elementos externos que são incorporados ao sistema e uma visão de sistemas fechados, em que as regras da reprodução estão tacitamente contidas nas próprias qualificações das variáveis envolvidas. As bacias hidrográficas são sistemas que só se reproduzem através das inter-relações dos elementos

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componentes do sistema. Os sistemas industriais são sistemas que se reproduzem guiados por renovação tecnológica que resulta de movimentos externos ao sistema. Os sistemas naturais estão sujeitos a regras que podem refletir tendências de perda de energia, isto é, de perda de capacidade de reposição. Por sua vez, os sistemas sociais estão afetados por efeitos cumulativos da acumulação de capital, que se combinam com os efeitos do aumento da população. Tudo isso quer dizer que a economia do ambiente não pode ser montada sobre os mesmos pressupostos da análise econômica em curto prazo, nem pode ser reduzida aos termos de uma análise microeconômica, que tem como objetivo a maximização dos benefícios econômicos de consumidores individuais ou de produtores individuais. Justamente, os antecedentes da análise ambiental impedem que se aceitem pressupostos de vantagens individuais num tema que só se define a partir de uma visão de pluralidade social. Isso significa que a economia do ambiente depende de uma teoria do sujeito social, a rigor, de uma ontologia do ser social.51 Descarta-se a possibilidade de uma análise ambiental somente técnica, isto é, desprovida de um fundamento ideológico, porque as diversas mudanças na esfera ambiental interessam de diferentes modos aos diversos grupos sociais e vêm fundamentar uma visão de classe do problema. O modo de ver a problemática da técnica, portanto, está historicamente situado, isto é, é ideológico. A chave explicativa dessa análise é o fato de que as alterações de velocidade aqui sempre correspondem a alterações de composição. Sistema algum se expande com uma composição invariante. A questão que se deve resolver na análise do ambiente consiste em identificar as perspectivas e as possibilidades de alterações de composição que podem acontecer em determinados sistemas. É preciso lembrar que toda a análise econômica interindustrial, isto é, a análise das relações entre insumo e produto, está baseada em aceitar que os sistemas podem ser analisados com uma “dada“ tecnologia, o que é o mesmo que dizer que os sistemas mudam por conta de alterações tecnológicas,

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Será preciso fundamentar a análise do ambiente numa teoria social que dê conta do sujeito social na sociedade moderna, o que nos leva a rever as contribuições de autores tais como uma leitura de Lukács e das contribuições de Alain Badiou. A análise ambiental tem que reter o conjunto das contribuições da análise social e não se apresentar apenas como um exercício da mecânica do ambiente.

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mas que a esfera da tecnologia não conduz os movimentos sociais, que são os que promovem as mudanças tecnológicas. Ao tomar a tecnologia como um campo variante torna-se necessário revisar qualquer pressuposto de uma “dada” tecnologia. Ora, o sistema produtivo se expande criando ou revelando contradições que não aparecem na análise macroeconômica convencional, que só se tornam visíveis nas análises dos aspectos qualitativos da produção junto com sua expressão quantitativa. O trabalho da economia política do ambiente consiste em expor e analisar e analisar essas contradições e em construir alternativas de política a partir de cenários sobre horizontes em tempo previsível. A complexidade da reprodução do sistema produtivo A reprodução simples da produção capitalista é um movimento altamente complexo que combina processos específicos convergentes e dispersivos de durações e trajetórias diferentes. Numa visão simplificada da reprodução do sistema sócio-produtivo pode-se pensar em termos de processos específicos de produção, com diferentes condições de renovação tecnológica, que passam por sucessivos e diferentes momentos da evolução da produção, gerando situações de conservação e de dispersão de energia, tal como se desenha na Figura 1.

Figura 1 – Processos dispersivos e não dispersivos de diferentes durações Fonte: Elaboração do autor

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A reprodução simples (MARX, 1958) é uma situação hipotética de reprodução sem acumulação de capital nem perda significativa de recursos que, entretanto, registra os fatores estruturantes do sistema. É uma anomalia da produção capitalista que Marx utiliza para apresentar hipóteses, já que todo seu sistema pressupõe tempos diferenciados. Na realidade toda reprodução simples contém elementos de reprodução com alteração do sistema produtivo. Envolve desempenhos diferenciados de componentes, operando com um denominador comum que é a comercialização da produção e do dinheiro. Há uma variedade de situações de risco que afetam o sistema sócio-produtivo, sempre colocado entre situações de previsibilidade e de incerteza. As transformações do capital entre sua forma dinheiro e sua forma mercadoria envolvem mudanças tanto em uma como na outra. Em ambos casos há diferenças de conversibilidade do dinheiro, mas as mudanças na forma mercadoria denotam diferentes condições de desenvolvimento do sistema de produção. Trabalha-se aqui com a hipótese de que as propriedades dos sistemas dependem de sua qualidade e de sua diversidade. Estes dois aspectos estão integrados em sua composição orgânica. Assim, quais combinações de minerais são utilizadas e quais tipos de solo são explorados. Dessa interdependência entre escala de produção, diversidade técnica e qualificação do trabalho derivam os possíveis rumos que o sistema pode seguir. Inferese, portanto, que as alterações na composição correspondem a mudanças, positivas ou negativas, em seu desempenho. Variações em escala interagem com tendências de diversificação e resultam em alterações irreversíveis da capacidade produtiva. Nesse contexto, coloca-se o modo de usar energia e os riscos no desenvolvimento da produção industrial. O sistema pode mudar porque a funcionalidade dos seus componentes varia mais que os próprios componentes. Estradas e portos serão mais ou menos eficientes segundo o papel que desempenham no sistema de que são parte. O sistema viário pode servir a diferentes funções, assim como o educativo pode oferecer educação de boa e de má qualidade, adequada ao mercado ou não, servindo para justificar competências tornadas inúteis ou efetivamente enfrentando os desafios da atualidade. Tampouco se pode

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limitar as funções do capital dinheiro àquelas sugeridas por sua velocidade52. As variações de velocidade do dinheiro constituem opções para os interesses do capital que representam composições de investimentos em setores estratégicos para a reprodução do ambiente. Em síntese, o problema geral da reprodução do sistema produtivo estabelece condições específicas de usos de recursos que põem preço nos bens da natureza. Sobre essa base introduzimos uma diferença entre recursos naturais (próprios da natureza) e meios de produção, quando os recursos são incorporados ao sistema sócio-produtivo, passando a ter preços e desse modo afetando a oferta dos demais produtos. A questão geral da reprodução do sistema produtivo foi colocada por Marx como inerente ao sistema da produção industrializada, em que o poder produtivo dos equipamentos se realiza por meio de diferenciação de equipamentos mediante substituição e com renovação do trabalho qualificado. A reprodução sempre se realiza com diferentes usos de recursos. O modo como esses recursos são obtidos também muda com obras públicas que se tornam cada vez menos reversíveis, tal como acontece com o sistema de produção de energia. Isso mostra que a reprodução nunca é um problema genérico, mas sempre é um problema historicamente específico, que acontece em seqüências encadeadas em que as margens de decisão em cada momento são limitadas e dependem de antecedentes e de conseqüentes. O modo como se distribui o componente irreversível é essencial em cada sistema concreto e mostrará que a progressão de investimentos compreende uma inércia, que se converte em custos crescentes para eventuais mudanças de rumo na dinâmica do sistema. Por exemplo, a construção de um sistema de grandes unidades de produção de energia significa a determinação de um sistema de custos de transporte de energia que, por sua vez, afeta as alternativas para que manejar unidades de produção de menor escala. Assim, as opções disponíveis são sempre únicas em tempo e espaço. Por isso, como veremos adiante, as transformações do ambiente têm sempre um desdobramento regional. A questão que nos aflige quando tratamos de sistemas ambientais específicos é que as tendências à dissipação neles serão tanto maiores quanto maior for a distância entre seu centro e sua

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As considerações ambientais mostram a impropriedade de uma teoria monetária da produção que foi o objetivo declarado de John Maynard Keynes. Essa será uma teoria que explica o funcionamento do grande capital no mercado. Pretende-se aqui uma teoria social da produção que venha a explicar como podem os trabalhadores funcionar no mercado capitalista.

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periferia. Os sistemas tenderão à instabilidade, com dificuldade crescente para se recuperarem (PRIGOGINE, 1986). As zonas mais próximas do centro serão normalmente menos instáveis e menos turbulentas enquanto as zonas mais distantes do centro serão mais instáveis e turbulentas ou sairão da esfera de influência do centro, tornando-se áreas de marasmo ou de indiferença. A história das nações latinoamericanas corrobora esta imagem, identificando o aparecimento dessas zonas de marasmo, como de fato foram o Nordeste do Brasil e o Noroeste da Argentina. Os limites da dissipação significam uma perda total de energia expansiva e se identificam com a formação de novos sistemas que historicamente não podem ser como os anteriores, mas que carregam traços de identidade de seus antecedentes53.

As

estruturas agrárias e as técnicas agrícolas se modernizam a partir de conhecimento tradicional que se procura recuperar no contexto de políticas de modernização. O esgotamento de sistemas tradicionais acontece mediante a perda de capacidade de recuperação de suas estruturas institucionais e culturais investidas em seu sistema de poder e somente como detalhe em seu desempenho tecnológico. Os sistemas coloniais na América passaram por prolongado desgaste antes que as condições internacionais facilitassem as guerras de independência, mas as técnicas de produção só foram afetadas depois, quando as ex-colônias foram atropeladas pelo capital industrial em expansão na Europa. Não nos cabe tentar aqui uma interpretação generalizante dessas grandes contradições do capitalismo de hoje, mas as dificuldades que enfrentam os sistemas periféricos para superar sua condição de participação subordinada no concerto mundial são inegáveis. Por extensão, do mesmo modo, os bloqueios da mobilidade de grande parte da população se flexibilizam em algumas instâncias do sistema, mas são um dado básico para a maioria. O papel do controle dos recursos é essencial e encontra novos modos de expressão na organização internacional que não se reconhece como colonialista, mas garante ao grande capital o acesso aos recursos das nações menos poderosas.

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A teoria de estruturas dissipativas apresentada por Ilya Prigogine deverá ser relida em suas aplicações no mundo social. Essa teoria parte do pressuposto de um universo instável e irreversível que coincide com o universo do sistema sócio-produtivo. Será preciso introduzir a hipótese de que a dissipação de forças contidas em uma estrutura alcançará um ponto de dispersão máxima que esgotará a força de dispersão. Assim, a dissipação acontece em um determinado tempo que é o tempo histórico do sistema produtivo.

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6. Presente e passado no mundo social

A ordem do tempo vivo O tratamento do conceito de tempo nas ciências sociais ficou muito limitado por uma redução que coloca o tempo como contraparte de um conceito geográfico de espaço ou que aceita como equivalentes as escalas de tempo do mundo industrial, apesar de reconhecer a pluralidade acumulativa de processos temporais concomitantes inseridos no ambiente industrial. Tal pluralidade está nos fundamentos de uma leitura antropológica da história social. Há um tempo da natureza, que é o de seus movimentos e um tempo do mundo social, que é o que sustenta uma ordem dos processos sociais e de acontecimentos específicos. Temos, necessariamente, que ser regidos por essa percepção de uma temporalidade cumulativa (ARANTES, 2000), que é exclusiva do mundo social. O passado se registra mediante resultados de períodos anteriores que aparecem como cultura e como monumentos criados por essa cultura acumulada, mas igualmente, sob a forma de tensões que não são absorvidas pela sociedade. A mais importante delas é o racismo, que tem inúmeras manifestações e que recrudesce, desde o racismo fundamental contra negros e índios até uma complexa escala de valorização de outros grupos étnicos54. O presente se define em termos de horizontes de tempo culturalmente percebidos, correspondendo a convenções sobre curto e longo prazo e admitindo progressões da visão ao futuro na condição de horizontes que se deslocam com o passar do tempo, que são horizontes móveis de tempo. A noção de horizontes móveis de tempo revela-se necessária para situar questões relativas a simples alterações e a mutações do ambiente social. A passagem da antiga economia primário exportadora para uma economia semi industrializada e para economias industrializadas em alguns países significou uma substituição de escalas de tempo mais lentas por outras mais rápidas e ainda, por 54

Na América em geral há inúmeras formas de racismo, que estabelecem atitudes e restrições contra latinos, africanos, ciganos e indígenas, com a introdução de mudanças de posições tal como aconteceu com os judeus de origem européia, que de marginalizados passam a integrar os grupos de poder. A análise do racismo revela-se irredutível aos termos gerais da análise de classe e uma análise social do ambiente não pode ignorar a complexidade desse fenômeno.

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situações em que se combinam diversas escalas de tempo em um mesmo ambiente social tal como acontece no Brasil de hoje. Há avanços e retrocessos, com movimentos de aprofundamento na industrialização da produção em seu conjunto e retrocessos que em diversos momentos tomaram a forma de desindustrialização. Progresso e atraso se alternam em consonância com as condições da economia e da política mundial, em que a industrialização depende de controle sobre a renovação tecnológica e das condições de financiamento da produção. Ganhos de produtividade nas fábricas podem ser anulados por variações nas condições ambiente para os investimentos. A análise econômica e política do ambiente precisa ser informada por uma conceituação de tempo que reflita esse princípio geral e seus desdobramentos em condições específicas da vida social. Será preciso distinguir como o tempo tem sido tratado em Filosofia, nas Ciências da Natureza e nas Ciências Humanas. Os grandes questionamentos sobre o tempo estão na Filosofia, por autores como Heidegger e Bergson entre os mais ou menos novos e em Hegel e Kant entre os clássicos da modernidade. Desde as colocações de Kant tratando o tempo como categoria anterior a qualquer experiência até Heidegger tomando o tempo como o lugar ontológico do ser, há um longo e complexo percurso do pensamento moderno sobre o tempo que não poderia ser ignorado pelos estudos contemporâneos do ambiente, ao risco de que eles percam sua legitimidade científica. Da extensa literatura sobre o tempo, nas ciências naturais, em filosofia e nas ciências sociais cabe destacar as contribuições de Prigogine & Stengers (1992) que nos remetem ao tempo como à medida de transformações55. Como a análise do ambiente está situada em tempo histórico é preciso trabalhar com uma combinação de escalas de tempo, desde o tempo geológico ao da vida social, admitindo que há inúmeras possibilidades de coincidência entre eventos dessas diferentes escalas que configuram as transformações do ambiente. Para uma análise de processos que estão historicamente situados e que se referem a relações mutantes com o meio natural é preciso que a conceituação de tempo corresponda a das transformações do ambiente. Não serão feitos muitos progressos 55

Não cabe uma revisão das idéias sobre o tempo no pensamento moderno, mas não se pode deixar de assinalar que esse é um tema que marca a filosofia de Kant, que reaparece na disputa entre a pertinência de uma ciência social montada sobre tempo nulo - que é a base da análise estática – de uma análise dinâmica serial e de uma análise efetivamente histórica que contempla situações de contemporaneidade e interações entre processos.

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discutindo se a flecha do tempo contradiz uma teoria da irreversibilidade, mas é preciso estabelecer quais são as condições históricas de tempo com que se trabalha. Há um tempo das transformações planetárias que afeta a todos, há escalas de tempo das diferentes civilizações e há diferentes condições de comparabilidade entre civilizações. São diferentes momentos entre quando uma e outra controlaram seus problemas básicos de alimentação, quando foram capazes de organizar uma escrita ou de construir cidades com materiais permanentes. A percepção de tempo com que se pode trabalhar a questão do ambiente de modo atual é essencialmente complexa e deriva do modo como a sociedade realiza uma relação prolongada com o meio natural onde se instala. Trata-se com uma pluralidade de condições de tempo ou simplesmente onde não há flecha do tempo e há somente espaços datados como quer Penrose (1992, pp.335). O ambiente se vê na perspectiva do mundo social, para o qual existe o tempo da história da vida social, com suas estruturações e transformações, que se desenvolve com uma memória desigual e seletiva. O tempo no contexto do ambiente é o do mundo social e de suas transformações, que se desenvolve por contraposição ao tempo do mundo natural. Será preciso distinguir as condições gerais do tempo e do espaço e as condições específicas em que se têm relações com o tempo. Estas últimas prevêem que as condições de relação com o tempo sempre mudam, isto é, de que há evolução56. O princípio geral de evolução rege a conceituação de tempo e de espaço no mundo social situando as condições específicas de tempo dos diversos processos específicos. Os espaços existem no tempo, pelo que a ordem geral do tempo pressupõe uma sucessão de espaços diferenciados, cuja configuração está sempre sujeita a variações. A ordem específica do tempo histórico contempla a criação de espaços temporalmente interdependentes, cujas características são geneticamente associadas, mas cujos traços formais jamais se repetem. É o que acontece no processo de reprodução através de colônias. Em síntese, a interdependência entre as noções de tempo e de espaço é fundamental para a construção de uma teoria social historicamente coerente.

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Em seu sentido mais amplo a noção de evolução refere-se a tudo que há no universo e não somente às espécies vivas, o essencial será o processo químico que enseja as formas de vida e que permite seu desenvolvimento. A ciência moderna está ligada à noção de condições de evolução e não só aos fatos da evolução.

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Em sua contextualização histórica, a heterogeneidade dos espaços é uma premissa necessária da análise social do ambiente, em que os tempos dos processos correspondem aos espaços onde eles se realizam. Nesse sentido, as diversas experiências, tal como a produção de lavouras em grande escala, só podem ser explicadas quando é colocada em determinados momentos da economia mundial. Por exemplo, a produção de algodão teve um período de produção de matérias primas para exportação e outro em que essa produção foi absorvida por produção industrial nacional. O desenvolvimento de processos sociais cria espaços – como os da produção açucareira e do tráfico de madeiras – que têm diferentes durações, mas que não se repetem, por mais que se assemelhem. Aceitando aquele preceito de que “nada no universo tem permanência temporal. Tudo tem história.”57 Será preciso tomar o ambiente como um problema histórico, que se apresenta às sociedades de hoje, que se coloca mediante a constituição de espaços transitórios e interconectados58. A análise histórica tem que trabalhar com essas interconexões que captam a complexidade da temporalidade do ambiente. Na inter-relação entre o sistema produtivo e o meio ambiente há diferentes condições de interação entre processos anteriores e processos em curso com características próprias do campo social e com regras próprias da natureza. Tais interações condicionam as opções futuras; as opções atuais de decisão estão sempre sobre margens de liberdade com que se trabalha. Umas e outras afetam diferentemente ao Estado e às empresas no que o primeiro opera com as restrições formais de orçamento e no que as segundas funcionam com restrições de custos do dinheiro. Desse modo, introduz-se uma leitura especial do tempo, que ao mesmo tempo mede eventos concretos e possibilidades de eventos. O lastro crescente do anterior

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Richard Morris, Uma breve história do infinito, 1998, p. 9. Por exemplo, um estudo da marcha da produção cafeeira no território brasileiro mostra duas grandes etapas, em que a primeira foi de uma marcha do café em busca de melhores terras para uma resposta imediata com pouca ou nula referência a fertilização etc. A segunda descreve deslocamentos territoriais orientados por referências de um mercado mundializado desse produto.

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No campo social os processos têm diferentes durações e se cruzam dando diferentes significados ao tempo, bem como condicionando o modo como os processos anteriores tornam-se restrições dos atuais, como o passado pesa sobre o presente como um “fardo” que tem diferentes pesos para os diversos grupos que o viveram. Os processos se cruzam no tempo e os efeitos de uns processos sobre outros se prolongam, tornando necessário distinguir entre o passado inoperante e os processos passados que influem no presente. O que realmente define a relação entre o sistema produtivo e o sistema de recursos é a distinção entre a esfera das práticas superadas e a das práticas vigentes. São elas que determinam a funcionalidade dos agentes sociais e que estabelecem pautas de ação. O sistema produtivo está sempre sujeito a movimentos interdependentes de valorização e de desvalorização de ativos e da qualificação e da perda de qualificação das pessoas, em concomitância com perdas específicas em sistemas demarcados de recursos. O trabalho comandado cria valor que é absorvido pelo sistema sócio-produtivo e alimenta o dinamismo do sistema, em que se selecionam as formas de capital que serão preservadas e as que serão destruídas. A desvalorização do trabalho é o mecanismo de controle dos salários dos trabalhadores, em cujo âmbito há tendências gerais por grandes classes de trabalho e tendências específicas. Estas situam a desvalorização por classes sociais, grupos de renda, etnias etc. A desvalorização muda de modos e formas ao longo do tempo e põe os trabalhadores na posição defensiva de sempre precisarem atualizar qualificação para permanecerem em seus grupos de renda e em suas situações de prestígio com suas opções de mobilidade. Na prática o sistema produtivo está constituído de sistemas institucionais e de sistemas técnicos, impregnados de ideologia, que são as representações dos interesses envolvidos no processo de produção em seu conjunto. Os sistemas de produção se transformam continuamente em seus elementos essenciais ou nos complementares, expandindo-se ou contraindo-se, mas mudando sempre de composição, tal como indicou Marchal (1955). Suas transformações jamais ficam restritas à esfera das tecnologias porque suas implicações sociais são inevitáveis. Tampouco há como separar as instituições dos processos econômicos e técnicos. Por exemplo, a revolução dos transportes iniciada no fim dos anos 60 traduziu-se em mudanças de equipamentos e de qualificações e alterou as relações de poder entre empresas e governos.

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Esses movimentos atingem os modos de uso dos recursos já disponíveis e o capital acumulado, regulando as condições de mobilização de recursos novos. Há uma relação essencial entre o que está instalado e em uso e o que precisa ser instalado para viabilizar o uso do que já está em produção. Essa relação orgânica entre os padrões de depreciação do que foi instalado – e não pode ser revertido – e o que precisa ser incorporado para sustentar no tempo a valorização do capital instalado é o que se passa aqui a denominar de dinâmica generacional do capital e pode ser representada como a combinação de efeitos progressivos positivos e efeitos progressivos negativos. Trata-se, portanto, de ver a praxis como o processo de trabalho historicamente situado, que se realiza como um movimento em cadeia, em que o novo está ancorado no velho e em que há uma relação orgânica entre o prático vivo e o prático inerte, que renova constantemente o significado da praxis atual. Cabe ver a praxis como transicional, sempre encaminhando mudanças no sistema produtivo. A economia do ambiente reflete a relação social que se realiza no movimento duplo de apropriação de recursos naturais e de adaptação da sociedade à natureza, ao tempo em que registra os dados das transformações do mundo físico que estão além da capacidade de intervenção da sociedade. O ambiente é o modo vivo como a natureza se apresenta no processo de produção, por isso mesmo, representando um histórico de movimentos intencionais e derivados do acaso. Essa é a relação social que reúne o componente vivo – o prático vivo, que resume o conjunto das práticas da sociedade – ao prático inerte, que representa os resultados físicos de práticas anteriores e que está incorporado no sistema produtivo na forma de patrimônio. Na relação histórica entre o mundo natural e o mundo social, distinguiremos o natural inerte e o prático inerte, em que o primeiro é a representação do mundo natural tal como ele já se produziu e como se encontra estruturado e em que o prático inerte é o consolidado das práticas da vida social. A historicidade se realiza no mundo social com sua ancoragem no mundo natural. O prático inerte vem a ser a consolidação das práticas determinadas por situações anteriores, que constitui o subsolo das atividades de hoje. Está presente no mundo das práticas vigentes, podendo funcionar como limite do que

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pode ser feito ou como fundamento de mudanças tecnológicas, tal como aconteceu, por exemplo, com os moinhos de vento que deram lugar a usinas eólicas. A percepção da prática acumulada impõe explicar se as práticas mantêm sua capacidade de se acumularem ou se estão sujeitas a processos de ruptura que nos obrigam a pensar em pulverização e em descontinuidade. Por exemplo, uma análise da variedade de usos de tração animal na produção rural mostra situações de ineficiência junto com situações em que o aperfeiçoamento da tração animal oferece vantagens de eficiência frente ao uso de maquinaria. É a relação do vivo com o inerte que situa o vivo como história atual, diferente de práticas esporádicas sem conseqüência. Essa relação pode ser tanto ou mais construtiva segundo a sociedade carrega uma memória consciente desse processo, isto é, segundo a sociedade é capaz de transformar sua memória em um processo de revalorização. A revalorização surge de uma relação constante com todo o produzido, que pode vir a construir um conjunto coerente ou que pode ser um conjunto parcialmente coerente com elementos de incoerência. Na relação ecológica entre o vivo e o inerte há passagens de uma condição a outra, tal como se vê com o vulcanismo ou como se encontram modos culturais que se formam em interação com essas manifestações naturais. Quando um povo tradicionalmente nômade se sedentariza há uma passagem de um modo de relação com o ambiente a outro, que altera seus padrões de usos de recursos e altera a habitabilidade e a capacidade de sustentação dos sistemas de recursos. Quando um povo como os palestinos perde seu território e vem a depender de outros há um retrocesso civilizacional cujas conseqüências violentas são inevitáveis. O movimento de transformação do ambiente liga práticas anteriores às possibilidades de práticas futuras. Em cada momento, em cada lugar, há conjuntos de práticas que combinam modos anteriores e modos atuais de fazer as coisas, geralmente organizados em torno de algumas tecnologias principais. O que caracteriza a civilização é o processo socialmente incorporado de observação e de aperfeiçoamento das práticas, transformando a tradição em atualidade. O padrão tecnológico é sempre um resultado combinado, sujeito a uma variedade de alterações indicadas pela experiência da prática.

