PRODUÇÃO
COMIDA TÍPICA
MANIÇOBA O ANO TODO
Pesquisadores estudam uma variedade de maniva que pode diminuir para dois dias o tempo de preparo da maniçoba, um dos pratos singulares da culinária paraense TEXTO: VICTOR FURTADO FOTOS: FERNANDO SETTE
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araenses comem maniçoba o ano todo. É uma das muitas comidas típicas do Estado. Durante o período do Círio de Nazaré, o consumo desse prato aumenta exponencialmente. No tradicional almoço do Círio, a maniçoba é uma das estrelas da mesa, junto com o pato no tucupi. Famílias inteiras se reúnem para dividir, os turistas também querem provar. Tudo isso resulta em um aumento brusco na produção da maniva para suprir a demanda extra. Isso gera emprego e renda, principalmente, na agricultura familiar. No entanto, quando o mês de outubro passa, a produção diminui e os negócios esfriam. Aí, entram as pesquisas e o empreendedorismo que tentam reverter esse quadro e garantir que sempre haja oferta e demanda para além da quadra nazarena. Neste contexto, destacam-se as pesquisas sobre o tempo mínimo de cozimento da mandioca brava (tradicionalmente, são sete
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dias e sete noites) e a utilização de uma espécie menos conhecida de folha, a maniçobeira, que exige pouco mais de dois dias de cozimento para ficar segura para consumo. Desde que programas de culinária e cursos de gastronomia se tornaram sucesso no Brasil, a culinária paraense começou a ganhar destaque e reconhecimento no país e no mundo. Tanto que a Unesco reconheceu Belém como Cidade Criativa da Gastronomia em 2015. Claro que o ativismo dos chefs de cozinha daqui é muito mais antigo. Entre os pratos paraenses que têm começado a chamar atenção nacional e internacional está a maniçoba. Onde há produção de mandioca, há uma produção de maniva. Onde há maniva, há uma panela cozinhando as folhas trituradas sete dias e sete noites, totalizando 168 horas de cozimento. A receita vem ganhando novos públicos, principalmente diante do crescimento de dietas parcial ou
totalmente vegetarianas. Pelas receitas que carregam em carnes salgadas e/ou embutidas, fora do Pará, a receita vem ganhando o nome de “feijoada sem feijão” ou “feijoada paraense”. Assim como muitos pratos típicos da Amazônia, a maniçoba é de origem indígena. Os indígenas descobriram que, para tornar a maniva segura para consumo, devido à presença do ácido cianídrico nas folhas, que pode ser letal para a saúde humana, era necessário cozinhá-la vários dias. Mas do ponto de vista econômico e científico, faltava compreender se realmente era necessário esperar tanto tempo para que o alimento fosse totalmente livre de cianeto, o veneno presente nas folhas da mandioca. Várias pesquisas começaram na Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
90% DA PRODUÇÃO DA MANIVA NO PARÁ
têm por base a mandioca brava, espécie cujas folhas têm maior teor de ácido cianídrico, que pode ser letal para a saúde humana
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“Queremos entender essa dinâmica, se são realmente necessários sete dias e sete noites. Pela primeira vez estamos vendo isso a fundo. Essa pesquisa poderá embasar uma lei para os limites seguros de consumo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que 10 miligramas de cianeto por quilo seriam um limite seguro. E quanto realmente sobra de resíduos do ácido após esse tempo de fervura? Quanto tempo até chegar nesse limite? Essas são algumas das questões para tornar a produção de maniva mais segura e economicamente mais viável”, explica Laura Abreu, pesquisadora do Laboratório de Agroindústria da Embrapa. Laura destaca que cerca de 90% da produção de maniva tem como base a mandioca brava. É a espécie cujas folhas têm maior teor de ácido cianídrico. Outra espécie, mas muito menos comum, é a macaxeira, chamada de mandioca mansa. Contudo, faltam mais análises para saber exatamente o quão menos venenosas são suas folhas. Por fim, mas com uma produção ainda muito tímida, está a maniva de maniçobeira, uma outra espécie de mandioca que chega a ter 50% menos cianeto nas folhas. Para a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Pará (Emater), essa é a maniva do futuro. Os resultados da pesquisa