Fundamaentos da economia urbana

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FUNDAMENTOS DA

ECONOMIA URBANA

FERNANDO PEDRテグ

1999


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Índice

Introdução 1.

O desafio das cidades 1.1. A nova urbanização negativa; 1.2. Desafios da análise urbana

2.

Urbanização e mercado urbano 2.1. A industrialização das cidades; 2.2. Incorporação de trabalho nas cidades; 2.3. As manifestações físicas da urbanização; 2.4. Os processos condutores da urbanização; 2.5. A formação do mercado urbano.

3.

Patrimônio urbano e capital imobiliário 3.1. As formas do capital imobiliário; 3.2. As condições práticas do uso do capital imobiliário; 3.3. A composição do capital urbano; 3.4. A esfera estatal e a social; 3.5. O capital urbano público e privado.

4.

Esfera doméstica, mercado e formação de capital 4.1. Aspectos básicos da reprodução social urbana; 4.2. Necessidades e subsistência; 4.3. A produção urbana; 4.4. A formação do patrimônio familiar; 4.5. A formação de capital familiar; 4.6. Os micro- ambiente urbanos.

5.

A economia do funcionamento das cidades 5.1. A capacidade instalada nas cidades; 5.2. Os custos da urbanização; 5.3. Os agentes da urbanização; 5.4. A renda imobiliária urbana; 5.5. O tamanho das cidades; 5.6. Os macro-ambiente urbanos

6.

Sistemas de infra-estrutura e de utilidade pública 6.1. As cidades como sistemas e os sistemas de cidades; 6.2. Custos, preços, renda dos usuários; 6.3. O balanço urbano de serviços e os sistemas em cada cidade; 6.4. Infra-estrutura e espaço urbano.

7.

A capacidade de produção localizada nas cidades 7.1. Produção doméstica e de mercado; 7.2. As combinações de atividades produtivas; 7.3. Indústrias urbanas; 7.4. A produção não material; 7.5. Os efeitos produtivos do lazer.


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8.

O mercado urbano de trabalho 8.1. Emprego e ocupação regulada e não regulada; 8.2. Os componentes estáveis e instáveis da ocupação; 8.3. O trabalho sem remuneração direta; 8.4. A estruturação sub-urbana da demanda; 8.5. Os efeitos em cadeia da demanda urbana.

9.

Ambiente físico e social urbano 9.1. Significado do ambiente urbano; 9.2. Uso de energia e produção de resíduos; 9.3. O ambiente social urbano; 9.4. A economia urbana do ambiente.

10.

Urbanização e sistemas de cidades 10.1. Dimensões moderna e pós moderna da urbanização; 10.2. Imersão e emersão dos efeitos da urbanização; 10.3. Conotações ambientais da urbanização; 10.4. A formação de sistemas de cidades.

11.

A acumulação urbana 11.1. Continuidade ou reversão da formação de capital;; 11.2. A concentração de recursos humanos; 11.3. A acumulação de custos ambientais; 11.4. Os impulsos de urbanização. Referências bibliográficas


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1.

O desafio das cidades

1.1.

A nova urbanização negativa

A produção de cidades sempre foi a principal marca da civilização, mas as questões sociais relativas à vida urbana tornaram-se decisivas para as sociedades de hoje, porque combinam os elementos da industrialização e do conforto, com os elementos da exclusão social, do desemprego e do desperdício. As cidades tornaram-se os lugares da maior desigualdade de renda, com as maiores concentrações de pobreza, exclusão, assim como de contravenção, violência e de formas espúrias de poder. As grandes cidades são, além disso, os grandes centros de consumo, cujas demandas subordinam o perfil da economia das regiões e do país em seu conjunto. Finalmente, são os lugares de maior concentração de resíduos de toda ordem, onde se apresentam problemas de degradação ambiental, cujo controle representa custos muito acima das possibilidades de todas as sociedades que não estão entre as mais ricas do planeta. Nas condições atuais, os problemas urbanos parecem ser insuperáveis nos horizontes de tempo com que se pode trabalhar. Além disso, os problemas das cidades grandes e pequenas são qualitativamente diferentes, desqualificando aquela análise urbana convencional, que sempre pressupôs continuidade entre as cidades constitutivas do sistema de cidades de cada país, assim como, sempre pressupôs a presença de um Estado capaz de realizar políticas capazes de comandar a urbanização. Tal como na Grécia Clássica e como no final da Idade Média, as cidades revelam-se portadoras de uma complexidade e de uma identidade, que não podem ser reduzidas às escalas do poder nacionalmente organizado. O Brasil é um exemplo extremo dos problemas urbanos da atualidade, com situações aparentemente irreversíveis em pelo menos quatro tipos de cidades: em suas duas maiores concentrações metropolitanas, em São Paulo e no Rio de Janeiro, na maior parte de suas metrópoles regionais, em muitas de suas cidades de médio porte e em inúmeras cidades pequenas, que se tornam concentrações urbanas residuais, enviando contingentes migratórios para as metrópoles, assim como recebendo desempregados desses grandes centros. Em cidades como em Salvador, Recife e Fortaleza instalaram-se modos de expansão urbana em que convergem os interesses das alianças entre os blocos de poder político e os interesses do grande capital, determinando estilos de concentração e de verticalização, que contrastam totalmente com os modos de expansão conduzidos pela concentração de grupos de baixa renda e de excluídos em geral. No conjunto, há um quadro de irreversibilidade dos problemas concentrados nas cidades, que também se diferencia entre os que caracterizam as metrópoles, as cidades de médio e grande


5 porte e a variedade de pequenas cidades, desde as decadentes e estagnadas até aquelas que crescem rapidamente. Nas últimas três décadas, tem havido maior pressão sobre as cidades, principalmente sobre as grandes cidades dos países periféricos, por um conjunto de causas, que vão desde a fragilização das economias periféricas ao aprofundamento da concentração internacional da renda, à destruição do emprego formal e às políticas de estabilização internacionais. Verifica-se que o perfil internacional da pobreza se mantém e agrava, 4 comprovando o fim de um período de um período marcado por um discurso oficial de desenvolvimento econômico. 5 Nas cidades tem havido profundas mudanças, que envolvem um alargamento das distâncias entre os que podem e os que não podem pagar pelos serviços urbanos, por sua vez agravada pela elevação dos custos desses serviços. Coincidem o desgaste financeiro do Estado e o efeito generalizado do desemprego. A inviabilidade das cidades na década de 1990 tem um significado muito diferente do de vinte anos antes, tornando-se agora mais claro que não são problemas que variam de intensidade sobre uma mesma composição, senão que há mudanças profundas no tecido social, na base econômica e no equipamento físico das cidades. Uma peculiaridade desta etapa da urbanização é que a atualização tecnológica das cidades tem resultado em alargamento da distância entre os grupos de renda dos moradores, dando lugar a maior diversidade de problemas específicos de justiça social ( Harvey, 1972), criando expectativas para maior número de pessoas. Daí, o governo das cidades é muito mais que gestão: envolve a tomada de posição em relação com processos que ampliam ou reduzem as diversas diferenças entre os diversos grupos de participantes da cidade. Esses processos fizeram com que as cidades se segmentassem, resultando, primeiro, numa fratura principal entre a cidade dos que têm acesso ao capital e aos serviços urbanos e os que não têm (Milton Santos, 1985); e a seguir em diversas fraturas colaterais de preconceito, principalmente etno-culturais, assentadas no passado escravista e de discriminação dos indígenas e certas minorias. No Brasil esse componente de preconceito tem-se revelado extremamente forte, capaz de reproduzir-se ao longo da renovação tecnológica (Sá Barreto e Castro, 1999), realimentado por novos elementos ideológicos difundidos pela mídia (Sodré, 1997). Essas tendências se aprofundam e multiplicam, numa pluralidade de espaços de acesso restrito, de diferentes acessos para os diversos grupos de renda, espaços de privilégio e de defesa de interesses, que se tornam mais nitidamente marcados por cultura e linguagem. A urbanização se aperfeiçoa como um 4

Esse perfil está bem descrito no estudo de Deepak Lal e H. Myint, The Political Economy of poverty, equity and growth (1998) 5 O papel objetivo e o fundamento desse discurso do desenvolvimento econômico foi bem exposto por Giovanni Arrighi, em A ilusão do desenvolvimento (1997)


6 mecanismo de diferenciação e de criação de formas de desigualdade, em que a formação de capital urbano assume perfis que influem negativamente na estruturação social. Criam-se sub-cidades antes que bairros integrantes de uma mesma cidade. Formam-se condições diferenciadas de urbanização, que envolvem o capital social básico, as oportunidades de trabalho remunerado e a cultura urbana. A rigor, as grandes cidades tornam-se multiculturais. Assim, a tendência geral à marginalização, identificada na década de 1960 (Quijano, 1967), revela-se como aspecto externo de uma realidade complexa, em que se combinam diversos modos e formas de excluir, de modo parcial ou total e provisório ou permanente, ao tempo em que se afirmam diversas modalidades de poder, localmente organizado ou organizado por grupos de renda e condições de acesso a oportunidades de formar renda. Nessa urbanização desigual, o controle das oportunidades de renda, em princípio representadas pelo acesso a emprego torna-se cada vez mais, um fator estratégico dos relacionamentos, capaz de criar ou aprofundar ou de alterar ou de superar preconceitos. A urbanização que se realiza no atual ambiente de retraimento formal do Estado e de destruição dos postos de trabalho nos diversos setores da produção é, acima de tudo, um movimento guiado por novas composições entre os interesses do capital e os da sobrevivência, que resultam na metamorfose de diversos segmentos da sociedade urbana. Constitui-se um universo organizativo paralelo, formado nos espaços de poder deixados pelo Estado e pelas religiões oficiais. Mecanismos locais de poder, ligados ao uso da violência, física ou institucional, instalam-se como formas toleradas de poder, cujas práticas contaminam os sistemas oficiais de controle social, especialmente dos grupos de baixa renda, e a participação do mercado de trabalho, funcionando como reservas de poder de organizações ilegítimas, que finalmente estabelecem ligações com as representações oficiais de poder. As tendências gerais do problema são de persistência, portanto, de agravamento das condições de vida nas cidades atingidas por esse tipo de processos. Diante dessa realidade e da necessidade de colocar os fundamentos da análise econômica das cidades, trata-se, primeiro, de rever os elementos básicos da análise econômica das cidades; e em seguida, de articular uma análise urbana voltada para sustentar políticas para cidades específicas e para sistemas de cidades. 1.2.

Desafios da análise urbana

Como analisar as cidades, ou como informar políticas urbanas? A análise urbana precisa estar historicamente fundamentada para poder dirigir-se à realidade social. Deve ser prática, mas precisa de um fundamento conceitual


7 ordenador, que lhe permita desempenhar essa função. O estudo das cidades ocupa um lugar especial no estudo das ciências sociais e da civilização em geral, demandando um esforço para registrar os aspectos gerais e as peculiaridades da urbanização ao longo do tempo e entre as diversas culturas. Neste ensaio, procurase contrastar os aspectos essenciais da urbanização com as peculiaridades do funcionamento das cidades, especialmente nas sociedades sub-industrializadas latino-americanas. Explicar os problemas sociais urbanos, tal como analisar os aspectos econômicos da urbanização, é remar contra a corrente. No campo urbano vêm-se, com clareza, as ligações entre os aspectos econômico, cultural e político, que impõem uma análise transdisciplinar. Mas, o lado econômico da realidade urbana é uma pressão unificadora. cujas contradições revelam a complexidade das cidades e as fraturas entre os espaços e entre os grupos urbanos. A perspectiva econômica ajuda a explicar a ligação entre a reprodução das cidades e a dos seus moradores. Quanto mais complexa a questão urbana, maior a necessidade de compreender como os comportamentos do cotidiano resultam em transformações da organização da cidade, que no fundo são políticas. Inversamente, as políticas, públicas e privadas, de uso de recursos refletem determinadas compreensões de como os interesses estão representados nas cidades e como são defendidos. Por isto, é preciso conhecer os instrumentos com que se analisa a urbanização: a linguagem da análise tem que perceber as linguagens das cidades. Daí, que o lado econômico não pode ser plenamente exposto, sem que se reconheçam seus nexos com os planos não econômicos dos relacionamentos que têm lugar nas cidades, no nível das práticas e no das instituições urbanas, com seus efeitos na identificação dos agentes urbanos da produção e do consumo. A urbanização tornou-se o foco das transformações dos sistemas de produção, acompanhando a aceleração da renovação técnica. No essencial, ela é um só movimento, mas assume uma pluralidade de formas, entre cidades grandes e pequenas, ricas e pobres, bem como entre cidades mais e menos integradas em sistemas regionais e em sistemas de cidades. Há uma simetria entre os resultados formais da urbanização - a formação de cidades - e o modo como elas funcionam, articuladas em circuitos locais ou integradas em circuitos internacionais de atividades. No essencial, ela se exprime numa relação entre o número de pessoas assentadas numa cidade e o espaço que ocupam; e entre o número de pessoas e o potencial de trabalho que elas representam e sobre o qual têm controle. Um grande número de pessoas com um pequeno potencial de produção e de comando de produção, é sinônimo de pobreza. Um pequeno número de pessoas comandando uma grande produção, indica riqueza.


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Os aspectos qualitativos do processo urbano abrangem, desde as peculiaridades desse povoamento até a composição demográfica e a qualificação profissional. O contraste com o meio rural se aprofunda, desde a formação de dinamismo próprio de cada cidade, até o aprofundamento das diferenciações que têm lugar no contexto de cada cidade. Mas a compreensão das cidades como sedes de processos que modificam os espaços onde se realizam, coloca a ver cada uma delas como portadora de elementos diferenciadores, para dentro e para fora do perímetro urbano, como integrantes de uma hierarquia entre cidades e entre bairros de cada cidade. Na análise urbana, os processos sociais têm que ser datados e localizados, postos em perspectiva do espaço-tempo real dos acontecimentos que perfazem a experiência de cada cidade; e em sua relação com as demais. Entende-se que há processos próprios de cada cidade, que se projetam no movimento geral de urbanização, confirmando ou modificando as posições de cada uma delas no sistema de cidades. Assim, os movimentos que criam e transformam cidades têm efeitos, que se estendem além de qualquer cidade em particular; e interessam à sociedade em seu conjunto. Na urbanização convergem o esforço de acumulação de capital e as pressões sociais do consumo, com a concentração de trabalho qualificado e com a inclusão e a exclusão seletiva de pessoas e de grupos da produção e do consumo. Por isto, as tensões sociais se concentram nas cidades, onde o trabalho alcança seus resultados desejados ou é frustrado; e onde esses resultados retroagem na produção, ou tomam a forma de um patrimônio que não afeta a produção. A urbanização sempre levou a transformações na organização social e nos usos de técnicas. Mas elas tornaram-se mais abrangentes e menos reversíveis, desde a revolução industrial, quando ela atingiu, com mais força, a reorganização das sociedades nacionais, impulsionando a transformação da sociedade rural, fazendo de cada cidade o centro de convergências e conflitos diferentes daqueles das sociedades pré-industriais. As cidades estão hoje mais próximas umas das outras. A intensificação das comunicações modifica as relações entre as de maior e as de menor porte, bem como entre as fisicamente mais próximas e as mais distantes e como elas refletem a aceleração da produção e a diversificação do consumo, nelas a noção de espaço está mais claramente ligada à de tempo. Assim, o estudo da urbanização ajuda a ver, no campo social, algumas questões fundamentais da teoria contemporânea de ciência. A noção de espaçotempo, trazida pela teoria da relatividade, é fundamental na compreensão das experiências sociais com sua materialidade, para que se perceba a dimensão psicológica dos problemas de sobrevivência e de criação de poder em cada sociedade. É necessária, ainda, para compreender como interagem eventos


9 simultâneos de diferente duração, cujos efeitos têm duração desigual. A compreensão da dinâmica das cidades é a da transformação de espaços desigualmente consolidados, que também se alteram com diferentes intensidades. Isso tem profundas implicações na prática da análise urbana e em sua fundamentação teórica. Os temas urbanos não estão subordinados a disciplina alguma: escapam da departamentalização positivista que atingiu as disciplinas temáticas, como a economia, a sociologia etc. A necessidade de tratar com o conjunto do que acontece em determinados espaços, leva a focalizar nos processos que conduzem as transformações desses espaços, antes que a isolar uns dos outros os aspectos do urbano. A gênese das cidades é um processo que se modifica ao longo do tempo; e conduz os vestígios de experiências anteriores, incorporadas em sua forma física , no significado dos seus espaços e dos seus equipamentos. Para captar o significado atual do espaço urbano é preciso compreender essa sedimentação e a duração das experiências que são vertidas em cada cidade. No longo prazo secular das grandes cidades, forma-se um substrato cultural, que transcende o horizonte das formas atuais de produção e de consumo; e que dá lugar a formas especiais de convivência, entre elementos aportados como parte de diversas experiências anteriores. É o que faz a grande diferença entre metrópoles como Paris, Londres, Roma, Mexico e como Nova York, São Paulo, Buenos Aires. Daí, a necessidade de um conceito de espaço interdependente do de tempo. A urbanização significa a expansão de cada cidade, simultaneamente, na criação de outras cidades e na de espaços meta urbanos que são as regiões. A interação entre a criação de cidades e a de regiões leva a analisar a urbanização mediante a transformação de cidades e a criação de cidades novas, portanto, com elementos de raciocínio válidos nesses dois planos; e a toma-la como referência da modernização e da distribuição da renda. Hoje, é preciso registrar as transformações da urbanização, segundo as condições históricas em que ela se realiza. São indiscutíveis as diferenças entre o movimento de urbanização em cidades antigas continuamente ocupadas, tais como Paris, Sevilha e Mexico, cidades antigas descontinuamente ocupadas, tais como Roma e Jerusalém e cidades novas, tais como São Paulo e Buenos Aires. Entretanto, são diferenças que nem sempre estão claras, dadas as causas que determinaram a continuidade ou descontinuidade da ocupação. As mudanças experimentadas pelas principais cidades da periferia da acumulação mundial de capital nos últimos decênios, traduziram-se numa ampliação dos espaços urbanos que se renovam com mais rapidez, bem como levaram ao aparecimento de novos espaços, com novas funções e com maiores vínculos com outros espaços não contíguos. Com a mesma velocidade produzem espaços degradados, a que são destinados os socialmente excluídos. Daí, que para chegar a resultados pertinentes


10 sobre os problemas de hoje, é preciso revisar as bases conceituais com quais se organiza a análise econômica urbana. Tal exigência, portanto, está ligada às condições reais da urbanização. O crescimento econômico tem modificado ou agravado as condições de desigualdade de renda, de acesso a renda e a consumo. Põe as cidades diante de realidades que exigem políticas sociais compensatórias; e em todo caso, que enfrentam as responsabilidades criadas pela desigualdade. Os poucos casos de cidades bem sucedidas - as cidades de vitrine do capitalismo periférico 6 - são aquelas onde a pressão da urbanização é moderada, onde entram relativamente poucos migrantes, ou onde por qualquer outra razão, a desigualdade é relativamente menor. Não há solução prática imediata para as cidades das sociedades mais desiguais, simplesmente porque elas são os pontos de máxima convergência das tensões dessas sociedades. Não se trata, pois, de uma preocupação genérica com a urbanização, mas de um aspecto da desigualdade da renda das sociedades periféricas. É preciso distinguir entre a urbanização que acontece nas grandes e nas pequenas cidades, bem como entre a urbanização dos países genuinamente ricos e a dos desigualmente industrializados. Há um problema com as cidades que crescem mais depressa que o produto social de um país ou de uma região, que por isto concentram as problemas de emprego, assim como há outro problema com cidades que crescem levadas pela expansão da pobreza, com um aumento da tensão entre ricos e pobres; e com as tensões consequentes da impossibilidade de garantir o consumo existencial de grande parte da população, que entretanto pressiona nas cidades mediante mecanismos não econômicos de poder. Por isso, a análise econômica da urbanização tem que interpretar os fenômenos urbanos das sociedades desigualmente industrializadas como a brasileira, onde interagem a permanência de aspectos de estruturação social anteriores à industrialização, com a renovação da atividade mercantil. Por isto, tem que entrar no mérito de questões nitidamente de distribuição da renda, como aquelas que ligam o crescimento das cidades à participação de sua população nos diferentes circuitos de produção e de consumo de cada cidade. Isso leva a reconstruir, conceitualmente, o objeto social da análise, isto é, a cidade. A análise urbana refere-se a objetos históricos concretos, que são as cidades, onde tem lugar uma formação de classes em conjunto com uma apropriação de território e uma criação de espaço, e com a constituição de uma cultura. E as cidades, por definição, se transformam. Seu crescimento faz-se a

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As cidades vitrine, como Brasília e Curitiba, dependem de definições territoriais arbitrárias, que lhes permitem, formalmente isolar problemas que de fato se impõem com o transcurso do tempo, na forma das pressões consequentes da desigualdade de renda.


11 expensas de alterações no quadro do que permanece e do que muda, que se reproduz e do que desaparece. A defasagem entre o crescimento das cidades e a inclusão de seus moradores em coletivos estáveis é proporcional à diferença entre as transformações desse consumo coletivo e os custos dos serviços que os viabilizam. O acesso a transporte em cidades sem serviços de utilidade pública de transporte fica restrita a movimentos a pé a veículos individuais; e a entrada de serviços de utilidade pública modifica o próprio significado da acessibilidade urbana. A desigualdade de renda e patrimônio nas cidades interage com diferenças culturais que não se explicam plenamente no plano econômico, mas que são alimentadas por diferenças de acesso ao mercado de trabalho e ao de produtos, tal como se vê nas grandes metrópoles dos países mais industrializados, onde os aspectos éticos e étnicos têm claro rebatimento econômico. No entanto, as diferenças urbanas no mercado de trabalho correspondem a diferentes momentos da urbanização, reunindo-se as diferenças tradicionalmente resultantes da entrada de migrantes pobres do interior, com as consequentes da convivência de grupos dominantes e dominados, privilegiados e despossuidos. A desigualdade social reflete-se nos padrões físicos da urbanização, na segmentação do mercado de trabalho e na discriminação de moradias, que dão lugar a cidades internamente divididas, onde há uma formação de bairros e de culturas incomunicadas. A ligação os custos sociais da infra-estrutura e os da capacidade direta de produção permite penetrar em problemas relativos aos movimentos de longo prazo da formação das cidades, que entretanto são essenciais em seu cotidiano. Tratar da desigualdade urbana é enfrentar o problema geral de transformação social por um de seus ângulos mais significativos; e chegar a um aspecto essencial da transformação das sociedades.

2. 2.1.

Urbanização e mercado urbano A industrialização das cidades

A urbanização é o movimento que cria e transforma cidades. Traduz-se na construção de cidades novas e na reconstrução, total ou parcial, de cidades já existentes, como um crescimento horizontal das cidades e como sua verticalização. É um movimento contínuo, que compreende reparos, restaurações, construções novas e principalmente a ação pertinaz dos agentes sociais residentes nas cidades, em suas ações coletivas e individuais, regulares e esporádicas. Daí, o conjunto das


12 formas físicas de cada cidade corresponde a modos de viver, que refletem as condições de vida em cada cidade; e levam à organização de relações locais nos espaços sub-urbanos. Fisicamente, as cidades são composições de volumes, dotadas de extensão, altura e profundidade, que correspondem a uma determinada incorporação de trabalho que se apropria de um espaço e que cria espaços com determinadas propriedades. A volumetria das cidades varia segundo as sociedades que as criam, desde as cidades teocráticas e militares da composição palácios-casebres até as cidades de hoje, constituídas como espaços tecnificados de poder. Socialmente, as cidades são estruturações grupos de habitantes com variado grau de permanência, variada formação sócio-cultural, reunidos por combinações de interesse e tradições, identificados por relações públicas em torno de mercado e relações privadas girando em torno de sua esfera doméstica. A volumetria das grandes cidades brasileiras mostra notáveis diferenças entre bairros, na quantidade e qualidade dos espaços construídos por habitante, e na fixação de zonas privilegiadas de equipamento urbano coletivo. Em cidades em que os serviços de utilidade pública estão restritos a uma parte da população, e em que os serviços ofertados são de desigual qualidade, o modo como esses serviços são planejados e instalados é um divisor fundamental de faixas de renda. Esta é a lógica da industrialização das cidades, isto é, da organização dos serviços de utilidade pública na forma de grandes sistemas integrados, explorados em forma eqüivalente a empresas industriais. A industrialização das cidades é a grande divisão entre a forma e o funcionamento das cidades modernas e as anteriores. A modernização das cidades industrializadas tem muito a ver com a predominância de soluções industriais para a oferta de serviços de uso generalizado, entretanto restritos a certos grupos sociais, quase sempre identificados por renda. Prevalecem, portanto, os elementos econômicos de acesso a consumo, que compreendem diversos níveis de consumo, desde o consumo de alimentos básicos e moradia básica, até formas de consumo qualitativamente diferenciadas, tal como de educação e de saúde, até as formas mais seletivas, que combinam o consumo de serviços de alta qualidade com a maior disponibilidade de espaço privado ou privatizado. Entretanto, as experiências de urbanização nem sempre são comparáveis umas com as outras. Assim, para responder às necessidades práticas da análise urbana, é preciso distinguir as formas antigas de urbanização das modernas, especialmente, destacar a urbanização da era da industrialização, ou em outros termos, a urbanização industrializada. Isso leva a distinguir os processos de formação de cidades em diferentes épocas; e as formas das cidades, situando-as em seu significado em cada época. A qualidade da vida em cada cidade está ligada a sua atualidade, ao modo como ela se compara com outras cidades suas


13 contemporâneas. Essa atualidade, portanto, depende dos equipamentos e da qualificação das pessoas para trabalhar e consumir. Além de revelar uma situação cultural, a forma física de cada cidade corresponde a modos de organização da produção e do consumo, refletidos em práticas e instituições, que indicam como cada uma delas se apropria de recursos naturais e humanos; e como, através desse processo, obtém resultados nos planos econômico, cultural e institucional. No plano físico, a urbanização determina funções dos espaços constitutivos de cada cidade e os custos que eles representam para os grupos sociais que os constróem. No plano físico, cada cidade é um conjunto de espaços volumétricos desiguais e interdependentes, que se expandem ou variam de funções, segundo os hábitos da população urbana e as tecnologias usadas. Alguns deles são irreversíveis, enquanto outros podem ter seus usos reorientados, parcial ou totalmente. Paralelamente, alguns espaços urbanos têm um único uso possível, enquanto outros têm diversos usos possíveis, às vezes simultâneos. Essa flexibilidade de usos dos espaços construídos faz com que as cidades se adaptem, mais ou menos, a mudanças tecnológicas, bruscas ou graduais, e ainda, que alguns equipamentos contribuam para alterações nos usos de outros. Por exemplo, as áreas dedicadas aos mercados públicos geralmente podem ter vários usos, enquanto as instalações de vias para trem subterrâneo representam um uso irreversível de espaço. Os problemas de irreversibilidade são geralmente escamoteados do planejamento urbano, que via de regra presume trabalhar sobre horizontes de tempo limitado, isto é, em que a reversibilidade é teoricamente possível. Mas é uma presunção infundada, que terá que ser revista, tal como da reversibilidade de sistemas de produção de energia baseados em energia hidrelétrica. Não há, praticamente, como desativar os grandes sistemas de serviços de água e de saneamento, tanto como é remoto pensar em retirar as grandes concentrações de edifícios do centro das grandes cidades. No plano econômico, a urbanização significa a mobilização de recursos humanos e físicos, de modo permanente ou esporádico, com variada intensidade, em processos de trabalho que se caracterizam por uma diminuição do uso direto de recursos físicos tratados pelo homem. A industrialização da urbanização promove a difusão de modos padronizados de produzir e de consumir, resultando em padrões urbanos de comportamento, identificados com grupos de renda, formas de moradia e perfis de uso de serviços. Desse modo, as cidades armam os espaços regionais e tornam estáveis as relações econômicas. Elas são as grandes usuárias de recursos naturais, bem como subordinam atividades que são realizadas em outros lugares. Assim como, cada


14 cidade grande usa água de uma área muito maior que a ocupada por ela, como também compromete recursos de uma área maior, para resolver seus problemas de drenagem e para garantir a alimentação de sua população. Cada cidade está sustentada por uma rede de serviços que atinge zonas rurais e condiciona outras cidades. As relações de subordinação entre cidades são parte da organização espacial das sociedades, cujo conhecimento obriga a tratar com outras referências, tais como as de região, país, comunidade internacional. Por todas essas razões, as cidades são, também, os lugares de intensa concentração de trabalho, isto é, são os pontos onde há mais trabalho comprometido com a reprodução de um conjunto social de maior escala que a perceptível desde qualquer das posições que os trabalhadores eventualmente ocupam. Assim, nas cidades há uma produção social de valor, que está identificada com a preservação dos equipamentos reunidos e com a sustentação da população, com sua capacidade de trabalho e com expressão cultural. Daí, que a análise da urbanização que pretende informar políticas, precisa saber quanto e como este valor se mantém e pode ser usado no mesmo lugar e em outros lugares; e como ele pode ser preservado ou pode perder-se. Noutras palavras, o desafio para a análise econômica é ligar o movimento geral de acumulação urbana com eventuais movimentos de desvalorização, que podem significar a neutralização parcial da acumulação alcançada. 7 A formação urbana de valor traduz-se em vários resultados físicos e na organização da capacidade de produção, onde os resultados físicos podem ter usos diferentes dos iniciais, enquanto a organização social da produção realimenta ou modifica as práticas de produção. Numa perspectiva secular, a incorporação de valor num centro mercantil se materializa em elementos que, adiante, são úteis para a industrialização. Mas compreende elementos culturais que são decodificados de outro modo, com outro significado que não o original, tal como sucede, por exemplo, com a música barroca na atual sociedade industrial. A industrialização modificou as formas de incorporação e de manutenção de valor nas cidades, identificando-a com a duração dos equipamentos e com a ligação entre a duração física dos equipamentos e as possibilidades técnicas de usalos. O condicionamento em relação com os equipamentos tem, ainda, a conseqüência indireta de alterar a utilidade do patrimônio e dos equipamentos pré-industriais, que recebem novos usos. Aos resultados físicos, econômicos e culturais da atividade urbana em geral denomina-se aqui de acervo urbano. O acervo pode ser contemplado na escala de 7

É um tema que põe pré condições aos estudos de história urbana. A história das cidades é de formação de valor e de desvalorização; de continuidade e de modificação dos usos dos equipamentos urbanos. O papel dos monumentos abandonados e dos monumentos que são reintegrados à vida das cidades é parte dessa combinação de criação e destruição, que obriga a pensar em diferentes condições de urbanização ao longo da história.


