Revista Amazônia Viva

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REVISTA ENCARTADA NO JORNAL O LIBERAL. NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE.

NOVEMBRO 2O18 | EDIÇÃO NO 81 ANO 8 | ISSN 2237-2962

NO RASTRO DOS

BOTOS

Expedição ao norte do Amapá, no encontro entre rio e oceano, mostra as dificuldades das pesquisas sobre esses animais emblemáticos e onde habitam


NESTA EDIÇÃO

INSTITUTO MAMIRAUÁ

NOVEMBRO2018

UMA PUBLICAÇÃO DELTA PUBLICIDADE - JORNAL O LIBERAL NOVEMBRO 2018 / EDIÇÃO Nº 81 ANO 8 ISSN 2237-2962

16 Golfinhos

Presidente LUCIDÉA BATISTA MAIORANA

Pesquisa monitora a presença de botos na região onde rio e oceano se encontram ao norte do Brasil

Conselho editorial RONALDO MAIORANA ROSÂNGELA MAIORANA KZAM LÁZARO MORAES

Presidente Executivo RONALDO MAIORANA Vice-Presidente ROSÂNGELA MAIORANA KZAM

da Amazônia

Diretora Comercial ROSEMARY MAIORANA

CAPA

NAILANA THIELY/ DIVULGAÇÃO

VICTÓRIA RAPSÓDIA/ DIVULGAÇÃO

ARY SOUZA

Núcleo de Projetos Especiais FELIPE JORGE DE MELO Jornalista responsável e editor-chefe (SRTE-PA 1769) Colaboraram para esta edição O Liberal, Agência Brasil, Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Federal do Pará, Universidade do Estado do Pará, Instituto Mamirauá (acervo); Fernando Sette (diagramação); Abílio Dantas, Dayane Baía, Jamille Reis, João Carlos Pereira, Lucas Costa (reportagem); Ary Souza, Nailana

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IDENTIDADE

RESISTÊNCIA

A professora de Artes da

Músicos, como a cantora

Universidade Federal do

Thaís Badu, usam a arte

Pará e doutora em Antro-

como bandeira de luta

pologia Zélia Amador de

das causas sociais, prin-

Deus é referência na luta

cipalmente das minorias

contra o racismo.

que moram na periferia.

QUEM É?

SOCIEDADE

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ARTE

Os músicos da banda da Universidade do Estado do Pará saem dos limites da sala de aula e participam de atividades de pesquisa e extensão, como shows. CULTURA

E MAIS

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SUSTENTABILIDADE TRÊS QUESTÕES EU DISSE MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS OLHARES NATIVOS NOVOS CAMINHOS

Thiely, Roberta Brandão (fotos); Jamille Reis (produção), Thiago Almeida Barros (artigo) J.Bosco (ilustrações). FOTO DA CAPA Rio Cassiporé, Amapá, por André Dib/ Instituto Mamirauá. AMAZÔNIA VIVA é editada por Delta Publicidade. CNPJ (MF) 04.929.683/0001-17. Inscrição estadual: Isenta Inscrição municipal: 032.632-5 Avenida Romulo Maiorana, 2473, Marco Belém - Pará projetosespeciaisoliberal@gmail.com

REALIZAÇÃO


SUSTENTABILIDADE

Plástico à mesa DIVULGAÇÃO

PESQUISA DA UFPA COM UNIVERSIDADES ESTRANGEIRAS CONFIRMA QUE HÁ MICROPLÁSTICO EM PEIXES DA AMAZÔNIA TEXTO MICHELINE FERREIRA

C

uidado! Você pode estar comendo plástico no almoço e jantar. O alerta veio depois que um grupo de pesquisadores liderado pelo doutores Marcelo Costa Andrade e Tommaso Giarrizzo publicou artigo científico na revista Enviroment Polution, confirmando o primeiro registro da ingestão de microplástico por peixes na Amazônia. A pesquisa foi feita no período de 2012 a 2014, em um trecho do rio Xingu de aproximadamente 300 quilômetros. O grupo, composto por cientistas das Universidades Federal do Pará (UFPA),

Texas (Texas A&M University), nos Estados Unidos, e de Florença (Università di Firenze), na Itália, realizou estudo com o conteúdo estomocal de 172 peixes pertencentes a 16 espécies da família das piranhas e dos pacus (Serrasalmidae). Das 16, 13 apresentaram itens de plástico no estômago. ”O estudo constatou que 80% dos peixes analisados tinham plástico no conteúdo estomacal”, comentou Marcelo Andrade. O professor Tommaso Giarrizzo ressaltou que a ideia inicial do trabalho era fazer uma investigação apenas de ecologia alimentar, com o objetivo de descobrir só

o que os peixes dessa região estavam comendo, mas foram “tristemente surpreendidos“ com plástico nos estômagos desses peixes, depois da análise em laboratório do Departamento de Química da Universidade de Florença. Os peixes coletados viviam na região do baixo rio Xingu, na confluência dos rios Iriri e Xingu até o município de Vitória do Xingu. O plástico encontrado foi minuciosamente detalhado em laboratório. Tommaso Giarrizzo revelou que havia desde filamento de pesca, PVC, poliamida, polipropileno e outros polímeros utilizados para fazer NOVEMBRO DE 2018