devem sair a partir do início deste ano. Análises da UFPA apontam que a maniçobeira tem 50% menos cianeto nas folhas. O cozimento para que ela se torne segura para o consumo é de apenas 50 horas (pouco mais de dois dias). Segundo apreciadores da maniçoba e especialistas em gastronomia paraense, entre elas Joanna Martins - do Instituto Chef Paulo Martins e restaurante Lá em Casa -, a maniçoba de maniçobeira é muito mais saborosa e requer até menos tempero. A Embrapa está analisando também a dinâmica de relação entre redução de cianeto e tempo de fervura das folhas de maniçobeira. Além do menor tempo de cozimento, a maniçobeira é economicamente mais viável para a produção de maniva. A engenheira agrônoma Ana Lima, chefe do escritório da Emater de Santo Antônio do Tauá, observa que a produção de maniva é praticamente um refugo da produção de mandioca. Os produtores plantam mandioca por todos os outros subprodutos que a raiz pode gerar, como a farinha comum, farinha de tapioca, tucupi, ração animal e lenha. E, então, aproveitam as
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folhas, que não são muitas e podem demorar até seis meses para uma colheita. Já a maniçobeira tem foco nas folhas.A raiz tem menor valor comercial, mas as folhas formam arbustos bem mais vastos. A primeira colheita das folhas ocorre em 120 dias, mas depois é possível montar planos que chegam a 30 dias ou menos para as próximas colheitas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que a produção de mandioca (raízes) em 2017 fechou em 20,9 milhões de toneladas. É 11,8% a menos do que em 2016. Na Região Norte, a produção deve diminuir 17%. A safra 2016 do Pará teve área plantada de 350.425 hectares e produção de 6 milhões de toneladas. A estimativa paraense para 2017 é área plantada de 349.649 hectares e produção de 5 milhões de toneladas. O maior produtor de raiz de mandioca por hectare do Brasil é o município de Acará. Chegou a produzir 900 toneladas da raiz por hectare. A área plantada chega a 45 hectares. No Ver-o-Peso, a maniva crua pode ser encontrada por R$ 3 o quilo. A maniva pré-cozida (do tipo que faltam mais dois ou três dias de cozimento) custa R$ 4 o quilo. Já a maniva totalmente cozida, só faltando temperar, sai por R$ 7 o quilo. Esses preços podem subir até R$ 2 no período do Círio de Nazaré. Os preços vêm sendo segurados pelos vendedores há pelo menos dois anos. Em 2016, comer uma maniçoba ficou até 30% mais caro, como demonstra pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos do Estado do Pará (Dieese-PA). Um prato pronto não custa menos de R$ 8.
DELÍCIA ECONÔMICA
Atualmente, Santo Antônio do Tauá produz cerca de 50% de toda a maniva consumida no Estado. A produção abastece mercados importantes, principalmente o Ver-o-Peso, onde o produto cru pode ser encontrado por R$ 3 o quilo.
NA COMUNIDADE
Faltam estudos oficiais sobre a produção de maniva, que mapeiem corretamente não só a produção, mas também empregos diretos e indiretos e movimentação financeira. No entanto, a Emater, o Dieese-PA, a Embrapa e o produtor Cristiano Bastos - também empreendedor e pesquisador informal - estimam que Santo Antônio do Tauá seja o maior polo produtor de maniva. Há quase dez anos, o município, que fica a 60 quilômetros de Belém, era responsável por 90% da produção paraense da
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“É um mercado grandioso e com plena tendência de expansão. Quando eu mando maniva de outras espécies, clientes já acostumados com maniçobeira reclamam” Cristiano Bastos Produtor de maniva
matéria-prima da maniçoba. Com o tempo, outros municípios começaram a abrir produções próprias, como Belém, Castanhal, Santa Izabel do Pará, Benevides e Inhangapi. Atualmente, Santo Antônio do Tauá produz cerca de 50% de toda a maniva consumida no Estado. Por ano, as sete agroindústrias de Santo Antônio do Tauá - já foram 12 pequenas empresas - produzem quase mil toneladas de maniva. Das sete, apenas três estão totalmente regulares. Três estão em processo de regularização e uma teve o registro suspenso. Quase tudo feito apenas na comunidade de Tracuateua da Ponta, uma das 60 comunidades do município. Mais de 500 toneladas são produzidas apenas no mês de outubro. Tudo por conta do aumento de demanda