Escola Secundária de Albufeira
Disciplina de Português
Fernando Pessoa UM GÉNIO ESCONDIDO NUM MODESTO EMPREGADO DE ESCRITÓRIO os multiplos eus de um poeta
Ano Lectivo 2011/2012
Ă?ndice
Introdução É bem verdade que Pessoa se mutilava em favor dos seus heterónimos, para que no fim - como ele próprio dizia - restar ele próprio, simples e sem interesse. Não será bem assim, pois em alguns momentos a poesia ortónima atinge graus de grande génio, mas nunca é tão coerente e consistente como as poesias dos heterónimos. O seu génio revelou-se na sua personalidade fragementada
Um pouco da sua vida... Fernando António Nogueira Pessoa nasce a 13 de Junho de 1888, às 3h20 da tarde, no quarto andar esquerdo do nº 4 do Largo de São Carlos, em frente da ópera de Lisboa. Filho do funcionário publico e crítico musical, Joaquim de Seabra Pessoa, e de Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa, uma pequena família de Aristocratas. Nascido no dia de Santo António, recebeu seu nome, Fernando pelo seu nome de baptismo, Fernando de Bulhões, e António pelo seu nome canónico. Aos cinco anos o pai morre de tuberculose tal como o seu irmão mais novo. A mãe perante as adversidades foi obrigada a leiloar mobilia e a mudar-se para uma casa mais modesta. Ilustração 1: Fernando pessoa com a sua mãe
Aos cinco anos o pai morre de tuberculose tal como o seu irmão mais novo. A mãe perante as adversidades foi obrigada a leiloar mobilia e a mudar-se para uma casa mais modesta. Em 1895, Maria Magdalena casou-se novamente, por procuração, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban, na África do Sul. Em razão da profissão do padrasto, o pequeno partiu com a família para Durban, em 1896, onde viveria por muitos anos.
Ilustração 2: Mãe e Padrasto de Fernando Pessoa
Foi na África do Sul que Fernando Pessoa obteve uma educação inglesa que o iria influenciar pelo resto da vida e que viu despertar o seu talento para a literatura, começando a escrever não só em português mas também em inglês. Em 1903, ao candidatar-se para a Universidade do Cabo da Boa Esperança, não obtém uma boa classificação, mas consegue a melhor nota no ensaio de estilo inglês.
Ilustração 3: A família em Durban: a mãe Maria Madalena Nogueira com a filha Madalena Henriqueta ao colo, Fernando Pessoa, a irmã Henriqueta Madalena, o irmão Luís Miguel e o padrasto João Miguel Rosa.
Fernando Pessoa regressa definitivamente a Portugal em 1905. Volta sozinho e vai viver com a avó e duas tias , em Lisboa, onde se matricula no Curso Superior de Letras. Em 1907, a sua avó morre deixando-lhe uma pequena herança com a qual ele funda uma pequena tipografia abandonando o curso de letras, mas o negócio não prospera, e em poucos meses vem a falência. A partir de então, passa a trabalhar como tradutor e correspondente estrangeiro em casas comerciais, vindo a ser a sua profissão o resto da sua vida.
Em 1920 a mãe, viúva, regressou a Portugal com os irmãos voltando Fernando Pessoa a viver com a família. Na mesma altura iniciou uma relação sentimental com Ophélia Queiroz, colega de trabalho, uma relação breve na qual ele trocou algumas cartas de amor. Em 1925, ocorreria a morte da mãe.
Ilustração 4: Ophélia Queiroz
Fernando Pessoa viria a morrer uma década depois, a 30 de Novembro de 1935 no Hospital de São Luís dos Franceses, onde foi internado com uma cólica hepática, causada provavelmente pelo consumo excessivo de álcool.
Levou uma vida relativamente apagada, movimentou-se num círculo restrito de amigos que frequentavam as tertúlias intelectuais dos cafés da capital, envolveu-se nas discussões literárias e até políticas da época. Colaborou na revista A Águia da Renascença Portuguesa, com artigos de crítica literária sobre a nova poesia portuguesa.
Ilustração 5: Fernando Pessoa e o mago Aleister Crowley, em Lisboa, em 1930
Em 1913 publica as "Impressões do Crepúsculo" (poema tomado como exemplo de uma nova corrente, o paulismo) e em 1940 aparecem três dos seus principais heterónimos, segundo indicação do próprio Fernando Pessoa, em carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro, sobre a origem destes. Fernando Pessoa escreveu uma nota biográfica, dactilografada e assinada pelo próprio a 30 de Março de 1935 como introdução ao poema À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais.
O Ortónimo Fernando Pessoa conta a insatisfação da sua alma, a dor de pensar, o fingimento poético, a construção da realidade, o desejo do sonho, o ocultismo, a solidão, a nostalgia e a angústia existencial que se dissipam no tédio da vida. Na poesia do ortónimo coexistem duas vertentes, a tradicional uma vez que dá continuidade ao lirismo português, estando presente o desencanto e a melancolia e a modernista que é onde se dá o processo de ruptura, ou seja, os heterónimos.
O Sujeito poético encontra-se na busca de uma identidade perdida, não sabendo definirse enquanto sujeito, recusando a realidade enquanto aparência criando uma consciência do absurdo da existência. Ao mesmo tempo, existe um anti-sentimentalismo que se verifica em estados negativos de solidão, tédio, angústia e cansaço, numa inquietação e dor de viver e na oposição entre o sentimento e o pensamento e no pensamento e vontade. Na tentativa de superar a dor do presente Fernando Pessoa recorre à evocação da infância, ao refúgio no sonho e ao ocultismo. Para o poeta a vida é sentida como uma cadeia de instantes que uns aos outros se vão sucedendo, sem qualquer relação entre eles, provocando no poeta o sentimento da fragmentação e da falta de identidade sendo o presente o único tempo por ele experimentado, a relação com o passado não existe e o futuro apenas aumentará a sua angústia porque é o resultado de sucessivos presentes carregados de negatividade, tendo uma visão negativa e pessimista da existência.
Características temáticas ● Incapacidade de auto-definição Gato que brincas na rua Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama. Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes, Que tens instintos gerais E sentes só o que sentes. És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu.
Neste poema é possível verificar que o ortónimo sente “inveja” da inconsciência do gato, que brinca na rua e é feliz apenas por ser como é, revelando a consciência de saber que não vive com a mesma simplicidade que ele. Fernando Pessoa não consegue viver instintivamente por ser feliz e efémere, concluindo que a felicidade apenas seria possível se não pensássemos nem tivéssemos consciência do mundo e do que somos. Pessoa vive numa constante dor possivelmente derivada da sua incapacidade de definição enquanto sujeito neste mundo tendo criado a ideia de que a realidade é apenas uma aparência derivando assim a felicidade do interior de cada um, sendo a nossa visão e vivência no mundo exterior influenciada pelos sentimentos.
● Fingimento como elaboração mental das emoções
Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.
A poesia do ortónimo revela a despersonalização do poeta fingidor que fala e que se identifica com a própria criação poética, como impõe a modernidade. A expressão dos sentimentos e sensações provêm de uma construção mental onde a imaginação é essencial, criando uma composição poética resultante de um jogo entre palavras que tentam fugir ao sentimentalismo e racionalização não deixando por isso de ser sincero apenas se trata de uma representação. O poeta recorre à ironia para pôr tudo em causa, inclusivamente a própria sinceridade, concluindo que o poeta é um fingidor.