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O sistema produtivo funciona mediante a combinação de um componente de acervos criados por práticas produtivas anteriores e de acervos que são parte de práticas atuais, onde a esfera das práticas anteriores pré condiciona as possibilidades de realização de práticas atuais. O desenvolvimento de novas práticas altera o modo como a sociedade consegue aproveitar os resultados de trabalhos anteriores, que é como se revaloriza ou desvaloriza o patrimônio disponível. Isso é o que acontece, por exemplo, com os sistemas de irrigação, cujo aproveitamento do capital fixo pode ser substancialmente modificado mediante modificações nos processos de trabalho. Há uma diferença substancial entre regiões que são trabalhadas pela primeira vez e regiões que são trabalhadas há muito tempo e que têm o registro de uma progressão de formas de produção. O prático vivo carrega as práticas anteriores mesmo quando se separa delas. A moderna indústria do vestuário carrega subsumidas as competências do alto artesanato do vestuário, junto com as da produção manual em larga escala. A percepção do sistema produtivo como de um conjunto de práticas historicamente situadas constitui uma abordagem que nos permitirá, adiante, ver como o sistema produtivo processa os movimentos de valorização e de desvalorização do capital e das pessoas. O passado torna-se presente através de práticas que recebem novos usos; e possibilidades de desenvolvimento tecnológico para o futuro integram novas combinações de tecnologia. Entende-se que não houve uma verdadeira substituição da atitude civilizatória de apropriação de recursos naturais – que tacitamente se consideravam inesgotáveis – por uma atitude de extração compatível com a reprodução dos sistemas, senão que a nova consciência de limitação dos recursos convive de modo contraditório com a postura depredatória. No essencial, o sistema produtivo continua sendo depredatório e não há razão alguma para supor que ele não caminha para o esgotamento. A relação entre sociedade e ambiente físico se realiza simultaneamente nos dois níveis, no de um movimento de produção social de valor, pelo trabalho socialmente incorporado, e no de um movimento de depreciação dos componentes físicos do capital. A produção social de valor se faz com usos combinados de recursos novos junto com meios de produção já incorporados ao sistema produtivo em processos de trabalho. Esse movimento duplo depende de ajustes orgânicos do sistema produtivo que aparecem no

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modo como a sociedade processa tecnologia59 e como os deslocamentos de tecnologia alteram as relações de produção. Não há, portanto, como separar os deslocamentos da tecnologia e a concentração de capital. Esses processos de trabalho utilizam equipamentos e instalações que perdem valor, bem como usam materiais cuja reprodução está fora do controle dos produtores.60 Os produtores médios individuais estão sempre a mercê dos grandes produtores que comandam a renovação tecnológica e os preços dos materiais com que se produz. O preço em mercado dos equipamentos reflete apenas condições imediatas de mercado, mas está sujeito a variações determinadas pelos ajustes de tecnologia. A análise econômica constituída para representar a produção capitalista precisa de referências sobre as perdas de valor que acontecem por desgaste dos materiais e por envelhecimento tecnológico, isto é, por obsolescência. O desgaste físico decorre do processo de trabalho e resulta em materiais que se tornam inaptos para a produção e passam a representar custos de armazenagem. Por sua vez, o envelhecimento tecnológico passa por fora do processo de trabalho e funciona como um registro da equivalência entre diferentes equipamentos, com diferentes idades de uso. Observe-se que a relação entre o desgaste físico e operacional e o envelhecimento tecnológico é irregular, assimétrico, entre diferentes linhas de produção e mesmo entre diferentes produtos em uma mesma linha de produção. As condições temporais da análise A teoria social do valor precisa explicar as condições em que se dá a incorporação de valor em sociedades específicas. Para atender esse requisito é preciso estabelecer critérios de incorporação de valor e critérios de depreciação no sistema produtivo, já que, em ambos os casos, trata-se de variadas combinações de elementos cuja duração

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O estudo do processamento de tecnologia torna-se uma disciplina que liga engenharia e sociologia na produção e que passa a ter especial interesse para a escolha de tecnologias limpas. 60 A recente polêmica acerca do esgotamento dos cardumes de bacalhau representa uma restrição fundamental da alimentação de diversos países, especialmente dos europeus. Esse exaurimento de cardumes surge com características diferentes daquelas do esgotamento de bosques bem conhecidos, já que em todo caso existe um fator de falta de conhecimento do meio em que os cardumes se reproduzem, portanto, que se trata de outro tipo de incerteza, diferente daquela incerteza em pesquisas sobre campos plenamente conhecidos.

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não pode ser definida. Por exemplo, qual a duração que deve ser atribuída a um sistema de irrigação? Há uma duração inicial prevista e uma outra que se obtém mediante um serviço de manutenção, cuja qualidade e constância podem ser variáveis. É possível supor que os equipamentos industriais envelhecem mais depressa que os pré-industriais, mas não há uma regra que defina suas escalas de duração. Podemos apenas aproximar para dizer que a escala mais provável é dada pela comparação entre a vida útil inicialmente prevista e os custos de manutenção com que ela pode ser prolongada. No momento em que os custos de manutenção superarem os custos de substituição de equipamentos eles deverão ser trocados. Igualmente, quando os custos de manutenção crescerem mais que a diferença de renda entre a do equipamento amortizado sobre um novo a substituição será indicada. Mas, nesse tipo de avaliações, há sempre o peso de que os novos equipamentos permitem estender o cálculo de custos/renda sobre um período mais longo. Trata-se, portanto, de que sempre há uma relação direta entre o perfil do desenvolvimento tecnológico e o dos usos dos recursos, em que as transformações que acontecem. Por exemplo, na extensão e na composição dos bosques tornam-se parâmetros - que se aceita “provisoriamente” à falta de indicadores mais precisos - das tendências da reprodução dos sistemas de recursos físicos. Esta visão da especificidade dos processos é que sustentou a abordagem de estilos de desenvolvimento, que será necessário examinar adiante (SUNKEL & GLIGO, 1982; PINTO SANTA CRUZ, 1978). A noção de estilos de desenvolvimento correspondia ao desejo de contar com ferramentas de análise derivadas de experiências históricas, separando-se das condições genéricas dos modos de produção. Esta noção de estilos de desenvolvimento pela qual se batalhou muito nos arraiais de um pensamento latino-americano do desenvolvimento veio representar esta capacidade de extrair elementos válidos de generalidade de práticas aparentemente locais e longamente desmoralizadas pela perspectiva unificadora dos colonizadores. Por meio da polêmica dos estilos de desenvolvimento encontra-se um caminho para ligar a economia política do ambiente à economia política do desenvolvimento. Observe-se que os efeitos cumulativos de irreversibilidade, que surgem dos mapas de indiferença antes comentados, vêm a ser indicativos de tendências dos sistemas e que as restrições de recursos se convertem em efeitos que se generalizam no sistema de

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produção e se tornam cumulativas. A rigor, não há efeitos isolados e mesmo aqueles que se apresentam como insignificantes podem ressurgir como significativos mediante cumulatividade em longo prazo. Os efeitos que acontecem distantes do centro terminam por desenvolver mecanismos de contato, tal como aconteceu com as comunidades que foram coercitivamente reorganizadas por grandes obras públicas. O ruflar das asas de uma borboleta pode se transformar no de uma onda de gafanhotos.

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7. Custos crescentes e rendimentos decrescentes

Os custos existenciais da vida moderna Quando Riobaldo Tatarana61 diz que viver é um assunto difícil faz eco ao payador Yupanqui62 que diz o mesmo e ao padre do filme Roma cidade aberta, que diz que morrer é fácil difícil é viver exprimindo uma visão existencial dos pobres. O custo existencial da vida moderna está claramente dividido entre os custos dos pobres e o dos ricos e, assim como há custos no abandono a que sempre esteve submetida a pobreza em geral, há custos próprios da sobrevivência no mundo industrializado que transcendem as condições de emprego e renda e que se identificam mais com o risco constante de desemprego. É a visão ontológica do pobre, ou é a metafísica da pobreza. Para o pobre o ambiente é ativamente hostil. Na superfície, a sociedade do capital se organiza em termos de custos e preços, mas uns e outros representam condições de determinar o que se compra e o que se vende. Por trás da clareza das regras do mercado encontram-se custos existenciais de conviver com dificuldades constantes e crescentes e condições muito desiguais para superar dificuldades. Assim, a simbologia dos custos, que se toma como base para organizar a análise econômica dos problemas sociais ligados ao ambiente, precisa ser vista em sua dimensão existencial, cujo alcance opera muito mais a fundo nas oportunidades e nas possibilidades da vida no mundo moderno desigual. Um instrumental singelo e eficiente Na luta constante para sobreviver à concorrência, as empresas são submetidas a uma prova constante de esforço que contrapõe sua capacidade de obter a maior produção possível com os recursos disponíveis e ao menor custo possível, procurando, além disso, construir estruturas de custos menos vulneráveis à incerteza. A percepção de custos teoricamente é universal, mas na prática diferentes empresas e produtores operam com

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Personagem de Grande sertão, veredas de Guimarães Rosa. O cantor e compositor argentino Atahualpa Yupanqui.

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distintas visibilidades de custos, manifestando as reais diferenças de desempenho entre produtores de grande e pequeno porte com variadas condições de qualificação. Isso significa que as empresas tratarão de eliminar todos aqueles custos que podem se converter em fatores de risco na medida em que elas conseguem perceber seus próprios riscos e os de seus concorrentes63. Segundo rotas de desempenho os riscos aumentam, se estabilizam ou diminuem, mas dados ajustes constantes no mercado, não há situação alguma em que os riscos desapareçam por completo. Na busca de um instrumental de análise, entende-se que a combinação das hipóteses de custos crescentes e rendimentos decrescentes é uma peça central do arsenal disponível na teoria do alto marginalismo64, que pode ser usada a partir de alguns ajustes sobre as implicações da situação da análise no tempo e de hipóteses de estrutura de mercado. Há custos crescentes a partir de certos pontos de um sistema de produção, portanto, é preciso definir quais são os pontos a considerar na identificação de custos ambientais crescentes, bem como considerar quando o crescimento dos custos pode alterar de modo significativo a relação entre a produção e a reprodução de um sistema ambiental. A hipótese com que se trabalha aqui é que a mudança de inflexão na curva de custos aparecerá quando ampliar a participação de recursos não substituíveis na composição da produção. Logicamente, o descobrimento de novas reservas, tal como acontece hoje com as de petróleo, empurra para diante a constrição dos custos sistêmicos mas como são recursos não renováveis a hipótese de custos básicos crescentes continua válida. Sempre há custos e riscos que só se descobrem como se começa a explorar os recursos , mas em alguns setores as perspectivas de aumento de riscos são inexoráveis. Crescem custos e riscos quando um país aumenta seu componente de energia nuclear sem ter controle suficiente sobre riscos futuros e aparentemente pais nenhum tem essa garantia. Como os custos passam a crescer mais a partir de certos pontos de descolamento da produção em relação com certos patamares de demanda, cabe considerar a hipótese de que os custos se tornam crescentes quando a produção não consegue acompanhar o 63

A idéia fixa de reduzir custos do trabalho demitindo trabalhadores é uma estratégia de redução de custos, em princípio ligada ao manejo de tecnologia, mas significa realmente uma defesa da taxa de mais valia frente a movimentos restritivos de mercado. No essencial representa um poder de monopólio no mercado de trabalho, mas envolve outros riscos, como os de qualidade, que afetam a posterior a competitividade. 64 Referência à obra de Alfred Marshall.

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crescimento da demanda, portanto, quando existe rigidez do sistema produtivo. Essa defasagem pode ser atribuída a uma decalagem no tempo entre os movimentos da demanda e os de ampliação de capital ou pode simplesmente ser que o sistema se orienta em outra direção e essa demanda inatendida é considerada descartável. Esta hipótese tautológica neste caso se torna importante porque aqui se trabalha com restrições quantitativas de recursos. A operacionalidade do sistema produtivo surge de uma combinação de programas de produção, condições de organização e situações conjunturais que determinam as condições de mercado em que as empresas operam. A competência dos gestores do capital é um dado essencial assinalado por Marshall, ao qual acrescentaremos seu compromisso com sua nação frente ao que têm com seus acionistas bem como seu efetivo enquadramento em uma legislação eficiente capaz de punir. Face ao movimento de controle da força de trabalho inerente ao desenvolvimento do capital, impõe-se um controle dos gestores do capital como componente necessário de uma sociedade democrática. Esta será a base para fiscalização significativa da corrupção e para eventual punição de infratores. A operacionalidade das empresas é dada pelas condições com que elas manejam os elencos de produtos com que escolhem trabalhar, que representam determinados perfis de mercado65. São peculiaridades de mercado para empresas que operam com produtos de informática, de alimentos básicos ou de equipamentos bélicos e os horizontes de demanda com que trabalham estão sujeitos a diversas condições de previsibilidade. Tais dados de mercado situam os cálculos econômicos das empresas individuais, em que cada uma delas tem seu próprio panorama de custos e suas perspectivas de expansão de mercado, entendendo-se que a mudança de ramo ou a diversificação envolvem dificuldades e riscos com que as empresas não estão habituadas. Este último é um dado essencial da questão, já que o capital sempre se desloca na direção em que o mercado se expande. São as condições nas quais acontecem custos

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A escolha de um produto constitui uma opção sobre uma linha de produção e sobre efeitos em cadeia que se prolongam como vantagens para realizar produtos derivados do inicial, configurando vantagens externas que se internalizam progressivamente. A troca dessas vantagens por uma nova linha de produção significa o translado entre diferentes circuitos de mercado com os riscos correspondentes.

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crescentes na produção, que definem os esforços das empresas para manterem suas posições no mercado. A hipótese de custos crescentes depende de uma infinidade de condições específicas de mercado e é por isso que existe uma variedade de situações de adaptabilidade das empresas a variações do mercado. Há, portanto, uma relação entre as condições gerais de expansão ou de contração do mercado e as condições específicas em que cada empresa define seus custos em sua escala de produção. Cada empresa se move entre o que há de generalizável e o que há de específico nas condições de mercado em que opera. A diversificação das atividades das empresas faz com que elas transitem entre diferentes situações de mercado. O mercado não é sempre o mesmo nem mesmo para as empresas que compram e vendem dinheiro. A produção em geral se faz mediante uma organização social que compreende as etapas de produção e de comercialização combinadas, aparecendo no mundo do capital na forma de negócios (MARSHALL, 1920) e no mundo das políticas públicas como programas e projetos de investimento. Todos os projetos de investimento são parte de um planejamento de aplicações de capital, que tanto acontece na esfera do Estado como na das empresas. Tanto os negócios como as políticas públicas são manifestações de poder que se refletem em oportunidades de emprego e de renda, portanto, em controle da força de trabalho. As decisões de aplicar capital têm sempre conseqüências além de seus efeitos econômicos diretos e que se refletem até nas relações familiares e nas comunitárias. Descobre-se um sentido de finalidade que é inerente à seleção dos investimentos, mas que é posto de lado pela teoria econômica e pelas políticas públicas oficiais. No ambiente de queda do efeito emprego dos investimentos no mundo do capitalismo avançado, as margens de liberdade para mobilidade dos trabalhadores diminuíram, bem como seus espaços de autonomia para sobreviver em ocupações autônomas. Como a qualificação tem menor poder de garantir renda, as estratégias de sobrevivência levam os trabalhadores semi-qualificados a se deslocarem entre perfis de qualificação em busca de acesso a maior número de alternativas de trabalho, mas, principalmente, em busca de estabilidade de renda. Há uma mobilidade essencial dos trabalhadores que

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encontra sua expressão radical nas migrações, internas e externas, que são situações em que os trabalhadores assumem os riscos de mudar. A precarização da renda das maiorias revela novos mecanismos de diferenciação social, segundo alguns grupos têm acesso garantido a emprego, outros têm facilidade para concorrer por postos de trabalho e outros têm grande dificuldade para entrarem no mercado de trabalho e para se manterem nele66. Assim, para os trabalhadores possuidores de qualificações válidas a participação na produção capitalista é uma oportunidade de vender tempo, cujo uso é decidido pelos contratantes. Tais contratantes agem em função de perspectivas de lucro, que nada têm a ver com a continuidade do engajamento dos trabalhadores nem com a do uso de recursos específicos. A organização da produção sintetiza um conhecimento técnico e uma capacidade operacional que é controlada por uma parte da sociedade. Os negócios e as políticas públicas constituem o lado operacional do sistema produtivo, identificando aqueles que agem no plano institucional e aqueles outros que gerem o capital ou realizam trabalhos. A interação entre Estado e empresa opera nesse marco, com uma crescente iniciativa dos governos nacionais como âncoras dos negócios do grande capital. Com a industrialização da produção o sistema produtivo tem evoluído sempre, desde sistemas simples a sistemas progressivamente mais complexos, em que a produção de bens finais se realiza por procedimentos cada vez mais indiretos e em que a capacidade de antecipar processos e técnicas é fundamental para a sobrevivência dos capitais. Nessas condições, as relações de trabalho se tornam mais distantes, chegando à coisificação dos trabalhadores. A separação entre o trabalhador e o conhecimento na constituição de uma sociedade do conhecimento despersonalizado é a redução da força de trabalho à circunstância do trabalho (GORZ, 2006), levando a dominação do trabalhador da oficina a sua residência. Sob essas condições de concorrência controlada por oligopólios, a contratação de trabalhadores depende da expansão do mercado, que é um argumento a ser reintroduzido na teoria junto com uma visão crítica das transformações do sistema. O

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Esse mecanismo já fez com que no Brasil as diversas profissões de nível universitário se diluíssem ou fossem substituídas por concursos públicos que se tornaram a principal meta de todos os jovens.

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problema prático de conciliar decisões de empresas individuais com os ambientes específicos de contratação de capital em que elas operam vai aparecer configurado na diferença entre os custos individuais e os custos médios dos capitais. O mecanismo central de demanda de capital das empresas, proposto por Wicksell (1967) para explicar o mecanismo que divide estratégias de se expandir ou simplesmente de se manter no mercado, que liga as inovações tecnológicas ao mercado de dinheiro, mostra como os usos de recursos naturais, em última análise, dependem das condições do mercado financeiro. A ampliação das escalas de mercado e a fluidez de transações entre diferentes espaços de mercado é um fator decisivo nessa trajetória. Nesse contexto, a responsabilidade pela reprodução dos sistemas de recursos físicos torna-se também mais distante e menos personalizada. Para o cálculo econômico das empresas os sistemas de recursos físicos são implicitamente todos redutíveis a preços em mercado, o que é uma ilusão que tampouco serve aos interesses das próprias empresas. Esse movimento mascara o significado ideológico da organização da produção que sempre tem interesses incorporados (vested interests), influindo no modo de organizar e no de usar a organização. A necessidade de administrar as escolhas de tecnologia faz com que o sistema tenda a mudar com a emersão de conflitos e convergências de interesses, diante de situações concretas dos negócios. A realização de negócios é uma experiência de classe, que é absorvida de diferentes modos pelos diversos participantes da produção. A concentração desse conhecimento pelo grupo social dos gestores do capital passa por processos de socialização, em que mudam os integrantes do grupo dos capitalistas e em que outros grupos ganham conhecimentos sobre como gerir capital. Há uma diferença entre a gestão operacional do capital e a gestão do capital financeiro que, finalmente, se desenvolve entre a gestão do grande capital e a de pequenos capitais.

Restrições físicas dos sistemas A organização econômica da produção enfrenta sempre diferenças de disponibilidade de recursos, refletidas nos preços de mercado dos insumos. Restrições de oferta de insumos fundamentam a regra geral de que a produção enfrenta uma tendência básica a custos

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crescentes, que se impõe com o crescimento da população e com a urbanização. A noção marshaliana de custos crescentes e rendimentos decrescentes tem que ser tomada como referência de uma tendência geral que representa como funciona o mundo dos negócios67. A organização social da produção envolve soluções técnicas e condições de organização social que se arranjam em coleções, que são as tecnologias. Isso significa que são sistemas mais “inteligentes” em que se usam mais conhecimentos especializados, portanto, que usam mais recursos humanos qualificados. Nessa progressão de tecnologias, abandonam-se, sucessivamente, recursos que se tornam inadequados ao sistema produtivo, assim como se procura evitar o uso de recursos que se tornam perigosamente mais escassos. Por exemplo, a difusão do uso de cerâmicas e de plásticos de alta densidade é parte de uma tendência de evitar metais que se degradam com facilidade e de procurar materiais mais resistentes e mais leves. A substituição de carvão por petróleo e por energia de fontes renováveis tem efeitos ambientais maiores que aqueles que se registram em cada empreendimento. A substituição de materiais é uma tendência de componentes do sistema produtivo, mas que se torna uma regra da evolução do sistema produtivo em seu conjunto. Subentende-se, portanto, que a serventia dos recursos para o sistema produtivo depende de que haja técnicas capazes de usá-los. Paralelamente, os recursos humanos são tão qualificados quanto dominam o conhecimento disponível e sabem usar as técnicas disponíveis. Pode-se entender que o sistema procura os recursos de que precisa para produzir, assim como de que tenta desenvolver técnicas que lhe permitam produzir com os recursos de que dispõe. É um processo interativo, em que os interesses do capital conduzem soluções que adaptem a produção aos recursos e procurem recursos para as necessidades atuais da produção. Nesse contexto a valorização dos recursos incorporados na produção depende da disponibilidade estimada dos que podem ser incorporados, Em outras palavras, a valorização das jazidas de petróleo em 67

Na contribuição de Alfred Marshall (1842-1924) à teoria econômica distinguem-se dois aspectos principais, que foram o desenvolvimento tardio da teoria marginalista e uma análise prática do funcionamento do sistema de produção, pela qual desenvolveu uma perspectiva das ações econômicas como negócios que combinam indústria e comércio. A visão de que a operacionalidade do sistema acontece em condições de custos crescentes e rendimentos decrescentes implica em um tratamento da relação entre o sistema produtivo e o sistema de recursos naturais, que constitui a base de uma linha de análise que se torna essencial quando aumenta a lista dos recursos que se tornam escassos.

