REVISTA ENCARTADA NO JORNAL O LIBERAL. NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE.
DEZEMBRO 2O18 | EDIÇÃO NO 82 ANO 8 | ISSN 2237-2962
É E U Q O ? E D A D I C I L E F uma até fazer m e d o p pessoais licidade. e s f e a õ ç a a r z a li p ronta s e rea a ver com receita p ia, amigo m a íl e t m m u a m f e é , t b o eir o tam te. ão exis úde, dinh entiment ra o meio ambien e é que n s d a e s d s r Amor, sa e e , v s s pa dore liz. Mas a s pública pesquisa a o ic d t n pessoa fe lí u o g p e e de azônia, s humanos s o E, na Am it e ir d ta de a conquis
NESTA EDIÇÃO
J.BOSCO
DEZEMBRO2018
Essa tal felicidade
UMA PUBLICAÇÃO DELTA PUBLICIDADE - JORNAL O LIBERAL DEZEMBRO 2018 / EDIÇÃO Nº 82 ANO 8 ISSN 2237-2962 Presidente LUCIDÉA BATISTA MAIORANA
Às portas de um novo ano que se inicia, é comum refletir sobre um dos sentimentos mais buscados pelo ser humano. Mas como ser feliz na Amazônia?
Presidente Executivo RONALDO MAIORANA
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Vice-Presidente ROSÂNGELA MAIORANA KZAM Diretora Comercial ROSEMARY MAIORANA Conselho editorial RONALDO MAIORANA ROSÂNGELA MAIORANA KZAM LÁZARO MORAES
CAPA
OSWALDO FORTE/ O LIBERAL
NAILANA THIELY/ ASCOM UEPA
DIVULGAÇÃO
Núcleo de Projetos Especiais FELIPE JORGE DE MELO Jornalista responsável e editor-chefe (SRTE-PA 1769) Colaboraram para esta edição O Liberal, Agência Brasil, Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Federal do Pará, Universidade do Estado do Pará, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA) (acervo); Fernando Sette (diagramação); Abílio Dantas, Dayane Baía, Jamille Reis, João Carlos
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IDENTIDADE
ENSINO SUPERIOR
Professora de museolo-
Integrantes da etnia
gia da UFPA, Luz Gomes,
Kayapó concluem, em São
lançou o primeiro livro
Félix do Xingu, o curso de
de poemas, “Etnografias
Licenciatura Intercultura
Uterinas de Mim”,
Indígena, da Universidade
sobre a mulher negra.
do Estado do Pará (Uepa).
TRÊS QUESTÕES
EDUCAÇÃO
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MEIO AMBIENTE
Neste ano, o Brasil atingiu a meta de redução em até 38% das emissões de carbono na área florestal, incluindo regiões da floresta amazônica. PRESERVAÇÃO
E MAIS
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SUSTENTABILIDADE EU DISSE MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS OLHARES NATIVOS NOVOS CAMINHOS
Pereira (reportagem); Fernando Sette, Nailana Thiely (fotos); Jamille Reis e Victor Furtado (produção), Thiago Almeida Barros (artigo), J.Bosco (ilustrações), Wagner Souza (tratamento de imagens). ILUSTRAÇÃO DA CAPA Smile, por J.Bosco AMAZÔNIA VIVA é editada por Delta Publicidade. CNPJ (MF) 04.929.683/0001-17. Inscrição estadual: Isenta Inscrição municipal: 032.632-5 Avenida Romulo Maiorana, 2473, Marco Belém - Pará projetosespeciaisoliberal@gmail.com REALIZAÇÃO
SUSTENTABILIDADE
Joias da natureza Escamas de peixe viram fonte de renda em Vigia FOTO: JOÃO AUGUSTO RODRIGUES/IFPA
B
iojoias que utilizam como matéria-prima escamas de peixe, usualmente descartadas pela indústria, se transformam em alternativa de renda para uma comunidade rural em Vigia, nordeste do Pará. Este tipo de produto, que alia sofisticação e requinte com um toque de consciência social e ecológica, vem ganhando espaço na região – e no cotidiano das famílias que vivem da pesca - graças a um projeto de extensão desenvolvido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA) campus avançado Vigia. Cortado por dois rios, a cidade de Vigia de Nazaré é um dos principais polos de produção pesqueira, além de guardar muita história e ser um dos destinos preferidos dos brincantes durante o carnaval. Esta ca-
racterística favorece o projeto de extensão de confecção de biojoias. Mestre em Aquicultura, a professora Ingrid Paola Ribeiro Tomaz Cunha, coordenadora do curso de Aquicultura do Campus Avançado Vigia, diz que a confecção de artesanato é um diferencial das aulas práticas do curso: “Passei a ofertar a extensão como ferramenta para obter a atenção e rendimento dos alunos. A região de Vigia é muito rica de saberes, ao fazer a extensão estimula-se a realização de projetos que busquem melhorar a realidade local. Nossas aulas são bastante dialogadas, em que os alunos trazem o próprio conhecimento para a sala de aula. Eu, enquanto docente, passo os conhecimentos técnicos para eles. Há uma troca, e todos ganham”, explica Ingrid. Tanto a escama quanto o couro do pesca-
do são considerados itens de descarte pela atividade pesqueira. Com algumas empresas produzindo em média 10 toneladas de filé por dia na região, dá para imaginar a quantidade de escama gerada como resíduo. Esse material, que acabaria se deteriorando e sem valor, tem uma potencialidade muito grande para gerar trabalho e renda quando utilizada para confecção de artesanato e biojoia, diz a professora Ingrid. “O curso de biojoias melhora a condição de vida dos artesãos, proporciona mudança de percepção sobre coisas do cotidiano. Propus a biojoia para os alunos para demonstrar como o uso de algumas tecnologias de processamento e técnicas de artesanato podem ajudar no aproveitamento integral desse pescado”, afirma Ingrid. Ela conta também que o artesanato com DEZEMBRO DE 2018
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FOTOS: JOÃO AUGUSTO RODRIGUES/IFPA
SUSTENTABILIDADE
as escamas é de baixo custo, já que a matéria-prima normalmente seria descartada. O mesmo ocorre com o pó do café, que serve como corante para tingir as escamas. “Os recursos fazem parte da realidade do aluno, cada peça é um diferencial, único. O modo de tingir, o material que se irá utilizar, as escamas da pescada amarela são diferentes da tainha, gó. Por tudo isso, o artesanato de Vigia acaba sendo único, traz uma identidade da própria região”, diz Ingrid.
REAPROVEITAMENTO
Além das escamas de peixes, sementes e fibras naturais também são usadas para fazer pulseiras, brincos, colares, chaveiros e outras peças
PROCESSAMENTO DA ESCAMA
Antes de se transformar em joia, a escama do peixe é higienizada. Lavada com água e sabão, deixada de molho, e depois passa por um processo de secagem em área sombreada e ventilada. Esta etapa é necessária para que as escamas não enrolem. Depois de secas, as escamas ficam brancas e, dependendo da proposta criativa, podem ser tonalizadas. O processo de colorização é feito por imersão em uma espécie de chá que pode ser produzido com a borra do café, para a cor dourada, com a cebola, para a cor marrom ou com o papel crepom, para os tons de azul. A coloração, dependendo da tonalidade desejada, pode demorar até quatro dias para ser fixada. Para fazer brincos, colares, chaveiros e outras peças também são utilizadas sementes e fibras naturais encontradas nos quintais das residências ou na natureza. A junção das escamas de peixes e fibras naturais específicas da região ainda dão identidade singular ao artesanato confeccionado.