15 uma região ou na de um país, mas pertence a uma cidade, independente de que tenha se formado mediante transferências entre cidades, por migrações, compras ou por pilhagem. Mas o principal conjunto do acervo urbano, que está identificado com a viabilização da vida nas cidades, no modo como ela está organizada, é inseparável da cidade onde ele foi criado, porque o valor do acervo urbano não se concebe por separado de sua capacidade para instrumentalizar a prestação de serviços, o que só pode acontecer no lugar onde ele está implantado. Na urbanização moderna, a crescente pluralidade dos componentes de uma cidade, faz variar a incorporação de trabalho ao acervo urbano, segundo as formas como ele já está estruturado e o modo como ele se organiza, sejam elas semelhantes ou não àquelas que deram origem ao acervo. Isto quer dizer que a formação de uma cidade depende do ajuste entre as transformações do equipamento urbano e as da qualificação dos trabalhadores. Como cada cidade precisa de um número mínimo de trabalhadores qualificados, em proporção ao número de ocupações especializadas que utiliza para reproduzir-se, na prática, para que uma cidade cresça mais que as outras, ou para que se torne mais eficiente que outras no uso de recursos, tem que contar com mecanismos sociais de preparação, geral e específica, das pessoas para trabalhar; ou atrair pessoas já formadas de outros centros. Há, portanto, uma especificidade e uma multiplicidade de formas de qualificação , que diferencia os diversos conjuntos de trabalhadores em cada cidade, assim como, identificam a trajetória de qualificação dos integrantes da força de trabalho incorporada em cada cidade. Não somente são grupos de trabalhadores com habilidades específicas, como são elencos de funções a serem preenchidas por estes ou outros trabalhadores. A especificidade do acervo urbano é uma limitação à aplicação do conceito de trabalho abstrato no meio urbano, já que ele supõe uma equivalência entre os trabalhos socialmente úteis, isto é, aquelas formas de trabalho necessárias à reprodução social. 8 A noção de acervo urbano situa-se como anterior à distinção entre patrimônio e capital, ou seja, engloba toda a materialidade do trabalho realizado, independentemente de que ele contribua ou não para a reconstituição das forças produtivas. Isso leva a situar o acervo de cada cidade no espaço-tempo dos processos de produção; assim como leva a datar e localizar o trabalho em relação com as possibilidades de que ele seja aproveitado. Daí, a necessidade de distinguir as diversas formas de cidade. A urbanização identificada com a industrialização mostra significativas diferenças de intensidade ao longo do tempo e em diferentes lugares. Algumas cidades crescem, 8

O conceito de trabalho abstrato colocado por Hegel (Fenomenologia do espírito) e desenvolvido por Marx ( O capital) refere-se à eqüivalência em termos genéricos de trabalho dos diversos trabalhos específicos concretos realizados numa sociedade.


16 continuamente, durante longos períodos, enquanto outras exibem movimentos irregulares de crescimento. Há diferenças decisivas entre a urbanização promovida pelos sistemas mercantís e agrícolas; e entre eles e os sistemas industriais, no relativo à rapidez do crescimento das cidades e a sua continuidade. A urbanização da industrialização é mais intensa que a de qualquer outra época; e cria maior variedade de formas de organização física das cidades. Por isto, ela se faz com maior variedade de formas de desigualdade e gera mais problemas de renovação do acervo urbano. Mas a renovação do acervo, sua adaptação a novas formas de uso, dão à urbanização um caráter transitório, porque seus componentes - equipamentos e ordenamento de espaços - não podem ser construídos ou interpretados com a mesma perspectiva de duração dos equipamentos das cidades pré-industriais. Assim, a aceleração da urbanização corresponde a mudanças desiguais na forma física das cidades, em que se combinam as durações dos equipamentos, com diversas opções de uso que lhes correspondem. Por isso, as cidades modernas são conjuntos cambiantes, constituídos de componentes que mudam com diferentes velocidades, sendo que alguns deles ficam imobilizados em sua forma atual e se tornam referências ou obstáculos ao movimento dos demais. Isso em princípio se aplica aos chamados centros históricos das cidades – que combinam equipamentos de variável qualidade estética – e a certos equipamentos dotados de grande valor simbólico, como a Torre Eiffel, a Central do Brasil, a Torre Latinoamericana da Cidade do Mexico. Isto faz com que os movimentos de incorporação e de desincorporação de trabalho nas cidades se realize de modo desigual, segundo a forma do povoamento, os modos de organização da produção e do consumo e o engajamento dos diversos grupos na produção e no consumo. Em seus aspectos positivos, significa que os novos equipamentos são aproveitados de modo socialmente desigual, tal como acontece com as áreas de lazer e os centros de arte e mesmo com os transportes coletivos. Em seus aspectos negativos, corresponde à frustração de uma parte do trabalho realizado - na forma de investimentos inconclusos e abandonados - e à decomposição e perda do acervo acumulado, também como se vê em sistemas de trens urbanos iniciados e não terminados. A partir daí, destacam-se as inter-relações entre os movimentos de renovação tecnológica e as pressões sociais; e entre os movimentos de atração e de repulsão de pessoas a cada cidade. Enquanto a tecnologia dos transportes favorece as migrações nas grandes cidades, a tecnologia das comunicações viabiliza a moradia fora delas, sem perda das vantagens oferecidas por elas. As combinações de fatores de concentração e de desconcentração sucedem-se sem uma ordem rígida, mas mostrando margens variáveis de independência das pessoas, à medida que sua renda aumenta.


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A análise da experiência das cidades industrializadas, no relativo à relação tecnologia-povoamento, sugere que não é viável um controle autoritário imediato do crescimento demográfico das cidades, assim como indica a necessidade de reconhecer os efeitos datados e localizados do contingente populacional específico de cada cidade, aí incluído o modo como ele processa os aspectos tecnológico e ideológico da modernização. Noutras palavras, as pressões inerciais do crescimento demográfico das grandes cidades são decisivas, mesmo em cidades cujo crescimento demográfico se atenua, como nos da Cidade do Mexico e de Buenos Aires. A observação da experiência de grandes cidades mundiais vai toda nessa mesma direção. A posição de cidades mundiais depende do exercício de funções de cidades de influência mundial (Sassen, 1997). Todas elas estão sujeitas a pressões migratórias variadas, bem como à formação de contingentes de subempregados e de população em pobreza crítica. Ao mesmo tempo, estão sujeitas a problemas crônicos de desperdício, que afetam os resultados sociais do manejo de seu equipamento. 9 Também estão sujeitas aos efeitos de discriminação social, que faz com que os movimentos de valorização e de desvalorização do equipamento pouco tenham a ver com seu atual estado de conservação. Exceto por alguns poucos casos de grandes cidades com sistemas de produção estagnados por muito tempo, o crescimento demográfico das cidades de grande porte responde a estímulos que não podem ser reduzidos à perspectiva do emprego formal, mas que correspondem a um sentido mais amplo de ocupação, inclusive pelas perspectivas de ascensão social ligadas a cada tipo de ocupação. Há diversas outras razões que levam as pessoas às grandes cidades, tais como a transferência a meios culturais maiores e o acesso a informação, cujos efeitos finais no dinamismo urbano são equivalentes ao ingresso daqueles que chegam por razões mais imediatas de sobrevivência. Hoje, a urbanização está acompanhada de uma concentração mais que proporcional de capital nos sistemas de prestação de serviços básicos, como os de água potável e drenagem, saneamento, coleta e tratamento de lixo, transporte. E esta concentração revela perfis específicos de desigualdade no modo como os diversos integrantes da cidade têm acesso ao conjunto do que ela pode oferecer. Isto tem conseqüências nos custos dos serviços públicos com que a cidade funciona e nas condições de acesso a eles por parte da população. Indiretamente, indica as condições de cidadania conseqüentes da distribuição social destes serviços. 9

A análise do desperdício transcende os horizontes da análise urbana, constituindo um aspecto essencial do funcionamento da sociedade econômica industrial, tal como antecipou Paul Baran (1956). Aqui, entretanto, tem um lugar especial, pela concentração de desperdício de todo tipo nas cidades, especialmente nas metrópoles. Entende-se que o desperdício aparece por causas técnicas, ligadas ao uso inadequado de recursos; e por causas sociais, quando resulta de comportamentos socialmente contraditórios, por privilégio ou por ignorância, tal como nos casos de usos de água e de energia.


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Em seus aspectos práticos, a cidadania implica em modalidades específicas de participação no que há disponível na cidade, seja na forma de acesso aos mercados de trabalho, no acesso às formas de consumo, ou na de participação nos diversos canais de mobilidade social que são parte da cidade. Tal participação, obviamente, é desigual, resultando em diferentes margens de exclusão e segregação das formas de consumo. Mas a discriminação e a segregação de cada cidade não se revelam cabalmente nas diferenças de preços dos serviços urbanos, nem as diferenças de condições de trabalho estão plenamente refletidas nos diferenciais de salário. Em geral, essa diferenciação de condições de vida se amplia e aprofunda, ligada àquelas diferenças no acesso à renovação tecnológica. Daí, ser necessário distinguir como os movimentos de tecnologia chegam aos sistemas de infra-estrutura, como refletem diferenças na composição do capital; e principalmente, como se traduzem em diferenças entre a produção realizada para consumo dos grupos de baixa renda e a realizada para participar do mercado internacional. Assim, há dois tipos de análise a considerar: o que se organiza a partir da combinação dos sistemas de infra-estrutura com a capacidade direta de produção; e o que distingue o circuito de produção e consumo o de bens salário e o circuito de produção para os grupos superiores de renda, ou para o mercado mundial. A combinação destas duas linhas de análise mostra o funcionamento da cidade como conjunto social e espacialmente determinado. A combinação de infra-estrutura com capacidade direta de produção. A cidade contemporânea está articulada por sistemas integrados de infra-estrutura de água, transportes e energia, que mediam a relação moradia/trabalho e a relação moradia/lazer, determinando as condições em que se realizam a produção e o consumo. Estes sistemas tendem a formar redes associadas, ou a apresentar-se com padrões semelhantes de traçado, determinando diferenças entre vias que interessam ao funcionamento da cidade em seu conjunto; e vias de interesse local, cujas condições de tráfego afetam apenas a uma vizinhança ou a um bairro. Mudam as condições de oferta dos serviços de infra-estrutura e muda as ruas, cuja qualidade, como vias de acesso e como locais de convivência, são alterados pelo tipo de tráfego que passa por elas. Por isso, as cidades têm determinados horizontes de abrangência dos seus sistemas de infra-estrutura e determinadas condições de acessibilidade entre seus espaços. Há sub-espaços urbanos - chamem-se bairros ou regiões urbanas - que dispõem de densas malhas de prestação de serviços; e outros com malhas tênues ou dispersas, ou que não dispõem de serviços. Há partes de cidades que têm elevados índices de acessibilidade para suas diversas partes e outras onde a acessibilidade está restrita em algumas direções. Isto faz com que cada cidade tenha um padrão de comportamento próprio no relativo ao manejo dos sistemas


19 de infra-estrutura, compreendendo quantidades de recursos e modos de uso desses recursos. Hoje, é preciso reconhecer essas fontes inevitáveis de despesa pública; e a proporcionalidade entre esses sistemas e a continuidade da urbanização, no que ela se traduz em construção de moradia, em localização de fontes de trabalho e de modos de lazer. Trata-se de identificar os padrões de funcionamento de cada sistema de infra-estrutura urbana, com seu regime de custos e cruzar os custos destes sistemas com os custos operacionais das cidades. Produção e consumo de bens-salário e para os grupos de alta renda. Um dos aspectos mais criativos da teoria de Ricardo é a distinção entre a parte do mercado constituída das compras e vendas efetuadas pelos grupos de baixa renda, representados por trabalhadores; e a parte constituída de compras e vendas realizadas por grupos de altas rendas, onde estão capitalistas e proprietários. Isso se explica porque a falta de mobilidade das rendas dos trabalhadores, a vantagem das rendas dos proprietários e a mobilidade das rendas dos capitalistas, fazem com que a composição da demanda dos trabalhadores fique restrita a um pequeno número de bens tecnologicamente quase invariantes, portanto, onde o capital só tem ganhos por controle oligopólico, portanto, onde há poucos incentivos para a entrada de novos capitais que não concorram nesse nível oligopólico. Paralelamente, os capitalistas e os proprietários compram em outro segmento de mercado, onde é rentável a participação de capitais não oligopólicos. A diversificação do mercado se concentra nessa segunda parte, em que a produção e o consumo de bens-salário fica constituída de listas pouco variadas de items. Esse mecanismo da distribuição se reflete na organização das cidades, em progressiva diferenciação entre os bairros ocupados pelos grupos de alta e de baixa renda; e como modos diferenciados de articulação entre uns e outros. 2.2.

A incorporação de trabalho nas cidades

As cidades formam-se mediante uma incorporação de trabalho realizada por seus moradores e por sua população flutuante no recinto urbano; e canalizam para dentro da cidade e para fora dela os resultados de esforços de produzir. Este é o modo como a produção e o comércio se articulam em cada cidade. Essencialmente, a realização de trabalho depende de organização, isto é, de uma vontade racionalizadora, capaz de compreender os processos de produção e de comercialização e de canalizar força de trabalho para algum objetivo prático. Tal vontade organizadora pode ser do próprio trabalhador, agindo individualmente ou em grupo. Pode ser uma manifestação de vontade estatal, ou


20 uma manifestação de interesse privado organizado como empresa. Esse impulso de canalização de força de trabalho se traduz em mobilização de recursos físicos e financeiros, compreendendo equipamentos e financiamento do tempo dos trabalhadores. Essa complementaridade de equipamento, trabalho e dinheiro pressupõe um determinado conhecimento de produtos e de mercado, que pode ficar restrito a um escopo limitado de produção; ou procurar mais oportunidades para alcançar novos resultados do trabalho, pela gestão direta da força de trabalho pelo trabalhador, ou mediante uma gestão indireta, em que a função de coordenação se separa da de produção. Assim, a realização da produção exige uma visão de conjunto dos usos do

tempo na produção e na negociação para controlar os recursos necessários para produzir e para comercializar o produto. A empresa é a forma de organização de recursos e trabalho, que assume objetivos de interesse privado a partir de participação na produção - por contraposição a consumo - e procura ampliar a gestão indireta do trabalho. As grandes cidades de hoje, mesmo aquelas socialmente mais desiguais, oferecem um amplo leque de possibilidades de organização do

trabalho, articuladas em horizontes de organização do mercado, que diferem em muito do meio urbano mais simples do começo da expansão fabril. Isso, logicamente, leva a substituir aquelas visões mais simples da organização da produção capitalista, que prevaleceram durante muito tempo como única referência da análise econômica. Concretamente, a convivência de formas de produção absorvedoras de tecnologia com outras que se mostram menos sensíveis à renovação tecnológica, na produção para subsistência ou para o mercado, faz com que as grandes cidades sejam os lugares onde se articulam o mercado de bens e o de trabalho, onde a participação das pessoas como produtores e como consumidores se revela plenamente. A multiplicidade de papéis desempenhados por cada pessoa faz com que a produção consista de uma pluralidade de ações coincidentes, em que os mesmos equipamentos podem ser usados de diversos modos. Nesse quadro, a identidade das pessoas e dos grupos é definida por suas atividades predominantes; e a maior mobilidade entre opções constitui uma vantagem na defesa da renda atual e do acesso a renda futura. Consequentemente, há diferenciais de condições de participação no mercado de trabalho que são dados pela permanência do trabalhador e de sua família numa determinada cidade. O trabalhador de hoje, ou os pretendentes a trabalhador, são pessoas que se formam e chegam à idade adulta com um horizonte de oferta de força de trabalho e de oportunidades para trabalhar, em que as vantagens acumuladas podem não ser


21 imediatamente visíveis, mas fazem-se sentir ao longo da vida do trabalhador: na remuneração que obtém, no tempo em que está efetivamente ocupado e na duração de sua vida profissional. Daí que a multiplicidade de formas de engajamento de trabalho corresponde a um leque muito mais reduzido de oportunidades para cada trabalhador. No quadro atual de profissões e de ocupações permanentes e temporárias, há divisões, às vezes profundas, que dificultam à maioria dos trabalhadores uma visão de conjunto do mercado de trabalho. A informação no caso é uma forma de poder, de controle sobre o uso da própria força de trabalho. As informações sobre a quantidade de postos de trabalho e sobre os requisitos de qualificação dos trabalhadores, distribuem-se desigualmente, segundo a participação nesses mecanismos de controle da relação entre a atividade direta de produção e os controles indiretos dessa capacidade de produção. Por isto, cada cidade desenvolve relações locais de poder, que se convertem em controles da capacidade de produção. Daí, a concentração local de efeitos da produção na chegada de novos pretendentes a trabalhador, há uma progressiva qualificação do mercado de trabalho, em que se distinguem as perspectivas de cada trabalhador das dos trabalhadores em seu conjunto. Esse encadeamento de efeitos nas pessoas, no relativo a sua participação no mercado de trabalho, se realiza mediante a educação em seu sentido mais amplo, como preparação para participar plenamente na cidade, com progressivos resultados na criação de novas opções de trabalho. Na prática, a participação no mercado de trabalho qualificado está sempre ligada a experiência; e esta inclui a transferência de experiências diretas de cada trabalhador e mediante mecanismos familiares de treinamento. Comparam-se as qualificações requeridas pelo mercado de trabalho com a emergência de novas necessidades de trabalho qualificado que se apresenta nos momentos adequados. Como as oportunidades de trabalho não esperam, há uma contínua pressão de aproveitamento imediato de trabalhadores, ou para sua substituição. A adaptação às exigências do mercado de trabalho é uma das grandes características das grandes cidades das economias periféricas, em que grande parte dos trabalhadores é transferida abruptamente entre formas de produção muito diferentes umas das outras, contrastando com um número menor de pessoas que integram permanentemente o corpo de trabalhadores melhor treinados e informados. A industrialização desempenha um papel especial nesse quadro, porque cria maior número de empregos equivalentes uns aos outros, resultando em demandas de trabalhadores com especialização homogeneizada. Adiante, o aprofundamento das diferenças entre as formas de ocupação abre espaço para novos aspirantes a trabalhador, que representam novas modalidades de


22 qualificação, ao lado da manutenção de formas tradicionais. Assim, o mercado de trabalho seria previsível se não mudasse de forma. Mas a industrialização muda de feição. Manifesta-se hoje mediante uma pluralidade de formas de produção, que nem sempre estão integradas num sistema de produção unificado. A variedade de formas de trabalho - impropriamente denominadas de informais - subordinadas ou colaterais à produção assalariada, indica uma pluralidade de formas de controle da acumulação, que no essencial oferece novas pistas de análise da relação entre a organização social e a estruturação física da urbanização. 2.3.

As manifestações físicas da urbanização

Impõem-se, aqui, algumas observações sobre a configuração das cidades. Em seu aspecto físico, a urbanização é um processo de criação e ocupação de espaços, que começa pela apropriação de terras para fins urbanos. A relação entre a apropriação de terras e a organização de espaços urbanos resulta das tecnologias utilizadas na produção e no consumo; e há uma proporcionalidade entre a expansão territorial - horizontal - e a expansão vertical, resultante da criação de espaços superpostos e interligados. A conjugação dos planos horizontal e vertical resulta em volumes. Cada cidade é, finalmente, uma composição de volumes , cujas dimensões são função do custo de seu uso atual, comparado com os usos que lhe estão previstos . Por sua vez, os custos dependem do valor socialmente reconhecido dos terrenos. Em síntese, a constituição dos espaços urbanos construídos está ligada a um sistema de custos e de previsões de custos, que se formam a partir dos terrenos incorporados a cada cidade. A partir daí, há um elenco de custos a serem absorvidos pela sociedade urbana, que são gerados pelo modo como se financia a construção e como seus resultados são repassados para uma parte dessa sociedade. Isto leva a dois indicadores principais da expressão física da formação urbana de valor, que são os de densidade e de verticalidade. Por densidade entende-se aqui a quantidade de valor incorporado por habitante urbano, ou a concentração de capital por morador urbano. Por verticalidade entende-se a concentração de capital que permite expandir o espaço construído além das dimensões territoriais. Como parâmetros da verticalidade, cabe então distinguir as restrições técnicas, decorrentes da composição da infra-estrutura e as restrições econômicas decorrentes da renda familiar dos moradores. Em seu conjunto, essas restrições se traduzem em restrições de localização, cujas conseqüências finais se percebem em a densidade da ocupação das diferentes partes da cidade, e a especialização das áreas urbanas para diferentes combinações de usos. Por sua vez, a verticalidade em cada cidade resulta, portanto, da renda líquida social esperada com a construção e a operação de cada volume, entendendo-se que essa renda líquida pode ser apropriada por interesses privados ou por interesses públicos, mas que em todo caso reflete resultados socialmente gerados. Isto quer dizer, ainda, que as tendências de


23 crescimento horizontal e crescimento vertical em cada cidade se traduzem em perfis de edifícios e de bairros mais altos ou mais extensos, segundo os grupos sociais identificados com eles podem incorporar essa renda social. Além disso, como sempre há sempre proporções entre o espaço verticalizado construído e a área territorial ocupada - dadas por normas técnicas infere-se que a verticalização é uma função que pressupõe custos fixos crescentes dos terrenos sobre os quais se verticaliza. As tecnologias e as escalas de custos de cada edificação permitem considerar a verticalização de subsolo e acima do nível do solo. Mas este componente é apenas um complemento da colocação anterior, que não altera a essência da análise. O essencial é que a verticalização responde a uma demanda qualificada, identificada com níveis de renda e preços dos produtos urbanos da construção. Há uma característica da urbanização industrial, de que com ela aumenta a proporção do crescimento vertical em relação com o territorial em espaços selecionados de cada cidade, formando-se divisões internas das cidades, que caracterizam desigualdades de renda e de patrimônio. Também aumenta o número de espaços de uso público; e os sistemas de infra-estrutura, que ocupam grande parte desses espaços, estabelecem padrões tecnológicos cuja influência indireta se estende por todo o espaço de cada cidade. Assim, torna-se necessário estudar urbanização a partir de evidências factuais, mas a seguir, de ligar tais evidências a condições sociais de produção das cidades, que aparecem indiretamente em modos de socialização que não estão restritos à cidade em particular. O trabalho de Nicole Loraux (1994) traz um testemunho decisivo nesse sentido, com sua análise do discurso oficial ateniense. Hoje as cidades criam componentes que pouco variam ao longo do tempo, que são praças, vias, sistemas de mercados, sistemas de drenagem, que disciplinam o assentamento humano. Junto com o crescimento de sua população, as cidades criam mecanismos de estabilização de sua expansão, que se tornam visíveis naquela concentração de acervo urbano que afeta a formação de capital urbano. Por isso, distinguem-se entre o acervo que reproduz o sistema social de produção e o que não tem esse poder. Por extensão, distingue-se o patrimônio do capital urbano. O primeiro representa valores anteriores que hoje são desigualmente reconhecidos, e não necessariamente incide na formação atual de valor. O segundo é parte necessária do esforço que resulta na reprodução social da cidade. A maior parte das grandes cidades tem um patrimônio multisecular, que não necessariamente é parte de sua produção atual, mas que indiretamente afeta a atividade atual. Esses mecanismos reagem no conjunto de cada cidade. Há uma circularidade entre os processos de valorização das terras e dos espaços


24 construídos, que resulta do efeito da totalidade da valorização da cidade em cada novo ponto urbanizado; e do modo como cada novo ponto urbanizado está ligado aos sistemas de infra-estrutura. Este mecanismo pode ser visualizado como no diagrama n.1 a seguir, onde se indica o papel da distribuição da renda na diferenciação dos espaços das cidades. diagrama n.1 terra

relação capital/trabalho

distribuição territorial

distribuição social

espaços espacialidade

A transformação da terra em espaço urbano significa uma incorporação de capital, cuja operação implica em introduzirem-se relações capital/trabalho. Por um lado, os espaços urbanos pressupõem a implantação de uma capacidade de prestar serviços; e por outro lado a terra urbanizada fica submetida a uma distribuição espacial que é sempre uma referência da distribuição social do acesso a esses serviços. Entre a terra que se incorpora às cidades, isto é, o volume zero e os diversos volumes que se acumulam em cada cidade, está a influência de um sistema de produção, portanto, de um aparelho regulador das posições de emprego, renda e pautas de consumo dos diversos grupos de moradores – trabalhadores manuais e não manuais, intelectuais - que se traduz em sua capacidade para obter e manter espaços urbanos. Em síntese, o comando de espaços urbanos é um sinal de poder, coincidente com nível de renda, indicadora de outras modalidades de poder. Também, a prestação de serviços sempre acontece em espaços urbanos, nunca em terra não tratada, seja, a incorporação de serviços modifica o valor dos espaços onde eles são realizados. A presença da infra-estrutura na análise econômica urbana é perturbadora da análise convencional, porque nela não é possível separar as perspectivas macro e micro; e onde o interesse privado não pode ser reduzido aos das empresas, mas confronta-se com o dos consumidores. A própria concepção de sistema de infra-estrutura já representa uma opção tecnológica que subordina as soluções individuais a soluções coletivas; e estabelece escalas de operações que não são compatíveis com a individualização das soluções. Alguns autores que tratam da história das cidades, como Mumford (1972), destacam a acumulação de pressão demográfica, na forma de adensamento do povoamento, correspondendo a determinados níveis de tecnologia, sem que se modifiquem as condições para a verticalização dos espaços, tanto para usos públicos como para usos privados. Tal acumulação de pressão reflete um aumento de capital concentrado em determinadas partes das cidades, pelo que, a


25 impossibilidade de ignorar as tendências marcadas pela especificidade dos usos dos capitais e do patrimônio articulados em cada parte de cada cidade. Pode-se aqui também lembrar algumas das observações de Lachmann, sobre a especificidade dos componentes do capital e a multiplicidade de seus usos, do que decorre certa irregularidade das transformações dos espaços urbanos, frente às modificações do sistema de produção. As contribuições desses autores mostram que uma coleção de componentes de infra-estrutura, como as vias públicas, pode ser usada em determinado conjunto de modos de consumo, dadas certas normas técnicas para sua construção; e usado de outros modos, se elas são modificadas. Assim, as alterações das normas são custos que não podem ser atribuídos a quaisquer dos usos. A urbanização tem lugar em áreas construídas concretas, não em espaços abstratos. A noção de espaço abstrato subjaz na de área construída, mas a análise econômica refere-se a espaços concretos. Assim, ela tem que considerar coeficientes de verticalidade para os diversos tipos de edificação que se encontram em cada cidade; ou distinguir tipos de urbanização em função da relação entre os usos de espaço, a verticalidade e os usos de serviços urbanos. Admitindo que o valor social dos edifícios tem relação com sua situação numa cidade, é preciso trabalhar com um determinado espectro de usos possíveis; e admitir que alguns deles podem ser substituídos num dado horizonte de tempo. Variam os usos e as condições de uso dos equipamentos. Essa observação vale para os usos atuais e os potenciais. Logicamente, condiciona os usos dos equipamentos urbanos para atender as necessidades essenciais da população, moradia e trabalho. Admitindo que a moradia e o trabalho são dois usos essenciais de espaço, e que são interdependentes, pode-se chegar a uma classificação simplificada dos usos de espaço para moradia, como a apresentada no diagrama n. 2 a seguir. diagrama n.2 ___________________________________________________________ grupos de renda

tipos de habitação

relação relação terra/ espaço/ espaço moradia

____________________________________________________________ a.capital moradia e lazer coeficiente elevada e renda moderado


26 b.renda elevada

moradia com equipamento individual

c.renda media

moradia com equipamento

d.baixa renda

moradia mal equipada

e.renda incerta

moradia precária

coeficiente elevada elevado coeficiente moderado coeficiente baixo

média

baixa

coeficiente muito muito baixo baixa

____________________________________________________________ Por sua condição de patrimônio e renda, os grupos de maiores rendas podem escolher a localização de suas habitações, assim diferenciando os espaços urbanos e discriminando os circuitos urbanos de consumo. Transmitem preferências que, junto com os efeitos diretos do consumo, representam privilégios. No outro extremo, os grupos de baixa renda e de rendas incertas - onde se encontra a informalidade da pobreza - estão constrangidos a moradias inadequadas e vivem em espaços ínfimos. A exigüidade está ligada à precariedade dos materiais de construção e à falta de espaços de circulação. É o máximo contraste entre comodidade e confinamento e com a diferença de possibilidades entre associar moradia e lazer e moradia e vantagens urbanas diretamente ligadas à casa. A localização das moradias implica em distância e acessibilidade aos locais de trabalho, que têm uma expressão econômica e outra de acesso às alternativas culturais disponíveis. Nisso, as diferenças de renda significam diferenças de capacidade para mover-se no âmbito da cidade. A disponibilidade de transporte individual e a qualidade dos serviços de transporte coletivo variam, segundo quais os bairros de moradia e quais as condições em que se realiza o trabalho. A distância entre a casa e o trabalho é um elemento essencial no relativo à qualidade de vida e no que toca à seleção de indústrias urbanas. Por um lado é um parâmetro do consumo das famílias, e por outro reflete o padrão de assentamento urbano da capacidade de produção. Cabe supor que há sempre uma relação entre as rendas mais elevadas e a disponibilidade de capital, que permite inferir os comportamentos habituais desse grupo de renda, respeitadas algumas peculiaridades culturais. Por terem padrões de consumo diferentes dos da maioria, tendem a integrar moradia com lazer; e a realizar o lazer em forma individualizada, em todo caso em formas diferentes da maioria. As mansões significam muito espaço para cada morador, mas uma baixa


27 intensidade de área construída por metro quadrado de terra. Diferente disto, as moradias de grupos de rendas elevadas e médias correspondem aos edifícios de apartamento onde prevalece a verticalização e os espaços de uso coletivo organizam os individuais. A partir de observações sobre as grandes cidades latino-americanas, vê-se que os grupos de rendas médias têm menos possibilidades de verticalizar, dados os custos da construção civil, portanto, têm maior coeficiente de uso por metro quadrado. Finalmente, os grupos de baixa renda e de renda incerta não têm acesso a financiamento de bancos, ficando constrangidos a morar em habitações precárias, quase sempre sem serviços básicos. Como as soluções dadas pelos moradores aos seus problemas de moradia são, essencialmente, familiares, a análise do problema de moradia deve ser vinculada a grupos urbanos classificados por renda e posição de patrimônio. Isso leva a rever o conceito de família no meio urbano de hoje, bem como a pensar em como trabalha-lo nos diferentes grupos de renda. Por sua vez, a organização do trabalho, assim como outras formas de coesão social, obriga a levar em conta a relação entre independência financeira e participação no núcleo familiar, bem como entre a participação na formação da renda familiar e a responsabilidade com a sustentação do consumo. A organização do trabalho tem um papel decisivo nas alterações urbanas da família. As condições materiais que sustentam a solidariedade familiar variam, segundo a renda gerada pelos membros de uma família é usada para consumo coletivo, ou é canalizada através de outras formas de solidariedade não familiares como clubes, partidos políticos ou religiões - que aceleram a substituição de valores pré-industriais pelos da modernização urbana. Por último, como as limitações econômicas da vida urbana reduzem a influência do parentesco indireto, para os fins da análise urbana empírica, é mais indicado trabalhar com o grupo familiar que reside junto, entretanto, sem descartar a análise do parentesco e da origem, como meios de explicar diversos fenômenos que, demonstradamente, se repetem na maioria das cidades, mesmo nas capitais, como elementos de coesão de grupos subordinados a uma organização racionalizada do trabalho. Assim, os indicadores de renda e de consumo individuais só são representativos até certos níveis de renda, abaixo dos quais praticamente desaparece a capacidade de sobrevivência do indivíduo isolado: a sobrevivência passa a depender decisivamente do grupo familiar. Assim, os dados sobre moradia, na prática indicam condições de renda familiar que implicam em condições de alimentação, higiene, vestuário e transportes, seja, estão ligados ao consumo básico. Por isso, a análise econômica da urbanização contém os elementos de uma explicação do processo de trabalho, que ao serem desenvolvidos exponham os modos de inserção das pessoas e dos grupos sociais na sociedade


28 urbana. Há, aqui, dois aspectos principais a considerar: a confiabilidade ou a precariedade da ocupação e a inserção das pessoas em atividades que são necessárias ou não ao funcionamento da cidade. Tudo isso decorre do aumento da complexidade do trabalho urbano. As cidades contêm hoje uma complexa escala de trabalho independente, de alta e de baixa qualificação, que não permite reduzir a questão geral da temporalidade da ocupação e de sua estacionalidade à relação empregatícia entre capitalistas e assalariados. Pelo contrário, leva a uma visão do trabalho urbano, em que aumentam rapidamente os componentes de trabalho transitório, onde aumenta a incerteza da ocupação, mas onde não é possível reduzi-la aos termos tradicionais do risco de desemprego. Certamente, não cabe mais a separação proposta por Keynes, entre desemprego friccional e estrutural. A variedade de formas de ocupação obriga a considerar a relação entre emprego e ocupação; e distinguir entre as formas de desocupação . Há uma nova questão, essencial, de modificação dos modos como se organiza o mercado de trabalho. Especificamente, assinala-se a diferença entre o mercado de bens-salário, que corresponde a trabalhadores assalariados, cuja demanda é previsível; e o mercado formado a partir da demanda dos grupos de baixa renda que recebem rendas incertas - basicamente, a informalidade - que está marcado por um grande imediatismo do consumo e pela impossibilidade de estocagem ou de compras a crédito. O quadro ainda é mais complicado, porque muitos dos que atuam no mercado de bens-salário de baixa renda também participam do mercado dos recipientes de rendas incertas; e as grandes cidades periféricas distinguem-se, justamente, pela intensidade das ligações entre o mercado formal e o informal de trabalho. A proporção das rendas incertas no total da renda social urbana, portanto, é um indicador da capacidade uma cidade para sustentar previsões que alimentem a expansão do mercado de bens. Isso compreende a combinação da estrutura de classes com outras formas de organização estamentais e com outras menos formalizadas. Por essas razões, a análise do mercado urbano tem que estar apoiada numa compreensão da estruturação social das grandes cidades, compreendendo a combinação de relações estáveis e de relações esporádicas; e as interdependências entre a formação de classes e a de outros modos de estruturação, surgidos a partir do consumo. Presume uma distinção entre as desigualdades de renda e patrimônio e as diferenças culturais. Como é nas cidades que se formam as relações de classe, a complexidade das relações de trabalho reflete-se no modo como se organiza a relação entre capitalistas e trabalhadores. Mas esta não substitui o espectro de situações


29 concretas de participação na produção, desde o assalariamento formal até as pequenas empresas e o trabalho de produtores independentes especializados, em que o assalariamento é apenas complementar do trabalho do pequeno capitalista. É próprio do meio urbano que a mobilidade dos participantes do mercado de trabalho varia, de acordo com seu nível de educação e renda e o tipo de atividade que exercem. Assim, a mobilidade entre as atividades formalmente estabelecidas e as incertas é um traço essencial da definição do mercado de trabalho urbano, pelo que a incerteza da ocupação está, de algum modo, ligada à distribuição da renda; e esta, por sua vez, às margens de incerteza do consumo. Por isso, as observações sobre moradia, que mostram uma circularidade entre renda atual, passada e futura, onde o crédito tem um papel fundamental. Os grupos que detêm as fontes estáveis de renda são, também, os que têm acesso a crédito, portanto, que podem ter melhor moradia. Através da ocupação têm acesso a seguro saúde, e demais vantagens; e através da moradia têm acesso a água potável, saneamento, energia elétrica. Assim, há uma complementaridade essencial entre as soluções de emprego e renda e as de consumo básico ao longo do tempo, que reflete as condições de participação na cidade em seu conjunto. 2.4.