● Distância entre o idealizado e o realizado Tudo o que faço ou medito Tudo o que faço ou medito Fica sempre na metade. Querendo, quero o infinito. Fazendo, nada é verdade. Que nojo de mim fica Ao olhar para o que faço! Minha alma é lúcida e rica E eu sou um mar de sargaço – Um mar onde bóiam lentos Fragmentos de um mar de além... Vontades ou pensamentos? Não o sei e sei-o bem.
A sua poesia baseia-se na vivência de estados imaginários, sendo algo pensado e não real. O ortónimo fala frequentemente sobre os seus sonhos e desejos, tendo incontáveis projectos a correr na sua cabeça mas “Fica sempre na metade”, isto é, os seus projectos não se realizam por inteiro, pois na vida a realidade nunca se encontra com o sonho. Apesar de todos os seus sonhos e desejos ele é um mar de sargaço pois sente-se impedido de se mover, de caminhar e avançar conforme a sua imaginação. O sujeito poético deseja encontrar o lugar onde o idealizado poderá ser o realizado deixando ao futuro a hipótese de tal ser possível.
● Intersecção entre o sonho e a realidade Chuva oblíqua I Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios Que largam do cais arrastando nas águas por sombra Os vultos ao sol daquelas árvores antigas... O porto que sonho é sombrio e pálido E esta paisagem é cheia de sol deste lado... Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol... Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo... O vulto do cais é a estrada nítida e calma Que se levanta e se ergue como um muro, E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Com uma horizontalidade vertical, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
O sujeito poético revela-se duplo na busca de sensações que o levarão à felicidade surgindo assim o interseccionismo entre o material e o sonho, a realidade e idealidade surge como tentativa para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência. A sua poesia baseia-se na vivência de estados imaginários, sendo algo pensado e não real, tentando encontrar algo melhor que a realidade não consegue dar.
Não sei quem me sonho... Súbito toda a água do mar do porto é transparente e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto, E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, E passa para o outro lado da minha alma...
● Recusa da realidade, enquanto aparência Há entre mim e o real um véu Há entre mim e o real um véu À própria concepção impenetrável. Não me concebo amando, combatendo, Vivendo como os outros. Há em mim, Uma impossibilidade de existir De que [abdiquei], vivendo.
● Anti-sentimentalismo: intelectualização da emoção Isto Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração. Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê!
Para o poeta, a arte é resultado da fusão do sentir e do pensar, fornecendo assim à inteligência as emoções necessárias para a produção do poema, emoções estas que têm de ser intelectualizadas, ou seja sentidas com a imaginação e não com o coração. O poeta tem noção que busca algo inacessível mas fá-lo porque sente a necessidade de encontrar algo mais belo. O sujeito poético nega o "uso do coração", apontando para a simultaneidade dos actos de "sentir" e "imaginar", apresentando-nos a obra poética como uma espécie de síntese onde a sensação surge filtrada pela imaginação criadora.
●Evocação da infância e angustia existencial Pobre velha música! Pobre velha música! Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado. Recordo outro ouvir-te, Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti. Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora. Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
O sentimento que aqui podemos encontrar é a nostalgia, isto é, o sentimento de falta de algo que um dia o fez feliz e o desejo de a poder ter de volta mesmo sabendo que tal não é possível. A infância por ele representada é uma infância feliz e alegre acabando por revelar a dor que sente pois o pensamento apenas o lembra das angústias escrevendo assim sobre aquilo que deveria pensar pois aquilo que pensa não lhe traz boas recordações, imaginando por vezes que não a viveu e que teve uma infância diferente daquela que realmente presenciou Pessoa sente a nostalgia da criança que passou ao lado das alegrias e da ternura. Chora, por isso, uma felicidade passada, para lá da infância.
Estilo de Escrita O Ortónimo tem preferência pela métrica curta, pela simplicidade formal e por uma linguagem simples, espontânea mas sóbria. O verso é predominantemente constituído por 7 sílabas sendo geralmente quadras ou quintilhas. É dotado de uma grande sensibilidade musical uma vez que é possível encontrar nos seus poemas uma grande harmonia de sons, aliterações e adjectivação expressiva. A nível de recursos estilísticos usa frequentemente comparações, metáforas e oxímoros. Além disto faz um reaproveitamento dos símbolos tradicionais como, água, o rio, o mar.
Modernismo O Modernismo consistiu num movimento artístico que se deu no início do século XX num momento de crise aguda e de dissolução de muitos valores em que os artistas reagiram ao cepticismo social através da agressão cultural, pelo sarcasmo e pelo exercício gratuito das energias individuais, ou então pela entrega às sensações, à grandeza inumana das máquinas, das técnicas e da vida nas cidades. As minorias criadoras manifestaram-se por impulsos de ruptura com as diversas ordens vigentes, tentando romper com as camadas conservadoras e redescobrir o mundo através linguagem estética. Na área da poesia recusam-se os temas poéticos já gastos, as estruturas vigentes da poética ultrapassada. A arte entra numa dimensão diferente na qual os objectos não-estéticos e a vida quotidiana entram na arte passando a recusar-se o código linguístico convencional surgindo novas linguagens literárias como o uso da desarticulação deliberada e das metáforas, quase inacessíveis ao entendimento comum. O Modernismo encerra um humanismo seminal, incita à plenitude individual, despontando o Sobrerrealismo a par da visão do mundo como algo absurdo e sem suporte. Como tal, este movimento expressa um desejo de ruptura e redescoberta do mundo. Em Portugal o modernismo pode ser considerado um movimento estético, em que a literatura surge associada às artes plásticas e por elas influenciada, tendo como nomes principais Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Almada Negreiros.
Inevitavelmente a corrente modernista reflectiu um espírito de mudança na literatura e nas artes, numa diversidade de experiências de vanguarda, que vão marcar a cultura do início do século, em Portugal. Almada Negreiros é referido como o introdutor do modernismo em Portugal. Ele foi um escritor e artista plástico, nascido em S. Tomé e Príncipe em 1893, tendo sido um dos fundadores da revista Orpheu. As duas orientações de busca e criação de Almada Negreiros foram a beleza e a sabedoria. Para ele "a beleza não podia ser ignorante e idiota tal como a sabedoria não podia ser feia e triste" (Freitas, 1985). Almada Negreiros foi um pintor-pensador. Foi praticante de uma arte elaborada que pressupõe uma aprendizagem que não se esgota nas escolas de arte, uma aprendizagem que implica um percurso introspectivo e universal.
Geração de orpheu Este grupo de jovens surgiu com o início da guerra, em 1914, quando se reuniram factores de um movimento estético pós-simbolista em Lisboa. Juntaram-se personalidades como Fernando Pessoa, Mario de Sá Carneiro e Almada Negreiro. As suas ideias e pensamentos despertaram criticas, não só pela formação e temperamento particulares que eles possuíam mas também pelo sentimento geral de crise latente. Esta geração tinha como propósito “dar uma bofetada no gosto público”(citação de Maiakovsky, usada por Almada Negreiros), ou seja, pretendia agitar e escandalizar a inteligência e sensibilidade, pondo todas as convenções em causa e tentando comunicar a nova mensagem europeia preocupando-se apenas com a beleza da poesia, arte pela arte, embora proporcionado a descida às profundezas do subconsciente e à fixação da agitada idade moderna . Aliada ao surgimento do modernismo e desta geração a escrita também foi sofrendo alterações, por exemplo, a sociedade material integrou-se na poesia, o verso livre, a poesia insólita e na prosa o enredo perde a importância.