TROCA DE SABERES
O IFPA em Vigia tem muitos alunos com pais pescadores. Após os cursos, eles levam para dentro de casa os conhecimentos sobre a salga adequada, a manipulação correta do alimento, o aproveitamento da escama e couro. “Eles começam a agregar valor e informações para seus familiares. 6 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
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Nossos alunos são muito criativos. Cada peça será única, pois o modo de tingir é uma tradição ensinada de mãe para filhos. O Instituto Federal do Pará, junto aos alunos, vem despertando para o valor dos produtos gerados a partir da extensão. Vigia tem um potencial a ser desenvolvido, basta os próprios moradores do município mudarem o olhar para otimizar todo esse processo”, observa Ingrid. Ingrid destaca que a extensão é um instrumento essencial para o educador e para o aluno, que trocam saberes dentro da sala de aula. “Quando eu vou ministrar a mesma disciplina para outra turma, levo o conhecimento que adquiri com a primeira. Cria-se um conhecimento próprio da instituição. A extensão proporciona a atualização dos co-
nhecimentos do educador”, explica. Por meio do projeto de extensão de confecção de biojoias artesanais, os professores trocam conhecimentos com os alunos que, em sua maioria, são pescadores e filhos de pescadores. Aos poucos, alunos e moradores percebem a importância do artesanato para a renda e produção sustentável. O que antes era resíduo gerado dentro dos lares, passa a ser produto. A proposta da biojoia é fazer o aproveitamento de materiais subproduto da pesca, que antes eram descartados. O projeto é resultado da disciplina de Tecnologia de Processamento de Pescado onde eles aprenderam a fazer não só o beneficiamento do filé, mas o aproveitamento total do pescado, evitando desperdícios.
TRÊSQUESTÕES RESPOSTAS QUE VÃO DIRETO AO PONTO
RESISTÊNCIA DO OUTRO LADO DO OCEANO TEXTO ABÍLIO DANTAS DIVULGAÇÃO
Luz Gomes, professora de museologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), lançou seu primeiro livro de poemas, “Etnografias Uterinas de Mim”, no dia 7 de dezembro. A obra foi inicialmente publicada em Portugal, no ano passado, e trata sobre a experiência da autora, que é mulher negra e brasileira, no continente europeu. “Dores, amores, solidão, companhias, estranhamentos e entranhamentos estão retratados no livro”, segundo Luz Gomes. “Desejei escrever um livro de poesia das emoções simples do cotidiano nosso de cada dia. Um livro de tudo que vivi e senti através desse meu corpo de mulher negra no mundo nos dias e noites lisboetas nos quatro anos que habitei a Lisboa poética despoeti-
zada”, explica. Nesta entrevista, ela conta um pouco mais do processo criativo e sua opinião sobre o papel da literatura no mundo contemporâneo. Como surgiu a ideia do livro “Etnografias Uterinas de Mim”? “Etnografias Uterinas de Mim” foi gestado em Lisboa, cidade na qual morei de 2014 a 2018, para realizar o meu doutoramento em Museologia na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Os dois primeiros anos foram conturbados, com perdas que me dilaceraram e eu senti muita dor física e emocional. Esse livro surge do mergulho que tive de fazer dentro de mim mesma para encontrar calmaria. É um livro de amor escrito com dor. Em 2017 decidi publicá-lo na cidade de águas tejas. E no dia do meu aniversário de 39 anos, em 14 de setembro de 2017, o lancei em Lisboa. De que forma a poesia e a pesquisa acadêmica dialogam no livro? Na minha forma de observar a cidade de Lisboa. De me colocar no palco citadino de uma capital europeia com o meu corpo negro diaspórico de mulher no qual reside a minha fortaleza e a minha vulne-
rabilidade. Sempre me interessei pelos estudos sobre cidades na academia e na literatura. Em “Etnografias Uterinas de Mim” trago essa tensão entre o social e o poético, assim como, as marcas que as cidades grafam em nossos corpos. Outro ponto de diálogo entre a poesia e a pesquisa acadêmica no livro, é a minha busca de registrar as minhas memórias, o que é algo primoroso para mim que sou museóloga e professora de Museologia na UFPA. Qual o papel das artes literárias, no mundo de hoje, na sua opinião? Acredito que as artes literárias são uma forma de conhecimento do mundo e no mundo. Nesse sentido, elas podem desempenhar variados papéis em diferentes contextos. Também considero relevante tensionar de quais artes literárias estamos falando, uma vez que, não podemos acreditar que necessariamente todos os grupos humanos têm as artes literárias escritas como um referencial seja lá do que for. Pensando nesse contexto “ocidentalizado” do qual fazemos parte, para mim, um dos papéis que as artes literárias têm é o de nos apresentar sem filtros o de mais belo e o de mais cruel que trazemos em nós pessoas, seres humanos habitantes desse planeta terra.
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EU DISSE
Epitáfio
“A verdade é filha do tempo, não da autoridade” Francis Bacon (1561-1626) político, filósofo, cientista e ensaísta inglês
“Este ano, vimos como as mudanças climáticas já podem ampliar os impactos das ondas de calor em todo o mundo. Os incêndios florestais na Califórnia são apenas um instantâneo dos impactos crescentes que enfrentamos se não reduzirmos as emissões rapidamente” Corinne Le Quéré, diretora do Centro Tyndall de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas e professora de Política e Ciência de Mudanças Climáticas da Universidade de East Anglia (UEA) e do Global Carbon Project.
“Ao incluir moradores locais nas práticas de conservação, podemos aumentar a efetividade dos resultados de conservação e melhorar o bem-estar local”
João Campos-Silva, cientista do Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de Alagoas e um dos autores de pesquisa que aponta que esforços comunitários e vigilância de ribeirinhos contra caçadores estão permitindo que as praias fluviais da Amazônia voltem a ficar cheias de tartarugas.
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“Mostramos em todo o mundo que quando os humanos modificam habitats, espécies únicas [como os tigres] são consistentemente perdidas e substituídas por espécies encontradas em todos os lugares, como pombos em cidades e ratos em áreas agrícolas”
Tim Newbold, pesquisador da University College London (UCL), no Reino Unido, sobre a descoberta de que as espécies mais comuns da fauna e flora tendem a aumentar em lugares modificados pelo homem – sejam plantações florestais, terras agrícolas, pastagens e ambientes urbanos.
“Tentaram me matar várias vezes e essa última jogaram pesado, me mataram moralmente”
Padre José Amaro Lopes de Souza, que defende os direitos dos povos da floresta e pequenas comunidades em Anapu, no Pará. Ele trabalhou ao lado da irmã Dorothy Stang por 15 anos, até ela ser assassinada em 2005. O religioso ficou preso de março a junho deste ano, após ter sido acusado de diversos crimes.