no Círio. Aproximadamente 60% do produto vai para Belém, o principal mercado consumidor. Do total, 200 toneladas são produção de Cristiano Bastos. As pesquisas da Embrapa com maniçobeira estão sendo feitas com amostras da agroindústria de Cristiano, a Sabor do Pará. Cristiano começou a trabalhar com maniva ainda adolescente. Era funcionário de uma agroindústria, mas sonhava em abrir o próprio negócio. Aos 17 anos, conseguiu. Começou com três panelas, cozinhando menos de 100 quilos de maniva. Era de mandioca brava mesmo. Jovem e sonhador, ele queria se destacar no mercado. Só que faltava matéria-prima. A partir de 2010, começou uma crise da mandioca paraense,
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que à época chegou a elevar os preços da farinha. Foi quando soube da maniçobeira. Apostou na ideia e agora diz que não se arrepende. O resultado com públicos diferenciados foi quase imediato. Buscou regularização, estudou as melhores técnicas, foi atrás de fornecedores e até iniciou uma produção própria de mandioca brava (1 hectare) e de maniçobeira (2 hectares). De 3% a 5% é autoabastecimento. Das três panelas, Cristiano passou para 24 e tem a meta de chegar a 60 panelas. Cada uma cozinhando de 100 a 150 quilos de maniva de maniçobeira. Na época do Círio, precisa pagar hora extra aos sete funcionários para dar conta. É um período em que quase não sobra para vender para outros mercados. É praticamente tudo para o Estado, principalmente, para Belém. Vendedores nas feiras livres e supermercados esperam essa época ansiosamente pelo aumento das vendas. “É um mercado grandioso e com plena tendência de expansão”, acredita o empresário. “É fato. Quando eu mando maniva de outras espécies, meus clientes já acostumados com maniçobeira reclamam. Já sabem que é diferente e os clientes deles também. Eu gosto de maniçoba e
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agora só como de maniçobeira. É bem mais gostosa sim. E economicamente mais viável. Alguns consumidores são muito tradicionais. Ficam com medo de experimentar se souberem que a maniva é de outra folha e que não precisa de sete dias e sete noites de cozimento. Em 50 horas está cozida e pronta para consumo. Só que quanto mais se cozinha, mais saborosa fica. Eu só vendo maniva cozida. É só botar na panela e temperar. Mais tempo de cozimento fica pelo cozinheiro”, completa. Na plantação de maniçobeira, Cristiano Bastos encontrou outro negócio: consorciou a área plantada com banana. As bananeiras têm se desenvolvido bem, convivendo em harmonia com a maniçobeira. E logo quer buscar selos de produção orgânica, sem uso de nenhum agrotóxico. Enquanto essa plantação ainda não chega ao pico de produção, o município de Capitão Poço é o maior fornecedor, à frente do Tauá. O município de Salvaterra é um dos que começou a apostar na produção de maniçobeira. No nordeste brasileiro, a maniçobeira já era produzida, mas não tão valorizada. Atualmente, no Pará, ele é o único produtor de maniva de maniçobeira.
MERCADO E RESISTÊNCIAS
Ana Lima, da Emater de Santo Antônio do Tauá, analisa que o mercado produtor de maniva é muito resistente a mudanças. Isso porque se trata de um setor artesanal e rústico demais. Tanto que faltam dados e estatísticas oficiais em torno dele. Diante das limitações das espécies mais comuns de mandioca e da demanda crescente pela maniva, que deverá aumentar cada vez mais nos próximos anos, a Emater recomenda que os produtores comecem a buscar orientação técnica. Do contrário, não conseguirão atender aos futuros clientes ou exigências do mercado. Há boas técnicas de plantio e manutenção da mandioca que muitos produtores não seguem, como calagem dos solos ácidos demais, roçagem periódica e espaçamento de plantação de 1 m². Seguir as melhores técnicas desconstrói o conceito de que o aumento da produtividade requer aumento da área plantada. A produção média de Santo Antônio do Tauá é de 12 toneladas por hectare. Se os produtores de mandioca seguissem as orientações, poderiam chegar a 30
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NA PANELA A produção de maniva no Pará 2 MIL
50%
TONELADAS POR ANO
da produção do ano é planejada para o Círio
PRINCIPAIS PRODUTORES
PREÇOS DA MANIVA (por quilo)
BENEVIDES 4 agroindústrias