Os processos condutores da urbanização

O aspecto visível da urbanização é o crescimento das cidades, seja, o aumento de sua população em proporção com a criação e transformação de espaços, finalmente, com sua correspondência com a ocupação de território. Mas em seus aspectos internos, a urbanização é uma transformação social que atinge as práticas e as decisões na produção e no consumo, com componentes de consumo socialmente eficaz e de consumo socialmente indiferente, isto é, de tipos de consumo que alteram o comportamento de grupos numericamente significativos e de tipos de consumo que não modificam esses comportamentos de modo significativo. São necessários, pois, alguns esclarecimentos sobre o consumo urbano. A compreensão do consumo urbano atual exige reconhecer que as possibilidades de consumir mudam ao longo do tempo, segundo os tamanhos das cidades e no modo como elas estão comunicadas umas com as outras. Mais ainda, que as mudanças na composição do consumo dos diversos grupos de renda variam de intensidade ao longo do tempo, mas que estão associadas a mudanças no modo de articular a vida doméstica com a do trabalho. Os tamanhos das cidades têm sido indicadores confiáveis das mudanças do ambiente de cada cidade, que favorecem ou dificultam as modificações do consumo. Consequentemente, os atos de consumir mudam de significado, segundo correspondem a diferentes contextos de vida em sociedade e se realizam em certos coletivos. O consumo pode ter uma certa expressão social no momento em que é


30 realizado; e pode mudar de sinal no momento seguinte. Pode tornar-se socialmente significativo pelas quantidades consumidas, ou por seus efeitos indiretos no consumo futuro. O consumo socialmente significativo traduz-se sempre em alterações nas pautas de produção adequadas ao uso local, interagindo com a formação do sistema de produção localizado em cada cidade. Além disso, uma característica da urbanização de hoje, é que o consumo que se realiza numa cidade tem efeitos locais imediatos, enquanto os efeitos imediatos da produção podem ser transferidos para outra cidade, somente atingindo a cidade original de modo mediato. Assim, ao longo do tempo os efeitos da produção e do consumo se acumulam de modo diferente, criando diferentes laços de solidariedade, levando a resultados em termos de formação de capital e de transformação dos agentes. Há técnicas de produção e técnicas de consumo. Assim, é preciso levar em conta como se realiza o consumo em cada cidade. Operacionalmente, o consumo pode ser classificado em grandes categorias, como as de moradia, alimentação, educação, saúde, cultura e lazer. Correspondem a formas de consumo instrumental, como as de água potável e saneamento, segurança, transportes e comunicações. O consumo final resulta da concentração de população e do nível de renda, entendendo-se que a formação da renda está ligada a um referencial cultural e técnico. As cidades recebem pressões de consumo, que em parte se materializam em demanda, mas que em outra parte não têm expressão monetária e procuram outros modos de manifestação através da sociedade civil. Daí, a análise econômica não pode limitar-se à manifestação monetária da demanda, já que a pressão não monetária tem efeitos concretos na oferta de serviços. Mas é preciso encontrar outros modos de análise, que permitam explicar estas esferas de manifestação de necessidades e descrever as interações entre elas. É uma discussão que, por força, começa pela identificação das necessidades dos moradores das cidades. A concentração do povoamento nas cidades traduz-se num aumento de necessidades de todo tipo, essenciais, secundárias e supérfluas, com uma concentração de necessidades essenciais, que se traduz em pressões por determinados tipos de serviços, que ao se objetivizarem podem ser catalogados e planejados. Essas necessidades têm sido as menos atendidas, que praticamente só se manifestam por meios não econômicos. Representam um componente de despesa pública que não pode ser justificada economicamente; e outro componente de despesa privada, geralmente realizada pelos próprios interessados, muitas vezes de modo clandestino, que responde por uma parte significativa do consumo final. Mas o atendimento dessa pressão de demandas mínimas é a base para outras formas de atividade que já não pertencem à esfera do consumo básico, senão que o alimentam.


31 Paralelamente, a renda urbana disponível traduz-se numa demanda cujo perfil - magnitude e composição - sustenta uma capacidade instalada em termos de produção de componentes identificados com consumo básico, tais como moradia, alimentação e vestuário, em escalas de qualidade que dão espaço para diferenciação de qualidade, por níveis de renda. Junto com essas pautas básicas inclui as listas de bens e serviços de consumo de grupos de rendas mais elevadas, compondo o material com que se realiza o comércio. A demanda urbana compreende, portanto, um componente que resulta da concentração de população nas cidades e do atendimento de suas necessidades básicas, ao lado de outro componente, de diferente composição, determinado pelas atividades públicas e privadas, realizadas para atender essas necessidades. Mas a manifestação dessa demanda em mercado depende de um fluxo de renda das pessoas e famílias, que indiretamente depende de um componente da demanda que se realiza fora de cada cidade em particular. A partir daí, tomando a demanda em mercado como a principal aliciadora de trabalho, vê-se que o principal fato da vida econômica de uma cidade é o fluxo de renda que circula nela através das transações que alí se realizam. Compõe-se de despesas de residentes e de não residentes. Ao longo dos circuitos de transação, este fluxo de renda circula, com velocidades diferenciadas, em vários circuitos que se interalimentam, resultando em combinações de usos de bens de consumo duráveis e não duráveis, ao lado de usos de bens de capital. Os movimentos de pressão de demanda e de indução de despesas do sistema de produção resultam em aceleração da urbanização. Indiretamente, nela também convergem os efeitos dos movimentos de marginalização e expulsão de pessoas do meio rural e daquelas cidades de pequeno e médio porte que terreno para as grandes cidades. Forma-se, assim, um sistema de vasos comunicantes, em que as grandes cidades concentram as alterações qualitativas das relações de produção e de consumo. Essa visão da questão liga a reprodução das relações atuais de produção e consumo ao crescimento das cidades, ou seja, reconhece que o atendimento das pressões atuais de demanda depende de que haja uma pressão para ampliar as escalas de produção e de consumo; e que o atendimento do perfil atual das pressões de demanda depende tanto do perfil da produção como de variações incrementais na produção. Como a produção sempre se realiza com velocidades diferenciadas e que o ajuste de oferta e demanda se dá nos espaço-tempo específicos de cada cidade, o crescimento urbano envolve sempre algum tipo de alteração de composição. Assim, discutir crescimento urbano implica sempre examinar problemas de composição. As cidades crescem por seu próprio dinamismo e pela transmissão de efeitos dinâmicos extra-urbanos, seja, provenientes das relações regionais e inter-


32 regionais. As cidades continuam crescendo; e uma proporção crescente de cada país mora em cidades. Os progressos dos sistemas de informações e comunicações ampliam a área de influência - direta e indireta - de cada cidade; e alteram as relações entre cidades grandes e pequenas. Assim, o poder de atração das cidades resulta de uma concentração de poder político e econômico e de ascendência ideológica e tecnológica. Exceto por algumas situações extraordinárias, a condução dos interesses públicos e dos privados faz-se em cidades de grande porte, ou em cidades que foram planejadas para estas funções, já representando uma dada equação política. Por isto, é preciso levar em conta os processos que alteram os tamanhos das cidades no relativo ao povoamento e ao fluxo de capital. 2.5.

A formação do mercado urbano O mercado é um limite que se desloca. Fernand Braudel

Como disse Braudel, o mercado urbano formou-se sobre a decadência das feiras livres. A realização de trabalho nas cidades compreende uma parte de trabalho que se executa nas unidades familiares ou por pessoas para subsistência; e outra parte integrada ao mercado mediante a produção de mercadorias. Nos diversos níveis de renda, as famílias dedicam diferentes proporções de seu tempo à participação no mercado, com condições também diferentes de mobilidade para ascenderem em cada linha de atividade, ou para deslocarem-se entre diferentes linhas de atividade. Para entender o funcionamento do mercado urbano, é preciso explicar as alterações que se dão nas formas de engajamento das pessoas e das famílias nessas combinações de trabalho doméstico com trabalho em mercado. Supor que o amadurecimento do capitalismo leva a uma substituição uniforme das atividades domésticas pelas de mercado, implica em admitir sociedades sem fraturas, em que o processo do capital e o do emprego distribuem-se homogeneamente, em que não há discriminação com pretendentes a trabalhador. Tal pressuposto, obviamente, não corresponde à realidade. Pelo contrário, as proporções de trabalho doméstico e em mercado acompanham as condições concretas em que se operacionaliza um sistema de produção em cada cidade, com a economia da produção dos serviços urbanos básicos, representada pela infraestrutura, e com a localização de atividades produtivas no âmbito da cidade. O mercado urbano surge da concentração de atividades diretamente realizadas com mercadorias e daquelas outras, realizadas no âmbito familiar, que tornam possível o circuito de operações com mercadorias. A unidade doméstica absorve uma quantidade de horas de trabalho, de mulheres e de homens, em que a interação com a produção e as trocas de mercadorias varia, em magnitude e composição, segundo o conjunto das tecnologias utilizadas em cada cidade em seu conjunto - como é o caso da tecnologia dos transportes - e aquelas utilizadas em cada família. Na prática, a disponibilidade de transporte afeta o tempo disponível para atividades domésticas, assim como a contratação de trabalho doméstico.


33 Também, a disponibilidade de serviços organizados em apoio ao trabalho doméstico permite a substituição do esforço das famílias. Mas os resultados finais dessa substituição de trabalho são fundamentais para o funcionamento econômico das cidades, no que ele contribui com elementos específicos da formação de produto social. Esses resultados estão ligados às variações no modo como a organização do trabalho, no mercado e em casa, corresponde às condições dos diversos grupos para participar no mercado. Assim, numa cidade fortemente desigual esta relação reflete situações de classe e culturais; e varia segundo aumentam ou diminuem as quantidades de trabalho doméstico. A capacidade de substituir trabalho doméstico por trabalho em mercado depende de nível de renda e educação; e praticamente demarca a capacidade de cada família para usar sua própria força de trabalho para acumular. Esse processo de substituição está ligado à ampliação do conjunto de mercadorias que constituem o consumo familiar. Entram novas demandas de informações, ao tempo em que se sentem os efeitos da industrialização do consumo; e como resultado há uma pressão da demanda familiar para melhorar o equipamento usado no trabalho doméstico. Há, também, uma pressão para ampliar o horizonte de informações que constituem mercadorias simbólicas nas relações urbanas, seja que se apliquem ao funcionamento das cidades ou que sejam usadas em relações de comércio e intercâmbio fora de qualquer cidade em particular. Por exemplo, conhecimento de idiomas para usar produtos internacionais, formas de consumo determinadas por razões culturais, que se transformam em símbolos de classe, como gravatas representativas de associações, penteados como distintivos étnicos etc. Na mesma categoria estão as variedades de linguagem usadas nas grandes cidades, que são inacessíveis aos moradores das pequenas cidades, que no essencial constituem mecanismos de reserva de informações. Assim, uma parte dos componentes do consumo familiar compõe-se de mercadorias cuja disponibilidade resulta da capacidade das cidades para transformar conhecimentos gerais em específicos, que tomam um preço, e que se incorporam ao negócio da prestação de serviços. Uma grande quantidade de trabalho que se realiza tradicionalmente como parte do consumo familiar, ou que funciona como meio de expansão do conhecimento, é apropriado comercialmente a transformado em material de apoio ao comércio do turismo, indiretamente contribuindo para sustentar o nível da renda da população urbana. Em seu conjunto, a intensificação das comunicações entre países significa um aumento da comunicação entre cidades, com a conseqüência de que o mercado em cada cidade funciona com maior número de mercadorias e maior variedade de serviços, que são operados por maior número de cidades em circuitos mundiais de


34 relacionamento. No entanto, a experiência das grandes cidades de países desigualmente industrializados revela que a importância das relações de longa distância varia, em conexão com a tendência de que uma maior proporção do consumo se realize mediante os mesmos produtos, ou com sistemas semelhantes de prestação de serviços. A formação do mercado urbano pode ser vista a partir dos impulsos da indução de trabalho pelas necessidades das famílias, e de impulsos de demanda determinada por renda gerada no circuito da produção organizada. O ponto de partida das necessidades das famílias é o atendimento de necessidades de subsistência, que em seus desdobramentos traduz-se em atividades que chegam ao mercado. Paralelamente, o núcleo familiar é atingido por uma demanda de trabalho partida do lado dos que controlam a produção; e sua capacidade de trabalho é mobilizada em forma que concorre e complementa os usos domésticos de tempo. A disponibilidade de tempo e as qualificações profissionais constituem, de fato, o potencial de trabalho da população urbana, que pode ser mobilizado pelos alicientes de trabalho, que são a escala de remunerações atuais e as perspectivas de remuneração. Tais perspectivas decorrem de dados objetivos do funcionamento do mercado, não se confundindo jamais com expectativas individuais independentes dos diversos pretendentes a trabalhador. A formação do mercado em cada cidade significa o desenvolvimento de diferentes circuitos de atividade, com diferentes intensidades de ligação com o mercado, que usam capital e trabalho de diferentes modos, mas que resultam numa utilização final de trabalho e de materiais, para consumo imediato e para a continuidade da produção. Este mecanismo tem que ser compreendido com seus diferentes resultados nos dois âmbitos, das transformações do funcionamento da unidade familiar e das modificações do mercado, sob pena de se atribuírem ao sistema propriedades que não são reais. O fundamental é que a demanda de materiais se concretiza por meio de compras, mas que sua aplicação direta é realizada por empresas na produção e por pessoas e famílias na aplicação de trabalho próprio para atender necessidades diretamente. Assim, a demanda urbana pode ser descrita como no diagrama n. 3, onde se colocam usos de força de trabalho e compras de materiais, ao lado de mobilização de dinheiro, indicando as quantidades de circulante que são necessárias para manter um determinado nível de atividade. diagrama n.3 ____________________________________________________________ Demanda urbana


35 Habitação

Infra-estrutura

Trabalho

contratado próprio

contratado próprio

Materiais

equipamento

Dinheiro a. privado b. público

direto indireto

Oferta urbana

equipamento estoques direto indireto

Produção

contratado equipamento

direto

A economia urbana é conduzida por seu componente monetizado, que reage a estímulos financeiros e aprecia o trabalho por seu aspecto de mercadoria. O trabalho que não se converte em mercadoria, ou que deixa de sê-lo, não pode, no entanto, ser considerado como improdutivo, ou como indiferente no funcionamento do sistema, porque todo ele tem conexões com as condições de vida das mesmas pessoas que realizam as tarefas em mercado. A questão se complica quando se reconhece que grande parte do trabalho realizado nas unidades familiares é parte essencial da renda familiar; e que os modos de substituição entre trabalho doméstico e de mercado depende de uma qualificação obtida em mercado. Vê-se daí, que a organização familiar funciona como meio de relação entre os grupos de maior renda e os de menor renda. Mesmo nas cidades socialmente mais desiguais, a produção doméstica dos grupos de menor renda está condicionada por movimentos de dinheiro dos segmentos financeiramente organizados, que criam alternativas de ocupação estável, referenciam a formação da renda familiar. Assim, em cada cidade de grande porte há dois tipos de fenômeno financeiro a considerar, que são o fluxo financeiro que circula entre as atividades que se realizam integralmente no mercado; e os movimentos financeiros que articulam o trabalho doméstico e extravasam da circulação urbana de dinheiro. A primeira parte indicada opera com diferentes velocidades de circulação, fluindo num circuito que supre os sistemas de infra-estrutura; e outro que opera com a produção direta de bens, com margens variáveis de mobilidade entre os dois circuitos, dadas pelas empresas que operam nos dois âmbitos. As aplicações de dinheiro nos sistemas de infra-estrutura funcionam como catalisadores de recursos gerados na produção de bens (já que os salários pagos nestes sistemas são sempre magnitudes menores que as compras neles realizadas); e a produção de bens está


36 ligada a formas de organização da produção na escala de uma região ou de um país. O circuito de financiamento da infra-estrutura apoiai, portanto, o da produção de bens. Assim, a circulação de dinheiro é canalizada em grandes campos de aplicação, nos quais a produção está representada pelas instalações, os equipamentos e as matérias primas da produção de bens. A infra-estrutura está representada pelo capital incorporado em redes de distribuição, vias para transporte e armazéns. Este conjunto opera em conexão com habitação, seja, com o conjunto do equipamento que responde pelo serviço de moradia. A mobilização de dinheiro desenvolve-se desigualmente em quantidade e velocidade, dependendo da capacidade de cada um desses itens para remunerar o capital; e da capacidade de pressão política dos agentes envolvidos. Os diferenciais de velocidade de circulação, portanto, indicam em princípio tendências de transferências de recursos entre campos de atividade, seja, tendências indicativas de alterações na composição do capital, levando a desajustes entre a expansão destes setores e o perfil de concentração de capital em cada cidade. Outrossim, esses deslocamentos constituem uma indicação valiosa da acumulação de tensões em habitação, em infra-estrutura e na produção, que situam os patamares de custos correspondentes à capacidade instalada em cada grande setor. A habitação - compreendendo a construção, o uso, a manutenção dos locais de moradia - é o campo de atividade em que coincidem uma atividade direta de construção por parte das famílias, uma atividade capitalista esporádica, que usa trabalho informalmente ou transitoriamente contratado e outra atividade realizada de modo plenamente industrial por empresas. As diferenças em termos de processo de produção correspondem a diferenças em termos de estruturação social, que atinge a produção e o consumo; e revela os vários circuitos de produção e de comercialização, indicando escalas de produção, portanto, aptidão para utilizar e substituir tecnologia. Há, também, diferenças nos modos de uso de dinheiro, que são atribuíveis às condições de comercialização do produto habitação, seja como bens de consumo ou como mercadoria. A despesa com infra-estrutura denota a totalidade das despesas feitas para apoiar a produção de mercadorias e o consumo familiar. Em princípio, compreende os sistemas de adução, canalização, tratamento e manejo de água e esgotos, a construção e manutenção de vias para transporte; a implantação e distribuição de energia elétrica. Os sistemas de infra-estrutura se renovam segundo progressões especificas de demanda, com requisitos de capacidade instalada de produção próprios de cada cidade. O traçado dos sistemas é um elemento de custo, com as implicações de custos das pendentes e das gradientes, inseparável da eficiência operacional do conjunto; e tem que ser confrontado, adiante, com a disposição espacial dos assentamentos urbanos. No funcionamento das cidades de


37 hoje há um entrelaçamento entre esses dois planos de atividade, resultando numa pressão por usos do solo existente e do solo criado, que é um componente da formação de uma renda imobiliária.


38

4.

Esfera doméstica, mercado e formação de capital

4.1.

A reprodução social urbana

A realidade urbana contemporânea consiste na coexistência de cidades de diferentes tamanhos e modos de funcionamento, bem como com diversos usos de tecnologia e formas de organização, no cotidiano e no tecido institucional (Szmrecsányi, 1985). A desigualdade das cidades resulta em relações diferenciadas entre elas, assim como se retransmite na influência que cada cidade exerce sobre outras cidades e sobre as regiões onde elas se encontram. Certa noção de sistemas de cidades nacionalmente integrados, que sustentou a análise marginalista e funcionalista, de von Thünen à análise sistêmica, ficou seriamente comprometida e invalidada para muitos fins, com a constatação do aumento da influência de fatores supranacionais, tais como as atividades das empresas multinacionais, bem como pelos efeitos da revolução informacional ( Lojkine, 1995), que quebrou os vínculos hierarquizados pela relação custo/distância. A produção das cidades depende de combinações de fatores locais e internacionais que são próprias de cada cidade, que variam ao longo do tempo, e que não podem ser generalizadas no âmbito de conjuntos de cidades. A análise urbana oferece elementos originais, fascinantes, para modelos caóticos. 10 A análise urbana deve refletir essa pluralidade, deve mostrar os elementos básicos que distinguem cidade do que não é cidade e que identificam os diversos tipos de cidade. Nesse sentido, toda e qualquer cidade enfrenta, sempre, problemas de reprodução social que, direta ou indiretamente, levam ao tratamento dos aspectos de organização técnica e de uso de capital e de patrimônio. Impõe-se, portanto, estabelecer quais são os aspectos básicos da reprodução social urbana; e examinar como a reprodução da sociedade urbana se reflete na do seu ambiente físico. As cidades se reproduzem por obra da expansão do capital; e mostram os sinais dos movimentos contrários e concomitantes, de valorização e desvalorização, de modo intensivo e extensivo: na capitalização e na degradação dos bairros e nas formas de vida que se instalam neles. Junto com a concentração territorial de pessoas e a diversidade de grupos urbanos, é nas cidades que convergem as transformações das relações coletivas de cada sociedade e os 10

A necessidade de pensar em termos de comportamentos caóticos no campo social é inquestionável, quando se reconhece que os campos submetidos a ordens conhecidas estão expostos a influência de campos governados por ordens não conhecidas, onde portanto as relações entre movimentos regulares e transitórios podem ser irregulares ( Ruelle, 1993). As grandes cidades periféricas estão expostas aos comportamentos de empresas multinacionais e de grupos de excluídos, que agem de modo diferente da sociedade local organizada.


39 problemas de subsistência material, seja, onde está o maior número de pessoas que tenta sobreviver sem dispor dos meios necessários para isso. Nelas coincidem as necessidades elementares da sobrevivência física, assim como outras necessidades socialmente reconhecidas como essenciais, que transcendem os aspectos biológicos da sobrevivência. Com a elevação das expectativas materiais e de condições de vida em geral, deslocam-se as exigências reconhecidas como de subsistência. Além dessa distinção entre a sobrevivência e o que está além dela como acumulação de capital da esfera familiar, há outro corte entre necessidades que se manifestam plenamente no mercado na forma de demanda; e necessidades que não se vêm com a mesma clareza, porque nem sempre se manifestam com plenamente como compras. Nesse conjunto encontram-se necessidades irredutíveis, de alimentação, abrigo e transporte, que formam um piso de pressões sociais de demanda, que pressiona o mercado, direta ou indiretamente, já seja mediante o controle de força de trabalho na esfera doméstica, ou mediante pressões indiretas mediante mecanismos políticos. É a inter-relação entre a produção doméstica e a de mercado. 11 Nesse contexto colocam-se os problemas de subsistência. Subsistir é encontrar soluções para esse conjunto de necessidades. Existe um problema de subsistência de cada um dos habitantes de uma cidade; e existe um problema de subsistência da cidade como tal, em suas dimensões e em sua capacidade de abrigar pessoas e prestar serviços. Para entender cabalmente o problema de subsistência, é preciso revelar os diversos planos em que se colocam as relações socialmente necessárias para que uma cidade se reproduza. Por isto, neste capítulo trata-se, sucessivamente, dos elementos econômicos das relações urbanas, das formas de produção urbanas, da formação de patrimônio familiar e da formação de capital familiar. 4.2.

Necessidades e subsistência

A cidade é o dado concreto do fenômeno urbano. Ela é um universo de produção e consumo, onde se conjugam atividades voltadas para a subsistência com outras voltadas para o mercado; e onde as pessoas, mediante sua participação nas famílias e nas empresas, concorrem e se complementam, como ofertantes de bens e de trabalho. Todos precisam subsistir. Daí, que a primeira referência da participação das pessoas e das famílias no consumo urbano, é a solução de seu problema de subsistência. Mas, obviamente, muitos têm condições materiais muito acima da subsistência, a ponto de sequer leva-la em conta. Mas a subsistência das pessoas é uma referência de qualquer organização social, mesmo sem um 11

A velha distinção de Aristóteles de esfera doméstica e esfera pública oferece as categorias cm que iniciar essa análise, no entanto, trata-se do modo como essas duas esferas se conjugam no espaço de cada cidade e dos modos como essa conjugação representa um dinamismo urbano. As atividades de mercado extraem força de trabalho da esfera doméstica, ao tempo em que a esfera doméstica depende de participação no mercado para se reproduzir.