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SUSTENTABILIDADE DIVULGAÇÃO

sacolas, garrafas PET e outros produtos. “A ocorrência de plástico, de acordo com as espécies, variou de 13 a 100%”, realçou, detalhando que a contribuição de peso do plástico variou de 1% até 77%” do que havia no estômago dos peixes. Os pesquisadores destacaram ainda que o peixe conhecido na região como pacu-capivara foi a espécie que apresentou a maior quantidade de plástico ingerido, chegando a 77% do peso do conteúdo alimentar. O agravante é que a espécie é endêmica do Xingu e está ameaçada de extinção. O estudo tenta responder quais as razões que levaram essas espécies a ingerirem plástico. Os pacus, que são herbívoros, ingeriram pedaços de plásticos porque seriam parecidos a sementes, frutas e folhas, de acordo com os cientistas. Já os peixes onívoros devem ter feito a ingestão do plástico, especialmente filamentos de pesca, porque se alimentam próximos às plantas aquáticas, local onde a poluição acaba fixando esses resíduos. Os peixes considerados carnívoros, como as piranhas, teriam consumido plástico porque podem ter se alimentado de outros peixes já contaminados com plástico. Tommaso Giarrizzo reconhece que ainda não se sabe o efeito do plástico na saúde humana, no entanto, os microplásticos tendem a se associar a compostos poluentes, como os produtos químicos, que são muito perigosos, e podem ser transferidos para os tecidos musculares dos peixes e, quando consumidos pelas pessoas, podem afetar a saúde humana. O grupo já adiantou que continua a fazer vários outros estudos, aprofundando essa pesquisa, também já ampliou o número de espécies e passou a fazer coletas em outras bacias da Amazônia, entre as quais dos rios Guamá e Solimões e mais o litoral amazônico. “Queremos avaliar o efeito da urbanização e gestão dos resíduos nos organismos 4 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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TRISTE SURPRESA

Acima, resíduos plásticos encontrados nos estômagos de peixes do gênero Serrasalmidae, coletados no rio Xingu. Abaixo, o biólogo Tommaso Giarrizzo (centro) com outros pesquisadores.

aquáticos para alertar os órgãos competentes a fim de que promovam políticas públicas de prevenção e mitigação dos danos já causados”, finalizaram os professores. A pesquisa, publicada em 25 de outubro deste ano, já

foi tema de reportagem do jornal inglês The Guardian, disponível on-line no link: https:// www.theguardian.com/environment/2018/ nov/16/sad-surprise-amazon-fish-contaminated-by-plastic-particles


TRÊSQUESTÕES RESPOSTAS QUE VÃO DIRETO AO PONTO

SOLIDARIEDADE EM ALTAMIRA QUE TRANSFORMA VIDAS TEXTO ABÍLIO DANTAS

A Rede La Salle é uma instituição cristã que realiza projetos assistenciais nas regiões Norte, Nordeste e Sul do Brasil. A missão da entidade é promover o desenvolvimento integral de jovens, adultos e idosos por meio de uma concepção de educação participativa. O foco são pessoas de baixa renda, a quem são oferecidos cursos de qualificação profissional e atividades socioeducativas. Também presente no município de Altamira, a Rede trabalha atendendo lideranças comunitárias, gerindo ações no campo da cultura e do lazer e difundindo a importância dos conhecimentos sobre preservação ambiental. Genésio Oliveira, diretor do Centro de Assistência do município, conta sobre os trabalhos da instituição.

Como ocorre o acompanhamento das pessoas que participam dos programas? Ocorre durante o vínculo do usuário em nossos serviços. Procuramos identificar as deficiências, as dificuldades, os potenciais da pessoa e, em cima disso, fomentamos meios que possibilitem a sua superação e evolução no dia a dia.

DIVULGAÇÃO

Há quanto tempo a Rede La Salle está em Altamira e quais são as principais ações? A presença de nossa instituição, em Altamira, se dá desde 1975, quando contribuímos com a formação de professores e de lideranças. Em 2007, nossa atuação se torna mais evidente com as ofertas de serviços socioassistenciais e socioeducativos voltados para o atendimento de pessoas de baixa renda. Destaco os serviços de atendimento a adolescentes e crianças, onde fortalecemos vínculos e proporcionamos desenvolvimento humano e cidadão a elas, com atividades de dança contemporânea e regional; capoeira; iniciação musical a teclado e violão; escolinha esportiva e reforço escolar, tudo gratuitamente.

Quais são os projetos em curso e como eles impactam a vida das comunidades da região? Atualmente, nosso foco principal é o atendimento de crianças, adolescentes e jovens que ocorrem por meio de dois projetos: “Meu futuro é hoje” e “Sonho que se constrói”. Os impactos sociais alcançados são significativos, tais como: diminuição da ociosidade; fortalecimento do vínculo familiar; formação de pessoas conhecedoras de seus direitos básicos e melhoramento no rendimento escolar. A lém desses projetos, atuamos também nos espaços de controle social, construção de políticas públicas e na rede de proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes do município de A ltamira. Somos a primeira instituição do interior do Estado a assumir a presidência dos Conselhos Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Pará, fato histórico.

SOCIEDADE

Genésio Oliveira é diretor do Centro de Assistência da Rede La Salle, em Altamira

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EU DISSE

EPITÁFIO

“Chegou a hora de acabar com o racismo que mata milhares de jovens negros todos os anos!” Taís Araújo, atriz, em apoio à campanha Vidas Negras, da ONU, que defende o fim da violência contra a juventude negra no Brasil. No País, sete em cada dez pessoas assassinadas são negras. Na faixa etária de 15 a 29 anos, são cinco vidas perdidas para a violência a cada duas horas.

“Um país justo precisa de forte apoio à Ciência” Jérson Lima Silva, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre Projeto de Ciência para o Brasil, assinado por 180 cientistas. Para ele, o maior obstáculo para o setor é a baixa escolarização da população.

“Os direitos sexuais e reprodutivos existem no papel, mas acabam sendo outros na realidade, em especial para mulheres e adolescentes com deficiência.” Wanderlei Marques de Assis, coordenador-geral do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, durante I Seminário Internacional de Saúde Sexual Reprodutiva, HIV e Pessoas com Deficiência.