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aproveitamento compara-se com as variações na estimativa de jazidas que podem ser exploradas. O controle do conhecimento incorporado na produção se faz através da progressão de tecnologias, que têm elementos de continuidade e de descontinuidade, segundo as escalas e os níveis de tecnologia em que se encontram as diversas empresas. As tecnologias estão organizadas em grandes grupos, constituindo blocos de tecnologia e famílias de tecnologia68 e a substituição de uma tecnologia tem efeitos que se irradiam no sistema de produção de modo direto e indireto e que se prolongam no tempo. Por exemplo, a substituição de locomotivas a carvão por locomotivas a diesel tem efeitos regionais e no ambiente que se propagam além da vida útil desses equipamentos. As transformações dos sistemas de produção são guiadas pela lógica da reprodução do capital, que não tem relação alguma com a lógica da reprodução dos sistemas de recursos. A produção de tecnologia tem custos sociais que são absorvidos desigualmente pelos próprios agentes que criam as tecnologias, ou que eles transferem para a sociedade em seu conjunto, mediante financiamento preferencial ou subsídios, diretos ou indiretos, à produção de tecnologia. As despesas com pesquisas na indústria aeronáutica avançada finalmente são compensadas por ganhos de monopólio em contratos procurados pelos próprios governos. Na análise econômica do problema, torna-se necessário distinguir entre os custos para produtores individuais e para consumidores individuais e os custos para a sociedade em seu conjunto. Não se trata de uma simples divisão entre análise macroeconômica e análise microeconômica, já que se registram diferenças entre os sujeitos das ações e entre seus objetivos. Observe-se que os produtores individuais podem escolher não produzirem tecnologia, mas as nações não podem prescindir de tecnologia e têm que absorver esses custos de algum modo. Daí resulta a necessidade de classificar as tecnologias segundo seus efeitos gerais no sistema e seus efeitos nos ambientes territorialmente definidos. 68

Usa-se aqui a expressão bloco de tecnologia para denotar conjuntos interdependentes de técnicas que definem uma condição técnica geral do sistema produtivo e chamamos de famílias de tecnologia às interrelações em seqüência de certos conjuntos de técnicas. O manejo combinado de meios de transporte constitui um bloco tecnológico, enquanto a aviação a jato constitui uma família de tecnologia em que uma série de técnicas é mobilizada a partir da escolha básica de técnicas das turbinas.

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O pressuposto de interdependência tecnológica entre os países converte-se em premissa de uma lógica econômica do ambiente, em que (a) os custos ambientais atuais da produção se acumulam na produção futura; e em que (b) o esgotamento de alguns recursos obriga a substituir tecnologias. As diversas tecnologias passam a aparecer como recursos operacionais de duração limitada. Historicamente, os custos sociais da tecnologia têm sido cada vez maiores, alargando a distância entre os países e as empresas que podem produzir tecnologia e os que não podem, determinando distancias entre os que têm a capacidade de se manterem atualizados, comprando todas as tecnologias novas que lhes são necessárias e aqueles outros que ficam separados da renovação tecnológica. Isso significa que a gestão do campo tecnológico introduz novos fatores de distanciamento entre os participantes da produção, sejam elas nações ou empresas. O pressuposto básico da sociedade industrial avançada é que a renovação tecnológica se faz sobre um único padrão comandado pelo grande capital. No entanto, há uma variedade de experiências que mostram outras possibilidades – alternativas ou complementares – de que nações periféricas ou mais pobres, em diversas circunstâncias, têm contribuído para superar bloqueios de tecnologia ou simplesmente para criar novas alternativas de desenvolvimento tecnológico. A premissa fundamental da sociedade industrial avançada é que o movimento objetivo de renovação tecnológica se faz sobre um único rumo de desenvolvimento de tecnologia que responde a interesses de grande capital. No entanto, há uma verdadeira caixa preta de tecnologia, com troncos mais ou menos bem identificados, mas com inúmeros cruzamentos e com possibilidades de mudança de rumo, com becos sem saída e com interrupções. A tecnologia jamais foi um campo unificado e é preciso registrar progressos desiguais em diversos campos e perda de dinamismo em outros. Uma notável expansão da biotecnologia se compara com progressos muito mais lentos em campos como as indústrias têxteis e com perdas indiscutíveis na ponte entre a pesquisa laboratorial e os sistemas de ensino. Tanto em áreas aparentemente integradas como a energia nuclear e a biotecnologia há exemplos desse tipo, como em indústrias classificadas como tradicionais, em que a acumulação de experiência substitui em parte

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as pesquisas de laboratório e experimentais. A baixa valorização da experiência prática como fonte de aperfeiçoamento técnico é um dos aspectos que terão que ser revisados e avaliados.

Custos ambientais imediatos e em biodiversidade O que se reconhece como problemas ambientais em geral aparece nas formas de custos e de riscos, em que os custos pertencem a empreendimentos específicos e os riscos são do sistema produtivo em seu conjunto, incidindo nos diferentes componentes permanentes do sistema. Os custos correspondem às condições operacionais técnicas do sistema e os riscos à inserção do sistema produtivo no sistema natural. A cobertura do leque de problemas econômicos ligados a perdas ambientais enfrenta grandes dificuldades conceituais e operacionais decorrentes de não se ver o ambiente como uma totalidade e de não se contar com categorias representativas da pluralidade de temas que são tratados sob esse título geral. No plano dos conceitos há um problema relativo a como delimitar danos ambientais e estabelecer o que se reconhece como relevante e o que se considera irrelevante. No plano prático, há um problema relativo a como organizar as análises ambientais de modo que elas sejam aptas para sustentar políticas que não sejam somente defensivas. Estas ponderações vêm como antecedentes de fato que na análise econômica do ambiente jamais se vêm todos os custos com igual clareza, porque em cada momento há uma combinação de processos de trabalho de diferentes durações e que começaram em momentos distintos. A sobreposição dos processos é uma característica da produção industrial, na qual a superação de procedimentos técnicos surge de uma combinação de observações e de medidas locais com modificações de linhas gerais de política. Como é notório, a fluidez de informações e de políticas reflete as diferenças de experiência na base e no topo da pirâmide que são incomparáveis e entre as quais há pouca comunicação. Por isso, em cada momento as margens de autonomia com que se tomam decisões de produzir ou de consumir provêm de experiências de períodos que se concluem frente a momentos iniciais de novas decisões. O miolo do sistema para as empresas, para o Estado e para os indivíduos é o modo como uns e outros participam dessa combinação de períodos.

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Isso significa que há uma inércia do sistema produtivo que tem efeitos em cadeia sobre o engajamento de pessoas e o uso de recursos na produção pelo que, todas as novas decisões que representam alterações dessa inércia devem superar eventuais vantagens que se tenham acumulado da expertise no que já se faz habitualmente. Inovações tecnológicas significam mudanças no perfil de conhecimento e destreza dos trabalhadores e em cada caso específico há espaços de tempo entre aprendizagem e maestria no que se faz. No universo dos custos que se formam fora do sistema produtivo estão aqueles representados por perdas em biodiversidade, que é o modo sistêmico do mundo natural. São custos constituídos de perdas qualitativas do sistema, que se tornam irreversíveis, tal como acontece com esgotamento de jazidas minerais e desaparecimento de espécies vivas. Há custos diretos e indiretos que correspondem aos horizontes de duração dos equipamentos e custos que se situam em horizontes de tempo que não podem ser delimitados. A visão ortodoxa de custos é a da produção industrial na qual todos os equipamentos têm uma vida útil previsível e podem ser descontados em sistemas contábeis69. Mas há custos que não podem ser medidos como aqueles de sistemas de irrigação e de barragens. Há outros custos ainda, que ficam ocultos por trás das cifras de variações quantitativas, que são aqueles custos sociais das perdas em biodiversidade. No conjunto, é a diferença entre a análise de custos de uma indústria e a de um distrito de irrigação ou de uma usina hidrelétrica. Os problemas econômicos relativos aos custos ambientais requerem um detalhamento adicional no que toca às condições sociais da formação de custos. Formam-se custos dentro do sistema produtivo e custos para a reprodução futura da sociedade, que se referem à relação do sistema produtivo em seu conjunto com os sistemas de recursos controlados pela sociedade. A sociedade usa uma parte dos recursos que conhece e busca novos recursos para novos usos em um movimento que altera os valores relativos dos recursos disponíveis.

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Essa visão “ortodoxa” passa por alto o papel dos sistemas de manutenção que na prática modificam de modo significativo a vida útil dos equipamentos e condicionam as condições de concorrência entre empresas de escalas equivalentes de capital.

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As transformações do ambiente passam a ter valor econômico quando dão lugar a alterações na relação entre disponibilidade de recursos, meios de produção e demanda em mercado. Essas alterações fazem com que a atividade produtiva incorra em custos diretos e indiretos de produção e em custos sociais da perda de recursos não substituíveis que não aparecem na tela dos custos contabilizáveis. Concretamente, isso significa que a dinâmica do ambiente corresponde a um movimento geral de perda de energia que é determinado pela combinação das transformações naturais com as transformações causadas pela atividade social. Os desenvolvimentos da ciência que levaram a reconhecer a unidade geológica e climática do planeta colocam a ecologia como uma referência da estrutura de custos da produção industrial, quando considerada no horizonte de duração dos equipamentos ou no horizonte de previsibilidade da disponibilidade de recursos. Assim, o significado da produção em termos de energia é essencial, porque estabelece parâmetros de custos que não podem ser substituídos. Nessa perspectiva, toda produção tem dois significados de custos, que são o dos custos dos empreendimentos e o dos custos do sistema, que aparecem na forma de perdas do sistema, que podem ser classificados como de perdas em biodiversidade e de energia de sistemas locais70. As interdependências entre o desempenho de empreendimentos específicos e dos sistemas passa a ser um tema que interessa igualmente à economia do ambiente e a dos sistemas de infra-estrutura. Os custos dos empreendimentos são os aspectos superficiais imediatos de um problema que, de fato, se limitam aos elementos que podem ser percebidos a partir de empreendimentos específicos. Alternativamente, a sociedade precisa considerar custos que só podem ser percebidos ao visualizar o processo de inclusão do sistema produtivo no sistema natural. Para uma análise econômica do ambiente em nível macroeconômico, para países ou regiões, será necessário ir mais fundo nessa articulação entre os empreendimentos e os setores. A grande limitação da análise econômica decorre, justamente, de não considerar os custos da inserção de recursos novos no sistema, que é parte do problema geral de

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Nessa última categoria entram as perdas de mananciais e as perdas para os sistemas urbanos dadas por entubamento de rios etc.

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entrada e saída de recursos no sistema de produção. Assim, a análise de custos ambientais que se organiza a partir da perspectiva de empreendimentos específicos não registra os custos sociais da inserção e a perda de recursos. Desse modo, se desqualifica para tratar da questão da totalidade ambiental. A perspectiva ambiental é de um sistema aberto, que está submetido a condições gerais de perda de energia, mesmo quando se recompõe incorporando novos energéticos. O significado pleno dos custos ambientais terá, portanto, que ser abordado em dois momentos sucessivos e interdependentes. O primeiro deles corresponde aos custos de inclusão de recursos, em que há custos de pesquisa e de operacionalização, com alguns resultados bem sucedidos e outros frustrados. Por exemplo, como acontece com a pesquisa e a lavra de recursos minerais. O segundo refere-se às perdas do sistema de produção71, em que há perdas de recursos específicos e de sinergia do sistema de produção, que podem ser iguais ou maiores que o desgaste de reservas. Tais perdas sistêmicas determinarão tendências do sistema sócio-produtivo, menos previsíveis e mais incertas, ao depender mais de recursos não substituíveis e não renováveis. Finalmente, as perdas do sistema produtivo em seu conjunto afetam a organização social e técnica da produção, que compreende a busca de recursos novos e a realização da produção propriamente dita. Em resumo,

o uso de tecnologia é um processo

continuo que determina uma trajetória de custos desde os da busca de recursos novos até os da ponta de seus efeitos sociais. É preciso reconhecer que no capitalismo tecnologia é uma mercadoria cujo preço no mercado depende de sua validade e que, tal como acontece com toda mercadoria seu prazo de validade vence de modo inapelável.

Custos não lineares e biodiversidade A dimensão de biodiversidade desqualifica a premissa de variações lineares e em escala nos sistemas de recursos e que vêm as diversas demandas sociais como uma magnitude 71

Um exemplo decisivo dessa perda de sinergia foi a privatização do setor elétrico no Brasil, que olhou apenas a rentabilidade de unidades e voltou as costas à funcionalidade do sistema como tal. A partir daí percebe-se o efeito acumulativo de atraso nos investimentos para a capacidade produtiva aparente no sistema mas perde-se de vista o fator composição que indicaria prejuízos muito maiores consequentes de desajuste na funcionalidade dos componentes do sistema.

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agregada. Logicamente, essa concentração da pressão sobre o ambiente das cidades leva a desequilíbrios notórios entre os processos de ocupação de solo e de emprego, que geram diferentes processos de urbanização em uma mesma cidade. É algo que se configura desde o crescimento das cidades subsidiárias da expansão do capital mercantil, mas que se acelera com a urbanização industrializada. As cidades são movidas por essa dualidade de urbanização, que gera condomínios de luxo e favelas. As moradias tornam-se partes da nova formação de diferentes tipos de bairros que convivem segundo novas regras de composição desigual, separação social e violência. A pressão que exerce o capital jamais é linear porque exprime a composição técnica do capital acumulado. Será preciso distinguir ente os efeitos imediatos do conjunto dos empreendimentos de hoje e os efeitos progressivos no sistema sócio-produtivo, que são os que se transmitem pela complexidade do sistema. A biodiversidade é o caso extremo de propriedades estruturais, que aparecem nos sistemas de distribuição de energia elétrica. A principal dificuldade para a análise econômica consiste em encontrar parâmetros representativos dos alterações

de

tendências na reprodução de desvios introduzidos nas estruturas. Quando se trata de indústrias é possível introduzir um coeficiente representativo de tecnologia, por exemplo, que opere com diferentes fatores para substituições dentro de um dado perfil de tecnologia, ou considerando mudanças das tecnologias básicas. Mas no relativo à biodiversidade a situação é incomparável porque seria preciso trabalhar com coeficientes de complexidade que sempre serão números imprecisos, porque deverão descrever situações qualitativamente diferentes, que podem ser incomparáveis. Por exemplo, no relativo à região semi-árida é preciso admitir que há limites mínimos de umidade que funcionam como barreiras entre patamares de biodiversidade e de viabilidade para determinadas condições de interação entre flora e fauna. A hipótese de não linearidade de custos obriga a considerar situações sistêmicas interruptas, em que a capacidade de controlar desequilíbrios ambientais se torna necessariamente errática. Ou se focaliza nas rupturas dos processos históricos, tal como fez Foucault72 - que continuam sendo históricos – ou se tomam fatos isolados não seqüenciais, como fez Wittgenstein, ou ainda, se consideram efeitos extra-sistemas,

72

Michel Foucault, La arqueologia del saber, 1978.

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como fizeram Lévy Strauss e os diversos positivistas. Lembra-se que nenhum desses autores teve que se preocupar com as peculiaridades do desenvolvimento de tecnologias, que em algum momento refletem novos princípios de teoria “pura”. As originalidades do desenvolvimento da biotecnologia ou da nanotecnologia são produtos de tecnologia e de pesquisa científica, em que as passagens entre esses dois lados estão garantidas por diversos meios financeiros e institucionais. A hipótese de não linearidade seria, também, um argumento pós-modernista que pode levar a optar por trabalhar com os chamados impactos ambientais que na verdade são a negação da visão de ambiente como processo. Será preciso pensar em termos de processos de alteração de sistemas ambientais e não de impactos isolados. Finalmente, a não linearidade indica a necessidade de estabelecer uma sucessão de hipóteses adequadas a dar conta das mudanças com que se trabalha e definir parâmetros de biodiversidade sobre experiências concretas.

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8. Valorização e desvalorização

Valores e valor social O reconhecimento da questão ambiental como um tema inevitável no atual momento do desenvolvimento da produção capitalista leva a examinar os critérios com que ela é percebida, e rever os valores e as vontades que cercam as decisões sobre os problemas ambientais. Se as transformações do meio natural estão isentas de valorações sociais, as ações da sociedade que atingem o ambiente estão todas carregadas de valor, pelo trabalho que incorporam e pelo significado das escolhas por recursos específicos. Assim, as ações que afetam o ambiente refletem valorações culturalmente definidas e interesses de classes sociais. Se a análise ambiental ultrapassa o nível descritivo e contribui no plano explicativo do mundo social é porque aceita o desafio de tratar com os problemas de valores e de valoração social do ambiente. A teoria do valor é o fundamento da Economia Política e o verdadeiro divisor de águas entre a ciência social positivista e a histórica. Cobre a produção social de valor e a distribuição da renda. O tempo chega para as ciências sociais definido pelo trabalho que é a referência da relação entre a sociedade e a natureza. Os tempos de trabalho são os meios da produção social de valor que se torna generalizado e mede as relações entre grupos com diferentes condições de organização. No mundo da produção moderna o trabalho assume uma variedade de formas correspondendo à influência da globalização sobre a vida local e determinando como se extraem recursos naturais. A peculiaridade do sistema é dada pela rigidez da localização dos recursos naturais comparada com a mobilidade do capital e com a do trabalho. A polêmica acerca do ambiente põe a nu as diferenças de interesses e pontos de vista que convivem em cada sociedade e fundamentam opções de política. Interesses e tradições definem valores de grupos e de pessoas em seu cotidiano e em seu agir próprio do tempo de suas ações. Toda atividade social envolve valores que exprimem como a sociedade se vê no mundo e as diversas sociedades ao longo do tempo estabelecem valores que refletem sua experiência como e enquanto coletivos. Os valores se formam

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historicamente mediante um processo de polarização de interesses, desde as situações de organizações primitivas, as da colonização e as das sociedades de trabalho contratado. No modo como estão conformados no mundo moderno, os valores são atributos de classe social e são as referências com que se definem relações entre pessoas e com a natureza. A questão geral de valores marca o modo como se realiza o processo civilizatório. Em seu bojo estão as soluções às quais se chega para sobrevivência e para formação social de valor, o aparecimento de um valor social é a expressão do que é reconhecido como socialmente necessário. A teoria do valor trabalho ligou o esforço de produzir ao sentido de finalidade da produção. Aprecia o trabalho pelo que ele gera de necessário para a sociedade. Neste sentido, a teoria do valor trabalho é uma aproximação a uma teoria social histórica que abarca o mecanismo de articulação de capital e trabalho e a combinação desses dois com elencos de recursos naturais. Uma abordagem de Economia Política significa basicamente ver os modos de vida e os processos de produção como formadores de valor na prática da vida social. Tal como sinalizou Marx em um texto célebre, a atividade produtiva se realiza sobre efeitos em cadeia de processos iniciados antes, que lhe dão um caráter de continuidade. A formação de valor é uma apropriação social de trabalho realizada em interação com a reprodução dos sistemas de recursos físicos. Como estes sistemas têm localização definida no espaço a rigidez desse dado de localização torna-se um elemento de custo inseparável de todos os novos empreendimentos. Assim, as localizações das jazidas de minerais, da usinas hidrelétricas e dos portos são dados iniciais de todo e qualquer modelo de desenvolvimento econômico. Isto significa manejar modelos com um componente de constantes insubstituíveis ou substituídas e um componente de variáveis ajustáveis ao longo do tempo. A valoração cultural do ambiente A polêmica sobre o ambiente levanta uma questão acerca dos valores que a sociedade confere a formas de consumo ou a expectativas de consumo futuro ligadas ao jogo do poder. A questão geral do valor, isto é, a axiologia do progresso material, dá lugar a uma amarração mais estrita da valoração a condições materiais de vida e a interesses imediatos. A valoração tem um significado civilizacional, diferente de falar em termos de problemas ambientais dos grupos de indígenas excluídos ou vitimados pela

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colonização ou de falar em proteção do ambiente em que vivem as classes médias prósperas dos países ricos. A valorização terá sempre esses dois aspectos e chegará ao campo social como um jogo de compensação entre interesses sobre o que é atual e o que se atribui ao futuro. A percepção de futuro com a suposição de que há perspectivas de futuro melhor é um privilégio de grupos sociais abastados, identificado com suas perspectivas de vida profissional e de renda. A principal característica dos grupos de baixa renda é a falta de futuro, identificada com a ausência de garantia de continuidade de ocupação remunerada. Para o mundo social o ambiente natural é modificado pela criação de valor realizada através do trabalho socialmente incorporado, transformando-se em ambiente social. Significa que o ambiente se transforma continuamente, refletindo as relações de poder da produção. O processo de produção é uma produção de valor em sociedade, em que há uma incorporação de valor aos produtos produzidos e outra na qualificação dos trabalhadores, que vai para a remuneração da força de trabalho. Na perspectiva social os ganhos e perdas de valor em termos de qualificação da força de trabalho são determinantes de como o valor incorporado ao sistema produtivo pode ser aproveitado pelos diferentes participantes da produção. A capacidade de usar bem a água disponível é um traço inequívoco desta valorização do trabalho. Essa produção de valor tem aspectos positivos e negativos, em que os positivos estão cristalizados na própria produção e os negativos tomam a forma de perda de energia das pessoas, perda de qualificação, em incerteza de renda e em redução da vida profissional dos trabalhadores. Os aspectos negativos da valorização surgem mediante desvalorização do trabalho, ensejando discriminação de grupos de trabalhadores. O ambiente físico reflete essa incorporação de valor ao ambiente natural, onde a produção representa a progressão de opções dos que têm o poder de decidir acerca de que e quanto produzirem, portanto, sobre usos de recursos. O mundo da produção é o campo de ação social onde se decidem os usos de recursos, isto é, onde se realiza a mediação entre o controle do trabalho e o dos recursos físicos. Assim, o controle da água constitui um qualificativo decisivo do da terra, demarcando quais formas de produção podem ser compatíveis com a composição social da população.

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Para uma revisão crítica da produção contemporânea é preciso retomar o conceito de meios de produção, reconhecer que o conjunto dos meios de produção disponíveis compreende equipamentos produzidos em diferentes datas, cujo desempenho depende de condições sociais e técnicas específicas de aproveitamento. Os equipamentos são utilizados mediante combinações de domínio técnico, por sua vez, determinando os usos de recursos naturais. Uma questão crucial seria a de uma avaliação dos usos de combustíveis na esfera industrial, especialmente daqueles sobre cujo uso há consenso de que devem ser evitados, como o carvão. Com estas considerações chega-se a algo básico. Os meios de produção estão sujeitos a uma dupla datação, dependendo de foram fabricados e inseridos no processo produtivo, pelo que a datação efetiva é dada pelos interesses do capital e não só pelas datas registradas como propõe Sraffa73. A seguir, distinguiremos a atividade produtiva em seu conjunto e as esferas específicas da produção e da circulação. O valor gerado pelo trabalho é parte de uma progressão de atividades concretas e historicamente situadas, onde o valor gerado em cada uma delas depende do modo como elas se inserem frente às demais.

A historicidade do valor trabalho A teoria do valor trabalho é o coração da Economia Política, que desde suas origens no fim do século XVIII, trata a atividade econômica como um fato de poder que envolve as condições atuais e futuras de vida das pessoas. Isso quer dizer que a teoria do valor trabalho refere-se à produção de valor em situações historicamente determinadas e não em relações técnicas genéricas historicamente corroboradas. A teoria do valor trabalho é uma teoria da organização social do trabalho nas condições da produção capitalista e, nessa qualidade, contém os parâmetros com os quais se definem quais trabalhadores trabalharão e quais mercadorias serão produzidas. Longe de se imobilizar em descrever as relações de trabalho no universo da produção manufatureira, a teoria do valor

73

Em seu famoso Produção de mercadorias por meio de mercadorias (1961) Piero Sraffa utiliza a conceituação de datação de quantidades de trabalho na produção como meio de traduzir o conceito de composição do capital de Marx para o sistema industrial de hoje. Falamos aqui de uma datação imposta pelo próprio sistema produtivo.