40 parâmetro universal de consumo, que responda pelo que as comunidades aceitam como a subsistência de uma pessoa ou de uma família. Entretanto, a subsistência é fundamental na convivência de grupos e de pessoas que têm diferente vida doméstica, participam de diferentes modos e intensidades no mercado, e, principalmente, convivem com diferentes margens de incerteza na obtenção de sua renda familiar. A incerteza é a referência essencial da luta pela subsistência. Supera-la, alcançar o poder de acumular, são imperativos da vida urbana. Dependendo de quanta renda manejam, as mesmas atividades podem ser vistas como meio de subsistir e de acumular, segundo, ainda, o modo como são realizadas e os mecanismos pelos quais elas se perpetuam, sejam eles inerentes ao ciclo das atividades domésticas ou ao do mercado. A análise econômica tem uma dificuldade inicial para captar essa particularidade do funcionamento das cidades, porque somente uma parte das atividades que se realizam nas cidades completam-se diretamente mediante o uso de dinheiro. As atividades que envolvem dinheiro representam algumas outras que não o utilizam, que é como se materializam as relações entre a produção de mercado e a produção doméstica. Mesmo reconhecendo que a totalidade das atividades afeta, direta ou indiretamente, aquelas que transcorrem no mercado, a análise econômica está circunscrita às trocas do campo monetizado do mercado urbano. Tudo que acontece fora das trocas com dinheiro é considerado como residual pela análise econômica ortodoxa. Residual tem, então, um significado weberiano de vestígio de formas anteriores superadas, e um significado contábil, daquilo que não tem denominação precisa, que entra nas contas nacionais como uma parte não expressamente calculada. Em ambas conotações, é algo não significativo a um determinado processo de produção. E é reconhecido como tal pelas diversas propostas de modernização, que se apoiam nos aspectos uniformes do comportamento dos consumidores e dos produtores. Mas, ao reconhecer as diferenças entre os processos de reprodução que têm lugar na esfera da produção primitiva e na da informalidade urbana, admite-se que há um genuíno problema teórico por resolver na análise do universo de atividades que se realizam fora dessa uniformização operacional. Em síntese, o que permanece fora das trocas em dinheiro não é residual, senão um componente essencial ao que se troca; e que reflete a intensidade da atividade na esfera doméstica ou quase doméstica. Com limitações da industrialização dos países desigualmente industrializados, houve um incremento substancial da população urbana sub ocupada de baixa renda e de renda incerta, que passou a ter uma alternativa à pobreza rural crítica à qual esteve sempre submetida. Esses grupos geralmente são denominados, de modo indevido, como informais. Desempenham papéis


41 específicos na produção e no consumo urbano, contribuindo indiretamente para a acumulação de capital realizada por outros grupos, bem como contribuem para a formação de um patrimônio público urbano, enquanto resolvem seus próprios problemas de subsistência. Mas seu acesso à produção assalariada é limitado, ficando restritos aos empregos pior remunerados, por não contarem com outras fontes de apoio institucionalizado. São, também, prejudicados por não terem qualificações profissionais significativas: são constrangidos a entregar sua força de trabalho por menor pagamento monetário e com menores garantias de permanência. Assim, se estabelece uma circularidade entre a solução dos problemas de sobrevivência e as limitações da participação no mercado de trabalho, que garante trabalho barato para tarefas que, assim, podem ser realizadas com baixa densidade de capital por homem ocupado. Paralelamente, ela sustenta atividades voltadas para a sobrevivência, diferentes daquelas realizadas para o mercado. A repetição das práticas e a diversificação dos tipos de atividade são essenciais nesse mecanismo, já que com o crescimento das cidades muda a relação entre economia doméstica e economia de mercado, mudando também o elenco de atividades que integra cada uma das duas. Daí, encontram-se novas leituras para essa velha distinção aristotélica, cujos aspectos genéticos passam a ser apreciados na economia de hoje. Há, portanto, uma dupla relação entre a formação da cidade e a estruturação social urbana, onde é preciso distinguir a participação na produção, que leva a relações de classe propriamente ditas; e a participação no consumo, que se realiza mediante a organização familiar, de comunidades e de bairros. A complexidade da urbanização em curso pede uma renovação da reflexão teórica sobre a estruturação social, com novas perguntas e novos modos de resposta no relativo a classes; e com novas observações empíricas e conceituais sobre aquelas modalidades de estruturação que não se ajustam ao horizonte da conceituação de classes. Há algumas questões essenciais que devem ser colocadas nesse campo temático. Num primeiro plano, destaca-se a polaridade dos aspectos de objetividade e de subjetividade, que explica como se percebem as relações de classe; e como essa percepção é parte da própria situação de classe. Num segundo plano, distingue-se o relacionamento da estruturação de classes com as demais formas de organização social. Se a cidade é, por definição, o lugar onde se centraliza o processo de formação de classes, também é onde proliferam os demais modos de organização, transitórios ou permanentes, que interagem com as classes. Essa participação na produção e no consumo materializa-se em emprego e moradia, em que um e outro representam acesso a diferentes aspectos e partes da vida urbana, traduzindo-se, finalmente, no eixo moradia-emprego, com suas respectivas localizações e articulações com os sistemas de infra-estrutura. A


42 participação na produção determina a formação de grupos claramente definidos, que são os assalariados, os produtores independentes em diversos níveis de renda, com correspondentes condições de incerteza acerca do nível e da previsibilidade da renda familiar. A renda atual e as perspectivas de renda das famílias determinam sua estratégia de moradia, assim como suas condições de acesso a ocupação determinam seus vínculos de solidariedade com outros trabalhadores. Assim, é nas cidades onde se formam relações estáveis de interesse, chegando à identificação de classes. A concentração de trabalho assalariado, especialmente de trabalhadores fisicamente próximos uns dos outros, facilita a identificação de interesses econômicos determinantes de comportamentos não econômicos, levando a formas de organização, tais como a sindicalização e demais formas de representação equivalentes do trabalho. Mas as transformações mais recentes do mercado de trabalho urbano mostram novas tendências, na direção de menor estabilidade de contratação, maiores números de trabalhadores não assalariados e parceria de trabalhadores especializados com interesses também menos estáveis do capital. Junto com essa tendência, uma maior nitidez na diferenciação entre empresa e unidade de produção, e especificamente entre empresa e fábrica, revela a importância de inovações tecnológicas que se desenvolvem nos setores de prestação de serviços; e contribuem para que as grandes cidades sejam, também, grandes centros de profissionais qualificados independentes. Em síntese, tornam-se impróprias quaisquer generalizações sobre a formação do mercado urbano de trabalho e as condições específicas dos diversos trabalhadores qualificados para obter renda, que não levem conta como essa pluralidade se reproduz. A qualificação e o comando da linguagem utilizada na produção, tornam-se cada vez mais decisivas, com o que se tornam essenciais os mecanismos de transmissão desse saber e dessa experiência. Obviamente, é um mecanismo tão velho quanto a existência de cidades grandes, pelo que é um conceito igualmente antigo. Mas a aceleração das transformações da vida urbana obriga a considerar que a defasagem entre participação e qualificação torna-se um mecanismo de diferenciação que atinge decisivamente o modo de reprodução das cidades, aparentemente, antes que se complete a vida útil previsível de seus equipamentos industriais. Nas cidades de economias desigualmente industrializadas, encontram-se sempre situações em que a participação no mercado de trabalho está subordinada a uma crônica restrição de mercado de trabalho, onde o processo de qualificação dos pretendentes a trabalhador torna-se mais desigual, segundo ele se realiza, deliberadamente, em empresas cuja tecnologia se renova, em unidades de produção que não têm um poder equivalente, ou nas famílias, que dependem de renda pessoal e de mecanismos não econômicos de poder. Assim, o aumento do


43 número de trabalhadores de renda incerta significa a renovação de setores de produção que não respondem diretamente à polaridade capital/trabalho, mas funcionam sob controle indireto da produção formalmente organizada em mercado. Paralelamente à inserção no mercado de trabalho, a inclusão no consumo tem que ser considerada, bem como os modos como as pessoas se organizam para consumir. A organização do consumo urbano tem dois aspectos essenciais, a serem registrados: a organização de formas de consumo ditadas pelas formas de organização local, tais como bairros e vizinhanças; e a que resulta dos movimentos de massa, que em cada cidade refletem os modos de circular no espaço urbano e as semelhanças de gosto, ligadas a formação cultural. A organização do consumo, no âmbito das classes e fora delas, traduz-se em perfís, por isto entendendo a composição atual do consumo e as trajetórias de sua transformação: que tem de estável e de transitório, de individual e de coletivo, e como esses aspectos interagem. A diferença entre essas duas perspectivas reflete-se na polaridade classefamília, onde a condição de classe indica um perfil de participação na sociedade, determinado pela participação na produção; e onde a família é um grupo social fundamental, que detém diversos dos elementos essenciais da participação no consumo, tais como aqueles que indicam a continuidade da linguagem e da tradição. A polaridade classe-família marca as grandes cidades periféricas de hoje, onde as possibilidades de sobreviver e acumular variam, segundo níveis de renda e condições de acesso a atividades onde há perspectivas de aumento de renda. O controle de cargos públicos, o acesso a sociedades de acesso limitado, as organizações religiosas e políticas, estão entre os principais desses elementos. Também, é preciso considerar as peculiaridades de cada cidade, no relativo a dispor de formas de consumo público, dirigido pelo Estado ou por particulares, que abrangem aspectos de educação, saúde e lazer, que tampouco podem ser colocados como parte de renda pessoal. O acesso a consumo informa o essencial da desigualdade, sendo que as diferenças entre o consumo individual e o coletivo levam a distinguir quem o realiza: quais grupos , em quais circunstâncias e com qual estabilidade. A questão se coloca, primeiro, no relativo à sobrevivência nos níveis mais baixos de renda e nos de renda incerta, que dependem sempre de algum apoio de grupo, reconhecendo-se que o grupo essencial é a família. Logo, coloca-se em termos de que a acumulação começa com a superação da incerteza da subsistência, seja ela alcançada mediante regularidade no trabalho ou mediante incrementos de renda. Nesse plano de discussão, a satisfação das necessidades básicas traduz-se numa demanda mínima, onde há componentes pessoais e familiares, segundo se trata de necessidades que podem ser tratadas individualmente, como as de


44 transportes, ou como as de moradia e alimentação, que geralmente são atendidas na escala familiar. Essa demanda logicamente não é invariante: sofre influências climáticas e culturais, e varia ao longo do tempo. A demanda mínima de um habitante de Paris e de Londres hoje não é igual à de um habitante da Roma imperial, nem estas são iguais à de um habitante de Pequim nem de São Paulo. A demanda mínima tem efeitos indiretos sobre cada cidade, na forma de efeito de massa, pelo número de pessoas concentradas em cada cidade e pelo modo como elas estão organizadas, portanto, com um significado em termos de organização da produção e em termos de espacialidade. Grande parte dos serviços às pessoas se transforma em elementos formadores de cultura de massa, mas outros ressurgem como elementos de individualização. Assim como o transporte de massa e a massificação das comunicações contribuem para a cultura de massa, o acesso a informações personalizadas se transforma num elemento de diferenciação social e de individualização da cidadania. A demanda mínima exprime todos aqueles mecanismos de sobrevivência, seja, as estratégias de grupos urbanos que devem sobreviver, independentemente de quais sejam os elementos ao seu alcance. À parte de uma discussão clássica sobre o salário representativo da reprodução da força de trabalho, há uma questão essencial, relativa a uma renda familiar mínima suficiente para refletir a sobrevivência da família como unidade e a integridade de seus membros. É incorreto colocar os problemas de sobrevivência em termos de renda pessoal, quando se reconhece que a população de menor renda só consegue sobreviver em grupo familiar ou equivalente. A não comparabilidade da renda pessoal com o consumo familiar torna-se completamente clara quando se lembra que a maior parte dos componentes do consumo - como alimentação, água, energia e drenagem - são sempre realizados em coletivos. Além disso, a demanda mínima revela o comportamento dos grupos inferiores de um espectro de demanda, em que os movimentos dos diferentes componentes desse espectro não são semelhantes e, freqüentemente, deslocam-se, refletindo diferentes modos de inserção nas opções urbanas de consumo. Os grupos de baixa renda estabilizados têm perfis de consumo diferentes dos grupos de recém-chegados e dentre estes, aqueles que constituem migrações numerosas diferem dos que migram em pequenos números. Na análise do conjunto subsistência-acumulação urbana pode-se começar por qualquer desses dois termos. Mas ao tomar a primeira parte-se de situações de diferenciação nula entre atividades que prosseguem sem renovação tecnológica para situações em que os deslocamentos qualitativos são decisivos. Trata-se da subsistência de moradores de cidade, isto é, de grupos estáveis. Por isto, começa-se pela identificação dos items de despesa inerentes a essa condição de moradores.


45 Trabalha-se com referências de residência permanente, com custos estáveis na relação territorial entre moradia e local de trabalho. A relação moradia-emprego é essencial na organização do consumo familiar, porque abrange a totalidade do trabalho realizado pelas famílias no núcleo doméstico e no mercado. Indica as soluções encontradas pelas famílias para satisfazerem suas diversas necessidades imediatas e de longa duração - tais como educação e saúde - bem como as condições de integração das habitações aos sistemas de infra-estrutura de serviços, tais como os de água, saneamento, coleta de lixo, transportes: e aos serviços de educação, saúde e segurança. Em seu conjunto, esses elementos estão integrados no padrão de assentamento da população na cidade, seja, no ordenamento espacial da população e do capital. Na prática, a população de uma cidade está duplamente classificada, segundo a composição de seu consumo e a de sua renda familiar, entendendo-se que as necessidades subjacentes no consumo estão reguladas pelas possibilidades de realização que são dadas pela moradia; e que a participação na produção gera uma teia de relacionamentos, que transcendem a esfera de interesses de trabalho propriamente ditos. Mais ainda, quando se situa o significado da relação moradiatrabalho em períodos mais longos - em torno do tempo de vida útil de um trabalhador - vê-se que há uma série de conseqüências progressivas da permanência das famílias numa mesma moradia, que modificam as capacidades das pessoas para ocupar novos postos de trabalho. Incluem-se aí o horizonte de conhecimentos que se formam nos diversos pontos em que as pessoas circulam, que vão desde as amizades nos colégios e clubes até aquelas relações de negócios que se tornam pessoais. Assim, a permanência na moradia e no emprego, bem como aspectos da acumulação de ligações na sociedade, que alteram as possibilidades de modificação de cada um destes dois termos, tais como a participação em igrejas, partidos políticos, clubes etc. A relação moradia-emprego é uma categoria da formação do espaço urbano, em torno da qual se visualizam os dois sub-sistemas básicos de relacionamento dos moradores com os sistemas de infra-estrutura urbana, no horizonte de relações da comunidade onde moram e no horizonte de relacionamentos no mercado urbano em seu conjunto. Como a localização da moradia está ligada à formação da renda, os deslocamentos nesses dois elementos têm, adiante, um efeito geral no processo de formação de valor em cada cidade. A solução do problema de moradia está, desde o primeiro momento, ligada à da fonte de renda, o que significa o engajamento da família na vida urbana. Na prática, as famílias de recém-chegados de baixa renda têm que adaptar-se às formas urbanas de organização, seja transformando aptidões rurais ou de cidades pequenas, seja reduzindo-se às formas de demanda urbana que estão ao seu


46 alcance. Por exemplo, transformando-se de lavradores em porteiros de edifícios ou em garções, ou tornando-se vendedores ambulantes. No entanto, a inserção na cidade depende de maior intensidade da participação de cada integrante da família e de maior número de integrantes de cada família. Esse aumento de participação no mercado significa uma substituição de usos de tempo entre usos privados na família e usos que recebem um preço pelos que o compram, em que no entanto a determinação de preços não se aplica ao trabalho doméstico. Por exemplo, que as transformações do capital nas sociedades periféricas resultam numa diminuição irreversível do trabalho nas famílias e nas comunidades. Mas é uma substituição na composição do trabalho realizado nas moradias pelo realizado fora delas, em que o trabalho que deixa de ser realizado para a própria família passa a ser realizado para outras. Nas sociedades industriais avançadas ressurgem atividades domésticas que, sob novas formas, ocupam o tempo das pessoas em atividades voltadas para o coletivo doméstico, seja porque correspondem a formas de consumo cujos custos crescem mais que os salários médios dos trabalhadores, seja porque representam novas opções de consumo que implicam em trabalho pessoal direto. Significa, por exemplo, a cozinha e a marcenaria como lazer, e não como simples satisfação de necessidades básicas. Longe de apontar simplesmente a um aumento do lazer no uso do tempo, trata-se de um aumento do tempo que pode ser deslocado para usos alternativos, cujo aproveitamento efetivo depende da organização da produção e do consumo. 4.3.

A produção urbana

A produção que se realiza nas cidades, compreende uma parte de produção realizada por empresas e produtores independentes; uma parte de produção dita informal, realizada por produtores independentes, em grupos ou individualmente; e uma produção primitiva, constituída de produção extrativa e de formas pouco capitalizadas de uso direto de trabalho. Em combinações determinadas pela formação de capital no segmento formalmente organizado, essas formas de produção compreendem a formação de capital e a mobilização de trabalho. A produção formalmente organizada. Em cada cidade, a atividade produtiva combina relações locais com outras, que se concretizam em horizontes de mercado que estão além dos limites de qualquer cidade em particular; e que têm efeitos cumulativos de formação de renda. Junto com isso surgem efeitos de aglomeração de atividades, que abrem espaço para transformações qualitativas no modo como elas são realizadas e nos seus resultados. Os efeitos de aglomeração


47 entram no sistema mediante alterações de compras e vendas, localmente, principalmente, em função da diversificação da capacidade de produção de cada cidade. Como a capacidade instalada nos setores de produção de bens e de serviços pode evoluir em conjuntos não comparáveis, o efeito aglomeração varia entre tipos de aplicação de capital: e não pode ser generalizado como no caso de um multiplicador de compras de produtos industriais. O efeito aglomeração urbano se materializa pela combinação local dos efeitos das diversas compras nos circuitos mais e menos monetizados de transação. Há, aqui, um aspecto teórico a ser ressaltado. A análise urbana leva a uma interpretação diferente daquela de relações entre empresas apresentada por Walras. O fator situação territorial constitui uma qualificação que não permite tratar as inter-relações que acontecem numa cidade apenas como relações entre empresas. A produção formalmente organizada nas cidades é sempre uma combinação de indústria e prestação de serviços, cujas unidades de produção operam com algum grau de interdependência, à parte da posição que cada uma dessas unidades de produção ocupa na empresa de que é parte. O conjunto das relações entre unidades de produção numa dada cidade é essencial na definição da composição do mercado local, que logicamente pode variar de modo diferente das variações na magnitude do mercado. Isso significa que a identificação do horizonte geográfico da cidade corresponde a uma, dentre outras, identificações de mercado. E que a linha de tensão entre concentração urbana e extensão territorial das cidades corresponde, na prática, a um dado de mercado, que terá que ser processado ao nível macro pela cidade em seu conjunto, e ao nível micro, por cada empresa e cada consumidor que constituem a cidade. Na perspectiva da análise da urbanização, as modificações na composição das relações entre unidades de produção constituem uma referência diferente daquela das relações inter-industriais, que supostamente são relações entre empresas e unicamente exprimem fatos atuais: a forma das relações entre as empresas. Ao falar de alterações nas relações entre unidades de produção, apontase para o espectro de possibilidades de preferir realizar localmente diversas transações que alternativamente poderiam ser realizadas fora; e deste modo aproveitar vantagens que podem não ser relevantes para o conjunto de uma empresa. Nesse sentido, o conjunto de unidades de produção que constitui o mercado de uma cidade, constitui também um mercado de trabalho com características razoavelmente estáveis, onde a combinação do mercado de bens com o de mercadorias evolui de um determinado modo específico.


48 A produção primitiva. Numa análise em que se reconhecem, explicitamente, as peculiaridades das grandes cidades dos países desigualmente industrializados, não se pode ignorar o componente de produção primitiva. Há duas abordagens principais para faze-lo. Uma considera que a produção primitiva simplesmente é superada pela expansão da produção capitalística. A outra aponta à peculiaridades da produção primitiva, ao seu poder de renovação. A primeira aposta nos efeitos seculares cumulativos do assalariamento; enquanto a segunda focaliza no fato de que a expansão da produção capitalista não necessariamente significa correspondente expansão do emprego assalariado; e que há um número crescente de pessoas que não conseguem entrar ou permanecer no mercado de trabalho regularizado, e recorrem à produção primitiva como única estratégia possível de subsistência. A sobrevivência da produção primitiva depende da intensidade com que o crescimento das cidades se confronta com a reprodução do ambiente físico. Várias das grandes cidades periféricas, como Bogotá e Santiago do Chile, expandiram-se sobre terras de especial aptidão para cultivo, e outras, como Rio de Janeiro e Mexico, fizeram-se à custa de aterros, que eliminaram flora e fauna, e neutralizaram terras de alta qualidade. Porém, em muitas das cidades reconhecidas como de grande porte, um expressivo número de pessoas sobrevive, total ou parcialmente, de atividades extrativas ou da exploração de produtos com muito pouco capital ou com a aplicação direta de trabalho. Nessa categoria estão a produção de alimentos e a construção de habitações. Logicamente, não há informações censais que permitam avaliar com precisão a extensão dessas atividades, mas não há como ignorar que elas são essenciais à sobrevivência da população de renda baixa e incerta. Mais ainda, o componente de construção civil primitiva - favelas, barracos ou quaisquer outras formas - aumenta nessas grandes cidades, junto com a proliferação da pobreza urbana. O aspecto de uso de recursos naturais tampouco pode ser subestimado. Praticamente em todas essas grandes cidades há uma considerável destruição de rios e bosques, conseqüente de ocupação incontrolada. Mesmo reconhecendo que essa depredação está ligada à destruição ambiental causada pela mercantilização dos recursos, é preciso indicar que ela reflete, diretamente, uma atividade extrativa urbana que tem continuado ao longo do tempo. A informalidade. A denominação informalidade é geralmente utilizada para indicar todo o universo de condições de vida e de atividades a que corresponde hoje. Nas cidades, que é onde se concentra, a informalidade compreende formas de produção e de consumo, a miúdo associadas, em que há uma dependência de um


49 mercado explicitamente organizado e há, também, uma evasão das normas que o regem. É um não reconhecimento de normas, ou uma transgressão de normas generalizadamente considerada como inevitável. Mas é um universo que desenvolve regras próprias, inclusive com regras para a passagem do campo informal ao formal e para situações em que as pessoas e os grupos participam, simultaneamente nos dois. Daí, que a expressão informalidade transmite uma visão equivocada do tema que refere. Entretanto, seu uso ficou consagrado por uma visão maniqueísta, que contrapõe o trabalho realizado no mercado unificado de trabalho ao trabalho que se realiza em formas alternativas a ele, subordinadas ou não. Uma conceituação atualizada de informalidade leva a registrar que ela compreende atividades nos mais diversos níveis de qualificação de trabalhadores e de especialização do instrumental de trabalho, bem como nas mais diversas situações de comercialização. Sequer é algo novo: esteve presente em toda a história econômica dos países ricos e dos pobres, dos hoje plenamente industrializados e dos desigualmente industrializados. No essencial, é um espectro de soluções de produção que reflete uma resistência ao poder constituído do Estado sobre matéria econômica; que procura escapar das regulamentações por ele impostas. A atual importância da informalidade no processo urbano decorre da rápida mudança de papel da produção informal, junto com a proliferação da pobreza urbana e com as transformações do mercado de trabalho organizado, onde se destaca a diminuição do trabalho assalariado como proporção do uso de força de trabalho. A principal diferença entre as cidades de grande e de pequeno porte neste aspecto, é que como as primeiras quase sempre têm mais indústrias, compreendem um espectro mais amplo de atividades informais, portanto, experimentam seus efeitos na indústria e na prestação de serviços, assim como têm um consumo informal mais diversificado. 3.4.

A formação de patrimônio familiar

Na constituição das cidades a esfera do interesse privado de consumidores está marcada pela família. A maior parte do consumo básico realiza-se em coletivos restritos, dentre os quais a família continua sendo o mais numeroso e mais estruturante. Com diferenças significativas entre a família tradicional, que inclui parentes indiretos, e a família restrita, a unidade familiar é a principal representante do consumo, portanto, que liga o consumo atual, o passado e o futuro. Daí, a necessidade de reconstituir a relação entre a sobrevivência pura e simples do grupo familiar, como detentor de força de trabalho; e de preserva-lo como núcleo de decisões e portador de cultura. Isto significa que a família tem uma


50 capacidade própria de tomar decisões que afetam sua renda atual e sua formação de renda futura, seja, seu patrimônio e sua acumulação de capital. Na perspectiva da família, a atividade econômica consiste de um conjunto de participações na produção e no consumo individual e coletivo, que manifestam uma capacidade de adaptação ao espectro de atividades que se realizam em cada cidade. De acordo com as qualificações de seus integrantes e com as oportunidades disponíveis em cada cidade, as famílias procuram, com variados graus de certeza, aquelas seqüências de atividades que lhes podem dar aquele controle dos usos do tempo que ajuda a superar a incerteza. Segundo o grau de urbanização, a qualificação e o nível de informação, as famílias procuram aqueles encaminhamentos de seus esforços que ampliam seus horizontes de conhecimento e de decisão. A reprodução da família como núcleo está subordinada às condições de participação de seus integrantes no mercado de trabalho, que por sua vez dependem de sua qualificação e de sua mobilidade em relação com as oportunidades de trabalho que surgem. Naquelas situações em que a família consegue avançar nesses dois aspectos, ela passa a ter acesso a progressões de renda que superam as contingências de movimentos negativos ou de interrupções de renda, que são parte das margens de risco com que convivem seus integrantes. Observando, ainda, que a capacidade das pessoas para melhorar os resultados que obtêm na participação no mercado de trabalho depende de sua capacidade para aproveitar os resultados de seu próprio trabalho, não se pode menosprezar a importância de sua permanência no meio urbano em geral e em alguma cidade em particular. Para compreender o significado dessa permanência na formação do patrimônio familiar, é preciso liga-la ao desempenho efetivo dos membros de cada família no mercado de trabalho. Destaca-se que a qualificação profissional jamais responde sozinha pelos resultados financeiros. Junto com ela, ou antes dela, estão os contactos desenvolvidos ao longo do tempo, os efeitos indiretos da atividade política, a acumulação de referências institucionais. Além disso, nos resultados da atividade produtiva da família, é preciso distinguir entre reprodução, formação de patrimônio e acumulação de capital. A primeira descreve o circuito imediato de recomposição do trabalho e a manutenção de certo perfil de participação na produção e no consumo; a segunda, indica a totalidade dos resultados duradouros alcançados que excedem a reprodução; e a terceira reflete os resultados alcançados, em termos de um incremento da capacidade de participar na produção. No contexto urbano, essas diferenças podem não ser perfeitamente claras. A parte do tempo de trabalho que é dirigido para constituir patrimônio pode ser


51 retirado do destinado a consumo, portanto, a constituição do patrimônio pode concorrer com o consumo, em vez de ser algo além do mesmo. Significa, simplesmente, que o potencial de tempo-trabalho da família é aplicado segundo seus próprios critérios e prioridades, que diferem dos das empresas, já que a família aspira uma permanência no tempo maior que a das empresas.. Adicionalmente, naquilo em que a renda é convertida em moradia ou em propriedades de lazer, ou em terras, transforma-se em patrimônio: não gera renda, nem outros resultados conversíveis em renda. Mas trem outros efeitos culturais, estabilidade econômica e de status para as famílias. A formação de patrimônio modifica a posição das famílias, primeiro porque as liberta de ter que contratar tempo de trabalho como único meio de subsistência, e logo, porque permite a formação de rendas de transferência, como os aluguéis. A posse de patrimônio modifica as combinações de atividades de produção e de consumo, criando grupos que não dependem exclusivamente da relação capital/trabalho em sua presença numa cidade; e criando grupos de rentistas, com interesses bem definidos, especialmente no relativo à produção e ao uso de imóveis, para moradia e local de trabalho. Seus interesses se traduzem em relações bem definidas com o Estado, já que a valorização de seu patrimônio depende, mais que nada, da dotação de infra-estrutura, que é administrada pelo governo. Dependendo do perfil e da expansão da infra-estrutura, os componentes do patrimônio podem desempenhar funções diferentes, portanto, ser objeto de diferentes movimentos de valorização. As formas clássicas de patrimônio familiar são os bens imóveis: terrenos, casas e apartamentos. No conjunto do patrimônio de cada família, distingue-se a parte que pode ser convertida a outras formas de uso, operacionalizáveis como capital; e outros componentes que não podem mudar de forma e são irreversíveis à condição de capital. A conversibilidade do patrimônio, em última instância é o modo como as famílias podem alterar sua posição de classe, mesmo sem alcançar outras posições no sistema de produção. Na maioria das grandes cidades contemporâneas, de Nova York a São Paulo, verifica-se uma forte identificação entre as grandes fortunas privadas, como capitais na indústria e como patrimônio urbano. Paralelamente, os estudos empíricos disponíveis sobre cidades grandes que funcionam como metrópoles regionais, como Salvador, na faixa de 2,5 a 3,0 milhões de habitantes, mostram que o eixo patrimônio-capital foi, sempre, fundamental na formação dos capitais privados; e que a condução da especulação imobiliária é um dos principais vínculos entre o poder público e o capital privado. A localização do patrimônio qualifica as possibilidades de manutenção de valor e de conversibilidade, mas no relativo a localização é preciso reconhecer o significado da localização no momento inicial de implantação do patrimônio; e o que ele adquire, como resultado dos movimentos subsequentes de implantação de infra-estrutura. Assim, tornam-se mais nítidas as diferenças entre aqueles


52 componentes de patrimônio que geram resultados avaliáveis em mercado, que podem, eventualmente, ser transformados em capital; e aqueles outros, que mesmo podendo ser avaliados indiretamente por equivalência financeira, de fato não podem ser convertidos a formas rentáveis. A formação de patrimônio das famílias tem um significado macroeconômico, dado pelo fato de que a renovação e expansão do estoque habitacional tornou-se uma parte essencial do acelerador das economias industriais, que essa ação individual das famílias constitui um componente essencial da referência de mercado das empresas. 3.5.

A formação de capital familiar

A macro-economia ortodoxa simplifica os papéis dos agentes da economia, ao considerar produtores e consumidores como diferentes personagens, assim como ao considerar que a formação de capital é exclusiva das empresas; ou ainda, que a formação de capital das empresas transcorre separada dos movimentos da distribuição da renda entre famílias. Na análise urbana essas simplificações são inaceitáveis. Primeiro, porque a análise da atividade das famílias mostra que sua formação de patrimônio enseja a operacionalização deste ativo como capital. Segundo, porque a gestão do capital por famílias e pessoas interage com a gestão do capital das empresas, de diversos modos que são essenciais na formação do capital bancário e nas operações de crédito praticadas diretamente por empresas. Com a industrialização e a concentração de serviços nas cidades de maior porte, o manejo das questões de financiamento na urbanização mudaram rapidamente, aprofundando-se as diferenças entre a esfera de financiamento entre pessoas e entre empresas e pessoas informalmente, e a esfera do financiamento formalmente organizado. Ao mesmo tempo, aumentou a capilaridade do financiamento bancário, que passou a penetrar na esfera da gestão doméstica do trabalho. Com a grande maleabilidade do sistema financeiro hoje, a formação de capital das famílias e das pessoas inicia-se sempre como uma operação de poupança em mercados organizados segundo políticas públicas. Mas é uma operação que está sempre ligada ao tema da aquisição de bens imóveis e de uso durável vinculados à habitação. As possibilidades reais das pessoas, de obter rendimentos financeiros comparáveis aos das empresas são remotas, entre outras razões, porque os rendimentos de cada unidade de dinheiro dependem da massa de dinheiro aplicado, e porque as empresas detêm mais informações que as pessoas sobre as oportunidades de aplicação. Com a valorização dos terrenos das cidades, as famílias são levadas a ver seu patrimônio como mercadoria, não só como fonte de renda mas como objeto de venda, de possível conversão a ativos bancários definíveis que são, efetivamente,


53 capital. Assim, antes mesmo de considerar se o capital acumulado por uma família toma a forma de empresa, é fundamental sua transformação em ativos relativamente mais líquidos, e cuja rentabilidade se torna plenamente comparável com a de empresas. Esse, certamente, é um modo pelo qual uma família se torna capitalista. Mas a partir daí é fundamental o tempo durante o qual ela consegue manter essa posição, se se consolida como detentora de capital, ou se se trata de uma situação transitória. Como a formação de capital no plano das famílias não pode ser isolado da formação de capital em geral em cada cidade, este tema terá que ser revisto, quando se considere o processo urbano de acumulação em seu conjunto. 3.5.

Os micro-ambiente urbanos

Pessoas e famílias movem-se em circuitos de relacionamento em cada cidade, que muitas vezes estão articulados com circuitos equivalentes em outras cidades. Mas o horizonte de percepção que os diversos grupos têm da cidade cidade, seu acesso ao que ela tem, como atualidade e como experiência acumulada, é desigual; e reflete seu nível de renda, seu tempo de permanência na cidade, seu nível de educação. Além disso, cada cidade está marcada por espaços de influência decorrentes da estruturação urbana de poder, formalizado e não formalizado, aparente e não aparente, onde estão, interpenetradas, as influências do poder econômico organizado; o de estruturas estamentais, como religiosas, militares e de lazer; e o da própria tradição urbana, representada pela permanência da moradia e a estabilização de formas de relacionamento e de consumo. Há diferenças entre moradores permanentes, moradores temporários e transientes, assim como há diferenças entre as formas de inserção urbana dos grupos de maior e menor renda. Tudo isso se traduz na determinação de horizontes de participação na cidade, com determinados contornos em tempo e espaço. A desigualdade social é realimentada nesses horizontes, formando um quadro de discriminação que, de um lado registra pressões para a consolidação da desigualdade; e de outro lado, absorve as pressões consequentes da mobilidade social, da luta dos grupos discriminados para ampliar sua participação no conjunto da cidade. Assim, em cada cidade, em qualquer momento, há redes de comunicação e de solidariedade, que demarcam quanto e como podem os moradores da cidade contar com respaldo de outros; e quanto e como se identificam com outros, em suas reivindicações para seu consumo. As possibilidades de conseguir trabalho e moradia estão ligadas à inserção social de cada um; e ao modo como essa inserção


54 no meio social urbano corresponde a localizações físicas, a lugares na cidade, em que as pessoas moram e trabalham. As cidades grandes das sociedades mais desiguais revelam-se particularmente segmentadas - e é pouco relevante tentar compara-las com cidades grandes de outros países - com a conseqüência de que seus moradores têm participações demarcadas, limitadas no âmbito de cada cidade. O meio urbano revela-se constituído de participações desiguais, que também progridem desigualmente; e torna-se necessário, adiante, avaliar se as transformações em curso aprofundam ou minoram essas diferenças, e se elas parecem ser transitórias ou permanentes. Hoje, o processo de urbanização mostra, claramente, um aumento das diferenças qualitativas entre as partes mais capitalizadas e as menos capitalizadas das cidades, em que se destacam diferenças na variedade e na qualidade dos serviços disponíveis, na incorporação e na manutenção de equipamento urbano e diferenças no tratamento do ambiente físico. Em conseqüência disso, aprofundamse as diferenças no ambiente urbano construído, que finalmente indicam a qualidade da vida dos moradores das cidades.