Orpheu "reagir em Leonino contra o ambiente" O primeiro número saiu em 1915, correspondente a Janeiro, Fevereiro e Março. As 83 páginas da revista, impressa em papel de boa qualidade e elegante, abriam com uma «introdução» de Luís de Montalvor, em que se pretendia definir os intuitos da obra a que meteu ombros um grupo de jovens que com frequência se reuniam em alguns cafés da baixa lisboeta. Depois desta apenas saiu mais um número pois deixaram de ter financiamento e apenas o talento e o arrojo não bastam para o sucesso. A ideia da criação desta revista surgiu de Luís Montalvor tal como O título "Orpheu" , cuja palavra designa uma figura mítica que vai ao mundos dos mortos socorrer a sua mulher, sem nunca poder olhar para trás, tendo a ideia avançado devido ao entusiasmo dos participantes e às possibilidades económicas do pai de Sá-Carneiro. Para Montalvor, Orfeu «é um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento» cujo objectivo seria «formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em Orfeu o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermos».
O primeiro número foi dirigido por Luís de Montalvor e pelo brasileiro Ronald de Carvalho, e o segundo, por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, tendo ambos como editor António Ferro. O número 3 chegou a ser anunciado, mas ficou incompleto e em provas tipográficas, e só em 1984 seria publicado. Sob o impulso entusiasta de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro, foram seus colaboradores Almada Negreiros, Alfredo Guisado, Armando Cortes Rodrigues, J. Pacheco, Santa-Rita Pintor, entre outros. Orpheu acabou por ser decisiva precisamente porque não ter sido entendida, pois foi o início do rompimento de um passado romântico e simbolista e a marcação de uma nova geração que recusava viver a “herança” dos seus pais. Talvez se tivesse surgido noutra altura o impacto não fosse o mesmo mas a realidade é que o efeito produzido com apenas duas publicações foi o suficiente para abrir novos horizontes e deixar que surgissem novas formas de pensar e agir. Nesta revista foram possível observar grandes críticas nomeadamente através da “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos e “Manucure” de Mário de Sá-Carneiro. “Ode Triunfal” marcou o aparecimento do heterónimo Álvaro de Campos sendo um poema que canta o triunfo da técnica, as máquinas, os motores, a velocidade, a civilização mecânica e industrial, o comércio e os escândalos da contemporaneidade. O sujeito pretende transmitir que sentir tudo de todas as maneiras é o ideal, é necessário sentir a histeria de sensações e identificar-se com coisas impensáveis.
Haveria Orpheu sem Campos? Talvez, mas é porventura Campos o motor da modernidade da revista e do subsequente escândalo que a mesma causou.
A Águia A Águia foi uma revista mensal dirigida por Teixeira de Pascoaes, órgão da Renascença portuguesa e cujos temas eram literatura, arte, ciência, filosofia e crítica social. Fernando Pessoa estreia-se na edição número 4 da revista com vários estudos sobre a nova poesia portuguesa. Sente-se atraído pela doutrina subjacente a esta publicação o que o faz aderir ao patriotismo, nacionalismo, espiritualismo e à intenção de despertar e espalhar a alma portuguesa. No entanto, em breve surgem discordâncias de Pessoa em relação à doutrina e a alguns dos colaboradores desta publicação levando-o a ampliar dos horizontes do poeta para campos muito diversos daqueles que se cultivavam pelos poetas de A Águia. O afastamento de Fernando Pessoa do grupo de poetas reunidos em torno do órgão da Renascença Portuguesa culmina em finais de 1914, quando esta publicação mostra um profundo desinteresse em publicar o seu drama estático O Marinheiro, rompendo assim a sua ligação à revista.
Athena "Dar ao público português, tanto quanto possível, uma revista puramente de arte, isto é, nem de ocasião e início como o Orpheu, nem quase de pura decoração como a admirável Contemporânea." Fernando Pessoa, em entrevista ao Diário de Lisboa, Novembro de 1924 Foi uma revista dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz, publicada em Lisboa, da qual saíram cinco números, entre Outubro de 1924 e Fevereiro de 1925. Surgindo no seguimento da linha de orientação do Orpheu, tento a maioria do seu interesse literário devido aos textos de Pessoa. Surgiu como alternativa no campo da revista literária, que não pretendia promover um projecto cultural, nem accionar um movimento, nem ser apreciada apenas pelo seu aspecto estético, mas sim ser um espaço de reflexão teórica, de balanço do itinerário percorrido desde Orpheu e de apresentação de novas vias para o modernismo.
Presença Presença foi uma das mais influentes revistas literárias portuguesas do Século XX. Foi lançada inicialmente em Coimbra em 1927 por nomes como José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões sendo publicados 54 números até à sua extinção em 1940. Muito nomes colaboraram nesta revista, entre os quais Adolfo Casais Monteiro, Miguel Torga e Vitorino Nemésio e tinham como objectivo a criação de uma literatura mais viva, livre, oposta ao academismo e jornalismo rotineiro, primando pela crítica, pela predominância do individual sobre o colectivo, do psicológico sobre o social, da intuição sobre a razão. Elegeu como "mestres" os artistas da Revista Orpheu, muitos dos quais ainda colaboraram na Presença, a revista foi importante na difusão de uma segunda fase do Modernismo, desta vez numa vertente mais crítica. As páginas da Presença eram uma “Folha de Arte e crítica” que servia para a promoção e intercâmbio literário com vários poetas e prosadores brasileiros, à margem das iniciativas oficiais, a divulgação das principais obras e escritores europeus da primeira metade do século e a busca da verdade na sua essência, numa vertente mais intemporal.
Mensagem “O mito é o nada que é tudo” Mensagem foi a única obra escrita e publicada em português por Fernando Pessoa, em 1934 e publicada no dia 1 de Dezembro. Este livro é uma colectânea de poesias breves compostas em épocas diferentes mas que abordam uma mesma temática, a visão mítica da pátria portuguesa, isto é, uma visão sobre figuras ou momentos da história até ao declínio do império. É rico em metáforas e imagens inéditas de uma admirável musicalidade. A obra possui marcas épicas e líricas onde o leitor pode apreciar a concepção transhistórica e mítica de Fernando Pessoa onde figura o aparecimento da pátria cultural portuguesa constituinte do V Império. A estruturação da obra revela a sua índole sebastianista uma vez que se encontra dividida em três partes (“Brasão”, “Mar Português” e “O Encoberto”), o que corresponde a: os fundadores (a origem), a realização (a vida), a morte (fim das energias). Esta estrutura tripartida é simbólica demonstrando a história cíclica de um povo, o nascimento, o apogeu e a morte.
Em Brasão, estão os construtores do Império, desfilando heróis históricos desde Ulisses a D.Sebastião. O poeta começa por fazer a localização de Portugal na Europa e a sua relação com o Mundo, salientando a sua importância, apresentando também a definição do mito realçando o seu valor na construção da realidade. O povo português é o construtor do império marítimo, assim como revela os predestinados, responsáveis pela construção do país. Em Mar Português, surge o sonho marítimo e a obra das descobertas, apresentando obras inspiradas no desejo do desconhecido e no esforço da luta com o mar, salientando a grandeza do sonho transformado em acção, unificando a acção humano com o destino traçado por Deus. Em O Encoberto, há a imagem do Império moribundo, um Portugal triste com a fé de que a morte contenha em si o gérmen da ressurreição, o espírito do império espiritual, moral e civilizacional na Diáspora lusíada. O poeta considera que chegou a hora de despertar para uma missão, a constituição de um Quinto Império, um reino de liberdade de espírito e de redenção, pressagiando a vinda de D.Sebastião. A Mensagem termina com um grito de felicidade e um apelo para que todos lutem por um novo Portugal. O poema Quinto Império consiste numa oposição entre uma sociedade estagnada, com valores antiquados necessitados de uma renovação cultural, aliando-se assim ao mito sebastianista devido ao tempo de renovação e regeneração, encontrando-se a reminiscência de um passado histórico glorioso recriando o mito na esperança de encontrar o paraíso perdido e a comunhão entre o homem e a vontade divina.