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trabalho aparece como explicação válida do atual universo desigual da produção, em que a economia mundial é puxada por uma potência que funciona com poder predominante do Estado e com expansão simultânea em todos os níveis de tecnologia. Assim como os preceitos da teoria marginalista tradicional foram para o lixo com a depressão de 1930, cabe entender que a ortodoxia neoclássica segue o mesmo caminho desde a crise iniciada em 2008. Algo que está tacitamente colocado por Marx, mas a ser explicitado é que a produção social de valor se realiza em condições históricas determinadas. A produção de valor não depende somente de condições técnicas, senão também, das condições culturais e institucionais com que as técnicas são usadas, as quais surgem do encadeamento dos sucessivos períodos de produção. Noutras palavras, torna-se claro que as técnicas são formalizações de procedimentos sociais, que assim como falamos de um fetichismo da mercadoria, temos que reconhecer que há um fetichismo da tecnologia, em que a substância da tecnologia consiste em relações sociais consolidadas nos produtos, que são obtidos para produção. A progressão discreta das datações leva a admitir que o sistema de produção é essencialmente descontínuo e opera com intermitências de investimento, não necessariamente são rupturas, que não significam mudanças de rumo do sistema. A descontinuidade das aplicações de capital na produção tem os dois componentes de interrupções em processos rotineiros e de regulação de investimentos em novas linhas de atividade. Esse problema fica para ser resolvido por empresas ao determinarem suas diretrizes de crescimento. A descontinuidade dos processos de produção tem efeitos a montante de desorganização social e termina por atingir a relação entre o meio social e o físico. Há exemplos no Nordeste de comunidades que foram transladadas para construção de barragens e não encontraram como se inserirem na produção. O principal exemplo é o abandono de escravos quando da abolição, que os levou a regredirem a modos primitivos de subsistência. Esses antecedentes situam os movimentos de valorização como parte das alterações do ambiente, em que os sujeitos sociais intervêm no mundo da produção com a capacidade

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de submeter os usos dos recursos às condições prevalecentes de organização da produção. A valorização envolve a possibilidade de se situar o valor no tempo, isto é, de estabelecer um limite de tempo da formação de valor, portanto, uma referência da amortização dos acervos de capital. Na realização de investimentos a incorporação de valor aparece como conclusão da montagem de unidades produtivas – fábricas ou outros – que também define a vida útil esperada dos empreendimentos. A amortização financeira pressupõe um limite de cada empreendimento no tempo permitindo estabelecer um período de desconto do investimento. Esse pressuposto não se aplica em grande parte dos investimentos insubstituíveis, tal como nos de energia e transportes, passando a regular os demais investimentos. Está claro que a determinação de períodos de vida útil para barragens hidrelétricas e para sistemas de irrigação é completamente arbitrária e que os objetivos perseguidos nesse tipo de projetos são de perenização dos investimentos.

A valorização do ambiente O valor atribuído pela sociedade ao ambiente passa por uma mudança fundamental no relativo às alterações do ambiente, podendo regular e confirmar ou anular os esforços para o desenvolvimento econômico e social. A queda da hidrometria em escala mundial, o aquecimento e o vulcanismo – vejam-se os últimos exemplos do Haiti e do Chile - são eventos que se consideram como correções da visão antes prevalecente por obra do determinismo da Segunda Revolução Industrial. Uma revisão a fundo na valoração social do ambiente indica dois aspectos principais a considerar: o valor imediato de contar com um ambiente favorável para viver e trabalhar e uma perspectiva confiável de alterações prováveis do ambiente. No primeiro caso, por exemplo, aquelas cidades que contam com serviços adequados à sustentação do sistema produtivo. No segundo caso, previsões confiáveis, ou expectativas estatisticamente sustentadas de pouca incerteza. Diferente do que pode parecer à primeira vista, a grande confiabilidade de previsões meteorológicas da região semi-árida brasileira indicam que a superação de problemas de controle de água e energia –tecnologicamente definidos – reconhece essa região como um macroambiente extremamente confiável para o desenvolvimento. A valorização social do ambiente é parte dos processos de formação de capital, à luz de critérios de certeza e de incerteza, de risco atual e de superação de risco.

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Economias de capital constante A análise das economias de capital constante é uma contribuição de Marx à perspectiva ambiental da análise industrial que se considera aqui, ressaltando que o capital constante representa o conjunto das tecnologias em uso e uma determinada mobilização de trabalho. O capital constante implica em uma determinada articulação com trabalhadores cuja presença no sistema produtivo está desse modo definida. O processo das civilizações tem se realizado mediante uma progressão de instrumental, desde ferramentas simples a equipamentos complexos, que correspondem ao desenvolvimento de destreza e de conhecimento técnico e científico, operando sobre uma massa organicamente estruturada de meios de produção. Com a industrialização, aumentou rapidamente o número de equipamentos de usos específicos, tornando mais complexas as combinações de equipamentos e a produção mais indireta, com efeitos ambientais cada vez mais difíceis de serem identificados. Nessa evolução há equipamentos que continuam com suas funções iniciais e outros que mudam de funções ao longo do tempo em que são utilizados. Logicamente, as funções de equipamentos específicos dependem de ajustes dos sistemas de produção em seu conjunto, em que um aumento exponencial dos equipamentos feitos sob encomenda gera condicionamentos que se projetam no tempo, controlando os padrões de eficiência com que se trabalha e pré-determinando os usos de recursos naturais. Nesse contexto, cabe supor que a ordem de seqüência na substituição dos equipamentos altera a eficiência do sistema produtivo, mas não havendo razão alguma para supor que se trata de um princípio de aplicação geral a todos os tipos de equipamentos. Isto quer dizer que as transformações do capital constante decorrem de experiência e criatividade. Em seu conjunto a massa de meios de produção reflete o processo de regeneração do capital, que incorpora e substitui elementos e modifica os modos como eles estão estruturados. Com a ascensão da produção capitalista houve uma revolução burguesa, que forneceu a legitimidade para um controle privado do capital constante da sociedade em seu conjunto e é a experiência com os usos dos equipamentos que dá as referências para o desenho de novos equipamentos. É o lastro de capital constante da sociedade moderna, cuja operacionalidade significa um uso dos sistemas de recursos naturais. Há,

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portanto, uma relação direta entre a coerência técnica dos componentes do capital constante e o modo como são e podem ser usados os recursos naturais. A lógica da produção industrial se manifesta em escolhas de tecnologias básicas, tal como a da produção de aeronaves, que se encontra com a tendência de tecnologias de insumos, como a de plásticos de alta densidade, gerando padrões de convergência entre os rumos da tecnologia e os dos usos de recursos. Esta é a ligação prática entre o que se denominou de estilos de desenvolvimento e a análise do ambiente. Em texto seminal sobre este tema, Marx diz que as economias de capital constante (O Capital, Livro III) constituem o modo como se definem os interesses dos capitalistas no tema do ambiente, já que é como podem extrair uma renda adicional da comercialização de resíduos da produção industrial. O objetivo dos gestores do capital de obterem economias do capital constante aplicado levará os capitalistas no caminho da mais valia relativa, que é o modo de obter mais resultados de um mesmo pagamento de salários. A maior eficiência na relação salário/produto tem um aspecto de produtividade do trabalho que não necessariamente se converte em renda dos trabalhadores e que determina as condições em que tratam de usar meios de produção em geral, portanto, define o perfil de seus efeitos ambientais. No mundo da produção industrial o capital constante é a própria composição de bens de capital com que as empresas operam. O controle do capital constante é o passo necessário para realizar de modo contínuo o processo de produzir, portanto, garantir a reprodução do capital. Ao analisar as condições de reprodução ampliada do capital, Marx levantou um debate acerca do interesse dos capitalistas em economizar capital constante, deslocando o custo social da produção para os usos de capital variável e criando condições para reaproveitar os dejetos da produção. A estratégia de economizar capital constante seria uma referência geral na preferência de demitir trabalhadores, mesmo quando suas qualificações tornem incerta sua reposição por trabalhadores mais jovens e menos experientes. É a mesma lógica em auferir lucros de reciclagem de subprodutos e em tornar descartável o trabalho qualificado. Esta polêmica entra na análise da economia do ambiente sob a forma de um questionamento dos custos de capital na produção menos agressiva ao ambiente natural,

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objetivo principal de uma política de ajuste entre a expansão do sistema produtivo e o manejo do ambiente.

Capital constante e ambiente À luz do anterior, impõe-se reconhecer como o modo de acumulação de capital afeta a reprodução do ambiente. O principal traço da produção capitalista é que ela se realiza mediante uma acumulação de capital que tem as características de continuidade do valor acumulado e de descontinuidade nas formas assumidas por esse valor. A continuidade é financeira e a descontinuidade é própria da forma técnica do capital acumulado. Assim, a eficiência no uso do capital acumulado manifesta-se na seqüência do processo produtivo. É um metabolismo da produção que a situa no movimento mais amplo de reprodução natural74. A produção capitalista move-se entre custos e riscos em quadros de opções de rentabilidade, que por sua vez resultam em horizontes móveis para a progressão da acumulação. Em cada momento as empresas avaliam suas opções de participarem do mercado sobre suas possibilidades de definirem estratégias negociais. Nestas são contemplados aspectos financeiros, tecnológicos e institucionais, em que os custos devem ser absorvidos e os riscos calculados e evitados. Objetivamente, as oportunidades de investimento para os diferentes tipos de capitalistas, que participam do grande e do pequeno capital e operam com muita ou com pouca informação, se ampliam ou restringem segundo a reprodução do sistema se alcança mediante ganhos de eficiência na esfera da produção, na da circulação ou no controle do mercado. Mas, logicamente, o aproveitamento dessas oportunidades depende das condições de informação com que trabalham os diferentes capitalistas, que depende de condições ambiente e não só de cada capitalista. Essas condições da formação do capital rebatem no modo como ele aproveita da capacidade de produção existente e, portanto, como usa recursos naturais. Essa lógica

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Para uma revisão desse aspecto da visão marxista do ambiente deve-se ver John Bellamy Foster, A ecologia de Marx (2005).

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do capital só registra os processos da natureza no que eles aparecem como custos novos, mas não como limites. O capital usa recursos disponíveis e vai em busca de novos recursos. Quando encontra novas reservas elas alteram os preços dos estoques em operação, tal como acontece hoje com a economia do petróleo. É uma pauta que afeta as diversas combinações de recursos minerais. Esse ponto deverá ser apreciado, toda vez que se consideram sistemas sujeitos a alterações de tecnologia. Por exemplo, o desenvolvimento de novas tecnologias mais eficientes resultou em alteração irreversível no mercado de minerais de uso generalizado como cobre e chumbo. A primeira observação pertinente para uma análise econômica do ambiente foi a de Marx, ao tratar das economias de capital constante que as empresas realizam como parte de sua estratégia de reprodução de seu capital. Tal procedimento envolve mais elementos do que a busca do lucro, compreendendo um controle do tempo da produção – duração de cada período de produção e seqüência de períodos de produção. A sustentação das empresas no mercado depende de como elas conseguem controlar seus tempos de produzir, de comprar materiais e de se relacionarem com seus fornecedores e com seus compradores. São estruturas de risco que não se costuma levantar nos cálculos simples de projetos, mas que têm efeitos decisivos quando são computados para regiões que dependem de investimentos de base. Essa estratégia do capital tem o duplo resultado de fazer com que a produção dependa relativamente mais do trabalho captado que do capital acumulado; e de desvalorizar o trabalho, por isso, de descartar todo valor produzido cujos preços preços não correspondam às expectativas de lucro. Isso significa que o capital preferirá aquelas práticas que melhor contribuam para elevar a taxa de mais-valia e não para elevar a eficiência no uso de recursos. Essa opção leva a trabalhar com margens de capacidade ociosa crônica e com tecnologias destrutivas de recursos, como ocorre com os pivôs centrais na grande irrigação, comparados a técnicas de irrigação menos agressivas, como na irrigação por gotejamento ou por micro-aspersão. A intencionalidade dessas margens de capacidade ociosa foi examinada por Ignácio Rangel, que, naquela oportunidade, tentava explicar um aspecto aparentemente contraditório do capital industrial na periferia da acumulação mundial. Mas a tendência do capital a operar com proporções significativas de capacidade ociosa reflete uma

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estratégia de preferir rendimentos sobre capital subsidiado ou já descontado, portanto, de extrair lucros adicionais do reaproveitamento de resíduos da produção industrial75. A economia de capital constante se realiza mediante uma ampliação dos usos do capital existente e não como uma redução de seus usos. O aproveitamento de resíduos tornou-se uma grande operação do capital, que progrediu em dois sentidos opostos: os de criação de uma indústria que desenvolve as tecnologias necessárias para o uso econômico de resíduos; e de criação de uma organização social ao seu manejo, em que há segmentos de comercialização e de processamento industrial, combinados com segmentos de produção de baixa tecnologia e um amplo setor de coleta. O desenvolvimento de tecnologias derivadas desse manejo traduz-se em linhas adicionais de produção, que são ignoradas enquanto convém76. Os setores de coleta e reciclagem de papel e de reaproveitamento de latas são dois dos capítulos do aproveitamento de resíduos que exemplificam essa esfera da produção derivada da produção industrial depredatória. Uma nova visão integrada da produção industrializada com seus movimentos contraditórios representa ao mesmo tempo uma crítica ecológica da produção industrial e uma aproximação para a construção de uma teoria realista desta produção. Será preciso voltar à visão de Marshall de uma indústria que está sempre articulada com o comércio e ir adiante, com a compreensão de uma indústria que é decidida em termos de finanças e perspectivas de demanda, que depende da formação de mercado, por sua vez da renda dos seus potenciais compradores. Surgem estratégias ofensivas e defensivas segundo a posição de cada empresa no mercado oligopolizado de hoje. Os oligopólios representam uma escolha estratégica defensiva em que os custos experimentais são descartados quando não são absorvidos pelo Estado. Nessas

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A tese de Marx nessa matéria foi de volta ao mercado dos resíduos da produção industrial, onde a escória da produção de ferro é o exemplo mais claro. No relativo à produção agrícola isso aparece como um aproveitamento integral de subprodutos, que se torna o principal argumento favorável às agroindústrias. Refere-se ao aproveitamento de todos os subprodutos de uma determinada produção, que é algo que depende de tecnologias disponíveis e escalas de mercado. 76 Observe-se que há tecnologia disponível para desenvolver um complexo industrial a partir do bagaço de cana de açúcar, mas que a renovação tecnológica do setor ainda é de usar bagaço como combustível. Diversos outros projetos de aproveitamento energético de biomassa, alegadamente de elevados custos iniciais poderiam ser objeto de tecnologias alternativas, mas dependem de investimentos em unidades de demonstração.

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condições de organização do mercado, os custos ambientais são percebidos no nível microeconômico como obstáculos a serem removidos. Tal abordagem significa uma teoria dos limites da produção industrial, onde se substitui o pressuposto de possibilidades técnicas ilimitadas de expansão da produção pelo reconhecimento de que ela depende da disponibilidade de recursos adequados e a preços compatíveis com o perfil da demanda. Certamente esses limites podem ser flexibilizados, na medida em que a gestão tecnológica do capital consiga resultados satisfatórios, no relativo a suprimento de recursos específicos. Mas a sustentação da produção depende de que a indústria sempre consiga resultados suficientes.

Esse

problema se contorna em parte se a indústria trabalha com horizontes a longo prazo, considerando os efeitos acumulativos da concorrência no quadro de recursos. Mas essa visão em longo prazo só pode ser incorporada por capitais que operam com elevada funcionalidade, segundo seu aproveitamento tecnológico. A versatilidade das ferramentas dá lugar a equipamentos muito mais complexos de usos mais restritos que tornam o sistema mais vulnerável a alterações da demanda. Em função dessa especificidade do capital surge uma irreversibilidade das tendências tecnológicas do sistema produtivo que condiciona o crescimento do produto social.

Uma teoria ambiental da indústria Os parâmetros iniciais de uma teoria da produção industrial ecologicamente referenciada serão aquelas tendências que se encontram: (a) na relação entre a demanda de matérias primas e a disponibilidade de recursos naturais; (b) na relação entre os custos de substituição de tecnologia e os de perda de competitividade e; (c) na relação entre os ganhos de capital no processo produtivo e os custos de capital na substituição de tecnologia. O cálculo econômico dos capitalistas individuais sempre preferirá adiar investimentos e reduzir custos em curto prazo, enquanto o cálculo do planejamento deverá preferir reduzir custos em longo prazo. A tensão entre a demanda de matérias primas e a oferta de recursos remete o sistema produtivo a considerar as dimensões das reservas e os custos de sua exploração. Entende-se que as reservas são dados necessários das perspectivas de disponibilidade de

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meios de produção, já que a base de recursos contingencia a base de acervos de capital. No entanto, a lógica da concorrência leva os capitalistas a conviverem com uma tensão entre o aproveitamento de vantagens de preços e custos do capital, que torna preferível ampliar capacidade instalada que utilizar plenamente a capacidade disponível. A persistência de margens de subutilização da capacidade revelaria, nesse caso, um viés do sistema, que em última análise expõe à vista uma contradição do capitalismo no relativo ao uso sistêmico dos equipamentos. O conflito ideológico que se revela identifica a produção capitalista como uma atividade contraditória com a sustentação do sistema de recursos naturais em longo prazo. A questão do desperdício estrutural levantada por Baran (1956) se completa com a da permanência de componentes de recursos ociosos argüida por Ignácio Rangel (1960). O problema estrutural do desperdício é absorvido sob diversas análises de custos, como por exemplo, o desperdício de uso de papel nos ambientes urbanos dos países mais industriais que não acompanha o problema de escassez de matérias primas para papel.

Desperdício e reciclagens O desperdício. O desperdício é essencial na produção capitalista moderna e o modo como ele é gerado e como se realiza tem um efeito essencial negativo na relação com o ambiente em geral e nas políticas ambientais. Entende-se que ele é contrário a uma consciência ambiental. Guiado pelo objetivo principal de obter mais-valia – independente de como ela se distribua – o sistema capitalista de produção desenvolve estratégias de controle do trabalho e dos recursos naturais que lhe permitam sustentar seu inevitável aumento de produção. Esses mecanismos jamais tiveram muito a ver com fronteiras nacionais e são eles que sustentaram os movimentos de colonização. O cálculo econômico que sustenta esse movimento se realiza sobre os custos iniciais do trabalho que é usado para captar os recursos e não do que seria necessário para repor seu gasto. Por isso, o núcleo social de poder que comandou essa captação de meios de produção jamais foi econômico no modo de aproveitar os recursos que obtém, gerando um movimento de captação e destruição. Esse tipo de comportamento – sem dúvida, depredatório – explicaria a

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brutalidade da colonização, especialmente no tratamento de índios e negros em atividades como mineração e plantações, em que os abusos resultaram em encurtamento da vida ativa dos trabalhadores, junto com uma depredação de recursos naturais. Afora os aspectos éticos desse barbarismo generalizado há uma irracionalidade fundamental no modo de gestão do sistema produtivo, que se consolidou como uma cultura do desperdício. O pressuposto básico do desperdício é a falta de critério econômico sobre a gestão dos meios de produção, já que há desperdício inclusive em condições de escassez de capital e nos usos de tempo de trabalho qualificado. O desperdício surge da formação cultural das organizações, quando se supõe que ele não afeta os resultados esperados ou que não afeta a capacidade de produzir. O capitalismo trabalha com uma noção de escassez que está ligada à condição de mercado por meio do sistema de preços, mas não necessariamente sobre dados de custos reais de produção nem sobre lucros efetivamente realizados. Os desperdícios são uma parte essencial do sentimento de poder que se identifica com controle de meios de produção desde as velhas sociedades escravistas a muitas das empresas modernas, especialmente as empresas individuais e as familiares77. Ao lado de desperdícios diretos na produção, há efeitos colaterais mais amplos de destruição dos sistemas, que surgem como decorrência da substituição de tecnologias e são contabilizados como envelhecimento acelerado dos equipamentos. No conjunto, são opções de abandono de equipamentos em condições operacionais invariantes. Foi o que aconteceu com os sistemas de som e com os aviões a hélice dentre outros exemplos. A hipótese de não disponibilidade de recursos rompe com a suposição da economia ortodoxa de perfeita substitutibilidade e escassez relativa, e coloca a escassez absoluta como uma contingência do processo com que é preciso conviver. Aparecem, portanto, duas situações: uma em que a escassez pode ser associada a problemas de preços; e outra em que ela é anterior às condições operacionais do sistema. Na primeira ela pode ser prevista e na segunda ela é parte das possibilidades em um quadro caótico de incerteza.

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Aqui pode haver o risco de uma generalização excessiva, mas há uma longa lista de exemplos para sustentar esta observação em empresas em diversos países e regiões.

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No ambiente da produção de hoje em que se conjugam empreendimentos com tecnologias novas com procedimentos arcaicos, instala-se uma cultura de desperdício que combina com a tendência do capital a trabalhar com margens significativas de ociosidade da capacidade instalada em função de ajustes de preços e de defesa do valor dos inventários. Longe de representar ineficiência, a capacidade ociosa indica estratégias das empresas para regular as quantidades produzidas de modo a proteger o capital.

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9. A sustentabilidade social e ambiental

Uma compreensão de desenvolvimento sustentável Para garantir o caráter científico da análise do ambiente é necessário trabalhar com observações dos fundamentos da ciência. Com esta finalidade convém reproduzir algumas frases de Ilya Prigogine: O mundo do equilíbrio é um mundo homoestático em que as flutuações são absorvidas pelo sistema. Em situações muito distantes do equilíbrio as flutuações podem aumentar e invadir o sistema. Estas flutuações podem criar novas estruturas espaço-temporais no interior do sistema. [...] Estas novas estruturas se originam em pontos de instabilidade do sistema que podem denominar-se de pontos de bifurcação78. Em síntese, o mundo social da produção está sujeito a tendências

que o levam a mudar de modo irreversível, enveredando por novas

trajetórias que não necessariamente podem ser previstas. Há, portanto, uma diferença entre a instabilidade e a incerteza trazidas na trajetória do sistema e a instabilidade e a indeterminação que podem vir nas novas trajetórias. A preocupação com sustentabilidade, isto é, com a possibilidade de que o crescimento econômico possa prolongar-se no tempo encontra-se na teoria econômica desde David Ricardo (1817), com sua teoria da queda da taxa de lucro e da tendência à estagnação. Supostamente os sistemas de economias nacionais tenderiam a perder capacidade de crescer por razões estritamente econômicas, quando ainda não se considerava que as restrições de recursos pudessem ter esse peso. Sempre se soube que a sustentação envolve um conjunto de condições sociais, englobando os aspectos econômicos, culturais e políticos. A alegada dificuldade atual para conceituar sustentabilidade está associada ao viés doutrinário positivista, departamentalizador, segmentador, que pretende resolver problemas da totalidade trabalhando apenas com algumas partes do todo. No entanto, os problemas do todo se resolvem no todo e não em nenhuma de suas partes. Como a composição do todo muda ao longo do tempo, a sustentação refere-se às condições em que o movimento prossegue através das alterações de composição, subentendendo a preservação de certas proporcionalidades. Mas a obsessão com

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Ilya Prigogine, Tán solo una ilusión? Barcelona, Metatemas, 1993, pp.181-162.

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sustentabilidade encobre um inquietante vazio teórico que deverá ser expurgado quando se trata adequadamente com as conceituações de transformação. No que melhor se define como condições de um crescimento prolongado, a sustentação do desenvolvimento se reconhece como a dos sistemas de produção, entendendo que o consumo está subsumido na produção, o que, na prática, significa a sustentação do sistema capitalista de produção. Nessa qualidade, ocupou os principais teóricos das transformações do sistema produtivo, especialmente Marx e Schumpeter. Na corrente keynesiana, é o tema central da teoria de Roy Harrod (1939 e 1961), que deu lugar a uma importante literatura sobre crescimento econômico e planejamento79. A alegação de que esse seja um tema novo, por envolver preocupações com o ambiente é infundada porque em todo o percurso da teoria sempre houve tal preocupação, reconhecendo-se, entretanto, a diferença entre sustentação como preservação da riqueza alcançada, como continuidade do crescimento da economia ou como crescimento com preservação das condições para crescer. Daí, a diferença entre um nível macro, que se ocupa da sustentação do capital e do crescimento; e um nível micro do problema, que se ocupa de formas de produção que contribuem para tornar sustentável o esforço de crescer. Nesse último ponto, cabe ressaltar o tratamento dado por Marx à relação entre a produção industrial, o gasto de recursos não renováveis e a produção de escória não reciclável, ou de considerar os custos da reciclagem da escória de todo tipo80. O que houve, realmente, a partir da década de 1970 foi a adoção do discurso ambiental por parte de organizações internacionais e sua oficialização por parte das grandes potências em versões que condizem com seus interesses. Entre o seminário de Founex em 1968, à conferência sobre meio ambiente no México em 1971 e a de 1972 em Estocolmo consagrou-se uma linguagem, antes de consolidar-se a base conceitual da análise ambiental, desconsiderando-se a trajetória do pensamento científico sobre o tema. A análise ambiental passou a procurar respostas para uma plêiade de problemas, sem 79

A questão de sustentabilidade do crescimento do produto social na corrente teórica keynesiana está ligada aos ciclos dos negócios, ou ao dilema entre crescimento com equilíbrio ou sem equilíbrio. Roy Harrod foi o principal defensor da necessidade de uma teoria da dinâmica econômica Towards a Dynamic Economics (1948) e seu primeiro e mais famoso artigo sobre o assunto foi escrito em 1939.e publicado em seu Economic Essays (1952). Dentre os diversos artigos escritos a seguir dos de Harrod, destacam-se, de Joan Robinson, Mr. Harrod's dynamics (1949) e Evsey Domar, Expansion and employment (1947). 80 Este tema foi minuciosamente tratado por Marx no terceiro volume de O Capital, no que trata das economias de capital constante - implicitamente das deseconomias - que se ocupa do custo social da expansão do grande capital industrial.