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6. 6.1.

Os sistemas de infra-estrutura e de utilidade pública As cidades como sistemas e os sistemas de cidades

Há uma divisão fundamental entre as cidades das sociedades pré industriais e as das sociedades industriais, que se revela em dois aspectos dentre outros, que são a realização de serviços de utilidade pública mediante sistemas integrados; e a unificação dos mecanismos de formação de valor, sobre a base da produção de espaços urbanizados. A criação de sistemas de prestação de serviços de utilidade pública em grande escala estabeleceu padrões de consumo eqüivalentes, ao tempo em que resultou em sistemas de custos, que podem ser geridos por um grande capital, público ou privado. Esses sistemas - água, esgotos, energia elétrica, transportes coletivos, manejo de lixo - representam conjuntos indivisíveis de investimentos, que operam sobre estruturas físicas permanentes, que passam a regular o assentamento humano das cidades. As tecnologias de cada um deles têm mudado ao longo do tempo, mas suas vias têm continuado as mesmas, com muitos acréscimos, mas com poucas substituições significativas. Essa continuidade do componente de capital fixo é um fator de previsibilidade de custos, que permite tomar os custos da infra-estrutura como referência dos investimentos diretos na produção de bens e serviços. Para isso, pode-se trabalhar com coeficientes representativos da proporção de capital fixo numa progressão de aplicações de capital de cada investimento, comparando investimentos com rentabilidade semelhante e investimentos com diferente sensibilidade à demanda urbana. 12 A unificação do mercado urbano faz-se sobre essa comparabilidade de custos dos serviços, em que em cada cidade passam a distinguir-se as áreas plenamente cobertas por todos eles, as áreas desigualmente cobertas e as áreas insuficientemente cobertas, com escalas de custos de cada uma delas, descontínuas para a cidade em seu conjunto, correspondendo a tendências de ampliar a cobertura e a qualidade dos serviços, ou a tendências para retração e perda de qualidade dos sistemas. Ambas tendências decorrem da relação entre os movimentos da renda dos moradores da cidade e os movimentos dos preços a que esses serviços são ofertados.

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Trata-se de diferenciar entre os investimentos que dependem da demanda da cidade onde estão, para se viabilizarem; e investimentos que são indiferentes à demanda de sua cidade sede. É uma distinção que se aplica no momento inicial dos investimentos e ao longo de sua vida útil, admitindo-se que a importância das áreas iniciais de mercado pode mudar radicalmente durante a vida útil do empreendimento.


56 Historicamente, a oferta dos serviços de utilidade pública tem sido afetada pelas pressões de interesses organizados, geralmente no sentido de obter transferências de recursos através do Estado, para garantir determinados perfis de atendimento; assim como tem sido objeto de um discurso sobre a oferta de serviços, que revela a diferença ntre o perfil econômico e o perfil político do problema. As correspondentes tensões entre interesses, em torno da gestão das cidades. Obter serviços é ganhar uma renda indireta, que reverte na capacidade de ganhar renda direta e na de acumular capital através da formação de capital imobiliário. O controle da oferta dos serviços é um poder de intervenção na formação de renda, que tem resultado em algumas das principais bases da formação de monopólios, criando oportunidades diferenciadas para grandes e pequenos capitais. Em seu conjunto, os sistemas de serviços de utilidade pública foram um piso de custos de urbanização de terrenos e de preços de terrenos, pelos quais se chega à integração de um mercado de espaços urbanizados. A análise urbana tem, necessariamente, que tratar com esse movimento de unificação de mercado e com seu papel na formação do capital imobiliário. 6.2.

Tendências das cidades sub-industrializadas

A crescente capilaridade dos sistemas de serviços de utilidade pública, bem como a informatização das comunicações, fazem com que as cidades funcionem em redes integradas, pelas quais a formação urbana de valor passa a ficar regulada pela produção e pela operação de redes de infra-estrutura. Além disso, deram novos significados à informação e por conseguinte, à posição ocupada pelas localidades no contexto de cada cidade. 13 Nas metrópoles e em cidades de porte médio, surgiram separações entre as partes da cidade, pelas quais o crescimento urbano deu lugar a verdadeiras cidades inclusas na cidade. Tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro como em Salvador, surgiram espaços planejados, geralmente residenciais, dirigidos para oferecer diferenciação social junto com padrões de consumo físico. A extensão e a padronização dos sistemas de transportes, sua articulação cada vez mais estreita uns com os outros; e para que o acesso a comunicação e a velocidade das comunicações se tornassem os principais fatores de desigualdade (Virilio, 1993). Em cada cidade, os diversos grupos vivem com diferentes velocidades de tempo; e isso se reflete no modo como se repõem e selecionam os

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A expressão localidade é usada aqui para designar a variedade de espaços sociais organizados de pequena escala das cidades, que contribuem para a sobrevivência das famílias e para sua renda.


57 equipamentos de cada cidade, assim como no modo como se planejam as soluções habitacionais. Isso significa uma ruptura com os padrões históricos da urbanização industrial. No passado, o transporte ferroviário consolidou linhas troncais e determinou as linhas de acesso, determinando um perfil de valorização do território, em que os aspectos interurbanos penetram na determinação dos custos urbanos. A implantação de sistemas de transporte rápido deu novas qualificações ao mesmo padrão tecnológico, valorizando sempre a relação entre pontos terminais, antes que à capilaridade local; e estabelecendo condicionamentos para as comunicações locais, intra-bairros ou numa mesma pequena vizinhança. No mapa das grandes cidades brasileiras, ao longo das décadas de 80e 90, multiplicaram-se as obras que modificam as ligações entre grandes bairros, alterando a formação do capital imobiliário. Isso aconteceu no Rio de Janeiro com a Linha Amarela e em Salvador, com a ligação entre a orla litorânea e a orla da Baía de Todos os Santos. O transporte rodoviário aproximou maior número de pontos uns com os outros, rompendo aquela hierarquização de espaços induzida pelas ferrovias, valorizando mais a opção de transporte privado. Cada cidade tornou-se um conjunto mais interdependente, ao mesmo tempo mais dependente desses serviços que as articulam. Nesse sentido, se não em outros, cada uma delas tornou-se um sistema historicamente construído, que se reproduz criando pontos de estabilidade e transferindo desigualdades. O conceito de sistema, e seu desenvolvimento aplicado à análise econômica e regional, tem uma trajetória que convém rever, como antecedente para um tratamento organizado da oferta de serviços urbanos básicos. As propostas de análise sistêmica lançadas por von Bertalanffy (1963) e o tratamento estruturalista de André Marchal (1958)dos aspectos econômicos da questão, demarcam um interesse pelo sistema como tal, certamente muito esclarecedor de possibilidades operacionais, mas pouco atento ao aspecto genético dos sistemas . A análise econômica de umbrais voltou-se mais para a mecânica das inter-relações entre um conjunto dado de sistemas, apresentando-se, sem dúvida, como uma proposta unicamente operativa de análise urbana . Mas, para explicar a urbanização a partir de uma visão sistêmica, é preciso oferecer elementos válidos para ligar a análise de um conjunto de cidades com a de cada cidade; e para revelar o potencial genético das inter-relações entre sistemas numa cidade. Noutras palavras, para distinguir sistemas que são produtos de um processo formativo de índole social, ou sistemas que são construções abstratas, tomadas apenas por sua forma atual.


58 As cidades pré industriais foram organizadas por princípios de poder, teocrático ou militar, que sempre foram seletivos, na atribuição de espaços urbanizados e nos acessos aos espaços privilegiados dos poderosos. A novidade das cidades modernas é que o acesso a espaços qualificados passou a ser econômico, portanto, ampliando as margens de mobilidade social da formação de capital urbano. As cidades pré industriais contiveram sistemas organizados a partir do comércio, com menos equipamento permanente e maior mobilidade dos capitais, que lhes permmitiu trocar de mercadorias ou reorganizar-se, para operar em diferentes escalas de mercado. Contiveram tratamento sistemático do abastecimento de alimentos e pelo de distribuição de água, mas não estavam integralmente articuladas como sistemas. Com a industrialização, industrializaram-se os serviços, públicos e privados; surgiram atividades baseadas, justamente, na distribuição sistemática dos produtos de atividades que aparecem como prestação de serviços, mas que induzem e encobrem atividades industriais. As cidades passaram a ser sistemas estuturados por equipamentos permanentes o advento da industrialização; e tornaram-se parte de grandes sistemas de relações econômicas, políticas e culturais, aparentemente irreversíveis. A nova visão sistêmica da questão urbana fundamentou-se na compreensão das diversas condições de complexidade do meio urbano, remetendo-se às formas de articulação dos equipamentos com perfis específicos de qualificação dos recursos humanos. O uso de equipamentos tais como trens subterrâneos urbanos e o atendimento automatizado de bancos depende de níveis de qualificação da população urbana . Como se trata de trabalhar com cidades individualmente consideradas, é preciso levar em conta as peculiaridades dos sistemas que interagem em cada uma delas. O enfoque estruturalista de André Marchal(1959) tem uma grande vantagem sobre as análises de polos e centros de crescimento, na forma original de Perroux (1956) e na revisão de Hermansen (1972) , porque capta o sentido de totalidade da cidade sem perder o de sua diversidade; e atribui aos sistemas de infra-estrutura um papel que transcende o de sua própria eficiência, para chegar ao sentido estratégico de condução indireta da expansão urbana. A rigor, a compreensão dos sistemas de infra-estrutura como de estruturas de enlaçamento - na expressão de Marchal - e dinamização de sistemas pertence ao âmbito da análise regional. Mas qual a verdadeira linha divisória entre o plano regional e o urbano, quando se levam em conta as relações entre cidades e as relações que só se concretizam numa cidade mediante relações com outras cidades? A proposta de analisar o dinamismo econômico da urbanização leva, necessariamente, a trabalhar com relações entre sistemas de diferentes dimensões, onde o capital rota com diferentes velocidades e onde o trabalho também é


59 engajado em diferentes formas contratuais. A função geral de infra-estrutura significa simplesmente que os equipamentos são organizados em sistemas, cuja finalidade é apoiar operacionalmente os produtores e os consumidores. Os problemas práticos da análise econômica da urbanização decorrem de que ela precisa estabelecer referências práticas dos sistemas, que não sejam contraditórias com a explicação dos fenômenos que ficam fora deles, isto é, de chegar a uma unificação da análise de custos consistente com a tarefa principal de acompanhar a mudança urbana. O trabalho precursor de André Marchal distingue o que ele chama de estruturas de enquadramento, que de fato desenvolvem-se como sistemas que intermediam na reprodução das grandes estruturas de produção e de consumo. É a função da infra-estrutura, cujas dimensão, reprodução e transformação regulam o ritmo de expansão das estruturas de produção e de consumo. Assim, a explicação do funcionamento da infra-estrutura, indiretamente, é essencial para explicar os movimentos e as restrições desses dois campos. 6.3.

Custos, preços, renda dos usuários

Cada sistema opera com uma composição atual de custos, determinada pelos seguintes elementos: • • •

a progressão da incorporação de seus componentes de capital; o ajuste técnico dos componentes de capital num determinado padrão operacional; a escala operacional inicial; e os custos do trabalho necessário, respectivamente, para operar o sistema em sua escala mínima e nos patamares de tamanho necessários para que ele opere articulado com os demais.

Com isto, cada cidade opera em escalas de tamanho, que progridem em deslocamentos descontínuos, onde os componentes de mais alto custo e menos divisíveis constituem restrições para os componentes de menor custo e mais divisíveis. Por exemplo, os sistemas de adução de água potável e de esgotamento sanitário são sempre referências dos sistemas de segurança pública e não ao contrário. A composição de custos de cada cidade resulta de um processo de expansão da capacidade instalada e de uma progressão de usos do serviço oferecido pelo sistema, em que a demanda total do serviço resulta de diferentes intensidades de demanda, distribuída por níveis de renda dos usuários. A paridade dessas duas progressões traduz-se na relação entre formação de capital e criação de emprego, que em definitiva revela o desempenho de cada sistema econômico em termos de acumulação de capital e distribuição da renda.


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O acompanhamento desse tema leva a examinar primeiro aqueles problemas básicos de custos que situam a rentabilidade dos sistemas de produção num dado horizonte de mercado; e depois, leva a ver os problemas de custos que se incorporam em cada cidade, decorrentes de mudanças de escala, tal como acontece com os custos de água, e da inclusão de novos custos, consequentes do aumento de complexidade da cidade, tal como os custos dos sistemas de controle de tráfego. A observação empírica mostra que a composição de custos desloca-se de diferentes modos e entre intervalos desiguais de um a outro sistema, com a particularidade de que sistemas centralmente comandados, como os de água e energia, podem funcionar com previsões a médio prazo de custos à escala do sistema em seu conjunto, enquanto outros, como os de transportes, que operam com sub-sistemas e com módulos, têm que absorver variações imprevistas de escala. As diferenças entre os sistemas acumulam-se quando se trata de investimentos e de amortizações, já que os diversos sistemas operam com horizontes de tempo próprios, ditados pela composição de seu capital. Com a industrialização dos serviços urbanos, e a conseqüente tendência a criar sistemas que cubram todo o território de uma cidade, criaram-se sistemas compostos de sub-conjuntos de capital datados de diferentes períodos, cujo uso conjunto supõe sempre uma adaptação a um padrão atual de uso. Esses aspectos técnicos às vezes não são evidentes, mas são decisivos na determinação das margens de liberdade com que se pode planejar cada cidade. A resistência de estradas e pontes a mudanças no peso dos veículos e na intensidade do tráfego, especificações de portos e aeroportos, capacidade dos sistemas de adução de água, obrigam a reestruturar grandes sistemas, geralmente com custos muito superiores aos dos setores afetados por mudança de padrão e intensidade de serviços. Essa complexidade do capital incorporado, a virtual impossibilidade de controlar a duração de seus componentes, restringe as possibilidades de aplicar os métodos convencionais de análise financeira para acompanhar o desempenho dos sistemas de infra-estrutura. Não tem sentido prático algum falar de taxa interna de retorno calculada sobre a duração prevista de barragens hidrelétricas, que são obras virtualmente irreversíveis, nem de trabalhar com hipóteses de vida útil de estradas, que na prática têm que ser renovadas sobre o mesmo traçado . Os custos dos sistemas de infra-estrutura refletem uma determinada escala de atendimento de um serviço e uma perspectiva de alteração desse serviço, sempre que a necessidade social que o determina também permanece. Não há


61 como conceber uma cidade que não precise de água e saneamento; e mesmo que a concepção de transporte se modifique, a cidade implica, sempre, em algum custo de transporte. Assim, trata-se de comparar condições de atendimento do serviço; e considerar seu significado para os consumidores, em termos de níveis de vida; e para os produtores, em termos de custos indiretos de produção. A partir daí, é inevitável discutir interesses - dos que se identificam com o consumo e dos que se identificam com a produção- em torno da cobertura de cada sistema, da intensidade do serviço e de sua qualidade. As concepções de sistema resultam de opções de política, que implicam, necessariamente, em afetar o padrão de distribuição da renda e representam um balanço de poder e uma interpretação de equidade do sistema. Mas ao aceitar que as cidades tendem, de modo generalizado, a funcionar nos moldes de cidades da industrialização, aceita-se que os objetivos e os padrões dos serviços devem ser semelhantes. Para atender às necessidades sociais, cada sistema de infra-estrutura deve ser suficientemente amplo para dar cobertura ao máximo de população possível. Mas para chegar a uma definição previsível de custos, portanto, para ser financeiramente administrável, tem que operar com determinadas escalas de tamanho, compatíveis com horizontes temporais e espaciais de investimento. Na prática, só é possível estabelecer composições de custos para sistemas de transportes urbanos ou para sistemas de água potável em relação com determinados tamanhos do seu componente de capital fixo; e através dele, das correspondentes escalas de capital variável. Assim, os sistemas de infra-estrutura têm que ser planejados para crescer de determinados modos, em determinados períodos. Assim, há diferenças essenciais entre a perspectiva macro de planejamento do governo, a perspectiva de administração operacional de cada serviço, e a dos seus usuários. Essas diferenças de enfoque traduzem-se no modo como se encara a reposição do capital de cada sistema, portanto, de como se estabelecem políticas de preços dos serviços. Assim, os sistemas de infra-estrutura refletem a trajetória da capitalização das cidades, que pode ser indicada pelas relações entre moradia e trabalho, entre os demandantes em geral e os detentores de renda em particular, traduzindo-se no perfil da demanda econômica e no da representatividade política. Os sistemas são projetados para aproveitar do melhor modo possível os investimentos organizados para universos urbanos que, por definição, se expandem. Quase nunca estão preparados para tratar com casos em que a demanda urbana diminui, seja por diminuição do número dos moradores, seja por redução de sua renda. Todos eles devem atrair capitais que poderiam, alternativamente, ser aplicados na produção de bens; e devem demonstrar que são vantajosos, apesar de que seus retornos em princípio são incertos. É um raciocínio


62 que escapa à lógica da reprodução privada do capital. Como grande parte dos usuários não tem renda suficiente para pagar pelos serviços aos seus custos reais atualizados sobre um horizonte fixo de duração, a rentabilidade desses investimentos só se justifica porque se admite a possibilidade de que eles funcionem num horizonte de tempo em expansão, com uma demanda que deverá diminuir. Noutras palavras, a manutenção dos sistemas pressupõe cidades que continuarão a crescer, com perfis de distribuição da renda não mais concentrados que os atuais. As modificações no perfil da distribuição da renda traduzem-se em alterações da composição da demanda, portanto, nas previsões de rentabilidade dos sistemas. Há, aqui, portanto, uma questão de política a esclarecer. O crescimento das cidades tem se feito com números crescentes de pessoas sem condições de pagar pelos serviços aos preços a que eles são oferecidos; e cada investimento neles deve ser avaliado em função de perspectivas de retorno do momento em que eles são realizados e jamais sobre a duração dos sistemas. Há, portanto, uma contradição entre os movimentos de expansão das cidades e a consecução de recursos para atende-los. Finalmente, tratando-se de serviços cuja justificativa social é que eles sejam estendidos a todos os habitantes de cada cidade, os preços - no caso tarifas - têm dois significados: refletem a relação oferta-demanda e têm um significado social, no que dividem a sociedade urbana entre os que podem e os que não podem pagar. Há aí um aspecto genérico de justiça social pelo que a relação preçossalários representa acesso a formas de prestação de serviços que não prevêm alternativa fora dos sistemas integrados: os excluídos dos sistemas tornam-se excluídos das cidades. Além disso, há um aspecto de viabilidade econômica e eficiência técnica dos sistemas, já que em seu modus operandi não há perfeita substutibilidade entre um pequeno número de usuários que paguem tarifas elevadas e um grande número que pague tarifas reduzidas. O aspecto de justiça social torna-se mais complexo, à medida que as cidades abrigam grupos mais numerosos de pessoas que não se situam com facilidade em nenhuma das categorias formalmente reconhecidas da relação capital/trabalho, que também há maior número de situações de famílias cuja renda se forma de uma pluralidade de fontes, que as põe em diferentes condições de usar os sistemas de infra-estrutura, tanto do lado da produção como do consumo. As grandes cidades tornam-se os grandes centros de recepção do crescimento demográfico; e nesta condição têm que dar resposta aos incrementos da demanda, decorrentes do aumento proporcional de jovens - portanto de novos domicílios de consumidores na composição da demanda .


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A observação das experiências de urbanização nos países desigualmente industrializados indica que o efeito do crescimento demográfico e das mudanças de composição da população projeta-se em uma correspondente e proporcional diminuição do número dos moradores capazes de pagar pelos serviços, portanto, de uma tendência à insolvência desses sistemas em mercado. A crise dos sistemas de infra-estrutura aparece, primeiro, como uma insolvência operacional, mas logo se revela como uma impossibilidade de repor equipamento ao ritmo necessário para acompanhar o crescimento das necessidades. 6.4.

O balanço urbano de serviços e os sistemas em cada cidade

Na urbanização de hoje, a cobertura dos serviços de infra-estrutura requer uma disponibilidade de capital não inferior à demanda de cada cidade. Mas, ao reconhecer que a maioria delas abriga populações incapazes de pagar pelos serviços, não há como ignorar que esses sistemas constituem uma fonte de despesa que não se resolve integralmente em mercado. Significa que os déficit dos sistemas têm que ser considerados como custos sociais a serem absorvidos pela sociedade em seu conjunto, com uma perspectiva de redistribuição da renda. No que seja possível chegar a um quadro unificado de custos, o tratamento da prestação dos serviços urbanos básicos pode ser objeto de uma política unificada, portanto, simplificada uma cidade ou para um conjunto de cidades. Esse raciocínio tem sido aplicado à generalidade dos serviços urbanos, com variáveis graus de precisão. Mas a situação das cidades contemporâneas mostra a necessidade de reconhecer que se trabalha com uma referência de atendimento parcial de cada um dos sistemas, bem como com um quadro variável de regressividade na distribuição social dos custos operacionais de cada um deles. As possibilidades práticas de reversão de tendências dependem de fatores demográficos e sociais no sentido mais amplo do termo, compreendendo a decisão política de faze-lo. Realisticamente, os déficit acumulados na maior parte das cidades, junto com o crescimento de sua população, tornam necessário admitir que uma reversão de tendências dos déficit urbanos de serviços está além de qualquer política a médio prazo e para qualquer um deles em particular. Os serviços são desiguais em sua cobertura e em sua qualidade. Sinteticamente, são insuficientes e inadequados. A insuficiência é diagnosticada pelas análises empíricas. A inadequação, entretanto, envolve elementos muito mais complexos, ligados a concepções do consumo futuro, e, especialmente, de uma gradual e progressiva preparação da população para conviver em cidades. Em outras palavras, a adequação dos serviços está ligada a uma questão fundamental de educação urbana integral: a conversão de pessoas de origem rural, ou


64 submetidas a carências agudas, a modos de convivência urbana mais civilizados e complexos. Torna-se, portanto, necessário considerar as formas não integradas de prestação de serviços, desde aquelas que integram as soluções individuais altamente capitalizadas até as que correspondem às estratégias de sobrevivência da população de baixa renda. Isto significa trabalhar com um balanço urbano de serviços, em que as soluções das necessidades básicas, integradas e não integradas, sejam postas, lado a lado, como parcialmente interdependentes e parcialmente competitivas. O balanço urbano de serviços deve ser desenvolvido gradualmente, a partir de elementos de informação desiguais, com um componente mais confiável, geralmente o oferecido pelos sistemas integrados; por componentes que representem o atendimento realizado em forma individualizada no mercado e pelo atendimento doméstico. Em itens como distribuição de água, drenagem e saneamento, há uma elevada interdependência, que leva a trata-los como um bloco tecnológico. Em outros itens, como os modos de transporte, acontece algo equivalente, com o detalhe adicional de ter-se que considerar aqui o deslocamento das pessoas a pé, seja, o que se pode caracterizar como a transitabilidade das cidades, uma categoria equivalente à de habitabilidade, que terá em todo caso que ser examinada, como referencial dos resultados materais da urbanização. O balanço urbano de serviços distingue ações coletivas e individuais em cada um deles, utilizando indicadores colaterais de nível de atendimento, tais como número de litros de água por habitante, consumo familiar de energia elétrica etc. Mas esses indicadores apenas exprimem parcialmente a qualidade do atendimento, já que uma oferta de um serviço, como energia elétrica, serve igualmente para diferentes finalidades de consumo e de produção. Por isto, devem ser tomados como indicativos por antecipação do que se pode obter como consumo ou como apoio à produção. Esse balanço de serviços, por definição, é uma consolidação da situação operacional dos serviços urbanos básicos, tais como água, drenagem, lixo, energia e transportes, que por isto contém informações pontuais sobre processos que se desenvolvem diferentemente, como a formação de um sistema integrado de captação, adução, distribuição de água potável e drenagem de águas pluviais; e um sistema integrado de transporte rodoviário. Por isto, tal como acontece com os balanços energéticos e do ambiente, a representatividade do balanço urbano de serviços depende de que ele esteja apoiado numa análise específica do funcionamento dos sistemas integrados, com vistas a identificar seus custos operativos.


65 Nesse último sentido, cabem algumas observações. Os sistemas de infraestrutura tornaram-se um referencial essencial da análise econômica urbana, por oferecerem a possibilidade de organizar uma parte majoritária da demanda, revelando as composições de custos sobre as quais decidir a extensão de cada sistema e as tecnologias a serem usadas neles. Isso indica as contingências em que deve ser colocada a operação dos sistemas; e leva a observar dois princípios básicos na condução de cada sistema: a implantação de cada sistema responde a uma espacialidade da demanda, onde por sua vez a distribuição social da renda e o padrão de localização de unidades de produção e o de habitações interagem em cada cidade; e a renovação de cada sistema depende de previsões de demanda. Os movimentos inesperados de demanda só são registrados a posteriori. Os sistemas de infra-estrutura formam-se a partir da identificação de soluções permanentes de problemas de consumo coletivo; e convertem-se num capital social, cujos usos condicionam os usos dos capitais aplicados na produção. Mas a sustentação atual desses sistemas, com seus padrões atuais de atendimento, pressupõe um ritmo constante de reposições e modificações, em que cada operação de manutenção tem, praticamente, uma data; e em que cada uma delas funciona como veículo de modificações técnicas. Assim, os sistemas e os componentes de sistemas que sofrem desgaste mais rápido são, por definição, os que passam renovações técnicas também mais freqüentes. Hoje, as cidades tendem a ser geridas mediante sistemas cada vez mais abrangentes, que impõem sua tecnologia; e que se tornam referências essenciais na determinação dos regimes de custos com que se localizam novos investimentos. As interfaces desses sistemas tornam-se essenciais e passam a influir na condução de cada sistema. Com isso, estabelecem-se limites em relação com todos aqueles que não têm acesso aos sistemas, sejam eles moradores permanentes ou pessoas em trânsito. A abrangência dos sistemas torna-se indicativa de renda, demarcatória de status e de acesso aos benefícios da mudança. No relativo ao funcionamento dos sistemas, há algumas regras de proporcionalidade e de diferenciação, que afetam a formação de cada um deles, bem como as inter-relações entre a manutenção e a expansão de cada um deles. É o que levou, em algum momento, a um desenvolvimento teórico da análise dos umbrais de tamanho dos sistemas, que é um modo de ligar a proporcionalidade entre os sistemas de infra-estrutura em determinados momentos da trajetória de cada um deles com suas características atuais. E como essa noção de umbrais indica a composição do capital em cada sistema, ela pressupõe também as condições de desgaste de material, portanto, a imobilização de capital em estoque para manutenção. Como os investimentos em cada um dos sistemas estão subordinados a diferentes condições de indivisibilidade do capital - determinadas pelas


66 tecnologias que usam - a regulação dos tempos desses investimentos tem um efeito cumulativo, que funciona como indicador da taxa de formação de capital e do perfil do emprego. Como, ainda, a maior parte desses sistemas funciona sobre a base de grandes componentes de capital fixo de longa duração, ou raramente substituíveis, tais como as redes subterrâneas de esgotos, ou como as vias para os sistemas de transportes, o movimento cíclico dos investimentos para reposição de equipamento fica concentrado nos componentes de capital de menor duração, mesmo quando incluído na categoria geral de capital fixo, como são os veículos de transporte coletivo. Além disso, a substutibilidade dos equipamentos oferece outra dificuldade fundamental para a análise econômica, decorrente de que grande parte dos componentes dos sistemas tem uma duração maior que os elementos constitutivos da produção industrial, e, por extensão, muito mais longa que os dados constitutivos dos sistemas de informação estatística em que os investimentos se apoiam. Isto significa que as análises de custos e de rentabilidade dos sistemas de infra-estrutura urbana, elaboradas para informar decisões sobre investimentos de diferente duração têm, incorporada, uma tendenciosidade que resulta em ter uma percepção progressivamente menos precisa do significado econômico de investimentos de maior duração; e em enfrentar dificuldades progressivamente crescentes para apreciar o significado das interdependências entre os diversos tipos de investimento ao longo de sua vida útil e da vida útil dos sistemas. Daí, a eficiência de cada sistema varia ao longo do tempo; e em cada momento ela depende de combinações de investimento que utiliza, o que estabelece um horizonte temporal de referência para cada momento. Assim, um aspecto específico dessa análise é que há sempre uma margem variável de incerteza no relativo às perspectivas de eficiência do sistema, comparado com outras possibilidades de atendimento da necessidade que ele se propõe atender. Por extensão, há uma diferença entre a confiabilidade da análise desses sistemas a curto, a médio e a longo prazo. Considerando o funcionamento dos sistemas em termos dos lapsos em que os investimentos se completam, cabe considerar que na análise urbana são necessárias regras de proporcionalidade entre os investimentos e de diferenciação das funções dos sistemas de infra-estrutura, que se traduzem em padrões de continuidade e de mudança de cada um deles, que portanto são referências das seqüências de investimento necessárias para mante-los operacionais. Em princípio, cabe identificar regras de proporcionalidade entre os componentes centrais e os periféricos de capital fixo e de capital variável em cada sistema de produção; regras de proporcionalidade entre as dimensões dos diversos sistemas numa mesma cidade, que revelam a composição da demanda urbana ; e


67 regras de desigualdade entre os sistemas, que refletem as diferenças de intensidade e de velocidade no uso de cada sistema. As proporcionalidades e as desigualdades indicam escalas e regimes de operação de cada sistema de infra-estrutura, indicando, portanto, como se realizam os ajustes entre os diferentes sistemas em cada cidade. Mesmo reconhecendo que esses ajustes se fazem indiretamente, mediante os preços relativos de seus serviços, é necessário estabelecer que esses conjuntos de preços se estabelecem a partir dos preços daqueles sistemas - como o de distribuição de água - que são indispensáveis a cada cidade, que por esta razão funcionam como referências dos demais sistemas. 6.5.

Infra-estrutura e espaço urbano

Os sistemas de infra-estrutura de serviços operam sempre com funções de coleta e distribuição, que implicam num dado traçado e na conseqüente ocupação de um espaço em cada cidade. Esse espaço varia ao longo do tempo, em conjunto com as condições sociais e técnicas em que se realizam, respectivamente, a coleta e a distribuição. Os sistemas, portanto, têm uma espacialidade, com a estruturação de um capital fixo, cuja implantação e cuja manutenção têm custos com escalas definidas. Em seu conjunto, eles constituem redes de operações, que se traduzem numa circularidade de usos de energia e de absorção de espaço físico, que pode ser representada sinteticamente tal como no diagrama a seguir. Supostamente, a operação continuada dos sistemas leva a alterações dos espaços urbanos, primeiro na medida em que a reprodução dos sistemas significa uma continuidade de investimentos, seja, uma aceleração de despesas que se prolonga no tempo; e segundo, na medida em que a aceleração constante de despesas se transforma na indução de modificações mais profundas na composição do capital. Estes efeitos mediatos traduzem-se, finalmente, no perfil do povoamento, seja, no modo como a solução dos problemas de moradia é adaptada às soluções que vêm sendo adotadas para os problemas de implantação e manutenção de vias públicas. Sobre essa base, forma-se um sistema que realimenta a valorização do capital imobiliário. Desses elementos infere-se que há um problema básico de política urbana, a ser resolvido na composição de interesses, entre poderes nacionais e locais e entre gestão pública e privada do capital, que consiste em manter uma proporcionalidade dos investimentos em infra-estrutura e na produção de bens que satisfaça os dois requisitos de manter os níveis de oferta de serviços necessários para sustentar a taxa de crescimento do produto e os níveis de consumo; e manter níveis mínimos de investimento em cada sistema, suficientes para manter os correspondentes níveis de qualidade.