SANTO ANTÔNIO DO TAUÁ
CASTANHAL 4 agroindústrias
7 agroindústrias 1 mil toneladas por ano 50% da produção estadual
BELÉM
INHANGAPI 4 agroindústrias SANTA IZABEL DO PARÁ 4 agroindústrias
4 agroindústrias
60%
da produção é consumida em Belém
Crua R$ 3,00 Pré-cozida (96 horas ou quatro dias) R$ 4,00 Cozida (sete dias e sete noites cozida) R$ 7,00 Prato de maniçoba pronta em média R$ 8,00
Produção de Mandioca
Produção nacional estimada para 2017
20.901.444 TONELADAS
11,8% a menos que 2016
O principal produtor de mandioca no Pará é o município de
ACARÁ, com
900 toneladas
Produção paraense para 2017
5.169.853 TONELADAS Produção paraense em 2016
6.034.713 TONELADAS 90%
da maniva produzida no Pará usa como matéria-prima a mandioca brava
MANDIOCA X MANIÇOBEIRA
MANDIOCA COMUM
MANIÇOBEIRA
- Plantio não visa produção de maniva - Folhas demoram até 180 dias para colheita e precisam de plantio novo - Maniva é refugo da produção - Folhagem pequena - Folhas com maior teor de cianeto exigem 168 horas de cozimento para consumo - Exigem espaço de plantio exclusivo
- Plantio voltado para maniva - Folhas demoram 120 dias para a primeira colheita. As próximas demoram menos de 30 dias, sem novos plantios. - Maniva mais saborosa - Folhagem mais abundante, em formato de arbustos - Folhas com baixo teor de cianeto exigem 50 horas de cozimento para consumo - Plantio pode ser consorciado com outros vegetais
toneladas por hectare. Ana ainda recomenda que quem quiser seguir no ramo deve começar a abrir os olhos para a maniçobeira. Há cerca de dez anos, a Agência de Defesa Agropecuária do Pará (Adepará) vem fiscalizando de perto a produção de maniva. O trabalho ganhou força com a lei estadual nº 7.565/2011, que regula e padroniza produtos artesanais comestíveis de origens animal ou vegetal. Houve muita resistência do mercado inicialmente, apesar de inúmeras irregularidades encontradas. Foi necessário que o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) participasse. “Infelizmente, a maioria dos produtores de maniva ainda é clandestina. Se a população soubesse como são produzidas algumas manivas, ficaria preocupada. Não chega nem a ser rústico ou artesanal. É clandestino e irregular mesmo, sem padrões de higiene. Então, um dos primeiros passos é que supermercados e consumidores não comprem manivas que não tenham selo de inspeção da Adepará ou qualquer outra entidade fiscalizadora. Se o preço for baixo demais, é preciso desconfiar na hora”, recomenda Ana Cristina Pinheiro, fiscal estadual agropecuária e gerente de inspeção e classificação vegetal da Adepará. Uma técnica não aprovada, mas comum de produtores irregulares, é cozinhar a folha direto após a colheita, para triturar e embalar depois. Isso garante uma cor mais bonita à maniva, mas passa a falsa sensação de ter sido cozida pelo tempo correto e muitas vezes não é, representando riscos ao consumidor. O procedimento certo é ter as folhas colhidas, higienizadas, trituradas e então fervidas para embalar depois. Ana Cristina Pinheiro destaca que a se os produtores mantiverem um padrão de qualidade e buscarem regularização, poderiam conseguir circular os produtos nacionalmente. Atualmente, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) ainda não reconheceu a maniva e não criou um padrão, apesar de outros estados já terem começado a despertar o interesse na receita da maniçoba paraense. Onde se encontrou mercado fora do Pará, se percebeu que comprar aqui acaba saindo caro. Uma das expectativas é que o Ministério acabe criando esse padrão em breve. Ou reconheça a inspeção da Adepará como serviço equivalente. O padrão para circulação nacional e exportação vai fortalecer essa indústria popular e tradicional, que atualmente é mais voltada para a mão de obra da agricultura familiar e pequenas agroindústrias. A cada Círio de Nazaré, a demanda é tão alta que falta matéria-prima. E é preciso lembrar que turistas provam a maniçoba e levam a ideia consigo ao deixarem o Pará. Ana Cristina acredita que a maniçobeira, eventualmente, será uma realidade mais palpável para a economia da maniva. As demais espécies de mandioca deverão ficar mais voltadas à raiz e produção de tucupi.
FONTES: ADEPARÁ, IBGE, EMATER, EMBRAPA, UFPA
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