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necessariamente dispor de um âmago explicativo capaz de articular as formas de análise. Recorreu à expressão interdisciplinar antes de definir-se como campo de trabalho. Na prática, separou-se o fundamento social do mecanismo técnico, procurando-se uma nova modalidade de neutralidade axiológica, como se as questões ambientais estivessem separadas do contexto ideológico das relações sociais. Passou-se a procurar uma explicação romântica para uma lei da Física e para um processo social. Viver custa energia; e há modos espoliativos e modos equânimes de obter a energia necessária para realizar o trabalho requerido pela sociedade. Os problemas de sustentabilidade do desenvolvimento referem-se à compatibilidade entre o perfil dos recursos disponíveis e o padrão de uso de recursos, por sua vez determinado pelo controle social da tecnologia e dos seus usos. Tais problemas variam ao longo do tempo, para cada sociedade. São históricos, já que revelam situações específicas, formadas em experiências das sociedades, em adaptação ao lugar onde se instalam e se reproduzem. São sociais, porque envolvem o controle das condições de vida, das atuais e das futuras; das segundas em função das primeiras. Trata-se aqui deste tema em relação com a experiência brasileira, com algumas referências específicas a Salvador e a algumas outras cidades. As questões a serem tratadas pressupõem certa compreensão da cidade e da urbanização. Toda cidade concentra população, capacidade produtiva e cultura; e exerce influências locais e imediatas e influências à distância e que se desdobram no tempo. As questões relativas à urbanização colocam-se em dois níveis: ao da reprodução da cidade, considerando a participação das comunidades que a compõem; e ao da reprodução dos diversos grupos integrantes da cidade. A reprodução e a expansão urbana se organizam e mudam de feição, segundo a vida urbana se industrializa e se internacionaliza; e segundo ela cria novas regras locais de exclusão. No relativo a cidades, sustentabilidade significa a viabilidade de uma cidade de continuar se reproduzindo preservando sua capacidade produtiva e o nível de vida de seus moradores. Por isso, significa a capacidade das cidades de atenderem suas necessidades crescentes e mais complexas. Como esse tipo de resultado depende da inserção regional das cidades, em princípio, é preciso pensar que a sustentabilidade é uma situação que corresponde mais às regiões que às cidades.

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A principal característica da cidade é sua pluralidade. A cidade é objetivamente plural no plano social, constituída de diversos grupos com suas origens culturais, seus respectivos interesses e suas possibilidades de defenderem suas posições; e no plano físico, formada dos diversos tipos de espaços produzidos pelas relações sociais, desigualmente comunicados uns com os outros. As cidades são plurais no percurso de sua formação, que compreende períodos definidos por diferentes organizações sociais; e em sua atualidade, por compreenderem diferentes formas de organização social, com seus respectivos modos de se reproduzirem. A crise da análise urbana na virada da década de 1970 foi, na verdade, uma crise da análise urbana organicista, que tratou as cidades como fenômenos simétricos, comparáveis, plenamente hierarquizados, submetidos a um mesmo movimento de modernização81. A revelação da pluralidade urbana, na verdade, foi o reencontro com seus elementos contraditórios, com suas peculiaridades, com suas descontinuidades, isto é, com o fato de que as cidades são produzidas por sociedades desiguais e geram e reproduzem desigualdades. As cidades brasileiras exibem diferentes condições de pluralidade, mas todas elas têm se tornado cada vez mais plurais, contendo grupos mais diferenciados e com diferentes referências culturais, que se reproduzem segundo suas possibilidades e seus próprios códigos. Sob o corte básico entre a cidade do emprego e a do desemprego, encontram-se diferentes condições de acumulação de capital imobiliário e de estratégias de sobrevivência, com modalidades legítimas e espúrias de acumulação; e com modalidades legitimadas e toleradas de estratégias de sobrevivência. A marginalidade de pobreza é um fundo sobre o qual se assenta a da contravenção, que, por sua vez, afirma-se como um universo em que operam e interagem as diferentes classes e os grupos de renda. O pior da marginalidade da contravenção é que ela condiciona os

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A crise urbana foi revelada pelos conflitos de Paris, Praga e México e apareceu na literatura européia nas obras de Harvey, Castells e Lefebvre. Na América Latina, foi principalmente refletida em Planificación regional y urbana en América Latina (Ilpes, 1974). Desde então, ficou clara a clivagem entre a literatura organicista e a que focalizou na pluralidade e nas contradições das cidades. Da mesma época surgiram os primeiros trabalhos sobre marginalidade (Quijano), informalidade (Tockman e Souza), e sobre as estratégias de sobrevivência dos marginais (Lomnitz). A chamada “ciência regional”, defendida por lsard e outros, revelava-se um entulho do mecanicismo, que teve que ser abandonado por ser excessivamente pesado. Entretanto, temas tais como tamanho das cidades, hierarquização dos sistemas de cidades, continuaram sendo tratados com os mesmos argumentos de custos de urbanização e com modelos de otimização que não diziam nada sobre os problemas sociais, econômicos e ambientais das cidades desiguais.

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comportamentos dos que se encontram em seu território de influência, tornando-se reguladora do processo urbano em seu conjunto. Como o universo da acumulação e do emprego rejeita números crescentes de pessoas, elas passam a integrar o universo das estratégias de sobrevivência, onde interagem com as formas espúrias de sobrevivência e com as restrições de mobilidade no conjunto segmentado das cidades. Há diferentes condições de mobilidade para diversos grupos, segundo sua renda e sua situação na estrutura de poder. O processo ultrapassa os limites de cada cidade específica e alcança o sistema de cidades em seu conjunto. Assim, há várias situações de mobilidade, que se combinam no ambiente de cada cidade, resultando em tendências de mobilidade social positiva e negativa, ligadas aos movimentos de migrações entre cidades e entre regiões. O quadro geral de mobilidade e migrações constitui a principal referência das tendências de tensões nas cidades, principalmente, de tendências das tensões. O panorama geral da exclusão resulta numa grande mobilidade social negativa, determinada pelo conjunto das tendências expulsivas de população dos diferentes ambientes rurais e dos diferentes tipos de cidades. As pressões de expulsão de população atingem grande parte da rede urbana e correspondem à atração exercida por certo número de cidades, de diversos tamanhos. Há uma mobilidade negativa que se configura em sair por não poder ficar, que resulta em formas de associação determinadas pela sobrevivência e com pautas de comportamento, que se firmam em contradição com as da formação do Estado, tal como são as do mundo das contravenções, da violência e das drogas. Finalmente, essa mobilidade negativa dá lugar a regras de ajuste e controle, entre o poder legalmente organizado e o poder clandestino da contravenção. As cidades brasileiras crescem a partir de uma divisão fundamental de sua formação sócio-cultural. Há uma formação cultural dos grupos tradicionalmente mais ricos e dos grupos de ricos recentes; e há diferentes formações culturais de diferentes grupos de excluídos, desde grupos que se reproduzem como excluídos desde o período da escravidão a novos grupos de excluídos, constituídos de imigrantes criticamente pobres. Essa divisão encobre uma pluralidade de processos ligados à sobrevivência e à

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acumulação de riqueza, que abrangem, desde modos de conviver com as incertezas do cotidiano, a superar a incerteza básica da sobrevivência e a formação de riqueza de indivíduos e de famílias. As identidades que se formam num ambiente complexo, como o brasileiro, estão fundamentadas nessa relação entre sobrevivência e acumulação. Paralelamente, toda cidade é parte de um sistema de relações entre diversas cidades, tanto próximas como distantes, com dois resultados inevitáveis: sua participação num sistema internacional de relacionamentos e a produção de um espaço regional, em que ela tem, simultaneamente, funções de liderança e de subordinação. O desenvolvimento das telecomunicações e a maior facilidade de transporte modificaram profundamente e em pouco tempo os sistemas de relacionamentos incorporados nas cidades brasileiras. Há mais comunicação entre os grupos de baixa renda das grandes cidades e seus lugares de origem, do que entre esses grupos e os grupos de rendas médias das cidades onde eles moram. A estruturação de classes das cidades brasileira se faz num ambiente de desigualdade de ocupação, em que uma parte da população tem acesso garantido a emprego para todos os membros da família, enquanto a maior parte da população tem dificuldade de garantir emprego para um membro da família e uma grande parte da população não tem emprego algum nem perspectiva de emprego. O relacionamento das cidades com seu contexto regional evolui em função de seus relacionamentos do lado do capital e do lado do trabalho que se combinam no mercado de trabalho. Os relacionamentos entre cidades são articulados por fluxos de decisões provenientes de cidades maiores, ou são seus próprios centros de decisão. Absorvem sua própria força de trabalho, absorvem força de trabalho formada em outros centros, ou não absorvem sua força de trabalho. O papel regional das cidades, portanto, muda ao longo do tempo, seja de modo progressivo ou abrupto. Segundo sua complexidade as cidades se qualificam para desempenhar determinados papéis regionais, que mudam em progressões positivas e negativas. Como exemplo de análise de uma cidade específica apresentam-se a seguir, comentários sobre aspectos da urbanização em Salvador82: (a) Cenários prospectivos de queda da ocupação urbana efetiva e de ampliação da desigualdade da renda da população urbana

82

Refere-se à Cidade do Salvador, capital do Estado da Bahia.

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em seu conjunto, considerando as perspectivas de disponibilidade de postos de trabalho e as previsões de população urbana. Há um movimento mundial de queda do emprego regular, desde a década de 1970, que hoje atinge duramente aquelas sociedades que já conviviam com subemprego crônico e pobreza crítica ligados ao sub-desenvolvimento. Com o retraimento do setor público e o fechamento de empregos no setor privado, as perspectivas mais prováveis de Salvador são de crescente pressão social, aliviada apenas em parte por obras públicas e prestação estacional de serviços: turismo e carnaval; (b) baixa proporção de famílias com rendas suficientes na população urbana total e com baixa incerteza de renda. Estimativa de 1994 indica que somente uns 25% da população de Salvador está nessa situação: umas 100.000 famílias de um total em torno de 550.000 famílias83. Aumenta o número de famílias que sobrevivem de rendas incertas e diminui a proporção dos que têm emprego em cada família. A pesquisa da PED (Pesquisa de emprego e domicílio) indica em 1998 um desemprego de 19,5% na região metropolitana, que representa um claro agravamento da situação estimada quatro anos antes. Despesa pública por habitantes nos serviços básicos. É o principal traço positivo, resultado do programa de saneamento básico da cidade, mas que pode ser facilmente anulado pelo crescimento; e (c) concentração dos efeitos negativos de falta de serviços e de serviços de menor qualidade para os grupos de baixa renda, especialmente em educação e saúde, que resultam em menor capacidade para pleitear participação no mercado de trabalho, como empregados ou como autônomos. A questão dos mecanismos de qualificação dos autônomos torna-se essencial, num ambiente em que diminui a oferta de postos de trabalho e onde a concorrência por oportunidades de renda se transfere do mercado formal de trabalho para o informal84. Em suma, a urbanização desigual gera mecanismos de desigualdade, cujos efeitos se propagam no tecido social das cidades, afetando as condições de mobilidade dos diversos participantes da vida urbana. Desses dados gerais do funcionamento da cidade depreendem-se duas referências principais, que pré condicionam a situação dos diversos grupos: habitabilidade e 83

Dados de estimativas incluídas em A Economia Urbana em Salvador, deste autor, elaborado para a Prefeitura Municipal de Salvador em 1994. 84 Pesquisas deste autor sobre bairros de baixa renda em Salvador, especialmente sobre o bairro da Liberdade, entre 1993 e 1995, mostraram diferenças notáveis de qualidade da rede de ensino básico a que têm acesso os grupos de baixa renda, resultando no que passamos a denominar de ilusão de ensino, que simplesmente significa que freqüentam escolas conduzidas por professores despreparados, que lhes dão a ilusão de estarem aprendendo.

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empregabilidade.

Nelas estão incluídos pressupostos relativos

à renda familiar,

considerando a proporção de pessoas ocupadas em cada família; e à distância-custo entre o local de moradia e o de trabalho. Subentende-se que, para trabalhar, uma pessoa precisa ter acesso físico ao emprego. Mas essas expressões são artifícios e simplificações, já que se referem a condições técnicas de obter moradia e de obter emprego, sem levar em conta que essas supostas condições técnicas dependem de condições institucionais e de articulação de poder econômico. Na prática, o acesso a emprego e a habitação varia ao longo do tempo para cada um dos diversos grupos urbanos. Além disso, é preciso levar em conta que na distribuição da renda urbana há situações que não são comparáveis, determinadas por disponibilidade de moradia e de acesso a serviços. Significa que os moradores de uma cidade encontram-se em condições desiguais, que estão refletidas na qualidade da moradia, entendida como meio de acesso aos serviços oferecidos pela cidade. Tais situações podem ser resumidas como no Quadro 1 a seguir. Quadro 1 Condições de renda e incerteza nas moradias urbanas relação

grupos de renda

tipos de habitação

relação terra/espaço

a.

capital e renda elevada

moradia e lazer

moderada

elevada

b.

renda elevada

moradia bem equipada

elevada

moderada

c.

renda média

moradia equipada

moderada

moderada

d.

baixa renda

moradia mal equipada

baixa

baixa

e.

renda incerta

moradia precária

muito baixa

muito baixa

espaço/moradia

Fonte: Elaboração do autor

A experiência acumulada de pesquisas urbanas, em Salvador e em diversas cidades latino-americanas, indica que a viabilidade econômica dos moradores de baixa renda só é possível mediante uma participação das pessoas em núcleos familiares, e que a autosustentação de indivíduos sozinhos só acontece com os detentores de rendas médias e superiores. As estratégias de sobrevivência exigem soluções para problemas de moradia e alimentação, cujos custos são geralmente superiores à capacidade de qualquer indivíduo de baixa renda isoladamente. Por essa mesma razão, todos aqueles coletivos que se encontram adiante da família, tais como a vizinhança, a solidariedade religiosa, a

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cultural ou a política, têm um papel fundamental no tecido de relacionamentos urbanos, devendo ser analisados por sua expressão na formação sócio-cultural85 e na economia urbana86. Como conseqüência, torna-se necessário reavaliar o papel da família na sociedade urbana. Além dela, os papéis dos demais mecanismos de organização. No relativo aos grupos urbanos específicos, é preciso distinguir condições de vida e de acesso a renda segundo condições de mobilidade e qualificação. Define-se mobilidade como a capacidade de deslocar-se entre situações de acesso a renda e moradia. Definese qualificação como a posse de habilidades relacionadas com a realização de funções no ambiente urbano capazes de gerar renda. A qualificação corresponde, portanto, a condições ambiente específicas de tecnologia. Alguém qualificado para usar os recursos disponíveis numa cidade como Salvador, não necessariamente está qualificado para usar os recursos disponíveis numa cidade como Paris. A capacidade de sobreviver numa determinada cidade depende de um conjunto de condições de acesso aos circuitos de relacionamentos que se organizam na escala da cidade e representam as experiências de grupos urbanizados. Essas duas qualidades estão inseridas em condições sócio-culturais, que são as bases da formação dos saberes das comunidades, que sustentam sua visão de mundo, portanto, sua capacidade de se inserirem no panorama de tecnologias e de formas industrializadas de organização da cidade. O perfil sócio-cultural dirá, além disso, como as comunidades combinam suas tradições com a substituição cultural, embutida na modernização. A modernização divulga os modos culturais das sociedades economicamente dominantes gerando novas formas de subordinação. A capacidade das pessoas de se moverem no espaço social e econômico da cidade depende primeiro dessa fundamentação - que está ligada a sua posição de renda - e somente em segundo lugar, à especificidade da qualificação entre grupos equivalentes de renda. Isso se aplica para explicar diferenças de condições entre pequenos comerciantes e entre profissionais de uma mesma categoria. Em princípio, não se aplica 85

Expressão cunhada por Darcy Ribeiro, para situar o conceito marxiano de formação social no contexto da consistência cultural da estruturação social. Ver em As Américas e a Civilização. 86 Economia urbana = produção e consumo que se realizam em cidades. Não se confunde com a economia das cidades, que é o modo econômico de funcionamento de cada cidade, em que estão os sistemas de água potável e saneamento, de transportes, de comunicações, de segurança.

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para explicar diferenças entre diversas categorias, como entre dentistas e eletricistas, mas sim para explicar diferenças entre dentistas e entre eletricistas, segundo eles pertencem a grupos étnicos, ou são parte de grupos de renda muito diferenciados.

Instrumentos conceituais Para tratar de desenvolvimento sustentável em cidades, é preciso esclarecer o que se entende por sustentável ou sustentabilidade, por desenvolvimento e por ambiente e, especialmente, por ambiente urbano. Como os processos do capital não se limitam a nenhum espaço em particular, a conceituação de sustentabilidade urbana está sujeita a diversas qualificações. A conceituação de desenvolvimento varia, segundo as matrizes conceituais com que se trabalha e se focaliza mais nos aspectos materiais ou nos culturais e ideológicos. Desenvolvimento envolve bem estar material e independência. Para Marx, trata-se de desenvolvimento das forças produtivas, portanto, do desenvolvimento dos meios de produção determinado pelas transformações do capitalismo. Para Schumpeter, trata-se de transformações que levam a aumentos de complexidade, decorrendo de tendências inerentes ao processo social, ligado à modernização (Schumpeter, 1896); ou resultando de intervenções deliberadas e seqüenciadas, para alterar as condições do conjunto de crescimento econômico e distribuição da renda (Prebisch, 1949). No campo social, a noção de desenvolvimento surgiu ligada às de civilização, progresso, direitos sociais, diferenciando-se da noção de crescimento econômico, que refere ao crescimento do produto social ou do produto interno bruto. Desde suas formulações iniciais, desenvolvimento tem uma conotação ética, já que envolve distribuição da renda e tratamento de temas tais como de preconceitos e de cidadania. A noção de desenvolvimento passa por qualificações decisivas, ao ser exposta a um melhor conhecimento da realidade social, com seu significado ético e cultural, formado ao longo das últimas décadas e hoje transferido a uma maior parte da população. No Brasil, a conceituação de desenvolvimento depende hoje da absorção por parte dos segmentos mais poderosos da sociedade, de problemas de desigualdade e exclusão

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formados desde as origens na sociedade mercantil-escravista e persistem até hoje, agravados pelas tendências ao desemprego. No plano estritamente econômico, a noção de sustentabilidade apareceu primeiro com Harrod (1939), relativa àquela taxa de crescimento do produto social que poderia ser sustentada nas condições estruturais de cada economia. Com a emergência da perspectiva ecológica87, a noção de sustentação veio a ser aplicada para representar aquelas condições de compatibilidade entre os resultados da produção e a reprodução dos sistemas de recursos em que essa produção se assenta. Noutras palavras, sinteticamente, a sustentação surge da relação entre a reprodução do capital e a do sistema de recursos físicos, naturais e do trabalho. A análise regional deveria, portanto, reconhecer desigualdades iniciais de recursos e desigualdades progressivas, determinadas pelos usos de combinações de recursos (Pedrão, 1964). No meio urbano, o ambiente é inseparável da possibilidade de morar, isto é, da habitabilidade. Nas cidades há uma fronteira entre habitação estável e ocupação regular de um lado; e habitação precária e ocupação incerta de outro lado. Estimativas de Fortaleza indicam que cerca de 50% da população vive em habitações precárias e que cerca de metade das famílias em Salvador sobrevive de rendas incertas, sem contar com os problemas de insuficiência de renda. Não há, praticamente, estimativas representativas para as demais cidades, verificando-se um desvio da análise urbana para tratar somente das capitais. A habitabilidade não depende apenas de aspectos materiais. Os aspectos de segurança e de desvalorização da pessoa e falta de perspectivas econômicas tornam-se fundamentais. Problemas de reconhecimento de identidade, especialmente de negros e índios, que aparecem concretamente, no cotidiano das grandes cidades, inclusive como de discriminação contra pessoas provenientes de regiões pobres, bem como problemas mais generalizados, de ausência de perspectivas de renda e de melhoria de vida em geral, que expulsam as pessoas de seus lugares de origem. Os movimentos de expulsão

87

Há antecessores que não podem ficar no esquecimento. Observe-se que em 1954 Kenneth Boulding adotou essa perspectiva ecológica em Reconstruction of economics.

121


tornam-se o principal fator dinâmico das migrações e da concentração demográfica nas grandes cidades, mesmo nas mais pobres. O ambiente social urbano Na análise urbana, especialmente de sociedades sub-industrializadas, ou desigualmente industrializadas, tal como a brasileira, torna-se necessário incorporar uma compreensão de ambiente em um contexto dinâmico. A noção de ambiente surgiu referindo-se à reprodução da natureza, supondo que a ação do homem é determinante de certas formas de destruição que impedem essa reprodução. Há, portanto, uma referência implícita aos modos próprios de reproduzir-se da natureza, em que a ação humana é secundária88. Mas a questão ambiental não se coloca como da reprodução natural, senão considerando a ação social sobre o meio natural e como a reprodução do meio físico – entendido como o meio natural modificado pela ação social – resultando em disponibilidade de um meio habitável. No entanto, os problemas ambientais são observados pelos efeitos terminais da ação social, e não como o modo de alteração do meio natural inerente ao modo social de produzir e de consumir, ou seja, como processos que geram problemas ambientais, como os efeitos da destruição de manguezais e de rios. Mas é uma questão ampla, que envolve o equilíbrio hídrico em seu conjunto e a disponibilidade de ar e água limpos, ou mesmo, que se refere à concentração de população além da capacidade de absorção do meio físico. Nesse ponto, trata-se da produção de resíduos que não se degradam rapidamente. A acumulação de resíduos em geral, especialmente dos tóxicos, é um fator negativo igualmente notório. É preciso reconhecer que a sociedade contemporânea continua destrutiva e que hoje gera resíduos que não tem como eliminar. Há dois problemas com essa noção. Primeiro, ela subestima os fatores de reprodução natural. Segundo, ela confunde a ação do homem genericamente considerado com a

88

A análise do ambiente geralmente ignora a reprodução da natureza. Entretanto, essa é a atividade inicial, fundamental, anterior a qualquer discussão localizada do ambiente. Movimentos de esfriamento ou de aquecimento global, movimentos do fundo dos oceanos e deslocamentos de placas geológicas, atividade de vulcões, com seus efeitos no clima, finalmente, correntes marinhas como o hoje notório El Niño, são dados que antecedem questões locais. A questão fundamental a rigor vem a ser a “produção” de água e de solo, que são funções da reprodução do meio físico-natural.