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A magnitude desse problema é percebida a partir da diferença entre os resultados operacionais dos sistemas - receitas vs. custos operacionais e de reposição - e suas necessidades de investimentos adicionais para manter seus padrões de qualidade. Admitindo que a sustentação dos níveis de qualidade dos sistemas é obtida com um ritmo de renovação de capital suficiente para compensar defasagens tecnológicas, cabe supor que os sistemas requerem novas aplicações mínimas suficientes para absorver o aumento de necessidades proporcional ao incremento demográfico e ao entendimento de quais sejam as necessidades básicas da população urbana. Esse circuito se fortalece ao intensificar-se a demanda sobre um determinado tamanho físico de cidade, isto é, quando seu crescimento não supera o crescimento da estrutura ofertante de serviços. Esta última pode ser identificada com aquela concentração de efeitos acumulados da expansão territorial das cidades, que em essência implica em pressões sobre as redes de coleta e distribuição. Mas, ao aumentar mais a quantidade de terra urbanizada que a acumulação de recursos, há também um custo adicional para prover a energia necessária para acionar a prestação de serviços. A expansão dos sistemas significa a imobilização de terras urbanizadas, com a conseqüente formação de restrições de custos para outros usos, seja, a formação de efeitos em cadeia, em que qualquer reversão de tendência incorre nos custos de interromper uma seqüência de investimentos . E como as alterações de tendência estão ligadas a uma questão tecnológica, a questão subsequente é que os sistemas possam operar indefinidamente com um mesmo conjunto de técnicas, ou que sejam levados, necessariamente, a substituir técnicas. A segunda alternativa é mais provável, pela razão mesmo de que o aumento de população altere os usos do solo urbanizado. A renovação de técnicas entra nesse quadro pelo modo como ela afeta a renovação de capital fixo, compreendendo equipamentos que se desgastam integralmente e equipamentos renováveis, tais como máquinas e vias públicas; e na forma de renovação e substituição da qualificação dos trabalhadores e dos demais consumidores, tal como no caso dos transportes. Mas não se pode omitir que grande parte da renovação de capital fixo não tem inovação tecnológica alguma; e simplesmente transfere custos aos usuários, com a ajuda dessa dificuldade de reduzir os conjuntos de capital a prazos realistas.. As grandes cidades são exemplos de mercados controlados mediante concessões em forma oligopolística. Nelas, a substituição de técnicas está sempre ligada à valorização de terras urbanas, com a conseqüência final de uma pre- determinação de custos fixos para as atividades produtivas localizadas nas cidades.


69 Observa-se que os movimentos de renovação tecnológica nas cidades resultam de decisões de integrantes do sistema de produção, em função de cálculos de rentabilidade de cada empresa a partir desses custos fixos pré-determinados, sem considerar a alternativa de que eles sejam alterados ao nível de decisões de planejamento urbano. Admitindo, no entanto, que se trata de decisões que afetam os diversos interesses enfrentados numa cidade, as alterações no sistema oligopólico têm que ser consideradas como uma possibilidade e em alguns casos, como um objetivo.


70

7.

A capacidade de produção situada nas cidades

7.1.

Produção doméstica e produção de mercado

A distinção entre a produção que se realiza e absorve no âmbito doméstico e a realizada para mercado continua sendo um elemento essencial na compreensão do funcionamento das cidades. Especialmente, quando se pretende chegar a explicações mais realistas das cidades das sociedades periféricas, essa distinção é necessária para explicar os movimentos dos trabalhadores entre formas de produção que fortalecem a solidariedade familiar e formas que criam novas formas de solidariedade, que introduzem diferenças no modo de viver em cidades. Essa distinção mostra dois componentes que interagem nas cidades, que devem ser interpretados segundo o modo como se conjugam. Mas não é uma dicotomização, já que focaliza na interação entre as atividades realizadas nesses dois polos, e não numa ruptura entre eles. A interação entre a produção doméstica e a de mercado modifica-se ao longo do tempo, refletindo as transformações na organização social e técnica da produção, em cada um desses dois âmbitos. A atividade doméstica mantém diversas de suas formas tradicionais e cria outras , em suma, adapta-se às transformações mais amplas da sociedade urbana e aos modos como elas se refletem, diretamente, nos planos da produção e do consumo. Com a industrialização da urbanização, diversos de seus items tradicionais são substituídos pelo uso de serviços comercializados e pelo de produtos industriais. Mas ela se recompõe, acompanhando a desigualdade de renda entre os grupos urbanos, bem como refletindo mudanças de gosto no consumo e no lazer. Na cultura urbana de hoje, há diversas modalidades de retomada de atividades no âmbito doméstico, que foram viabilizadas pela disponibilidade de equipamento industrial nas moradias, que permite aproveitar trabalho familiar para substituir produtos e serviços já incorporados pela sociedade industrial. As novas comparações entre produção doméstica e de mercado revelam, além disto, o paralelismo entre a produção organizada em grandes sistemas e a realizada por produtores individuais ou famílias, que dificilmente podem ser vistos como empresas. Principalmente nas grandes cidades periféricas, grande parte do esforço de produção, no âmbito doméstico e no mercado, compõe-se de trabalho administrado pelo próprio produtor, diluindo a diferença entre produtores e consumidores. Por sua vez, a produção de mercado reflete importantes mudanças nas formas de contratação de trabalho. Está sobejamente


71 demonstrado que os contratos de salário não absorvem a totalidade dos trabalhadores, portanto, que a participação das pessoas na produção muitas vezes compreende componentes de trabalho permanente, de trabalho temporário e por tarefa. As grandes e médias empresas, que trabalham com horizontes amplos de mercado têm, por isto, maior facilidade para administrar suas relações com empresas médias e pequenas, portanto, para organizar com eficiência suas relações locais. Nas grandes cidades industrializadas convivem, lado a lado, componentes de produção em diversos níveis de tecnologia. Disso decorre que há diversos canais de comunicação entre agentes urbanos de produção, segundo as funções que eles desempenham e segundo seu nível de renda. Os seus circuitos de movimentos podem sobrepor-se parcialmente; e eles podem participar de circuitos de informações que só coincidem em parte, resultando em diferentes níveis de informação e de participação. Por exemplo, o morador de um bairro de classe média elevada tem acesso aos meios de comunicação próprios da estrutura de consumo à qual está ligado e pode participar do sistema de produção mediante uma atividade estritamente local, como dentista ou vendedor de móveis. Do mesmo modo, uma pequena empresa de alta tecnologia pode usar técnicas préindustriais de consumo, como em serviços de limpeza etc. Aí, portanto, estão aspectos objetivos do modo de funcionamento de cada cidade que decorrem do modo como ela se forma e reproduz; e não podem ser plenamente explicados apenas pela forma atual de organização. Em tudo isso, há elementos de juízo determinados pelo modo como as cidades se organizam no território e como essa organização é utilizada por seus moradores. A relação entre local de moradia e de trabalho é o principal indicador de suas principais funções e da interdependência entre elas. A disposição territorial das moradias responde a uma racionalidade ditada pela sobrevivência e pelas disputas de poder, que também se revela na localização dos locais de trabalho. A primeira dessas pistas leva a descrever resultados práticos da distribuição da renda, enquanto a segunda mostra a espacialidade do capital. 7.2.

As combinações de atividades produtivas

A análise de problemas econômicos de localização trata, indiretamente, com tipos de atividade e unidades de produção. Trata com decisões de empresa sobre a localização de suas atividades, pelo que a distinção entre empresa e unidade de produção é essencial nesta parte da análise. As decisões tecnológicas da indústria estão subordinadas às decisões financeiras de empresa. Em seu sentido mais amplo, a empresa é um centro de decisões financeiras, tecnológicas e administrativas, que tem como mercadorias os produtos da indústria e as próprias unidades de produção industrial.


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As peculiaridades da análise espacial - urbana e regional - obrigam a enfatizar esse aspecto, que na verdade não é novo na análise econômica. Ao usar a expressão firma - imprecisa nesse aspecto - a análise econômica convencional não dá conta dessa diferenciação. A falta de clareza sobre as diferenças entre a racionalidade da empresa e a da unidade de produção, entretanto, impedem perceber a diferença entre a gestão do capital e a gerência das unidades de produção, bem como dificulta ver as diferenças de horizonte de tempo com que uma e outra trabalham. Cabe apenas comentar que a concepção de empresa como centro de decisões permite introduzir a discussão sobre as diferenças entre os efeitos espaciais da localização de indústrias e os da concentração de centros de serviços ligados aos centros de decisão. A maior parte da capacidade de produção que se encontra numa cidade está constituída de unidades de produção interdependentes, de indústria e de prestação de serviços, articuladas pelo mercado de trabalho e pelos usos comuns de infra-estrutura e de financiamento. Mas seu funcionamento, obviamente, depende de interesses identificados ao nível das empresas, portanto, podendo participar de outras localizações, com outro tipo de identidade urbana. Assim, ao tratar de problemas de localização de unidades de produção, é preciso ter clareza sobre os fundamentos locais da estruturação de grupos em cada cidade. Em termos econômicos, isso significa trabalhar sobre as inter-relações entre tipo e localização de moradia e os custos e preços da infra-estrutura. A visão habitual da localização urbana de capacidade de produção é, essencialmente, micro-econômica; e separa os custos das indústrias dos da infraestrutura que elas utilizam. Consideram-se os efeitos da infra-estrutura nos custos das indústrias, na condição de externalidades. Mas não se consideram os custos da própria infra-estrutura, cujo desempenho não é tido como parte do sistema de produção. É uma interpretação que não resiste a uma compreensão deste mesmo quadro como de que: as localizações interagem num espaço restrito que é um mercado relevante para elas, mesmo quando seja o principal local de venda de seus produtos; as decisões sobre cada empreendimento são parte de circuitos restritos de financiamento que congregam conjuntos de unidades de produção industrial, de intermediação comercial, de qualificação de recursos humanos; os circuitos de capacidade instalada estão identificados com a organização física das cidades, portanto, com as restrições de custos que lhes são passadas por sua articulação com os sistemas de infra-estrutura. O que distingue esses dois enfoques um do outro é que um dos dois tacitamente admite que a operação das unidades de produção não depende do contexto urbano em que elas se encontram; enquanto que a outra trabalha com as especificidades do meio econômico, que condicionam seu funcionamento no conjunto do capital acumulado em cada cidade. Ignorar os condicionantes do


73 capital de cada cidade que implica numa distorção progressiva, naquilo em que: primeiro exclui os custos sociais da reposição da infra-estrutura; a e segundo, ignora o papel do mercado de trabalho nas decisões de cada investimento específico. Pode-se, pois, considerar que há diferentes trajetórias e escalas de vantagens indiretas de custos para os diversos capitalistas que se localizam numa cidade, que lhes permite tomar decisões sobre comparações entre investimentos, considerando custos totais e vantagens de localização. Em princípio, entende-se que o espaço total de uma cidade é um universo único de referência para os aspectos macro e micro da análise econômica, interdependentes pelo modo como utilizam um mesmo conjunto de recursos e porque as soluções individuais de localização afetam as demais. Essa visão dos problemas econômicos de localização tem conseqüências radicais para a análise econômica desse fenômeno. Primeiro, situa os problemas micro-econômicos de cada unidade de produção como subordinados aos problemas macro-econômicos de determinação de restrições de custos de infraestrutura. Segundo, distingue as decisões sobre unidades de produção das decisões de empresa. Terceiro, considera que cada cidade tem condições únicas de custos de produção e de acesso a mercado, que decorrem da repetição prolongada de transações, que por sua vez são determinadas pela continuidade de relações financeiras e tecnológicas. Essa estruturação de relações pode estar organizada numa cidade ou em várias cidades. Mas sempre em torno de uma atividade líder, que é o ponto de referência no relativo a tecnologia, financiamento e mercado. No essencial, a teoria de polos de crescimento de Perroux apontou a esse fenômeno, fazendo sua a visão de Schumpeter de um processo seletivo de criatividade e competitividade. Mas Perroux captou o significado macro-econômico dessas nucleações de atividades e sua proposta não estava subordinada à visão fabril que continuou com os seguidores mais modernos de Schumpeter. Mais ainda, a experiência com o planejamento econômico reforçou a ênfase nos aspectos inter-setoriais e na relação entre eles e a mobilidade do mercado de trabalho. A indústria e o comércio, respectivamente, têm sido essenciais na determinação desses circuitos, já que indiretamente atraem o interesse do sistema financeiro em realimentar o crescimento das demandas da cidade. Na prática, na análise urbana não se pode tomar ex ante o comércio como atividade reflexa da indústria local, nem a indústria como dependente do financiamento local. Mas pode-se considerar que todos os efeitos ex post de cada uma dessas atividades alimentam as previsões de mercado das demais. Igualmente, pode-se considerar que o comércio pode ser a atividade indutora da indústria, com interesses e


74 determinações diferentes da transformação industrial, que pode induzir indústrias ou descarta-las. Assim, os circuitos urbanos de produção organizam-se em função de perspectivas de mercado e da capacidade para atende-lo. Por exemplo, não se pode formar um circuito de produção em torno da produção editorial e gráfica, se não houver competência profissional para desenvolver seus diversos componentes, nem capital suficiente para realiza-lo numa escala que compense os custos e as expectativas dos agentes envolvidos em sua produção. Tampouco pode formar-se uma concentração bancária significativa, se não houver perspectivas de negócios que justifiquem sua localização. Mas se a rede bancária for estimulada por outras atividades, a concentração de riscos para a região dependerá das variações de investimento e emprego do conjunto, diferindo, portanto, dos riscos de cada atividade, que dependem de sua rede específica de inter-relações. Os conjuntos urbanos de atividades estão sujeitos a problemas específicos de incerteza e risco, que não podem ser ignorados. As margens de incerteza são genéricas de cada linha de atividade; e podem ser colocadas como inerentes a um dado momento da produção. Os riscos variam de uma indústria a outra, mas acumulam-se para cada cidade, na medida em que todas as indústrias tenham riscos semelhantes. A diversificação - que em princípio poderia resultar em vantagens para cada indústria - de fato depende de inter-relações que só se realizam sobre período, portanto, que estão logicamente excluídas das análises instantâneas de equilíbrio parcial, como a de Marshall. A distinção entre incerteza e risco é essencial, para estabelecer a especificidade da análise macro e dinâmica, frente à análise micro e estática. As atividades líderes de cada circuito de produção são aquelas responsáveis de uma parte substancial de renda do circuito em seu conjunto; e em todo caso, que comandam a captação de recursos financeiros e humanos, por isto indicando as escalas de tamanho das unidades que constituem o circuito. Por exemplo, a tecelagem pode ser atividade líder durante um período, adiante ser substituída pela indústria de confecções, ou pelo comércio de modas, e logo voltar à posição de líder. Cada articulação tem, pois, uma duração, que está definida pelos vínculos tecnológicos das unidades de produção e pelas condições de financiamento que elas obtêm; e pelo modo como participam de diferentes mercados. Numa visão em perspectiva das cidades de hoje, essas articulações de circuitos de capacidade de produção traduzem-se em impulsos de urbanização, isto é, revelam-se como efeitos em cadeia, no tempo e no espaço, de criação e transformação de capacidade de produção e de formação de patrimônio e capital, que atingem, simultaneamente, a organização social e a espacialidade dos processos urbanos, resultando na formação de bairros com determinados perfís tecnológicos e


75 ocupacionais, que se tornam decisivos no funcionamento das cidades. A compreensão de que a urbanização se realiza mediante impulsos descontínuos permite perceber a conjugação dos aspectos sociais e físicos da formação de cada cidade, com o correspondente papel da infra-estrutura no dinamismo urbano. É uma visão do problema que está respaldada pela formação histórica das cidades latino-americanas, onde se vê uma combinação de continuidade e rupturas em cidades mais antigas, como Mexico e Cuzco; de continuidade, em cidades como Puebla, Salvador, Santo Domingo, Bogotá, ao lado da falta de centralidade de cidades como Buenos Aires e São Paulo. As cidades coloniais foram organizadas pelo capital mercantil; e geralmente não representaram contradições à organização pré-hispânica do comércio. A incorporação de funções administrativas ajudou a marcar diferenças entre esferas de influência regional moderadas e esferas de influência local, entretanto com vinculações internacionais. Os casos de Guaiaquil, Fortaleza, são reveladores. É um traço antigo da formação da América, que pode ser posto em termos de relações entre a formação da Argentina e a exploração de prata na Bolívia; do comércio entre a costa ocidental colombiana e o Peru. A formação e os sucessivos movimentos de modernização dos Estados nacionais mostrou profundas rupturas entre a formação secular pré-colombiana', a organização feita pelo império espanhol e a identificação de países independentes, que requer uma explicação mais sistemática ao nível do sistema de produção agromercantil e mercantil-mineiro no conjunto do continente que as oferecidas pela história das contradições do conflito. Mas não há como esquivar a comparação entre os elementos de coesão e dispersão próprios do período agro-mercantil e agro-mineiro colonial e as condições de coesão e dispersão dos períodos posteriores. Os primeiros impulsos de industrialização - entre o último quarto do século passado e o primeiro quarto deste - pertencentes ao paradigma da indústria têxtil, quando predominaram ligações de escala regional com os países mais ricos, fortaleceram bases de espaços locais para uma possível tendência federalista. É um ângulo de análise que pode ser explorado pela comparação de experiências dos estados da costa do golfo do Mexico, das províncias da margem do rio Paraná, do Nordeste do Brasil. A maior parte dessas experiências corresponde aos países de maior extensão territorial, que emergiram reunindo maior número de "regiões" coloniais. Esses movimentos posteriormente foram suplantados pelos movimentos de industrialização centralmente conduzidos, depois que em cada país resolveu-se um processo hegemônico interno que colocou os interesses de uma região como nacionais. Essa última parte corresponde, essencialmente, aos movimentos de industrialização do século XX, identificando-se com os movimentos de concentração financeira e bancária de cada país. Na urbanização da industrialização, os impulsos de urbanização estão claramente ligados a deslocamentos na relação entre a infra-estrutura e a


76 capacidade de produção, onde se registram importantes modificações na proporção das famílias atendidas por cada sistema de infra-estrutura em cada cidade, ao lado de diferenças na qualidade dos serviços oferecidos aos diversos grupos sociais urbanos. Destaca-se que a urbanização é desigual no sistema de cidades dos diversos países e regiões; que representa um espaço-tempo que se acelera junto com a ampliação e a frequência das informações, com a interação de maior número de grupos e de pessoas em torno dos espaços que constituem a cidade. A aceleração dos impulsos de urbanização significa maior destruição e renovação de partes do acervo urbano, com correspondentes modificações do peso e do papel de cada bairro. Isto acontece em grandes cidades como Nova York, São e Mexico, especialmente nas capitais. Significa, também, o aparecimento de novas formas urbanas: novos tipos de bairros, novas soluções para a comunicação intraurbana, novos grandes espaços urbanos que funcionam de modo diferente dos anteriores, que hoje justificam a denominação de regiões urbanas. Tudo isso tem uma expressão macro-econômica, que se materializa no plano das regiões. A formação de regiões lideradas por cidades urbanas decorre dos efeitos locais de transformações do processo de urbanização com industrialização, quando as escalas de tamanho passaram a representar alterações na organização de suas funções. Isto acontece quando os serviços básicos de água, saneamento, coleta de lixo, transporte e distribuição de combustíveis passaram a ser feitos mediante sistemas integrados. Estes sistemas articularam grandes áreas das cidades com níveis diferenciados de prestação de serviços; e deixaram outros sem atender. Transformaram algumas vias em canais de acesso, diferenciando vias com usos que interessam a cada cidade em seu conjunto e outras de interesse apenas local. Induziram fluxos de pessoas e de carga, bem como determinaram as funções de partes de cada cidade. Com isto marcaram diferenças entre aquelas partes de cada cidade que foram diretamente envolvidas na mobilização e na criação de espaços para a produção industrial. As grandes cidades periféricas foram especialmente atingidas por essa diferenciação. Nelas tornaram-se mais evidentes as diferenças de renda; e o acesso a estes serviços tornou-se a marca da participação nos mecanismos políticos de controle das cidades. Observando em retrospectiva a experiência do período de 1960 a 1980, há poucas dúvidas de que há uma crescente diferença entre a expansão da cobertura total de cada um dos serviços urbanos básicos e a expansão dos correspondentes serviços integrados que os atendem. Em quase todas as grandes cidades, a expansão dos sistemas integrados fez-se com variados mecanismos de subsídio; e não há dúvida de que as desigualdades na distribuição da renda e o aumento dos grupos em pobreza crítica aumentam as dificuldades para o atendimento das necessidades básicas por sistemas integrados.


77 Assim, a formação de regiões urbanas é uma das principais marcas da conversão de cidades mercantís pré-industriais em cidades da industrialização, mesmo quando elas não são os lugares onde se situam as fábricas. A valorização do papel dos equipamentos de consumo em massa também significa que se criam oportunidades para novos investimentos nos sistemas que reproduzem as cidades, seja, para que se conduza a urbanização como um empreendimento industrial, de custos controlados e comparáveis. O crescimento das cidades desigualmente industrializadas reflete-se na criação de novas oportunidades de aplicação de capital e incorporação de recursos humanos na indústria, além das aplicações patrimoniais clássicas. A indústria da construção civil desenvolve-se com produtos cada vez mais padronizados, mesmo quando a variedade de aparências dos imóveis é usada como estratégia das empresas para diversificar mercado. Residências de alta e média qualidade, edifícios de apartamento e edifícios comerciais, são produzidos segundo concepções padronizadas de conforto e eficiência, que permitem organizar sua produção de modo homogêneo, mesmo quando operando com diferentes densidades de capital por homem ocupado. Pelo contrário, a entrada na cidade de pessoas e de empresas, atraídas pela renovação do capital em infra-estrutura e nos setores de ponta, faz com que algumas partes de cada cidade sejam privilegiadas com uma contínua entrada de capital; e que se acentuem as desigualdades entre as formas de produção e de consumo que marcam cada uma delas. Esse tipo de urbanização levou à criação de cidades em que aumentam as distâncias entre moradia e local de trabalho, e entre moradia, local de trabalho e lazer, onde essas distâncias traduzem-se, finalmente, em custos que são absorvidos por um ou outro dos segmentos da população urbana, seja na forma de tempo de vida para os trabalhadores ou de custos de produção para os produtores. O distanciamento entre lugar de trabalho e moradia, bem como sua separação dos principais centros de serviços especializados, significam a formação de bairros com poucos serviços incorporados, que criam um contraste entre bairros multifuncionais e uni-funcionais, e levam a transitar pelo centro da cidade nas comunicações entre bairros. Essa tendência geral da urbanização industrial traduz-se na formação de custos operacionais crescentes para a cidade como um todo, que escapam do cômputo de custos de cada empresa em particular, mas alteram a composição de custos de cada uma delas. No Brasil, a diferença entre os momentos em que se produziu a aceleração da industrialização em São Paulo, comparada com o posterior aparecimento de uma indústria polarizada na Bahia, deu lugar a uma situação desse tipo, em que a retirada de capacidade de produção dos bairros traduziu-se adiante em custos adicionais de urbanização, na forma de custos de um sistema de transportes sobrecarregado por viagens entre bairros periféricos através do centro. A recuperação da multi-funcionalidade dos bairros significa a


78 possibilidade de que maior número de pessoas trabalhe no bairro onde mora, portanto, de prevenir esses custos adicionais. 7.3.

Indústrias urbanas

Fala-se aqui de relações de produção e consumo organizadas de modo industrial e não somente da localização de fábricas nas cidades. Como indústrias urbanas entendem-se todas aquelas unidades de produção ligadas à produção industrial e não somente fábricas. A distinção antes apresentada entre empresa e unidade de produção aqui é essencial para deixar ver que a grande quantidade de componentes de empresa que podem estar localizados numa cidade, separados das fábricas, mas com efeitos gravitatórios localizados de compras e vendas de empresa, fabrís ou não. A questão é verificar de que modo a industrialização resulta em peculiaridades econômicas da urbanização. Inicialmente, destacam-se duas características da industrialização nos países periféricos, que sem dúvida afetam a urbanização. São a irregularidade - ou a desigualdade entre setores e no tempo - da industrialização; e a alternância de impulsos positivos e negativos desse processo em seu conjunto, que permite hoje falar de períodos de industrialização e de desindustrialização, de períodos em que se aprofunda a concentração de componentes coerentes de indústrias; e períodos em que uma maior proporção de componentes - mesmo fábricas inteiras - tornamse desfuncionais à continuidade do processo e são desativados, ou simplesmente têm sua funcionalidade alterada. Isso leva a insistir no significado dos efeitos em cadeia das despesas no tempo e no espaço, levando em conta a descontinuidade do tempo e a irregularidade dos espaços. A presença de indústrias numa cidade é parte de movimentos em cadeia, datados e localizados. Também, significa a convivência de atividades fabrís com determinados elencos de prestação de serviços. A composição das despesas está, parcialmente, pré-determinada pela inércia dos compromissos determinados pela composição do capital e do trabalho, acumulados em cada linha de atividade. Ao longo do tempo, a urbanização torna-se um processo que conjuga os efeitos da industrialização com a perpetuação de elementos de espacialidade típicos da cidade mercantil. Assim, a urbanização se traduz em diferentes tipos de cidade, com variadas composições de moradia e lugar de trabalho. As cidades puramente mercantís foram, em vários casos, cidades com um amplo componente de manufaturas, enquanto algumas outras se caracterizam por exercer um papel administrativo, de centro de comunicações, ou simplesmente de local de lazer. As características predominantes de uma cidade podem ser dadas pelo modo como se forma o sistema de cidades a que ela pertence. Mas as cidades industriais de hoje


79 variam entre diferentes níveis de participação de atividades produtivas, que correspondem a opções de política urbana ou de política industrial, respectivamente, para favorecer ou desestimular a presença de indústrias nas cidades, ou aproximar ou afastar indústrias de moradias. Essas opções representam combinações de interesse público e privado; e seus resultados finais resultam em restrições das condições de vida das famílias e dos custos de vida das famílias e dos custos das empresas. Mas os padrões de comportamento das famílias e das empresas incidem no ambiente físico da cidade, que se torna um parâmetro na relação entre custos atuais e custos futuros para todos os integrantes da cidade. Os custos ambientais. Os custos ambientais entram nesse cálculo mediante o cômputo do desgaste de recursos cuja reposição torna-se cada vez mais cara e de custos de correção da poluição em suas diversas formas, no solo, na água e no ar. A unificação dos cálculos de custos de empresas e de consumidores com o de custos públicos - não só sociais no sentido genérico do termo - depende da igualação dos horizontes de tempo com que se colocam os investimentos privados, as despesas estendidas de consumo e as despesas públicas no controle do ambiente. É um problema técnico, que tem que ser respondido de modo gradual, levando em conta a escala de tempo da duração dos investimentos; a escala de tempo das operações de consumo e a da acumulação de custos ambientais no ecossistema urbano criado. Como não se pode garantir de antemão que essas escalas de tempo são idênticas, é necessária uma revisão de cada um dos três items. A escala de tempo dos investimentos é a única habitualmente tratada pela análise econômica; e pode ser apresentada como o horizonte de duração dos investimentos. As despesas de consumo se distribuem em infinita variedade de padrões, desde compras eventuais, que podem não se repetir, até compras - como as que se fazem ao sistema de educação - que podem ter um referencial de muitos anos. Está claro que os custos de controle ambiental têm que contemplar um tratamento de tempo diferenciado, com ajustes entre os tempos de investimentos não renováveis, que demandam completa substituição ; os tempos de investimentos cujos componentes podem ser substituídos parte por parte; e os tempos do consumo. Nestes últimos, a diferença entre o consumo realizado mediante compras num só momento ou ao longo de período, permite tratar estes últimos como fluxos constantes de compras de duração determinada. Com uma estratégia deste tipo, para tornar comparáveis os tempos dos diferentes custos, pode-se colocar o horizonte temporal da análise ambiental num prazo bastante longo para captar as alterações do ambiente que alterem novas localizações de investimento e novos fluxos de consumo. Registra-se, também, que os custos ambientais para qualquer cidade são crescentes; e podem ser mais que proporcionais à ampliação do espaço físico e ao


80 crescimento da população. O parâmetro aqui é o aumento de densidade de capital por produto, com a implicação de que ele reflete um aumento do uso de energia na produção. No essencial, a questão ambiental aqui se entende como o resultado do tipo de energia que se usa para produzir e consumir. O uso de fontes dificilmente renováveis, de combustíveis poluentes, a falta de limpeza de resíduos, levam a um progressivo aumento de custos dificilmente transferíveis, que resultam em degradação do sistema. Assim, mesmo considerando que a medida de tempo é diferente para diferentes agentes, há uma escala de tempo comum para todos, que é dada por aquelas restrições de atividades que indiretamente inviabilizam as demais. O ambiente entra no horizonte de cálculo econômico através de uma compreensão de desgaste à escala do conjunto do sistema - na relação entre o sistema físico, o sistema de produção e o sistema institucional - ao entender-se que as cidades são o ponto de máxima convergência desse desgaste. A visão de desenvolvimento sustentado - nome atual para algo antigo - decorre de uma compreensão do conjunto das restrições reais - como diferente de financeiras - para que a produção prossiga por longos períodos. A novidade que amplia essa revisão conceitual é a recuperação de outro tema antigo da teoria econômica, de que há uma especificidade do consumo; e que a continuidade da produção deve ser concomitante com a do consumo, jamais sendo o consumo algo subordinado incluído no conceito de produção. Os custos de localização, Sobre esse conjunto de referências de tempo colocam-se os problemas de cálculo de custos econômicos de localização urbana de atividades produtivas. O tema tem sido tratado principalmente como de localização de indústrias, a nível de macro e micro localização: localização numa cidade ou num lugar de uma cidade. Há esclarecimentos a fazer. Primeiro, distinguir a explicação da situação atual de atividades já implantadas de localização de novas atividades. Segundo, trata-se da localização de todas as atividades produtivas e não só de indústrias. Terceiro, a localização urbana é, efetivamente, regional: não há como isolar os efeitos da localização intra-urbana do funcionamento de regiões. Quarto, macro e micro localização são simplesmente níveis de precisão com que se trabalha, que refletem níveis de conhecimento e de controle de incerteza. Por isso, quando se trata da localização de fábricas, trata-se com manifestações de decisões de empresas e de governo, que não aparecem diretamente. As questões específicas de localização de atividades agrícolas, industriais ou do terciário, definem-se frente a um referencial de investimentos que viabilizam cada uma delas, seja, colocam-se frente a movimentos de industrialização e urbanização. Mais ainda, situam-se num nível mais amplo que o de polos de crescimento, em que além dos efeitos imediatos do conjunto dos investimentos, constam os efeitos no tempo e no espaço em cada cidade.