“Só quando a sociedade está devidamente informada e discutindo o tema [poluição] que nós temos uma chance, de fato, de proteger os nossos recursos hídricos” Julio Meyer, gerente do Parque Estadual do Utinga, durante debate sobre o papel dos recursos hídricos e os perigos da poluição de rios, igarapés e mananciais de abastecimento para as diversas espécies animais, vegetais e também os humanos que vivem no Pará e na região amazônica.

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“Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades” Stan Lee, criador dos principais super-heróis da Marvel Comics, como Homem-Aranha e Hulk. (1922-2018)


Eneida de Moraes (1903-1971)

MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS

Q

uando Eneida Costa de Moraes nasceu, em 23 de outubro de 1903, a cidade que amaria por toda a vida não era Belém do Pará, e, sim, Belém de Paris. A belle époque ainda ecoava pelas paredes das salas afrancesadas da capital. Sua babá era uma senhora francesa, chamada Elise Platt, que lhe contava histórias infantis, às quais se misturavam as narrativas do pai, um piloto de navio, sobre as lendas da Amazônia e uma paixão da infância: o rio Amazonas. Ela cresceu entre dois mundos, estudou como interna num colégio de freiras, em Petrópolis (RJ), escreveu o primeiro conto aos 8 anos e fez faculdade de Odontologia. O amor por Belém, pelo conhecimento e, sobretudo, pelas pessoas, foi a marca de uma existência inteira. Desde muito cedo colaborou com jornais e revistas literárias de Belém e do Rio de Janeiro. Em 1929 lançou “Terra Verde”, livro de poemas impresso com tinta verde. Um ano depois, separada do marido e com dois filhos, Léa e Otávio, que chegou jogar na seleção brasileira, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se tornou amiga dos maiores nomes da literatura e das artes. Nessa época, já assinava seus textos apenas como Eneida e tinha uma justificativa: não queria que os pais e o (ex) marido fossem envol-

vidos nas loucuras que fizesse. Assumidamente comunista, lutou contra o fascismo e tudo que pudesse oprimir a liberdade. Esteve presa várias vezes, sempre sob a mesma acusação: comunismo. Em vez de defender-se, proclamava a ideologia na qual acreditava cegamente. Na prisão, conheceu Olga Benário Prestes e Nise da Silveira, entre outras “grandes companheiras”, além de Graciliano Ramos, que a imortalizou em “Memórias do Cárcere”. Durante o Estado Novo, sobreviveu como operária, tradutora e jornalista. Com o fim da ditadura, estudou literatura, em Paris, de onde escrevia para o “Diário Carioca”. Lá, como não poderia ser diferente, fez amizade com gente da estirpe de Jean Cocteau, Paul Éluard, Louis Aragon e Pablo Picasso. Voltou ao Brasil cinco anos depois e retomou a carreira de escritora, lançando “Sujinho de Terra”, em 1953; “Cão da Madrugada”, em 1954, com recordações da infância e lembranças de Paris; “Algumas Personagens”, “Aruanda”, em 57; “História do Carnaval Carioca”, em 58, “Os Caminhos da Terra”, sobre a viagem à China e a outros países socialistas; e “Guia da mui bem amada cidade”, ambos em 1960; “Romancistas também personagem”, em 61; “Banho de Cheiro”, em 62, no qual se esparrama de amor por Belém; “Molière

ARQUIVO O LIBERAL

O coração vermelho de ENEIDA

narrado para crianças” e “Boa Noite, Professor”, em 1965. Apaixonada pelo carnaval, encarnou a Pierrô, personagem do baile que criou no Rio e trazido para Belém. Odiava a ditadura, mas possuía a imensa doçura dos poeta líricos. Seu jeito de escrever revolucionou a moderna crônica brasileira, criada por João do Rio e modificada por Rubem Braga. Fugindo da forma breve, libertou o texto das amarras do pouco espaço e ousou os mais belos e longos voos que a crônica conheceu, no século XX. Ao morrer, em 23 de abril de 1971, Eneida, que já havia sido tema dos desfiles do Salgueiro, Paraíso do Tuiuti e do Quem São Eles, desejava ser sepultada no lado esquerdo do cemitério de Santa Isabel (porque era comunista, claro) e queria, aos pés da sepultura, que fosse plantada uma mangueira. Seu túmulo, em mármore branco, tem somente o nome Eneida gravado na pedra, firme, denso, tal como assinava. A mangueira, porém, ficou na imaginação do visitante, que precisa passar sobre várias lápides para levar um rosa vermelha a um coração igualmente vermelho.

*João Carlos Pereira é jornalista e professor. NOVEMBRO DE 2018

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OLHARESNATIVOS

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Recortes da infância

As crianças amazônidas vivem peculiaridades próprias de quem cresce na região. Os sorrisos inocentes e cheios de vida se misturam à paisagem urbana, que também é bucólica, de um tempo entre o passado e o presente. O registro feito pelo fotógrafo Oswaldo Forte no Outeiro, distrito de Belém, mostra alegria de meninos brincando ao ar livre, vivendo uma infância que não pode ser reprimida. FOTO: OSWALDO FORTE

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OLHARES NATIVOS

Outros ângulos

No Cemitério Santa Isabel, o trabalho cotidiano passa quase despercebido nos dias que antecedem as visitas dos que prestam homenagens póstumas àqueles que lhes são ausência presente. FOTO: OSWALDO FORTE

Força feminina

Com mãos fortes e o suor do rosto, a feirante do Ver-o-Peso produz tucupi, goma e farinha de tapioca para garantir o pão de cada dia à mesa da família. Uma história de amor, esperança e luta se esconde na responsabilidade de sua labuta diária, faça chuva ou faça sol. FOTO: OSWALDO FORTE 10 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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Nem ouro. Nem prata.