Algumas palavras sobre ele mesmo
“Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo. Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por demais inteligente.” Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por George Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
“Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta de bondade, de compaixão, de tudo o que é ternura e amor. Contudo, nenhuma alma há tão solitária como a minha ― solitária, note-se, não mercê de circunstâncias exteriores, mas sim de circunstâncias interiores. O que quero dizer é: a par da minha grande ternura e bondade, entrou no mau carácter um elemento da natureza inteiramente oposto, um elemento de tristeza, egocentrismo, portanto de egoísmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a plena acção interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo a vontade, a sua plena acção externa, a sua manifestação. Hei-de analisar isto; um dia hei-de examinar melhor, destrinçar, os elementos que constituem o meu carácter, pois a minha curiosidade acerca de tudo, aliada à minha curiosidade por mim próprio e pelo meu carácter, conduz a uma tentativa para compreender a minha personalidade.” Páginas íntimas e de auto-interpretação, Fernando Pessoa
A primeira nutrição literária da minha meninice foi a que se encontrava em numerosos romances de mistério e de aventuras horríveis. Pouco me interessavam os livros ditos para rapazes e que relatam vivências emocionantes. Não me atraía a vida saudável e natural. Anelava, não pelo provável, mas pelo incrível, nem sequer pelo impossível em grau, mas sim pelo impossível por natureza. A minha infância decorreu serena (...), recebi uma boa educação. Mas, desde que tenho consciência de mim mesmo, apercebi-me de uma tendência nata em mim para a mistificação, para a mentira artística. Junte-se a isto um grande amor pelo espiritual, pelo misterioso, pelo obscuro, que, ao fim e ao cabo, não era senão uma forma e uma variante daquela outra minha característica, e a minha personalidade será completa para a intuição. 1906? Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa.
“Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar a mim mesmo, de me apiedar com lágrimas, sobre o meu próprio eu. Acabo de ter uma espécie de cena com a tia Rita acerca de F. Coelho. No fim dela senti de novo um desses sintomas que cada vez se tornam mais claros e sempre mais horríveis em mim: uma vertigem moral. Na vertigem física há um rodopiar do mundo externo em relação a nós: na vertigem moral, um rodopiar do mundo interior. Pareceme perder por momentos, o sentido da verdadeira relação das coisas, perder a compreensão, cair num abismo de suspensão mental. É uma pavorosa sensação esta de uma pessoa se sentir abalada por um medo desordenado. Estes sentimentos vão-se tornando comuns, parecem abrirme o caminho para uma nova vida mental, que acabará na loucura. Na minha família não há compreensão do meu estado mental - não, nenhuma. Riem-se de mim, escarnecem-me, não me acreditam. Dizem que o que eu pretendo é mostrar-me uma pessoa extraordinária. Nada fazem para analisar o desejo que leva uma pessoa a querer ser extraordinária. Não podem compreender que entre ser-se e desejar-se ser extraordinário não há senão a diferença da consciência que é acrescentada ao facto de se querer ser extraordinário. É o mesmo caso que se dava comigo brincando com soldados de chumbo aos sete e aos catorze anos, no primeiro caso os soldados eram para mim coisas e no segundo coisas e coisas-brinquedos ao mesmo tempo: no entanto o impulso para brincar com eles subsistia e esse é que era o real e fundamental estado psíquico.” Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa.
Vida amorosa – Ophélia Queiroz Em toda a sua vida, uma única mulher fez parte da sua biografia. O seu nome era Ophélia Queiroz, de 19 anos, uma colega de trabalho com quem teve um breve namoro e trocou cartas de amor, nas quais ela se dirigia a Ferdinand Personne, ou “Monsieur Personne”. Esta relação iniciou-se no momento em que se encontrava numa grande solidão, de dia trabalhava como modesto escriturário e tradutor e à noite bebia e fazia poesia publicada em algumas revistas literárias. O romance,dividiu-se em duas fases, a primeira durou poucos meses e, nas cartas, Pessoa começava a tratá-la como uma criancinha. Todos os críticos e estudiosos estão de acordo que este tom infantil não é inocente. Ophélia entra no jogo da 'infantilidade perversa' e da dupla personalidade, recebendo e respondendo cartas em que Álvaro de Campos a adverte que Fernando Pessoa não deveria ser levado a sério. Ophélia muda para o outro lado da Cidade, a morte do padrasto e a volta da mãe para Lisboa somados ao estado dos nervos do poeta, que se reconhece muito doente, arrefecem o pequeno entusiasmo que impulsionava a relação e a 29 de Novembro de 1920, envia uma mensagem na qual encerra o namoro: "O amor passou... O meu destino pertence a outra Lei, cuja existência a Ophelinha ignora, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam..."
Quase 10 anos depois, Carlos Queiroz, sobrinho de Ophélia e amigo de Pessoa, envia-lhe uma foto de “Fernando Pessoa em flagrante delito” o que reacendeu a relação sentimental com Ophélia iniciando-se aqui a segunda fase de cartas de amor. Sabe-se que o poeta teria confidenciado a Agostinho da Silva que estaria arrependido de ter escrito as cartas de amor a Ophélia pois apenas o teria feito movido pela sua “fantasia heteronímica” e não por nutrir uma verdadeira paixão por ela, tendo terminado a relação no momento em que percebeu que Ophélia estaria apaixonada por ele enquanto que ele vivia apenas um amor fictício, não sendo ela merecedora de tal sofrimento. As cartas de amor nos remetem a Ricardo Reis, a Alberto Caeiro e a Álvaro de Campos. Ainda que enviadas a Ophélia Queiroz é com estes que dialogam. «Ophelinha» praticamente não existiu, é bom dizer que Ophélia Queiroz, esta sim, teve vida de facto e o espaço ocupado por Ophélia não é um espaço dela sendo as cartas trocadas entre eles cartas entre Fernando Pessoa e Fernando Pessoa. Toda a situação abalou Ophélia Queiroz, mas após uma fase de perplexidade acabou por casar com o teatrólogo Augusto Soares com quem se casou três anos após a morte de Pessoa.
Misticismo e Ocultismo
Ilustração 6: Aleister Crowley
Se a vida amorosa foi feita de mistério, também se diz que Pessoa praticou o misticismo e ocultismo mas sobre isso pouco se sabe ou existem “lacunas de informação”. Sabe-se de uma suposta ligação com a Maçonaria e com a Rosa Cruz mas tal nunca foi provado, apenas se sabe que defendia publicamente estas escolas e fraternidades, por exemplo, no “Diário de Lisboa”. Pessoa dizia-se um cristão gnóstico e, iniciado nas tradições místicas, estudou a fundo astrologia, chegando a pensar em estabelecer-se em Lisboa como astrólogo. Elaborou mapas astrológicos para a maioria dos seus heterónimos e para Portugal, fazendo também consultas astrológicas para si mesmo. Foi um estudioso profundo das “ciências Ocultas”, tendo deixado bastantes anotações sobre temas esotéricos.