Dom Vicente Zico (1927-2015)
MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS
Nosso santinho casamenteiro JOÃO CARLOS PEREIRA
O
padre Vicente Joaquim Zico poderia ter seguido sua carreira na congregação dos Lazaristas, atuando em Roma ou em Paris, cidades em que viveu e que pelas quais adorava passear, nas tardes de domingo, quando se permitia tomar um ônibus e andar sem rumo. Poderia também ter tudo num consultório de Psicologia ou trabalhado em algum órgão de comunicação da Igreja, já que se formou em jornalismo. Mas os planos de Deus eram outros e aquele sacerdote mineiro veio cumprir seu destino na Amazônia, comandando a maior arquidiocese da região. A vocação nasceu cedo, na cidade mineira de Luz, onde fez seus primeiros estudos. De Dores do Indaiá seguiu para o seminário de Caraça até chegar à Congregação das Missões, onde professou no dia 19 de março de 1945. Estudou filosofia e teologia no seminário de Petrópolis e se pós-graduou em pastoral catequética, em Paris, entre 1967 e 1969. Atuou como Conselheiro Geral da Congregação Lazarista, em Roma, e, no Vaticano, na Congregação dos Bispos. Foi nessa função que o destino o alcançou para transformá-lo num dos homens mais amados do Pará em todos os tempos. Quando o cardeal Lucas Moreira Neves telefonou avisando que o Papa o designara para a Arquidiocese de Belém, tomou um grande susto e pediu um prazo para pensar. Certo de que não poderia dizer não ao
que considerava um desígnio divino, em cinco dias se apresentou para a missão. Em 4 de julho de 1990, João Paulo II o nomeou para dirigir a Igreja de Belém. Como Arcebispo, criou dezenas de paróquias no interior e na capital, ordenou cerca de vinte padres, negociou com o Governo do Estado a instalação do Museu de Arte Sacra do Pará e a restauração da Igreja de Santo Alexandre, além de haver formatado a Fundação Nazaré de Comunicação, que administra a TV e a Rádio Nazaré, e o jornal “Voz de Nazaré”. Considerado uma unanimidade não apenas entre os católicos, mas por pessoas de todas as religiões, Dom Vicente Zico era a bondade e a simpatia encarnadas. Simples e erudito, falava várias línguas, amava a cidade e por ela era idolatrado. Só não se podia dizer que era genuinamente belemense, porque não gostava de tacacá. Mas isso nem conta. Depois de haver passado o comando da Igreja a Dom Orani Tempesta – que insistiu para que ficasse em Belém e lhe deu, inclusive, uma sala na Cúria – Dom Vicente passou a ser de tal modo solicitado para celebrar casamentos, que os amigos mais próximos o chamavam, carinhosamente, de “santinho casamenteiro”. Todo mundo queria casar com suas bênçãos e a agenda vivia lotada. Quando ouvia a brincadeira, dizia: “eu adoraria ser santo, mas estou longe disso”.
Dom Vicente Zico chegou como coadjutor (com direito à sucessão) de Dom Alberto Ramos e entre 1981 e 1990 revelou-se mais do que uma grande administrator: transformou-se no pai a quem todos amavam. No momento em que pode voltar para Minas, não quis. Disse que sua casa era aqui e aqui ficou. Quando não mais pode acompanhar o Círio, assistia à passagem da Santa da sacada do primeiro andar do edifício “Manoel Pinto da Silva” e a procissão parava para saudá-lo. Até hoje, três anos depois de sua morte, ocorrida no dia 4 de maio de 2015, é homenageado naquele lugar. Na história da Igreja, poucos religiosos experimentaram promoções tão meteóricas. Giovani Batista Montini era padre e, no dia seguinte, arcebispo. Pouco tempo depois, já seria cardeal de Milão, de onde saiu para tornar-se o papa Paulo VI. Este ano, Francisco o elevou à glória dos altares, canonizando-o. Nesse processo, Dom Vicente tornou-se ainda mais rápido. Pelo menos para sua gente de Belém, foi santo ainda em vida.
*João Carlos Pereira é jornalista e professor universitário. Vice-presidente da Academia Paraense de Letras e Presidente do Conselho Estadual de Cultura do Pará. DEZEMBRO DE 2018
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OLHARESNATIVOS
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FOTOS E TEXTOS: HAMILTON BRAGA
PRAÇA DAS SEREIAS
Há uma cidade na foz do Amazonas onde a beleza está em traços antigos...
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... que brincam com o ambiente repleto de água a rodear os limites com o rio e a rondar, lá no alto, em forma de nuvens assustadoramente lindas.
OLHARES NATIVOS
VISTA AÉREA DE BELÉM
CÍRIO DE NAZARÉ 2018
Todos conhecem dessa cidade a esperança do povo a agradecer aos milhares em um espetáculo a céu aberto... 12 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
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... ou a dois na praça, a desfrutar o amor como sempre foi e como sempre há de ser, aos beijos ardentes sob a luz fria.
CORETO DA PRAÇA DA REPÚBLICA
A esperança tenta vencer o cansaço da vida agitada de trabalhadores na volta para casa em meio a avenidas de carros impacientes.
GAMA ABREU
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Aguenta-se o tranco, pois se está a sonhar com o paraíso logo ali, salgado e solar na doce brisa amazônica da manhã.
OLHARES NATIVOS
ALGODOAL
A brisa que pode faltar no bafo da manhã urbana, gerando a vontade coletiva de se abrigar em túneis verdes.
AVENIDA NAZARÉ 14 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
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ILHA DO COMBU
Na sombra que leva ao desejo de água e novamente ao sonho, a lavar os olhos na beleza das ilhas tão perto, em um ciclo que não para. FOTOS E TEXTOS : HAMILTON BRAGA
Envie as suas fotos para a seção Olhares Nativos
Para participar da seção “Olhares Nativos” da revista Amazônia Viva basta enviar fotos com temática amazônica para o e-mail projetosespeciaisoliberal@gmail.com acompanhadas pelo nome completo do autor, número de identidade e uma breve informação sobre o contexto do registro fotográfico. As imagens devem ser autorais e com resolução de no mínimo 300 dpi. A publicação das fotos tem fins meramente de divulgação de trabalhos profissionais ou amadores, não implicando em qualquer tipo de remuneração aos autores. Participe!
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CAPA
a cara da
felicidade AMOR, SAÚDE, DINHEIRO, AMIGOS, REALIZAÇÕES… O QUE DEIXA UMA PESSOA FELIZ DE VERDADE? E O QUE É FELICIDADE? NA AMAZÔNIA, ELA TAMBÉM TEM A VER COM AS CONQUISTAS PARA A SOCIEDADE E O MEIO AMBIENTE. TEXTO FELIPE JORGE DE MELO FOTOS FERNANDO SETTE ILUSTRAÇÕES J. BOSCO
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“É melhor ser alegre que ser triste”. “Tristeza não tem fim. Felicidade sim”. “É impossível ser feliz sozinho”.