Os dias corridos na avenida Presidente Vargas, muitas vezes, não permitem a contemplação da vida, a observação do outro. Mas, nesse corre-corre, ainda é possível oferecer atenção a quem precisa apenas de um olhar, num gesto grandioso de fraternidade. FOTO: OSWALDO FORTE

Vida frágil

No trabalho do carroceiro, a mais perfeita tradução da efemeridade das coisas. Um registro na avenida Augusto Montenegro sobre a dura realidade sobre o tempo. FOTO: OSWALDO FORTE NOVEMBRO DE 2018

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OLHARES NATIVOS

Uma tarde sob a chuva Ela pode vir de repente, mesmo sem avisar. A chuva vespertina, que antes tinha hora marcada para cair, agora desaba a qualquer momento sobre a cidade e as pessoas. FOTO: OSWALDO FORTE

Pôr-do-sol cíclico

O dia finda mais bonito e reflexivo à beira do rio. Na Baía do Guajará, um convite para a contemplação da natureza amazônica, no encontro entre água, cidade e floresta. FOTO: OSWALDO FORTE

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O som da solidão

O saxofonista toca tristemente as mágoas dos dias numa manhã qualquer em Belém do Pará FOTO: OSWALDO FORTE

Envie as suas fotos para a seção Olhares Nativos

Para participar da seção “Olhares Nativos” da revista Amazônia Viva basta enviar fotos com temática amazônica para o e-mail projetosespeciaisoliberal@gmail.com acompanhadas pelo nome completo do autor, número de identidade e uma breve informação sobre o contexto do registro fotográfico. As imagens devem ser autorais e com resolução de no mínimo 300 dpi. A publicação das fotos tem fins meramente de divulgação de trabalhos profissionais ou amadores, não implicando em qualquer tipo de remuneração aos autores. Participe!

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CAPA

Expedição:

Botos 14 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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CIENTISTAS PARTICIPAM DE MONITORAMENTO DE BOTOS DO RIO CASSIPORÉ E SE DEPARAM COM UMA SÉRIE DE OBSTÁCULOS PARA AS CAPTURAS DOS ANIMAIS. MESMO ASSIM, A EXPERIÊNCIA TROUXE CONHECIMENTO SOBRE O RIO E OS GOLFINHOS AMAZÔNICOS. TEXTO BERNARDO OLIVEIRA FOTOS BERNARDO OLIVEIRA E ANDRÉ DIB

U

m ambiente complexo, ainda pouco estudado e extremamente desafiador. Esse foi o cenário encontrado pelos pesquisadores que foram ao norte do Amapá estudar os botos do rio Cassiporé, no município de Oiapoque, entre os dias 15 e 25 de outubro. Apesar das quase 20 pessoas envolvidas na pesquisa, que reuniu moradores de Vila Velha do Cassiporé, pesquisadores e especialistas de diversas instituições, nenhum boto foi capturado. O projeto é uma iniciativa da Sardi (South American River Dolphin Initiative), rede sob a coordenação do WWF-Brasil que reúne pesquisadores de Colômbia, Peru, Equador, Bolívia e Brasil em torno do estudo dos botos sul-americanos. Além do WWF-Brasil, a expedição envolveu o Instituto Mamirauá, a Universidade de São Paulo (USP) e contou com a participação e o apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Tendo Vila Velha, a 800 km de Macapá, como base de operações, o objetivo da pesquisa era instalar “tags” satelitais - rastreadores via satélite – e coletar amostras para entender os deslocamentos e estudar a saúde desses animais no Parque Nacional (Parna) do Cabo Orange, unidade de conservação cortada pelo rio Cassiporé. O parque tem a particularidade de reunir a floresta amazônica ao oceano. “É onde a Amazônia encontra o mar. Temos esse manguezal maravilhoso, uma das últimas faixas contínuas de mangues do planeta, PRESERVAÇÃO

Pesquisadores foram ao norte do Amapá estudar os botos do rio Cassiporé, no município de Oiapoque

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CAPA

em uma linha de costa com pouca presença humana, o que o mantém em ótimo estado.”, explica Ricardo Pires, chefe do Parna do Cabo Orange. Entretanto, as condições encontradas pela equipe inviabilizaram o trabalho de “tagueamento”. Por influência do mar, o nível da água no rio chega a variar quatro metros diariamente em alguns pontos. Uma pororoca – onda que ocorre quando a maré sobe e a água do mar invade o rio, percorrendo quilômetros de seu leito – marca a transição entre vazante, quando o curso do Cassiporé desce rumo ao oceano, abaixando o nível da água, e enchente, quando ele sobe em direção à nascente, aumentando o volume de seu leito. “Estamos acostumados a grandes variações no nível da água, de até 11 metros, mas de forma lenta. Meses com a água alta e meses com ela baixa. Aqui, nós temos a influência da maré. O oceano entra com muita intensidade, duas vezes por dia. E há correntes muito fortes, tanto entrando quanto saindo. Lidar com as redes foi bastante desafiador.”, Miriam Marmontel, pesquisadora do Instituto Mamirauá que há mais de 30 anos estuda mamíferos aquáticos.