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ação de sociedades organizadas. Na realidade, as cidades estão localizadas em “regiões ambientais” geralmente muito maiores, que podem ser bacias hidrográficas ou situações costeiras, concentrando, entretanto, muitos elementos próprios, que alteram esse ambiente. Hoje, quando se fala de ecossistemas, alude-se realmente a certa convergência de elementos relativos à reprodução do meio ambiente, que pretende ser completa. Mas, quando se trata de grandes cidades, se reconhece que elas representam modificações do meio natural, que superam a noção habitual de ecossistema. Casos extremos como os do Vale do México e de São Paulo, mostram novas escalas de concentração demográfica, junto com novas escalas de problemas de disposição de resíduos, para os quais não há, realmente, tecnologias satisfatórias. Mas o principal é que na quase totalidade das cidades de grande porte permanecem grupos poderosos, especialmente indústrias, que poluem e são toleradas. Mais uma vez, o exemplo de São Paulo está entre os mais graves conhecidos. Tratando-se de cidades, os aspectos sociais predominam sobre todos os outros, tornando-se inadequadas expressões que reduzem o fenômeno social a aspectos biológicos, tais como de ação antrópica. A condição social urbana é a resultante de renda e auto determinação, nesta incluindo os aspectos de mobilidade e de independência econômica. Nas sociedades americanas em geral, no Brasil em especial, a condição etno-cultural é um componente essencial da mobilidade. Além disso, a elevada concentração do poder tem sido uma forte restrição da independência econômica. O mercado de trabalho está controlado pela concentração de patrimônio e de capital, que se traduz em restrições desiguais ao acesso a renda pelos diversos grupos. Com esses elementos, chega-se a qualificar o ambiente urbano no que as cidades são mais ou menos marcadas por esses elementos de desigualdade. No elenco de cidades brasileiras encontram-se algumas com variados fatores de desigualdade, que podem ser concretamente identificados no tratamento da questão da infra-estrutura e do capital social, que, por sua vez está ligado ao fundo público de acumulação. Por fatores de desigualdade entendem-se aqui o acesso a emprego, renda e educação, traduzindo-se em renda real familiar; e, num segundo momento, a relação entre a renda real familiar e o

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acesso a consumo. A análise de cidades indica que a forma física das cidades está condicionada pelos fatores sociais de desigualdade, tal como se verifica do dinamismo físico das cidades que aparece nos movimentos de desvalorização de bairros, quando são adquiridos imóveis por grupos discriminados. A suposição de que as margens de liberdade aumentam junto com a renda disponível, dá conta apenas dos aspectos materiais imediatos de um problema mais profundo, que está refletido na capacidade das pessoas para obter renda de modo independente e ganharem o direito de escolher sua trajetória profissional. A liberdade aparece como capacidade de desenvolver opções econômicas, isto é, de deslocar-se por escolha própria e não por expulsão de lugares de origem. Ao reconhecer que os movimentos de modernização se desenvolvem desigualmente entre diferentes cidades e nos diversos ambientes sociais de cada uma delas, percebe-se a necessidade de tratar com os aspectos sócio-culturais da urbanização e com a complexidade das cidades, junto com a industrialização dos serviços e com a pluralidade das formas sociais de organização.

O componente físico e o social na sustentação do ambiente A noção de desenvolvimento sustentável distancia-se da de equilíbrio dinâmico usada em economia. O equilíbrio dinâmico refere-se às condições que respondem pela continuidade do crescimento. O desenvolvimento sustentável descreve o percurso de transformação das sociedades, que corresponde ao menor desgaste de recursos. O primeiro só considera o desgaste de recursos de modo indireto, pelo que ele se torne um obstáculo à continuidade do crescimento. O segundo trata claramente do desgaste de recursos, em quantidade e diversidade, tomando como principal referência a entropia do sistema de recursos, O primeiro refere-se a cada sociedade por separado, enquanto o segundo registra as conexões entre as sociedades. Em ambos os casos, há uma questão central, relativa à inter-relação entre a reprodução do meio físico e a do meio social. Trata-se, portanto, de esclarecer em que consiste a relação entre o meio físico e o social, em seus aspectos dinâmicos, como parte de processos que se desenvolvem ao longo do

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tempo; e em seus aspectos estáticos, como relações atuais, que podem ser parte de processos, ou serem apenas incidentais. A seguir, trata-se de colocar as características da reprodução do meio físico. Usa-se aqui a expressão meio físico para designar o meio natural modificado pela ação social, reservando o conceito de natureza para designar o contexto físico em sua acepção mais ampla, anterior à ação da sociedade econômica organizada, ou muito superior à capacidade da sociedade para alterar o ambiente. A rigor, subentende-se que há uma diferença significativa entre a natureza, que seria o meio físico na escala global planetária; e o meio físico-natural, que se vê como a manifestação local da natureza, onde a ação social é significativa e pode ser até determinante. Segundo observações fundamentais da Física e da Biologia, há três aspectos principais a considerar, no relativo às alterações do meio físico: a entropia do potencial energético dos sistemas de recursos físicos; a biodiversidade dos sistemas, que estabelece restrições às possibilidades de reprodução e de aproveitamento de cada recurso; e a interdependência entre os diversos recursos, que resulta em fenômenos de tipo regional, como são os ecossistemas e os genomas. Define-se entropia como as perdas de energia decorrentes da conversão de uma forma de energia a outra e de volta à anterior. Biodiversidade se entende como a pluralidade de formas vivas interdependentes a que um dado sistema chegou em sua evolução. Interdependência refere-se ao modo como a reprodução de cada recurso depende da de outros. Quadro 2 Demografia e formações sócio-econômicas concentrações demográficas

formações sócio-culturais

formações sócio-econômicas

rurais

tribais extrativistas pastoris regadío

subsistência acumulação física restrita artesanato comércio agro-indústrias

urbanas

núcleos: vilas, etc. cidades redes de cidades

manufaturas pequenas indústrias grandes indústrias

trans-urbanas

metrópoles

redes de services

agrícolas

Fonte: Pedrão (2002)

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O modo de reprodução do meio físico-natural constitui uma restrição do desenvolvimento do meio social, mas este, quando constituído, passa a alterar o meio físico-natural. O meio social vem a ser o modo organizativo das sociedades humanas, compreendendo suas formas primitivas e as civilizadas. Aparece sob as formas de concentrações demográficas, formações sócio-cultural e sócio-econômica, que são diferentes planos da totalidade social historicamente constituída. O meio social é sempre complexo, mesmo em suas formas mais simples, desenvolvendo-se em determinados ambientes físico-naturais, segundo uma progressão cumulativa de conhecimento prático, técnico e teórico, mediante modos normatizados de fazer as coisas, que são as tecnologias. A principal diferenciação que se forma no meio social decorre das pretensões das sociedades, de viverem do modo mais confortável possível, ou de manifestarem poder. O meio social é onde acontecem conflitos e consensos, ou onde se manifestam situações de conflito latente ou de confronto aberto e de combinações de interesses e de complementaridade. A formação de classes, com a conseqüente polarização de interesses em confronto, tem sido o meio de manifestação de reivindicações com caráter de continuidade, levando a pontos de vista de capitalistas em geral, de empresários, de trabalhadores autônomos, de proprietários, de trabalhadores assalariados e de trabalhadores informais. No relativo à relação entre o meio social e o físico, distinguem-se uma atitude mítica de relacionamento com a natureza e uma racional, em que nesta última, por sua vez, distinguem-se as atitudes de dominar a natureza, típica da civilização industrial e a de adaptar-se a ela, que surge com a consciência ecológica. Cada uma delas se apóia, portanto, em fundamentos ideológicos, que orientam a produção de tecnologias. O crescimento físico e demográfico das cidades traduz-se em aumento do uso de recursos, ampliando a área de sustentação de cada cidade. As cidades usam recursos dessa área de influência direta, assim como absorvem recursos de áreas distantes, em proporção crescente. No conjunto, as cidades representam grandes concentrações de usos de recursos, cujo atendimento torna-se cada vez mais difícil e custoso de sustentar. Obter os recursos necessários para esse fim faz do consumo uma finalidade em si

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mesma, que pré-determina o sistema de produção89. O consumo que as cidades realizam concentra seus efeitos na área em que se materializa. Concretamente, usam energéticos gerados em outros lugares, mas têm que dispor localmente de seus resíduos. Junto com o problema do desperdício, apontado por Baran90, a sociedade contemporânea tem a resolver um problema de concentração de resíduos cuja dissolução leva um tempo infinitamente maior que a duração de sua atual capacidade de produção.

Os custos sociais da preservação do ambiente Nos dois últimos decênios estendeu-se a consciência de que as sociedades devem pagar de algum modo pela preservação do ambiente. Há quem gera custos e quem extrai benefícios nos usos de recursos naturais e de trabalho. Coloca-se um problema de reconhecimento e de distribuição social dos custos do ambiente, entre custos regulares de preservação e custos de reposição de destruição, já acontecida ou hoje em curso. Há custos energéticos da produção e outros derivados de formas predatórias de uso de recursos. Principalmente, há custos que se acumulam tornando progressivamente mais caro manter uma cidade. Os custos de manutenção do sistema viário, dos sistemas de abastecimento de água e de saneamento, os custos dos sistemas de energia em suas diversas formas, crescem todos em forma mais que proporcional ao número de habitantes. A expressão modo energético da produção significa a forma como se usa energia para obter produtos, desde a humana à nuclear, dados os desenhos técnicos do equipamento e a eficiência no seu uso. Alguns países dispõem de energia de diversas fontes e em quantidades suficientes, enquanto outros dependem unicamente de importação de energéticos. A dependência energética constitui uma restrição fundamental no manejo do ambiente, que tem se tornado um obstáculo à substituição do sistema de produção.

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Ver Jean Baudrillard, A Sociedade de Consumo, que é um trabalho que mostra como o consumo se torna um fetiche da sociedade capitalista. 90 Alusão ao livro de Paul Baran, A Economia Política do Desenvolvimento, que apontou à contradição representada pela tendência a incorrer em desperdício de recursos escassos.

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Pode-se considerar que uma questão crítica desta época é a garantia de energia91 suficiente para manter a produção em seus níveis atuais. Nesse sentido, colocam-se os problemas relativos aos modos de uso de energia no conjunto de cada cidade. Com a industrialização da produção e do consumo, houve uma tendência geral à substituição de todas as formas de energia pela energia elétrica de rede, com o resultado geral de sobrecarga do sistema integrado de produção. Essa tendência hoje prevalece, gerando crises crescentes do sistema. Mas acusa a presença de diversas tendências alternativas e contraditórias, de substituição de energia de rede por energia localmente gerada (biodigestores, energia solar, etc.) de reciclagem de lixo, de controle de poluição, que deslocam as opções da sociedade industrial urbana.

Estratégias de ocupação e renda Na sociedade econômica contemporânea há uma tendência geral à queda do número de postos de trabalho regulares disponíveis e uma diminuição do número de pessoas na produção, ao tempo em que a produção requer mais qualificações e mais variadas. Por trás dela, há uma lógica da eficiência, que é a dos interesses do capital, e uma lógica da sobrevivência, que representa os interesses dos que vivem do trabalho ou que precisam viver do trabalho, estejam empregados ou não. A lógica da eficiência conduz a política das empresas para substituir trabalho por capital e para modificar os requisitos de qualificação dos trabalhadores. Situada na escala do sistema de produção em seu conjunto, a lógica da eficiência traduz-se numa queda generalizada do emprego, junto com deslocamentos das posições dos trabalhadores, na direção da precarização do emprego. Frente à lógica da eficiência, a lógica da sobrevivência cria outras referências de contrato social, se não de ética das relações de trabalho, por exemplo, com o reconhecimento da evasão fiscal, com a tolerância para pequenas contravenções de diversos tipos e mesmo e a aceitação de contrabando como uma prática regular.

91

A expressão garantia de energia denota um problema estratégico, primeiro político e depois econômico, que define condições de vulnerabilidade dos sistemas nacionais.

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A lógica da eficiência considera o emprego como um custo da formação de capital, que é preciso reduzir. Mas, para os trabalhadores o emprego é o modo de obter renda sem ter capital, procurando reduzir a incerteza dessa renda e torná-la suficiente para o consumo familiar. O contraste entre essas duas perspectivas resulta de que o capital desenvolve estratégias para reproduzir-se através de lucros financeiros, enquanto os trabalhadores precisam de estratégias para aumentar sua renda familiar dependendo menos do emprego. O capital jamais desejou empregar ninguém; e os que as pessoas que se empregam gostariam de não precisarem do emprego. No âmbito de cada cidade, as estratégias de renda passam pela mediação do Estado, que além de ser o principal empregador, realiza obras que ocupam pessoas, faz compras que determinam vendas e ainda, comanda a distribuição de crédito, que regula o mercado imobiliário. Os grupos que alcançam o poder controlam o Estado, usando a esfera política como meio de alcançar resultados econômicos. Os menos poderosos desenvolvem mecanismos próprios de organização, para conquistar espaços próprios. Os que não conseguem espaços de poder constituem a base dos contingentes de excluídos, que são sempre mais explorados e que ficam restritos a condições de vida mais desfavoráveis. O desenvolvimento de mecanismos ditos informais de poder é a resposta dos setores excluídos do poder organizado e legitimado, para defender espaços próprios de renda e de perspectivas de renda. O aparecimento de formas perversas de poder, tais como a criminalidade aberta e velada, e a corrupção, está ligado a esse perfil de desigualdade de renda e de perspectivas de mobilidade. Seria um modo espúrio de consagrar as práticas sociais não legais e desafiadoras do poder constituído. O confronto e os ajustes de interesses se realizam em torno de alguns pontos básicos, dentre os quais o principal é a formação do capital imobiliário, apoiado no controle da valorização do solo e dos imóveis; e a perpetuação de uma periferia urbana precariamente ocupada e de baixa renda, que funciona como complemento da economia organizada. A lógica da acumulação do capital imobiliário tem sido de controlar a oferta de espaços socialmente produzidos, para obter preços monopolísticos. Isso se faz a expensas de controlar os espaços não utilizados em geral, as áreas verdes em especial, e de controlar a oferta de infra-estrutura. Desse modo, controla-se a formação dos preços da terra. Assim, para acumular, o capital imobiliário gera escassez de diversos tipos de espaços construídos e amplia a oferta daqueles tipos de espaço que correspondem aos

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usuários que podem pagar preços suficientes para remunerar o capital monopolista urbano. Planejamento e iniciativas comunitárias Por planejamento entende-se aqui um comportamento racional previsor, de gestão de recursos sobre determinados horizontes de tempo e espaço. O planejamento envolve o uso de uma capacidade de decidir; e sempre tem conseqüências sociais, mesmo quando seu objeto são recursos do meio físico-natural, já que regula os usos sociais de energia. A originalidade do planejamento é que ele envolve um grande número de pessoas, integrando grupos com diferentes interesses. Longe de ser um ambiente onde há uma única razão técnica, o planejamento é uma atividade que se desenvolve através de conflitos de interesse que se renovam ao longo do tempo, segundo surgem as oportunidades de aplicarem-se recursos públicos e de se obterem vantagens que alterem as tendências de remuneração do capital. O planejamento social revela os interesses dos coletivos organizados em suas manifestações diretas, através de seus próprios instrumentos de poder, e em suas manifestações indiretas, mediante controle, total ou parcial, do aparelho estatal. O planejamento das famílias e das comunidades traduz um ponto de vista essencialmente local, comparado com o planejamento das tecnoburocracias, nacionais e regionais, que tendem a generalizar e substituir o local pelo nacional e a tratar com globalizações em vez de totalidades. A prática de planejar é inerente à atividade econômica racionalmente constituída. Planejam todos os grupos sociais, desde as famílias às empresas e ao Estado segundo sua capacidade de perceber tendências e antecipar situações. Na prática, jamais deixou de haver planejamento e sempre houve condições desiguais de planejar. Nas diversas manifestações de planejamento, distinguem-se aquelas que são conduzidas segundo uma visão limitada aos aspectos técnicos e instrumentais dessa atividade, ou segundo uma compreensão auto-reflexiva, crítica, do processo social, que envolve a avaliação das bases de poder do próprio planejamento. Assim, a negação do planejamento é a da capacidade de decidir do sujeito que planeja, seja ele o Estado nacional, uma empresa ou um grupo social.

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Tal diferença foi tratada por Habermas, mediante a distinção entre uma racionalidade técnico-instrumental e uma racionalidade comunicativa, em que esta última reflete o fato de que a comunicação (diálogo) revela, por seus temas e sua linguagem, a comunicabilidade entre coletivos e pessoas com diferentes situações sócio-culturais. No entanto, a razão técnica-instrumental é um fator cultural, que em instâncias como de mega-empresas e de macroeconomia, revela a cultura da sociedade industrial subalterna. O modo de centralizar capacidade de decisão é sempre o resultado de experiências políticas, em que entram a autonomia de decisão das pessoas e o autoritarismo. Cabe considerar que a leitura de Habermas deste problema implica em uma simplificação inaceitável para nós, que consiste em atribuir uma única e exclusiva racionalidade à esfera técnica, assim como, que a racionalidade do diálogo pode ser conduzida sem uma prévia crítica sócio-cultural da pluralidade social do poder. É preciso focalizar nos aspectos objetivos da comunicação, distinguindo as diferenças na capacidade dos grupos para perceberem seus interesses, dados os fatores históricos, que respondem por sua consciência de classe. A capacidade de realizar empreendimentos desse tipo depende de experiência em termos de organização para produzir e para consumir. A crise da análise urbana da década de 1970 teve muito a ver com uma defasagem entre a pressuposição de cidades que são conduzidas por pautas de comportamento comparáveis, e o reconhecimento da pluralidade de experiências e interesses que as torna não comparáveis. Quadro 3 Ideologia e modos de planejamento Bases Ideológicas Carismática Programática

Bases Racionais

Tipos de Planejamento

Técnicas

Ideológicas

Industrial

Subordinada

Autoritário

Infra-Estrutura

Autônoma

Democrático

Serviços

Subalterna

Consensual

Fonte: Elaboração do autor

Assim, a separação entre razão técnico-instrumental e razão comunicativa é falaciosa, porque a capacidade de perceber uma e outra, portanto, de exercer uma e outra, depende de uma situação ideológica historicamente construída. Afinal, cada tecnoburocracia

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corresponde a uma situação de classe e de subordinação interna e externa. Explicasse que sejam diferentes os perfis de desempenho da burocracia estadual e da municipal, tanto pelo perfil de seus compromissos com problemas locais, como por seu tipo de especialização. Além disso, dadas as inter-relações entre as esferas estadual e municipal, é necessária uma coordenação entre as duas e à sociedade local, alcançando os princípios técnicos e as condições operacionais dos órgãos que coincidem numa mesma área. Nesse ponto, entram os aspectos de qualificação prática, ligados aos modos de organização urbana e aos níveis de renda. Identificam-se pistas para a montagem de um esforço de planejamento sobre bases locais. Em atividades como a auto construção de habitação, encontram-se determinadas situações de competência técnica e de capacidade de organização, que devem ser objeto de análise e podem ser usadas como atratoras da organização local. Encontram-se comunidades urbanas de baixa renda em condições nitidamente diferentes de competência técnica e de capacidade de organização para que nelas surjam empreendimentos individuais de construção de moradia. Sempre há, portanto, uma questão do planejamento, relativa às condições materiais locais de reprodução dos grupos organizados, desde as famílias às comunidades; e relativa às bases culturais sobre que se assentam as atividades das famílias e das empresas. No planejamento, intervêm os saberes da sociedade, desde as formas racionais que o organizam até as formas ideológicas que subjazem no comportamento dos grupos organizados. Essencialmente, é uma Economia Política da prática urbana, cujo fundamento é a formação do capital imobiliário e que gera condições próprias de marginalização (Singer, 1973). Com a emergência da preocupação ecológica, bem como, com o reconhecimento da pluralidade de sociedades sub-industrializadas como a brasileira, encontra-se a necessidade de rever o planejamento com suas conotações tecnológica e ideológica e com uma visão comparativa da diversidade de objetivos e de estratégicas dos diversos grupos. Mas o planejamento está sempre penetrado da visão ideológica de seus realizadores, com traços de autoritarismo e e programas politicamente construídos; que inclui seu sistema de autoridade; suas relações externas de poder, com suas margens de independência, sua autonomia prática, sua subalternidade à ordem hegemônica, com

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seus valores e preferências, também com sua capacidade de realizar atividades práticas. O planejamento compreende ideologia e tecnologia, com esta última representando as situações de autonomia e de subalternidade, resultando em estilos de planejamento, mais ou menos autoritários ou democráticos - ver diagrama 1 - e corresponde a uma capacidade historicamente formada.

A questão prática relativa à polaridade entre

planejamento autoritário ou democrático está em sua capacidade de mobilização. O envolvimento de grupos de baixa renda e marginalizados em geral depende de uma combinação dos fatores ideológicos do planejamento com a criação de estímulos concretos de consumo. Diagrama 1 Sobrevivência e liberdade na sustentabilidade social

Fonte: Pedrão (2002)

As possibilidades de exercer plenamente um planejamento localmente construído dependem da mobilização das coletividades nele representadas. Por isso, as práticas de planejamento urbano podem ser o modo concreto de incrementar a mobilização das comunidades, em torno de soluções para problemas específicos de controle sanitário. Pode ser o modo de obter a coesão e solidariedade necessárias para, adiante, lutar por iniciativas de emprego e renda, tal como a criação e a consolidação de movimentos locais com programa próprio, como podem ser cooperativas ou associações de moradores. Noutras palavras, é preciso abrir a caixa preta do planejamento local, para identificar as relações de classe de seus participantes, com seus determinantes diretos e indiretos; e as condições materiais e ideológicas em que eles participam. Na pluralidade de condições

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em que os moradores das cidades desenvolvem sua estratégia de vida, é preciso distinguir entre o planejamento localmente realizado por participantes da economia mundializada e o planejamento de sujeitos locais de decisão. Na realidade, não existe uma esfera econômica local imune à participação e às influências de sujeitos da economia internacional. Nesse campo há uma tradição de voluntarismo do planejamento urbano, que simplifica o contexto ideológico da vida urbana, começando por desconhecer os interesses e pontos de vista dos participantes das comunidades. Tal planejamento torna-se uma atividade negativa, porque quanto mais progride mais acentua a diferença entre o componente social que afirma sua vontade na forma da cidade e o componente cujos interesses são postergados. Desse modo, consolida-se uma compreensão da estruturação social da cidade em seu conjunto baseada em negação, especialmente, da parte da sociedade de excluídos. Nas cidades brasileiras esse processo é reforçado pela ação do Estado na condução dos sistemas de serviços de utilidade pública, com seus componentes de infra-estrutura e de prestação de serviços. Tais serviços são desenhados e operados em função dos que estão integrados ao sistema produtivo. Dada a predominância do desemprego e da subocupação sobre o emprego formal, os participantes definem-se, primeiro, como moradores e somente depois e eventualmente como trabalhadores. Numa cidade onde predominam os desempregados crônicos e os sub-empregados, a qualificação de trabalhadores é muito relativa, de alcance limitado e tem uma determinada duração, ou melhor, perde-se, se não for continuamente realimentada. Mais uma vez, a análise da pobreza urbana em Salvador oferece algumas pistas importantes sobre esse ponto. A cidade tem habitantes transitórios e moradores, numa ordem lógica institucionalmente legitimada ou numa aparente desordem (Kowarick, 1979). A condição de morador estabelece uma determinada possibilidade de acesso à cultura urbana e aos mecanismos de solidariedade que se formam na cidade. Ao mesmo tempo, colocam as pessoas em condições equivalentes de exposição às dificuldades da vida urbana. São os mais pobres que estão sujeitos a violência de todos os tipos, física e moral. São os que sofrem mais com a presença de bandidos, com assaltos e sujeitos à humilhação da falta de serviços e das filas. O mapa urbano da pobreza coincide com o da exclusão, e da distância e do tempo para as decisões de planejamento. O horizonte de tempo dos pobres é um dia e os dos ricos é várias décadas.Coincide ainda com o da