O poeta apreciava também o trabalho do famoso ocultista Aleister Crowley, tendo certa vez detectado erros no horóscopo de uma publicação inglesa de Crowley, escrevendo-lhe para os corrigir. Os seus conhecimentos de astrologia impressionaram Crowley e, como este gostava de viagens, veio a Portugal conhecer o poeta, num encontro que ocorreu com algum sensacionalismo, dado o Poeta Inglês ter simulado o seu suicídio na Boca do Inferno, o que atraiu várias polícias europeus e a atenção dos média da época. Pessoa estaria dentro da encenação, tendo combinado com Crowley a notificação dos jornais e a redacção de um "romance policiário" cujos direitos reverteriam a favor dos dois poetas. Apesar de ter escrito várias dezenas de páginas, essa obra de ficção nunca foi concretizada
Ilustração 7: O mago Aleister Crowley e Pessoa em Lisboa, em Setembro de 1930.
“A Fase Mística de Fernando Pessoa”, elaborado em 2003, Heterónimos
“Sê plural como o universo”
Rascunho de uma carta a Adolfo Casais Monteiro -1935] Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro das suas almas. Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras de meu sonho ― um capitão Thibeaut, um Chevalier de Pas ― e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita lembrança daqueles, é uma das grandes saudades da minha vida. Isto parece simplesmente aquela imaginação infantil que se entretém com a atribuição de vida a bonecos ou bonecas. Era porém mais: eu não precisava de bonecas para conceber intensamente essas figuras. Claras e visíveis no meu sonho constante, realidades exactamente humanas para mim, qualquer boneco, por irreal, as estragaria. Eram gente. Além disto, esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicou-se com o crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural do meu espírito. Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha. Trata-se, contudo, simplesmente do temperamento dramático elevado ao máximo; escrevendo, em vez de dramas em actos e acção, dramas em almas. Tão simples é, na sua substância, este fenómeno aparentemente tão confuso. Não nego, porém ― favoreço, até ― a explicação psiquiátrica, mas deve compreender-se que toda a actividade superior do espírito, porque é anormal, é igualmente susceptível de interpretação psiquiátrica. Não me custa admitir que eu seja louco, mas exijo que se compreenda que não sou louco diferentemente de Shakespeare, qualquer que seja o valor relativo dos produtos do lado são da nossa loucura. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. Pessoa.
Pessoa foi o escritor dos heterónimos, dos pseudónimos e das múltiplas personalidades, possuindo desta forma uma obra única. A criação de heterónimos nasceu não só de uma capacidade mas também de uma necessidade, tendo criado o seu primeiro apenas com 6 anos, Chevalier de Pass, com o objectivo de se cercar de amigos que nunca existiram. Dentro de um grande numero de heterónimos surgem nomes como Thomas Cross, Miguel Otto, José Rasteiro, Barão de Teive, Francisco Reis, Maria José, António Mora e José Rasteiro, mas de todos existem três que se destacam, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Ilustração 8: Carta de Fernando Pessoa dirigida a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos.
Ricardo Reis
“Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)” (excerto da carta a Adolfo Casais Monteiro, 1935)
Segundo a Carta escrita a Adolfo Casais Monteiro, Ricardo Reis foi imaginado de relance pelo poeta por volta de 1912. Nasceu no Porto, recebeu uma educação clássica num colégio de jesuítas, formou-se em medicina, exercendo essa profissão. Viveu no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico, na sequência da derrota da rebelião monárquica do Porto contra o regime republicano. É um latinista por educação, e um semi-helenista por educação própria. As suas obras iniciais terão sido publicadas na revista Athena em 1924 e mais tarde, oito odes, entre 1927 e 1930, na revista Presença, de Coimbra.
Ilustração 9: Caricatura de Ricardo Reis
Características temáticas e de escrita Epicurismo É uma doutrina baseada num ideal de sabedoria que busca a tranquilidade da alma e para isso a morte não deve ser temida pois é a única certeza que temos na vida, devem procurar-se os simples prazeres da vida em todos os sentidos e sem preocupações com o futuro, o designado carpe diem, mas sem excessos e vivendo cada instante como se fosse o último. Outra característica é a fuga à dor, ou seja, a razão sobreposta à emoção no sentido de defesa contra o sentimento.
Estoicismo É uma doutrina que tem como ideal ético a apatia, isto é, a ausência de envolvimento emocional excessivo com o objectivo de atingir a liberdade de forma a que seja possível alcançar a felicidade; não como estado de alegria mas como um contentamento inconsciente. O estoicismo tem como características o domínio das paixões para evitar ter desilusões, de modo a que nada perturbe a serenidade e a razão, e porque este é uma inutilidade e está já condenado, uma vez que tudo na vida tem um fim e a aceitação da ordem universal das coisas, incluindo a morte.
Na sua escrita, Ricardo Reis procura atingir a paz e o equilíbrio sem sofrer através da autodisciplina e das disciplinas gregas epicurismo e estoicismo, procurando assim atingir a ataraxia (ausência de preocupação). Ele admite a limitação e a fatalidade da condição humana, pretendendo chegar à morte de mãos vazias de modo a não ter nada a perder e inspirado na mitologia clássica, considera a vida como uma viagem cujo fluir e fim é inevitável. A sua poesia tem muitas alusões mitológias, com uma linguagem culta e precisa, sem espontaneidade e uso de um vocabulário culto e alatinado Na sua escrita é possível encontrar a renúncia da vida através da recusa do amor, a consciência da “rapidez” com que o tempo corre, elogio à vida campestre, o fatalismo e a aceitação calma e tranquila do destino, verificando-se uma influência do Neopaganismo. Quanto ao estilo de escrita usa um vocabulário preciso mas coloquial recorrendo frequentemente a arcaísmos, ao gerúndio e ao imperativo. As suas formas estróficas e métricas possuem influência clássica e a escrita uma influência latina.
Dados incoerentes Na biografia de Ricardo Reis existem alguns dados incoerentes, por exemplo, para o seu nascimento, Fernando Pessoa estabeleceu datas distintas. Primeiro afirma, de acordo com o texto de Páginas Íntimas e de Auto- Interpretação que este nasce no seu espírito no dia 29 de Janeiro de 1914: «O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização, da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as cousas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reacção momentânea. Quando reparei em que estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, que se ia desenvolvendo.». Mais tarde, numa carta a Adolfo Casais Monteiro datada de 13 de janeiro de 1935, altera a data deste nascimento afirmando que Ricardo Reis nascera no seu espírito em 1912. Fernando Pessoa considera que este heterónimo foi o primeiro a revelar-se-lhe, ainda que não tenha sido o primeiro a iniciar a sua actividade literária. Se Ricardo Reis está “vivo” desde o ano de 1912, a julgar pela carta mencionada, é só em Março de 1914 que o autor das Odes inicia a sua produção até 13 de Dezembro de 1933. O horóscopo que Pessoa fez dele, situa o seu nascimento em 19 de Setembro de 1887 em Lisboa às 4.05 da tarde enquanto que na Carta a sua cidade natal é o Porto.
Alberto Caeiro “Num dia em que finalmente desistira ― foi em 8 de Março de 1914 ―, acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, «O Guardador de Rebanhos». E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.” (excerto da carta a Adolfo Casais Monteiro, 1935)
Foi no dia 8 de Março de 1914 que Fernando Pessoa teve o que ele chamou do seu "dia triunfal", isto é, o dia em que nasceu Alberto Caeiro. Este é considerado o “Mestre” pelos heterónimos e pelo próprio Pessoa pois ao contrário destes, consegue submeter o pensar ao sentir, conseguindo assim viver sem dor, envelhecer sem angústia e morrer sem desespero, não procura encontrar sentido para a vida e para as coisas que lhe rodeiam, sente sem pensar e é um ser único, não fragmentado.