PEDRAS, GALHOS E MUITA LAMA Além do desafio para se adaptar às alterações na água, a equipe, com a experiência somada de centenas de capturas em condições mais favoráveis, encontrou uma enorme dificuldade para manipular as redes que cercariam os ani16 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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mais. Mesmo com o auxílio de pescadores contratados para o estudo, o trabalho foi dificultado pela grande quantidade de galhos boiando e pedras no fundo irregular do rio. Além da lama, que chegava a preencher boa parte do rio, a pororoca trazia consigo muita “sujeira” para a água. Para o cerco, encurralavam-se os botos entre duas redes, inicialmente distantes, e reduzia-se seu espaço gradativamente, com a colocação de uma terceira. Por diversas

PESQUISA NO RIO

A equipe da expedição encontrou dificuldades para capturar os botos, que perceberam a estratégia dos pesquisadores e evitavam o cerco.


vezes, os botos foram confinados, mas em todas as tentativas de finalmente pegá-los, a rede inevitavelmente se prendia em diversos objetos e abria espaços para que os animais passassem. Um filhote chegou a ser capturado, mas foi imediatamente libertado por ser ainda muito sensível aos processos necessários para o estudo. Também se notou que os botos, extremamente inteligentes, logo entenderam a estratégia da equipe, evitando cada vez mais o cerco. Na última tentativa, realizada no dia 23, uma das redes rompeu-se, em função da quantidade de galhos presos a ela e da intensidade da corrente. Preocupados com a segurança dos animais e das pessoas, cansadas após uma semana intensa de trabalho, foi decidido cancelar as atividades do último dia (24) para se discutir novas estratégias para uma próxima expedição. Raimundo Benedito Almeida Miranda, agricultor e morador de Vila Velha que pilota barcos para o ICMBio desde 1993, participante da pesquisa, afirma que já suspeitava que seria difícil lidar com o Cassiporé. “O rio corre muito e o fundo é muito acidentado, tem muito buraco e pau. Sabíamos que não ia ser fácil“, conta. “Foi um longo processo de aprendizado, tanto para nós, quanto para os pescadores, que nunca haviam capturado botos. Eles tiveram que aprender como manejar a rede e nos ensinar como o rio funciona.”, revela Miriam.

SOBRE O RIO

A expedição no rio Cassiporé envolveu o Instituto Mamirauá, a Universidade de São Paulo (USP) e contou com a participação e o apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)

A EXPECTATIVA PELO “TAGUEAMENTO” CONTINUA... Uma das dificuldades com as quais os pesquisadores se depararam foi decifrar a rotina dos animais. Os pescadores e moradores da Vila tinham ideias diversas sobre o comportamento dos botos. Alguns afirmavam que eles subiam o Cassiporé com a pororoca; que se aliNOVEMBRO DE 2018

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CAPA

APOIO CONJUNTO

Os pesquisadores contaram com o apoio de pescadores e moradores de Vila Velha, que colaboraram com diversas informações sobre o comportamento dos botos.

mentavam à noite em uma parte mais rasa do rio; que podiam ser encontrados próximos ao mar; que não ultrapassariam a região mais rasa, próxima à Cachoeira do Cassiporé; que haveria de 50 a 100 animais no rio. As histórias variavam, nem sempre concordavam entre si e nem sempre correspondiam à realidade encontrada. Em alguns dias, os relatos ajudavam, em outros, era difícil encontrar um boto. Entre as razões que motivaram a pesquisa no Amapá está o fato de o rio Cassiporé representar o limite a nordeste da distribuição geográfica do boto rosa, ou seja, o último local onde a espécie pode ser encontrada 18 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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ENTRE PAÍSES

O projeto de monitoramento é uma iniciativa da Sardi (South American River Dolphin Initiative), rede sob a coordenação do WWF-Brasil que reúne pesquisadores de Colômbia, Peru, Equador, Bolívia e Brasil em torno do estudo dos botos sul-americanos.

nesse canto da Amazônia. Considera-se também a possibilidade d o uso de uma faixa f luviomarinha por essa população. A instalação dos “tags” satelitais ajudará a esclarecer a movimentação dos botos do Parque Nacional do Cabo Orange. Todos esses desafios observados servem como aprendizado para uma futu-

ra expedição, com equipamentos mais apropriados, para finalmente compreender a biologia dos botos do Cassiporé e sua relação com o mar. “Agora vamos digerir tudo o que vimos e sentimos, elaborar todas essas hipóteses que temos pensado, dividir isso com os parceiros da Sardi e tomar uma decisão em conjunto para voltar

preparados para aquela condição de captura. Temos plena consciência de que, melhorando os equipamentos e com mais tempo, as chances de sucesso são bem maiores. E aí a gente começa a entender, de fato, o que acontece com aquela população”, afirma Marcelo Oliveira, especialista em conservação do W WF-Brasil.

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QUEM É

JAMILLE REIS

A força do movimento negro na Amazônia A professora Zélia Amador de Deus é uma das principais referências da luta social e contra o racismo na região TEXTO JAMILLE REIS

N

ascida na Ilha do Marajó. Negra. Filha de empregada doméstica. Se tem uma coisa que Zélia Amador de Deus não faz é usar essas particularidades para se vitimizar. Ao contrário. De pés descalços, tomando um café preto em seu apartamento, na Cidade Velha, ela

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afirma acreditar ser normal todas as suas conquistas, sua história de vida e contribuições sociais na Amazônia. Aos 69 anos, a professora de Artes da Universidade Federal do Pará e doutora em Antropologia é uma das principais referências do movimento negro na região Norte. Zélia nasceu em Soure, no Marajó,

e veio para Belém com um ano e meio. Estudou em escolas públicas, até ingressar na UFPA, onde possui forte atuação. Já foi vice-reitora por quatro anos da Universidade e, hoje, coordena a Assessoria da Diversidade e Inclusão Social (Adis), além de atuar como professora, ministrando aulas, orientando projetos, participando