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Distinguem-se, portanto, os fatos pertinentes a cidades específicas e a sistemas de cidades. A análise urbana freqüentemente é indeterminada no relativo a escala territorial, mas não se podem ignorar as diferenças entre a formação de custos na escala do sistema de cidades, que é regional, e a formação de custos na escala de cada cidade , em que o peso relativo da terra é substituído pelo do espaço urbano, construído ou não. Além disto, a diferença de escala corresponde a uma diferença mais profunda na identificação econômica dos agentes sociais, portanto, dos interesses que se fazem representar nas duas escalas. A determinação do que é ou não é industrial é uma qualificação adicional do anterior, que liga o relacionamento dos capitalistas e trabalhadores com as opções dos primeiros sobre tecnologia. Indústria urbana é algo mais que indústria localizada em cidade. Significa indústria que interage com a reprodução da cidade em modos que afetam seus custos de produção. Assim, quando uma indústria é implantada numa cidade, ela passa por um processo de adaptação ao seu modo de funcionamento em seu uso de infra-estrutura e de relações com outras indústrias. Daí que há algo de transitório de uma parte significativa das indústrias de uma cidade, pelo que elas podem mudar de lugar, ou canalizar seu crescimento para outros lugares. No elenco das indústrias de uma cidade há atividades que passam a operar em várias cidades, e outras que para permanecer modificam a composição de suas atividades. A eficiência em integralizar as vantagens de um lugar pode, a longo prazo, significar a perda da visão competitiva do crescimento. Paralelamente, pesam as transformações na própria estrutura da empresa, onde cabem diferenças de propósito entre a estratégia tecnológica e financeira de uma empresa em seu conjunto e a de qualquer de suas fábricas. Essa diferença de enfoque acentua-se com o agravamento dos problemas ambientais das grandes cidades, e a compreensão de que os custos ambientais tendem a tornarem-se irreversíveis. O modo e a intensidade da degradação ambiental dependem do tamanho de cada cidade, das tecnologias de produção e consumo e do controle institucional da gestão econômica. A urbanização tornou-se mais agressiva do ambiente, ao tornar-se mais industrial. Os dois movimentos, de expulsão de indústrias das cidades para constituírem distritos industriais; e de atração de indústrias às cidades para captar mercados especializados, indicam tendências que alteram decisivamente a industrialização, apontando novas combinações de atividades produtivas e de consumo, imprevisíveis até há pouco tempo. Significa que as concentrações de indústrias progridem superando fatores negativos; e que a dispersão de fábricas tem, também, uma lógica própria. Significa, também, que cada novo investimento compara vantagens de aglomeração e de dispersão, identificadas em relação com o elenco de atividades já existentes. Nesse quadro, as inter-relações entre indústrias


82 e outras atividades tem um lugar especial,já que as cidades grandes se caracterizam, principalmente, como concentrações de serviços. Há dificuldades crescentes para adaptar a prestação de serviços industrializada à distribuição da renda das grandes cidades, onde grande parte da população não pode pagar seus custos. Há, portanto, dificuldades para adaptar as escalas de custos das empresas com as escalas de preços que elas deveriam, efetivamente, pagar pelos serviços públicos que recebem. A alternativa, que são subsídios indiretos ao capital, não difere, em essência, dos subsídios que o poder público está pressionado a dar aos grupos sociais de baixa renda. 7.4.

A produção não material

Por produção não material entende-se o conjunto dos aspectos do esforço realizado em sociedade que não resulta diretamente em bens e serviços ligados à reprodução do capital. A velha divisão entre trabalho produtivo e não produtivo revela-se inadequada, ou superficial, para refletir a atual compreensão da interdependência entre os resultados de uso econômico imediato e os que correspondem à reprodução do meio social em seu conjunto. Ao mesmo tempo, a necessidade de lidar com a complexidade da constituição das condições de vida, e dos seus aspectos que atingem a composição do consumo, leva a revisar os conjuntos de elementos que perfazem o ambiente cultural da reprodução social. Assim, embora partindo de um conceito impreciso, porque relativo a um conjunto não delimitado de fenômenos, como é este de produção não material, indicam-se os aspectos culturais da produção, entendendo que eles devem, de qualquer modo, ser considerados, já que não podem ser eliminados, e que seus efeitos no plano diretamente econômico são relevantes. A produção não material compreende o componente cultural trazido pela produção e o que é conduzido por ela. O primeiro denota o conjunto de atividades que circunda o cotidiano e que regula, positivamente ou negativamente, a liberação do tempo de trabalho. Nesse caso estão os costumes das comunidades integradas em cidades e no meio rural, que definem os horizontes de sobrevivência e de bem estar, de pessoas e grupos. O segundo indica os efeitos do esforço de produção na reprodução desses costumes. O componente cultural trazido pela produção é o entorno cultural herdado pelos que realizam a produção, exprimindo a relação desses com os demais integrantes da sociedade. A formação religiosa, a militar e os modos de lazer dos trabalhadores, estão ligados aos processos de poder que reproduzem o quadro


83 institucional, portanto, que indiretamente realimentam a perpetuação dos estamentos religiosos e militares. Diferentemente do que acontece, quando se analisa uma sociedade em seu conjunto, numa cidade se encontra uma estruturação cultural marcada pela proximidade física dos participantes e pela possibilidade de ligar a reprodução cultural à configuração urbana. As grandes cidades são os lugares onde se concentram os acervos culturais e artísticos, que têm a propriedade de transmitir a memória das experiências das sociedades. Na medida em que, em cada cidade, essas experiências são recuperadas por maiores proporções da população, portanto, em que elas são incorporadas à reprodução urbana, a produção não material cria uma identidade urbana, que é repassada ao sistema de produção e ao consumo, inclusive estimulando sua ampliação. Por exemplo, nos últimos vnte anos, Salvador ganhou a imagem de cidade produtora de arte em geral. especialmente de música e de atração turística. Essa imagem passou a condicionar seu desempenho nesses mesmos campos. É o que faz a grande diferença entre cidades com muito e com pouco tempo de funcionamento. As cidades mais antigas estabelecem canais de comunicação, que se perenizam e que, junto com os fluxos de comércio, criam atrativos para pessoas e para capitais. Paris é um centro de comunicações qualificadas e de referências, baseadas, em grande parte, nessa esfera de trocas simbólicas, que não se resume aos intercâmbios atuais. É o que se observa no relativo à vida literária e artística, à estabilidade das universidades e dos centros de ensino em geral. 7.5.

Os efeitos produtivos do lazer

Nos últimos decênios, a industrialização do turismo tornou esse conjunto de atividades o centro de referências do lazer. Torna-se necessário fazer a ponte entre a análise do turismo e a da economia da urbanização. Mas, antes disso, é preciso situar o conceito de lazer; e ver como o turismo se insere no conjunto do lazer. O conceito de lazer revela-se demasiado amplo para ser delimitado a qualquer de suas manifestações; e abrange um conjunto de modos de uso de tempo, que está ligado à sobrevivência física e às determinações do imaginário. O alicerçamento do lazer no campo não racional de preferências, chame-se instinto ou intuição direta, é evidente. Parece, também, inquestionável, que o lazer não se explica mediante a pré-concepção de que as formas societárias utilizadas representam, sempre, preferências por soluções racionais frente a modos não racionais. Assim, o lazer deve ser visto como um campo colateral do tempo de trabalho, cujo sentido de finalidade está fora do sistema de produção, mas que o afeta mediante o nível de ocupação e a renda dos que prestam serviços de lazer,


84 A industrialização do lazer criou novas faixas de mercado, que se concentram nas cidades, mas que estão articuladas sobre as desigualdades internacionais de renda e se materializa em circuitos de consumo, guiados através da publicidade. O turismo. No essencial, o turismo é um direcionamento do consumo organizado a partir do lazer. O turismo funciona, realmente, como parte do grande capital integrado na escala internacional, articulado no topo por combinações de interesses de grandes empresas, em transportes, hotelaria e espetáculos; e articulado localmente, em escalas de empreendimentos, desde grandes hotéis a pousadas. Indiretamente, está ligado a formas mais ou menos benignas de contravenção e ao jogo e a toda as formas de prostituição e tráfico de drogas. Em cada lugar, constitui uma concentração de demanda, geralmente estacional, em que se firmam grupos de controle dos diversos sub-grupos de atividades, como excursões, congressos, traduções etc. A estabilidade do fluxo de renda manejado pelo turismo em seu conjunto depende, portanto, de uma consolidação do controle dos fluxos de turismo em grande número de lugares, de modo a compensar a estacionalidade das migrações de turistas; e a controlar seu tempo de permanência em cada lugar e a composição de suas compras. Tal como se manifesta em cada cidade, o turismo gera entradas estacionais de compras, equivalentes a um aumento da renda disponível, em que se distinguem a parte mais importante, que fica em poder do grande capital que controla o setor, com os nexos externos; e a renda que fica em poder dos que são ocupados estacionalmente nos serviços de apoio a turistas. Entretanto, as referências estáveis funconam como ancoragens de determinados movimentos, que podem ser percebidos através dos efeitos distorsivos dos controles oligopólicos dos canais de turismo e dos efeitos distorsivos da publicidade. Hoje já se dispõe de experiência suficiente para avaliar a combinação de efeitos imediatos e mediatos, micro e macro-econômicos, do turismo na América Latina. Sobre essa experiência, é possível distinguir países e regiões com elevada densidade de turistas por habitante, classificar os fluxos de turistas por origem e grupo de renda, e diferenciar seus impactos por composição de consumo. Ao mesmo tempo, é possível distinguir os investimentos em turismo por níveis de qualidade, portanto, de densidade de capital por turistas recebidos. Esse tipo de informações permite separar cidades e regiões por intensidade e estacionalidade do turismo; e qualificar seus efeitos na formação de renda local. Essa análise da recepção de turismo deve, entretanto, ser comparada com a análise da emissão de turismo, isto é, da atividade promotora da saída de demanda de turismo a outros lugares. A experiência disponível mostra que há uma diferença decisiva entre os pequenos centros intensamente receptores de turismo, como as ilhas das Antilhas por exemplo; e os países semi-industrializados, como Argentina,


85 Brasil, Chile e Mexico. Os primeiros têm poucas possibilidades de emitir turismo de modo significativo; e ainda menos possibilidades de integrar a renda do turismo a um sistema industrial. Os segundo, entretanto, estão sempre confrontados com essas últimas tensões, e, finalmente, disputam uns com os outros, um mercado cujo centro são os países ricos, que termina comparando saldos regionais relativamente pequenos com saídas líquidas muito maiores aos Estados Unidos e à Europa.


86

8.

O mercado urbano de trabalho

8.1.

Emprego e ocupação regulada e não regulada

A grande variedade de formas de trabalho e de condições de contratação de trabalhadores nas cidades contemporâneas faz com que, na análise urbana, seja necessário distinguir emprego de ocupação; e reconhecer, que a melhor indicação de condições de vida é a relação entre ocupação e renda e não a relação, mais restrita, entre emprego e renda. A diferença fundamental entre os dois é o compromisso em relação com tempo. A expressão emprego identifica a ocupação remunerada ligada a postos de trabalho. A expressão ocupação indica o uso efetivo de força de trabalho, contratada ou por conta própria, no mercado e na esfera doméstica. Assim, é preciso distinguir entre o número de pessoas engajadas em atividades remuneradas e a intensidade e a regularidade do engajamento dessas pessoas. Finalmente, como a sobrevivência dos grupos de baixa renda depende do funcionamento dos núcleos familiares, é preciso trabalhar com a renda familiar, nela considerando o número de membros de cada família que trabalham. A partir daí, é preciso qualificar a análise urbana em relação com os objetos específicos que ela trata. A análise urbana das economias periféricas trata com cidades que são universos sociais fraturados - além de desiguais - onde os postos de trabalho raramente absorvem mais que a metade do tempo disponível para trabalhar; e onde a força de trabalho é atraída para ocupações parciais, ao tempo em que o capital desenvolve estratégias para manter a responsabilidade da reprodução do trabalho por conta dos trabalhadores. A contratação de autônomos, a terceirização, o fomento do trabalho residencial são formas de ampliar a maisvalia numa mesma composição do capital. Em cidades onde há desemprego crônico, como na maioria das cidades médio porte do Nordeste, a difusão dessas formas de contratação amplia a instabilidade da metade inferior dos grupos de renda, induzindo porcentagens cada vez maiores da população a migrar para as grandes cidades do Sudeste. Nas chamadas metrópoles regionais, tais como Salvador, Recife e Fortaleza, coincidem os mecanismos tradicionais de controle de trabalho não qualificado, como das empregadas domésticas, com controle de trabalho pouco qualificado de trabalhadores regulares - ditos de carteira assinada - que são mantidos a nível de salário mínimo. A terceirização atinge esses grupos sociais duplamente: em sua renda familiar, que permanece deprimida e na transferência de risco de desocupação. Aí, a noção de ocupação é essencial. A expressão ocupação liga a obtenção de renda a atividade efetivamente realizada; e permite distingui-la do trabalho


87 socialmente necessário para a reprodução do capital. Assim, absorve o conceito de tempo socialmente disponível para trabalhar. Além disso, enquanto se fala de ocupação, não se entra no mérito da substituição entre usos do tempo, que está incorporada no emprego organizado pelo capital. Como o emprego, em princípio, é um contrato de exclusividade de uso do tempo do trabalhador, na prática ele constitui uma troca entre a eliminação da incerteza de renda e o controle do tempo do trabalhador. Em princípio, portanto, quando ele não teme essa incerteza, deve preferir as formas de trabalho independente, que lhe garantem a possibilidade de escolher continuamente entre diferentes contratos e entre suas diversas possibilidades de usos de tempo. Na situação contrária, o peso dessa incerteza faz com que ele compareça sempre ao mercado de trabalho, mesmo quando está ocupado, ou quando não está fisicamente em condições de trabalhar. Do mesmo modo, é necessário levar em conta que o principal indicador das condições de vida é a renda familiar, que revela o acesso a consumo coletivo, em itens tais como moradia, alimentação e educação, para todos os integrantes das famílias; e não a renda individual das pessoas atualmente ocupadas, que elimina da contagem todos aqueles que atualmente não estão ocupados. Este esclarecimento é, hoje, fundamental, já que a sobrevivência dos grupos de menores rendas está, demonstradamente, subordinado ao apoio familiar. Diversos estudos sobre a América Latina durante as décadas de 1960 e 1970, de pesquisadores individuais e de instituições, revelaram dois traços fundamentais da urbanização. Primeiro, que a hierarquia de cidades em cada país mudou muito pouco ao longo de todo o século XX, como algumas exceções destacadas, como São Paulo e Guaiaquil, no quadro brasileiro e no equatoriano, mas sempre com o aumento do peso relativo das cidades principais no sistema de cidades de cada país. Segundo, que o crescimento dessas cidades principais esteve sempre ligado a expectativas de ocupação, inclusive por parte de migrantes que não têm como obter informações objetivas sobre postos de trabalho. As mudanças tecnológicas e os grandes programas de obras públicas foram responsáveis da atração, respectivamente, de pessoas qualificadas e pouco qualificadas, em movimentos que levaram a modificações rápidas e profundas do mercado urbano de trabalho. A pressão de busca de renda se exerce, primeiro, sobre o universo da ocupação remunerada; e somente em segundo lugar, em relação com postos de trabalho. Assim, o migrante típico pouco qualificado, que aportou às grandes cidades movido por esperança de renda e de mobilidade social, teve como principais referências as de conseguir permanecer o suficiente para aprender a mover-se na cidade, obter ocupação remunerada; e um dia chegar a um emprego estável, e ainda, a empregos para maior número de membros da família.


88 O crescimento das cidades ocorrido nesse período, e que teve desdobramentos no decênio seguinte, refletiu a transferência dos acréscimos demográficos para as grandes cidades, com a conseqüência de que nelas haja, sempre, um grande número de pessoas dependendo de ocupações novas, ou em processo de ajuste, entre ocupações pertencentes à organização regular das cidades e aquelas outras, que hoje substituem o comércio extra muros das cidades medievais. Mas há numerosas indicações empíricas importantes, mais de inferências de diversas pesquisas que de pesquisas específicas, que indicam, a presença de novas formas de falta de mobilidade entre os grupos de baixa renda urbanos, em que, por exemplo, o tempo de permanência numa cidade deixa de ajudar a conseguir emprego estável; e em que se definiram numerosos grupos sem emprego, com pouca ou nenhuma ocupação, que simplesmente vegetam no meio urbano. Este quadro corresponde, principalmente, a cidades consideradas grandes, que são detentoras de um leque de empregos muito maior que o das demais cidades de sua mesma região. Assim, nesse período, a análise da ocupação urbana foi fortemente abalada pela incorporação do conceito de informalidade, que reforçou a base empírica da interpretação da pluralidade econômica e da segmentação do mercado urbano de trabalho. Desde a década de 1960, a conceituação de informalidade passou por importantes modificações, que refletem a compreensão de que ela não é incidental, nem um desvio do funcionamento do comércio, mas é uma parte, evidente e em expansão, de um fenômeno mais amplo, de diferenciação e segmentação do mercado de trabalho. Tal diferenciação, é a referência básica do mercado urbano de trabalho. Cada cidade constitui um mercado de trabalho, formado de ocupações que compõem um amplo espectro de qualificações profissionais, com variados graus de previsibilidade de renda, dada pela estabilidade do emprego e pela regularidade da demanda de serviços de autônomos em geral. A previsibilidade de renda é o oposto da incerteza; e esta, responsável da pressão econômica que se exerce sobre os moradores das cidades, seja porque não consigam chegar a empregos confiáveis, seja pelo modo como sofrem os efeitos das conjunturas negativas. Os dois dados mais importantes da constituição do mercado urbano de trabalho são os de que, em cada cidade, há uma disponibilidade de oportunidades de trabalho e um número de pessoas que pretendem obter renda. A disponibilidade de oportunidades de trabalho está, constituída de uma parte de empregos regulares e de outra, de ocupações não assalariadas, que obtêm rendas variáveis, obtidas dessa formação estável de renda ou de fontes também variáveis, como o turismo por exemplo. A diferença entre o número de pretendentes a


89 trabalhador e a oferta de empregos regulares é, de qualquer modo, um indicador do número dos que têm que sobreviver de rendas variáveis, mesmo levando em conta que um grande número de pessoas não deseja estar na situação de assalariado; e prefere exercer atividades de renda variável, nos diversos níveis de capitalização da produção. Assim, esse eixo previsibilidade-incerteza assinala a linha das vantagens oferecidas pela economia das cidades, distinguindo o campo das atividades favorecidas por uma regulação do mercado de trabalho, do campo daquelas outras que representam os esforços de sobrevivência sem respaldo institucional. É o modo como se vê o mercado de trabalho, por contraste com a organização da produção numa economia do funcionamento da cidade como sistema e numa economia das atividades localizadas nas cidades. É uma análise que, em todo caso, requer uma qualificação, relativa à peculiaridade das experiências com urbanização, que registre a trajetória histórica da regulamentação urbana de atividades, seja, o modo como as diversas atividades são incorporadas por grupos de interesse e alcançam aquelas condições de previsibilidade de renda que protegem seus participantes da incerteza de subsistência. Na cidade desigual contemporânea, estão, lado a lado, instituições corporativas herdadas do período colonial, com associações de moradores, clubes de empresários, associações religiosas, bem como o crime organizado. As formas de representação tornam-se mais numerosas, ao tempo em que se desenvolvem mecanismos de convivência entre diferentes formas de defesa de interesse, que dão novos contornos aos conjuntos de interesses organizados a partir da participação no trabalho e da moradia. Nessa mudança do quadro urbano, têm sido essenciais os movimentos de institucionalização do Estado e da empresa, com suas manifestações na organização das atividades do governo, do comércio, da indústria, seja, das fontes de emprego regular nas cidades. A estruturação do Estado nacional, tanto como a das grandes empresas, tem reflexos locais inconfundíveis, que levam, cada vez mais, a distinguir entre os âmbitos de funcionamento de mercado de trabalho regulado por interesses locais e de fora da cidade, como a distinguir entre os interesses determinados pela indústria e os emanados da agricultura e transferidos para o meio urbano. A industrialização levou à ampliação da presença do Estado como comprador e como realizador de obras públicas, por extensão, como gerente de serviços públicos. Isso significa um aumento do número dos empregos na burocracia radicada nas grandes cidades, além dos empregos dos que se ocupam das próprias cidades. Quanto às empresas, seu crescimento se realiza quase completamente nas cidades, além do que, altamente concentrado nas grandes cidades. Isso significa que a criação de postos de trabalho regulares é um fenômeno


90 nitidamente urbano, que se traduz numa progressiva expectativas de empregos nos mesmos lugares. 8.2.

concentração de

Os componentes estável e instável da ocupação

O movimento geral de industrialização e em especial, a industrialização da urbanização, levaram a uma expansão do assalariamento e à criação de uma certo "fator carga" de ocupação, que se expressa em homens/hora ocupados, distribuídos segundo perfís próprios dos tipos de atividade envolvidos, e das condições específicas em que elas são realizadas. Independentemente da forma contratual de compra de tempo de trabalho, ela terá que ser feita, em prazo hábil e nos lugares oportunos, para que a produção se realize. Esses são os verdadeiros compromissos do capital com o trabalho; e a inversa é a capacidade de cada trabalhador, de escolher entre atividades, dada sua capacidade de participar dessas atividades necessárias e oportunas, ou sua capacidade para conviver com os riscos da não ocupação. Como se pôde ver, da curva de crescimento experimentado pelas metrópoles e pelas grandes cidades de segunda linha ao longo do século XX, houve uma progressão ascendente do número de empregos regulares, até um ponto em que esse crescimento foi conduzido pela combinação da concentração de funções do governo e da concentração de indústrias; e uma posterior modificação na composição da ocupação, com a inclusão de um número crescente de homens/hora na forma de ocupação precária, tanto de alta como de baixa qualificação, na medida em que diminui, proporcionalmente, essa presença do Estado. O aumento da ocupação instável vem junto com o aumento da proporção de serviços para os mesmos tipos de consumo; e com o aumento da quantidade de serviços que são realizados sem relação direta com a produção industrial. Há, portanto, razões de sobra para supor que a composição da ocupação, e o aumento do componente instável, decorrem de peculiaridades desta etapa de transformação do sistema de produção, que não pode ser posta a conta de traços genéricos da urbanização, que ajudem a comparar experiências de formação de diferentes cidades, ou de diferentes épocas de uma mesma cidade. A composição da ocupação está encadeada com os processos de trabalho que continuam ou que são interrompidos. Depende da capacidade dos atuais trabalhadores para participar da continuação do processo, ou de que eles sejam descartados ou substituídos por outros, que representem a qualificação necessária. Isso, hoje, tem tudo a ver com o jogo de relações de poder e de controle de comunicações, que se desenvolvem junto com cada cidade. O poder se manifesta no controle da estabilidade e no da mobilidade, portanto, se exerce ao longo do tempo histórico da formação de cada cidade, e em que ela se torna parte das novas


91 estruturas de poder, que passam por ela, mas que não se resolvem integralmente em cidade alguma. Na cidade contemporânea, há diversos horizontes de informações interpenetrados ou sobrepostos, que correspondem às margens de poder dos diversos grupos incorporados nas cidades. O controle da informação e das comunicações, passou a ser o modo de penetrar nos espaços de poder constituídos e alterar seu significado. Pela mesma razão, passou exprimir a capacidade de regular o crescimento de cada cidade. Esses aumentos da proporção de tempo de trabalho absorvido em ocupação precária nas cidades revelam uma modificação do mercado de trabalho dos países latino-americanos, em que a instabilidade do emprego regulado equivale a um aumento da proporção de atividades realizadas fora das grandes empresas e do governo, em que a incerteza de renda se apresenta como um elemento adicional da desigualdade.

8.3.

O trabalho sem remuneração direta

Em seu conjunto, o trabalho remunerado, estável e instável, leva atrelada uma grande quantidade de trabalho não remunerado, tradicionalmente desconhecido pela Economia Política. É o trabalho que não entra no sistema de contratações do sistema de produção, que contrata cada trabalhador individualmente considerado, sem registrar o coletivo em que esse trabalhador se apoia. No entanto, ele é necessário para que se realize o trabalho que chega ao mercado, isto é, que é trocado por dinheiro. A interpenetração entre os dois é complexa e há diversos mercados específicos de trabalho pago, que se organizam junto com essa carga de trabalho não pago. Num primeiro momento, o trabalho urbano não pago identifica-se, principalmente, com o trabalho doméstico, isto é, com a totalidade do trabalho realizado nas moradias pelos integrantes das famílias. O funcionamento de uma família numa cidade é um fator de organização de consumo; e compra força de trabalho adicional como parte desse consumo, ou para substituir parte de sua força de trabalho, que encontra maior preço no mercado que o pago ao trabalhador doméstico. O mecanismo é genérico; e certamente paga-se por trabalho doméstico a custo superior ao do preço obtido por uma parte significativa da força de trabalho que a família põe no mercado. Isso significa que o trabalho vendido pelas famílias tem componentes de alto e de baixo preço; e, também, que as compras de trabalho pelas famílias são reguladas por critérios comparativos com outros tipos de gasto; e que estão delimitados por nível de renda. A rigor, o trabalho não pago é o realizado por motivos de solidariedade, que se comparam com os motivos de concorrência que prevalecem em mercado. Com essa definição, ele compreende o trabalho das donas de casa, o das organizações religiosas e das políticas, além de trabalho que, eventualmente, é realizado na


92 forma de ajuda mútua em comunidades. Há, portanto, uma questão a examinar, relativa às formas de solidariedade urbana; e aos modos como ela influi nos comportamentos dos coletivos urbanos. As alterações de padrões de comportamento, trazidas pela sociedade de reações instantâneas, significam substituição entre âmbitos de solidariedade formados na tradição de cada cidade, e, em última análise, a substituição dos elementos de estabilidade habituais por outros elementos de comportamento, cuja permanência não pode ser julgada de antemão. Por exemplo, o aumento de importância de pequenos contratistas de transporte aéreo pode ter um peso transitório, até que os grandes capitais entrem em suas áreas de mercado; ou pode revelar uma tendência dos sistemas de transportes, em que haja uma especialização por escala e em que os pequenos contratistas têm um papel permanente. As duas alternativas indicam duas situações opostas de relações de negócios e de continuidade de comportamentos. Em seu conjunto, o trabalho não pago é de grande relevância em qualquer grande cidade; e há razões para supor que em algumas grandes cidades das economias desigualmente industrializadas, ele constitui uma magnitude de homens/hora próxima da do trabalho que se realiza no mercado (2). Há, também, razões para supor que uma parte das pessoas que participam do mercado em modalidades de trabalho instável, dispendem uma parte relevante de seu tempo em atividades não remuneradas; que uma parte do trabalho não remunerado é preparatória de uma participação no mercado ; finalmente, que o trabalho não remunerado compreende faixas de trabalho qualificado, escassamente substituível. 8.4.

A estruturação sub-urbana da demanda

Assim como a capacidade de produção instalada numa cidade funciona em relação com manifestações de demanda que se apresentam nela mesmo ou em outras cidades, as pessoas e grupos constitutivos dessa capacidade funcionam em diferentes circuitos de movimentos e em horizontes de comunicações no interior de cada cidade. A organização espacial da demanda tornou-se, cada vez mais, um produto dos circuitos de informações e de sistemas de comunicações, que estão desigualmente interligados, para uns e outros grupos urbanos. A cidade mesmo, como estrutura demarcada em tempo e espaço, perdeu muitos dos seus elementos internos de coesão, tornou-se lugar de maior número de convergências eventuais. A grande continuidade entre a reprodução de seus diversos componentes, anunciada pela proposta de modernidade, foi substituída por uma grande descontinuidade de processos, entretanto, compensada por grande número de coincidências de fenômenos.


93 A cidade posterior ao auge da industrialização alimenta-se de feixes de eventos, que compreendem a repetição dos eventos habituais do cotidiano e séries de eventos esporádicos, genericamente identificáveis como culturais, ou religiosos, artísticos e científicos, que alteram os padrões habituais de reprodução no cotidiano. Trata-se, portanto, de um componente inovador, comparado com a simples repetição do consumo; mas que interage com a repetição, que finalmente modifica o modo de reproduzir-se da cidade. Assim, a cidade mercantil penetrou na cidade industrial que a suplantou; e a cidade industrial fez-se mediante sucessivos impulsos de modernização e de industrialização, que ensejaram reajustes dos espaços urbanos bem como dos modos de vida em cada cidade. Os eventos acontecem, portanto, em horizontes culturais que compreendem a generalidade dos relacionamentos dos diversos grupos em cada cidade, e no interior deles, em modalidades que têm uma expressão econômica mais imediata. Notoriamente, algumas cidades desenvolvem certas especializações, por exemplo, como centros universitários, de certas artes e de certas tecnologias, que lhes garantem maior frequência de eventos criativos nessas áreas. Mas são as grandes cidades, principalmente as metrópoles, que retêm a maior parte dos eventos inovadores, que funcionam como principais referências das demais. As grandes cidades da industrialização generalizaram relações econômicas determinadas por interesses, em que os privilégios tiveram que se adaptar a formas mais democráticas de socialidade, onde, portanto, há maior pluralidade de decisões. Os eventos de renovação tecnológica não necessariamente caminham numa mesma direção; e a renovação de equipamentos urbanos faz-se, também, com maior margem de imprevisibilidade que antes. Assim, as cidades pósindustriais são as mais industrializadas; e ambas preservam elementos essenciais da estruturação urbana mercantil pré-industrial. Nesse ambiente, situam-se os relacionamentos entre grupos estáveis - os moradores - e entre grupos estáveis e transitórios. O tempo de permanência, de famílias e de pessoas, indica em princípio sua familiaridade com os modos de funcionamento da cidade, sua possibilidade de exercer materialmente a cidadania a que têm direito legalmente. A situação dos habitantes temporário depende mais de seu nível de renda, que substitui outras formas de relacionamento desenvolvidas com o tempo. O habitante temporário tem que substituir os relacionamentos estabelecidos, comprando o acesso às formas de conhecimento década cidade. Mas, uns e outros se relacionam em circuitos de movimentos em cada cidade, estabelecidos por suas atividades. São conjuntos de relações organizados a partir dos fatos básicos da moradia e do trabalho e subsidiariamente, pelos fatos subordinados principais, que são os do transporte e do lazer.


