Círio Miriti

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FASCÍCULO ENCARTADO EM O LIBERAL

Cirio A arte de um povo

~ BRI NQU E DOS DE M I RI T I M IS T U R A M CORES E DE VOÇA O N A F ES TA DE N A Z A RÉ REALIZAÇÃO

APOIO


FOTOS: FERNANDO SETTE

O colorido em meio à multidão Produzido em sua grande maioria por famílias

Círio movimenta quase todos os setores produtivos

ribeirinhas, com modo de vida simples e que ha-

da economia do Estado e a união entre o povo, os

bitam regiões alagadiças de Abaetetuba, no Baixo

voluntários e os empresários fortalece esse grande

Tocantins, o brinquedo de miriti é um dos mais tra-

momento cultural na Amazônia.

dicionais símbolos do Círio de Nazaré, romaria que

Em meio à multidão que percorre as ruas de

reúne mais de dois milhões de pessoas de todas as

Belém no segundo domingo de outubro, os brin-

classes sociais em um momento de fé e unidade no

quedos de miriti pendurados em girândolas, uma

Pará. A festa é considerada, pela Unesco, como Pa-

espécie de expositor feito do próprio miriti, dão

trimônio Cultural da Humanidade.

cor e leveza à procissão. De acordo com os regis-

O evento, que tem um custo de mais de R$ 3,4 milhões neste ano, conta com patrocínio de empresas

tros históricos, os objetos estão presentes desde o primeiro Círio, em 1793.

e doações de anônimos. Há mais de 16 anos, a mi-

Segundo os historiadores, a arte em miriti é uma

neradora Vale é uma das patrocinadoras da festi-

herança indígena que ganhou traços da cultura

vidade. Conhecido como o “Natal dos Paraenses”, o

europeia. Dos tradicionais barcos e casas - levados 2

EDITOR DO NÚCLEO DE PROJETOS ESPECIAIS: FELIPE JORGE DE MELO PRODUÇÃO E TEXTOS: JAMILLE REIS / DIAGRAMAÇÃO: FERNANDO SETTE/ FOTO DA CAPA: IVAN DUARTE.


Cirio 2018

por fiéis como forma de agradecimento por uma

O resultado do trabalho manual, muitas vezes es-

graça alcançada - a peças mais modernas, como

tendido pela madrugada, surpreende até mesmo

adornos decorativos, tudo é esculpido pelas mãos

aos próprios artesãos, que se enchem de orgulho

de talentosos artesãos a partir da fibra leve da

ao finalizar cada nova peça. Canoas, passarinhos,

palmeira, conhecida como miritizeiro ou buriti-

cobra, jacaré, tatu, pato, casal de dançarinos, so-

zeiro. A arte, tombada como patrimônio histórico

ca-soca, come-come, são apenas alguns dos diver-

cultural imaterial pelo Instituto do Patrimônio

sos itens produzidos em Abaetetuba, município

Histórico e Artístico Nacional (Iphan), encanta

paraense que é referência nacional na produção

das crianças aos adultos, aguça a imaginação e

das peças artísticas.

explora elementos da fauna e flora, além de mitos

Cada membro da família, em geral, exerce

e influências afetivas do simples cotidiano dos ca-

uma função definida no processo produtivo

boclos e ribeirinhos da região.

dos brinquedos. Os homens, normalmente,

Entre um café e uma boa história de família,

talham o objeto, enquanto as mulheres ficam

com ferramentas simples, como faca e terçados,

responsáveis pelo acabamento, como a pintu-

a criatividade dos artesãos é esculpida e transfor-

ra e embalagem do produto. Não só no Círio,

ma-se nas peças coloridas que atravessam não só

mas durante todo o ano, há produção das pe-

a multidão no Círio, como também as fronteiras

ças e também venda, seja por encomendas ou

do Pará, levando o nome do Estado mundo afora.

exposições e feiras. 3


Unidos pela tradição do artesanato FOTOS: IVAN DUARTE

Muito além da raiz histórica entrelaçada entre o miriti e

sanatos de Miriti (Asamab), em Abaetetuba.