C
antado em verso e prosa na MPB e em outros estilos musicais mundo afora, o sentimento capaz de deixar uma pessoa em estado de satisfação, euforia, contentamento, bem-estar, é, talvez, depois do amor, o mais “buscado” no planeta desde o início da civilização humana. “Você é feliz?”. É possível que todo mundo já tenha ouvido esta pergunta de alguém ou tenha feito a si mesmo pelo menos uma vez na vida. O filósofo grego Aristóteles (384 a.C. 322 a.C.), em “Ética a Nicômaco”, defende que a felicidade é a finalidade das ações humanas. É o maior bem desejado pelos homens. Músicos e poetas, em geral, já mostram que ela não é uma coisa fácil de se alcançar. É algo intrínseco, humano, abstrato. Veja, por exemplo, nos trechos das músicas Samba da Bênção, A Felicidade e Wave que abrem este texto. “A Felicidade não se Compra”, afirma o título em português do clássico natalino do cineasta Frank Capra, que mostrou em seu filme que a vida, cheia de reviravoltas, por fim, pode ser maravilhosa. “Dinheiro não traz felicidade”, sentencia o famoso ditado popular. Ser feliz, no entanto, pode ser mais simples do que se espera. Pode se traduzir no filho que cresce aos olhos dos pais com saúde e alegria. Na conquista da vaga no emprego dos sonhos. Na paz do sorriso
dos casais apaixonados. Ou viver na companhia da pessoa amada. Pode se refletir, ainda, na compra da casa própria, no acerto das dezenas da Mega-Sena, na cura de uma doença pertinente, na viagem preparada ao longo da vida. Pode ser tudo isso, como também pode não significar nada. E ela pode ser coletiva? Sim, claro que pode. Afinal, existem tantas demandas sociais carregadas de urgências particulares que precisam ser resolvidas, como a segurança dos direitos dos povos das floresta, do público LGBTI+, das minorias excluídas no País, das crianças e idosos abandonados, das mulheres vítimas de todo tipo de violência cotidiana, que não é possível se sentir plenamente feliz ante o sofrimento dessas pessoas. Mas, então, o que é a felicidade? Às portas de um ano que se inicia, falar dela se torna cada vez mais comum, assim como a busca por ela. E, neste período de renovação de votos, propósitos e metas, a Revista Amazônia Viva convidou o psicólogo Manoel de Christo Neto, a ativista feminina Natasha Vasconcelos, o ativista socioambiental João Meirelles Filho e a socióloga Kátia Mendonça para falarem sobre os “atalhos” de uma vida feliz na região amazônica. Sabemos que a estrada é longa, além de uma construção diária, pois, como diz outra canção brasileira, “felicidade é só questão de ser”. Mas, no século 21, como sê-la? DEZEMBRO DE 2018
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CAPA
ONDE MORA A FELICIDADE? Manoel de Christo Neto *
Quem de nós não almeja a felicidade? Mas onde ela mora? Onde e como encontrá-la? Seria, pois, a felicidade um estado permanente do espírito humano ou uma busca incessante que nunca tem fim? Estaria localizada em algum bem material? Existe fórmula mágica para alcançá-la? Essas e outras questões percorrem milênios no universo humano e, até hoje, não tem respostas definitivas. Ainda assim cabem algumas reflexões pertinentes, sobretudo num momento às vésperas do final do ano e às portas do novo que se avizinha. Cientistas, filósofos, músicos e poetas sempre indagaram e propuseram respostas à inquietude humana sobre a busca da felicidade. Atualmente, vivemos na era digital e sob a égide do imediatismo, do prazer hedonista, da velocidade espantosa de informações, da fugacidade e fragilidade dos vínculos afetivos, tão bem explicados pelo sociólogo polonês Zigmunt Bauman em suas obras sobre a modernidade líquida. Nessas relações, que denomino de instagramáticas, temos a aparência e a imagem como cartão de visita apresentado sem dobra nem borrões. Vivemos sob a concepção de que o mais valoroso é aquilo que aparento ser e do que tenho. Vale-se pelo que se tem, logo, se não tenho, não sou nada, não sou alguém. Mas quem sou eu, afinal? Onde deposito minha felicidade? Sou o que tenho ou que busco ser? E o que procuro? Qual o sentido que imprimo a minha existência? Quando a felicida-
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“O desafio maior dos tempos atuais e da busca da felicidade está centrado na possibilidade de refundarmos o paradigma civilizacional, no qual a cooperação seja mais importante que a competição desleal; a conversa seja a visualização de outros versos (palavra-ação) e faces escondidas na sombra das minhas verdades; a solidariedade seja globalizada e o Outro não seja um inimigo, mas alguém que, apesar da sua diferença, mereça ser escutado.” de está fora de mim: num carro, relógio, celular, roupa ou bolsa de marca famosa, numa droga lícita ou ilícita, ou ainda, na frequência a determinados lugares que só podem ser acessados por quem detém recursos materiais, posso alcançar a felicidade se tiver dinheiro para isso. Contudo, ao obter o que almejava, a felicidade voará como pluma leve para longe e um vazio tomará conta, pois somos seres desejantes, e o desejo nunca se esgota nem pode ser satisfeito plenamente. Somos então condenados à infelicidade? Não. Ao contrário, somos feitos da busca incessante que nos motiva a habitarmos as alturas, a galgar sonhos e a planejar horizontes utópicos que se concretizam no cotidiano, nem sempre como queremos, mas como é possível a cada um. Saber lidar com a frustração é um passo importante para redirecionar nossa maneira de viver. Depende
de onde situamos nossa felicidade: naquilo que tem preço ou naquilo que tem valor? Tudo na vida tem seu preço, mas nem sempre tem um valor que dá consistência ao existir. Muitos sofrem ao depositar sua felicidade em coisas e estabelecem relações com as demais pessoas como se estas fossem objetos de sua satisfação, numa relação coisificada, e não em uma relação de pessoa a pessoa. Alguns acreditam que a felicidade depende exclusivamente de si mesmo, como se vivessem num vácuo social e fossem imunes a quaisquer contextos culturais e históricos; até acreditam que é possível ser feliz sozinho e se posicionam como indiferentes ante a infelicidade coletiva. Felicidade e tristeza caminham de mãos dadas, companheiras inseparáveis que atormentam pessoas e nações. Vivemos cenários trágicos de guerras, ca-
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tástrofes ambientais, violências de toda ordem, narcotráfico, agressões e intolerâncias ao Outro. Criou-se a ilusão digital de que posso deletar o Outro à primeira insatisfação que ele me causar, sem precisar dialogar, expor ideias e sentimentos. Não preciso convencê-lo de que estou certo ou ter que obrigatoriamente concordar com quem não pensa igual a mim. O desafio maior dos tempos atuais e da busca da felicidade está centrado na possibilidade de refundarmos o paradig-
ma civilizacional, no qual a cooperação seja mais importante que a competição desleal; a conversa seja a visualização de outros versos (palavra-ação) e faces escondidas na sombra das minhas verdades; a solidariedade seja globalizada e o Outro não seja um inimigo, mas alguém que, apesar da sua diferença, mereça ser escutado. Talvez assim, a felicidade esteja no prazer da convivialidade, povoada de contradições, e seja semente a desabrochar em um jardim multicor.
* Manoel de Christo Neto é professor do Curso de Psicologia da Universidade da Amazônia (Unama), psicoterapeuta, poeta e membro fundador da Academia Curuçaense de Letras, Artes e Ciências (ACLAC).