94 A moradia funciona como polo de consumo e de solidariedade, já que tende a aproximar pessoas de níveis de renda semelhantes e de base cultural equivalente. Influi no modo como se realiza a gestão doméstica, como se resolvem os problemas de educação e saúde. Determina certo universo de demanda, portanto, induz a instalação e operação de muitos negócios que respondem a esse perfil doméstico de compras. Por último, permite o funcionamento de grandes negócios que operam com pequenas compras, destacadamente, os supermercados. Há padrões de concentração territorial de moradia, distribuída por níveis de qualidade e por condições de proximidade dos locais de trabalho e dos de lazer. Com essas referências, os padrões de qualidade da moradia ( ver diagrama no cap. 1 ) traduzem-se em demandas específicas de água e drenagem, de energia elétrica, de transportes, induzindo o direcionamento e a capacidade instalada dessas redes. Esses claustros urbanos de demanda correspondem historicamente à formação de bairros e de grandes bairros, que têm uma personalidade social e uma configuração física próprias; e que se reproduzem, diferenciadamente no âmbito de cada cidade. A pluralidade das cidades contemporâneas tornou necessário renovar o conceito de bairro, tomando-o não somente como o lugar onde se formam vizinhanças, mas, principalmente, como os produtos de sucessivos impulsos de urbanização, desiguais e descontínuos, que se ajustam, progressivamente, ao longo do tempo. Por sua vez, os locais de trabalho são polos de produção no tecido das relações de cada cidade; e sua situação territorial indica redes de comunicações e de transações, determinadas pelo fato de produzir, que têm efeitos opostos e complementares aos do consumo familiar. Assim, a cultura urbana da produção tem uma expressão econômica e outra física, em que esta última realimenta as vantagens econômicas, de bairro ou de vizinhança. Isto se vê, especialmente, na especialização da prestação de serviços, em que os bairros industriais e comerciais atraem escritórios de advocacía e contábeis, agências de bancos e companhias de seguros. A reprodução das atividades produtivas em cada cidade leva, portanto, à concentração de equipamento, e a progressivas pressões, no sentido de prosseguir com aqueles perfís de composição de capital já instalados. Por exemplo, os bairros bancários se especializam como tal, os de manufaturas etc. Logicamente, a concentração do equipamento está associada à do trabalho especializado e este, finalmente, põe preços nos usos dos equipamentos. Em síntese, os locais de trabalho traduzem-se em compras de matérias primas e também de serviços de infra-estrutura, mas orientados pela industrialização da cidade, levando a compras predominantemente de bens que


95 não são produzidos para nenhum comprador em particular, mas que são induzidas pela proporção do incremento da produção industrializada. Finalmente, esses elementos tornam-se decisivos na organização espacial do abastecimento em geral e do abastecimento de alimentos no âmbito de cada cidade, pondo referências para a localização das moradias. 8.5.

Os efeitos em cadeia da demanda urbana

A teoria do desenvolvimento tentou sempre trabalhar com efeitos em cadeia de investimentos, presumindo que eles acontecem num âmbito de mercado cuja territorialidade não se discute. A questão urbana obriga a esclarecer esse ponto. A visão em perspectiva temporal do sistema de produção no espaço, nos planos urbano e regional, leva a ver a demanda como algo que se materializa em tempo e espaço, em lapsos determinados e em certos territórios. Tratando do mercado de trabalho, os efeitos em cadeia da demanda urbana têm que ser apreciados no tempo, quando ela funciona como indutora de povoamento e da implantação de equipamento; e num horizonte datado e localizado, onde ela se cumpre. Assim, também, a demanda se manifesta, em compras de serviços, que são instantâneas, mas que se repetem, e têm efeitos secundários com durações específicas. E em compras de bens, que têm dois tipos de efeito no tempo: o da duração dos bens adquiridos, no que eles se incorporam ao capital em operação na cidade, e o dos tempos de produção, no que ela também se realiza na cidade. Em síntese, a demanda se realiza em seus próprios tempos, que estão situados num quadro de previsões dos compradores e dos vendedores, mas que tem uma clara ancoragem objetiva em sua relação com períodos de produção. Isso quer dizer que os efeitos da demanda em cada cidade se concentram ou dispersam, se reproduzem ou anulam, segundo sua composição, e segundo as manifestações de demanda se repetem numa mesma composição, ou compreendem alterações. O poder de reprodução da demanda depende, portanto, de qual proporção reverterá em reposição ou em alterações do capital; e em qual outra ficará restrita a bens e serviços que se gastam na esfera do consumo. Ao situar a demanda nos termos da distribuição urbana da renda, observase que as compras realizadas pelas famílias se distribuem segundo são de bens mais duráveis a menos duráveis, ficando em primeiro lugar as compras de habitação própria e de vestuário. As demais compras, de alimentação e serviços às famílias, eliminam-se quase integralmente na esfera do consumo. Logicamente, a demanda dos grupos de menores rendas fica, quase exclusivamente, na esfera do consumo imediato, pelo que esses grupos dependem da formação de capital


96 indiretamente realizada pelo Estado, no que ela, por sua vez, reverte em capitalização de sistemas de prestação de serviços. Daí, o papel fundamental do Estado na criação de emprego. Não se trata apenas de compensações das desigualdades de renda, guiadas por princípios de justiça social. Trata-se de que, em ausência desses mecanismos indiretos de capitalização das cidades, tende a cair o nível da ocupação urbana por baixo do nível de demanda necessário para repor o capital em operações nas cidades.


97

11.

A acumulação urbana

11.1.

Aspectos materiais da formação de capital

Pergunta-se qual o papel das cidades na formação de capital e qual sua posição no contexto do movimento de acumulação de capital. É nas cidades que se concentram os grandes equipamentos de uso social, assim como os grandes patrimônios privados. Nas cidades é onde se diversifica o consumo. O movimento geral de formação de capital, ou de desenvolvimento do sistema de produção, resulta em certas formas específicas de concentração de ativos fixos, que se distribuem entre a esfera dos investimentos diretos na produção de bens, os investimentos de apoio em sistemas de infra-estrutura e os investimentos de apoio, como em educação e em saúde pública. Além disso, a relação entre a reprodução do poder econômico e a do poder político impõe um conjunto de despesas, algumas eticamente aceitas como lícitas e outras reconhecidas como inadequadas ou como desvios de recursos públicos. 14 O custo social desses desvios – corrupção, ineficiência, nepotismo – tem aumentado seguidamente, com a necessidade do bloco de poder, de permanecer no controle do Estado, com um componente publicamente reconhecido como nocivo, especialmente no tráfico de drogas, mas com um componente dissimulado de corrupção, incorporado no tecido de relacionamentos articulados em torno da reprodução do sistema político. Com todos seus condicionantes, de todos modos, a formação de capital corresponde a uma distribuição territorial dos ativos de capital fixo, portanto, dando lugar a um perfil territorial da acumulação, que passa a ter um papel próprio na reprodução do sistema de produção. Nesse sentido coloca-se o papel da economia das cidades na reprodução do dinamismo da economia. A combinação de sistemas de infra-estrutura e de localização de empresas dá às grandes cidades uma posição especial, em que se encontram elementos comparáveis com os das cidades de menor tamanho – por exemplo, especialidade em certo tipo de cerâmica ou em música erudita – e outros elementos que não são

14

Os custos sociais da reprodução do sistema político são cada vez menos conhecidos, entretanto, com evidências de que aumentam, de diferentes modos, nos países líderes da economia mundial, nos países subindustrializados como o Brasil e nos países mais pobres, compreendendo custos de corrupção, custos de publicidade, marketing, custos de ineficiência ligados a nepotismo sob diversas formas. Em seu conjunto, esses custos podem ser comparados aos custos causados por acidentes climáticos, mas obviamente há um problema ético ligado aos efeitos desses custos na distribuição da renda.


98 comparáveis com as cidades menores, tais como, por exemplo, um aeroporto internacional, ou uma concentração de indústria automotora. 11.2.

Continuidade, descontinuidade ou reversão da acumulação

Em razão da concentração dos mais ricos em torno das maiores possibilidades de aplicação de capital e de consumo, a acumulação de capital concentra-se nas principais cidades, seguindo o perfil espaço-temporal dos movimentos de urbanização. As maiores cidades, as capitais financeiras, tornamse as grandes portadoras da capacidade de acumular, seguidas das cidades de crescimento mais rápido das regiões mais ricas. Desde o começo da industrialização, a acumulação toma uma feição cada vez mais urbana, à medida que reflete as tendências da formação de capital; e de volta, na medida em que algumas cidades se tornam a sede dos serviços especializados. A análise da acumulação urbana pressupõe uma interpretação das transformações das cidades. Mas, assim como elas são as expressões materiais da urbanização, é nelas que se fixam seus resultados. Está claro que uma cidade não pode crescer sem mudar, sem que seus conteúdos qualitativos aumentem de modo mais que proporcional aos seus elementos constitutivos. Neste sentido, cada cidade é uma estrutura em movimento e uma combinação de estruturas. Ao pensar, então, em termos dos resultados da urbanização ao longo do tempo, é lógico pensar em seu caráter cumulativo. As transformações qualitativas das cidades, elas mesmas, são resultados que dão novos sentidos ao capital e ao potencial de trabalho que se concentram em cada uma delas, em composições que constituem as referências da produção e do consumo. Assim, situa-se a base material da vida urbana. Mas ela envolve significados mais complexos, que somente se percebem quando se comparam as atividades ligadas ao uso do capital com aquelas conseqüentes de usos de patrimônio, tanto das que dependem indiretamente de usos do capital como das que ficam fora do circuito da produção para mercado. No essencial, a acumulação que se identifica com a urbanização representa uma criação e transformação de recursos humanos e de modos de inclusão do trabalho no processo de produção. Nas cidades, mais que noutras partes, faz-se visível o aspecto social da acumulação, uma transformação dos recursos humanos reunidos em cada cidade, além de uma transformação dos espaços físicos urbanos. Tratando com os processos urbanos, não se pode trabalhar com uma visão genérica do processo de acumulação, senão que se precisa de informações específicas sobre os modos como a cumulação altera a sociedade urbana. Supostamente, a continuidade do esforço de produção reverte nesses três planos de resultados. O enriquecimento dos mais ricos, ou o aparecimento de novos ricos, ou o aumento


99 das rendas dos grupos médios e superiores de renda, traduz-se no aparecimento de novas modalidades de consumo, bem como no aumento da densidade de capital ligada em cada uma das formas de consumo. E isso, obviamente, modifica as condições ambiente para a vida dos grupos que continuam periféricos dessa acumulação. Mas, à parte disso, grande parte do que acontece como atividade econômica numa cidade não resulta em acumulação. A acumulação pertence à esfera da produção organizada em mercado, cujos resultados podem ser reintegrados aos que controlam o processo de produção. Como as cidades são os lugares onde se situam os resultados da produção que lhe dão continuidade, há uma originalidade do processo urbano no relativo à reprodução da produção, que ajuda a explicar as modificações na organização social e técnica da produção em geral. No modo de funcionamento das cidades, hoje, vê-se que a acumulação se materializa, em conjunto, na acumulação social de capital e na de um acervo de conhecimento na sociedade em geral, que transcende o processo de produção e que se traduz em modificações da composição e do desempenho dos recursos humanos. Isso significa modificações que atingem a capacidade imediata de operar o capital disponível e a de modificar os modos de operação do capital. A essência da questão é que as transformações dos recursos humanos são o nexo entre os usos atuais e os usos potenciais do capital. A continuidade da acumulação de capital depende da acumulação de conhecimento; e uma maior acumulação de capital que de conhecimento hoje significa menor capacidade futura para prosseguir na reprodução e ampliação do sistema de produção. O recurso humano - capital variável - é o ativo que movimenta o capital acumulado. Este, por sua vez, renova-se continuamente, com diferentes velocidades de seus diferentes componentes. Tanto nos sistemas de infra-estrutura como nas unidades de produção, como nos equipamentos de cada família, há componentes que se desgastam ou envelhecem com mais rapidez que outros; e a substituição dos componentes também resulta em renovação técnica de variada intensidade. O papel ativo dos recursos humanos na concretização de um uso social do capital leva a ver a incorporação de conhecimento como a contrapartida necessária da acumulação. Esta se percebe como um movimento que afeta a utilidade do capital já acumulado, incrementando-a ou erosionando-a. Não se pode perder de vista, por exemplo, que a acumulação realizada nos sistemas de transportes aéreos reduziu o valor social da anterior acumulação realizada nos transportes de superfície; e que o sistema de informações traduz-se em perdas da acumulação realizada nos transportes aéreos. Tampouco se pode ignorar que grande parte dos investimentos feitos ao longo do tempo em edifícios públicos e de empresas mudou de uso, deixando de corresponder às previsões de retorno com que foram construídos.


100

A principal questão que se defronta aqui, é que o movimento de acumulação reverte em modificações do comportamento dos agentes na produção e no consumo; e que essas mudanças de comportamento alteram o regime de usos do capital disponível. Mas cidades os capitalistas também são moradores, com hábitos de consumo, com práticas e relações institucionais que afetam os usos atuais do capital, e que, através deles, exercem pressão para alterar a composição da fração que se renova do acervo urbano. Uma grande dificuldade da interpretação do significado da acumulação urbana, decorre, justamente de que ela está ligada às mudanças de conhecimento incorporado na sociedade, com suas conotações de tecnologia e de cultura. Os diversos ativos componentes do capital têm seu valor regulado pela capacidade da sociedade para usa-los; e pelas possibilidades práticas de combina-los em sua relação com as alternativas atuais de uso e com perspectivas de uso futuro. Essa compreensão da acumulação urbana assinala dois aspectos especialmente importantes do quadro das cidades de hoje, que são a expansão do componente de prestação de serviços e a modificação das funções dos bens de capital urbanos no funcionamento do sistema de produção. A concentração urbana das atividades de prestação de serviços tem efeitos materiais de aceleração na concentração urbana de bens de capital, mesmo quando isto não significa uma concentração de capacidade de produção. A combinação dos efeitos da habitação com os dos usos dos sistemas de infra-estrutura traduz-se em concentração de equipamentos, que dão apoio às diversas formas de consumo, ao tempo em que, sustentação à produção. O capital incorporado aos sistemas de infra-estrutura está ligado ao capital integrado na produção industrial em redes que não só se confundem com as de consumo, como ligam a continuidade da acumulação à indução de outras formas de consumo. No essencial, é uma discussão conceitual que depende de uma questão básica, latente na teoria clássica da acumulação, que consiste em considerar que a acumulação é um fenômeno social dependente de um pré-requisito técnico e físico - a concentração - e de uma capacidade para manter a capacidade produtiva do capital concentrado. Noutras palavras, exceto por um raciocínio rebuscado, não tem sentido separar a acumulação dos movimentos de concentração de capital, portanto, não tem maior sentido a separação de uma teoria geral da acumulação de capital de uma explicação sistemática do desenvolvimento urbano. Tal manutenção de valor - aqui como o capital é operado. Daí que desenvolver-se unicamente como uma produção, senão como uma análise dos

a questão essencial - depende do modo a doutrina da acumulação não pode discussão de resultados do processo de modos como se realiza essa manutenção.


101 Noutras palavras, exceto por um artifício teórico que analisa as trocas sem analisar quem as realiza, portanto, que separa os processos de produção das decisões de produzir, não há como separar o movimento genérico da acumulação - que não implica em espacialidade - dos movimentos mais restritos de concentração de capital, que contém essa referência de espaço. Mas é justamente pela observação da concentração de ativos de capital e patrimônio, por suas relações com a mobilização efetiva do potencial dos recursos humanos, que se afere o significado da acumulação urbana. Mas como elaborar esse conceito no plano operacional? De dois modos . Primeiro, se a acumulação é tomada por separado da continuidade da formação de capital, ela implica em esterilização do capital acumulado. Segundo, a acumulação prossegue com um mesmo padrão de concentração, ou se processa com alteração da concentração? É um ângulo a ser explorado, já que a acumulação até aqui foi tratada como resultado e não como causa. Com isso levanta-se, então, a possibilidade lógica de que a acumulação urbana seja um processo contínuo ou descontínuo, ou que a acumulação nas cidades pode ser interrompida e retomada sem outros efeitos negativos. As referências empíricas neste aspecto podem ser enganosas, não só porque são incertas as comparações entre as experiências das grandes cidades em seus períodos pré-industriais com os industriais; como porque as grandes cidades estão sujeitas a pressões imediatas, que modificam sua capacidade para usar seu capital. Por isto, a interrupção tem conseqüências maiores e incertas. A perspectiva da urbanização industrial é um processo cuja interrupção transforma-se em reversão da viabilidade econômica da gestão das cidades e das condições de vida de seus moradores. 11.3.

A concentração de recursos humanos

Da análise apresentada, entende-se que a sustentação da acumulação depende de que a formação de capital seja concomitante com a permanência de um mercado de trabalho, o que quer dizer, que haja uma reprodução da força de trabalho em seu conjunto, com suas qualificações. A questão se coloca, portanto, pela relação entre a progressão da composição do capital e a da força de trabalho. Para reproduzir-se o capital necessita de certa composição de trabalho; e reage, direta e indiretamente, no sentido de formar trabalhadores com essas características. As alterações da composição do capital traduzem-se em modificações na demanda de trabalho, encontrando respostas diferenciadas dos trabalhadores, com sua própria capacidade de qualificarem-se, dos produtores em seu conjunto, empresas ou não, e do governo, pelo modo como representa os interesses prevalecentes.


102 Trata-se de como ele se realiza, e como se traduz em absorção de pessoas, em conjunto com o incremento e a seleção de força de trabalho. As transformações das grandes cidades, hoje, significam substituição de trabalhadores nas faixas de trabalho mais e menos qualificado, resultando em mudanças nas especificações com que ele é solicitado, com atributos mais variados e menos substituíveis, em todo caso manifestando novas rigidezes dos requisitos que dele se espera. As demandas são de trabalho, não de trabalhadores, e revelam as diferenças entre os requisitos técnicos de trabalho e os compromissos sociais com os trabalhadores. Algumas políticas de contratação de trabalho de grandes empresas, principalmente de empresas internacionalizadas, que enfatizam treinamento e permanência, contrastam com a prática da maioria das empresas, grandes e pequenas, que hoje trabalham com maior proporção de trabalho flutuante, e marcam uma tendência a um mercado de trabalho cada vez mais afastado da possibilidade de absorver a população economicamente ativa de uma cidade. Aparentemente, esse comportamento das empresas é repetido por outros produtores de diversas escalas; e pelos mesmos ou outros motivos, pelos órgãos de governo. Por restrições financeiras ou por razões políticas, o Estado tenta empregar menos pessoas. As resistências à queda do emprego público manifestam-se desde as pressões políticas locais, através da estrutura política do poder até os movimentos sindicais. Mas está claro que os movimentos sindicais defendem o emprego atual, ou seus sindicalizados, e não têm como intervir na dinâmica do mercado de trabalho. Algo semelhante acontece com os movimentos sociais, de desempregados, de trabalhadores sem terra e de associações de consumidores, de moradores ou de outro tipo. São sempre propostas defensivas da absorção dos atuais pretendentes a trabalhador, não de uma reversão do mercado de trabalho como tal, que leve à absorção destes ou de outros trabalhadores. Trata-se, pois, de estabelecer previsões do engajamento de trabalhadores a partir dos dados disponíveis de mercado de trabalho. A contradição é clara. A continuidade do processo de acumulação requer uma qualificação progressiva do trabalho, que por sua vez demanda uma seleção de trabalhadores. E o desenvolvimento do mercado de trabalho mostra tendências imediatas de rejeição de trabalhadores e de candidatos a trabalhador, que revelam importantes limitações do processo de absorção de trabalho, tal como ele se realiza hoje, nos países e regiões centrais e nos periféricos. Ao que tudo indica, os requisitos de trabalho tendem a ser atendidos mediante mercados sumamente restritivos, em que a capacidade atual do sistema de produção para preparar novos trabalhadores não é bem aproveitada; e onde as necessidades de trabalho qualificado resolvem-se, sempre, com a importação de trabalhadores qualificados, seja, transferindo para outrem um custo de


103 treinamento. Isso significa que os sistemas nacionais de produção dos países e regiões periféricos acumulam perdas na reposição-expansão da oferta de trabalho, em modalidades que afetam a continuidade do processo, que não se limitam aos seus efeitos atuais. No relativo às cidades, essas perdas significam um desajuste entre as manifestações de interesse de produtores em novos investimentos e os mecanismos hoje conhecidos de recomposição do mercado de trabalho. As grandes cidades, como as maiores empresas, assim como os países e regiões mais ricas, atraem os trabalhadores mais qualificados. Assim, o déficit de trabalho qualificado transferese ao longo do mercado de trabalho às empresas menores, às cidades menores, aos países menos ricos. As cidades de pequeno e médio porte tendem a funcionar de modo deficitário em matéria de trabalhadores, o que se reflete na relação entre o tempo médio de treinamento e o tempo médio de permanência de cada trabalhador num emprego. A curta permanência dos trabalhadores nas empresas e nas cidades onde eles são treinados, significa empresas e governo que operam sempre com pessoal sub-qualificado para cumprir bem as tarefas do cotidiano, portanto, com poucas chances de inovar. As razões que levam as pessoas a preferir residir e trabalhar nos centros médios e pequenos são, aparentemente, contraditórias com a lógica do sistema em seu conjunto, e exceto pelos casos daqueles que preferem formas de vida incompatíveis com aquela pressão concentradora, o suprimento de trabalhadores mais qualificados - capazes de inovar - nos centros de porte médio e pequeno depende de experiências atípicas, pouco numerosas. Somente instituições que não dependem desse movimento concentrador - como órgãos públicos federais e sucursais de grandes empresas - contrariam essa tendência; e formam núcleos de trabalho mais qualificado, que sustenta os níveis de qualidade dos centros de menor porte. Conseqüentemente, a movimentação do mercado de trabalho é no sentido de concentrar as possibilidades de acumulação nos grandes centros. As cidades socialmente mais desiguais, que atingem maiores números de população, tornamse grandes centros de pobreza, onde os processos de trabalho são contraditórios com a mudança das condições de vida da população. 10.4. A acumulação de custos ambientais Está claro, hoje, que a urbanização gera efeitos negativos que se acumulam desigualmente entre cidades, partes de cidade e grupos urbanos. Mas não está igualmente claro que o padrão de efeitos negativos pode ser substancialmente alterado, ou que o rumo seguido pela urbanização nas grandes cidades das economias centrais pode ser modificado nas economias periféricas. A questão prática que se coloca neste campo é que a acumulação de efeitos ambientais


104 negativos segue um padrão indicado pela proliferação de hábitos de consumo agressivos ao ambiente, que garantem condições especiais de vida, ou simplesmente simbolizam status; e pelas estratégias de sobrevivência dos mais pobres. No essencial, a relação das grandes cidades com o ambiente revela essa pluralidade de condições de vida e linguagens, que materializam as diferenças de classe e culturais na formação de cada cidade: os grupos constitutivos da cidade são protagonistas de um diálogo obrigado, onde entretanto participam com linguagens e referências que não são cabalmente compreendidas pelos demais. A ligação dos problemas ambientais com os conflitos de interesse identificados com a produção moderna não pode ser ignorada. A produção organizada promove usos massificados de recursos, que criam problemas de administração de grandes quantidades de resíduos sólidos, não assimiláveis ao metabolismo dos sistemas naturais. Criam em problemas de eficiência e de suficiência desses sistemas, para processar os resíduos no ar, na água e na terra. Isso se traduz num problema operacional dos sistemas de infra-estrutura, em sua outra qualidade de processadores dos resíduos. Observa-se que esses sistemas de infra-estrutura urbana não foram concebidos para operar com sobrecarga, isto é, com efeitos cumulativos de suas próprias operações: o sistema de coleta e tratamento de resíduos sólidos de uma cidade grande pode ser ineficiente como tratamento do lixo atual, mas não pode operar com um sistema de tratamento dos resíduos do próprio sistema de transportes que opera a coleta e o tratamento do lixo; e o sistema de adução e tratamento de água pode ser insuficiente em sua função reconhecida, mas não tem como resolver os problemas de saneamento causados pela concentração da população e da capacidade de produção. Nas grandes cidades os maiores problemas ambientais decorrem de que a incapacidade de processar resíduos em tempo útil leva à depredação de outros recursos. Por exemplo, a incapacidade para realizar um tratamento suficiente e cuidadoso da água utilizada - e o desperdício desse recurso - leva a canalizar água adicional de modo mais que proporcional às necessidades do sistema, portanto, a uma adução predatória das fontes de água disponíveis. A inadequação do desenho dos sistemas coincide com um incremento dos usos de recursos em formas não controladas e com efeitos indiretos crescentes. O aumento da quantidade de resíduos não tratados jogados em rios e no mar e o deterioramento da qualidade do ar e da água, transformam-se em custos indiretos, no prejuízo à saúde humana e na degradação dos ecossistemas; e em custos diretos imediatos no que tornam mais cara a operação dos sistemas de infra-estrutura e o consumo doméstico hoje. O fundamental é que essa acumulação de custos é progressiva; que seus efeitos se projetam ao futuro além dos horizontes de previsão sustentados pelo desgaste do capital hoje em uso; que afeta a distribuição futura da renda, ao criar


105 compromissos diferenciados de pagamento futuro para os diversos grupos sociais, que em muitos casos são diferentes do acesso que eles têm hoje ao uso de recursos. Esta desigualdade é mais evidente em alguns casos, como da poluição causada por insuficiência e mal manejo de lixo e esgotos, e pelos sistemas de transportes. São efeitos negativos que resistem a uma identificação de responsáveis diretos a médio prazo, que devem ser ligados a algum responsável em sua origem. Mas não é uma questão fácil de resolver, porque os efeitos da poluição mudam, qualitativamente, ao longo do tempo, assim como o modo como ela é transmitida no processo urbano. É difícil chegar ao final dos efeitos negativos da canalização de rios e aterro de lagoas numa cidade, sem levar em conta que ambos podem dar lugar a novas formas de povoamento; e podem ajudar a alterar a densidade do povoamento por área, portanto, aumentar a sobrecarga dos sistemas de água e e saneamento. A complexidade dessa questão se revela melhor ao considerarem-se as implicações da localização nas cidades. Os custos do acesso a água e à disposição de resíduos são determinantes na articulação dos custos da urbanização com os de reposição dos sistemas de recursos físicos. E o aumento dos números médios das populações das grandes cidades torna definitivamente superadas as atitudes tradicionais, de considerar que a abundância de recursos naturais - como baías e grandes rios - pode evitar custos atuais de manejo industrializado de recursos naturais. Casos extremos, como da Cidade do México, por sua altitude e elevado custo da água, não devem obscurecer a gravidade da situação de cidades como Rio de Janeiro e Salvador, com sua facilidade de acesso a água e escoamento. A compreensão dos movimentos em cadeia e da assimetria do desgaste ambiental no espaço-tempo ressalta que a acumulação de custos é progressiva e que se confronta com as dificuldades dadas pela concentração de renda e poder. Algumas indústrias podem contaminar o ecossistema onde vivem milhões de pessoas. E a degradação do ambiente das grandes cidades é praticamente irrecuperável, sem que revertam profundamente as condições de uso que levaram a que ela acontecesse. Há um problema de tecnologia e um problema de poder político para usa-la. 11.4.

Os impulsos de urbanização

Entende-se, pois, que a urbanização deve ser reconhecida como fenômeno histórico, com sua complexidade de conjugar processos de diferentes durações; e de que as formas urbanas atuais são sempre limites, no sentido dado a este termo por Simmel, isto é, tendem a ser superadas . Como a população urbana cresce, e sempre há uma substituição de técnicas, há uma pressão para modificar ou substituir as formais atuais de urbanidade. Praças, ruas e edifícios mudam de uso,


106 assim como mudam os modos de organização da vida familiar e a organização do trabalho nos locais de produção. Trata-se de uma realidade essencialmente complexa, que não pode ser reduzida à visão linear de movimento, típica das análises baseadas em séries históricas. A irregularidade dos movimentos de substituição e expansão de ativos de uma cidade, com frequência induz alterações dos hábitos dos moradores da cidade em outros aspectos de consumo. Por exemplo, a implantação de um sistema de vias rápidas modifica a relação distância/tempo entre locais de trabalho e zonas de moradia, com o resultado de modificar o acesso a outros serviços da cidade, ou de ampliar as possibilidades de escolher entre serviços. Com a substituição de paradigmas tecnológicos na indústria e de substituição dos modos de transporte urbanos, há importantes modificações do significado urbano dos espaços urbanos, com fusões de bairros tradicionais em grandes bairros, e com sub-divisões de bairros tradicionais em bairros menores, ou em espaços marcados por diferenciação social. Em síntese, há importantes transformações em curso, da composição das cidades, que sugerem novas linhas de interpretação do processo urbano. Em princípio, a idéia de que a urbanização responde desigualmente à formação de capital parece oportuna. Seus conteúdos culturais fazem com que seus produtos físicos tenham diferentes significados ao longo do tempo. Em seu conjunto, ela não é um processo contínuo no tempo e no espaço, apesar de que sua maior intensidade em certo número de cidades faça com que a composição dos sistemas de cidades em cada país seja muito estável. Mas o movimento de urbanização em sua expressão mais ampla tem sido claramente desigual entre cidades e em cada cidade. A ligação dos resultados físicos da urbanização com os movimentos da produção e do consumo permite acompanhar a expansão das cidades como resultados da formação de capital e da expansão do consumo. A observação da urbanização nos países latino-americanos ao longo deste século mostra de um lado alguns períodos bem definidos, marcados pela industrialização; e alguns grupos de cidades, identificadas por seu tamanho e suas funções regionais, com traços de desempenho mais ou menos equivalentes. As posições relativas das principais cidades mudaram pouco. Mas a hegemonia das capitais em cada país - o Brasil é a única exceção - aumentou; e houve sensíveis modificações entre as posições das cidades de segunda e terceira magnitude em diversos países. Não há base empírica suficiente para falar de tendências gerais da urbanização além daquelas indicadas pela industrialização e pela conseqüente expansão de serviços, mas tampouco há ausência de indicações de tendências de grupos ou tipos de cidades. Mas a industrialização compreende diversas formas de produção e organização do mercado, com correspondentes usos de trabalho e organização do


107 espaço. Historicamente, cada uma delas esteve ligada a um modo de organização dos transportes e do abastecimento, e de intervenção na relação moradia-local de trabalho. Com isto atingiu a espacialidade das cidades, criou impulsos de organização da produção e do consumo, que articularam partes de uma cidade, ou que ligaram a criação de setores urbanos com determinados feixes de relações inter-urbanas. Os impulsos de urbanização ao longo do tempo modificaram as cidades e as relações entre cidades; e transferiram para as formas físicas as diferenças e desigualdades sociais. A aceleração do tempo atribuído aos fenômenos urbanos, junto com a redução do tempo percebido e do tempo das decisões, faz com que as cidades hoje estejam ligadas mediante redes de comunicação, que se desprendem do tempo de duração de seus equipamentos; e que se alterem as perspectivas dos seus habitantes. Modifica-se o significado da moradia, tanto no relativo à formação de renda familiar, como no referente a participação em opções de participar em outros mercados. A moradia passa a resumir um amplo leque de possíveis funções, desde a de abrigo até a de local de trabalho e de lazer. As comunicações tornam-se mais individualizadas, surgindo novas faixas de articulação entre os coletivos e as indivíduos. Tudo isso faz com que a análise social da urbanização deixe, definitivamente, de ser uma atividade instrumental da explicação da reprodução social, para ser um antecedente dessa discussão mais ampla. Referências bibliográficas ALONSO, William, Location theory em Regional Development and Planning, John Friedmann , William Alonso (ed.), The MIT Press, Cambridge, 1964. ARRIGHI, Giovanni, A ilusão do desenvolvimento, Vozes, Petrópolis, 1997. BARAN, Paul, La Economia Política del desarrollo, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1956. BECK, Ulrich, Ecological politics in an age of risk, Polity Press, Cambridge, 1995. BRAUDEL, Fernand, Os jogos das trocas, Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII, Martins Fontes, São Paulo, 1998. BRITO, Cristovão de Cassio, A produção de escassez de solo urbano em Salvador, Dissertação de Mestrado, Curso de Mestrado em Geografia, UFBA, 1998. CASTELLS, Manuel, A questão urbana, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1974 CEPAL, Echevarria e outros, Subemprego, problema estrutural, Vozes, Petrópolis, 1970. DELEUZE, Gilles, Bergsonismo, Editora 34, Lisboa, 1999


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