Ilustração 10: Caricatura de Alberto Caeiro
Segundo a sua biografia Alberto Caeiro nasceu em Lisboa, órfão de mãe e pai tendo vivido grande parte da sua vida no Ribatejo com a sua tia-avó idosa, onde escreveu o Guardador de Rebanhos e O pastor Amoroso. Estudou apenas até ao 4º ano, não tendo assim exercido qualquer profissão. Com apenas 26 anos morreu de tuberculose, tendo vivido ainda uns tempos em Lisboa, onde escreveu Os Poemas Inconjuntos.
Características temáticas e de escrita Alberto Caeiro foi um poeta ligado à natureza, que despreza e repreende qualquer tipo de pensamento filosófico, afirmando que pensar não permite ver o mundo como ele realmente é ("pensar é estar doente dos olhos") e que, ao pensar, entramos num mundo complexo e problemático onde tudo é incerto e obscuro. Ele possui um grande interesse pela natureza, pelo verso livre e pela linguagem simples e familiar, apresentando-se como um simples "guardador de rebanhos" cuja sensação é a única realidade, sendo assim o poeta das sensações verdadeiras, do olhar, dos 5 sentidos. Este é o poeta do real objectivo, uma vez que aceita a realidade e o mundo exterior como são com alegria ingénua e contemplação, recusando a subjectividade. Ele rende-se ao destino e à ordem natural das coisas, elas não têm significado mas sim existência, sendo a existência o seu próprio significado, vivendo assim no presente não lhe interessando o passado ou o futuro.
Caeiro defende um panteísmo naturalista, isto é, Deus não é uma entidade divina por si só, a divindade preside em Deus, na Natureza e no Universo, estando aasim na simplicidade e presente em todas as coisas. O poeta vive em simbiose com a natureza pois necessita dela para viver e ser feliz, é dela que provém a sua felicidade.
Ilustração 11: Pintura de Julien Dupré, pintor naturalista.
A sua escrita apresenta-se com um estilo discursivo, uma linguagem simples e concreta, liberdade estrófica e métrica, usa frequentemente a comparação e o substantivo concreto em detrimento das metáforas e do adjectivo.
O Guardador de Rebanhos “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos… Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é. Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem por que ama, nem o que é amar… amar…” ” Excerto de “O Guardador de Rebanhos”, Alberto Caeiro
O Guardador de Rebanhos Rebanhos é é um poema constituído por 49 textos escritos por Alberto Caeiro em 1914, numa noite de insónia de Fernando Pessoa, tendo marcado o dia do surgimento deste heterónimo, “o dia triunfal”. Foram publicados em 1925 nas 4ª e 5ª edições da revista Athena Athena,, com excepção do 8º poema do conjunto que só viria a ser publicado em 1931, na revista revista Presença Presença. . Os poemas mostram a forma simples e natural de sentir e dizer de seu autor, voltado para a natureza e as coisas puras, transmitindo uma visão de um mundo pagão no século vinte. A sua forma permite que o poema se alongue com repetições de motivos que passam de texto para texto não resolvidos ou por resolver, numa recombinação sucessiva, guardando assim pensamentos que são sensações. O rebanho é um símbolo que representa o limite da existência humana, onde reside a liberdade.
“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha
biografia, Não há nada mais simples. Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus.”
Fernando Pessoa/Alberto Caeiro; Poemas Inconjuntos; Escrito entre 1913-15; Publicado em Atena nº 5, Fevereiro de 1925.
«Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tais como são. Ricardo Reis tem outra disciplina diferente: as coisas devem ser sentidas, não só como são, mas também de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regras clássicas.». Páginas íntimas e de Auto-interpretação, Fernando Pessoa
Ricardo Reis tal como Alberto Caeiro aceita a vida sem pensar, mas a diferença preside no facto de Reis sentir em si mesmo a opressão da Natureza e da vida, confiando em deuses incertos e vagos e ressentindo-se na realidade gerando em si sofrimento enquanto que Caeiro aceita ingenuamente a realidade acreditando num Deus fora de si que é um Deus disforme, feito de Natureza, sendo feliz assim mesmo.
Álvaro de Campos “Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via o via.. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a «Ode Triunfal» de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.” (excerto da carta a Adolfo Casais Monteiro, 1935)
Segundo a sua biografia, Álvaro de Campos nasceu em Tavira em 1890, teve uma educação normal de liceu tendo depois ido estudar engenharia mecânica e naval na Escócia. Fez uma viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário tendo também sido marcante na sua restante obra poética. Campos apesar de português sentia-se estrangeiro em qualquer parte do mundo. Foi o único dos heterónimos a manifestar diferentes fases poéticas, começa como decadentista, depois como futurista e no final assume-se com uma veia intimista. Fisicamente tem um tom de pele entre o branco e o moreno, cabelo liso e normalmente apartado ao lado, usa monóculo.
Ilustração 12: Caricatura de Álvaro de Campos
Fases e estilo de escrita É possível verificar que existiram três fases na escrita de Campos, a decadentista, é a que mais se aproxima da nossa poesia de final do século, a modernista, corresponde à experiência de vanguarda iniciada com Orpheu e a intimista, na qual a angústia de existir e ser mais se evidencia e se radicaliza. Na fase Decadentista o poeta exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações, tendo resultado daqui a sua obra Opiário. Esta fase expressa-se como a falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia, com preciosismo, símbolos e imagens apresenta-se marcado pelo Romantismo e pelo Simbolismo. Na fase futurista Álvaro de Campos celebra o triunfo da máquina e da civilização moderna. Sente-se nos poemas uma atracção quase erótica pelas máquinas, símbolo da vida moderna. Campos apresenta a beleza dos “maquinismos em fúria” e da força da máquina por oposição à beleza tradicionalmente concebida. Exalta o progresso técnico, essa “nova revelação metálica e dinâmica de Deus”. A “Ode Triunfal” ou a “Ode Marítima” são bem o exemplo desta intensidade e totalização das sensações. A par da paixão pela máquina, há a náusea, a neurastenia provocada pela poluição física e moral da vida moderna. O futurismo nesta fase é visível no elogio da civilização industrial e da técnica, na ruptura com o subjectivismo da lírica tradicional e na transgressão da moral estabelecida.
Por último, a fase Intimista é aquela em que, perante a incapacidade das realizações, traz de volta o abatimento que provoca um enorme cansaço. Nesta fase, Campos sente-se vazio, um marginal, um incompreendido, sofrendo fechado em si mesmo, angustiado, destacando-se como temáticas a solidão interior, a incapacidade de amar, a descrença em relação a tudo, a nostalgia da infância, a dor de ser lúcido, a estranheza e a perplexidade, a oposição sonho/realidade,, a dissolução do “eu”, a dor de pensar e o conflito entre a realidade e o poeta. A sua escrita caracteriza-se por poemas muito extensos e outros curtos, versos brancos e versos rimados, assonâncias, onomatopeias exageradas, aliterações ousadas e um ritmo crescente, decrescente ou lento nos poemas pessimistas. A nível morfo-sintáctico, podem-se distinguir na fase futurista o excesso de expressão: enumerações exageradas, exclamações, interjeições variadas, versos formados apenas com verbos, mistura de níveis de língua, estrangeirismos, neologismos, desvios sintácticos e na fase intimista, a moderação do nível de expressão, sem abandonar a tendência para o exagero. O poeta utiliza bastantes apóstrofes, anáforas, personificações, hipérboles, oximoros, metáforas ousadas e polissíndetos.
Poema tabacaria, Álvaro de campos Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. (excerto do poema Tabacaria, Álvaro de Campos)
O tema do poema é a dimensão da solidão interior face à vastidão do Universo exterior. A Tabacaria acaba por ser um símbolo que não tem valor próprio - verdadeiramente importante é que esse símbolo faz nascer em Campos a necessidade de analisar a sua própria existência face à existência da Tabacaria enquanto coisa fixa e real.