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CAPA
BUSCA DA FELICIDADE ATRAVÉS DA LUTA POR DIREITOS E IGUALDADE Natasha Vasconcelos *
O ano é 2018. Grupos de Whatsapp são 32. Redes sociais, 3. Perfis no Instagram também 3, com um total de 10.624 seguidores organicamente adquiridos. Conteúdo produzido para redes sociais foram mais 200, só no feed. Livros lidos foram 42. Artigos apresentados em encontros que envolvem política e feminismo foram 2. Três podcasts sobre feminismo e ativismo. Dez eventos pautando a luta feminista como centro do debate sobre justiça social. Tretas nas redes sociais por causa de feminismo: perdi a conta. Esses foram números que consegui levantar rapidamente apenas porque todo final de ano pede uma retrospectiva e 2018 foi, sem dúvida, o ano em que busquei a tal felicidade. No começo, eu estava buscando uma linha de pesquisa para chamar de minha no mestrado, ao fim da jornada me reconheci e me autodeterminei feminista ativista em luta. Parece pleonasmo o ativismo em luta, mas não é. Trata-se apenas
de uma ênfase no movimento, na transformação acontecendo a todo vapor. Chego ao final do ano com casos de sucesso na memória: relacionamentos abusivos identificados, criação de redes de apoio, protocolos de atendimento à violência contra mulher criados em alguns locais, espaços de escuta qualificada, troca de experiências, redes de relacionamento, novos canais de comunicação
que queremos ir além do limite que criaram para nós. Sofremos violência porque queremos ocupar espaços que disseram que não nos pertencia. Sofremos violência porque queremos amar almas além de corpos. Sofremos violência porque lutamos para que tudo isso seja um direito nosso. Notem que não há nada de errado em tudo isso que queremos, o que estamos propondo é que os limites construídos socialmente sejam rompidos porque são excludentes, preconceituosos e por vezes desnecessários. Nos taxam de insolentes, prepotentes, subversivas, sem limites, fora de lei, baderneiras, para ser bem delicada com as agressões, mas estamos lutando pela expansão da cidadania, da ocupação de espaço, público e privado, pelo acesso à dignidade de ser quem quisermos ser e ao longo dessa jornada penso: por que isso haveria de incomodar? E tenho comigo que a liberdade da mente e corpo não é algo que nossa sociedade tem, apesar de achar que tem, e nem sabe lidar com isso e a resposta vem em forma de controle violento. Controle este que molda mente, cultura e Estado. Controle este que recai em corpos politicamente marcados, porque a violência de
“É totalmente possível ser feliz através da luta por direitos e justiça social. E ser feliz aqui está muito mais relacionado às pessoas que a gente conhece na jornada, à consciência crítica adquirida no processo, às diversas oportunidade de autoconhecimento, aos diálogos plurais que provocam corriqueiramente a interseção das bolhas sociais que estamos inseridos”
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e acesso à informação, narrativas plurais, orientações acadêmicas com perspectiva de gênero, espaço de acolhimento. Esses foram os feedbacks que tenho recebido a partir do meu ativismo. A violência é uma constante na vida dos brasileiros, mas pior do que a violência urbana a qual estamos todos suscetíveis é a violência recebida de pessoas que a gente ama e convive. Sofremos violência por querermos ser quem somos para além da construção social padrão e universal de corpos. Sofremos violência por-
gênero é uma violência política que paira sobre a existência nos mais diversos formatos até o apagamento. Não à toa, a taxa de feminicídio no Brasil é a 5ª maior do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Não à toa, o Brasil lidera o ranking mundial de assassinatos de transexuais, segundo a ONG Transgender Europe (TGEu). Não à toa, a cada 19 horas um LGBT é assassinado ou comete suicídio vítima da LGBTfobia. As estatísticas definitivamente não nos mostram um caminho para a felicidade e é por isso que precisamos pensar sobre que significa a felicidade e a busca por ela. Eu adoto a vertente de que felicidade é exercício, prática, escolhas. Gosto até de me apropriar do discurso liberal sobre o empreendedor de si para encontrar o caminho e sair do desânimo que as estatísticas nos deixam. Adoto a máxima de que tudo depende da gente, ignoro o fantasma da mão invisível do Estado (numa alusão, irônica, à mão invisível do mercado). Chamo essa apropriação de ativismo. Se você é capaz de ser ativista no mercado você consegue ser na luta pela transformação social. Uma vez que esses conceitos estejam esclarecidos e certos de que estamos concordando sobre eles advogo que é totalmente possível ser feliz através da luta por direitos e justiça social. E ser feliz aqui está muito mais relacionado às pessoas que a gente conhece na jornada, à consciência crítica adquirida no processo, às diversas oportunidade de autoconhecimento, aos diálogos plurais que provocam corriqueiramente a interseção das bolhas sociais que estamos inseridos. Não tem nada de feliz ser marginalizada, criminalizada, silenciada, estigmatizada, assassinada pela escolha política que é dedicar-se a encarar o mundo através do ativismo social. Mas estamos certas que sofrer essas violências e apagamentos são riscos que decorrem do sentir alheio e não o nosso. Não tem nada de feliz saber que diariamente companheiras e companheiros estão absolutamente vulneráveis aos tipos mais sórdidos de violên-
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cia, mas existe uma força que nos move no sentido de tentar neutralizar essa violência. Algumas pessoas chamariam de fé, outras de esperança, eu chamo de felicidade, sim, sou uma cidadã otimista pela paz, com foco nos resultados, penso no pouco que eu faço e no quanto isso contribui e começo logo a pensar no potencial que tem uma rede de ativistas espalhada em cada canto desse mundo. Então seria eu feliz 100% por ser ativista? De modo algum ninguém é feliz 100%. Não dá pra ser. A gente precisa das nossas angústias e inquietações para sair do modo automático que o ser adulto e ter contas para pagar nos exigem. Acontece que essa busca traz saber, consciência, conhecimento que traz consigo a capacidade de ser receptivo a felicidade. Pensar livremente e transformar a partir desse pensamento. Romper com o discurso da servidão voluntária. Não existe nada pior
do que ser o que o outro quer que seja. Seja o outro a família, a igreja, a sociedade, os amigos, a norma, o estado. Essa é a essência da luta feminista, romper com as expectativas construídas socialmente sobre corpos marcados politicamente. Esse marcador rende a nós um atraso histórico de acesso a direitos e liberdades e é extremamente prejudicial nas dinâmicas sociais que se desenrolam a partir do formato padrão universal masculino, branco, heteronormativo, colonizador. Esses são marcadores de um saber, de um sistema, de um funcionamento que controla normas. Acho curioso quando utilizo esse argumento e homens ficam visivelmente incomodados, a prepotência é tamanha que se sentem os sócios-proprietários da opressão e mal conseguem perceber os danos que essas expectativas causam a eles também. O feminismo também é sobre isso. DEZEMBRO DE 2018
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Márcia Tiburi chama de Ideologia Patriarcal a estrutura que organiza a sociedade, favorecendo uns e obrigando outros a se submeterem, sob pena de violência e morte. Para muitos de nós é difícil entender como essas relações de poder operam porque foram estrategicamente naturalizadas, a ponto de serem conectadas a uma habilidade biologicamente definida. E é por isso que precisamos descortinar muitos dos aspectos dessa construção para que possamos nos perceber atores capazes de alterar nossa realidade. bell hooks, assim mesmo, em letras minúsculas, porque ela, intencionalmente, quer chamar atenção para sua fala, chama atenção dos movimentos feministas com relação a violência patriarcal que é operada tanto por homens quanto por mulheres. Mais ampla que violência doméstica, a violência patriarcal contempla homem e mulher, casais do mesmo sexo e a violência contra crianças e deve ser uma preocupação primária do movimento porque refere-se ao ambiente que torna aceitável o controle através da força coercitiva. A confusão aqui é criar crianças com comunicação violenta e esperar que elas não se transformem em adultos violentos. O puxão de orelha da bell hooks está direcionado a nós, mulheres, e as formas como estamos construindo nossas relações de poder com crianças e ela nos convida a refletir sobre isso e pensar em alternativas para os modelos de interação social que estamos construindo. Considero o ambiente de luta por direitos e justiça social o espaço mais propício para a construção de novos modelos, porque ele nos empodera. Não aquele empoderamento comercial de camisa de fast fashion que o capitalismo conseguiu se apropriar e esvaziar, mas o empoderamento que Joice Berth traz para gente como postura de enfrentamento da opressão para eliminação da situação 22 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