de bancas, entre outras funções. Militante do movimento negro, ela garante que, no Brasil, o peso do racismo é sentido desde muito cedo. “Toda pessoa negra, aqui, desde que se entende por gente, já sente o peso da discriminação. É cotidiano, nas mínimas coisas. São as crianças que não querem brincar contigo, a dificuldade de encontrar par na quadrilha porque ninguém quer ser seu par; é tu não seres escolhido ou escolhida para nada na escola... É assim que você vai sentindo”, afirma. Aos nove anos, Zélia queria participar de uma dança na escola em que estudava, mas sentiu-se frustrado. “Tinham quer ser crianças mais claras”, relembra. O episódio marcou sua memória e foi decisivo para sua luta. “Com isso, aprendi portanto, desde muito cedo, que eu sou negra”, completa. Quando jovem, a professora exercia a militância política e, como vivia na ditadura militar, não podia falar de racismo. “Falar de racismo era atentar contra a segurança nacional”, destaca. Mais tarde, em agosto de 1980, surge o Centro de Estudo e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa), do qual Zélia é cofundadora, e a discussão sobre a discriminação racial passa a ser mais consistente. “Era um período de reabertura política, com o governo Geisel, em que estavam ressurgindo todos os movimentos políticos. Foi quando dei início a minha militância mais sistemática”, afirma.

COTAS

Zélia Amador contribuiu, ainda, com o sistema de cotas raciais nas

LIDERANÇA NA AMAZÔNIA

Zélia Amador de Deus ajudou a fundar o Centro de Estudo e Defesa do Negro, nos anos 80

universidades. “Hoje, cotas para negros é lei. Todas as universidades federais são obrigadas a ter. Encaminhamos a proposta em 2003. Somente em 2005 foi avaliada e aprovada pelo conselho, e efetivada em 2008”, lembra. De acordo com a professora, um dos avanços desta conquista é a presença negra dentro da universidade, antes em quantidade pequena e cada vez mais de escassa, dependendo do curso. “Aqueles cursos que a sociedade considera de maior prestígio, como Medicina, Arquitetura, Engenharias, Odontologia, Direito... Praticamente não se encontrava negros. Hoje em dia você encontra com mais facilidade em todos os cursos”, pontua Zélia, que se preocupa para que esses grupos não só entrem na universidade, mas que possam concluí-los com sucesso.

DESIGUALDADE

Mesmo com os avanços, Zélia Amador acredita que ainda tem muito a ser feito pela população negra. “A nossa sociedade ainda é muito desigual e a população negra acumula uma desigualdade histórica, em todas as áreas da vida.

Os negros morrem mais cedo, compõem a maioria dos desempregados, ganham menores salários, têm as piores condições de moradias, têm menos anos de estudo”, afirma. Para a doutora em Antropologia, o Estado brasileiro precisa encarar a desigualdade social com seriedade para poder fazer com que a nação cresça de forma mais igualitária. “A educação é um dos caminhos para transformar essa realidade, mas não o único. É um instrumento importantíssimo no processo de conquista de cidadania, e também para combater o racismo”, defende Zélia. Mas, segundo a professora, também é preciso ter políticas específicas nos outros campos, como na saúde, justiça, lazer e cultura.

CEDENPA

À frente do Cedenpa, Zélia destaca que sem a atuação do movimento negro o País seria muito pior. Segundo ela, graças ao trabalho realizado, hoje a sociedade aceita que existe racismo. “Até pouco tempo não se acreditava que existia racismo no Brasil. Foi o movimento negro que mostrou que isso é uma realidade. Foi ainda ele que trouxe para cena os quilombolas”, destaca. Entre as reivindicações, atualmente é discutida a possibilidade de ser obrigatório no currículo a história da África e da cultura afro-brasileira e africana. “É importante não só para a formação de negros e negras, mas de todos os brasileiros. Nós precisamos ver o nosso passado, conhecer a nossa história, para que possamos refletir o presente e construir um futuro melhor”, afirma Zélia Amador. NOVEMBRO DE 2018

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SOCIEDADE ROBERTA BRANDÃO

Cultura de resistência Artistas da periferia de Belém levantam a bandeira contra o preconceito marcando espaço na sociedade por meio da música TEXTO LUCAS COSTA

A

popularização de ritmos que têm sua origem ligada às periferias do Brasil tem resultado em um cenário musical cada vez mais diverso. Ao longo do último ano, observamos a cantora Anitta, que saiu de uma favela, chegar ao topo de listas de mais ouvidas com o ritmo do 22 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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funk; ao mesmo tempo em que a drag queen Pabllo Vittar alcançava um público cada vez maior no País, misturando diversos ritmos populares ao pop. A porta, então, estava aberta para que cada vez mais artistas, que refletem a pluralidade da população que consome cultura popular no Brasil, pudessem

mostrar seu trabalho, criando uma cena musical diversa, representativa e plural. Mesmo com o funk, rap, hip-hop e até mesmo o batuque cada vez mais presentes no mainstream musical, os desafios para que um artista que representa uma minoria ideológica ocupe um lugar de destaque em um cenário musical, ainda é grande.