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destruição do ambiente. Os bairros mais pobres não têm árvores. As pessoas convivem com esgotos e com desinteresse. Assim, em função dos movimentos de valorização e de desvalorização dos espaços socialmente produzidos, definem-se linhas de interesse, que pugnam pelo controle de vantagens materiais, desde emprego a acesso a serviços públicos básicos e à educação e à saúde. São diferentes perfis de interesse, que disputam a aplicação dos recursos que passam pela esfera do controle estatal. O planejamento urbano trata, sempre, com a combinação de conflitos e ajustes de interesses, numa relação variável entre a esfera pública e a privada. O que se entende como planejamento social e ecologicamente adequado, move-se sobre as margens de diálogo entre grupos, geralmente representando os interesses dos capitais incorporados na cidade, mas registrando as falas dos excluídos, portanto, funcionando como uma referência, de um âmbito em que eles podem se organizar. Essa, certamente, é a parte mais difícil do planejamento, porque ele sempre partiu da supremacia do diagnóstico externo às comunidades, seja ele feito pela tecnoburocracia ou pela academia. Nesse sentido, a educação ambiental corre um risco semelhante ao da educação convencional, quando esta falha por ser desvirtuada no modo como chega aos pobres. O encaminhamento correto da questão parece ser de tratar o planejamento como uma pedagogia e não como um procedimento administrativo. O envolvimento dos participantes nos processos de identificação de problemas e de formação de decisões tem um sentido prático, além do fundamento ético próprio do processo democrático. O envolvimento significa co-responsabilidade, portanto, a possibilidade de ampliação progressiva dos recursos humanos envolvidos na realização de programas. Assim, a atividade urbana projeta a formação dos sujeitos urbanos do processo social, que se consolidam pela continuidade de sua presença, ou que se diluem, quando perdem sua capacidade de continuarem a participar do processo. A sustentabilidade em última análise é o resultado da ação de grupos estáveis, capazes de imprimir sua presença no modo de produzir cidade. A necessidade de uma teoria da ação social urbana torna-se indiscutível, quando se reconhece que o funcionamento das cidades, especialmente de cidades desiguais como

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as brasileiras, não pode ser reduzido aos termos de ações equivalentes. As ações praticadas por grupos sociais igualmente participantes do processo econômico dependem, justamente, dessa desigualdade e falta de sincronia, que respondem a objetivos diferentes e operam num espaço dominado por uma determinada forma de capitalização. Há uma questão relativa à estruturação social em geral e à estruturação da vida urbana. A sociedade urbana de hoje no Brasil não pode ser explicada por uma composição unificada de classes, senão por uma composição fraturada de classes92, com uma brecha que se alarga ou estreita, segundo se ampliam ou reduzem conjunturalmente as perspectivas de emprego. A vida urbana nessas grandes cidades tão desiguais se organiza a partir de alguns dados básicos dessa fratura, que compreende elementos culturais e ideológicos, tanto como elementos materiais. No entanto, há tendências bem definidas, como as que já estabeleceram as cidades de maior tamanho, como São Paulo e o Rio de Janeiro, como cidades onde o componente excluído cresce mais que o incluído; e em cidades como Salvador, Recife e Fortaleza, onde o componente excluído sempre foi mais numeroso e onde se registram mutações nas condições de pobreza, com o alastramento de um tipo de pobreza conseqüente da saturação do mercado de informalidade, sem acesso atual nem perspectiva alguma de acesso a emprego. Cidades que crescem mediante o aumento de seu contingente de pobres e excluídos nada têm em comum com a utopia das cidades de classe média. Nessas situações, obviamente, não há sustentabilidade possível, porque as ações dos grupos constitutivos da cidade não têm referências comuns e desenvolvem modos de vida conflitivos, que se reproduzem por separado uns dos outros, gerando cidades socialmente fraturadas. Em síntese, a sustentabilidade é uma condição do desenvolvimento social, que reflete como a sociedade maneja o ambiente; e depende de um conjunto de fatores, não podendo ser separada jamais da problemática da distribuição da renda. O cerne do problema não é a presença de grupos cronicamente

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A expressão composição fraturada de classes alude a rupturas entre relações de classe nos ambientes em que se reconhecem capitalistas e trabalhadores e relações nas quais a própria identidade dos trabalhadores é negada. É uma contradição essencial do sistema capitalista que precisa da oposição entre classes para ter a quem explorar e dos trabalhadores para terem quem pague seus salários. A composição fraturada de classes significa que há fraturas insuperáveis dentro de cada uma das classes e que a identidade das pessoas depende dessas fraturas.

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pobres, senão de processos sociais que perpetuam e ampliam a desigualdade, segmentando a sociedade e eternizando condições específicas de pobreza. Separada das condições reais de reprodução da sociedade urbana de hoje, a sustentabilidade é apenas uma referência mítica, que pode servir exercício de imaginação.

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10. Tecnologia e ambiente

Desenvolvimento social e tecnologia A criação e a apropriação de tecnologia é o mecanismo geral de superação de modos de organização da produção socialmente regularizados, com que se articula trabalho coletivo. Assim, o que se chama em geral de tecnologia é o processo social da técnica, que compreende o processo social de produção de técnicas e o de processamento e absorção de técnicas novas. Por isso, a produção e o processamento social de tecnologia muda e ganha em complexidade ao longo do tempo, a medida que a sociedade se torna mais consciente das implicações entre as práticas de produção e as modificações no manejo de tecnologia. O desenvolvimento de tecnologias acontece por uma combinação de observação dos processos de trabalho e uma reflexão sobre os modos de fazer as coisas, que se realiza fora dos locais de trabalho, em universidades ou em centros de pesquisa de diversos tipos. Esses movimentos podem ser convergentes em torno de alguma política nacional ou regional, ou podem seguir por linhas distintas, possivelmente contraditórias, assim como se abastecem de experiências que se acumulam no campo do trabalho. O controle do processo da tecnologia é essencial para o capital, mas como ele depende de condições operacionais dos trabalhadores não pode ignorar que o processo em seu conjunto depende da adaptabilidade dos trabalhadores. Desde a década de 1960, aproximadamente, muitos países, no centro e na periferia da produção capitalista, empreenderam políticas, diretas e indiretas de desenvolvimento tecnológico, reconhecendo que as crises do capitalismo decorrem de uma irregularidade na realização de investimentos. Tal erraticidade não depende apenas de uma decisão do Estado senão de uma competência da sociedade em seu conjunto para realizar investimentos significativos para a reprodução do capital. Será um problema de escolhas de investimentos com suas implicações em seleção de técnicas antes que de um problema de seleção daquelas técnicas cujo uso está ao alcance das nações menos industrializadas (SEN, 1967). Os efeitos ambientais dos rumos a serem seguidos em tecnologia poderão ser monitorados a partir de uma política integrada de tecnologia, que, por isso tem que ser estatal.

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O problema técnico de seleção de técnicas aparece como um aspecto da análise convencional de projetos de investimentos, envolvendo um pressuposto de equivalência entre os investidores, que tampouco é certa, mas que é parte de uma teoria genérica da firma – obra de economistas convencionais - que não pode ser confundida com uma teoria geral da produção. Há uma diferença entre as possibilidades de escolha de detentores de capital sobre um quadro atual de alternativas e os objetivos de superação de situações de tecnologia que passam a fazer parte dos programas de desenvolvimento da produção. O problema social de escolha de técnicas contempla realidades insatisfatórias que devem ser corrigidas no transcorrer do desenvolvimento do sistema produtivo. O problema social de escolha de técnicas envolve as conseqüências da incorporação de novas técnicas no sistema produtivo, que é um desafio lançado por David Ricardo (1817) em termos que não foram contraditos. Na gangorra entre custos de tecnologia e custos sociais do desemprego, obviamente, há um descolamento entre interesses sociais e interesses de empresas individuais, que não é captado pela perspectiva de bem estar genérico da teoria marginalista. Os problemas concretos de pobreza atrelados aos de queda do efeito emprego dos investimentos caracterizam uma diferença entre a leitura da questão tecnológica na perspectiva dos interesses do capital e na dos interesses da maioria.

O fundamento tecnológico do capital Somente quando se reconhece que a tecnologia é inerente ao processo das civilizações em seu sentido mais amplo torna-se possível perceber a diferença entre a formação de tecnologia nas civilizações pré-capitalistas e na do capital, bem como distinguir o fundamento cultural da tecnologia. Descarta-se a visão de que a tecnologia seja um fenômeno apenas técnico e descobrem-se suas raízes culturais e ideológicas. O olhar sobre o fundamento cultural da tecnologia é o que permitirá fazer a ponte entre a abordagem social da tecnologia e a do ambiente.

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O impulso tecnológico da produção na sociedade do capital modifica radical e definitivamente a relação do sistema sócio-produtivo com o mundo natural e estabelece horizontes de duração para o sistema social. São essas limitações de duração que tornam necessário pensar em termos de sustentabilidade, isto é, de uma duração administrada que pode se prolongar além da vida útil dos equipamentos disponíveis. O sistema da produção capitalista impõe uma mudança radical na relação essencial entre ambiente social e tecnologia, que é o modo como a sociedade aprende a satisfazer suas necessidades materiais por experiência própria e copiando outras experiências. Há todo um trânsito nas relações entre nações em que as relações de negócios e militares põem em marcha relações culturais e em que a visão de mundos se processa sobre a combinação de internacionalidade e localidade. Em cada momento e lugar o ambiente social se configura como o modo como a sociedade realiza a produção e o consumo e as comunicações. O que se convenciona chamar de tecnologia é o conjunto dos modos de fazer as tarefas demandadas pela vida social, onde cada conjunto de técnicas é parte de uma progressão de aperfeiçoamento de técnicas. Para decodificar a complexidade do panorama atual de tecnologia é preciso reconhecer que nas diversas civilizações há diferentes progressões de técnica, que não necessariamente são comparáveis. Por exemplo, a progressão das técnicas de irrigação do Peru antigo não é seqüencial com a correspondente progressão do Egito antigo ou de Europa medieval, por mais que os passos dessas progressões sejam semelhantes. Em cada momento e lugar a tecnologia é uma síntese de conjuntos de técnicas, com suas respectivas condições específicas de aplicação, que corresponde a uma competência para usar o conhecimento disponível. Em um modelo geral de aplicação de tecnologias pode-se considerar que há uma diferença entre condições ideais e condições concretas de aplicação e que o esforço de aumentar eficiência nos usos do capital aponta a reduzir essa diferença, aceitando que os valores residuais são sempre superiores a zero. Nesse sentido pode-se trabalhar com um coeficiente de aproveitamento das tecnologias que depende (a) de domínio técnico das tecnologias disponíveis; (b) da qualificação pertinente dos trabalhadores e (c) de restrições ambientais para sua aplicação derivadas de condições de mercado. A produção capitalista se realiza mediante um movimento combinado de incorporação seletiva de tecnologias novas e difusão de tecnologias existentes, em que a difusão funciona como um fator de nivelamento dos padrões de eficiência entre segmentos de

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produção de tecnologia avançada e segmentos de tecnologia dominada. Esse movimento tende a reduzir diferenças entre os segmentos do sistema até o ponto em que sua ulterior redução gere custos gerais para o sistema maiores que as perdas em que se incide por menor eficiência. Será, portanto, necessário seguir a pista do controle econômico da tecnologia, em que se comparam custos gerais dos sistemas de pesquisa científica com os custos gerais e com os custos específicos das pesquisas tecnológicas e finalmente, com os custos de operacionalização de tecnologias nos sistemas produtivos. A produção capitalista tende a reduzir as diferenças de condições de aplicação de tecnologia, ou a gerar ganhos em escala que permitem absorver os custos de exploração em condições adversas, tomando como parâmetro universal o benefício líquido auferido das aplicações. Mas essa é uma estratégia que significa ignorar as especificidades dos custos crescentes em relação com as condições ideais de aproveitamento das técnicas.

O modo tecnológico da produção capitalista e suas implicações no ambiente A guinada capitalista da tecnologia significou uma mudança nas velocidades de absorção e de substituição de tecnologias, com um correspondente aumento de pressão sobre os sistemas de recursos, determinando a exaustão de diversos deles, que por isso se tornam estratégicos. O progresso tecnológico, entendido como aceleração da substituição de tecnologias, torna-se uma variável que é acionada pela própria necessidade dos capitais de competirem uns com os outros. Essas opções resultam em seleção dos recursos que serão usados e na intensidade de seu uso. Há opções de uso de metais para produzir bens de capital essenciais ao sistema produtivo e opções para ornamentos que não afetem ao sistema. A demanda de jóias pode ser preferencial para grupos de alta renda, mas não é relevante para a sobrevivência das maiorias. O progresso tecnológico da produção capitalista se realizou seguindo uma seqüência de opções técnicas que definira rumos dos usos dos recursos que em seu momento inicial pode ter sido questionado, mas que se torna uma série de fatos consumados constitutivos de um conjunto irreversível. Assim, por exemplo, a história dos usos do carvão na indústria e como elemento de conforto térmico que

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desenvolveram uma indústria cuja justificação financeira oculta alguns dos maiores danos ao ambiente. A visão em perspectiva do impacto tecnológico da seleção de tecnologias leva a distinguir duas situações principais que são as de: (a) efeitos lineares invariantes de um dado conjunto de eventos similares; e (b) efeitos não lineares em progressões variáveis que alteram as condições de previsibilidade. No decorrer do século XX e segundo estímulos externos ao sistema, especialmente conflitos militares, o perfil de usos de tecnologia incorporou diversos efeitos que não eram parte do sistema, como aqueles decorrentes do próprio aumento de escala e da diversidade de usos de recursos, especialmente, no relativo a alimentos e a energéticos. Tais custos referem-se, geralmente, a condições irredutíveis, como são as da exploração de petróleo em grande profundidade, ou como são as da indústria aeroespacial, mas onde as indústrias que estão na ponta das tecnologias tornam-se referências necessárias para as que operam em níveis mais abaixo de tecnologia. A questão consiste realmente em que a tecnologia cria vínculos mais profundos entre as empresas, que transcendem o plano meramente mecânico. Tais efeitos vão às implicações da gestão do capital, na qual se encontram as opções de tecnologia. O que chamaremos de Efeito Wicksell de demanda de capital93 impõe às empresas os momentos em que elas precisam decidir sobre comprometerem seu capital com tecnologia e em qual modelo de compra e de uso. Torna-se claro, portanto, que a tecnologia é uma mercadoria e está aderida ao capital, derivando seu valor do modo como pode ser comercializada por separado de produtos específicos.

Famílias de tecnologia e blocos tecnológicos Os parágrafos anteriores sugerem que se observe o desenvolvimento da tecnologia em determinadas seqüências cujo encadeamento permite pensar que há certas famílias de tecnologias complementares umas das outras e em que a substituição de técnicas tem 93

Knut Wicksell defendeu uma explicação objetiva do movimento do capital considerando que as iniciativas de inovação surgem de situações concretas de demanda de capital por parte de empresas que precisam de financiamento para realizar investimentos necessários. Essa é uma explicação que focaliza na objetividade do processo do capital, superando a interpretação de Schumpeter de que inovação decorra de criatividade de empresários.

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sempre efeitos de interdependência. Por exemplo, a expansão da agricultura irrigada resulta na identificação de necessidades de tecnologia que passa como um sinal de procura para a indústria de defensivos agrícolas. A inclusão de uma nova linha de produção industrial no sistema de produção de um país significa a inclusão de toda uma seqüência de interdependências entre indústrias, através das quais se define a substituição de técnicas específicas. Surgem conjuntos de tecnologias afins que podem ser vistas como famílias de tecnologias, que funcionam como referências, justamente por sua semelhança ou por girarem em torno de um mesmo conjunto de problemas. Um exemplo são as técnicas de irrigação por aspersão. As famílias de tecnologia justapõem-se de determinados modos – por seus usos de capital e de trabalho – fazendo com que em cada momento do desenvolvimento de cada economia nacional haja determinados elencos de interdependências entre os conjuntos de tecnologias utilizadas. Por exemplo, as interdependências entre a produção agrícola e a de defensivos são diferentes entre regiões que produzem os mesmos produtos, assim como as substituições de técnicas que acontecem em cada uma delas estão sujeitas a movimentos de duração incerta ou não previsível. Na prática, quando se trata de modernizar um dado ramo de atividade encontram-se certos efeitos indiretos que obrigam a realizar investimentos complementares cujos custos podem ser superiores aos do plano previsto. Essas interdependências colaterais constituem restrições para qualquer programa de modernização tecnológica, primeiro, porque permitem visualizar suas implicações indiretas mais próximas; e segundo, porque constituem indicações confiáveis de custos que aparecerão adiante quando qualquer investimento for concluído. Na prática nem toda substituição de técnicas é modernização e nem toda modernização técnica é necessária ou mesmo conveniente. Em seu conjunto indicam uma necessidade de planejamento que remete às responsabilidades sociais do Estado. Distinguem-se, portanto, efeitos diretos e indiretos dos investimentos, em que os efeitos indiretos significativos têm um certo horizonte em tempo e espaço antes que a dispersão e a diluição de seus efeitos se torne decisiva. Como cada investimento tem um certo horizonte de efeitos indiretos em tempo e espaço, que representa o conjunto de seus efeitos indiretos significativos, é lógico considerar que o planejamento da substituição

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de tecnologias deve levar em conta os espaços em que pode incidir no tempo do esgotamento desse horizonte de efeitos indiretos. Temos aí, portanto, uma dimensão regional inercial, que surge da espacialidade dos investimentos. Nessa dimensão regional se vê como esses efeitos indiretos reagem na formação de sistemas historicamente concretos de produção. Ao admitir, ainda, que nem todo o território nacional está composto de regiões claramente definidas e que as regiões têm referenciais básicos de recursos físicos e de recursos humanos94, torna-se claro que as alternativas práticas de substituição de técnicas correspondem a intervenções na escala de regiões específicas e que os efeitos inter-regionais devem ser identificados como movimentos progressivos limitados. Esta linha de argumentação tem um significado muito especial na análise dos problemas de países territorialmente muito desiguais como o Brasil, onde os efeitos das políticas regionais raramente podem atingir ao país em seu conjunto. Isto porque, em grande parte, mais que em outros países desigualmente industrializados, as alternativas regionais compreendem elevadas margens de complementaridade intra-regional, mesmo quando sejam discutíveis a veracidade ou a desejabilidade da autarcia regional.

O desenvolvimento de opções tecnológicas regionais No ponto onde se comparam regiões nitidamente industrializadas com outras não industrializadas considera-se em princípio que os custos sociais da incorporação de novas técnicas se inferem da análise dos custos sociais dos investimentos. Ao examinar a situação atual de regiões desigualmente industrializadas, este quadro fica menos claro, porque todas as comparações entre investimentos específicos devem levar em conta as condições práticas em que se realiza a substituição de técnicas. Há, portanto, um problema relativo às possibilidades imediatas de renovação tecnológica que se encontra em cada região.

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Seria necessário desenvolver aqui uma análise minuciosa do significado histórico dos recursos humanos, considerando as posições do trabalho qualificado e do não qualificado assim como do trabalho manual e do não manual, antes que tudo, para reconhecer que a qualificação é uma situação temporária que surge de um processo de mão dupla em que há movimentos de qualificação e de desqualificação.

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A questão é que todas e cada uma das regiões do Brasil já se encontram em condições de grande complexidade tecnológica, que em cada uma delas há problemas delicados a serem enfrentados no relativo à identificação e seleção de técnicas a serem substituídas e ainda, que os custos sociais da renovação tecnológica afetam suas respectivas trajetórias de desenvolvimento. Neste sentido, são necessárias respostas práticas para superar a inércia tecnológica. Para isso, é preciso desenvolver análises críticas do quadro atual e das perspectivas mais prováveis.

A dimensão ambiental regional O termo ambiente denota uma gestalt cujas regras de reprodução contemplam a intervenção de agentes sociais no meio natural com objetivos diferentes daqueles indicados para a reprodução dos sistemas de recursos. Os sistemas ambientais mudam, com diferentes intensidades. Mesmo os sistemas que não estão sob intervenção direta do homem estão sujeitos a regras naturais de mudança, que podem ser irreversíveis nas escalas de tempo com que as sociedades raciocinam. Assim, é preciso pensar em termos de tempos e de durações das modificações dos sistemas ambientais, em que as ações deliberadas pela sociedade reagem ante ações naturais em curso. Neste sentido as intervenções no plano tecnológico e regional são inevitáveis e as sociedades percebem em tempo quais progressões não planejadas de ações levam a contradições crescentes com a reprodução natural. Ao explicitar os termos ambientais da discussão procura-se alinhar um terceiro significado das ações programadas, que ajuda a definir as alternativas dos anteriores. As ações da sociedade sobre o ambiente tornam-se progressivamente irreversíveis porque representam posições deliberadas da sociedade sobre maior número de aspectos do meio físico. Assim, incorporar a dimensão ambiental à análise social significa renovar o tratamento dos problemas econômicos de custos e esclarecer questões que ficaram em aberto, qual seja, de como fazer análises de custos sem limite de validade para os investimentos. O mal de origem

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A dimensão regional dos problemas sociais não nos chega hoje de graça nem está isenta de uma crítica que a limita. A temática regional teve um período de glória enquanto funcionou como detalhamento de políticas nacionais e supriu falhas das políticas nacionais para reconhecerem e intervirem em realidades que não se adaptavam à visão uniformizadora das políticas de desenvolvimento econômico. Há uma insatisfação no meio das ciências sociais com relação ao debate sobre os temas do ambiente, em parte por se converterem em relato descritivo dos danos ao ambiente da sociedade moderna capitalista e em parte por se transformarem em discurso legitimador da grande indústria do ambiente. O retorno a categorias do processo social do ambiente e o desmascaramento do ambiente como elemento de uma disputa de poder, superficialmente desideologizada, mas de fato ao serviço dos interesses do capital tornam-se exercícios enfadonhos, mas necessários. A relação entre os aspectos teóricos e práticos da temática ambiental deu lugar a uma notória dispersão entre as abordagens surgidas nas ciências da natureza e nas ciências sociais, assim como a inegáveis diferenças de linguagem entre biólogos, sociólogos e economistas, consagrando um distanciamento entre estruturalismo e fenomenologia. O desenvolvimento, em profundidade e em extensão, de pesquisas econômicas e sociais que interajam com correspondentes pesquisas tecnológicas no tratamento de problemas do ambiente, antepõe hoje dificuldades práticas, operativas, cuja solução demanda uma rigorosa fundamentação teórica. Desde logo constata-se uma notável fragmentação das análises tecnológicas, entre aquelas induzidas por problemas econômicos e aquelas outras decorrentes de interpretações de questões originariamente levantadas no plano da indagação científica mais ou menos pura. As análises tecnológicas oferecem coleções de resultados, que podem ser incluídas em determinadas linhas de desenvolvimento tecnológico, criadas ou alimentadas por usos predominantes de tecnologia, como nos transportes e nas comunicações, e na produção e no manejo de energia. Mas em sua raiz, como elementos de conhecimento, são resultados isolados, cuja utilidade não pode ser antecipadamente determinada. Em segundo lugar, há uma dicotomia entre as colocações globais ou sistêmicas sobre as questões ambientais, como as que tratam de movimentos de erosão ou de poluição e as colocações sobre os impactos ambientais de investimentos. Estas

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ficam restritas ao horizonte temporal e espacial de determinados investimentos e de conjuntos de investimentos, em que despesas são confrontadas com usos de insumos. Registra-se separação entre os planos macro e micro dos investimentos. Encontram-se dificuldades de método para articular conjuntos de problemas em um esquema lógico integrado, portanto, para adiante dar-lhes um tratamento quantificado contínuo. Na perspectiva econômica, as técnicas oferecem possibilidades de resultados que têm que ser apreciados de modo direto, mesmo quando se sabe que dependem de determinadas trajetórias de usos, de encadeamentos da produção e de substituição de técnicas. A perspectiva regional oferece uma alternativa de solução de método desse problema, primeiro porque a noção de região se aplica a espaços delimitados, em que a limitação inevitável dos conjuntos de recursos constitui uma referência sólida na identificação de problemas tecnológicos e de identificação de estilos de formação de capital.