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injusta e equalização de existências em sociedade (...) que é antes de mais nada, pensar em caminhos de reconstrução das bases sociopolíticas. A propósito, leiam teóricas feministas negras, porque o feminismo branco não dá conta das opressões interseccionais por mais bem-intencionado que seja. Aliás, precisamos cada vez mais encarar o racismo como processo político, além do histórico, e se perguntar a quem ele interessa. Esse, inclusive, é um dos questionamentos de Silvio Almeida em seu livro “O que é racismo estrutural?”. Não tem como falar de luta por direitos e justiça social sem partir dessas perspectivas que estão questionando a organização social e a concentração de poder político o tempo todo. Todas essas reflexões são trazidas pelo Feminismo, esse movimento social, teórico e político totalmente estigmatizado e pautado de forma totalmente desajustada e desinformada justamente por aqueles que se beneficiam dessas relações de
opressão. Então precisamos pensar de que forma estamos tendo acesso ao feminismo. Feminismo, para mim, é informação. É rede de proteção e cuidado. Feminismo é descortinamento, esclarecimento, conscientização. É emancipação. Feminismo é autodeterminação, autoestima, autocuidado. É horizontalidade. Feminismo é empoderamento, sororidade, direito de ser quem se é, é relatar a si mesma, é pensar junto, é revolução que começa em nós, sendo assim reforço aqui o pedido de Chimamanda Ngozi Adichie: sejamos todxs feministas. * Natasha Vasconcelos é Advogada, feminista ativista, fundadorado @politicaparamulheres
A FELICIDADE E A TERRA SEM MAL João Meirelles Filho *
Quando grupos Tupi, originários da Amazônia, deixaram regiões como a ilha de Tupinambarana, atual Parintins, Amazonas, percorrendo, por mais de oito séculos o que hoje se chama de Brasil, em busca da Ivy marãey (Terra Sem Mal), jamais suporiam que aos povos e comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, a felicidade seria atrelada, em boa medida, ao pertencer ao território. É bonito demais observar o ilhéu do Marajó afirmar-se diante da pergunta – de onde és? – Sou Marajoara! Este pertencimento, decerto, não se constitui âncora imobilizadora, pelo contrário, permite que se vá a outras partes e se regresse a sua terra. Em recente visita a Salvaterra, ouvi, enternecido, que um terço da população deste município marajoara é quilombola e que, apesar de viverem em sua terra, a maioria dispõe de pouco mais do que o espaço da própria habitação. A terra que os alimenta e usam – sua paisagem social – foi-lhes tomada. Para estes quinze territórios quilombolas, a felicidade, igualmente, não seria a sua terra reconhecida – a Terra Sem Mal? Para outro grupo de povos originários, os Guarani, mais ao sul no Brasil, o conjunto mítico que constitui a Criação e Destruição do Universo relaciona-se a uma migração profética (o que se denomina de cataclismologia, conforme o contato de Curt Nimuendajú e os Apapocuva, no início do século XX). De qualquer maneira, quem sabe de sua terra, seu povo, e pode contar a sua história e mitos fundadores (e fundamentais) é o povo do lugar e não o outro. Como nos recorda Helene Clastres,
em seu livro “Terra Sem Mal”, os primeiros religiosos católicos europeus no atual Brasil (jesuítas) consideravam os povos originários “gente sem fé”. Pouco se interessaram em ouvir o outro, ou, os muitos outros, tanto que os primeiros registros de mitos indígenas por luso-brasileiros ocorreu no fim do século XIX (mais de 350 anos depois da invasão da América). Ampliando-se este debate, como querer,
te nos últimos cinco séculos uma nova visão de felicidade se impôs, procurando a todo custo desqualificar estas múltiplas histórias e mitos, este povo, esta terra. Ao mesmo tempo, são estes povos que nos oferecem o seu conhecimento, sua cultura, seus saberes e fazeres, de bens hoje tão preciosos à Humanidade, como a domesticação do cacau, mandioca, borracha, açaí, ervas medicinais etc. Daí, respeitar os territórios tradicionais, as Terras Sem Mal – Terras Indígenas, Territórios Quilombolas, Reservas Extrativistas, Assentamento Agroextrativistas, Reservas de Desenvolvimento Sustentável entre outros é essencial para a nossa própria identidade e sobrevivência como civilização. Mais que uma Terra Sem Mal para si próprio, estes povos são guardiões da Amazônia, fato plenamente confirmado pela ciência, como essencial para a conservação do bioma Amazônia e sua biodiversidade, além de ser essencial para o equilíbrio climático do planeta, sem falar como a principal fonte de água e umidade para a agropecuária da América do Sul. Bem, o que nos diferencia do restante do planeta é a Amazônia, e esta só tem sentido com seus povos identitários que concebem-na como a sua terra, a Terra Sem Mal. E que, em última instância tal qual Érico Veríssimo (Olhai os Lírios do Campo) em que a felicidade é “a certeza de que a nossa vida não está se passando inutilmente”.
“Ampliando-se este debate, como querer, numa Amazônia tão diversa, com cerca de duzentos povos indígenas distintos (e mais de trezentos mil indivíduos), além de dezenas de milhares de grupos de povos e comunidades tradicionais (e mais de dois milhões de pessoas), impor um modelo único de felicidade?” numa Amazônia tão diversa, com cerca de duzentos povos indígenas distintos (e mais de trezentos mil indivíduos), além de dezenas de milhares de grupos de povos e comunidades tradicionais (e mais de dois milhões de pessoas), impor um modelo único de felicidade? De fé? Especialmente em se tratando de modelos de fora para dentro, modelos sem chão – sem território! A própria sobrevivência destes grupos – à migração forçada, eliminação por meio de doenças, escravização, guerras e extermínio – demonstra a sua enorme capacidade de buscar a sua felicidade – a Terra Sem Mal. É esta capacidade de se adaptar – a resiliência – que nos norteia e inspira, e exige-nos uma visão mais generosa perante os indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais. Por mais de cem séculos os indígenas foram os donos da história. Somen-
* João Meirelles Filho dedica sua vida à Amazônia. É escritor (O Abridor de Letras, Ed. Record, 2017, Prêmio SESC de Literatura, 2017) e, como ativista socioambiental, dirige o Instituto Peabiru desde a fundação há 20 anos.
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FALANDO DE FELICIDADE Kátia Mendonça*
Como falar acerca de felicidade em meio à violência contra os animais, contra os homens, contra as mulheres e as crianças. Violência que se encontra na arma apontada para a nossas cabeças, mas também na falta de atendimento médico pela falta de verbas para saúde, roubadas pela corrupção que mata. Violência presente no discurso e na ação pública de exclusão social dos pobres, dos negros, dos quilombolas e tantas outras categorias criadas pelo ser humano que, ao final, é apenas isto: ser humano! Violência que se encontra na expulsão dos ribeirinhos de suas casas e o seu deslocamento para horríveis lotes urbanos em periferias da Amazônia, como ocorre em Belo Monte e em outros grandes e apocalípticos projetos nesta região. Violência que mata o pequeno agricultor e o expulsa para as periferias a fim de prosperarem o dendê e a soja. Violência contra tantas pessoas esmagadas não só por uma esfera pública falida, mas também por relações afetivas e sociais destruídas pela falsidade e pela mentira, que são as fontes primeiras da violência. Violência nas palavras e nas imagens perpetrada por certos setores da imprensa que expõem cotidianamente o seu show de vísceras e de lágrimas da mesma forma como expõe a nudez e o erotismo de homens e de mulheres. Não é uma tarefa fácil falar de felicidade no Brasil de hoje!