ATIVISMO Jeff Moraes acredita ser importante cantar a negritude como um ato político nos dias atuais ROBERTA BRANDÃO

No Pará, o cenário da música independente tem seguido cada vez mais por essa linha, e artistas negros e da periferia ganham espaço cantando sua própria realidade. Jeff Moraes é um dos representantes da música negra do Estado. Integrante do Zimba Groove, atualmente trabalha no lançamento de sua carreira solo. Ele conta que mesmo tendo se apaixonado pela música, sua vontade na infância era ser ator, mas já observava a falta de representatividade no cenário. “A música chegou primeiro na minha vida. Desde criança eu achei que seria um ator, mas eu não me via re-

presentado em novelas, e é desde aí que o cenário de racismo me segue, porque eu não via artistas negros. Eu queria fazer parte daquilo, mas não tinha perspectiva alguma, porque estava nesse cenário racista”, conta. Como artista, Jeff divide seus processos de autoconhecimento em faNOVEMBRO DE 2018

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SOCIEDADE

VICTÓRIA RAPSÓDIA

ses, e a segunda delas, ocorreu no momento em que passou a se apresentar nas ruas. “Foi quando me atentei para a negritude e a importância de cantá-la, e que isso é um ato político. Foi quando comecei a compor, e cantando nas ruas e batucadas, pude enxergar uma outra Belém que eu não tinha enxergado antes, e isso me fez despertar para o que eu sou, um artista afroamazônico”. Mesmo com a popularização dos gêneros musicais ligados aos negros, Jeff relembra que existem grupos representando gêneros tradicionais, como o Ijexá e o Afoxé, que seguem sem visibilidade. Entre estes grupos está o Axé Dudu, fundado dentro do Centro de Estudo e Defesa do Negro (Cedenpa), há 30 anos. “Eles fazem resistência negra fazendo ritmos de raiz africana, são um grupo incrível que segue fazendo resistência negra raiz”. Um dos grandes sucessos da carreira de Jeff Moraes, com o Zimba Groove, é a canção “Menino Preto”, composta em parceria com Roberta Brandão e Pelé do Manifesto. A letra aborda um tema espinhoso, mas ainda comum para a população negra no país: o extermínio da juventude negra. “Por ela falar de uma realidade muito horrorosa que a gente vive com muita força, ela conseguiu atingir um público gigantesco. Quando cantei ela da primeira vez não fazia ideia do que era cantar essa realidade, Mas ver que essa música toca as pessoas também é ruim, porque eu preferia cantar a ascensão em vez do extermínio do povo”, relata Jeff.x

IDENTIDADE E LUTA

Thais Badu é outra voz que vem da periferia representar os negros em suas canções. Atualmente ela se prepara para 24 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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ESSENCIAL Thais Badu é uma nova voz que vem da periferia para representar os negros em suas canções

o lançamento de seu primeiro EP “Sou Preta”. A cantora já lançou como single a canção que dá título ao EP, junto a um videoclipe. Com letras que abordam as dificuldades que os negros enfrentam, Thais relembra que entender o racismo foi um processo longo, por conta do ambiente em que passou a infância. “Eu fui privilegiada em alguns momentos, na minha escola não tinha muitos negros por exemplo, então eu sofri racismo sem saber o que era. A partir do momento em que eu fui crescendo, fui observando as coisas de maneira diferente, porque as coisas não são iguais para todo mundo no Brasil”. Com o passar do tempo, Thais conta que foi construindo sua identidade musical a partir de ritmos ligados a sua ancestralidade, como o reggae. “Quando cheguei para fazer esse som, eu já estava com um monte de coisas que eu que-

ria desabafar, que eu sabia que tive um entendimento diferente, e o racismo, as diferenças, a segregação, as diferenças sociais, tudo isso estava a minha volta de forma muito latente no momento. Eu estava vivendo as coisas realmente, e estava vendo, então não tinha como fugir desse discurso”, justifica Thais.

MAIS ESPAÇO

O rapper Pelé do Manifesto também canta em suas letras as duras realidades enfrentadas pelo povo negro. Ele representa o gênero mais escutado atualmente no mundo todo, e conta que se interessou pelo gênero ouvindo artistas como Marcelo D2 e Gabriel, o Pensador. “Quando eu comecei a escrever, comecei a falar sobre minha realidade, e comecei a perceber que tinha cunho político tudo aquilo que eu falava. A temática social, e temática racial, elas eram o que eu botava nas minhas músicas, e isso acabava tornando minha música politizada. Então foi


DIVULGAÇÃO

NA ESTRADA O rapper Pelé do Manifesto canta as duras realidades enfrentadas pelos negros na sociedade

algo natural, fui fazendo, foi saindo, e depois eu percebi qual era a importância desse discurso”, relembra Pelé. A popularidade do rap também cresce no Estado. Cada vez mais jovens organizam batalhas de rima em diversos pontos da cidade, onde expressam seu cotidiano e inquietações. Para Pelé, o cenário crescente se mostra importante. “Eu fico muito feliz de ver que ele vem ganhando cada vez mais espaço, não só na mídia, mas na sociedade como um todo, em todas as classes sociais. Pessoas de todas as cores curtem e amam o rap, e para mim é

uma forma muito bonita de se expressar, e para os pretos e periféricos ele não é só uma forma de se expressar, de gritar que a pessoa existe; também é uma forma de o jovem preto periférico ser protagonista, e não ficar à margem, mas ser protagonista da sua história”, destaca. NOVEMBRO DE 2018

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FERNANDO SETTE/ @EXPEDICAOPARA

CULTURA

MÚSICA

para aprender e ensinar Banda formada por alunos de Licenciatura Plena em Música da Uepa reúne um repertório diversificado de gêneros brasileiros TEXTO DAYANE BAÍA FOTOS NAILANA THIELY

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uando entrou no curso de Licenciatura Plena em Música da Universidade do Estado do Pará (Uepa), em 2016, Tirza Costa já tinha familiaridade com a flauta transversal pelo conhecimento adquirido no Instituto Estadual Carlos Gomes, entidade centenária de ensino musical para crianças, jovens e 26 • REVISTA AMAZÔNIA VIVA •

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adultos. Ao ingressar na educação superior, foi estimulada a ir além da sala de aula e participar de atividades de pesquisa e extensão e, assim, integra a Banda da Música da Uepa. No mês em que se comemora o Dia do Músico, Tirza e outros 35 colegas se apresentaram no Theatro da Paz. Uma noite memorável com o concerto conduzido pelo

maestro Anielson Ferreira. “Foi um momento muito importante, que demonstrou o empenho de ensaios de pelo menos duas vezes por semana”, disse. A aluna concordou com orgulho. “É um progresso visível. Ele tem muita paciência em acompanhar e permitir o nosso tempo. Ele não desiste de nós”, afirmou, enaltecendo o regente.