Ao definir linhas de pesquisa de média duração que apoiem a atividade

universitária e contribuam com observações úteis para a política econômica e social, propõe-se tomar como ponto de partida as restrições regionais na identificação de alternativas tecnológicas para o tratamento sistemático dos problemas ambientais. A questão ambiental tem uma ancoragem regional necessária que, entretanto, está sujeita a uma diversidade de interpretações que parcialmente ou mesmo essencialmente são contraditórias. O ambiente tem uma referência territorial, que aparece alternativamente como bacias hidrográficas, biomas, como sistemas determinados por critérios políticos e administrativos, como são as regiões políticas em geral, ou por critérios políticos e culturais, como são os territórios de identidade propugnados pelo governo brasileiro. O essencial é que todas estas definições se constroem sobre bases históricas. As regiões são os lugares de processos ambientais e as alterações do ambiente descrevem a continuidade, a interrupção ou o fim de processos regionais. O esgotamento da análise regional positivista, que em economia se identificou com a teoria marginalista e a análise neoclássica, deixou um vazio teórico que não foi preenchido pelas análises de situações relativas de regiões nem pela do impacto de investimentos. Ficou em aberto um problema teórico de reconstruir a relação entre a formação de regiões e a de espaços nacionais sob condições de modificações no contexto de relações internacionais.

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Esboço de análise regionalizada do planejamento ambiental O tratamento científico dos temas do ambiente demanda uma fundamentação consistente, capaz de garantir sua autêntica integração com as disciplinas formalmente mais consolidadas, como a economia e a sociologia, além de suas conexões com temas interdisciplinares, tais como tecnologia, desenvolvimento de regiões e urbanização. A perspectiva regional oferece grandes vantagens sobre quaisquer outras, porque combina a análise das alternativas oferecidas pelo desenvolvimento da tecnologia com a maximização das vantagens próprias de cada região, que têm sempre um caráter de peculiaridade, pois nunca podem ser integralmente comparadas com outras regiões. Paralelamente, permite extrair do quadro de cada região alguns conjuntos de indicações que se convertem em restrições de políticas nacionais, tais como disponibilidade de água com todas suas conseqüências indiretas; a disponibilidade de solos, os saldos migratórios e a proporção de trabalho qualificado sobre trabalho não qualificado etc. A perspectiva regional pode ser explorada em dois sentidos mutuamente não contraditórios que são: (a) O da perspectiva do país mediante sua espacialidade, portanto, como de um processo que gera um conjunto de regiões e de espaços de baixa densidade social, que não chegam a ser regiões;

(b) o de regiões específicas,

focalizando na consistência institucional, cultural e econômica de cada região e reconhecendo como cada uma das diferentes regiões transcende seu próprio espaço; e (c) a urbanização com seus efeitos na formação de regiões. Essas três perspectivas já deram um grande número de produtos que podem ser mais ou menos agregados, podem levar a inferências mais ou menos sólidas sobre o manejo de uma racionalidade alternativa à dos produtores e consumidores individuais, que difere do comportamento probabilístico com que se vêm os movimentos globais. Mas essas alternativas sempre estiveram delimitadas por se apoiarem em premissas que implicam na indeterminação dos agentes da produção e do consumo. Noutras palavras, pressupostos que obscurecem as conseqüências da consistência institucional do Estado, em suas dimensões central e local, bem como da consistência dos interesses privados. O aprofundamento da análise social na perspectiva regional pressupõe o comando de um

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conhecimento regional concreto, isto é, de um conhecimento que incorpora experiências de regiões concretas, com suas práticas de produção e suas instituições. A pertinência da abordagem regional no contexto de problemas tecnológicos e do ambiente decorre de que as diversas regiões metropolitanas constituem um sistema de produção com suas próprias restrições e formas de uso de recursos, em que a análise regional pode desembocar na determinação de uma matriz de regiões e técnicas, mediante a qual se descortinam progressões de investimentos. Subentende-se que os investimentos não são simples seqüências de eventos, mas são parte de progressões de decisões de negócios em que se consideram os diversos setores da produção. Trata-se, portanto, de trajetórias de investimento pelas quais se viabiliza a taxa garantida de crescimento95. Ao reconhecer que o desenvolvimento de cada região implica em condições restritas de autonomia de decisão afetando a concorrência entre projetos pelas mesmas localizações, verifica-se que as margens de autonomia para cada projeto podem aumentar ou serem contrapostas por movimentos integrados no espaço nacional em seu conjunto ou por movimentos que integram decisões no plano internacional.

De qualquer modo, o

aproveitamento de oportunidades locais de investimento torna-se, cada vez mais, um desdobramento de estratégias internacionais. Os movimentos de consolidação e de diluição de regiões interagem constantemente, com diferentes perfis e velocidades, mas modificando a composição regional de cada país. É uma ilusão supor que as causas que sustentam a liderança de uma região sejam sempre as mesmas. Estes elementos levam a definir um tratamento da regionalização dos problemas de tecnologia e do ambiente em termos de uma análise adequada a uma dimensão interregional da constituição do sistema produtivo antes que a uma análise região por região. Por extensão, de que se trata de linhas de atividade que levam a um tratamento multisetorial de cada região. 11. Políticas ambientais

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Damos aqui uma leitura derivada da teoria de Harrod da taxa garantida de crescimento, assim como das idéias de Marshall sobre progressões de negócios.

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Aspectos básicos da política ambiental Por pressupor que o desenvolvimento do sistema produtivo atinge negativamente o sistema ambiental, nele incluídos os recursos físicos e as condições de vida das pessoas, as políticas de proteção do ambiente têm sido essencialmente defensivas e se baseiam em diagnósticos de abrangência variável mas se concretizam em políticas localmente definidas. São políticas preventivas ou destinadas a reduzir os efeitos negativos de empreendimentos socialmente aceitos mesmo quando não sejam socialmente aceitáveis. Essa postura depende de que se entenda que os problemas do ambiente são sempre problemas de deterioramento de ambientes específicos e que podem ser plenamente detectados por meio de diagnósticos de lugares específicos. É preciso começar por rever esses antecedentes para chegar a um equacionamento razoável de políticas ambientais, reconhecendo que os diversos problemas de ambiente dependem de condições do planeta se refletem em condições de habitabilidade, que variam de um lugar a outro ao longo do tempo. Na realidade todas as políticas ambientais localizadas têm que partir de restrições planetárias de estado e de movimento, de situações e de transformações e contar com uma base científica adequada para refletir as condições de mudança. Adiante veremos que as estratégias ambientais precisam usar referências territoriais maiores que as da localização dos problemas. A flexibilidade ou a adaptabilidade das políticas ambientais será a referência maior para práticas aparentemente simples especialmente para a educação cujo principal objetivo deverá ser uma mudança de mentalidade.

Uma práxis da política ambiental O ponto de partida da política ambiental é a defasagem entre as combinações de processos prolongados e acontecimentos inesperados e as reações organizadas da sociedade que são graduais e cujos efeitos só se realizam em períodos de tempo mais longos que os dos problemas. Daí, que as políticas para proteção do ambiente requerem continuidade e ajustes contínuos, noutras palavras, precisam de planejamento no melhor sentido desta expressão. As políticas são mobilizações institucionais que tomam formas legais, mas representam combinações efetivas de força capazes de alterar pautas de

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comportamento. Assim, a realidade prática das políticas ambientais depende da sustentação política das instituições encarregadas de sua realização. Desde seu início no final da década de 1960 a polêmica sobre a questão ambiental foi colocada com o duplo significado de representar uma preocupação dos países mais ricos que se transferia como pressão sobre os demais países através de órgãos internacionais e desdobramentos mediante empresas de consultoria e um novo discurso humanista. Países que realizaram e promoveram a maior destruição do ambiente em seu próprio território e no de outros se tornaram portadores do discurso do meio ambiente sem deixarem de exercer suas atividades depredatórias em outras partes do mundo96. A questão energética em geral, o petróleo e a energia nuclear, são alguns dos principais canais dessa contracorrente. Na corrente oficial, o Banco Mundial que antes se guiou por critérios apenas de custos e benefícios, tornou-se a principal referência do atrelamento do financiamento internacional a cláusulas ambientais que resumem o código de ética das políticas ambientais defensivas. A temática do ambiente recebeu legitimação ideológica por parte de setores ligados a movimentos sociais nas universidades, mas seu principal reforço veio dos interesses das empresas no mercado representado por ações de limpeza, controle e compensação em grande e em pequena escala. Desenvolveu-se uma complexa rede de interesses que articula as indústrias, os centros de pesquisa e os prestadores de serviços. A experiência acumulada desde a década de 1970 mostra que se criaram novas formas de desigualdade entre países socialmente mais desenvolvidos e países socialmente mais desiguais no relativo ao tratamento do ambiente no que esse tema já permeou os comportamentos das maiorias e foi absorvido por poderes locais. O tratamento racional do ambiente tornouse parte de regras de convivência civilizacional e é formalmente consensual, mas não passa pelo crivo dos interesses incorporados pelos governos. No relativo a países periféricos mais e menos avançados a questão do ambiente está visceralmente ligada à da pobreza, cuja reprodução coexiste com a expansão dos interesses do capital. Dessa combinação de reprodução de riqueza e reprodução de

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Por exemplo, empresas canadenses passaram a explorar minas contaminantes no Chile escapando da legislação rigorosa de seu país de origem e os japoneses não abrem mão de caçar baleias.

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pobreza surgem movimentos ambivalentes de degradação do ambiente. No Brasil, são os de desmatamento para uso doméstico – que são significativos – e o desmatamento para fins empresariais, desde pecuária a produção canavieira. Paralelamente, o fato de que os empregos criados nessas atividades empresariais são avidamente disputados em ambientes dominados pela escassez de oportunidades de trabalho. Será preciso, portanto, distinguir quais diretrizes de política podem ser representativas nesse quadro desigual, quais são as principais políticas que servem aos grandes capitais e quais outras serão representativas de uma ideologia de defesa do ambiente para o futuro. Logicamente há uma questão ética e outra operacional no relativo a políticas ambientais e a principal trava que se encontra aqui é a distância entre os princípios gerais de política e sua aplicação. A realização de políticas ambientais torna-se um empecilho formal a ser superado por políticas nacionais de infra-estrutura ou a ser contornado por interesses privados. A falta de responsabilização criminal personalizada e de penalidades correspondentes torna as restrições ambientais uma espécie de ritual que é periodicamente atropelado pelo próprio governo97.

As novidades institucionais

começaram com a criação do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUMA) como resultado de deliberações da Primeira Conferência Latino-americana de Meio Ambiente (1971). O movimento que sustentou a conferencia surgiu do Canadá, que exprimia os pontos de vista dos países do bloco ocidental. Foi secundado pelo Relatório Brundland, que seguiu a mesma linha ocidental negociada, esposada como regra pelo Banco Mundial e pelo Banco Inter-americano de Desenvolvimento, mas que não foi referendada pelos Estados Unidos nos subseqüentes eventos no Rio-92 e em Kioto. Os japoneses continuaram a caçar baleias, os canadenses a matarem focas a pauladas e os americanos e chineses continuaram a poluir de modo incontrolado.

Sistemas de poder e ambiente A mola central das transformações das relações da sociedade com a natureza no capitalismo de hoje é a formação de sistemas de poder de escala mundial que

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Dentre os inúmeros exemplos

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representam uma grande variedade de combinações de interesse, mas que operam todas com referências globais de concorrência. O poder mundializado convive com estruturas de poder localmente formadas mediante composições de interesse privado de diversos tipos, que se organizam e penetram na esfera pública, ou que se apropriam dela. O foco das atenções na ascensão do poder das multinacionais leva à simplificação de subestimar das formações de poder de base locais já que são governos locais que disputam investimentos agressivos ao ambiente. A estruturação dos mercados em cada país está atrelada a estratégias internacionais de grandes empresas, que se organizam de modo escalonado desde o controle da produção mineral ou da agropecuária e por meio de movimentos de valorização de ativos financeiros, até as indústrias de alta tecnologia. O tecido das inter-relações do grande capital define tendências de investimentos diretos em pesquisas, determinando usos de recursos naturais. O que surge como questão ambiental é a tensão sobre os sistemas de recursos, causada por essas tendências de investimento. A interação entre o poder internacionalizado e as esferas nacionais é a principal característica do mundo do capital avançado, onde o poder das grandes nações continua sendo determinante. O modo como se reconhece a existência de uma questão ambiental reflete uma estruturação real do poder que nunca está completamente exposta no discurso oficial, do mesmo modo como nenhuma das nações que executa políticas sujas não admite que o faz. A ambigüidade do discurso sobre o ambiente não se deve apenas às contradições entre interesses imediatos de empresas e governos, mas há questões mais profundas relativas à capacidade das nações de reproduzirem a riqueza que acumularam. Trata-se da diferença entre condições anteriores, atuais e futuras de formar capital, em que países que tiveram condições favoráveis, próprias ou por colonização, como a Suécia e a Finlândia, ou como a Holanda, a Bélgica e a Espanha, passaram a situações em que seu próprio mercado é insuficiente para reproduzir seu capital e dependem de investimentos em outros países onde seu cuidado com o ambiente é muito menor que em seu território de origem. A tendência a deslocar investimentos em busca de mercado é crucial nesta nova etapa do sistema capitalista em que se afirmam diferenças entre os países europeus. Há características do mundo do poder na atualidade que indicam a necessidade de uma revisão dos seus efeitos no relativo ao ambiente. O atual discurso político do ambiente

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exprime as contradições entre a impossibilidade de prosseguir indefinidamente com a postura de controle da natureza e de uso irrestrito de recursos e a pressão inarredável do sistema do capital para obter sempre mais energéticos. Uma leitura em retrospectiva dos conflitos políticos internacionais desde a Primeira Guerra Mundial, quando o petróleo se tornou a mercadoria energética central do sistema mostra a centralidade da relação entre energia e ambiente. Em conseqüência disso, há sempre um discurso de conciliação, dirigido ao público de classe média98, urbano e de educação média e superior, que sustenta a formação de opinião pública. Esse discurso não se apóia em dados científicos do problema, mas é parte do movimento de formação de um discurso que estabelece prioridades de política e regras de agir. A conquista da classe média pelas campanhas publicitárias torna-se um objetivo estratégico do grande capital para legitimação de suas estratégias de acumulação,

que

vão

desde

a

manipulação de produtos de consumo básico até o convencimento do uso de energia nuclear. O sistema do capitalismo avançado desenvolve uma articulação entre o poder econômico e o político, com componentes formais e informais dos dois lados, mobilizando uso de força militar. Essa mobilização de força se dirige ao interior de cada país e para fora das grandes nações, combinando controle social interno e expansão de poder no exterior. É o que caracterizou a agressividade internacional dos países europeus e a expansão interna dos Estados Unidos e da Argentina. Esse é o movimento geral do imperialismo, que se exerceu controlando a força de trabalho de grupos subalternizados, como são as populações das colônias e os novos grupos de imigrantes. O controle interno foi um movimento prévio necessário para as aventuras internacionais, que na maioria dos casos não tiveram justificativa alguma e foram simples uso de força, inclusive de uns europeus sobre outros, como aconteceu na

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O conceito de classe media está sujeito a inúmeras qualificações, mas usamos aqui como resumo de um certo conjunto de características de condições de vida que se identifica com uma pequena burguesia. Essa ou essas classes médias funcionam como caixa de ressonância das campanhas publicitárias e reproduz as fragilidades dos trabalhadores mais vulneráveis à variabilidade de renda no sistema, É o principal campo de difusão de ideologias alienantes e de religiões sem teologia. Podemos dizer que a classe média é apenas uma linha demarcatória entre representantes do capital e trabalhadores, onde a perpetuação do desemprego e o controle de postos de trabalho por estruturas partidárias tornam a classe média um grupo inseguro e variável.

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expulsão dos portugueses da Índia pelos ingleses e dos boers pelos ingleses na África do Sul. Neste contexto, torna-se necessário ver que o sistema mundial de poder se reorganiza continuamente, sobre as possibilidades e as restrições com que funcionam os protagonistas, públicos e privados, do controle do capital financeiro e dos recursos essenciais. Petróleo, água e energia são as três referências de recursos, cujo acesso envolve riscos econômicos e políticos. As grandes linhas dos conflitos internacionais da segunda metade do século XX seguiram essas pistas dando lugar a uma geopolítica constituída de componentes fixos e móveis que correspondem a combinações desses três elementos, que não são substituíveis. Mas a racionalidade operacional dessa disputa por espaços de poder passou a confrontar-se com comportamentos irracionais quanto a seu sentido de finalidade, mesmo quando suas práticas sejam formalmente racionais, como foram as dos nazistas. O mundo do após guerra foi um ambiente de disputa de espaços de poder pelas nações vitoriosas que formaram blocos multinacionais concentrando poderio militar e econômico, controlando grandes espaços de mercado. A lógica da organização do mercado de trabalho e dos usos de recursos ficou por conta da estratégia dos dois grandes blocos, que sustentou a Guerra Fria. As tendências a formação de oligopólios e as operações de multinacionais transcorreram no interior desses blocos, em que o bloco capitalista levou a vantagem insuperável de internalizar os ganhos de lucratividade no mercado de tecnologia com a expansão do mercado financeiro. A geografia econômica da economia globalizada contém definições de funções em termos de usos de perfis de produção, com países que se especializam em produzir e exportar serviços de alta tecnologia e países que produzem e exportam produtos com baixo componente de tecnologia. É um quadro que se detalha com referência a países que avançam na qualificação de seus recursos humanos e outros que perdem terreno em qualificação. Os deslocamentos nas posições relativas dos países são graduais, mas denotam tendências no cenário mundial, com alguns poucos países que mostram condições de evoluir para melhores posições e muitos outros que permanecem em suas posições atuais ou que regridem.

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Esta geografia econômica define um perfil de impacto do sistema produtivo no ambiente, estabelecendo grandes tendências que situam as escolhas de tempo, localização e tecnologia dos grandes empreendimentos. No final da linha, o processo político torna-se um movimento com conseqüências técnicas e econômicas que se materializam segundo as articulações políticas de projetos econômicos. No entanto, a construção desse novo sistema mundial de poder carrega algumas contradições essenciais, no que ele gera novos conflitos de interesse. Por exemplo, entre usos de terras cultiváveis para cana de açúcar ou para eucaliptos: etanol ou celulose. Nesse contexto, é preciso considerar que o atual modo de expansão do capital é contraditório com o pressuposto de que o capitalismo tende a englobar todas as formas anteriores de organização (MARX, 1967; 1956), já que ele agora se defronta com estruturas ideológicas que não pode assimilar. A racionalidade da formação do capital não articula com o recrudescimento de modos medievais de fanatismo que cumprem as duas funções de proteger comunidades sem capacidade de acompanhar os rumos mundializados da economia e de justificar racismos. Em contexto demarcado por novas tecnologias das comunicações, o sistema mundializado de poder enfrenta nações que se vêm preteridas e grupos estamentais, que com o argumento real ou a desculpa de fundamentalismo exercem poder violento sobre grupos e nações mais fracos. Há uma brecha insuperável entre a adesão formal à modernização e o recurso a estratégias medievais de discriminação. Aparecem misturas de reivindicações objetivas, identificadas com dados de mercado, com pleitos ideológicos, religiosos ou outros. O essencial é que objetivamente não há como supor que o sistema de poder funcione apenas pelas regras da racionalidade instrumental do capital internacionalizado. Nesse sentido diversos aspectos das empresas têm que ser revistos, tais como os de empresas familiares ou em que fatores políticos decidem pelo preenchimento de cargos. Como é notório, as escolhas familiares são habituais em grande parte das empresas privadas latino-americanas, com conseqüências desiguais e muitas vezes representando custos desnecessários e perda de eficiência. Muitas empresas desenvolveram sistemas próprios de preparação de seus quadros de dirigentes, de modo a garantir qualidade de sua administração geral, mesmo quando exprimem objetivos de lucro contraditórios com o desempenho da economia nacional em seu conjunto. Mas as escolhas de dirigentes e funcionários por razões políticas tornaram-se

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mais graves porque elas manejam maiores quantidades de recursos e uma avaliação objetiva de suas conseqüências é inevitável. Historicamente, a interação entre o controle de fundos públicos e a reprodução do sistema político torna-se uma referência essencial na definição dos rumos das possíveis transformações das economias nacionais, especialmente no Brasil, onde a taxa de investimento e a composição da demanda depende do perfil da despesa pública.

Estratégia ambiental A noção de estratégia é de uma ação abrangente que trabalha com um cenário e um horizonte de tempo definidos, com uma avaliação de força em termos de capacidade institucional e de produção e de tempo para agir, portanto, considerando objetivos possíveis. Uma visão estratégica da questão ambiental significa que o Estado assume a responsabilidade social pelo ambiente e elabora e executa políticas que educam, controlam e penalizam, atingindo igualmente interesses nacionais e internacionais. Para estabelecer uma estratégia será preciso partir de uma avaliação do sistema atual e de tendências com o máximo realismo. Significa reverter a visão habitual de que a questão ambiental é um problema técnico e de gestão, em que os atingidos são os responsáveis e responsabilizar os causadores das perdas ambientais. Não há como formular uma estratégia ambiental significativa sem um diagnóstico político do problema. A noção de estratégia ambiental surge para superar as habituais políticas defensivas que se propõem a reduzir os efeitos negativos de empreendimentos ou a bloquear o acesso a áreas que são reconhecidas como mais sensíveis. É essencial desenvolver uma capacidade de antecipar problemas e de avaliar com antecedência os resultados das próprias ações de política. A estratégia constará de três partes que são as seguintes: (a) Um diagnóstico de tendências vigentes focalizando em tendências principais e identificando tendências subordinadas positivas e negativas, a ser realizado na forma de análises de sensibilidade; (b) uma avaliação de alternativas de política, comparando efeitos diretos e indiretos, positivos e negativos, trabalhando com um conjunto de projeções com confiabilidade avaliada. Considerando que os sistemas operam com custos crescentes decorrentes de escassez crescente de

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recursos, as estratégias ambientais têm que pressupor que os sistemas de produção sejam progressivamente mais eficientes; e (c) definição de uma linha de ação progressiva a realizar-se em um

horizonte de tempo compatível com a

confiabilidade das informações. Compreende ações diretas e ações indiretas especialmente nos planos educativo e institucional. A noção de estratégia pressupõe uma visão de conjunto do campo temático que se reconhece como de meio ambiente e dos horizontes de tempo com que se trabalha. Avaliações constantes dos problemas e das ações permitirão ajustar os horizontes de tempo, mas esse gradualismo apenas sinaliza rumos a seguir ou ajuda a substituir políticas inoperantes. O objetivo estratégico de alcançar maior eficácia na política ambiental exige que o tema seja tratado com a necessária visão de conjunto e com um crescente protagonismo dos diversos grupos sociais envolvidos. A estratégia é o ponto mais fraco das políticas ambientais porque revela a distancia entre o discurso e a decisão efetiva de intervenção e o fato inquestionável mas não reconhecido que a prioridade do ambiente está subordinada aos grandes interesses. Em condições de baixo crescimento econômico ou quando predominam políticas defensivas do sistema do grande capital, tais como as receitas do Fundo Monetário Internacional e da União Européia, a prioridade do ambiente se reduz àquelas situações em que os ganhos com o controle do ambiente se tornam úteis para proteger o sistema de alta tecnologia do grande capital. O exemplo mais conclusivo desta observação é a volta à prioridade da produção de energia nuclear por países lideres da economia mundial

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, quando seus riscos irreversíveis são plenamente

conhecidos. Percebe-se que há duas questões em pauta que são (a) restrições essenciais da reprodução das economias nacionais que não dispõem de fontes alternativas para substituir a nuclear e (b) outros meios de produção de energia que podem ser mobilizados. Esse tipo de decisões tem estado subordinado a escolhas definidas sobre o horizonte de tempo dos investimentos, em que se raciocina em termos de rentabilidade de projetos específicos, portanto, em que não se valorizam os

99

Ao escrever estas linhas, em 2013, registra-se que a China tem 17 usinas nucleares em operação , 28 em construção, a Russia tem 33 em operação e 10 em construção, a França tem 58 em operação e 1 uma construção, os Estados Unidos têm 100 em operação e 3 em construção, a India em 20m em operação e 7 em construção. O Brasil tem 2 usinas em operação e 1 em construção.

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efeitos combinados das opções de hoje sobre as condições futuras de opção. No entanto esse é o verdadeiro significado de estratégia ambiental, que só pode ser plenamente pensado como razão de Estado. O pensamento acerca de sobrevivência do sistema social implica, inevitavelmente, em opções de sacrifíio que não são compatíveis com o planejamento de empresas voltado a sua preservação.

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