o Círio de Nazaré, a produção dos tradicionais brinquedos

Fundada há 15 anos, a Asamab conta hoje com 93 ar-

e objetos feitos com as talas da planta garantem o susten-

tesãos associados do município. Cada artesão e sua

to de centenas de famílias durante o ano inteiro. Graças à

família participa do processo de produção e venda do

crescente valorização do artesanato a partir dos anos 2000,

artesanato de miriti. Além da associação, há ainda os

a arte passou de elemento rústico a um item com valor co-

artesãos autônomos, com quantitativo semelhante ao

mercial. Diante da nova realidade, os artesãos sentiram a

da Asamab, e a Miritong, uma ONG voltada para o lado

necessidade de se estruturar melhor e, para isso, criaram,

social, ambiental e cultural a partir da matéria-prima.

em 2003, a Associação dos Artesãos de Brinquedos e Arte-

“Quando vamos para Belém, todos os artesãos envolvi4


Cirio 2018

dos direta ou indiretamente com o miriti de Abaetetu-

produzem o artesanato e vendem.

ba, chegamos a nos reunir em torno de sete mil pesso-

A associação é responsável pela organização das feiras

as”, diz o presidente da Asamab, Rivaildo Peixoto.

e eventos que ocorrem ao longo do ano, em Abaetetu-

A lém das famílias que vivem da produção do artesa-

ba, Belém e outras cidades brasileiras. E também é uma

nato de miriti, há uma cadeia produtiva e econômi-

rede de apoio, que luta por melhorias e o desenvolvi-

ca envolvida a partir do manejo da “palmeira santa”,

mento da arte. Paralelamente a isso, a instituição rea-

como é chamada localmente a árvore de buriti. Ri-

liza um trabalho social na comunidade, com oficinas e

vaildo explica que a primeira fase envolve os extra-

palestras em escolas, igrejas e penitenciárias.

tivistas, normalmente ribeirinhos, que retiram a ma-

Já a produção e comercialização é independente. Cada

téria-prima, sempre na “lua certa”. A segunda são os

artesão tem suas demandas, inclusive vindas do eixo

cesteiros, que produzem itens diversos, como cestos e

Rio-São Paulo, Nordeste e, também, internacional. Mas,

tipitis com a tala do miriti. Em seguida, em terceiro

a feira realizada no período do Círio de Nazaré, em Be-

lugar, é o atravessador, que processa o material e leva

lém, ainda é a maior vitrine dos artesãos de miriti, tan-

para os artesãos que, já em sua quarta fase no ciclo,

to em âmbito nacional quanto mundial.

Os objetos e suas histórias

Com ferramentas simples, como facas e arame, e muita habilidade e criatividade, milhares de peças de miriti são construídas e dão vida a histórias, muitas delas fictícias, outras que revelam, de forma lúdica e colorida, o cotidiano dos artesãos e da vida no interior. Nas páginas a seguir, alguns exemplos dessa arte tipicamente amazônica:

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FOTOS: FERNANDO SETTE

Casa A casa é o objeto mais procurado pelos promesseiros do Círio de Nazaré. Em meio ao mar de gente, os romeiros carregam a peça, geralmente na cabeça, durante todo o trajeto, como forma de agradecimento pela conquista da casa própria ou mesmo uma reforma realizada.

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FOTOS: FERNANDO SETTE

Barcos e canoas Barcos e canoas, e os popularmente conhecidos “popopôs”, também estão entre os objetos que fazem parte da procissão e representam a realidade, o dia a dia, dos “povos das águas”. Ao adquirirem suas embarcações, para pesca ou para trabalho, os ribeirinhos levam a miniatura, feita de miriti, para agradecer pelo bem adquirido. Muitos pescadores também fazem a homenagem em virtude da boa safra na pesca.

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FOTOS: FERNANDO SETTE

Cobra O animal faz parte do imaginário folclórico e está re-

que essa cobra despertasse, a frente da cidade cairia.

lacionado a uma lenda tradicional em Abaetetuba. Se-

A mesma lenda se espalha pelo Estado do Pará, inclu-

gundo os moradores, os antigos diziam que havia uma

sive em Belém, sendo a cabeça da serpente embaixo da

cobra, cuja cabeça estaria embaixo da matriz da igre-

Igreja da Sé, de onde sai o Círio no domingo, e o rabo, na

ja de Conceição, e o rabo na ilha da Pacoca. Uma vez

Basílica de Nazaré.