Uma primeira tentativa de se pensar a questão da felicidade é relacioná-la com a ética. É impossível uma sem a outra, já percebiam os gregos. A felicidade está ligada a uma forma de viver ética. A fórmula de Aristóteles é “viver uma vida boa, com e para os outros e em instituições justas”. O primeiro eixo é “viver uma vida boa”, mas, o filósofo grego sabia que não basta uma atitude individualista e, logo, egoísta, pois o homem precisa dos outros homens para viver. Assim, ele nos dá o segundo eixo: “viver com e para os outros”, ou seja, viver em comunidade. Porém, isso também não basta. Para se ter uma vida ética é necessá-
situação de extrema fragilidade e de incerteza acerca do seu futuro, quando a própria região e seus habitantes - homens, animais e florestas - vêm sofrendo agressões terríveis por parte dos grandes projetos que todos os governos de direita, de centro e de esquerda apoiaram, apoiam e apoiarão. Além disso, os centros urbanos da região padecem com o crime e as drogas ceifando as vidas de centenas de pessoas. O passado é terrível. O futuro, ao contrário do que possam pensar alguns, embalados em propostas de salvadores políticos, não é animador, pelo contrário. A política como espaço da justiça foi destruída no Brasil, ou melhor, talvez nem tenha chegado a se concretizar, e o que restou foi uma democracia de espetáculo que pouca ou nenhuma esperança de felicidade dá aos habitantes da Amazônia. Então, como falar de felicidade? Podemos tentar fugir desse assunto, podemos esquecer todos esses anônimos que sofrem na escuridão da floresta ou sob a ameaça da violência das ruas. Melhor dizendo podemos ocultá-los de nosso olhar, reforçar sua invisibilidade e recorrer ao padrão de felicidade self servisse, proporcionada pelos shoppings, pelas compras, pela correria para consumir, pelas fake news, pela moda, pela vida em redes sociais com suas mensagens e imagens plastificadas de felicidade. Mas, perguntamos novamente, isso é felicidade? Não! Responderia Santo Agostinho. Isso é indigência. Isso significa infelicidade (miseriam), trevas, carência e falta de luz. Isso nada nos deixa a não ser o vazio.
“Uma primeira tentativa de se pensar a questão da felicidade é relacioná-la com a ética. É impossível uma sem a outra, já percebiam os gregos. A felicidade está ligada a uma forma de viver ética.”
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rio se viver em “instituições justas”. É uma vida ética no sentido acima que conduz à felicidade, ou seja, a felicidade tem uma ligação com a cidade, com a coisa pública, com a cidadania, com a justiça, como possível lugar da felicidade. Logo, com a política, no sentido de uma vivência em conjunto orientada para o bem comum. Ora, não é preciso grande esforço para vermos que estamos muito distantes da felicidade. O homem da Amazônia, em particular, encontra-se mergulhado em uma
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E aí segue-se uma segunda e mais importante pergunta: como falar em felicidade, em pleno Natal, em uma sociedade em larga medida descristinizada? Sim, uma sociedade cega que clama por Jesus e que acompanha a Sua Mãe no Círio, mas que, em muitos casos, aposta na violência como resolução para a própria violência e assim vai vivendo, passando por cima de tudo e todos. Ou seja, afasta-se insensatamente de uma verdadeira religação espiritual com Deus, embora fale e grite o Seu Nome nas igrejas e nos palanques. Segue-se então, que é o momento de lembrarmos em primeiro lugar que o Natal é a festa de aniversário do Deus que se fez homem para nos salvar e que aqui chegou, como um frágil bebê, através de uma mulher que teve um papel salvífico fundamental: Maria de Nazaré. O Natal é o aniversário de Jesus e não o nosso ou o do Papai Noel. Logo, é uma insensatez expulsá-lo da festa, como o fazemos. Em
segundo lugar, esse menino nasceu sob os signos da pobreza e da cruz. Sua proposta de felicidade não é deste mundo no qual somos peregrinos em desenvolvimento espiritual. Sendo assim, embora persista e seja absolutamente necessária a visão primeira de felicidade, como uma situação vinculada à ética sem a qual é impossível a vida na terra, esta não elimina a necessidade de se buscar uma felicidade interior, de plenitude, do ser e não do ter, possível de se vislumbrar na simplicidade, no silêncio, na oração e no ato estender a mão para o mais frágil, ou seja no Amor. Ambas as visões se completam. Isso é muito difícil, sabemos, mas o chamado permanece há 2018 anos. Mais uma vez nos pedindo a retomada do diálogo com o Criador, diálogo esquecido por nós distraídos com tantos bens, como o aparato tecnológico, com a sedução das falsas imagens e com os falsos profetas.
As calamidades coletivas persistem. A violência persiste. E é aqui que reside a possibilidade de esperança, não em falsos salvadores mundanos, mas em uma força que vem do Transcendente, que também está em nós e que podemos descobri-la na retomada do diálogo com Deus. E quando esse tipo de esperança brota de nossas profundezas podemos, mesmo no meio da dor, olhar para o céu, e sentirmos a felicidade de viver e de encontrar um Sentido para a vida.
Kátia Mendonça é professora, pesquisadora, pós-doutora em Ética da UFPA e da Uepa. Membro do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Uepa e dos cursos de Sociologia e Antropologia da UFPA.
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EDUCAÇÃO
Vitória indígena
Diploma de nível superior torna-se mais um passo pela defesa de direitos Kayapó TEXTO DAYANE BAÍA FOTOS NAILANA THIELY
"A
judar a minha comunidade a lutar por nossos direitos e valorizar cada vez mais nossa cultura. Buscar conhecimen-
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to não indígena para ajudar a comunidade indígena”, disse Patkore Kayapó, ao concluir o curso de Licenciatura Intercultura Indígena, da Universidade do
Estado do Pará (Uepa). Ele e mais 15 integrantes da etnia Kayapó conquistaram a outorga de grau, neste mês, em São Félix do Xingu.
O curso ocorreu em associação com o Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor). Baseado na interculturalidade, a graduação leva os docentes da Uepa diretamente para as aldeias, em respeito à troca de saberes. São os conhecimentos científico e indígena atuando juntos para fortalecer a cultura e a educação dos povos originários. A cerimônia adaptada mesclou ritos indígenas e protocolares, um momento histórico que configurou o ápice da formação vivenciada ao longo de quatro anos para se tornarem professores. Para Beko Kayapó, o momento de celebrar é importante. “Estamos recebendo nossos diplomas. Essa formação trouxe muitos conhecimentos ocidentais, temos que assimilar outra cultura, sem deixar de lado a nossa própria”, destacou. Patkore não pensa em parar os estudos e inspira a família. “Fiquei muito feliz e quero continuar a estudar e buscar cada vez mais conhecimento e ajudar todos os meus parentes”, afirmou. A filha dele, Iredjopti Kayapó, estava emocionada. “Foi muito difícil para ele se formar. Tenho vontade de seguir o ensino superior mas não como professora, quero trabalhar como enfermeira na área da saúde”, contou. A coordenadora do curso, Joelma Alencar, falou sobre o desafio. “Os kayapó falam a própria língua materna e não o português. É bem mais complexo para nós da Universidade. Hoje eles estão aptos a atuar desde a educação infantil até o Ensino Médio, e foram preparados para utilizar metodologias específicas e produzir materiais para atender a realidade do seu público, também formado por alunos indígenas”, afirmou. A graduação está vinculada ao Núcleo de Formação Indígena que também oferta pós-graduação em nível de especialização e terá em 2019 o curso de Mestrado, um reforço à continuidade dos estudos dos egressos.