Bernardo Soares, semi-heterónimo? Bernardo Soares é considerado um semi-heterónimo de Fernando Pessoa pois apesar da sua personalidade não ser como a de Pessoa é semelhante à sua, como ele explica:"não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade." Era ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, onde viveu toda a sua humilde vida de empregado. Vivia sozinho, na Baixa, num quarto alugado perto do escritório onde trabalhava e dos escritórios onde trabalhava Pessoa, tendo-se conhecido numa pequena casa de pasto habitualmente frequentada por ambos, casa esta onde deu a ler a Fernando Pessoa o seu "Livro do Desassossego".
Este livro foi escrito em forma de fragmentos e apesar de fragmentário é uma “autobiografia sem factos”. O livro é considerado uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX, uma vez que possui o pragmatismo da condição humana e o absurdo da própria literatura tendo o drama das reflexões humanas que vêm ao de cima na insistência de uma escrita que se reconhece inviável e imperfeita, à beira do tédio, do trágico e da indiferença estética. Bernardo Soares é, dentro da ficção de seu próprio livro, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Os estudiosos de Pessoa têm procurado demonstrar que é exactamente o jogo de máscaras de Bernardo Soares, entre a heteronimia e a semi-heteronimia, o que permite pensar que é relativo o estatuto de ortónimo que Fernando Pessoa confere a si mesmo quando escreve em nome de sua própria personalidade literária.
"Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos, quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonias exibidas compostas de não sei que objetos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um filho morto."
(Excerto Livro do Desassossego, Bernardo Soares)
Filme do desassossego Sinopse: Lisboa, hoje. Um quarto de uma casa na Rua dos Douradores. Um homem inventa sonhos e estabelece teorias sobre eles. A própria matéria dos sonhos torna-se física, palpável, visível. O próprio texto torna-se matéria na sua sonoridade musical. E, diante dos nossos olhos, essa música sentida nos ouvidos, no cérebro e no coração, espalha-se pela rua onde vive, pela cidade que ele ama acima de tudo e pelo mundo inteiro. Filme desassossegado sobre fragmentos de um livro infinito e armadilhado, de uma fulgurância quase demente mas de genial claridade. O momento solar de criação de Fernando Pessoa. A solidão absoluta e perfeita do EU, sideral e sem remédio. Deus sou eu!, também escreveu Bernardo Soares. O realizador, João Botelho, confessou que o filme não pretende ser o livro, tendo-se baseado especialmente em dois dos textos pertencentes à obra, um sobre a autonomia grandiosa do som dos textos e outro sobre a noção do tempo e das ideias que se ajustam na perfeição.
O Ano da morte de Ricardo Reis Na biografia de Ricardo Reis não consta a data da sua morte, como tal José Saramago criou uma obra na qual situa a sua morte em 1936. Este romance foi publicado em 1984 e merecedor do Prémio Nobel da Literatura em 1998. A personagem principal é o heterónimo de Fernando Pessoa, Ricardo Reis, sobre o qual Saramago constrói uma narrativa baseada nos seus dados biográficos, na qual ele é um médico exilado no Brasil, desde 1919, por motivos políticos e que regressa a Portugal, em Dezembro de 1935, sendo a história dos nove meses passados por Ricardo Reis em Lisboa até à data da sua morte, em 1936. Quando chega à capital portuguesa, o Poeta instala-se num quarto de hotel e posteriormente num apartamento. Durante a sua permanência em Lisboa, vive situações curiosas: é seguido pela polícia, relaciona-se amorosamente com duas mulheres, Lídia e Marcenda, figuras das suas odes, e recebe várias visitas do fantasma de Fernando Pessoa. Em 1936 o leitor apercebe-se da importância dos contextos históricos, em que se situa a acção, e que constituem elementos preponderantes na obra, tais como a ditadura Salazarista e a Guerra Civil em Espanha, podendo-se verificar um ambiente sombrio em que o fascismo se afirma na sociedade.
Em "O Ano da Morte de Ricardo Reis", a escrita de Saramago possui uma forte marca de intertextualidade uma vez que tem presentes nomes como Marcenda e Lídia das "Odes” de Ricardo Reis. Possui também referências a Luís de Camõesbem como a presença do escritor argentino de ascendência portuguesa Jorge Luís Borges. Toda esta multi-referencialidade que perpassa pelo livro transforma "O Ano da Morte de Ricardo Reis" num romance que se transcende a si próprio, posicionando-o numa tradição literária simultaneamente clássica e moderna, portuguesa e internacional. Para além do Prémio Nobel o romance ganhou o Prémio PEN Club Português em 1984, o Prémio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus, em 1986, e Prémio Grinzane-Cavour em 1987.
(…) Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-la-hó la foule! Tudo o que passa, tudo o que pára às montras! Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos; Membros evidentes de clubes aristocráticos; Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete De algibeira a algibeira! Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa! Presença demasiadamente acentuada das cocotes; Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?) Das burguesinhas, mãe e filha geralmente, Que andam na rua com um fim qualquer, A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos; E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra E afinal tem alma lá dentro! (Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!) (…) [Ode Triunfal, Álvaro de Campos]
Fernando Pessoa criou em 1925 um roteiro turístico da cidade de Lisboa, inicialmente escrito em inglês e intitulado Lisbon: what the tourist should see, cujo objectivo era dar a conhecer a sua amada cidade. O texto original possui mais de cem verbetes com locais indicados pelo escritor e dicas de como os aproveitar ao máximo. Com este guia Pessoa pretendia demonstrar que viajar é muito mais do que ver paisagens e monumentos, é o conhecer de uma nova cultura e um poderoso instrumento de reflexão e pensamento. Este é de facto marco da cultura portuguesa, tendo sido em muito influenciado pela cidade onde viveu e veio a morrer. Lisboa e os seus pormenores aparecem reflectidos na sua vasta obra quer no campo da poesia, quer na prosa, e é com base nesses textos, que este roteiro nasce.
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“Percorram a Praça dos Restauradores e decidam alugar um trem trem,, um automóvel ou um «side-car» «side-car».” .” Esta é uma das sugestões de Pessoa neste seu guia que nos faz recuar ao século XX, onde nas ruas se vêm as senhoras de chapéu cloche e os senhores de chapéu alto, eventualmente de lunetas, e na malinha uns binóculos para a ópera da noite.
''O turista que tenha tempo de sobra não deve deixar de subir a este grande castelo, construído num alto de onde se domina uma ampla vista do Tejo e de grande parte da cidade. O castelo tem três portas principais, conhecidas como da Traição, de Martim Moniz e de S. Jorge. Todas elas são muito antigas. O próprio castelo é assaz notável”.
“A Torre de Belém, vista do exterior, é uma magnífica jóia de pedra e é com espanto e crescente simpatia que o estrangeiro observa sua peculiar beleza. É renda, e da mais perfeita, no seu delicado trabalho de pedra, que branqueia ao longe, dando imediatamente nas vistas a quem vem a bordo dos barcos que entram no rio. O interior é igualmente belo, e dos varandins e terraços tem-se uma vista do rio e do mar, lá ao fundo, que não esquece facilmente”.
“Chegamos agora a maior das praças de Lisboa, a Praça do Comércio, outrora Terreiro do Paço, como é ainda geralmente conhecida; esta é a praça que os ingleses conhecem por Praça do Cavalo Negro e é uma das maiores do mundo. É um vasto espaço, perfeitamente quadrado, contornado, em três dos seus lados, por edifícios de tipo uniforme, com altas arcadas de pedra. (...) O quarto lado, ou lado Sul, da praça é bordejado pelo Tejo, muito largo neste sítio e sempre cheio de embarcações”.