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Cirio 2018

FOTOS: FERNANDO SETTE

Come-Come O brinquedo batizado de come-come representa o que as famílias tradicionais chamavam de xerimbabos, que são as criações domésticas como peru, galinha, pato e outros animais de pequeno porte, como macacos. Na peça feita de miriti, duas pombas representam esse costume, comum no interior paraense. O movimento do brinquedo simula que as duas aves estão se alimentando.

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FOTOS: FERNANDO SETTE

Pássaros Presente na fauna brasileira, os pássaros, em sua grande

parte da rotina da população, principalmente a do interior

diversidade, são retratados na arte regional e estão entre as

paraense. Entre a infinidade de espécies, arara-azul, tuca-

peças presentes no Círio de Nazaré. As aves são comuns no

no, sabiá e curió estão representados pelo colorido dos brin-

Estado, e ouvir seus cantos ao amanhecer e entardecer faz

quedos de miriti.

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Cirio 2018

FOTO: FERNANDO SETTE

Casal de dançarinos Inspirado no ritmo caribenho e nos grandes bailes do passado, o casal de dançarinos é um dos tradicionais itens produzidos com o miriti. Presos em um fio de elástico, ao puxar, os bonecos causam a impressão de estarem dançando. Há também quem diga que possuir o objeto em casa ajuda a manter o relacionamento amoroso e a fortalecer a união do casal.

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FOTOS: FERNANDO SETTE

Avião Durante muito tempo, a única ligação do povo abaete-

porte. Em virtude disso, quando um avião pousava e o ri-

tubense com à capital era somente por meio das águas.

beirinho via, se tornava a atração da cidade, tornando-se

Não havia estradas, tampouco outros meios de trans-

um dos objetos também retratados pelos artesãos locais.

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Cirio 2018

FOTOS: FERNANDO SETTE

Palhaço Muito presente no imaginário, em especial das crianças, o palhaço representa a ida dos circos para o interior do Estado, o que se tornava uma grande atração na cidade, tendo em vista a dificuldade de acessibilidade à época. O objeto remete também aos bailes carnavalescos.

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Artistas encantados pela cultura FOTOS: IVAN DUARTE

O encanto da multidão, que se mescla com o colorido do

conta Nildo.

miriti, durante o Círio de Nazaré, foi o que fez com que Nil-

Junto a categoria, Nildo luta para manter a cultura do miriti

do do Socorro Farias, de 42 anos, enxergasse a arte com

viva. “Abaetetuba era conhecida como a terra da cachaça,

outros olhos. Após visitar a procissão pela primeira vez em

com seus grandes engenhos. Hoje em dia não tem nenhum

Belém, há 17 anos, ele decidiu tomar um novo rumo na car-

em funcionamento. Não queremos que o mesmo aconteça

reira, abrindo mão do emprego formal em uma loja para

com o miriti. Queremos manter viva essa cultura”, apon-

viver como artesão. “Fiquei encantado com aquela multi-

ta. “Conseguir um espaço físico para nós é uma das nossas

dão, a saída da santa, a fé das pessoas. Ao mesmo tempo, vi

lutas”, completa o artesão, que é vice-presidente da Asso-

o fluxo da venda dos brinquedos no meio do povo, e isso me

ciação dos Artesãos de Brinquedos de Miriti de Abaetetuba.