ENSINO SUPERIOR Indígenas da etnia Kayapó concluíram o curso de Licenciatura Intercultura Indígena, da Universidade do Estado do Pará
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PRESERVAÇÃO
Menos poluentes Brasil atinge meta de redução de emissões de carbono na área florestal
VALTER CAMPANATO / ABR
BRASÍLIA AGÊNCIA BRASIL
O
Brasil atingiu este ano a meta de redução em 0até 38% das emissões de carbono na área f lorestal. O país reduziu 1,28 bilhão de toneladas de dióxido de carbono entre agosto de 2017 e julho de 2018, o que representa uma redução de 60% no volume emitido por 28 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •
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atividades f lorestais. O dado, baseado em cálculos de absorção de carbono pelas florestas brasileiras, foi divulgado pela delegação brasileira durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 24), que está sendo realizada em Katowice, Polônia.
De acordo com o relatório, o setor florestal deixou de ser a maior fonte de emissão de carbono no país (já foi responsável por cerca de 75% do total de emissões anuais) e em 2018 absorveu 538 milhões de toneladas de CO2 da atmosfera. A redução das emissões florestais
MAYKE TOSCANO
permitiu que o país alcançasse a meta estabelecida em 2009, durante a Cúpula do Clima de Copenhague. Na ocasião, o país se comprometeu a reduzir as emissões em torno de 36 a 38% até 2020. Segundo o governo brasileiro, o resultado foi alcançado devido à redução do desmatamento na Amazônia, no Cerrado e à absorção de carbono por terras indígenas e áreas verdes preservadas em reservas legais ou propriedades privadas. O registro de mais de 5,4 milhões de propriedades rurais com áreas de conservação ambiental pelo Cadastro Rural também permitiu a identificação de áreas com capacidade de absorção de carbono. O levantamento divulgado também mostra que o desmatamento do Cerrado diminuiu 11% em 2018. Segundo o governo, este é o menor nível de área desmatada desde o início da série, em 1999. O Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul e se estende por mais de dois milhões de km². Mais da metade de sua área já foi degradada, principalmente com o avanço da fronteira agrícola. O Brasil também anunciou pela primeira vez que foram recuperadas 9,4 milhões de hectares de vegetação nativa da Amazônia de 2004 a 2014. O governo an-
RECUPERAÇÃO De acordo com o relatório internacional, o setor florestal deixou de ser a maior fonte de emissão de carbono no país (já foi responsável por cerca de 75% do total de emissões anuais) OSWALDO FORTE / ARQUIVO O LIBERAL
tecipa que a área recuperada permite ao país atingir a meta de recuperar 12 milhões de hectares da vegetação florestal até 2030. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, a recuperação da vegetação nativa é prioridade da política ambiental brasileira. O ministro do Meio Ambiente, Edson Duarte, comemorou os resultados e declarou que os números confirmam a contribuição brasileira para redução dos gases efeito estufa no mundo. “O Brasil vem fazendo um papel importante. Isso
deve servir de estímulo para fazer mais, ou seja, o que o Brasil fez é importante, mas o sentimento é de que precisamos fazer muito mais porque a situação é muito grave no mundo inteiro. A contribuição tem que ser de todos os países”, comentou Duarte à Agência Brasil. O ministro participou na COP 24 do chamado Diálogo de Talanoa, momento em que as nações apresentam diferentes experiências e iniciativas de descarbonização, entre outras reuniões e atividades multilaterais. DEZEMBRO DE 2018
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NOVOS CAMINHOS
Com ou sem canudinho?”
THIAGO BARROS
é jornalista, mestre em Planejamento do Desenvolvimento Sustentável (NAEA-UFPA) e professor da Universidade da Amazônia @thiagoabarros
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Cidades de dez países aboliram, com força de lei, o uso de canudinhos plásticos. Quando o município do Rio de Janeiro engrossou o grupo, o debate sobre o potencial poluidor do acessório ganhou visibilidade novamente no Brasil. Até que ponto precisamos de penduricalhos de resinas derivadas do petróleo, com destaque para os “descartáveis”, de pratos e copos a sacolas de supermercados? A figura do canudinho é a ponta de um iceberg que envolve centenas de grandes empresas que lucram com a venda de produtos plásticos e que, em minoria, têm programas de logística reversa ou reciclagem. Segundo: o uso de produtos plásticos para situações do cotidiano estimula a cultura do usar e jogar fora, um processo difícil de ser revertido sem ampla frente de conscientização. Para complicar, as maiores cidades do Brasil não estão preparadas para lidar com coleta seletiva e o plástico descartado vai para vala comum sem a possibilidade de ser reciclado em larga escala. A Região Metropolitana de Belém – que abriga 2,5 milhões de habitantes – sequer tem perspectiva sobre como substituir seu maior depósito de lixo, que será fechado no primeiro semestre de 2019. Se o desafio é grande quando lidamos com o problema cara a cara, nas ruas, o que dizer do lixo invisível? Pesquisas realizadas por universidades e centros de pesquisa de ponta no litoral de vários continentes constataram que, além da terra, os oceanos também estão infestados de lixo e microfragmentos de plástico. Perto de áreas com população densa flutuam imensas ilhas de resíduos tóxicos, que DEZEMBRO DE 2018
interferem drasticamente no equilíbrio do ecossistema. A grande mancha de lixo do Pacífico, uma ilha de entulhos localizada na costa oeste dos Estados Unidos, é o maior símbolo deste tipo de impacto: reúne quase 100 mil toneladas de plástico em uma área equivalente à do Estado do Amazonas, o maior do Brasil, segundo dados apresentados em artigo científico publicado na revista “Scientific Reports”. Ainda que iniciativas voltadas ao uso sustentável de plástico e tenham crescido na última década, o mercado está dominado pela lógica do lucro sem a consideração do impacto das atividades produtivas. Já na década 1970 o economista alemão Ernst Schumacher defendia que a produção de larga escala resulta em colapso ambiental e social (“O negócio é ser pequeno” Small is beautiful: a study of economics as if people mattered. Vintage, 1993). Começamos com o canudinho, mas a lógica é a mesma em outras escalas de consumo: vestimentas, aparelhos eletrônicos, móveis, veículos, entre outros bens que deveriam ser duráveis, mas são produzidos considerando o conceito de obsolescência programada. Ou seja, a funcionalidade do produto tem data de validade para forçar o consumidor a adquirir o novo item de série. Uma máxima do campo da economia no século passado, “um bem que não se desgasta é uma tragédia para o mercado”, ilustra como as grandes corporações orientam o consumo massivo, com desapego aos impactos ligados a esse comportamento. A mudança, defendem Schumacher e inúmeros ambientalistas e filósofos
“A figura do canudinho é a ponta de um iceberg que envolve centenas de grandes empresas que lucram com a venda de produtos plásticos e que, em minoria, têm programas de logística reversa ou reciclagem” de renome, não virá do setor produtivo. O processo é inverso, tanto que cobranças da sociedade civil têm surtido efeito para o estabelecimento de atividades sustentáveis por parte de empresas. A mudança pode começar quando você rejeitar o canudinho na lanchonete. Mas não deve parar neste estágio.
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