O nervosismo habitual tinha um peso maior por estarem no palco que recebe artistas consagrados. E ainda pelo fato de o curso de Licenciatura não ter como objetivo principal desenvolver performance e, sim, formar educadores musicais nas cidades em que está instalado: Belém, Santarém e Vigia de Nazaré - brevemente estará também em Marabá. “Os cursos técnicos e bacharelados exigem prática intensa dos instrumentos, enquanto que a licenciatura forma professores, com competências e habilidades pedagógico-musicais”, explicou a coordenadora Eliana Cutrin. Por isso, a Banda de Música da Uepa é uma forma de amplificar essas características, com a prática de instrumentos em conjunto, e também por levar ao público um repertório diversificado de gêneros como jazz, carimbó, pop, brega e MPB, com novos arranjos. Foi criada em 2008, mas há três anos experimenta uma visibilidade que rendeu apresentações nos teatros Maria Sylvia Nunes, Gabriel Hermes e Margarida Schivasappa, onde gravou seu primeiro DVD em 2017. O projeto também busca ampliar o arcabouço cultural sobre a vivência musical na comunidade externa. Mensalmente o grupo realiza ensaios didáticos abertos ao público e tem despertado interesse de turmas de alunos de escolas públicas. A procura é para presenciar demonstrações e conhecer a história de instrumentos de sopro, como flautas, clarinetes, clarone, saxofones, trompetes, trombones, tuba; de cordas, como guitarras, violão, contrabaixo; percussão e bateria; além de piano e voz. “Eles ficam perplexos com o efeito sonoro. É comum ouvirem um som no cotidiano, mas não terem a percepção de qual instrumento o produz. Nos ensaios didáticos também conhecem mais sobre a profissão músico e a carreira de pessoas que vivem da arte”, explicou o gerente da Banda, Anderson Sandim. A banda universitária tem intenções acadêmicas e já rendeu monografias de conclusão de curso e publicações de artigos e relatos de experiência. A Semana do Músico é uma das realizações que apresenta a produção científica e cultural dos discentes e docentes do curso.

PALCO CLÁSSICO

Integrantes da Banda de Música da Uepa viveram uma noite memorável com um concerto no Theatro da Paz

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NOVOS CAMINHOS

Indígenas e tensões

THIAGO BARROS

é jornalista, mestre em Planejamento do Desenvolvimento Sustentável (NAEA-UFPA) e professor da Universidade da Amazônia @thiagoabarros

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Há três décadas, muitos renomados antropólogos acreditavam que os povos indígenas estavam em declínio progressivo, caminhando para a extinção. A situação era tratada em livros, na imprensa, por organizações indigenistas e pesquisadores de áreas afins. O contato com a sociedade brasileira, marcado por massacres, epidemias e invasão de terras, havia decretado, ainda na década de 1950, um caminho para o desaparecimento tanto físico quanto cultural dos povos indígenas. Em uma perspectiva positiva, para sobreviver, as etnias assimilariam o modo de vida nacional, extensão da cultura ocidental. Os indígenas se tornariam “brasileiros”. Apesar do cenário negativo, no final dos anos 1980, aproximadamente 220 povos se mantinham em seus núcleos, vivendo como indígenas. Esses grupos passaram a crescer, consolidaram estratégias de sobrevivência, conquistaram o direito da demarcação de terras e atuaram politicamente em busca de protagonismo na sociedade brasileira. Muitos povos indígenas se adaptaram rapidamente à tensão com a sociedade branca. De acordo com o Censo 2010 do IBGE, o Brasil abriga 897 mil indígenas, divididos em 305 etnias e falantes de 274 línguas. A maioria dos indígenas, 520 mil, ainda vive em suas terras. Outros 375 mil migraram para cidades. Enquanto as comunidades que sobrevivem da terra se dedicam à agricultura, coleta, caça, pesca e elaboração de produtos naturais, os indígenas que habitam aglomerados urbanos se adequam à lógica do caNOVEMBRO DE 2018

pitalismo e criam seus descendentes dentro do sistema cultural brasileiro. Além da dualidade de modos de vida e trabalho, existem diferenças nas relações de poder. Nas terras indígenas, o poder é exercitado de acordo com as tradições e hierarquias. Por outro lado, nas cidades, o dinheiro e posições em organizações de prestígio simbolizam destaque social como aponta o antropólogo e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira Gomes em “Os índios e o Brasil” (Contexto, 2017). Este conjunto de informações ajuda na compreensão da atual posição dos indígenas no País, mas é apenas um nó da extensa teia de questões e tensões que se levantam na relação de diversas etnias com o Estado e população não indígena brasileira. Esta relação é o ponto central da questão indígena, nascida desde o primeiro contato com exploradores europeus e que se manterá enquanto existirem povos indígenas em território brasileiro. Existe uma grande preocupação sobre qual será o posicionamento do presidente eleito, Jair Bolsonaro, diante da questão indígena, sobretudo por conta de declarações passadas – “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”, disse, em entrevista a um programa da TV Bandeirantes. O atual impasse é a possibilidade de a Funai ser retirada do âmbito do Ministério da Justiça, caminho apontado pela equipe de transição. Em novo ciclo político, os indígenas correm o risco ainda maior de exposição a tensões de um mundo criado a seu redor.

“Apesar do cenário negativo, no final dos anos 1980, aproximadamente 220 povos se mantinham em seus núcleos, vivendo como indígenas”


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