chamou muita atenção”, relembra. Ribeirinho de Tucumanduba, curso d’água localizado no município de Abaetetuba, Nildo fazia alguns brinquedos para seu uso durante a infância, mas nunca imaginou que um dia viveria deles. Mais tarde, ele se casou e foi morar “na cidade”, em Abaetetuba, onde trabalhou como vendedor. Hoje, ele, sua esposa e filha, vivem da produção e venda do miriti. Em seu atelier, um pequeno espaço em casa, ele produz um pouco de tudo, com destaque para brinquedos que deslizam no chão e a linha de bonecos, como os heróis da Marvel e DC Comics, seu diferencial. “Sempre procuro criar algo novo, pelo menos duas ou três peças. Eu talho o brinquedo e minha esposa faz o acabamento com a pintura. Durante o período do Círio contratamos duas pessoas para nos ajudar, a lixar etc”, diz o artesão, que vende de R$ 7 mil a R$ 8 mil no período da Festa de Nazaré, com peças que vão de R$ 5 a R$ 30. “Graças a Deus a demanda é tão grande que o que conseguimos produzir para levar para Belém, a gente vende”,

O mundo está tão moderno, cheio de brinquedos tecnológicos, mas, ainda assim, quando você dá um brinquedo de miriti na mãos das crianças, elas ficam encantadas. Deveria haver mais incentivo, pois trabalha com o imaginário e inocência delas.” Nildo Farias, artesão

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Também vindo das ilhas próximas, na região do Baixo Tocantins, Manoel Miranda, de 52 anos, acumula mais de 40 anos como artesão. Apaixonado pelo que faz, ele conta que tudo que conquistou na vida veio do miriti. “Onde eu morava tinha dificuldade de encontrar brinquedos. Meus pais trabalhavam com a produção de paneiros e tipitis e eu pegava as sobras da palmeira, que eles não usavam, para fazer barquinhos para brincar no rio”, recorda. A brincadeira da infância, aos poucos, se tornou negócio. “Os amigos foram pedindo e eu fui fazendo para eles, até que uma vez um colega me disse que conseguiria vender bem esses barcos em Belém durante o Círio”, conta Miranda, que levou cinco barcos para vender em seu primeiro Círio. Hoje o artesão reúne cerca de cinco mil peças para vender durante a temporada da Festa, o que lhe garante uma renda de aproximadamente R$ 15 mil.

Se você perguntar três vezes para um artesão o que o miriti representa para ele e ele não chorar, ele não é um artesão. O miriti é tudo para nós. Nascemos e nos criamos no

Ao todo, oito pessoas trabalham no atelier de Miranda, em Abaetetuba, sendo cinco delas integrantes da própria família: ele, sua esposa e seus três filhos. “Vivemos 100%

meio desse colorido” Rivaildo Peixoto, artesão

da renda do miriti. Graças a Deus e a essa matéria-prima

O miriti está fortemente presente na vida de Rivaildo Peixoto,

maravilhosa pude ir até Brasília, São Paulo, Recife e Minas

que desde os cinco anos já se arriscava a talhar um ou outro

Gerais para mostrar e comercializar meu trabalho. Nunca

objeto. Aos 12 anos, o artesão começou sua produção indepen-

imaginei conhecer esses lugares”, afirma.

dente de miriti e mais tarde procurou novos caminhos profissionais, onde atuou como professor de Geografia, trabalhou em uma mineradora e também na área de panificação por mais de 30 anos, sem deixar de lado o amor pela arte. E é esse sentimento que fala mais alto até hoje. “Vivo só do artesanato e, se assim Deus me permitir, quero continuar, pois é o que amo. O miriti é tudo para a gente”, afirma Rivaildo. De origem indígena, o artesão usa a pintura característica de seus antepassados como marca do trabalho. O núcleo familiar do artesão é composto por 28 pessoas, subdivididos em seis famílias. São quatro gerações que vivem e produzem o artesanato de miriti dia após dia para tirar o sustento e construir

sonhos. Além das feiras tradicionais de miriti no Estado, Rivaildo tem parcerias em São Paulo, Rio de Janeiro, algumas ci-

Depois de pronto, muitas vezes, a gente nem

dades do Nordeste e também exporta os produtos para fora do

acredita que fomos nós mesmos que confec-

Brasil, como por exemplo, recentemente, enviou uma deman-

cionamos aquele objeto. É um dom que Deus

da para Barcelona, na Espanha. Para o Círio, ainda o maior ca-

nos deu.”

nal de exposição da arte, foram confeccionadas mais de oito

Manoel Miranda, artesão

mil peças este ano.

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ANÚNCIO VALE


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