Estes são alguns excertos da sua obra. As propostas de Fernando Pessoa são inúmeras, passando pelo Aqueduto das Águas Livres, até ao Palácio das Necessidades. Esta obra tem um estilo seco e demasiado extenso não fazendo dela uma das suas maiores referências mas no entanto é um dos guias mais comprados por turistas na Casa de Fernando Pessoa. Fazendo jus à sua criação, é um guia cuja língua original é a inglesa (com tradução para português de Maria Amélia Santos Gomes), a pensar nos estrangeiros e no que devem saber acerca desta cidade.
“Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem desfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular e multicolorida massa de casas que constitui Lisboa. Para o viajante que chega por mar, Lisboa, vista assim de longe, ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima. E as cúpulas, os monumentos, o velho castelo elevam-se acima das massas das casas, como arautos distantes deste delicioso lugar, desta abençoada região.” Fernando Pessoa Pessoa,, O que o Turista deve ver
“Os Mistérios de Lisboa or What the Tourist Should See” “Os Mistérios de Lisboa or What the Tourist Should See” é um filme realizado por José Fonseca e Costa no ano de 2009. Foi feito a partir de trechos escolhidos do guia de Fernando Pessoa e de excertos de poemas de Álvaro de Campos dando a conhecer uma cidade tanto familiar como desconhecida, à qual se chega e da qual se parte pelo Tejo, sempre presente, sombrio e luminoso. A cidade que Pessoa tanto amava, aparece nestas imagens não como uma cidade estática e sem evolução mas também repleta de recantos e vielas preenchida de segredos e da sua luminosidade. http://www.youtube.com/watch?v=WMg4OQYnFnE&feature=player_embedded
Fernando Pessoa, o amante de Cinema Já foi referido Fernando Pessoa como um homem dos “sete ofícios”. Sabe-se que se interessa por diversas áreas entre as quais a astronomia, a física, a filosofia, a poesia, entre muitos outros, tendo ele em si mesmo uma enorme fonte de inspiração e criatividade. Já era sabido que Pessoa foi autor de vários argumentos cinematográficos mas hoje conhece-se a existência de documentos que revelam que o autor tinha vários projectos acerca de pôr a funcionar uma produtora cinematográfica (a Ecce Film) e uma empresa que poderia substituir a Sociedade de Propaganda Portugal (a Cosmopolis). Patricio Ferrari e Cláudia Fischer publicaram Argumentos para filmes, onde se reúnem seis argumentos de Pessoa e cujo objectivo desta publicação é o estudo do espólio de Fernando Pessoa. Os seis argumentos que agora se publicam, dois deles inéditos, abordam temas reconhecíveis na obra pessoana, desde as trocas de identidades, às viagens em grandes navios onde as personagens procuram preciosidades inexistentes. Escritos em vários idiomas os argumentos são curtos, mas suficientes para confirmar um interesse do autor pelo cinema que parece contradizer o desprezo assumido na sua correspondência e em algumas notas críticas. Afinal, quando Pessoa refere o consumo massificado e a falta de dimensão artística e vital no cinema, está a referir-se a um determinado tipo de filmes e não à arte cinematográfica em geral.
Figura 1 – Esboços de logótipos da Ecce film, elaborados por Fernando Pessoa.
Figura 2- Manuscritos sobre a criação de uma empresa cinematográfica; Figura 3- Manuscritos sobre os objectivos da Cosmopolis.
Algumas curiosidades: – Pessoa media 1,73 m de altura, de acordo com o seu Bilhete de Identidade. – O assento de óbito de Pessoa indica como causa da morte “bloqueio intestinal”. – A Universidade Fernando Pessoa (UFP), com sede no Porto, foi criada em homenagem ao poeta – Numa tarde em que José Régio tinha combinado encontrar-se com Pessoa, este apareceu, como de costume, com algumas horas de atraso, declarando ser Álvaro de Campos e pedindo perdão por Pessoa não ter podido comparecer ao encontro. – O jornal Expresso e a empresa Unisys criaram, em 1987, o Prémio Pessoa, concedido anualmente à pessoa ou às pessoas de nacionalidade portuguesa que, durante o ano transcorrido e na sequência de actividade anterior, se tenham distinguido na vida científica, artística ou literária
A poesia e a música: – O cantor brasileiro Caetano Veloso compôs a canção “Língua”, em que existe um trecho inspirado num artigo de Fernando sobre o tema “A minha pátria é a língua portuguesa”. –Já o compositor Tom Jobim transformou o poema O Tejo é mais Belo em música –Vitor Ramil, cuja música “Noite de São João” tem como letra a poesia de Alberto Caeiro –A cantora Dulce Pontes musicalizou o poema O Infante –O grupo Secos e Molhados musicalizou a poesia “Não, não digas nada” –Os portugueses Moonspell cantam no tema Opium um trecho da obra Opiário de Álvaro de Campos –O cantor Renato Braz traz no seu CD “Outro Quilombo” duas poesias musicadas: “Segue o teu destino”, de Ricardo Reis, e “Na ribeira deste rio”, de Fernando Pessoa.
Homenagem de Sophia de Mello Breyner a Fernando Pessoa Fernando Pessoa Teu canto justo que desdenha as sombras Limpo de vida viúvo de pessoa Teu corajoso ousar não ser ninguém Tua navegação com bússola e sem astros No mar indefinido Teu exacto conhecimento impossessivo Criaram teu poema arquitectura E és semelhante a um Deus de quatro rostos E és semelhante a um Deus de muitos nomes Cariátide de ausência isento de destinos Invocando a presença já perdida E dizendo sobre a fuga dos caminhos Que foste como as ervas não colhidas. Sophia de Mello Breyner (1919-2004)
Uma noite com Fernando Pessoa
Ilustração 13: Quarto de Fernando Pessoa
A casa Fernando Pessoa criou um “evento” chamado Uma noite com Pessoa que tem como objectivo pôr escritores como Lídia Jorge a dormir no mesmo quarto em que Fernando Pessoa dormiu nos seus últimos 15 anos de vida, escrevendo depois sobre essa noite. O objectivo é juntar os relatos de todas estas experiências e junta-los num livro.
Hermenegildo Sábat é um Caricaturista Uruguaio, elaborou um conjunto de caricaturas em homenagem a fernando Pessoa.
Conclusão Foi o fundador de uma língua portuguesa moderna, trabalhou o ritmo das palavras e das frases, trazendo a sonoridade para a literatura. Pessoa descrevia a tragédia da existência, a incerteza da vida e da morte, os sonhos, as ambições, as ilusões e as desilusões, as falhas dos diversos “eus” existentes em nós como seres com múltipla identidade. Ele transforma a sua vida, o seu quotidiano, a sua experiência e intelectualidade em algo que todos podemos partilhar Razão e sensibilidade caminham juntas em toda a obra de Pessoa. Se Pessoa tem a
consciência de viver toda a vida e a vida de todos, como Soares, ele cria pessoas que pudessem, a partir das suas singularidades, vivenciar essa gama de sensações de forma mais particular e verdadeira do que se fosse sentida por um homem só, ou por uma só personalidade – de espírito e estilo. A insinceridade é a condição para uma maior sinceridade, assim como a ficção para uma maior realidade. Se Fernando Pessoa ficou conhecido como o maior fingidor, é pelo mesmo motivo que também foi o mais sincero.